Alain Ehrenberg, analista particularmente inspirado da ainda curta – mas já dramática – história do indivíduo moderno, tentou apontar a data de nascimento da revolução cultural do modernismo tardio (ao menos de sua ramificação francesa) que deu origem ao mundo da modernidade líquida que ainda habitamos, elaboramos e reformulamos dia após dia.
Ehrenberg escolheu uma tarde outonal de quarta-feira nos anos 1980, quando uma certa Vivienne, uma “mulher francesa comum”, declarou em um programa de entrevistas na televisão, diante de alguns milhões de espectadores, que seu marido Michel sofria de ejaculação precoce, razão pela qual ela jamais havia experimentado um orgasmo durante toda a sua vida de casada.
O que havia de tão revolucionário no pronunciamento de Vivienne que justificasse a escolha de Ehrenberg?
Dois aspectos reciprocamente interligados: primeiro, algo quintessencialmente, até etimologicamente privado era tornado público – ou seja, era dito diante de todos que desejassem ouvir, ou ouvissem por acaso.
Segundo, a arena pública, ou seja, um espaço aberto de acesso não controlado, foi utilizado para discutir e dar vazão a um assunto de relevância, pertinência e emoção inteiramente privadas.
Juntas, essas duas reviravoltas legitimaram o uso público de uma linguagem desenvolvida para conversas privadas e mantidas entre um número restrito de pessoas selecionadas.
Mais precisamente, essas duas novidades interconectadas deram início à mobilização em público – para o consumo e uso de audiências públicas – de um vocabulário desenvolvido a fim de narrar experiências subjetivas e vivenciadas em privado (Erlebnisse, em oposição a Erfahrungen).
Conforme os anos se passaram, no entanto, ficou claro que o verdadeiro significado daquele evento havia sido a obliteração dá até então sacramentada divisão entre as esferas “pública” e “privada” da vida humana corpórea e espiritual.
Ao observamos o episódio em retrospecto, com todas as vantagens que a perspectiva nos proporciona, é possível dizer que a aparição de Vivienne diante de milhões de homens e mulheres franceses colados às telas de suas televisões também introduziu aos espectadores – e, através deles, todos os seus entes queridos e estimados e, por fim, o resto de nós – em uma sociedade confessional.
Trata-se de um tipo de sociedade até então inaudito e inconcebível, em que microfones foram instalados dentro de confessionários, cofres eponímicos e depositários dos segredos mais secretos, do tipo de segredos que só seriam revelados a Deus ou a seus mensageiros terrenos e plenipotenciários.
É uma sociedade em que alto-falantes conectados a esses microfones foram colocados em praças públicas, locais antes voltados para a vazão e ostentação de questões do comum, de interesses, preocupações e urgências compartilhados.
E assim a origem da sociedade confessional foi o momento do triunfo final da privacidade, que havia sido a invenção primordial da modernidade – mas também o início de sua queda vertiginosa a partir do ápice de sua glória.
A hora de sua vitória (pois é isso que foi) pírrica: a privacidade invadiu, conquistou e colonizou o âmbito público às custas da perda de sua autonomia – seu traço definidor, e também seu privilégio mais estimado e ferrenhamente defendido.
Mas, para melhor compreendermos as reviravoltas atuais desse enredo, vamos começar do começo.
O que é “privado”? Qualquer coisa que pertença ao âmbito da “privacidade”.
Para descobrir o que se entende por “privacidade” em nossos dias, contudo, vamos visitar a Wikipedia, site conhecido por buscar e registrar de forma ágil e diligente o que a sabedoria popular acredita/aceita que seja a verdade a respeito de uma questão, seja essa verdade qual for, e por atualizar suas descobertas dia sim, dia não, seguindo assim a uma curta distância seus alvos, conhecidos por correrem mais depressa até mesmo do que os seus perseguidores mais dedicados.
Como era possível ler na versão de língua inglesa da Wikipedia em 14 de julho de 2010, a privacidade é a capacidade de um indivíduo ou de um grupo de isolarem a si próprios ou informações a seu respeito e, assim, revelarem-se de forma seletiva… Às vezes, a privacidade é associada ao anonimato, o desejo de passar desapercebido ou sem ser identificado no âmbito público.
Quando algo é privado para uma pessoa, isso geralmente significa que há algo dentro delas considerado especial por natureza, ou sensível do ponto de vista pessoal… A privacidade pode ser vista como um aspecto da segurança, em que a interação entre os interesses de um grupo e de outro se tornam especialmente claros.
