Um dos criadores do Fome Zero, Walter Belik critica o desmonte da rede de segurança alimentar pelo governo Bolsonaro
Suzana Petropouleas – Folha de São Paulo – 24/01/2022
SÃO PAULO
Um dos criadores do Fome Zero e um dos principais pesquisadores em segurança alimentar no Brasil, Walter Belik, professor aposentado do Instituto de Economia da Unicamp, defende que o governo Bolsonaro conduz uma política deliberada de desmonte das iniciativas contra a fome no país.
Belik relembra a criação do Fome Zero como um projeto pluripartidário. Desenhado originalmente como um programa de distribuição de cupons para troca por alimentos, ele foi substituído pelo Bolsa Família, carro-chefe da política social de Lula, e o nome passou a designar uma estratégia de segurança alimentar. As iniciativas pavimentaram a saída do Brasil do Mapa da Fome da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação da Agricultura) em 2014.
O cenário mudou a partir de 2015, diz Belik, com a escalada inflacionária, a ausência de recomposição do valor de benefícios sociais e um desmonte das políticas de segurança alimentar, sobretudo no governo Bolsonaro.
O país voltou ao Mapa da Fome em 2018 e, em 2020, registrou 55,2% da população convivendo com a insegurança alimentar, segundo pesquisa da Rede Penssan. Cenas observadas em 2021, como pessoas buscando ossos e carcaças para se alimentar e os diversos protestos contra a fome, não podem ser creditadas só à crise provocada pela pandemia, diz ele.
A que o sr. atribui o avanço da fome nos últimos anos? O aumento era previsível. Tivemos uma redução até 2014 e a subida começa a aparecer já em 2017. O ano de 2018 já configura uma volta do Brasil ao Mapa da Fome. Esse dado se confirma e agrava nos anos seguintes, segundo dados da Reden Penssan e ONU. Em 2022, a tendência é de continuidade nesse aumento.
A ONU associa a insuficiência alimentar grave e moderada a um quadro de fome. Tomando as duas porcentagens, chegamos a um quadro de aproximadamente 25% da população em situação vulnerável. É bastante crítico. É um quadro complicadíssimo, um quarto da população está passando fome no Brasil.
Os impactos para a economia são enormes, porque existe um custo social da fome. Esse custo deve ser gerenciado pelas políticas públicas. Ele impacta no sistema de segurança social, no Orçamento, na saúde, na educação —com atraso de aprendizagem das crianças—, e no mercado de trabalho, com redução da mão de obra e da produtividade.
Colocando na balança, prevenir seria mais barato. A fome custa caro.
O quanto a pandemia afetou a fome? Não dá para atribuir a fome só à Covid, pois se tivéssemos uma rede de proteção social em funcionamento, não teríamos um quadro tão complicado quanto o que estamos vivendo.
O programa de estoques de regulação da Conab, por exemplo, baseado principalmente em compras da agricultura familiar, acabou. Boa parte da crise de desabastecimento e alta de preços em 2020 tem a ver com a ideia de que o Brasil não precisa de estoques reguladores de alimentos, o que é absurdo não só do ponto de vista de segurança alimentar, mas nacional.
O país depender de importações e da variação de preços internacionais é absurdo, diante do quadro de abundância que temos no Brasil.
O sr. fala em desmonte da rede de segurança alimentar no governo Bolsonaro. Quais políticas foram afetadas? A lista é extensa. O Bolsa Família, desidratado, passou de um programa de transferência de renda com condicionalidades para um de doação. Com o Auxílio Brasil, a ideia de proteção e assistência social dessas famílias foi escanteada.
O Pronaf [Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar] foi desidratado e os valores cortados em 35%. O programa de reforma agrária, a Secretaria de Agricultura Familiar, o programa de estoques de regulação da Conab e o programa de cisternas, todos foram descontinuados.
O PAA [Programa de Aquisição de Alimentos], que priorizava a compra de alimentos de agricultura familiar para doações ou alimentação escolar e chegou a comprar quase R$ 1 bilhão, garantindo renda para os pequenos produtores, acabou.
