Religiões Líquidas na sociedade contemporânea

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A sociedade contemporânea vive um momento de grandes transformações em suas estruturas, as bases que estruturavam o mundo estão em crise, exigindo dos indivíduos grandes alterações em suas formas de vida, seus comportamentos e em suas atitudes cotidianas, o incremento tecnológico, o aumento da concorrência e o crescimento constante do poder do dinheiro, estão gerando hábitos, necessidades e costumes novos, levando os indivíduos e a coletividade a um ambiente de incertezas crescentes, medos e inseguranças.

Todas as bases desta sociedade estão ruindo de forma acelerada, as famílias entraram em crise, os governos perderam força e estão endividados, os indivíduos amedrontados e ansiosos, os relacionamentos perderam força, os sentimentos estão assustados, o trabalho em constante transformação, os mercados alucinados e  marcados por uma instabilidade crescente, a educação se sente incapaz de dar respostas mais sólidas e a democracia se encontra envergonhada, estamos numa sociedade marcada por muitos medos e preocupações, onde as respostas e os paradigmas antigos não conseguem mais responder efetivamente aos anseios e as inseguranças dos cidadãos, nesta situação, até mesmo a religião, que sempre trouxe mensagens de otimismo e perseverança, se encontram em fases de inseguranças e alterações estruturais.

Quando olhamos para as questões religiosas, inúmeras indagações nos vem a mente, passamos de religiões detentoras de toda razão, marcadas pelo conhecimento e pela explicação de tudo o que acontecia na sociedade, para um mundo onde as religiões apresentam graves conflitos internos, marcados pela desagregação, pelo medo e pelo desequilíbrio, onde os religiosos brigam e se expõem em público, deixando a mostra uma religião apodrecida e dilacerada pelas divisões internas e pela busca constante de poder material e dinheiro.

Neste ambiente de dissensões e crises constantes, percebemos novas demandas sociais, com isso, as religiões precisam passar por alterações estruturais, nesta sociedade em transformação, as pessoas exigem mais respostas de suas religiões, as crenças antigas e os medos construídos não mais conseguem “prender” os fiéis, que passam a ler, estudar e a ter acesso a informações, neste ambiente estamos visualizando as grandes transformações das religiões, sendo obrigadas a descer de seu pedestal e falar diretamente com seus fiéis, sob pena de perder um grande contingente de apoiadores, seguidores e financiadores.

Ao analisarmos a tradicional Igreja Católica, uma instituição milenar marcada por grandes serviços prestados à sociedade, pois somos uma nação marcada pela colonização portuguesa, um povo fortemente marcado pelo catolicismo, pelas tradições deste grupo detentor de forte influência na Europa e, principalmente, na Península Ibérica, sendo uma das regiões onde o catolicismo perdurou durante muitos anos e séculos, dificultando a ascensão de outros grupos religiosos.

Portugal foi um dos países em que a Igreja Católica apresentava uma estrutura de poder mais consistente, suas tradições dominaram e influenciaram a população portuguesa durante muitos anos e o brasileiro recebeu estas crenças de seu colonizador e a manteve internamente hegemônica durante muitos séculos, sendo contestados neste momento por outro grupo religioso que cresce, ganha poder dentro da sociedade e apresenta claros interesses de hegemonia, de dominação e de poder, gerando preocupações em outros grupos religiosos.

Com uma estrutura milenar, marcada por uma capilaridade nas várias regiões do globo, a Igreja Católica se encontra em momentos de meditação e reestruturação, depois de escândalos recentes que abalaram as estruturas da Igreja, percebemos movimentos intensos e lutas fratricidas por espaços de poder e de dominação, todos agravados pelas transformações e pelas novas demandas da coletividade, impulsionando mudanças, discussões, discórdias e conflitos, muitos deles acumulados a muitos séculos e que estão sendo colocados abertamente.

Nesta estrutura em transformação, encontramos grandes resistências as ideias e as políticas implementada pelo Papa Francisco, de origem Argentina e fortemente atrelado aos grupos mais a esquerda da Igreja, o Papa representa para uns a certeza de que temas mais ligados aos direitos humanos e a justiça social serão encampados pela mundo católico e, de outro, os grupos mais conservadores que se dizem ameaçados pelas mudanças que estão vindo a tona pelo Papa Francisco, visto por muitos como um agente do comunismo.

