Modelo econômico

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Vivemos numa sociedade bem interessante, marcada pelo crescimento da tecnologia, que aproximam as pessoas e, ao mesmo tempo, nos distanciam; uma sociedade marcada pelo crescimento da riqueza material onde poucos podem usufruir de bens sofisticados e, uma grande massa, sobrevive na indignidade, na exploração e na subserviência. Estamos vivendo em um momento de grandes transformações estruturais, cujos impactos ainda não podem ser mensurados, onde os vestígios do futuro são preocupantes e muito inquietantes.

De um lado, percebemos uma alteração nos relacionamentos humanos, neste cenário de instabilidades, medos e incertezas, as pessoas evitam relacionamentos duradouros e compromissos mais sólidos, como nos ensina o grande sociólogo polonês, Zygmunt Bauman, estamos no mundo sólido, dos amores sólidos e dos sentimentos líquidos, marcados pela superficialidade, onde as pessoas se refugiam em seu individualismo crescente, no imediatismo defensivo, buscando seus prazeres imediatos, vontades variadas e se distanciando das frustrações, acumulando imaturidades e vazios sentimentais.

Vivemos num mundo onde a ciência destravou grandes descobertas científicas e tecnológicas, superando doenças vistas como incuráveis e criou novos horizontes para a vida humana, mas ao mesmo tempo, nos deliciamos com a destruição material, destruímos nações inteiras para nos apoderarmos de suas riquezas naturais, deixando os povos na devastação e na degradação, aumentando as privações materiais e as pobrezas morais, um mundo marcado por grandes contradições.

Vivemos numa sociedade marcada pela hiperconcorrência, neste cenário estamos em constante competição, antes competíamos com produtores locais, muitos deles conhecidos, atualmente estamos num mercado global, competindo com produtores de outras regiões do mundo. Neste ambiente estamos cotidianamente nos preparando para a sobrevivência, requalificando, recapacitando, reconectando e mesmo assim, não temos a garantia de que conseguiremos sobreviver na competição global, acreditamos nas virtudes do livre comércio e percebemos que, em muitas nações, governos dispendem bilhões de dólares para garantir seus negócios bilionários e proteger seus sistemas econômicos e produtivos.

Vivemos num mundo marcado pela busca frenética por riquezas naturais, minérios estratégicos e energias alternativas para garantir e manter o status quo de poucos e, para isso, destroem nações inteiras, acusam terrorismo externo e invadem países, gerando destruições e colocando, no poder, apaniguados e fantoches para garantirem e perpetuarem a exploração e um novo colonialismo.

Vivemos num mundo onde os donos do poder controlam os grandes recursos monetários e financeiros globais, exigem taxas de juros estratosféricas, controlam os Bancos Centrais, compram governos subservientes e garantem enriquecimento de seus apaniguados e, num momento de crises financeiras globais, como a acontecida nos anos 2007/2008, exigem resgates bilionários para evitar perdas elevadas e transferem os passivos estratosféricos para os pobres, endividando a classe média e levando pessoas ao desemprego crescente, criando uma epidemia de depressão e suicídios, que embora crescentes, são ignoradas e deixadas de lado pela mídia tradicional.

Vivemos num momento de grandes degradações da humanidade, na meca do capitalismo global, os Estados Unidos, estamos percebendo o surgimento de mortes por desespero, todos percebemos as devastações crescentes do mundo contemporâneo e deixam de lado uma reflexão sobre o modelo econômico dominante, excludente, destruidor da dignidade humana, impulsionando a desigualdade global e, neste cenário, percebemos um receituário surreal, mais privatização, mais empreendedorismo, mais concorrência e mais devastação ambiental. O mundo civilizado acordou deste nefasto receituário, mas nós, infelizmente, estamos adotando as mesmas políticas e acreditando que somos modernos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

 

China, na antecâmara do futuro, por Marcelo Viana

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Marcelo Viana, Diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e Aplicada, ganhador do Prêmio Louis D., do Institut de France.

Folha de São Paulo, 30/09/2025.

Nas décadas que se seguiram à independência dos Estados Unidos, pensadores e estudiosos europeus como o aristocrata francês Alexis de Tocqueville (1805-1859) viajaram extensivamente pelo jovem país, admirando e analisando criticamente o nascimento de uma nação, uma cultura e uma sociedade como o mundo nunca vira. Hoje, algo semelhante está acontecendo na China.

São as pequenas coisas, como o robozinho do meu hotel em Pequim. Nos conhecemos no elevador. Entrou no terceiro andar, deu oi (“Ni hao!”) e girou para encarar a saída. Não sei como disse ao elevador para onde ia. Quando a porta abriu no sétimo andar, saiu para ir à sua vida.

A segunda interação foi mais substancial. Encomendei o jantar por aplicativo, para entrega no quarto. Algum tempo depois ligaram da recepção: eu não falo chinês, a pessoa não falava inglês, foi um diálogo bem curto. Alguns minutos depois ouvi a campainha do quarto. Abri a porta e lá estava o robozinho, entregando a minha comida e me desejando bom apetite (acho…).

São coisas maiores, como o centro de treinamento de última geração onde a Universidade Beihang forma anualmente centenas de profissionais para a indústria aeronáutica e aeroespacial da China (Beihang é a número um do mundo na área). Novos modelos de avião são testados em simuladores equipados com softwares avançados, muito antes de qualquer protótipo da aeronave começar sequer a ser construído para testes reais. A matemática e a computação guiando a engenharia.

E são as coisas realmente grandes, como a incrível rede de trens de alta velocidade que a China construiu nos últimos 15 anos. Cerca de 50 mil quilômetros de linhas eletrificadas que já ligam todas as cidades acima de 1 milhão de habitantes, a velocidades entre 200 e 350 km/h. E não para de crescer: até 2035 deverão alcançar 70 mil quilômetros.

O conforto e a eficiência, econômica e ambiental, estão muito além dos sonhos do transporte rodoviário ou aéreo baseado em combustíveis fósseis. A viagem de cerca de 1.250 quilômetros entre Pequim e Hangzhou, na região de Xangai, tomou 4h40 e foi muito repousante. Vou lembrar na próxima vez que eu for do Rio a Brasília (mesma distância) de carro, ônibus ou avião.

Certos aspectos do modelo de desenvolvimento da China são um pouco perturbadores para um visitante ocidental. Nas universidades chinesas, não há folha de frequência para os alunos assinarem: a presença de cada um é aferida automaticamente pela detecção do respectivo celular na sala de aula. Em algumas instituições, as aulas são filmadas e as imagens ficam acessíveis a uma comissão interna da universidade. O objetivo oficial é aferir a qualidade da docência.

A minha entrada na Cidade Proibida, a espetacular residência histórica dos imperadores da China, foi validada por reconhecimento facial. O estudante de doutorado da Universidade de Pequim que gentilmente me servia de guia e tradutor questionou: “Quando eles tomaram seus dados?”. “Só pode ter sido a polícia no aeroporto, na chegada”, respondi. Aparentemente, a minha biometria ficou automaticamente acessível a uma miríade de instituições em todo o país.

As pessoas com quem interagi durante as três semanas no país parecem aceitar tais coisas com naturalidade, estimando que o lucro em comodidade e eficiência supera o prejuízo em privacidade individual. O que não elimina os riscos, obviamente. Continuarei na semana que vem.

 

Miséria, desespero e suicídio no capitalismo, por Michel Goulart da Silva

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É somente uma escolha pessoal tirar a própria vida? Quando isso se torna epidêmico, não revelaria um sistema opressor, que impõe o produtivismo e o fetiche da felicidade ao mesmo tempo, gerando um sofrimento coletivo? Haveria aí um recorte de classes?

Michel Goulart da Silva – OUTRAS PALAVRAS – 26/09/2025

O suicídio se manifesta como um fenômeno social complexo, como expressão do sofrimento ao qual as pessoas estão submetidas, especialmente em relação à exploração de classe. Leva-se em conta que

“[…] o grosso dos homens e mulheres que se suicidam são da classe trabalhadora. Quem se suicida não é um indivíduo abstrato que, na melhor das hipóteses, é homem ou mulher, tem uma certa idade e vive em determinadas condições socioeconômicas. O porquê de ele estar em tais condições é ocultado ou, simplesmente, dado como natural, em vez de explicado”.1

O adoecimento mental é produto das contradições da sociedade capitalista, que se materializa em ansiedade, estresse, depressão, fobia social, desordens alimentares, automutilação, insônia, entre outras coisas. O massivo adoecimento se dá em meio a um cenário no qual se fala muito na necessidade do “sentir-se bem”, mas o fetiche de uma vida feliz, vendido pela classe dominante e baseado num certo entendimento de sucesso profissional e de família estável, além de pressionar as pessoas para que almejem alcançar conquistas muitas vezes irreais, esconde as contradições que levam os trabalhadores a situações de desgaste físico e mental, de sofrimento e adoecimento.

Na sociedade capitalista, os trabalhadores se veem pressionados pela manutenção ou ampliação da produtividade, ao mesmo tempo exigindo-se que sejam o que se convencionou chamar de profissionais “bem-sucedidos” e, ao mesmo tempo, devendo ter uma vida feliz em âmbito privado. Contudo, no sistema capitalista até mesmo essa vida pessoal está nas mãos do capital, que não pode permitir que qualquer coisa atrapalhe a produtividade do trabalho. Exige-se que o trabalhador alcance a “felicidade”, desde que se mantenha o funcionamento da economia e a exploração sobre a força de trabalho.

O tema da saúde mental deve ser entendido como parte da realidade concreta da exploração capitalista. Associar a saúde mental apenas a fatores biológicos de indivíduos isolados implica em excluir o seu caráter histórico e social. Os fatores biológicos, que podem concorrer para o adoecimento, não se explicam sozinhos, devendo estar articulados à compreensão da dinâmica histórica e das contradições da sociedade. O ciclo vital do ser humano varia em diferentes épocas, a partir das condições materiais em que produz sua existência. Pode inclusive ter particularidades no interior das diferentes classes sociais em uma mesma época e sociedade, ou seja, em última instância, a forma de produção e reprodução da vida em sociedade determina a existência de diferentes transtornos físicos e mentais.

