Privatização não é solução para governos ruins, diz pesquisador

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Autor do recém-lançado ‘A Privatização Certa’ elenca vantagens e desvantagens, acertos e erros de venda de estatais

SÃO PAULO Ao contrário do que muita gente costuma pensar, as privatizações não são uma solução para governos ruins, afirma Sérgio Lazzarini.

Folha de São Paulo, 19/08/2023

“Se você tem um Estado corrupto e ineficiente, quando ele privatizar, vai ter corrupção na privatização, vai ter um processo não transparente, a modelagem vai ser malfeita. Não resolve”, diz ele.

Autor do recém-lançado “A Privatização Certa”, Lazzarini pesquisou teoria e prática sobre o assunto e percebeu que o debate no Brasil é contaminado por visões dogmáticas e ideológicas dos dois lados da discussão.
Em seu livro, o quadro pintado é cheio de nuances, com vantagens e desvantagens, acertos e erros, mas um denominador comum: para a privatização funcionar, é preciso haver um bom governo.

“É até engraçado, porque um livro sobre privatização fala que, nesse debate, o mais importante é um governo competente”, afirma à Folha.

Seu livro apresenta um cenário matizado a respeito de privatizações e estatais. Por que o debate público costuma ser reduzido a uma oposição simplista entre as duas posições?

Acaba tendo muita ideologia. Pessoas com uma ideologia mais libertária partem da ideia de que todo governo é ruim, então não tem muita conversa. E quem parte de uma ideia mais na linha de ativismo estatal vai na outra direção: diz que tem que preservar estatais sem nenhum questionamento; qualquer proposta de reformar estatais é carimbada como neoliberal –e fim da conversa.

O sr. afirma no livro que a pergunta certa não é se privatizar é melhor do que manter a gestão pública, mas sim quando e em que condições fazer isso. Qual é a resposta?

É até engraçado, porque um livro sobre privatização fala que, nesse debate, o mais importante é um governo competente… (risos) Mas a resposta é essa: precisa ter um governo competente.

Se pegarmos a educação, por exemplo, vai ter gente defendendo que seja tudo privatizado, que seja dado voucher para os alunos; e vai ter gente falando em aumentar o salário dos professores, enfatizar a rede pública. Só que nenhum dos dois lados considera os custos e benefícios de cada opção, nem os problemas e nem mesmo as evidências empíricas.

Então o caminho é mesmo ter um bom governo, que vai analisar a situação, vai se perguntar qual é o problema que se quer resolver, vai olhar as evidências empíricas.

E se o governo não for competente?

A má notícia é que, se o governo for ruim, privatizar ou manter a presença do Estado… As duas opções são péssimas com governo ruim. A saída é desenvolver as competências governamentais ao longo do tempo. A notícia boa é que não precisa mudar o país inteiro para isso acontecer. Podemos ter unidades governamentais muito boas em determinadas localidades.

Nos últimos anos, houve no Brasil um discurso muito comum de que a privatização é a solução para um Estado inchado, corrupto e ineficiente. Essa ideia está correta?

Se você tem um Estado corrupto e ineficiente, quando ele privatizar, vai ter corrupção na privatização, vai ter um processo não transparente, a modelagem vai ser malfeita. Não resolve. Se o governo não está fazendo um serviço bom, não é só privatizar. Se tem estatal que não está operando bem, podemos tentar fazer ela melhorar, e aí podemos comparar as alternativas.

Agora, vendo o grau de interferência nas estatais, muitas vezes eu fico deprimido com essa linha. Mas a gente tem evidências de que é possível reformar, obter avanços.

Que reformas ou leis o Brasil já aprovou que são importantes no sentido de tornar o governo mais competente e quais ainda precisam ser feitas?

Tivemos avanços institucionais interessantes, e alguns deles o pessoal está tentando destruir. A própria Lei das Estatais. Apesar de não prever privatização, ela traz melhora de governança das estatais. E, muito paradoxalmente, à medida que a estatal melhora, ela começa a fazer um contrato privado aqui e ali, sai de determinadas áreas, focaliza.

Do lado negativo, até tivemos uma lei das agências reguladoras aprovada recentemente, mas ainda estamos esperando que elas sejam reforçadas. O governo atual não dá sinais [de que vai fazer isso], porque, de novo, ideologia: as agências são vistas como instrumento neoliberal.

