Quem elogia tortura, admira torturador, não se coloca no lugar do outro, diz Miriam Chnaiderman

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Para psicóloga e psicanalista, está faltando total empatia ao presidente Bolsonaro durante a pandemia de coronavírus.

Claudia Collucci – FSP, 30/03/2020

O isolamento social e toda a angústia gerada pela pandemia do novo coronavírus trazem à tona o melhor e o pior do ser humano. De um lado, muitas pessoas com gestos de empatia e solidariedade, do outro, outras tantas com atos de egoísmo, falta de compaixão.

Para a psicóloga e psicanalista Miriam Chnaiderman, professora do Instituto Sedes Sapientiae, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que tem minimizado a pandemia e defendido isolamento só para idosos e grupos de risco, enquadra-se no segundo grupo.

“Falta total empatia. É uma coisa absolutamente autorreferente. É a não compaixão. Quem elogia a tortura, quem admira torturador, não se coloca no lugar do outro”, afirma ela, também documentarista e doutora em artes pela USP.
Segundo Chnaiderman, esse é o momento em que todos os fantasmas internos se concretizam. “A realidade é de fato ameaçadora, não é mais a tua fantasia, a tua paranoia, é uma ameaça real. É a presença de um inimigo invisível e que mata. Isso é muito desorganizador, é muita angústia.”

Na opinião da psicanalista, as pessoas precisam aceitar a condição de vulnerabilidade e descobrir truques para lidar com essa angústia, caso queiram preservar a saúde mental nesse período tão exigente. 

“Fazer coisas que em geral a gente não tem tempo para fazer, como ler poesia, contos, escutar música, escrever, fazer diários e contar sobre essa experiência. As pessoas têm feito festas online, dançam, inclusive. Podem transar online também. Deve dar um refresco. A saúde mental vem disso, de saber suportar esse momento”, afirma.

Como a empatia pode ajudar a passar pela pandemia do novo coronavírus? Só empatia junto com a solidariedade é capaz de nos mover e nos ajudar a superar todas as restrições que estão sendo impostas. A gente não escolheu isso. As pessoas se sentem violentadas de não terem escolhido não sair de casa. Mas a gente está fazendo isso, acima de tudo, pelo outro.

O filósofo Max Scheller (1874-1928) diz que a empatia é um ato mediante o qual se realizam a percepção e compreensão do estado de alma de um outro. Por essa razão, condiciona todas as formas de compaixão. Para se ter compaixão de alguém, é necessário conhecer antes o sofrimento do outro.

Esse isolamento social então é uma oportunidade para exercer a empatia? Estão acontecendo gestos incríveis, a empatia que move a vizinhança toda se mobilizar para comemorar o aniversário de uma senhorinha lá nos EUA, ou de uma menininha num condomínio aqui de São Paulo. Ou mesmo tudo o que se cria num panelaço ou nos aplausos aos funcionários da saúde. Você precisa se colocar no lugar do outro.

Têm coisas muito bonitas acontecendo, vizinhança se mobilizando, os mais jovens se oferecendo para comprar coisas aos mais velhos.

É muito novo isso no Brasil. A gente está sendo obrigado a acolher aquilo que não acolhe, como a velhice e a doença.

Por outro lado, aparece também o pior do ser humano nesses momentos. Como gente estocando papel higiênico ou álcool em gel… Sim, é uma coisa atroz, total falta de empatia, total egoísmo, vou pensar só em mim, que se arrebente o outro. As pessoas não percebem que se o outro se arrebenta, você se arrebenta junto também.

Essa coisa do papel higiênico, só a psicanálise mesmo para interpretar. É a fantasia de que se você tiver como limpar aquilo que sai do corpo como sujeira, você não vai adoecer. É uma falência das mediações entre os instintos, as pulsões e o mundo simbólico.

Vivemos num país de muita desigualdade social, intolerância e ataques a minorias. Você vê nessa crise alguma chance de as pessoas reverem valores e comportamentos? Não sei. Depois dessas falas do presidente Jair Bolsonaro, soube de bairros onde as pessoas estão fazendo campanha para sair para as ruas, para acabar com o isolamento. É um discurso que exacerba isso tudo.

Têm pessoas mobilizadas para ajudar travestis, moradores de rua. Mas essas pessoas que saíram comprando feito malucas estão pensando nelas e pronto. Toda essa questão aparece na postura do presidente de só pensar nos negócios e não as pessoas.

Falta empatia ao presidente? Falta total. É uma coisa absolutamente autorreferente, que quer o poder a todo custo, que pensa só na reeleição. É o neoliberalismo e o egoísmo que ficam em questão com o que está acontecendo. É uma explosão de uma coisa terrível que já vinha acontecendo e que se concretiza nessa pandemia.

Tem muita gente falando numa ruptura no jeito de governar, de conduzir a vida. Se você não tem o que a gente chama de empatia, se não é tocado por um mundo que não é o seu, é terrível.

É a não compaixão. Quem elogia a tortura, quem admira torturador, não se coloca no lugar do outro. As pessoas morrem de medo de se colocar no lugar do outro porque se sentem frágeis, se sentem podendo elas degringolarem, de ficarem sem nada.

Nessas horas de tanto medo muitos fantasmas saem do armário, certo? É um momento bem delicado porque todos os fantasminhas internos que todos nós temos estão concretizados numa realidade. A realidade é de fato ameaçadora, não é mais a tua fantasia, a tua paranoia, é uma ameaça real.