Nesse sentido, para pensar a saúde e a doença, é fundamental compreender as formas como se organiza o processo de trabalho e de produção de mercadorias e como isso impacta na vida das pessoas; essa compreensão permite entender como se adoece e se morre nas diferentes classes em determinada sociedade. No capitalismo, a burguesia precisa de trabalhadores aptos a produzirem em suas fábricas, ou seja, na lógica capitalista, o que determina ser saudável ou não é a capacidade do sujeito de trabalhar e manter-se produtivo. Marx destacava que o capital não tem “a mínima consideração pela saúde e duração da vida do trabalhador, a menos que seja forçado pela sociedade a ter essa consideração”.2

Neste modo de produção, ser ou não saudável está relacionado ao desgaste da força de trabalho. Esse desgaste aponta elementos que extrapolam as análises focadas apenas nas causas imediatas do adoecimento, devendo abarcar também os impactos físicos e psicológicos do processo de trabalho, no médio e no longo prazo, que afetam a vida e até mesmo o cotidiano do trabalhador. Marx comentava que o capital

“[…] usurpa o tempo para o crescimento, o desenvolvimento e a manutenção saudável do corpo. Rouba o tempo requerido para o consumo de ar puro e de luz solar. Avança sobre o horário das refeições e os incorpora, sempre que possível, ao processo de produção, fazendo com que os trabalhadores, como meros meios de produção, sejam abastecidos de alimentos do mesmo modo como a caldeira é abastecida de carvão, e a maquinaria, de graxa ou óleo”.3

Engels, em seu clássico estudo sobre a situação da classe trabalhadora na Inglaterra no século XIX, associava o adoecimento às adversidades “a que os operários estão expostos em razão das flutuações do comércio, do desemprego e dos salários miseráveis em tempos de crise”. 4 Segundo o estudo de Engels, essa situação trazia graves consequências para a saúde dos trabalhadores:

“Acontece com frequência que, acabando o salário semanal antes do fim da semana, nos últimos dias a família careça de alimentação ou tenha apenas o estritamente necessário para não morrer de fome. É claro que semelhante modo de vida só pode originar toda sorte de doenças; quando as enfermidades chegam, quando o homem — cujo trabalho sustenta a família e cuja atividade física exige mais alimentação e, por conseguinte, é o primeiro a adoecer —, quando esse homem adoece, é então que começa a grande miséria”.5

Nos últimos séculos, o capitalismo passou por mudanças na forma de organização do trabalho, como respostas às suas crises cíclicas, garantindo a manutenção da extração de mais-valia. Essas formas de organização têm impacto também no cotidiano do trabalhador, como a perspectiva de controle inclusive sobre a vida privada, como foi o caso do fordismo. Nas últimas décadas, o que marca mais profundamente o processo de organização do trabalho é o chamado toyotismo. Essa forma de organização da produção tem como uma de suas características o chamado trabalho flexível, exigindo do trabalhador um maior engajamento no processo de produção, também afetando a sua subjetividade.

Diante do desgaste físico e mental, os trabalhadores sofrem com o medo de serem descartados. Suas condições física e psicológica, como a idade ou o desenvolvimento de doenças crônicas, podem se tornar um problema para a permanência no trabalho ou para encontrar um novo emprego, correndo o risco de ficar sem qualquer ocupação. Marx comentava que, para o capital, “as forças de trabalho retiradas do mercado por estarem gastas ou mortas têm de ser constantemente substituídas, no mínimo, por uma quantidade igual de novas forças de trabalho”.6

O adoecimento mental pode se manifestar por meio de diversos sintomas e transtornos, tendo relação com as diferentes formas de organização do processo produtivo. Uma doença comum entre os trabalhadores é a depressão, associada ao desânimo em relação à realidade e à própria vida, fazendo com que a pessoa perca a vontade não apenas de agir, mas até mesmo de ter qualquer interação com o mundo que a cerca. Outro transtorno mental comum é a ansiedade, relacionada ao sentimento de angústia, em que a pessoa se vê impotente diante de uma realidade que a oprime.

Um elemento que se relaciona a todos esses sintomas e transtornos é o estresse. Trata-se de um conjunto de reações do indivíduo diante dos problemas com os quais precisa lidar em seu cotidiano, provocando nervosismo, tristeza, apatia, entre outras coisas. O acúmulo desses sentimentos pode provocar uma diversidade de reações fisiológicas e psíquicas, que levam ao esgotamento.

Fenômenos como a depressão, a ansiedade e o estresse e outras formas de adoecimento estão relacionados entre si, podendo ser não apenas a causa de uma ou outra, como uma possível manifestação de agravamento. Esses não são fenômenos que surgem ao acaso, como um problema individual causado por uma crise momentânea, mas produto do vivenciar a sociedade e do estar no mundo. Diante dessas formas de adoecimento, ainda prevalece uma certa percepção da saúde mental que “individualiza o fracasso, na forma de culpa”, fazendo com que se isole “a dimensão política, das determinações objetivas que atacam nossas formas de vida, redimensionando trabalho, linguagem e desejo, do sofrimento psíquico”.7

O suicídio não escapa a esse tipo de interpretação simplista, prevalecendo a ideia de que se trata de uma escolha subjetiva ou de uma vontade individual. Essa percepção lembra a polêmica de Marx em seu escrito de 1846 sobre o suicídio, quando critica a perspectiva dos socialistas utópicos. Para Marx, o número de suicídios deveria “ser considerado um sintoma da organização deficiente de nossa sociedade”, afinal, segundo sua compreensão, “na época da paralisação e das crises da indústria, em temporadas de encarecimento dos meios de vida e de invernos rigorosos, esse sintoma é sempre mais evidente e assume um caráter epidêmico”.8

O suicídio é um ato que nunca se pode ter total certeza de quais são as suas causas. Especula-se sobre os motivos que teriam levado a pessoa ao suicídio, normalmente procurando em questões imediatas um gatilho que a teria levado a esse extremo. Contudo, dificilmente se consegue chegar a uma plena compreensão das motivações. Na medida em que o senso comum considera o suicida alguém fraco e desprotegido, possivelmente a vítima opta por esconder a profundidade de seu sofrimento, escondendo parte de suas motivações, seja numa carta de despedida ou mesmo numa sessão de psicoterapia.

Sabe-se que o suicida, de alguma forma, perde suas esperanças em estar no mundo. O ato suicida parece ser uma escolha equivocada, afinal, segundo o senso comum, bastaria continuar lutando contra tudo e contra todos e ter a vontade de se erguer. Contudo, isso ignora as condições materiais a que essa pessoa foi submetida ao longo de sua vida. Soma-se a isso uma realidade em que as relações pessoais são afetadas pelos problemas sociais e, portanto, paixões e sonhos de futuro acabam não encontrando a satisfação que se espera de uma vida em comum.

Portanto, se uma pessoa chega ao limite de tentar tirar a própria vida, não significa apenas uma escolha ou ação pessoal, mas a expressão do esgotamento diante de uma realidade opressora, exploradora e cheia de dores e adoecimento. O suicídio muitas vezes é associado à depressão, ainda que não seja a única explicação possível. Diante da depressão, parece que “o sujeito interpreta adversidades como sinal e permissão para a desistência. Os triunfos são sentidos como derrotas e as realizações, como sinais de insuficiência”.9

Para começar a resolver o problema do adoecimento físico e mental, não resta outra coisa que não seja atacar sua causa, ou seja, é preciso construir uma nova sociedade. Contudo, um primeiro obstáculo para que se possa caminhar no sentido dessa solução passa justamente pelo fato de que uma das consequências do adoecimento físico e mental das pessoas é o abandono de quaisquer perspectivas de futuro, optando não por saídas complexas e de longo prazo, mas por soluções mais imediatas, como o consumo de drogas, entre outras coisas. Certamente não se trata de um erro procurar amenizar os sofrimentos provocados pela sociedade capitalista e sua fábrica de misérias. Contudo, ao mesmo tempo, é preciso lutar contra uma das mais cruéis consequências do capitalismo, que é a perda do senso de coletividade e a busca de soluções baseadas no individualismo.

Uma nova sociedade, em que o lucro não esteja no centro de tudo e que o trabalho não seja um pesado fardo carregado pelas pessoas, pode ser um primeiro passo para que se possa viver uma vida mais saudável. Um novo mundo, em que seja possível superar a miséria e o adoecimento, precisa ser construído, mas, para tanto, é fundamental que os trabalhadores transformem a realidade e se coloquem na luta pelo socialismo, superando, assim, as sequelas que a miséria capitalista impõe cotidianamente.

Notas:

1 COSTA, Paulo Henrique Antunes; MENDES, Kíssila Teixeira. Sobre o suicídio (no Brasil contemporâneo): um retorno a Marx. Brasília: Editora UnB, 2024, p. 36-7.

2 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 342.

3 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013, Livro I, p. 337-8.

4 Engels, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 141.

5 Engels, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 115.

6 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013, Livro I, p. 246.

7 DUNKER, Christian. A hipótese depressiva. In: Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. São Paulo: Autêntica, 2021, p. 190.

8 MARX, Karl. Sobre o suicídio. São Paulo: Boitempo, 2006, p. 24.

9 DUNKER, Christian. Reinvenção da intimidade: políticas do sofrimento cotidiano. São Paulo: Ubu, 2017, p. 225.

 

Como o Legislativo capturou o Orçamento, por Glauco Faria

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Estudo da UFRJ disseca as emendas parlamentares, uma deformação que corrói a política brasileira. Quais suas modalidades e como surgiram. Como fragmentam o fundo público e o desviam para corrupção eleitoral. Por que isso só ocorre no Brasil

Glauco Faria – OUTRAS PALAVRAS – 25/09/2025

O fortalecimento do Legislativo diante dos outros dois Poderes nos últimos anos, e a captura do Orçamento Público que ele promove, quase nunca são tratados da forma como merecem. Em geral, são banalizados como se fossem apenas uma expressão do jogo de poder político. Ou então, como mais um dado da paisagem de Brasília, em que personagens se sucedem num enredo no qual se discute se o governo perdeu ou não, ou se os parlamentares estão “insatisfeitos” com determinada medida do Judiciário. O quadro é bem mais grave do que sugerem os comentaristas da mídia corporativa e traçar o caminho que nos trouxe até aqui é essencial para compreender o grau de deformação do nosso sistema político.

Por isso, é tão importante o relatório “As emendas parlamentares no Brasil e no Mundo”, elaborado pelo Laboratório de eleições, Partidos e Política Comparada (Lappcom) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A partir de vasta pesquisa, o estudo recupera a trajetória do principal instrumento que tornou o Congresso Nacional capaz de renegar o diálogo com o Executivo para avançar em suas prerrogativas orçamentárias.

“Mais do que simples instrumentos de alocação de recursos, as emendas se tornaram expressão de um conflito federativo: de um lado, o Executivo busca preservar sua capacidade de conduzir a política econômica e coordenar prioridades nacionais; de outro, o Legislativo amplia sua autonomia e fragmenta o orçamento em múltiplos interesses locais”, destaca a coordenadora do Lappcom, Mayra Goulart.

Ela pontua ainda que não se trata de um simples embate entre Executivo e Legislativo, mas algo que reconfigura o arranjo institucional concebido pela Constituição de 1988. Seu sentido é de uma “uma ameaça republicana”, já que “corrói a lógica universalista de provisão de direitos e aprofunda um afastamento entre representantes e representados”, aponta Mayra. “O resultado é um fechamento do Congresso em torno de suas próprias lógicas de autopreservação, desconectando-se das preferências populares.”

O ocaso de um modelo

Desde a redemocratização, o modelo de presidencialismo de coalizão no Brasil funcionou basicamente de dois modos na relação Executivo-Legislativo. O governo tentava garantir um apoio parlamentar mais fiel e perene, negociando com os partidos cargos nos ministérios e em outros escalões do aparelho estatal. Em votações mais problemáticas, nas quais era necessário um esforço maior para obter a maioria, também eram acionadas negociações pontuais de forma individual com parlamentares, mesmo aqueles que não faziam parte da base governista. Neste caso, a moeda de troca era o destravamento de emendas e a liberação de recursos.

Este cenário começa a mudar em 2015. A Emenda Constitucional 86 tornou impositivas as emendas individuais dos parlamentares, garantindo a elas ainda uma reserva de 1,2% da Receita Corrente Líquida (RCL) da União. Estas emendas também passaram a ter uma espécie de salvaguarda em relação ao contingenciamento de recursos, um artifício usado pelo Executivo para restringir a execução do Orçamento. Elas somente podem ser contingenciadas de forma proporcional às despesas discricionárias.

Assim, mesmo o chamado “baixo clero”, aquela parcela do Congresso Nacional apartada das lideranças políticas da Casa e das direções dos partidos, passou a ter em mãos um instrumento poderoso de articulação política local, aumentando ainda seu poder de barganha com o Executivo. À época, um deputado que fazia parte do segmento celebrou a decisão.