O programa de banco de alimentos virou o “Comida no Prato”, assistencialista e criado pelo governo para faturar em cima do trabalho feito há duas décadas pelos bancos de alimentos do Brasil, organizados pela sociedade civil, basicamente. O programa de restaurantes populares foi descontinuado, e hoje vivemos um congestionamento nos restaurantes populares de R$ 1, graças à perda de renda da população. O programa de cozinhas comunitárias acabou.
Agora, o governo quer mexer no PAT [Programa de Alimentação do Trabalhador] e reduzir a isenção fiscal das empresas que promovem o vale-alimentação ou tem restaurante na empresa. Todos os programas de abastecimento, como modernização ou mesmo privatização das Ceasas, também acabaram. Elas se tornaram obsoletas, mas têm papel importantíssimo no abastecimento urbano.
Uma coisa é consertar um programa, outro é extingui-lo. Tem uma lista enorme de programas finalizados em nome de resolver problemas fiscais e respeitar o teto de gastos, que depois foi furado.
Por que o sr. critica o programa Comida no Prato? Esse caso é escandaloso. Em 2017, foi criada a Rede Brasileira de Banco de Alimentos, ideia de muito tempo atrás que visava melhorar a comunicação entre os mais de 200 bancos pelo país e reduzir custos. São na maioria ONGs e entidades civis.
O governo Bolsonaro centralizou os cadastros de doações de novos doadores, como supermercados ou indústrias, e promete isenção do ICMS a elas. Ora, esse imposto é estadual e a maioria dos alimentos doados são frescos. Estados como São Paulo não cobram ICMS sobre eles. É uma medida inócua e populista.
No caso dos industrializados, onde incide IPI, não há isenção nenhuma.
O governo quer concentrar as informações em torno dele para depois dizer que está fazendo uma ação de solidariedade, mas ele não faz nada, quem faz são as empresas que doam e as ONGS. É escandaloso. É para funcionar na propaganda política de 2022. Uma tristeza de ver.
Como a questão da fome pode afetar as eleições de 2022? Se em campanhas anteriores os temas eram corrupção e segurança pública, esse ano vai ser saúde, em primeiro lugar, e alimentação.
Estamos numa situação de retrocesso que é única no mundo. Não há sequer um caso na história documentado pela FAO de um país que saiu do Mapa e voltou. Nenhum. Esse é o tamanho da tragédia que estamos vivendo.
A tragédia que estamos vivendo com a fome choca qualquer pessoa que trabalha na área ou vê a situação. Deve ser prioridade número um na cabeça de qualquer programa de governo. Lógico que, vindo do Bolsonaro, não é algo sério, é eleitoreiro. Mas diria que os outros têm uma preocupação com isso e, nas campanhas, será fundamental.
O sr. defende um Fome Zero 2.0 caso Lula, que lidera as pesquisas, seja eleito? Não sou filiado ao PT. Não sei exatamente o que está sendo discutido hoje, em nível de programa de governo. Mas diria que qualquer pessoa de bom senso vai ter que atacar esse problema como o número um.
Talvez não seja mais uma bandeira do PT, mas uma bandeira da sociedade civilizada como um todo. É uma questão civilizatória. Mais da metade da população vive em insegurança alimentar, segundo os últimos dados. Você não pode virar as costas para isso.
Não é possível que algum candidato, que tenha algum senso de solidariedade e uma certa empatia pelo povo brasileiro, possa conviver com uma situação como essa. Não é possível. Então não é um problema só do candidato Lula, mas de todos os candidatos.
Por que o Fome Zero não conseguiu eliminar a fome de forma estrutural? Programas de transferência de renda são o primeiro passo. Quem tem fome tem pressa. Tem que garantir uma cesta básica, alimentação na mesa dessas famílias.
O passo seguinte, de fato gigantesco, é atacar as questões da pobreza de forma multidimensional. Dados mostram que o gasto em transporte ultrapassou o gasto com alimentação, tradicionalmente o maior das famílias. Como garantir alimentação se o sujeito vai gastar uma parte da transferência de renda para pagar o transporte para trabalhar?
Aproximadamente 30 milhões estão em trabalhos precários e não têm vale-transporte. Gasta-se para trabalhar.