E o que é, por outro lado, a “arena pública”? Um espaço com acesso livre para qualquer um que nele deseje ingressar.
Tudo o que pode ser ouvido ou visto em uma “arena pública” pode, por princípio, ser ouvido ou visto por qualquer pessoa. Levando em conta que (para citarmos novamente a Wikipedia) “o grau em que se expõem informações privadas depende de como o público receberá essa informação, algo que varia conforme o local e ao longo do tempo”, manter um pensamento, um evento ou um ato privado ou torná-los público são, por óbvio, ações tão contraditórias quanto – em razão do limite móvel que os separa e conecta – interdependentes.
Os âmbitos do “público” e do “privado” tendem a estar sempre em pé de guerra, assim como as leis e normas de decência que se vinculam dentro desses âmbitos. Para cada um desses dois âmbitos, o ato de se autodefinir e autoafirmar é executado em oposição ao outro âmbito.
De regra, os campos semânticos dessas duas noções não estão separados por limites que permitam ou incentivem o tráfego de duas mãos, e sim por linhas de frente – de preferência, intransponíveis e fortificadas de ambos os lados da fronteira, a fim de deter os invasores e vira-casacas que costumam se instalar junto às barricadas, mas, sobretudo, os desertores que tentam fugir do seu próprio lado.
Mas, de regra, mesmo antes que seja declarada uma guerra e que ações belicosas tenham lugar (ou no caos em que há uma trégua), essas fronteiras toleram apenas um tráfego seletivo, pois o tráfego livre desafiaria a própria noção de linha divisória, assim tornada redundante.
O controle e o direito a decidir quem ou o que tem permissão para ultrapassar essa linha e de quem ou o que está destinado a ficar apenas de um lado, assim como o direito de decidir que itens de informação têm a prerrogativa de permanecerem privados e quais são autorizados, induzidos ou obrigados a se tornarem públicos é, de regra, alvo de disputa ferrenha.
Durante a maior parte da era moderna, temia-se e esperava-se que o ataque à atual fronteira entre público e privado e, ainda mais importante, a revogação unívoca e a mudança arbitrária das regras existentes para o trânsito na fronteira viessem exclusivamente do lado “público”.
Havia uma forte desconfiança de que as instituições públicas pretendiam invadir e conquistar a esfera do privado e subjugá-la, assim reduzindo severamente o âmbito do livre-arbítrio individual ou de grupo, privando indivíduos ou grupos humanos de abrigo e, por consequência, da segurança pessoal ou grupal.
Os demônios mais sinistros e atormentadores que assombraram a “modernidade sólida” foram retratados por George Orwell de forma sucinta, mas ainda assim vívida, através de sua imagem recorrente da bota que pisoteia um rosto humano.
De forma algo inconsistente, mas não infundada, suspeitava-se que as instituições públicas tinham propósitos insidiosos, ou que malignamente erguiam barricadas para impedir que muitas preocupações privadas tivessem acesso à ágora ou a outros locais de livre circulação de informações – locais onde era possível negociar a transplantação de problemas particulares ao nível das questões públicas.
Por óbvio, o histórico igualmente abominável de duas variações do totalitarismo típicas do século XX, semelhantes em sua ganância e crueldade (que, como se quisessem somar ao desespero a falta de perspectivas, pareciam ter exaurido entre elas todo o espectro das escolhas imagináveis.
Enquanto uma dessas variantes reivindicava o legado do Iluminismo e de seu projeto moderno, a outra vituperava esse ato fundacional da modernidade como um triste equívoco, ou mesmo um crime, rejeitando o projeto moderno por considerá-lo uma receita para o desastre), conferiram veracidade a essas suspeitas, e também uma justificativa para a ansiedade que delas emanava.
A esperança de satisfazer as demandas de autoafirmação individual e construção comunitária e, ao mesmo tempo, desarticular o conflito entre a autonomia e o pertencimento foi investida em tempos recentes nas tecnologias de ponta conhecidas por facilitarem de forma espantosa o contato e a comunicação entre humanos.
Por outro lado, a frustração da esperança investida nesse processo vem ganhando força e se difundindo.
Para terem uma chance de sequer serem notadas, as mensagens eletrônicas tendem a ser abreviadas e simplificadas de modo a entregar todo o seu conteúdo antes que a atenção seja interrompida e se desloque para outro lugar – necessidade que as torna completamente inadequadas para a transmissão de ideias profundas, que exigem reflexão e contemplação para que sejam absorvidas.