Em entrevista à jornalista Mariana Godoy, na RedeTV!, o então deputado federal fluminense do PP, Jair Bolsonaro, afirmava que, com a mudança promovida pela Emenda Constitucional 86, o governo não poderia mais “chantagear” o Legislativo. “O que um parlamentar tem para negociar em Brasília? É seu voto. Esse Congresso melhorou muito em relação ao do passado, em especial, graças ao atual presidente, Eduardo Cunha, que aprovou uma PEC, proposta de emenda à Constituição, que trata do Orçamento impositivo”, disse. Questionado sobre o governo ficar refém do Congresso Nacional, Bolsonaro respondeu: “Não fica refém. O governo não está refém, o governo tem de respeitar. Somos três Poderes aqui”.

As declarações do parlamentar foram resgatadas por deputados em fevereiro de 2020 quando ele, agora na condição de presidente da República, resistia em negociar com o Legislativo um pacto que permitia ao Congresso indicar a prioridade de execução de todos os R$ 16 bilhões de emendas parlamentares e de R$ 15 bilhões dos R$ 30 bilhões aprovados no Orçamento como emendas de relator. Mais adiante, Bolsonaro cederia bem mais do que isso.

A evolução das emendas

O confronto entre o deputado Bolsonaro e o presidente Bolsonaro evidencia como alterações casuísticas, tomadas diante de certa indiferença da sociedade em função de disputas políticas de momento, podem resultar em grandes distorções e conflitos no âmbito institucional.

A transformação iniciada em 2015 foi aprofundada em 2019, quando a Emenda Constitucional número 100 determinou a execução obrigatória das emendas das bancadas estaduais no Congresso, conferindo maior poder coletivo a elas e ampliando o alcance da influência direta dos parlamentares no destino dos recursos. No mesmo ano, surgiu um novo instrumento, a “transferência especial”, instituída pela Emenda Constitucional número 105, conhecida mais tarde como “emenda Pix” (RP 7). Essa modalidade permitiu repasses diretos da União a estados e municípios sem nenhuma necessidade de convênios ou planos de trabalho, sob o argumento de agilizar a execução e reduzir a burocracia.

A opacidade era tal que a medida que acabou provocando, mais tarde, um debate sobre transparência e controle, culminando na suspensão temporária pelo STF, em 2024 e, posteriormente, na imposição de regras mais rígidas por meio da Lei Complementar número 210/2024.

Em seu conjunto, estas medidas produziram um aumento exponencial do volume de recursos públicos controlado de forma fragmentada pelos parlamentares — e subtraído, portanto do planejamento da União. relatório do Lappi-UFRJ descreve que, entre 2014 e 2016, no governo Dilma, o total empenhado em emendas foi de R$ 21,79 bilhões, enquanto no governo Temer, o valor saltou para R$ 37,35 bilhões. Já na gestão Bolsonaro, o montante atingiu R$ 108,36 bilhões, consolidando as emendas como peça central da política orçamentária. Posteriormente, no governo Lula 3, até 2024, o volume chegou a R$ 80,19 bilhões, com autorização de mais R$ 50 bilhões para 2025.

Essa curva de crescimento não se deu da mesma forma entre os diferentes tipos de emenda. As individuais, por exemplo, tiveram aumentos sucessivos até dobrarem de peso entre Bolsonaro e Lula, enquanto as de bancada avançaram em ritmo acelerado a partir de 2016. As de comissão, por muito tempo coadjuvantes na definição do orçamento já que não são impositivas, tiveram uma explosão, com um crescimento de um crescimento de 2967,24% entre as gestões Bolsonaro e Lula.

O auge de todo esse processo foi o uso, entre 2020 e 2022, das chamadas emendas de relator (RP 9), núcleo do “orçamento secreto”, com poder discricionário de distribuição de verbas. Nesse último ano, elas foram declaradas inconstitucionais pelo STF, por falta de transparência e critérios específicos.

Na prática, o que antes era um recurso acessório e importante em termos de complementariedade de políticas públicas tornou-se um canal gigantesco de drenagem orçamentária. O Legislativo conquistou poder sem precedentes sobre os cofres públicos, em um movimento que reforça sua centralidade e impõe dilemas como a ausência de transparência, a emergência de um novo tipo de clientelismo e, sobretudo, a redefinição a governabilidade.

O orçamento brasileiro diante das experiências internacionais

Com o nítido cenário de crise permanente, resultante deste empoderamento do Legislativo, fica a questão: o Brasil, mais uma vez, adotou um modelo que poderia ser apelidado no jargão político como “jabuticaba”, por só existir aqui? Nesse aspecto, o relatório traz uma análise comparativa para situar o sistema brasileiro modificado a partir de 2015 em relação a outras experiências internacionais.

O estudo destaca que o constitucionalista britânico Philip Norton distinguiu três tipos de Legislativos: os que efetivamente fazem políticas (policy-making), os que apenas influenciam (policy-influencing) e os que pouco ou nada decidem, limitando-se a ratificar a vontade do Executivo. Em 2021, o cientista político alemão especialista em orçamento público Joachim Wehner aplicou essa tipologia ao campo orçamentário, mostrando que alguns parlamentos elaboram e substituem orçamentos inteiros, outros apenas os emendam, enquanto muitos simplesmente se limitam a carimbar as decisões do Executivo.

No Reino Unido, por exemplo, mesmo após a Revolução Gloriosa de 1688 o Parlamento nunca assumiu o papel de formulador de políticas públicas. A ascensão dos partidos no século XIX consolidou a primazia do Executivo, transformando o Legislativo num espaço mais de controle e ritual do que de criação. “O modelo inglês, conhecido como modelo de Westminster, enfatiza a supervisão ex post, mas com influência limitada na fase de aprovação e uma quase incapacidade de, na prática, usar poderes de emenda — pois isso seria equiparado a um voto de desconfiança em relação ao governo”, pontuam os pesquisadores.

Essa mesma lógica se reproduz em boa parte do continente europeu, onde a capacidade de intervenção parlamentar sobre os orçamentos é limitada, quase sempre subordinada ao equilíbrio macroeconômico e às prioridades do governo. Na França, o artigo 49.3 da Constituição permite que o Executivo imponha orçamentos sem votação, sob risco apenas de censura parlamentar. Graças a este instrumento, François Bayrou, então o quarto primeiro-ministro do atual mandato do presidente Emmanuel Macron, impôs, em fevereiro, o orçamento para 2025. Mesmo em países com maior abertura, como Portugal ou Bélgica, o peso das emendas é residual, e sua execução depende da correlação política de forças.

Já na África, conforme a pesquisa, observa-se uma diversidade maior. O Quênia, por exemplo, fortaleceu seu Legislativo após a Constituição de 2010. O ciclo orçamentário é iniciado com a formulação do orçamento pelo Executivo, que estabelece uma proposta formal, o Budget Policy Statement (BPS). O Parlamento, por meio de seu Comitê de Orçamento e Assuntos Fiscais, analisa o texto e pode propor emendas, com alocações dentro de certos limites legais. Além disso há audiências públicas para coletar contribuições da sociedade civil. Ainda assim, a execução do orçamento aprovado fica a cargo do Executivo, que está sujeito à fiscalização parlamentar.

Zâmbia e Gana criaram fundos de desenvolvimento distrital, que territorializam recursos públicos, o que também acabou gerando tensões locais. Os ganeses contam com o Fundo Comum das Assembleias Distritais [District Assemblies Common Fund (DACF)], que destina um mínimo de 5% das receitas nacionais para transferências diretas aos distritos. Mas a destinação é feita por um administrador nomeado pelo presidente da República, com aprovação do Parlamento. “O mecanismo oficial de alocação de recursos destoa do Brasil pois não há controle direto das emendas por parte dos parlamentares, visto que o dinheiro vai diretamente para os distritos, ao invés de ser alocado pelos deputados. Este modelo, assim como o de Zâmbia, é interessante na medida em que a territorialização e descentralização orçamentária não é determinada diretamente por lógicas personalistas e eleitorais”, aponta o estudo.

Na América Latina, o que vale como regra geral também é a centralização no Executivo, com algumas variações importantes conforme o país. No México e no Chile, os parlamentos podem emendar orçamentos, mas a execução segue sob controle quase exclusivo do governo. O Executivo chileno tem a prerrogativa de apresentar a proposta orçamentária, e o Congresso pode revisá-la, mas as emendas legislativas estão sujeitas a uma análise técnica rigorosa e, caso afetem o montante global do gasto, alterem a estrutura de financiamento ou infrinjam a política fiscal, podem ser rejeitadas pelo governo.

Argentina e Colômbia mantêm mecanismos de revisão — entretanto, com forte limitação técnica e legal. O Uruguai destaca-se pela transparência, com um sistema político unitário baseado no planejamento de um orçamento plurianual de cinco anos, respaldado pela atuação do Tribunal de Contas e pela participação cidadã por meio de portal aberto de orçamento. O controle é essencialmente técnico e posterior, sem atuação política durante o processo, aproximando o modelo uruguaio do chileno quando se fala do poder do governo.

Disfuncionalidade e democracia

A análise comparativa mostra a singular realidade brasileira após 2015. Se por um lado territorializa mais os recursos, o que em certo sentido poderia ser visto como um fator positivo ao enxergar de uma outra forma a realidade local, por outro fragmenta a execução de políticas públicas, reforça a lógica distributiva e clientelista e impõe novos desafios à coordenação das políticas públicas.

“O Brasil, portanto, é um caso-limite, um ponto extremo no qual o Legislativo concentra poder orçamentário em escala inédita entre democracias, tensionando os próprios fundamentos republicanos do regime”, concluem os pesquisadores.

Se o modelo anterior era considerado problemático por muitos, em função de concentrar muito poder nas mãos do Executivo, o que o substituiu torna o sistema ainda mais errático, por distorcer a própria noção da atividade política e parlamentar. Com um montante significativo de recursos em mãos, deputados e senadores podem entregar obras e serviços localmente, em articulações com prefeituras e organizações da sociedade civil reais ou existentes apenas no papel, para assegurar suas próprias reeleições e também a eleição de políticos aliados em seus territórios, em cargos distintos.

No Parlamento, suas atuações tendem a se desvincular ainda mais da responsabilização em temas nacionais, com um possível reforço de uma tendência à espetacularização e exposição em mídias sociais que garante visibilidade para alçar voos maiores, relegando questões próprias do debate nacional a um segundo plano, já que o sucesso eleitoral estaria garantido por conta da execução de emendas.

Mais do que uma questão meramente política, as emendas e o poder hiperbólico do Congresso Nacional remetem a que modelo de democracia queremos. E de que forma o povo vai participar dele.

Ultradireita, por Jorge Alemán

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Jorge Alemán – A Terra é Redonda – 18/09/2025

Prólogo do autor ao livro recém-lançado

“Na escuridão mais densa, é fácil apelar para as mandíbulas de um leão e dizer: “Eu fiz meu trabalho”. Mas acelerar a ferida, provocar o fim inevitável, não nos isenta do cuidado de criar nossa alma.  Antes do limiar final, é aconselhável parar o impulso e, com atenção, sentir as mandíbulas cavarem em nós e a ferida se tornar leve” (Chantal Maillard).

1.

Escrever sobre a extrema direita não é simplesmente um exercício intelectual. É uma necessidade política. As páginas que compõem este livro são o produto de uma insistência: uma ânsia de entender os mecanismos pelos quais o neoliberalismo e sua lógica de fragmentação deram origem a uma nova ordem pós-democrática. Não é um retorno ao passado, mas uma mutação na qual a extrema direita não é mais apresentada como uma anomalia ou uma regressão, mas como a saída do regime niilista do capitalismo tardio.