E não são. Na verdade, as agências reguladoras são instrumentos de governo. Elas precisam ser fortes para monitorar a qualidade de serviço.

Tem também a reforma do Estado de forma mais ampla. Muita gente coloca na linha de permitir demissão de servidores, enxugar a máquina. Eu gosto de colocar mais na linha de cobrar resultados. Está previsto que a permanência de um funcionário público é condicionada à avaliação de desempenho. Só que não regulamentamos isso.

E acho que podemos pensar num instrumento legal para a criação de unidades públicas capazes. Na linha das agências reguladoras, mas para estimular a criação de parcerias público-privadas, ou de colaboração dentro do Estado. A gente tem evidência empírica de que essas unidades ajudam na modelagem dos projetos.

É possível fazer uma comparação direta entre empresas privadas e estatais?

Isso é superdifícil. É um erro crasso, por exemplo, ver que as estatais estão perdendo dinheiro e as privadas estão ganhando dinheiro e concluir que as privadas são melhores. É um erro crasso porque elas podem ter objetivos distintos e atender públicos distintos. Dá para tentar comparar, mas precisa tomar muito cuidado.

O Brasil vive há décadas um pêndulo entre governos pró-privatização e pró-estatais. Esse vaivém atrapalha políticas de médio e longo prazo?

Acho que, para o país, é complicado. A população sofre com essas mudanças. Vem um governo atrás do outro e nenhum deixa o aprendizado fluir. Quando a gente está aprendendo alguma coisa, vem o novo governo e diz: “Não gosto porque não gosto”. E acaba.

A solução mais adequada seria ir testando. Vai ter muita heterogeneidade mesmo. Um setor tem lá uma estatal funcionando relativamente bem –vamos em frente com ela. Outro setor está muito mal e não se consegue reformar a estatal –vamos tentar uns contratos de concessão. E em outro setor podemos ter uma combinação de tudo acontecendo ao mesmo tempo.

Chamo isso de consenso plural, uma brincadeira com o Consenso de Washington. As pessoas têm que entrar nesse debate sem visões dogmáticas e pensar em resolver o problema.

Entre os modelos híbridos, as parcerias público-privadas [PPPs] e a política de campeões nacionais tiveram e têm bastante destaque no Brasil. Qual é a sua avaliação sobre ambos?

A política de PPPs está tudo bem. Ela teve um arcabouço legal bem desenhado. Inclusive o Fernando Haddad foi um dos idealizadores. Uma coisa que me preocupa, em particular, é como se está medindo o resultado desses contratos. E há inclusive a possibilidade de esses resultados, sendo medidos, modularem ou variarem o pagamento ao ator privado. Então dá para avançar.

Quanto aos campeões nacionais, teoria é que o governo pode dar um impulso em empresa privada para ela melhorar. A gente tem evidência [de que isso funciona]. Mas não o tipo de empresa que a gente apoiou [no Brasil], empresa grande.

Existem evidências mais consistentes sobre apoio para empresas menores, de tecnologia, empreendedoras, ou empresas que estão buscando projetos sociais e ambientais de maior impacto.

Muita gente fala que a Coreia do Sul apoiou empresa grande. Só que as condições lá são muito distintas. Primeiro, já tinha um sistema educacional bem desenvolvido, com muito capital humano presente. E a ação do governo com essas grandes corporações foi muito estrita, com acompanhamento. Se alguma delas não alcançasse determinados resultados, o apoio seria abortado. Isso não acontece no Brasil.

E quanto ao uso de estatais para fazer políticas além do escopo de atuação, como no caso do controle de preços via Petrobrás?

A gente precisa definir qual é o mandato da estatal, qual é o seu objetivo. Lendo a legislação da Petrobras, eu não consigo ver um mandato para controlar o preço da gasolina. Então, se o governo quer fazer isso, precisa mudar o arcabouço legal. Precisa passar pelo Congresso, precisa ter discussão pública.

Eu tenho sugerido, inclusive, que toda estatal precisa ter uma definição muito clara do seu mandato. E isso pode e deve ser feito de maneira muito democrática.

Sérgio G. Lazzarini, 52
Mestre (USP) e doutor (Universidade Washington) em administração, é professor da Ivey Business School, da Western University (Canadá) e pesquisador sênior do Insper. É autor de “A Privatização Certa”.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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