É a presença de um inimigo invisível e que mata. Isso é muito desorganizador, é muita angústia. As pessoas que eu tenho ouvido não estão conseguindo ler, estar com elas mesmas. Ou grudam na televisão, na internet, ou ficam limpando a casa o dia todo.

Atividades como ouvir música, ver aquele filme que você sempre teve vontade, mas não teve tempo estão sendo difíceis de acontecer. Trabalhar com essa angústia de morte te exaure, te suga. As pessoas não dormem bem.

A história mostra que depois de grandes catástrofes podem surgir coisas boas. Após a peste negra, por exemplo, veio a Renascença. Pode sair coisa boa depois da pandemia de Covid-19? Poder, pode. Mas não sei se há uma mobilização para isso. A gente está vivendo um destroçamento das forças mais libertárias, que buscam um mundo de outro jeito.

Eu vejo como mais possível uma comoção social, as pessoas vão ficar sem dinheiro, não vão ter o que comer, vão ter mudar seus hábitos.
Estamos num momento muito amargo do mundo, de falta de lideranças, de falta de mobilização. É meio imprevisível. Só quem trabalha o sofrimento internamente, pode se identificar com quem sofre.

A gente está num mundo consumista do prazer imediato, onde ter a capacidade de se identificar com a dor do outro e poder acolher a dor em você é considerado fragilidade, você é um nada. Porque o objetivo é o ganho imediato, o prazer imediato.

De qualquer forma, é um abalo. A gente vai sair dessa com um ônus terrível. Alguma coisa vai ter que mudar. Tomara que essa solidariedade, essa empatia que temos visto se introduza de fato na sociedade, que seja algo mais duradouro.

A verdade é que todos nós estamos nos sentindo vulneráveis… Sim, até porque a vulnerabilidade é uma realidade do ser humano. Todo mundo nega. Quando o presidente chega e fala: ‘vai ser uma gripezinha porque eu tenho uma história de atleta’, ele se coloca como um ser não vulnerável, é um deus.

Está todo mundo tendo que trabalhar isso em si, algo foi profundamente abalado nessa história toda. Antes, muitas pessoas pensavam: ‘Ah! eu vou para Europa, vou para Nova York. Ou vou aproveitar que aqui está essa coisa, e vou para a praia’.

Agora não tem mais para onde ir. Todos estamos vivendo essa vulnerabilidade, essa ameaça de morte. É um marco na história da humanidade.

Como cuidar da saúde mental nesse momento? As pessoas estão sofrendo muito com o isolamento, se sentindo muito solitárias. Um caminho seria fazer coisas que em geral a gente não tem tempo para fazer, como ler poesia, contos, escutar música, escrever, fazer diários, contar sobre essa experiência. Isso ajudaria.

Inventar jeitos. As pessoas têm feito festas online, dançam, inclusive. Podem transar online também. Deve dar um refresco. Para outros, essa vida online pode ser muito frustrante. As pessoas precisam descobrir truques para lidar com a angústia.

Mas é um momento e vai passar. As pessoas não suportam quebrar com que vinham fazendo, com o jeito de atuar. Aproveita e se repensa. A saúde mental vem disso, de saber suportar esse momento.

É chato. Eu mesmo estou com essa questão. Tenho mais de 60 anos, fico louca para ir ao supermercado e está sendo superdifícil não ir. Uma das coisas para manter a saúde mental é a manter a casa funcionando, aprender a cozinhar, aprender a passar. Isso porque estou imaginando que a essa altura todos já tenham liberado a empregada.

A gente não teve escolha sobre essa pandemia, mas têm coisas que a gente tem escolha. Como deixar a casa bonita, levantar e se arrumar, passar batom.
As pessoas precisam inventar jeitos de se sentirem donas da própria vida nesse momento em que a gente não escolheu o que está acontecendo.

E como lidar com as crianças nesse contexto todo? Existem pais enlouquecendo no home office com as crianças trancadas em casa… Eu acho que as crianças têm mais recursos que a gente para lidar com esse momento. Elas têm o mundo da fantasia, fica mais solto, né? Elas têm o lúdico, se abrem mais para o brincar.

O problema são as mães, os pais aguentarem as 24 horas de convivência.
Mas talvez as crianças têm bastante para ensinar pra gente neste momento. Te arranca da angústia na marra. Porque querem jogar, querem brincar, querem ver filminho.

A questão é você ter que suportar essa demanda ou poder transformá-la em algo lúdico para você também.

O caminho é se apropriar da situação, pensando em como tornar isso um aprendizado do contato com os recursos que cada um tem com o isolamento, com a ruptura de hábitos muito arraigados.

Eu acho que cada um vai sair transformado disso. Uma experiência dessa vai te levar a romper com hábitos. É muito duro isso, mas quando você rompe, você se abre também. Eu espero (risos).

Miriam Chnaiderman
Formada em psicologia pela USP, mestre em comunicação e semiótica pela PUC-SP, doutora em artes pela USP. É psicanalista e professora do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo. Também autora dos livros “O hiato convexo: literatura e psicanálise” (Brasiliense) e “Ensaios de Psicanálise e Semiótica” (Escuta) e diretora de vários documentários e do longa-metragem “De gravata e unha vermelha” (2014)

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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