Minha preocupação com a irrupção da extrema direita no Ocidente remonta a vários anos. De fato, foi Jacques Lacan o primeiro que, graças às propriedades e condições que atribuiu ao discurso capitalista, me permitiu vislumbrar a deriva neofascista do imperialismo. Se as listo aqui, é porque talvez elas também possam ajudar alguns de meus leitores a entender esse novo fenômeno político.

As suas observações são hoje, de fato, mais pertinentes do que nunca, pois entre elas estão certos temas que poderíamos facilmente reconhecer no neoliberalismo contemporâneo. Um movimento circular que não é suscetível, em princípio, de ser interrompido por uma vontade histórico-política; a destruição da experiência da verdade e dos laços sociais; as condições para um individualismo de massa governado pelo prazer mortal; um funcionamento sem repressão apoiado em uma lógica de rejeição psicótica que se expande na esfera social.

Foram essas questões que me possibilitaram estabelecer uma conexão estrutural entre o discurso capitalista e o niilismo da tecnologia, um elo que hoje, quando olhamos para Donald Trump e sua proximidade com os tecnoligarcas, se torna cada vez mais claro para nós.

2.

As primeiras reflexões que compõem este livro nos permitem situar o problema em seu contexto atual. Nelas, proponho como a política contemporânea não pode mais ser pensada sem a presença de um excesso destrutivo que atravessa discursos e práticas coletivas. A extrema direita usou a raiva e o ressentimento como essa força dirigida contra tudo aquilo que o neoliberalismo tornou precário. Portanto, podemos dizer que opera sob a lógica da devastação.

Enquanto o fascismo histórico foi sustentado pela ideia de uma ordem total, o pós-fascismo contemporâneo funciona dentro da anarquia do mercado, aproveitando suas ruínas para estabelecer formas de governo baseadas na administração do ódio e da exclusão. Não é uma ditadura clássica, mas uma governabilidade onde o sujeito se submete voluntariamente, guiado por discursos identitários e pelo apelo permanente à ameaça externa.

Na segunda metade do livro, coleciono três de minhas palestras públicas, proferidas nos últimos anos, sobre três tópicos que acredito estarem intimamente ligados aos problemas delineados na primeira parte: a relação do indivíduo com a lei, o monoteísmo e a inteligência artificial.

Se em outros momentos históricos o sintoma operava como um ponto de tensão entre desejo e lei, hoje o sintoma social tornou-se parte do regime dominante. A extrema direita, longe de tentar resolver a agitação, a administra, amplifica e a transforma em uma máquina de mobilização política. Aqui fica claro que o neoliberalismo não oferece uma promessa de felicidade, mas uma administração da miséria na qual todos devem encontrar seu próprio culpado e desfrutar do exercício contínuo do sadismo.

Nesse ponto, a leitura de Franz Kafka, que é a espinha dorsal da primeira intervenção, torna-se inevitável. Se em sua obra encontramos a imagem de um poder opaco, inacessível, que submete o sujeito a uma lei indecifrável, hoje nos deparamos com uma versão ainda mais perversa: uma lógica em que o sujeito não é mais apenas confrontado por um tribunal inalcançável, mas ele próprio foi absorvido pela maquinaria, devorado por um sistema que o torna responsável por sua própria miséria. Como em O Processo, não é mais uma questão de buscar justiça, mas de aceitar a condenação como parte da ordem das coisas.

Por outro lado, na segunda dissertação, falo de como o monoteísmo, com sua herança do absoluto, nos ensinou a pensar a verdade em termos de um fundamento último, de uma lei que, embora inacessível, garantia uma ordem simbólica. No entanto, na atual era neoliberal, essa garantia desapareceu.

Não é que tenha havido uma secularização completa, mas que o mercado tomou o lugar do sagrado, gerando um regime de crença baseado na acumulação infinita e na promessa de satisfação total. A extrema direita tem sabido tirar proveito dessa questão, reativando a inclinação monoteísta sob novas formas de identidade fechada, onde a exclusão do outro se torna o novo ritual de pertencimento.

Soma-se a tudo isso o surgimento da inteligência artificial, que é o assunto da minha terceira palestra. Se o capitalismo encontrou na digitalização uma nova fronteira de exploração, a inteligência artificial representa o ponto em que a automação do desejo se torna possível. Resta saber, como Jacques Lacan argumentou em Roma, qual será sua versão sintomática.

Este livro não é apenas uma análise, mas um aviso. A extrema direita é um sintoma do fracasso das democracias neoliberais e da incapacidade de construir um horizonte alternativo. Mas não basta denunciá-los: é preciso pensar em como sair desse tempo, como sustentar um desejo que não seja capturado pela lógica do gozo mortal.

Franz Kafka nos ensinou que o julgamento nunca é final, que a culpa pode ser uma construção arbitrária. A questão é se ainda é possível pensar em uma política que não seja governada pela lógica da culpa e da punição, mas pela abertura ao que não pode ser programado, ao que resiste à captura total da IA, do mercado e da identidade. Essa é a aposta destas páginas.

Jorge Alemán é psicanalista e escritor. Autor, entre outros livros, de Capitalismo: crimen perfecto o emancipación (Ned Ediciones).

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

 

Mutações do financismo na era digital, por Paulo Kliass

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Com inovações tecnológicas, fintechs abalam a hegemonia dos bancos tradicionais. Mas comungam da mesma essência: relações incestuosas entre o privado e o público. Tanto que BTG tem grande interlocução com Haddad e ex-presidente do BC ganhou alto cargo no Nubank

Paulo Kliass – OUTRAS PALAVRAS – 23/09/2025

Os impactos provocados pelo desenvolvimento tecnológico sempre impuseram transformações efetivas na organização das forças produtivas. Os novos patamares alcançados na capacidade de produzir bens e serviços provocam mudanças na forma de se produzir e na definição daquilo que passa a ser manufaturado. Esse processo implica em alteração também nas formas de organização das empresas e em sua composição societária. Tais inovações acompanham a evolução da humanidade muito antes do advento do próprio capitalismo. Assim foi com a introdução de técnicas de manufatura em substituição ao artesanato. O mesmo ocorreu com a chegada da mecanização nos mais variados processos vinculados à agricultura.

A evolução na obtenção de novas fontes de energia, por outro lado, também contribuiu sobremaneira para mudanças estruturais na forma de produção. A máquina a vapor e depois a energia elétrica revolucionaram os processos produtivos. A capacidade de navegação para atravessar oceanos, a inovação das ferrovias, o transporte por veículos e depois a aviação proporcionaram transformações profundas na circulação e nas trocas mercantis. Foram criadas novas formas de capital e de mercadorias, bem como surgiram ramos, setores e empresas até então inexistentes.

O ingresso no terceiro milênio teve o significado de um profundo salto nesse longo processo de transformações. A era digital e a economia do conhecimento estão promovendo alterações de qualidade substancial em nossa forma de organização social e econômica. Dentre as inúmeras mutações observadas, salta aos olhos o que se verifica no âmbito do sistema financeiro. No que se refere à dimensão monetária, por exemplo, parece ter sido enterrado de uma vez por todas o uso do papel moeda e das moedas metálicas como instrumentos de troca. Em um primeiro momento, o avanço nos processos da financeirização e da internacionalização colocou em destaque o uso crescente dos cartões de crédito nas operações de compra e venda de mercadorias e de serviços.

Inovação tecnológica e mudança no sistema financeiro

No entanto, uma quase-revolução surge na sequência com a generalização do uso dos chamados dispositivos móveis. Nem mesmo a tendência anterior foi respeitada: o dinheiro de plástico representado pelos cartões foi sendo substituído em larga escala por meros impulsos digitais, quando os valores monetários são então transferidos de um titular de recursos a outro por simples comandos nos instrumentos utilizados. A tendência à digitalização completa de nossa vida social passou a incluir também a concentração dos serviços bancários e financeiros nos computadores pessoais ou nos aparelhos de telefonia celular.

A ideia de instituições bancárias como um sistema amplo e complexo, ostentando uma extensa rede de agências para oferecer todo o tipo de serviços aos clientes e correntistas, passa a ser, com o passar do tempo, um conceito tão desnecessário quanto ultrapassado. Como dizia uma campanha de marketing pouco tempo atrás, “você passa a ter o seu banco ao alcance de suas mãos”. A grande maioria dos usuários do sistema quase não se dirige mais fisicamente a uma unidade de atendimento presencial de seu banco. Tudo se resolve digitalmente por meio de comandos no aparelho celular ou no computador pessoal.

Essa transformação radical no modelo de uso de tais serviços levou a uma mudança igualmente profunda nas empresas do setor. As chamadas “fintech” e os bancos digitais passaram a competir com os bancos tradicionais, oferecendo soluções mais ágeis, mais rápidas, menos burocráticas e com menores custos para os clientes. Esse processo de metamorfose do sistema bancário e financeiro continua em pleno movimento atualmente. Inovações tecnológicas específicas realizadas no Brasil, como o sistema de transferência e pagamento PIX, estão operando como catalisadores de tal processo de aceleração da obsolescência dos bancos que operaram no modelo até então vigente.

Oligopólio financeiro mudando de perfil

O sistema bancário brasileiro tem suas origens na constituição de alguns poucos conglomerados de origem nacional, com forte influência de patrimônio de famílias tradicionais. O poder econômico derivado da concentração bancária e financeira proporcionou o crescimento do poder político de tais grupos. Alguns exemplos podem ser listados para ilustrar um determinado período da história brasileira, onde a associação do núcleo familiar e o respectivo banco e sua origem de atuação regional eram muito evidentes. Peguem-se os seguintes casos: i) família Magalhães Pinto (Banco Nacional-MG); ii) família Safra (Banco Safra-SP); iii) família Aguiar (Banco Bradesco-SP); iv) família Setúbal (Banco Itaú-SP); v) família Calmon de Sá (Banco Econômico-BA); dentre tantos outros casos.

Esse oligopólio bancário privado sofreu alterações em sua composição interna ao longo das últimas décadas, mas sempre marcou a sua existência por uma convivência relativamente harmoniosa com a estrutura existente dos bancos estatais. Até a década de 1990, havia um importante sistema de bancos pertencentes a cada uma das 27 unidades subnacionais, os bancos estaduais. Esse conjunto foi privatizado e a rede de bancos públicos se restringiu aos bancos comerciais federais — Banco do Brasil (BB), Caixa Econômica Federal (CEF), Banco do Nordeste e Banco da Amazônia. Além disso, havia o Banco Nacional da Habitação (BNH — que foi extinto em 1986 e incorporado à CEF) e permanece bem atuante o BNDES, como banco de investimento.

A longa tradição sempre foi marcada pela presença dos dois grandes bancos federais (BB e CEF) se revezando com alguns dos grandes conglomerados privados na disputa pela posição dos cinco maiores gigantes do sistema bancário e financeiro. O grupo multinacional de origem espanhola Santander penetrou no mercado brasileiro a partir da privatização do banco estadual de São Paulo, o Banespa. O desenho do oligopólio da banca privada foi se redefinindo por meio de aquisições e fusões, com a presença sempre marcante de Itaú/Unibanco e do Bradesco.

No entanto, o fenômeno da digitalização e das novas empresas de natureza bancária e financeira promovem uma reviravolta no sistema. Um levantamento realizado pelo jornal Valor Econômico aponta para o ingresso do Banco BTG e do Nubank nesse seleto grupo das maiores empresas bancárias e financeiras atuando no Brasil. De acordo com o estudo, o banco presidido por André Esteves ultrapassou, segundo dados do segundo trimestre de 2025, o BB e o Bradesco em termos de valor de seu ativo patrimonial a preços de mercado. Assim, o BTG teria se tornado o terceiro maior banco da América Latina, atrás somente do Nubank e do Itaú.

