Que soberania? por Oscar Vilhena Vieira

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Assim como a sociedade brasileira e suas instituições têm sabido se defender dos ataques da extrema direita, saberão se proteger agora dos traidores da pátria

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023).

Folha de São Paulo, 26/07/2025

Nos últimos dias, em face das investidas do presidente norte-americano contra o Poder Judiciário brasileiro, muito tem se falado em soberania no Brasil. Mas de que soberania estamos falando?

A soberania nada mais é do que o poder de um povo de determinar o seu próprio destino, de acordo com suas leis e suas instituições.

Mas este não era o seu sentido original. O conceito de soberania foi incorporado à linguagem jurídica e política no final da idade média, para designar a autoridade absoluta e incontrastável da monarquia sobre seus súditos, em um determinado território. No plano internacional, o termo serviu para indicar a independência de um Estado em relação às demais nações.

Ao longo dos séculos, o conceito de soberania foi sendo profundamente reformulado. Rousseau subverteu o conceito ao retirar a soberania das mãos do príncipe e transferi-la aos cidadãos. A ideia de soberania popular, por ele proposta, reivindica que o poder apenas seria legítimo quando representasse uma fiel expressão da vontade popular.

O conceito de soberania sofreria uma reformulação ainda mais radical, com a ascensão dos regimes constitucionais, estruturados a partir de um sistema de separação de poderes e pela garantia dos direitos fundamentais. Neste momento, o conceito de soberania se afastou, por definitivo, da ideia de poder absoluto, passando a designar uma ordem política pautada na constituição e nos direitos fundamentais.

No plano internacional, no entanto, o conceito de soberania só entraria em declínio após a barbárie do nolocausto, do colonialismo e a perspectiva de destruição total decorrente do desfecho da 2° Guerra.

A criação de uma nova ordem internacional baseada na proibição da guerra, no reconhecimento dos direitos humanos, da autodeterminação dos povos, na cooperação e no respeito ao direito internacional domesticaram o conceito de soberania e, mais importante, abriram uma nova perspectiva civilizatória à humanidade.

A Constituição de 1988 incorpora em seus primeiros artigos essa concepção humanista de soberania, ao reconhecer que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes ou diretamente, nos termos da Constituição”; que os Poderes devem ser “independentes e harmônicos”; que a República deve perseguir a “construção de uma sociedade livre, justa e solidária” o “desenvolvimento nacional”, “reduzir as desigualdades” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de discriminação”.

No plano internacional, a República Federativa do Brasil deve reger-se, entre outros, pelos princípios da “independência nacional”, “prevalência dos direitos humanos”, “não intervenção”, “repúdio ao racismo e ao terrorismo” e “solução pacífica dos conflitos”. O mesmo respeito que tem com as demais nações o Brasil exige para si.

Foi em defesa dessa concepção generosa, democrática e inclusiva de soberania, que centenas de organizações e milhares de pessoas, representando muitas outras, se manifestaram nesta última sexta-feira no histórico Largo de São Francisco.

Assim como a sociedade brasileira e suas instituições têm sabido se defender ao longo dos últimos anos dos ataques perpetrados pela extrema direita contra o Estado Democrático de Direito, saberão se proteger agora dos traidores da pátria, assim como daqueles que atentam contra a sua democrática soberania.

 

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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