Sem ciência não há futuro, por Márcia Castro

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O atual corte de verbas em pesquisa e em educação progressivamente afundará o Brasil na ignorância

Márcia Castro, Professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard

Folha de São Paulo, 25/07/2022

Imagine, por um minuto, sua vida sem os benefícios das descobertas científicas dos últimos dois séculos…

A importância da ciência passa despercebida. Mas não deveria.

A ciência é fundamental para a construção e manutenção de uma sociedade saudável e para o desenvolvimento de uma nação. Hoje desfrutamos de vidas mais longas e melhores do que nossos antepassados. No Brasil, a esperança de vida ao nascer era cerca de 30 anos em 1900 e a cada mil nascidos vivos em 1940, cerca de 200 morriam antes de completar um ano de idade. Avanços na medicina, saúde pública, comunicação, transporte e energia, dentre outros, mudaram esse cenário.

Historicamente, alguns casos ressaltam a importância da ciência na saúde pública.

Primeiro, o desafio da ausência da ciência, exemplificado pela mais letal pandemia da história, a peste bubônica, que se estendeu de 1347 a 1351. Àquela época, não se conhecia a forma de transmissão da doença. A ausência do conhecimento científico deu espaço para crenças de que a doença tinha origens sobrenaturais, que era uma punição divina, uma retribuição por pecados contra Deus, como ganância, blasfêmia, heresia e mundanismo. Cerca de um terço da população da Europa morreu nessa pandemia.

Em contraste, o suporte político e o investimento em pesquisa no Brasil no início do século 20 exemplificam a importância da ciência para o desenvolvimento e para uma sociedade mais justa. Carlos Chagas, por exemplo, foi pioneiro ao propor que a transmissão da malária era domiciliar e o primeiro a usar borrifação intradomiciliar como estratégia de controle vetorial. Hoje, as principais medidas de controle da malária no mundo são fruto dessa descoberta.

O mesmo Carlos Chagas descobriu a doença que carrega seu nome e, até hoje, é o único cientista no mundo que descreveu por completo o ciclo de uma doença infecciosa: o agente causador, o vetor de transmissão, os hospedeiros, as manifestações clínicas e a epidemiologia.

Expedições lideradas por Oswaldo Cruz, Carlos Chagas, Artur Neiva e Belisário Pena mudaram o curso da saúde pública ao expor o abandono do Brasil rural, com péssimas condições sanitárias e carência de assistência governamental.

O contexto rural foi considerado um problema econômico e social, cuja mitigação impulsionou o movimento sanitário e a criação de centros de profilaxia rural e do Departamento Nacional de Saúde Pública. Sem apoio político e investimento em ciência, nada disso teria sido possível.

A pandemia de Covid-19 é um exemplo do custo social de se ignorar a ciência. Ao contrário da pandemia de peste bubônica, o conhecimento foi gerado de forma rápida, mas foi ignorado por muitos governantes. Prevaleceram opiniões, e não a ciência. A pandemia de Covid-19 ocorreu em um cenário político que exemplifica como o desgoverno aniquila o conhecimento e a descoberta científica.

Como disse Hipócrates, considerado o pai da medicina, “Há, de fato, duas coisas: ciência e opinião; a primeira gera conhecimento; a última, ignorância”.

Sem ciência não há futuro. O atual corte de verbas em pesquisa e em educação progressivamente afundará o Brasil na ignorância com um custo social inadmissível. Que em outubro a ciência vença a opinião, e o Brasil escolha o caminho do conhecimento e não da ignorância.

Esta coluna foi escrita para a campanha #ciêncianaseleições, que celebra o Mês da Ciência. Em julho, colunistas refletem sobre o papel da ciência na reconstrução do Brasil.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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