Empresas financeiras e bancos digitais na liderança

Esta informação, por outro lado, coloca em questão a presença de empresas no setor financeiro que não são consideradas juridicamente bancos pela nossa legislação. Esse é o caso do Nubank brasileiro, por exemplo. O Banco Central (BC) não o classifica como “banco”, apesar de que sua atuação seja muito similar à concorrência. Não obstante, o Nubank é classificado, segundo dados de setembro de 2025, como a segunda maior empresa de todos os ramos e setores operando no Brasil, com seu valor de mercado apenas superado pelo da Petrobrás. A própria empresa se apresenta como “uma das maiores plataformas de serviços financeiros digitais do mundo”.

É evidente que existem diferentes critérios para se avaliar o peso e a importância das empresas, em especial os bancos. Considerar apenas o valor de mercado delas, segundo a cotação das ações nas bolsas de valores, talvez não seja o mais indicado. Há outras variáveis relevantes que podem ser introduzidas na análise, a exemplo do número de clientes e correntistas, do valor patrimonial contabilmente apurado, do lucro realizado no exercício, dentre tantas outras possibilidades. No entanto, o que não pode ser deixado de lado é a confirmação da tendência de uma importância crescente a ser exercida pelas novas organizações empresariais.

Assim, com certeza não é coincidência o fato de que o ministro da Fazenda quase sempre escolhe os eventos organizados por grupos como o BTG ou a XP para realizar suas palestras direcionadas ao mercado. Ou ainda que o Nubank tenha trazido para exercer um estratégico cargo na direção do grupo ninguém mais nem menos do que o ex-presidente do BC, Roberto Campos Neto. Quer seja no passado do talão de cheque e da fila na agência física, quer seja no mundo atual das transações digitais, as instituições financeiras jamais deixaram de exercer seu poder efetivo junto aos tomadores de decisão no interior do aparelho de Estado.

As relações incestuosas entre o capital privado e o setor público não se alteraram em sua essência. Mudam apenas as faces de seus representantes, os sobrenomes dos dirigentes e as avenidas em que se localizam suas sedes suntuosas. Mas a influência do capital financeiro só aumenta com os novos tempos. A ponto de que o BTG construiu um teminal próprio no aeroporto internacional de Guarulhos (SP), justamente aquele que registra o maior movimento de passageiros em todo o país. Questão de oferecer comodidade, luxo e serviços exclusivos para sua seleta clientela, que sempre exige o melhor para satisfazer seus desejos e necessidades.

 

Inquietações

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O mundo contemporâneo nos traz grandes desafios e oportunidades, vivemos numa sociedade marcada por grandes desenvolvimentos tecnológicos, máquinas e novos equipamentos trouxeram grandes avanços para a sociedade global, doenças agressivas que foram responsáveis por milhões de mortes de indivíduos foram eliminadas. O sistema econômico passou por novos modelos de negócios, o marketing ganhou relevância e os seres humanos, para sobreviverem, passaram a desenvolver novas habilidades emocionais, construírem novos comportamentos e valores, estimulando novas formas de inovação, uma verdadeira revolução que impactou sobre as pessoas, os relacionamentos, as famílias, os valores e as necessidades humanas.

Os modelos econômicos e produtivos anteriores transformaram os comportamentos humanos, o estudo e a busca crescente pelos conhecimentos  abriam novos horizontes para a comunidade, a obtenção de um curso superior consolidava novas habilidades profissionais, as religiões ganhavam adeptos e os cultos eram espaços de fortalecimento dos laços sociais e comunitários, as famílias cresciam e se consolidavam como um ator central na sociedade, todos buscavam estabilidade econômica, emocional e espiritual, esperando uma aposentadoria digna e decente que pudessem consolidar uma vida de trabalho.

Nesta sociedade em constante transformação, percebemos grandes modificações, as gerações passaram por alterações crescentes de valores, novos comportamentos e novas motivações, anteriormente as pessoas por volta dos quarenta anos falavam em casa própria, estabilidade, relacionamentos sólidos e duradouros, buscando casamentos e, posteriormente os filhos, buscando uma formação e constituição familiar. Na atualidade, para pessoas da mesma idade, percebemos novos comportamentos e novas conversas, agora, estão falando sobre boletos, faturas atrasadas, dívidas acumuladas, qualificação profissional constante, valor do aluguel, ansiedades, depressão e uma sensação de que a vida está sempre atrasada. O cotidiano do indivíduo da meia idade passou por grandes alterações, essa geração percebe na pele que estão envelhecendo rapidamente, sem estabilidade, sem segurança profissional, aposentadoria precária, endividamento elevado ou, neste cenário preocupante, buscando se reinventar constantemente, para descobrir ou redescobrir o que é viver bem.

Pesquisas feitas pela revista Fortune mostram que essa geração ganha, em média, menos que seus pais recebiam em nossas idades, além do salário menor, percebemos que os custos de vida cresceram, o aluguel disparou sensivelmente, a previdência social nos parece inalcançável e o emprego, cada vez mais instável e incerto, marcados por fortes instabilidades, desta forma, é impossível que os indivíduos construam um planejamento futuro, com isso, percebemos o incremento das ansiedades, os medos e os ressentimentos.

Essa geração, chamada de millenials, está vivendo a crise da meia idade, uma sociedade centrada na volatilidade, no individualismo, no imediatismo, a cultura do sucesso se transformou em uma verdadeira tirania, convivendo constantemente com a exaustão física, exploração profissional, salários degradados, benefícios sendo reduzidos, aumento do burnout, reinvenções profissionais forçadas, dívidas acumuladas e o peso de não ter seguido o roteiro prometido pelo mercado, promessas e mais promessas, quando param para perceber, o tempo passou…

Neste ambiente, percebemos um choque constante entre as promessas do capitalismo contemporâneo e o que o mundo se tornou, um ambiente mais incerto e competitivo, onde foram prometidos estabilidade, ascensão profissional e prosperidade econômica e, ao invés disso, percebemos a perpetuação da instabilidade, da precariedade e do crescimento constante e sistemático das cobranças cotidianas. Neste cenário de degradação e instabilidades, percebemos que estamos envelhecendo, sem perspectivas, sem previdência e sem esperanças de dias melhores.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel de Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

 

 

Dívida, outra forma de explorar uberizados, por Salvagni, Festi e Valente

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Oprimidos por baixa remuneração, eles pagam muito pela compra, aluguel e manutenção dos veículos. Depois, corporações apresentam-se como “salvadoras”, concedendo empréstimos e cobrando juros, em nova modalidade de “escravidão por dívidas”

Julice Salvagni, Ricardo Festi e Jonas Valente – OUTRAS PALAVRAS – 23/09/2025

A financeirização da economia, marca do neoliberalismo no século XXI, atualizou os mecanismos de dominação colonial através das plataformas digitais. A lógica do capital financeiro, materializada na especulação, dataficação, rentismo e hiperexploração é o vetor desse processo. Isso passa a redesenhar o mapa global da exploração com o advento das plataformas digitais, dando ao capitalismo um novo fôlego até outra crise estrutural. Essas corporações transcendem fronteiras nacionais e atuam como agentes de um neocolonialismo digital, extraindo valor e mão de obra excedente de países periféricos de forma eficiente e desterritorializada.

O relatório do Fairwork Brasil 2025, evidencia a questão do endividamento dos trabalhadores de plataformas digitais no Brasil como um problema crescente e multifacetado. A pesquisa traz uma seção específica sobre o tema intitulado “Neocolonizadores digitais: plataformas pagam pouco e ainda lucram com empréstimos aos trabalhadores”, em que a lógica do endividamento é detalhada. A síntese sobre o endividamento pode ser organizada, basicamente, tendo por base dois principais pontos: o primeiro compõe as causas que levam ao endividamento e, o segundo, que coloca as plataformas como agentes financeiros.

No que diz respeito às causas do endividamento, a combinação de baixos salários com os altos custos de manutenção dos instrumentos de trabalho (veículo, combustível, pacotes de dados, etc.) cria um cenário onde os ganhos muitas vezes não cobrem as despesas. Isso força os trabalhadores a contraírem dívidas para conseguirem continuar trabalhando. Uma pesquisa citada no relatório aponta que cerca de 92% dos motoristas de plataformas digitais no Brasil estão endividados1.

A falta de cobertura em casos de acidentes ou problemas de saúde, que são comuns devido às jornadas exaustivas, contribui para o acúmulo de dívidas, pois os trabalhadores ficam impedidos de atuar e gerar renda. Ou seja, a ausência de proteção social ao trabalhador, embora seja um aspecto que passa na maior parte das vezes como despercebido, acaba sendo uma armadilha para quem trabalha nas plataformas. Isso porque elas simplesmente transferem todos os riscos da atividade para os trabalhadores.

Além disso, não só para o caso de acidentes, mas também para caso de multas ou manutenção com o veículo, são fontes de gastos que podem levar os trabalhadores a acumularem dívidas. Há ainda as situações de envolvimento direto com as empresas, como os casos de cancelamento de pedidos, extravio de produtos (mesmo por motivos de roubo) ou quando não conseguem localizar o cliente. Nestas todas, os trabalhadores costumam ser responsabilizados pelos custos do material que não foi entregue. Um trabalhador da Rappi relatou: “Quando o cliente cancelar um pedido em sua mão, ele já gera uma dívida para você”. Situações como esta são recorrentes nos relatos dos trabalhadores, sobretudo dando margem aos clientes que, porventura, querem agir de má fé, alegando que o produto não foi recebido, quando na verdade foi, por exemplo.

Outro aspecto central nas muitas camadas que envolvem a temática do endividamento é o amplo comércio de aluguel de carros, motos e bicicletas que se cria em torno e na relação direta com as plataformas. Frequentemente, essas locadoras são parceiras das plataformas, que autorizam o débito direto na conta do profissional. Isso faz com que os trabalhadores comecem o dia com um saldo negativo. Um motorista descreveu a situação: “sem ter trabalhado nada, já cheguei na segunda-feira para trabalhar endividado”.

No segundo ponto desta organização, está o papel das plataformas como agentes financeiros. O relatório do Fairwork 2025 revela que as empresas de plataforma têm atuado cada vez mais como provedoras financeiras, oferecendo empréstimos pré-aprovados diretamente aos trabalhadores através dos aplicativos. Plataformas como Uber (Banco Didio), 99 (com o serviço 99 Empresta), o iFood (com o iFood Pago) e Indrive (com a inDrive.Money) adotam essa prática.

Essa estratégia cria um ciclo vicioso: a plataforma paga pouco, gerando a necessidade de crédito e depois lucra com os juros dos empréstimos que ela mesma oferece. Um motorista da Uber relatou ter aceitado um empréstimo por desespero para pagar o que gastou com remédios para tratar doenças ocupacionais. Ou seja, a empresa cria o problema ao trabalhador, transfere a responsabilidade integralmente a ele que, na condição de não ter como pagar, acaba refém de um financiamento fornecido por essa mesma empresa. Ao final, a plataforma não só explora o trabalho dos sujeitos que dependem dela, como ainda ganha com juros do que ele foi obrigado a pagar por não ser responsável pelos custos da própria atividade.