A tendência de abreviar e simplificar mensagens, de torná-las cada vez mais superficiais e, assim, ainda mais favoráveis à deriva, marcou desde o início a breve mas tempestuosa história da Rede Mundial de Computadores.
Partimos de cartas elaboradas e atenciosas para os e-mails, e deles às ainda mais abreviadas e simplificadas mensagens de celular, até enfim chegarmos aos “tweets” que não admitem mais que 140 caracteres [1].
Se aplicarmos o princípio darwinista de “sobrevivência do mais apto” ao mundo eletrônico, a informação com maior chance de capturar a atenção humana seria aquela mais breve, mais superficial e menos carregada de sentidos: frases ao invés de argumentos elaborados, palavras avulsas ao invés de frases, fragmentos de gravações sonoras ao invés de palavras.
O preço que todos pagamos por termos mais informação “disponível” é o encolhimento do significado de seu conteúdo; o preço de sua pronta-entrega é a redução radical de sua significância.
A outra ambivalência endêmica à nova tecnologia da informação, intimamente interligada à anterior, é a imensa facilidade de se construir comunidades, que vem em conjunto com a facilidade igualmente imensa de desmantelá-las.
Usuários do Facebook se gabam de estabelecerem quinhentas “novas amizades” em um dia – mais do que consegui ao longo de uma vida de oitenta e cinco anos. Mas isso não revela que, quando falamos de “amigos”, temos em mente tipos bem diferentes de relação?
Diferentemente da formação para o qual o termo “comunidade” (ou, se assim quisermos, qualquer outro conceito que se refira ao lado público da existência humana, a “totalidade” das associações humanas) foi originalmente cunhado, as “comunidades” da Internet não são pensadas para durar, e muito menos para se equipararem à sua duração no tempo.
É fácil se juntar a elas, mas também é fácil deixá-las ou abandoná-las no exato instante em que a atenção, as simpatias e antipatias e os humores e modismos se bandearem para outro lado, ou no momento em que o tédio gerado por “mais do mesmo, sempre o mesmo” vier à tona e fizer com que o estado atual das coisas pareça monótono e pouco apetitoso, como cedo ou tarde há de acontecer sempre em uma vida e em um mundo bombardeados o tempo todo por ofertas novas (e cada vez mais tentadoras e sedutoras).
As comunidades da Internet (recentemente denominadas de forma mais precisa como “redes de contato”) são construídas e dissolvidas, ampliadas ou reduzidas pelas ações múltiplas oriundas de decisões/impulsos individuais de “se conectar” e “se desconectar”.
Elas são, portanto, eminentemente intercambiáveis, frágeis e irremediavelmente meióticas. É por esse exato motivo que muitas pessoas criadas no cenário líquido-moderno atual comemoram sua chegada e preferem-nas às comunidades “à moda antiga”, lembradas por monitorarem a conduta diária de seus membros e mantê-los em rédeas curtas, combatendo qualquer sinal de deslealdade ou até mesmo contravenções ínfimas, e fazendo com que mudar de ideia ou deixar essa comunidade tivesse um custo exorbitante ou fosse mesmo impossível.
É justamente seu estado perpétuo de transitoriedade, sua assumida natureza temporária, porque sempre provisória, sua não exigência de qualquer compromisso de longo prazo (e muito menos de caráter incondicional) ou de lealdade única e disciplina rígida que as tornam tão atraentes para muitas pessoas.
Em resumo: podemos deduzir que, para fazer da liberdade individual algo genuíno, devemos fortalecer – e não enfraquecer – os laços de solidariedade inter-humana.
O comprometimento de longo prazo gerado por uma solidariedade sólida pode ser visto como uma espécie de bênção, mas o mesmo vale para a ausência de comprometimento que torna a solidariedade desinibida e pouco confiável.
A privacidade e o público coexistem em uma relação repleta de som e fúria.
Ainda assim, se os dois não estiverem presentes, a proximidade humana se torna tão inconcebível quanto a água sem a presença simultânea do hidrogênio e do oxigênio.
Cada um desses parceiros precisa do outro para atingir sua inteireza; nesse tipo de coexistência, os atritos de uma guerra seria o suicídio de ambos.
Hoje, como no passado e no futuro, o autocuidado e o cuidado pelo outro apontam para a mesma direção e recomendam a mesma estratégia e a mesma filosofia de vida. Por isso, é improvável que a busca por uma trégua – ou o som e a fúria – chegue ao fim.
[1] Hoje, diferentemente do que ocorria à época em que este artigo foi escrito, a rede social Twitter permite até 280 caracteres por mensagem. (N.T.)