Calor extremo faz de 2023 o Ano do Sapo, quando a Terra chegou à ebulição climática, após décadas a caminho da fervura
Marcelo Leite, Folha de São Paulo, 10/01/2024
Entre os 12 animais que marcam os anos do calendário chinês não há lugar para batráquios, mas 2023 bem poderia ser identificado como o Ano do Sapo: aquele em que a Terra chegou ao ponto de ebulição climática, após décadas a caminho da fervura, por ação e omissão de governos e populações.
Era para ter saltado fora, há muito tempo, do caldeirão aquecido pela queima de combustíveis fósseis. Mas pouco se fez desde 1992, quando se adotou na Rio-92 a Convenção da ONU sobre Mudança Climática. A humanidade segue lançando CO2 na atmosfera como se não houvesse amanhã.
Não cabe alegar surpresa, assim, com a confirmação de que 2023 foi o ano mais quente já registrado desde a era pré-industrial. A temperatura do ar na superfície do planeta esteve 1,48°C acima da média no período 1850-1900, anuncia o relatório Destaques do Clima Global, compilado pelo Serviço Copernicus de Mudança do Clima, da União Europeia.
Tangenciou-se, com esse recorde, o limiar de segurança (1,5°C de aquecimento) traçado pelo Acordo de Paris (2015). Isso não implica, decerto, que essa fronteira prudencial tenha sido cruzada de modo permanente.
O clima terrestre está sujeito a grandes variações interanuais. Nada garante que 2024 venha a ser mais quente que 2023, ou que 2025 se revele mais escaldante que 2024, e assim por diante. Fica cada vez mais claro, porém, que a inação internacional alimenta uma curva ascendente.
O pico anual anterior cabia a 2016. Portanto, nesse intervalo de seis anos entre os recordistas a temperatura desviou-se menos das médias históricas.
Por outro lado, salta aos olhos que se iniciou uma era de alta sustentada nos termômetros e nas observações por satélite. Basta mencionar que todos os dez anos mais ardentes pertencem ao decênio em curso, ainda que numa aparente desordem: 2023, 2016, 2020, 2019, 2015, 2017, 2022, 2021, 2018 e 2014.
Todos os dias do ano passado estiveram, pela primeira vez, pelo menos 1°C acima da média 1850-1900. Metade deles superou 1,5°C; dois dias em novembro ultrapassaram 2°C, uma ocorrência inaudita.
A chaleira atmosférica de 2023 estava sobre duas bocas do fogão climático, o aquecimento global causado pela humanidade com a emissão de CO2 e um El Niño que se patenteou em meados do ano.
Esse aquecimento anormal das águas do Pacífico põe em polvorosa o clima no globo todo, com eventos extremos como as chuvas no Sul e as secas no Norte e no Nordeste do Brasil.
Há mais, como assinala o relatório do Copernicus. Outros oceanos também tiveram suas superfícies incomumente aquecidas, em especial o Atlântico Norte. Durante oito meses de 2023 o gelo marinho em volta da Antártida esteve abaixo das mínimas mensais correspondentes; o recorde geral de encolhimento ocorreu em fevereiro passado.
Não por acaso, a concentração de CO2, principal gás do efeito estufa, seguiu em alta, esta sim linear (a não ser pela variação sazonal observada a cada ano). Alcançou-se a marca de 419 ppm (partes por milhão), a mais alta em 100 mil anos. Em 2005, era da ordem de 375 ppm; na era pré-industrial, 280 ppm.
Uma vez emitido, o dióxido de carbono permanece por séculos na atmosfera, com metade dele absorvido em cerca de 120 anos. Cada tonelada emitida hoje —e são cerca de 37 bilhões delas lançadas a cada ano— continuará perturbando o clima com que terão de se virar nossos netos, bisnetos, tetranetos…
Para cumprir Paris, as emissões de carbono, principalmente devido à queima de combustíveis fósseis (petróleo, carvão mineral e gás natural), precisam ser reduzidas em 43% até 2030 —em seis anos, portanto. E, depois, eliminadas por completo até 2050, ou pelo menos neutralizadas, se até lá decolarem as prometidas tecnologias de retirada de carbono da atmosfera.
Para esquivar-se da redução imperativa, a indústria dos fósseis se apega às quimeras da captura e estocagem de carbono, do gás natural como combustível de transição (emite menos CO2 por unidade de energia produzida do que o petróleo e o carvão) e da renda do petróleo para financiar a revolução energética. Vão fazer de tudo para extrair o máximo do subsolo, antes que as restrições inevitáveis se materializem.
Se o fizerem, como planeja a Petrobrás na margem equatorial brasileira, será o equivalente de empresários que vendem todas as ações da firma quando sua insolvência se torna irrecorrível. No setor dos fósseis, as jazidas que não têm cabimento explorar são chamadas de ativos encalhados (“stranded assets”).
Nações não são empresas, assim como governos não são suas diretorias. Líderes que se pretendem estadistas deveriam enxergar além do horizonte de 4 ou 8 anos dos ciclos eleitorais, resistindo à pressão de investidores, burocratas, corporativistas e chantagistas.
Nesse sentido, é mau sinal que a próxima cúpula do clima, a COP29, em Baku (Azerbaijão), vá ser presidida por Mukhtar Babayev, ministro da Ecologia e Recursos Naturais que fez carreira na estatal petrolífera daquele país. A COP28, em Dubai (Emirados Árabes), foi chefiada por um executivo do petróleo, Sultan Ahmed al-Jaber, e deu no que deu —nada que faça diferença.
A reunião seguinte, COP30, será em Belém (PA). Ali, do lado da foz do rio Amazonas, do outro lado da ilha de Marajó, não tão distante assim, em termos amazônicos, das jazidas de óleo e gás que a Petrobras quer porque quer explorar. Não faltarão sapos nos arredores.