Além de gerar lucro adicional, essa prática aumenta a probabilidade de o trabalhador permanecer vinculado à empresa para quitar a dívida. Tal contexto pode alimentar intimamente um ciclo de dependência do trabalhador à plataforma. Em suma, o relatório destaca que o endividamento não é uma consequência acidental, mas sim um elemento estrutural e estratégico do modelo de negócio das plataformas digitais no Brasil. Elas impõem condições precárias que levam ao endividamento e, em seguida, se posicionam como a “solução” financeira, lucrando duas vezes sobre a vulnerabilidade dos trabalhadores e aprofundando a sua dependência e exploração.

Vários autores têm destacado que o capital tem atuado não apenas por meio da exploração, mas também da espoliação e da expropriação do trabalho (Antunes, 2018). Harvey (2024) define esse atual contexto como “novo imperialismo”, já que é marcado crescentemente pela “acumulação por espoliação”, na qual o capital busca lucros por meio de práticas predatórias e não pela reprodução ampliada. Lazzarato (2010) evidencia que a política de dívidas constitui uma das características fundamentais da financeirização. Para ele, a sujeição e a servidão trabalham em conjunto para capturar o desejo e a força produtiva do social, exigindo uma nova abordagem para a ação política que vise a dessubjetivação. Nesse contexto, a financeirização configura-se como um mecanismo central para a plataformização do trabalho, operando como um modo de acumulação de riqueza das plataformas (Grohmann; Salvagni, 2023). Para os autores, esse mecanismo atua de forma articulada com o gerenciamento algorítmico e a dataficação, incluindo suas dimensões ideológicas da racionalidade neoliberal como uma etapa crucial nesse processo.

A exploração é o caso clássico da extração de mais valor no processo de trabalho. Trata-se, portanto, de uma forma de acumulação de capital por meio de uma relação no âmbito econômico. Em teoria, os trabalhadores são “livres” para oferecer a sua força de trabalho para o capital. A expropriação e a espoliação eram conceitos até então vinculados à formas não capitalistas de produção, como o feudalismo e o escravagismo. No entanto, no século XXI, tem-se visto cada vez mais a utilização pelo capital de recursos extra-econômicos, muitos no campo político e coercitivo, para impor seus regimes de trabalho e avançar na acumulação do capital.

A retirada de direitos protetivos do trabalho e de cidadania é um exemplo disso, constituindo-se fenômenos sociais como é o caso do precariado (assalariados que recebem rendas abaixo do necessário para sua reprodução social e está destituído ou limitado de seus direitos como cidadãos). Antigamente, a dívida como recurso de espoliação e expropriação da renda de um trabalhador esteve vinculada às atividades do meio rural. O lavrador acabava assumindo uma dívida com o fazendeiro (por conta do aluguel da moradia, da dívida na mercearia da fazenda, da viagem gasta pela migração etc.) e, apesar de não ser um escravo, era impedido de fugir por meio de capatazes. O próprio isolamento das propriedades rurais, longe dos grandes centros urbanos, dificultava qualquer tentativa de se libertar desta dívida injusta. No caso da dívida moderna, como é o caso da verificada entre entregadores de aplicativos, os mecanismos de dependência e coerção são mais sofisticados. As condições de vida foram erodidas ao longo dos anos e direitos protetivos foram retirados (tais como o poder de fiscalização e o reconhecimento do vínculo de emprego), deixando-se ainda mais vulneráveis frente ao poder do capital. Dessa forma, esses trabalhadores acabam se subjugando à condição das dívidas, sobretudo porque o contexto não lhes apresenta outra alternativa.

Esse contexto demonstra que a alegada autonomia no trabalho plataformizado é ilusória. A transferência dos riscos empresariais para o trabalhador resulta em uma posição de subserviência. A opção por empréstimos não decorre de uma escolha livre, mas de uma realidade marcada pelo endividamento e pela escassez de opções. As experiências narradas evidenciam as nuances de uma significativa reestruturação do mundo do trabalho, impulsionada pela tecnologia. O trabalho nas plataformas digitais, portanto, aprofunda a exploração e pode acabar estabelecendo uma relação de dependência direta para com a empresa.

Referências

Antunes, R. (2018). O privilégio da servidão: O novo proletariado de serviços na era digital. Boitempo.

Grohmann, R., & Salvagni, J. (2023). Trabalho por plataformas digitais: do aprofundamento da precarização à busca por alternativas democráticas. Edições Sesc SP.

Harvey, D. (2004). O “novo” imperialismo: acumulação por espoliação. Socialist register, 40(1), 95-126.

Lazzarato, M. (2010). Sujeição e servidão no capitalismo contemporâneo. Cadernos de subjetividade, (12), 168-179.

Sobre os autores:

Julice Salvagni – Professora da Escola de Administração e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Ricardo Festi – Professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília e pesquisador convidado do Institut de recherches interdisciplinar en sciences sociales (Irisso) da Université Paris Dauphine.

Jonas Chagas Lucio Valente – Pesquisador no Oxford Internet Institute.

1 Zem, R. (2025) Os motoristas de aplicativos trabalham até 60 horas semanais, ganham menos de R$ 4 mil e acumulam dívidas; diz pesquisa. Em G1, 26/07/2025. Pode ser encontrado em https://g1.globo.com/trabalho-e-carreira/noticia/2025/07/26/motoristas-de-app-faturamento-trabalho-horas-pesquisa.ghtml.

 

A reforma administrativa, por Sérgio Botton Barcellos

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Sérgio Botton Barcellos – A Terra é Redonda – 06/09/2025

A reforma administrativa não é apenas uma questão de gestão tecnocrática ou de ajuste fiscal, mas um projeto que toca diretamente na estrutura do Estado brasileiro e o modo como ele pode garantir direitos sociais

O debate sobre a reforma administrativa (PEC 32/2020) que estava em voga, em um período histórico mais recente, entre os anos de 2019 e 2022, voltou com força em 2025, por meio de um grupo de trabalho (GT) no Congresso que avança com baixa clareza, diálogo público restrito e indefinições sobre vínculos, estabilidade e carreiras.

Conforme noticiado amplamente na mídia no dia 25 de agosto é anunciado que a reforma administrativa entra na pauta prioritária da Câmara, afirma Hugo Motta, presidente da Câmara dos Deputados. Ou seja, é reforçado o status central dessa agenda política no Congresso e sinaliza um avanço pressionado, mesmo diante das diversas críticas na atual conjuntura vivida no Brasil, o que agrava os riscos de avanços legislativos de caráter austero e tecnobutrocrático, apressados e feitos sem a discussão apropriada e igualitária com todos os atores envolvidos.

Não nos enganemos, sobretudo a reforma administrativa, sob a ótica do mercado e da iniciativa privada, representa um esforço para reconfigurar o Estado brasileiro em função de interesses econômicos dominantes. Digamos que é uma entrega que determinados setores da elite vinculados ao setor empresarial e financeiro estão pedindo ao governo e ao congresso.

A proposta de reduzir a presença do Estado como executor direto de políticas sociais e aumentar a sua função reguladora mínima está em consonância com a lógica neoliberal consolidada desde os anos 1990. Bresser-Pereira, ao discutir a Reforma Gerencial do Estado, já apontava que a noção de eficiência e a ideia de administração pública orientada por resultados se tornaram centrais em um momento de ajuste estrutural e de pressão de organismos internacionais como Banco Mundial (BM), Fundo Monetário Internacional (FMI) etc.

Essa lógica de eficiência, no entanto, se traduziu em redução da estrutura estatal, flexibilização de vínculos de trabalho e abertura de espaços de mercado para empresas privadas em setores tradicionalmente públicos como a educação, saúde, ambiente etc.

David Harvey, em sua análise sobre o neoliberalismo destacou que esse modelo não se limita a um conjunto de medidas econômicas, mas corresponde a um projeto político de redistribuição de poder e de riqueza em favor de elites políticas e econômicas. A reforma administrativa brasileira está sendo construída porque, ao flexibilizar – o quê na verdade é precarizar – a estabilidade e as formas de acesso ao serviço público, amplia as condições de captura do Estado por interesses privados e reduz a autonomia técnica de servidores(as). Esse movimento tem como fim, apesar dos discursos e malabarismos semânticos, o enfraquecimento da capacidade estatal de regular mercados, manter e fiscalizar atividades estratégicas e garantir direitos universais a sociedade.

Em Souza (2017) há uma dimensão sociológica a ser considerada nessa discussão que é o pacto das elites brasileiras em torno da manutenção de privilégios e da reprodução de desigualdades históricas e estruturais. Supostas reformas como a administrativa não atacam os privilégios localizados no topo do funcionalismo e nos mecanismos de reprodução das classes dominantes, nem mesmo os(as) servidores(as) que não cumprem suas responsabilidades e obrigações funcionais.

Se concentram na base, onde estão a maioria dos(as) servidores(as) que garantem direitos sociais fundamentais. Assim, a narrativa da modernização e do combate a supostos privilégios se revela, na prática, um mecanismo de precarização do serviço público e de transferência de funções para o setor privado, reforçando a desigualdade e aprofundando a dependência do Estado em relação a interesses empresariais e alheios ao conjunto da sociedade que mais necessita de serviços públicos.

O mercado e a iniciativa privada objetivam na reforma administrativa uma oportunidade de expandir a terceirização e as parcerias público-privadas, capturar fatias do orçamento público e obter maior influência sobre políticas e regulações. A estabilidade e os concursos, que funcionam como barreiras republicanas contra o clientelismo, são mais enfraquecidos, abrindo caminho para contratações temporárias para as carreiras que não são consideradas típicas de Estado.

Isso tornará nomeações e seleções no serviço público tendencialmente mais suscetíveis a pressões políticas e econômicas. Nesse cenário, o Estado se torna menos capaz de coordenar políticas de longo prazo, mais vulnerável a ciclos eleitorais, interesses de famílias tradicionais na política para nomeação em cargos e a interesses privados nacionais e internacionais de curto prazo, e mais dependente de soluções privadas que, longe de serem universais, são orientadas pela lógica da lucratividade, eficiência alheia aos interesses da maioria da sociedade e a manutenção da desigualdade estrutural.

Ou seja, a reforma administrativa que está em pauta no Congresso não é algo apenas de interesse do funcionalismo público, mas da sociedade brasileira no que tange a acesso e garantia a direitos sociais básicos e a construção de direitos universais.

Notas técnicas de sindicatos, organizações e movimentos sociais

Além disso, de imediato o que se percebe é que a justificativa para fazer a reforma o ponto de vista fiscal, a promessa de “economia estrutural”, que está alicerçado no projeto do governo Lula 3 que é o arcabouço fiscal, carece de base consistente: a Nota Técnica n° 69/2021 da Consultoria de Orçamento do Senado apontou que os efeitos da PEC 32 eram, na melhor das hipóteses, incertos e limitados, e sugeriu medidas alternativas mais eficazes para qualificar os gastos com pessoal.

A ANFIP reforçou à crítica, alertando que a proposta poderia agravar o panorama fiscal ao desorganizar capacidades essenciais de arrecadação, fiscalização e planejamento.

As análises do DIEESE apontam que a reforma desloca o foco da gestão pública consolidada para a precarização dos vínculos e o enfraquecimento de garantias republicanas. A Nota Técnica número 254/2021 demonstrou que a combinação de novas contratações, instabilidade e discricionariedade em carreiras compromete acesso e qualidade dos serviços, sobretudo nas áreas de saúde, educação e assistência.

