Para especialista, o sistema brasileiro é subfinanciado e investir em saúde pública não tem sido uma prioridade
Entrevista Armínio Fraga
Ocimara Balmant, O Estado de S.Paulo – 30/10/2021
Nos próximos 20 a 30 anos, o Brasil terá de aumentar em três ou quatro pontos do PIB o seu investimento em saúde. A projeção está no primeiro estudo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps). O órgão foi fundado recentemente pelo economista Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central, com o objetivo de contribuir para o aprimoramento das políticas públicas do setor de saúde no Brasil.
“Temos um sistema de saúde subfinanciado. O que se percebe é que a saúde pública não tem sido prioridade: quanto e como gastar não aparecem no debate público sobre o que fazer com o nosso dinheiro”, afirma o especialista, que participou do Summit Saúde 2021 com a palestra Caminhos para o Sistema de Saúde.
Na entrevista a seguir, Fraga aborda financiamento e desigualdade no SUS e aponta alguns caminhos para a melhoria do sistema de saúde brasileiro.
O Brasil gasta 9% do PIB em saúde, o que é similar aos gastos do Reino Unido, que tem um sistema universal e gratuito como o SUS. O problema aqui é a divisão entre recursos destinados para a saúde privada e a pública, não é mesmo?
Sim. O curioso e surpreendente é que, no Brasil, a divisão é única no mundo: 4% em saúde pública e 5% em saúde privada. Isso surpreende porque o gasto público cobre três quartos da população e 5% do PIB vão para um quarto da população. É uma situação esdrúxula e permite uma afirmação de que nosso sistema de saúde é subfinanciado. Eu tenho defendido a ideia de uma grande revisão dos gastos do Estado. Isso requer uma reflexão política: nossos representantes precisam sair do varejo da política e olhar para o grande mapa, para um crescimento sustentável e inclusivo.
A projeção de um estudo realizado pelo Ieps é que, entre os próximos 20 e 30 anos, será preciso aumentar de três a quatro pontos do PIB no investimento em saúde. Quais os fatores que levam a essa projeção e qual o caminho para aumentar esse porcentual?
Os fatores principais são o crescimento da renda e da curva demográfica. As pessoas com mais renda vão querer cuidar mais da saúde – seja diretamente, com gasto privado, ou indiretamente, por meio do Estado. Os sistemas de saúde vão ter de resolver isso. Nos sistemas que não são universais, as pessoas vão ter de gastar mais do orçamento familiar. No sistema público, a carga tributária destinada à saúde vai ter de aumentar. No Brasil, isso é um desafio, porque a nossa situação fiscal é muito fragilizada e o que se percebe é que a saúde pública não tem sido prioridade – quanto e como gastar não aparece no debate público sobre o que fazer com o nosso dinheiro.
Durante a pandemia, os mais pobres foram os mais atingidos. Isso mostra como o modelo do SUS também contém distorções importantes. Qual o caminho para atingir equidade?
É preciso pensar nas desigualdades no plural – como as regionais e as raciais – e cuidar de todas elas, dentro do que seria uma política pública de médio e longo prazo. O Brasil tem alguma tradição de fazer isso. Na área da educação, o Fundeb é um excelente modelo. É um fundo que tem uma forma de transferir recursos para as unidades mais carentes da Federação. Isso pode fazer parte de uma evolução na área da saúde.
Quando se discute o SUS, surge aquela velha dicotomia entre precisar de mais recursos ou de uma melhor gestão. Precisamos dos dois, não é mesmo?
Sim. Os números sugerem que faltam recursos; e o bom senso, a observação e muitos estudos sugerem que há espaço para mais gestão. Devemos atacar nas duas frentes; um ataque completo. O SUS está longe de ser perfeito, mas muita coisa boa aconteceu e as estatísticas mostram isso. O programa Saúde da Família é o maior do mundo e os dados mostram como ele fez cair a mortalidade infantil. Mas temos desafios importantes. A população sofre com filas, demora. Tanto que os planos de saúde são o sonho de grande parte da população.
Tem também a questão da incorporação tecnológica – telemedicina, robótica… A área da saúde tem sido impactada com a chegada das novas tecnologias e, ao mesmo tempo, no SUS, ainda temos problemas como a ausência de prontuários eletrônicos e muitas unidades Brasil afora nem acesso à internet têm.
O prontuário eletrônico é muito básico, tem de vir acoplado a um sistema de identidade digital, que precisa se inspirar nos modelos abertos, mas que protegem a privacidade das pessoas, como acontece na Estônia e na Índia. Vejo espaço para uma verdadeira revolução nessa área. A história da saúde das pessoas precisa estar toda arquivada de modo que, se há um problema, você tem acesso ao histórico que permite uma resposta médica adequada. Além disso, esses milhões de dados podem servir para estudos, para uso em inteligência artificial. Sou muito otimista quanto ao uso da tecnologia.
O senhor afirma que o gasto com saúde tem de ser visto como investimento, até porque pessoas com mais saúde são mais produtivas. Como fazer isso virar uma política de Estado?
Isso começa nas grandes decisões orçamentárias do Estado, em seus três níveis. A saúde claramente merece um grau elevado de prioridade. O que você não pode dizer é que tudo é prioritário. Você precisa botar na mesa e ver o que é grande. O Brasil gasta muito com Previdência, folha de pagamentos do setor público, subsídios que não fazem o menor sentido. E a saúde pública ficou para trás, a despeito dos profissionais da área. Hoje, a Previdência representa 13% do PIB, enquanto são apenas 4 ou 5% para saúde e educação públicas. Alguma coisa não está certa. Quando você diz “sim” para alguma coisa, você está dizendo “não” para outra; e precisa entender o que é. O orçamento público precisa ser desenhado para o que a sociedade decidiu que deseja, que é um sistema de saúde público e universal.