Rio está tomando o mesmo caminho de São Paulo’, avalia Bruno Paes Manso, autor de livro sobre milícias

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Jornalista e pesquisador da USP escreveu ‘República das milícias: dos esquadrões da morte à Era Bolsonaro’ a partir de estudo sobre os grupos paramilitares do Rio

Gabriela Goulart – O Globo – 17/10/2020

Jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, o paulista Bruno Paes Manso viajou várias vezes ao Rio ao longo de um ano em busca de informações para o livro “República das milícias: dos esquadrões da morte à Era Bolsonaro’’ (Editora Todavia), lançado no último dia 7. Até o início da pandemia da Covid-19, ouviu milicianos, policiais, promotores, moradores de comunidades. Como ele diz, queria fazer “um resgate histórico para entender o presente”.

No panorama montado por Manso, o cenário atual é o de um estado dividido em territórios, que exercem sua tirania local e brigam entre si, como na série “Game of Thrones’’. Nesse roteiro da vida real, grupos paramilitares usam o terror para exercer sua autoridade, se associam ao tráfico de drogas para lucrar mais e replicar seus modelos de negócios e fazem alianças políticas para expandir seus domínios. “Como aconteceu com o PCC em São Paulo, o que se vê no Rio é a busca pela hegemonia da governança criminal”, diz o pesquisador, que, junto com Camila Nunes Dias, é autor de “A guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil”.

Você acha que a milícia se tornou uma questão endêmica no Rio?

A milícia é o principal problema por sua capacidade de se infiltrar nas instituições, em todas as esferas. O tráfico nunca conseguiu ter isso. Sempre foi associado ao medo das drogas, à guerra permanente, à desordem da violência imprevisível. O político que surge defendendo o traficante é visto como traidor. A milícia se fortalece contrapondo isso, com o marketing de defensora da ordem. Com isso, tem a tolerância de vários grupos em um estado traumatizado pela violência.

Mesmo “rivais”, o tráfico e a milícia se uniram em vários territórios da cidade, sob a égide de narcomilícia. Como você observa essa associação?

É um desdobramento natural do modelo do negócio: extrair o máximo de receita possível. Venda de drogas sempre foi uma atividade muito rentável. Dentro de uma visão pragmática e empresarial, a milícia ia cobrar comissão a partir disso.

Nesta semana, houve uma grande operação para minar o braço financeiro do Comando Vermelho, maior facção do Rio, e outra contra a milícia, com a morte de 12 integrantes. O que esse cenário indica?

Tudo indica que o Rio está tomando o mesmo caminho de São Paulo, onde há apenas o PCC. Seria a busca de uma hegemonia de governança criminal por um grupo da milícia. Uma espécie de paz de cemitério.

Nos últimos anos, números mostram que a milícia mata mais que o tráfico. Você acha que milícia e tráfico também replicam modelos em sua cadeia de violência?

No começo dos anos 2000, casos assustadores de mortes já faziam parte do vocabulário das milícias, com cabeças cortadas e centenas de tiros disparados em uma única vítima. Tanto quanto no tráfico, o terror é usado por esses grupos paramilitares para manter a autoridade nos seus territórios.

Como você enxerga essa divisão de territórios?

No Rio, o papel dos territórios para o negócio do crime, seja ele milícia ou tráfico, é único. Durante a pesquisa e as entrevistas para o livro, a imagem que me passaram é de “Game of Thrones”. São 700 comunidades tiranizadas por “governos” locais autônomos brigando entre si. Isso leva ao grande volume de armamento, que é usado para defender cada território. O que me chamou muito a atenção é a questão: “você prefere tráfico ou milícia?’’ Como se não existisse uma terceira opção, que é a liberdade, a garantia da lei e da cidadania.

O miliciano Ecko é apontado hoje como o cabeça dessa expansão para novos territórios.

Sou cético com o que a polícia vende sobre a cena do Rio. Acho que ele tem um papel relevante, principalmente em Campo Grande e Santa Cruz. Mas ao mesmo tempo que ele é o “Big Boss” da milícia, ele não é pego nunca. Ele está amparado por quem? Essa é a pergunta que tem que ser feita. Se não houvesse conivência e alianças políticas ele teria tanto poder e se manteria tanto tempo impune?

A relação entre milícia e política é indissociável?

É impossível um domínio como o que existe sem conivência dos batalhões, delegacias, integrantes da cúpula, políticos. O presidente Jair Bolsonaro era apologista das milícias na carreira parlamentar. Imagina isso no âmbito de um vereador, que busca votos nos territórios? Políticos e milicianos acabam se associando, e isso é aceito.

 

 

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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