Dois artigos recentes aprofundam essa crítica. Primeiro, o texto “A quem interessa a Reforma Administrativa?” expõe que o discurso de que o serviço público seria “inchado” e ineficiente é um mito que, repetido insistentemente, legitima cortes e flexibilizações, embora os desperdícios de fato estejam em segmentos mais privilegiados e não na base do funcionalismo. No outro artigo “Os riscos da Reforma Administrativa” ainda há o alerta “A reforma de que o Brasil precisa é aquela que serve à maioria da população, especialmente às pessoas que dependem de bens e serviços públicos de qualidade. Em outras palavras, o Brasil necessita de um Estado de bem-estar social, uma economia verde e digital e uma democracia resiliente.”

Um outro vetor de preocupação está no uso da remuneração por produtividade como solução simplista. Em outra análise alerta-se que, ao tentar medir produtividade em serviços públicos complexos, incentiva-se o “jogo de indicadores”, priorizam-se tarefas mensuráveis em detrimento do essencial, corroem-se as cooperações e fomentam-se práticas de curto prazo. Essas medidas tendem a deslocar prioridades públicas, aprofundar desigualdades territoriais e prejudicar a eficácia do serviço público.

Ou seja, somando-se esses elementos, a contradição se torna clara: a proposta de reforma reflete um ideal de eficiência e economia, mas destrói capacidades estatais, sem enfrentar privilégios factuais, históricos e estruturais, oferecendo na prática um Estado desmantelado e menos capaz de coordenar políticas de longo prazo em um momento em que o país carece de planejamento para enfrentar crises geopolíticas, sociais, econômicas e climáticas.

Isto é, não faz sentido para a maioria da sociedade brasileira uma reforma administrativa que não seja no sentido de fortalecer o Estado em suas diretrizes para promover práticas de gestão administrativa e de pessoas com foco na resolução de gargalos reais como políticas públicas orientadas por dados e indicadores sociais públicos, não por interesses de deputados(as) e senadores(as) via emendas, por investimento em tecnologia, nos processos, na execução orçamentária, coordenação e na gestão com base na soberania popular.

O governo Lula 3 diante da Reforma administrativa

A posição do governo Lula 3 diante da reforma administrativa é marcada por ambiguidade e contradições, o que pode ser visto na recente entrevista concedida por Esther Dweck, ministra do MGI. Desde a transição em 2023, o governo adotou um discurso de que não retomaria a PEC 32 apresentada no governo anterior, considerada uma proposta abertamente hostil ao serviço público.

O discurso oficial afirmava que qualquer debate sobre modernização da gestão pública deveria ser construído com diálogo e com foco na valorização do servidor. No entanto, com o avanço das negociações no Congresso em 2025, o Planalto não se colocou frontalmente contra a retomada da reforma e, em diferentes momentos, ministros da área econômica e da Casa Civil sinalizaram disposição em negociar pontos com a base congressual.

Esse movimento revela uma tática para demonstrar compromisso com o projeto de governo que é o arcabouço fiscal e com a agenda de responsabilidade exigida pelo mercado, mas cria uma posição ambígua: de um lado, o governo nega a reforma nos termos originais da PEC 32, de outro aceita discuti-la para atender pressões políticas e fiscais.

Essa postura coloca em evidência a contradição entre a base social e a base política do governo. Os sindicatos, as centrais e os movimentos sociais que foram pilares históricos de apoio a Lula se manifestam de forma contundente contra a reforma, denunciando riscos de precarização do serviço público. Por outro lado, os partidos que compõem o centrão e setores empresariais, fundamentais para a carcomida governabilidade, pressionam pela aprovação de uma pauta de modernização do Estado e tratam a reforma administrativa como prioridade.

Essa tensão revela o dilema do governo que já está em modo campanha eleitoral: se assumir a defesa plena de sua base social pode enfrentar custos no Congresso, mas se ceder à pressão congressual corre o risco de se distanciar de sindicatos e movimentos.

O discurso oficial de modernização busca suavizar o debate, enfatizando termos como digitalização de processos, carreiras mais atrativas e racionalização administrativa. A ambivalência atual repete contradições já observadas em outras agendas do Lula 3, como na política ambiental, na questão agrária e na política fiscal, com a promessa de priorizar direitos sociais ao mesmo tempo em que se mantém um arcabouço fiscal restritivo que engessa o orçamento.

As consequências dessa postura podem ser múltiplas. Para os(as) servidores(as) públicos(as), o governo pode perder legitimidade relativa ao assumir posturas ambíguas e contraditórias ao não ter um projeto estratégico de país, inclusive para o serviço público, além do arcabouço fiscal.

Para a governabilidade, a concessão a pressões do centrão pode garantir vitórias momentâneas, tende a enfraquecer o capital político diante de sua base social tradicional. Para o nosso esboço de democracia, há o risco de que um governo eleito com a promessa de recompor o Estado, após o desmonte bolsonarista, acabe por entregar uma agenda que mantém e amplia a lógica neoliberal de austeridade e desmonte institucional.

Chama-se atenção que os aspectos que têm respaldo da sociedade para mudanças, como as assimetrias de remuneração entre os três poderes e a aposentadoria dos militares não são pautados por parte do discurso oficial do governo e muito menos na relatoria da PEC.

Bom, a ver os próximos desdobramentos das articulações do governo Lula 3 junto as bancadas do Congresso Nacional, com a Faria Lima e demais setores privados interessados na reforma administrativa.

As centrais sindicais

Um aspecto fundamental do atual debate até o momento pode ser a mobilização sindical. A oportunidade e o espaço estão aí para serem ocupados. Diferentes entidades têm se articulado debates e formas de barrar a reforma administrativa. O Fórum Nacional dos Servidores Públicos Federais (Fonasefe), a Conferência dos Trabalhadores no Serviço Público Federal (Condsef), o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES-SN), a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e a Federação Nacional dos Sindicatos de Trabalhadores em Saúde, Trabalho, Previdência e Assistência Social (Fenasps), entre outros, têm organizado agendas para discutir a proposta.

Além da mobilização de base, os sindicatos têm investido em pressão parlamentar. Centrais sindicais como a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) e a Intersindical têm promovido campanhas, a seu jeito e com suas limitações conjunturais e políticas, debatendo os mitos de que o Estado brasileiro estaria “inchado” ou que os servidores “ganham muito”. Dados sistematizados mostram que o número de servidores no Brasil é proporcionalmente menor que a média da OCDE e que a maioria das carreiras de base recebe salários abaixo da média das ocupações de nível superior.

O desafio de construir mobilizações de grande lastro, contudo, permanece no sentido de: (i) superar a fragmentação e as contradições internas entre categorias e entidades sindicais devido à proximidade ou distanciamento político e partidário com o governo; (ii) disputar a opinião pública contra o discurso de modernização e privilégios generalizados propagado pela mídia hegemônica; e (iii) enfrentar a pressão de setores privados que colocam a reforma como prioridade imediata no Congresso.

O que fazer?

Parece que a conjuntura impõe que precisamos nos mobilizar o quanto antes diante da reforma administrativa porque o processo legislativo relativo a essa proposta tende a ser rápido, marcado por negociações intensas no Congresso e com baixo nível de participação popular. A experiência recente com outras reformas estruturais, como a previdenciária em 2019 e a trabalhista em 2017, mostra que, quando a mobilização social ocorre apenas depois do avanço do texto, as possibilidades de barrar retrocessos ou de introduzir mudanças significativas e de interesse popular ficam muito reduzidas.

Fora que nos processos de votação nos plenários os textos são alterados e podem ser colocados “jabutis” passando por cima do acúmulo de discussões feitas anteriormente. Por isso da necessidade de constante articulação e vigilância popular junto ao Congresso antes que decisões de grande impacto nessa reforma sejam tomadas a portas fechadas.

A reforma administrativa não é apenas uma questão de gestão tecnocrática ou de ajuste fiscal, mas um projeto que toca diretamente na estrutura do Estado brasileiro e o modo como ele pode garantir direitos sociais. Até porque, diante da desigualdade social estrutural brutal que temos no Brasil, a máquina pública brasileira necessita ser ampliada para assegurar dignidade à população e direitos universais como educação, saúde, ambiente, moradia, transporte público etc.

Parece que o quanto antes sindicatos, movimentos sociais, entidades acadêmicas e organizações da sociedade civil se articularem, maior será a capacidade de disputar narrativas, de esclarecer a população sobre os efeitos concretos da reforma, de pressionar parlamentares e mobilizar manifestações de peso para que haja um amplo debate na sociedade sobre a reforma administrativa e os seus efeitos.

Sérgio Botton Barcellos é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Direita proibiu prender políticos, por Celso Rocha de Barros

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Celso Rocha de Barros, Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra) e autor de “PT, uma História”.

Folha de São Paulo, 21/09/2025

A direita brasileira aprovou um projeto de emenda constitucional, a PEC da Blindagem, que, na prática, proíbe prender políticos.

Não, não foi “o Congresso” que aprovou. Não foram “os políticos”. Foi a direita.

Sim, teve gente do PT que apoiou a PEC da Blindagem, mas 80% dos deputados petistas votaram contra. Somando todos os partidos de esquerda, mais de 70% dos deputados votaram contra a proibição de prender políticos.

Entre os partidos de centro (PSD, MDB, PSDB e Cidadania), a proporção é bem menor: 30% dos centristas votaram contra a PEC da blindagem.

Já entre os partidos de direita (Avante, Novo, PL, PP, PRD, Podemos, Republicanos, Solidariedade e União Brasil), o contraste é óbvio: só 6,7% dos deputados votaram contra a PEC da Blindagem.

Mais de 90% da direita votou a favor de proibir prender político.

Os números são esses. Mostrá-los não é ter viés de esquerda. Fingir que eles não existem é que é ter viés de direita.

Todos, absolutamente todos os deputados do partido de Bolsonaro e de seus principais seguidores, o PL, votaram a favor de proibir prender políticos. Cem por cento. Todo mundo. Nenhum contra.

O bolsonarista Nikolas Ferreira tentou argumentar que a PEC não proíbe prender parlamentares: basta que o Congresso aprove a abertura dos inquéritos criminais contra eles.

Você leu direito. Lembra dos bolsonaristas “contra o sistema”? Eles agora argumentam que os deputados são perfeitamente confiáveis para decidirem se podem ou não ser investigados.

O deputado Kim Kataguiri foi um dos poucos direitistas que votaram contra a PEC da Blindagem. Mais especificamente, 1 dos 4 entre os 57 deputados votantes de seu partido, o União Brasil.

Após a votação, Kataguiri gravou um vídeo aparentando desânimo com o fato de que os políticos que o haviam acompanhado na luta contra a corrupção durante a Lava Jato apoiaram com entusiasmo a PEC da Blindagem.

Deputado, com todo respeito, é hora de reconhecer o óbvio: a direita brasileira só foi contra a corrupção enquanto as acusações eram contra o PT. Os deputados que votaram pelo impeachment que o senhor defendeu votaram pensando no acordão prometido por Jucá e Temer. Embora a Lava Jato tenha acumulado derrotas depois do impeachment, o acordão só foi sacramentado definitivamente com Bolsonaro e Augusto Aras, quando já começava a farra do orçamento secreto. Seus colegas de direita votaram a favor da PEC da Blindagem com medo dessa roubalheira ser investigada.

Foi inclusive notável ver a oposição votar pela blindagem e o governo votar pela ética. Em geral, quem luta contra a corrupção é quem está na oposição: afinal, quem costuma ter acesso a dinheiro para roubar é quem está no governo.

Isso parece ter mudado com o aumento do controle do Congresso Nacional sobre o orçamento nos últimos dez anos. Agora quem está no Congresso já pode desviar dinheiro sem precisar do presidente da República.