Nesta luta por poder dentro desta estrutura, percebemos grandes avanços na Igreja desde o início do século XX, a pouco mais de 100 anos as missas eram rezadas em latim e os padres se colocavam de costa para os fiéis, numa demonstração de distanciamento e arrogância, criando uma relação marcada pela frieza, gerando uma distância entre o representante de Deus e a população em geral. Neste momento percebemos a Igreja Católica fazendo gestos para uma outra direção, depois de anos de afastamento, na atualidade percebemos uma busca cada vez maior por aproximação, uma obsessão por estar próximo, pois o distanciamento leva a uma redução dos fiéis e a um enfraquecimento de seu poder dentro da sociedade, desta forma podemos compreender a estratégia adotada pelo papa atual, com visitas a outras denominações religiosas, desde os ortodoxos russos aos grupos muçulmanos, locais visitados recentemente, construindo pontes entre as religiões e dissipando mágoas e conflitos anteriores.

A eleição de Mário Jorge Bergóglio, o Papa Francisco, para suceder o alemão Joseph Ratzinger, que renunciou ao cargo alegando problemas de saúde e idade avançada, nos parece uma demonstração clara de que os cardeais apostavam no carisma do argentino para reduzir as dissensões na Igreja e prepará-la para novas bases da competição religiosa do século XXI, dando novo gás para uma organização milenar, altamente conservadora, que precisa se modernizar, mas apresenta grandes dificuldades de abrir mão de uma estrutura de poder marcada pelo luxo, pela ostentação e pelos rituais, muitos deles vistos como desnecessários e superados.

Nos anos recentes, percebemos a Igreja se deparando com seus fantasmas mais íntimos, os casos de pedofilia e abusos contra crianças e jovens deixaram marcas muito negativas nesta estrutura religiosa, comprometendo muitas de suas ideias e levando a sociedade a exigir punições exemplares de membros de toda a hierarquia da Igreja, desde os menores na pirâmide hierárquica até os mais elevados, como bispos e cardeais.

As religiões precisam dialogar com a sociedade, mostrar claramente as razões de suas desditas, levar aos indivíduos instrumentos de libertação das dores e dos desequilíbrios da realidade, levá-los a compreender que as crises que os envolvem são crises generalizadas e acontecem todos os dias e tendem a acontecer por muitos e muitos anos se as pessoas não buscarem Deus como instrumento de conscientização, se o indivíduo não se voltar para os ensinos superiores, dificilmente vão sobreviver a este turbilhão de desequilíbrios e desajustes generalizados.

De outro lado encontramos o crescimento dos grupos evangélicos, que passam a garimpar fiéis em todas as estruturas da sociedade, desde escolas, passando por presídios e universidades, com uma estratégia de marketing bastante sólida, consistente e eficiente. Este grupo faz um trabalho social bastante interessante e exitoso, com um crescimento acelerado nos últimos anos, com isso, os evangélicos estão mudando o perfil religioso do brasileiro e trazendo novas demandas para os grupos religiosos.

Muitos destes grupos pregam o fortalecimento de ideias e de políticas empreendedoras, reduzindo com isso, as dependências do Estado e a busca por novos projetos e posicionamentos, buscando empreender novos projetos, acreditando na vinculação religiosa e na força da oração e do pensamento positivo como força inspiradora.

Estes movimentos estão crescendo de forma acelerada na sociedade, ganhando espaço na televisão e em todas as mídias modernas e digitais, com esta exposição passam a angariar mandatos eletivos e a contribuir diretamente nas discussões políticas e eleitorais, intensificando uma agenda conservadora nos costumes, liberal na economia e fortemente centrada na família.

Os grupos evangélicos crescem de forma acelerada nesta sociedade, seus encontros e musicais atraem uma ampla quantidade de pessoas, seus cultos vibrantes atraem energias positivas, suas orações sinceras nos levam a emoção e sua atuação social auxilia na melhoria das necessidades individuais, minorando os desajustes e os desequilíbrios e abrindo oportunidades crescentes para muitos que perderam as esperanças e as expectativas de uma vida melhor e até mesmo na existência de um Deus todo poderoso.

Os grupos evangélicos são muito criticados pela doutrinação rigorosa, muitos apresentam pouco capacidade reflexiva e vivem repetindo falas e doutrinas sem conhecer as bases filosóficas de sua vertente religiosa, com isso, muitas vezes servem como uma grande massa de manobra para interesses escusos e inescrupulosos, a reflexão mais crítica deve ser estimulada e os debates mais consistentes devem se tornar frequentes e continuados, melhorando o perfil dos fiéis e dando-lhes um cabedal maior de conhecimento sociocultural.

As novas religiões estão abarcando novas estruturas, os velhos modelos perderam força e clamam por ser substituídos, exigindo das religiões novas formas de atração dos fiéis, vendo-os muitas vezes como clientes, como consumidores de seus produtos imateriais, neste ponto se mostram muito antenados com as novas estratégias dos mercados, mas abrem espaço para críticas ou reflexões sobre um modelo muito centrado nos interesses econômicos e monetários, sendo vistas como uma religião de bases materialistas e alimentadas pelos recursos monetários e financeiros.