Habitação é outro item de despesa que está no mesmo nível do gasto com alimentação, em torno de 20%.
Não dá para ter um programa de alimentação sem analisar essas outras dimensões que compõem a pobreza. O que que precisa ser feito? O que não foi feito? É passar dessa fase de programa ligados à segurança alimentar para programas mais gerais, que possam garantir a erradicação da pobreza, o objetivo número um do milênio da ONU. E erradicar a pobreza não é só renda, tem outras questões relacionadas.
O que um programa de combate à fome atual deve fazer de diferente do que foi feito no Fome Zero? O programa número um agora seria de abastecimento dos centros urbanos, tema para o qual o programa não apresentou respostas de maior amplitude. Foram respostas pontuais.
Tem que modernizar as relações de abastecimento e comercialização, do campo ao consumidor final. Estamos numa era da economia digital e devemos aproveitar todos os elementos dados pelas plataformas digitais: reduzir a intermediação, agilizar sistemas, promover a padronização e classificação no campo e a definição de embalagem para redução do desperdício, melhorar sistemas de transporte e plataformas de comercialização, além de conectar centrais de distribuição com a agricultura familiar, principalmente os produtores mais pobres.
É possível fazer. Também é preciso estabelecer relações mais permanentes entre o consumidor e o produtor, por exemplo, através de modelo de assinatura de cestas de alimentos frescos e saudáveis.
A qualidade da alimentação também piorou na pandemia, com aumento do consumo de ultraprocessados. Como atacar esse problema? Ultraprocessados são mais baratos e fáceis de encontrar.
Precisamos garantir melhoria da renda no campo e no abastecimento na cidade. Temos uma rede de Ceasas (Centrais de Abastecimento) maravilhosa, construída na década de 70, que está se deteriorando. Ela pode cumprir esse papel.
A Ceagesp (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo), por exemplo, tem seu volume comercializado estagnado há dez anos. Está sendo comida pelas bordas pelo atacado moderno, que atua via supermercados. É importante prover este sistema de distribuição para feiras livres, de pequenos comércios, compra direta para o consumidor.
De nada adianta você fazer uma transferência de renda de R$ 600 e a pessoa comprar um alimento muito industrializado. Algumas áreas são verdadeiros desertos alimentares e isso piorou na pandemia: não tem feira, não tem distribuição, circulação de alimento fresco.
A ideia é que você possa reconectar as pessoas que recebem transferência de renda com uma alimentação saudável, garantindo renda também no campo.
No curto prazo, algo deve mudar no panorama da fome no Brasil? Esse ano ainda será bastante complicado. Com a situação fiscal do Brasil se estabeleceram alguns tetos. As emendas parlamentares tratam de questões ligadas a infraestrutura. Então não há nenhum programa consistente voltado para combater este problema agora, no curto prazo.
E a pandemia, que se imaginava controlada, passa por novo descontrole. Não vejo muita condição de resolver o problema.
Ainda mais porque teremos um ano de recessão, com previsões de crescimento em zero, 0,29%. E com crescimento zero tem-se a persistência do desemprego e queda de renda.
O quadro internacional também está relativamente complicado, então vamos continuar com aumentos de preços. Diria que 2022 não vai apresentar nenhum refresco. Em 2023, com seja lá quem ganhar a eleição, que não seja o Bolsonaro, teremos a possibilidade de atacar esse problema de frente.
Walter Belik, 66, é graduado em administração de empresas pela FGV, com mestrado pela mesma instituição e e doutorado em economia na Unicamp. Fez pós-doutorado no University College de Londres e no Departamento de Agricultura e Economia dos Recursos Naturais da University of California, em Berkeley, Estados Unidos. É professor aposentado de economia agrícola do Instituto de Economia da Unicamp e professor convidado na University of Kassel, Alemanha. Coordenou a Iniciativa América Latina e Caribe Sem Fome da FAO (Organização para a Agricultura e Alimentação das Nações Unidas), até 2008 e desde 2013 é membro do Painel de Alto Nível da ONU de Experts para a Segurança Alimentar Mundial. Publicou mais de 200 artigos científicos, além de livros e textos de divulgação na área de agricultura e alimentação.