Os espíritas precisam sair de seus casulos e se apresentarem mais na sociedade, segundo o IBGE, o movimento Espírita abarca mais de 3,8 milhões de brasileiros, sendo que muitos outros podem ser descritos como simpatizantes desta religião, uma religião bastante reflexiva e marcada pela leitura e pelo conhecimento, onde muitos a confundem com um movimento elitista e arrogante.

Nesta pesquisa realizada em 2010, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), descobriu-se que o espiritismo é o secto com maior índice de pessoas com ensino superior (31,5%) e a maior taxa de alfabetização (98,6%), descobriu se ainda, que existem no Brasil mais de 15 mil centros, estando fortemente consolidado nas regiões do país, abrindo espaço para que o movimento divulgue a frase cunhada como a essência do Espiritismo: “Fora da caridade não há salvação”.

Depois da morte de seu líder maior, Francisco Cândido Xavier, ocorrida em 2002, o movimento perdeu força e se viu dominado por grupos que pouco conversam entre si, buscando poder e visibilidade, são forças consistentes e consolidadas, mas se deixam dominar pela vaidade, querem falar sobre tudo, opinar sobre os mais variados temas e brigam constantemente pelo controle do movimento, mesmo sabendo que este poder é transitório e que, muitas vezes, nos leva a quedas violentas e desnecessárias, que nos condenam a anos de experiências trágicas em regiões abissais, marcadas por dores e desesperança.

Outro ponto central na doutrina dos espíritos, encontramos nestas fileiras pessoas que estudam e discutem suas ideias e pensamentos, muitas destas pessoas se deixam levar por um melindre exagerado, deixando suas fileiras e confundindo as pessoas que professam esta vertente religiosa e a Doutrina, nestas situações muitos se afastam e buscar outras composições religiosas.

A sociedade está mudando rapidamente e exigindo mudanças nas crenças e nos valores religiosos, todas as religiões que insistirem em permanecer como eram anteriormente verão uma grande debandada de fiéis, verão muitos deles buscando novas crenças, ainda mais numa sociedade globalizada e altamente competitiva, marcada pelo crescimento acelerado da informação e do conhecimento, onde as pessoas passam a acessar o funcionamento e as explicações de cada religião sobre as indagações e as dúvidas de cada indivíduo, a competição está levando a religião a mudanças, mas faz-se fundamental que entendamos estas transformações, evitando que caiam no canto da sereia do poder econômico e financeiro.

O momento atual á bastante propício para o crescimento das religiões, em momentos turbulentos, como os que vivemos, as religiões precisam construir um discurso sólido, coeso e centrado em interesses imateriais, com isso, todos aqueles indivíduos que anteriormente mergulharam no discurso científico e tecnológico, vendo neste as explicações para todas as dúvidas e dificuldades dos seres humanos, passam a exigir novas respostas a suas indagações e preocupações cotidianas.

Outro ponto central, neste ambiente de competição, as doutrinas religiosas precisam unificar as demandas materiais com as de cunho imaterial, discurso centrado apenas nos ganhos materiais terão dificuldades para esclarecer as dúvidas dos indivíduos, ainda mais nesta sociedade que disponibiliza uma grande quantidade de informações e de conhecimentos.

O tema religião é sempre visto com muitas reticências, falar sobre religião leva muitas pessoas a conflitos que evoluem para confrontos e violência, nesta sociedade faz-se importante conversar e debater sobre as visões diferentes e temas variados, sempre com respeito e tolerância, onde as pessoas não queiram impor suas visões e respeitem o pensamento e os sentimentos alheios, afinal, todos temos direito de pensar da forma como quisermos, todos temos um grau de evolução e todos somos seres em constante crescimento.

Como vimos, todas as religiões apresentam os seus desafios, mas acredito que o maior destes desafios seja o de manter a chama de Deus e seus valores eternos e imutáveis, nos corações dos indivíduos e capacitá-los para compreender, que religião nenhuma salva ninguém, todas apresentam vantagens e desvantagens, mas a única salvação está na melhoria constante que empreendemos intimamente, eliminando o homem velho e cultivando o verdadeiro homem novo.

O mundo contemporâneo fez com que o homem concedesse grande poder ao dinheiro que, para muitos, se transformou no grande deus da sociedade, libertando mentes e corações e prometendo conquistas sem esforços continuados, o poder deste dinheiro cresce aceleradamente e passa a conquistar mentes e corações, gerando uma grande massa de desequilibrados, desajustados e depressivos, onde as dores da alma estão cada vez mais presente no corpo físico de cada indivíduo, criando dores severas, dolorosas e intermináveis.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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