A votação da PEC da Blindagem também nos dá uma ideia do que teria sido uma ditadura Bolsonaro. Se é esse o tipo de acordo que os golpistas fizeram na democracia, expostos à crítica da opinião pública, imaginem o quanto teriam roubado em uma ditadura sem imprensa livre ou judiciário independente.

 

O estertor do ‘sonho americano’ por Eduardo Giannetti

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Eduardo Giannetti, Economista, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras; seu mais recente livro é “Imortalidades” (Companhia das Letras).

Folha de São Paulo, 21/09/2025

Embora coetânea da cultura ianque, a expressão “sonho americano” demorou a nascer. Foi só em 1931 —no início da Grande Depressão— que ela ingressou no mundo letrado pelas mãos do historiador James Truslow Adams no epílogo do livro “O Épico da América”.

Ao cunhar a expressão, Adams definiu-a como “o sonho de uma ordem social na qual cada homem e cada mulher estejam aptos a alcançar a mais plena estatura da qual são congenitamente capazes, e de serem reconhecidos pelos demais por aquilo que são, independentemente das circunstâncias fortuitas de berço ou posição social”. Nos Estados Unidos, emendou, este sonho “tem se realizado de forma mais plena do que em qualquer outro lugar, embora muito imperfeitamente mesmo entre nós”.

Palavras edificantes, porém ocas. A omissão de Adams ao elencar o que via como entraves à plena realização do “sonho americano” é gritante.

Pois ele critica o sistema educacional, a disparidade de renda, a idolatria do dinheiro, mas é absolutamente omisso diante da mais grave injustiça da sociedade em que vivia: o apartheid racial que condenava 12 milhões de negros e mestiços (10% da população) a uma existência oprimida e humilhada pela segregação formal e informal.

Diante do silêncio do pai de batismo do “sonho americano”, não há como evitar a suspeita de um sinistro subtexto racialista —embutido na expressão “congenitamente capazes”— atrelado à noção que ele consagrou.

Quase um século depois, como anda o “sonho americano”? Começo por alguns fatos, antes de sugerir um esboço de interpretação:

1 – Para um jovem do sexo masculino de 18 anos, a probabilidade de morrer antes de chegar aos 50 é hoje maior nos EUA do que em Bangladesh. A causa são as “mortes de desespero”, provocadas por opioides, alcoolismo, abuso de drogas e suicídio (os opioides matam mais que os crimes violentos no Brasil);

2 – O número de presos nos EUA cresceu 700% desde 1970, atingindo cerca de 2 milhões de pessoas; nenhum outro país tem uma parcela maior da população encarcerada (a taxa é quatro vezes maior que na União Europeia). A chance de um afrodescendente ser preso nos EUA é seis vezes maior que a de um branco;

3 – O “transtorno do déficit de atenção” afeta cerca de 15% dos meninos americanos entre 3 e 17 anos, ao passo que na UE a cifra é um terço menor. O consumo per capita de antidepressivos e de ansiolíticos nos EUA é o dobro do verificado na União Europeia;

4 – Um cidadão americano com a renda mediana (US$ 83,7 mil/ano) pertence à elite dos 5% mais ricos do planeta; aos seus próprios olhos, porém, e aos olhos da sociedade onde vive, ele não passa de um “loser” fracassado na corrida por status e “sucesso”. Estima-se que um americano comum seja bombardeado por cerca de 3.000 mensagens publicitárias por dia;

5 – Os 400 americanos mais ricos possuem um patrimônio líquido (US$ 16,5 bilhões em ativos per capita) maior que toda a riqueza detida pelas 150 milhões de pessoas que estão entre os 60% mais pobres (US$ 21 mil per capita).

As peças se coadunam. Postiço na origem, o “sonho americano” dá sinais de falência múltipla.
Embora Donald Trump acelere o declínio estadunidense, ele não é a causa, mas antes sintoma, de uma sociedade adoecida e cindida por ódios e rancores intestinos, como as irrupções de fúria e a escalada da violência política ilustram.

O tecnoconsumismo americano promoveu uma aceleração do trabalho e do afã por riqueza como jamais o mundo conheceu. E tudo em nome do quê?

Tudo em nome de um mundo em que as pessoas esperam cada vez mais dos seus gadgets e pílulas miraculosas, mas cada vez menos umas das outras em suas relações pessoais e afetivas. Em que a ansiedade financeira, conjugada ao temor de colapso ambiental, só faz crescer.

E o Brasil com isso? Será desvairadamente utópico imaginar que temos tudo para não capitularmos à opressiva industriosidade ianque geradora de objetos demais, alegria de menos?

Que o Brasil, embora modesto nos meios, mantém viva sua aptidão para a arte da vida? Que podemos ousar modelos de economia e de convivência mais humanos e adequados ao que somos e sonhamos?

Dez teses sobre a extrema direita do século XXI, por Vijay Prashad

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A princípio, ela não está preocupada em derrubar a democracia liberal. É tentacular na sociedade, com o apoio das Big Techs. Capitaliza a solidão gerada pelo neoliberalismo. E se serve de um poder hediondo com a promessa de “salvar” o indivíduo

Por Vijay Prashad, com tradução no GGN – 22/08/2024 – OUTRAS MÍDIAS.

Desde 2016, verificamos uma consternação generalizada sobre como compreender o surgimento de Donald Trump como um candidato sério a presidente dos EUA. Longe de ser um fenômeno isolado, Trump chegou ao poder ao lado de outros “homens fortes” como Viktor Orbán (primeiro-ministro da Hungria desde 2010), Recep Tayyip Erdoğan (presidente da Turquia desde 2014) e Narendra Modi (primeiro-ministro da Índia desde 2014). Parece ser impossível que homens como esses, que chegaram ao poder e consolidaram seu governo por meio de instituições liberais, saiam de cena permanentemente por meio das urnas. Está claro que está ocorrendo um giro para a direita nos Estados democráticos liberais, cujas constituições enfatizam as eleições multipartidárias e, ao mesmo tempo, permitem que o espaço para o governo de um partido seja gradualmente estabelecido.

O conceito de democracia liberal foi e é um conceito altamente contestado que surgiu das potências coloniais da Europa e dos EUA nos séculos 18 e 19. Suas alegações de pluralismo e tolerância interna, o Estado de Direito e a separação dos poderes políticos surgiram ao mesmo tempo em que suas conquistas coloniais e seu uso do Estado para manter o poder de classe sobre suas próprias sociedades. É difícil conciliar o liberalismo atual com o fato de que os países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) são responsáveis por 74,3% dos gastos militares mundiais.

Países com constituições que enfatizam eleições multipartidárias têm visto cada vez mais o estabelecimento gradual do que é efetivamente um governo de partido único. Essa regra de partido único pode, às vezes, ser mascarada pela existência de dois ou até mesmo três partidos, ocultando a realidade de que a diferença entre esses partidos tem se tornado cada vez mais insignificantes.

Tornou-se evidente que um novo tipo de direita surgiu não apenas por meio de eleições, mas exercendo domínio nas arenas da cultura, da sociedade, da ideologia e da economia, e que esse novo tipo de direita não está necessariamente preocupado em derrubar as normas da democracia liberal, como debatemos no nosso mais recente dossiê, O avanço do neofascismo e os desafios da esquerda na América Latina. Isso é o que chamamos de “abraço íntimo entre o liberalismo e a extrema direita”, seguindo os escritos de nosso falecido membro sênior Aijaz Ahmad.

A formulação desse “abraço íntimo” nos permite entender que não há contradição necessária entre o liberalismo e a extrema direita e, de fato, que o liberalismo não é um escudo contra a extrema direita, e certamente não é seu antídoto. Quatro elementos teóricos são fundamentais para entender esse “abraço íntimo” e a ascensão dessa extrema direita de um tipo especial:

  1. As políticas de austeridade neoliberal em países com instituições eleitorais liberais destruíram os programas de bem-estar social que permitiam a existência de sensibilidades progressistas. O fracasso do Estado em cuidar dos pobres se transformou em severidade para com eles.
  2. Sem um compromisso sério com o bem-estar social e com os programas redistributivos, o próprio liberalismo entrou no mundo das políticas de extrema direita. Isso inclui o aumento dos gastos com o aparato repressivo que policia os bairros da classe trabalhadora e as fronteiras internacionais, juntamente com a distribuição cada vez mais avarenta de bens sociais, distribuídos somente se os beneficiários aceitarem a destituição de direitos humanos básicos (como “concordar” com a obrigatoriedade do controle de natalidade).
  3. Nesse terreno, a extrema direita de um tipo especial descobriu que se tornava cada vez mais aceita como uma força política, dado o giro dos partidos liberais em direção às políticas defendidas pela extrema direita. Em outras palavras, essa tendência de basear-se em políticas de extrema direita permitiu que esta ala se tornasse convencional.
  4. Por fim, as forças políticas liberais e de extrema direita se uniram em todos os setores para diminuir o alcance da esquerda sobre as instituições. A extrema direita e seus colegas liberais não possuem divergências econômicas fundamentais em relação à classe. Nos países imperialistas, há uma grande confluência de pontos de vista sobre a manutenção da hegemonia dos EUA, a hostilidade e o desprezo pelo Sul Global e o aumento do chauvinismo, conforme observado pelo apoio militar total ao genocídio que Israel está realizando contra os palestinos.

Após a derrota do fascismo italiano, alemão e japonês em 1945, os analistas do Ocidente se preocuparam com a incubação da extrema direita em suas sociedades. Enquanto isso, a maioria dos marxistas reconhecia que a extrema direita não havia surgido do nada, mas das contradições do próprio capitalismo. O colapso do Terceiro Reich foi apenas uma fase na história da extrema direita e do desenvolvimento do capitalismo; ela ressurgiria, talvez com roupas diferentes.

Em 1964, o marxista polonês Michał Kalecki escreveu o estimulante artigo “The Fascism of Our Times” [Faszyzm naszych czasów]. Nesse ensaio, Kalecki disse que os novos tipos de grupos fascistas que estavam surgindo na época apelavam “para os elementos reacionários das grandes massas da população” e eram “subsidiados pelos grupos mais reacionários dos grandes negócios”. No entanto, escreveu Kalecki, “a classe dominante como um todo, embora não aprecie a ideia de grupos fascistas tomarem o poder, não faz nenhum esforço para suprimi-los e se limita a reprimendas por excesso de zelo”. Essa atitude persiste até hoje: a classe dominante como um todo não teme a ascensão desses grupos fascistas, mas apenas seu comportamento “excessivo”, enquanto as seções mais reacionárias das grandes empresas apoiam financeiramente esses grupos.

Uma década e meia depois, quando Ronald Reagan parecia estar prestes a se tornar o presidente dos Estados Unidos, Bertram Gross publicou Friendly Fascism: The New Face of Power in America (1980) [A nova face do poder na América], que se baseou livremente em The Power Elite (1956) [A elite do poder] de C. Wright Mills e Monopoly Capital: An Essay on the American Economic and Social Order (1966), [Capital monopolista: um ensaio sobre a ordem econômica e social americana] de Paul A. Baran e Paul M. Sweezy. Gross argumentou que, como as grandes empresas monopolistas haviam estrangulado as instituições democráticas nos Estados Unidos, a extrema direita não precisava de botas e suásticas: essa orientação viria por meio das próprias instituições da democracia liberal. Quem precisa de tanques quando se tem os bancos para fazer o trabalho sujo?

As advertências de Kalecki e Gross nos lembram que a intimidade entre o liberalismo e a extrema direita não é um fenômeno novo, mas emerge das origens capitalistas do liberalismo: este nunca foi nada além da face amigável da brutalidade normal do capitalismo.

Os liberais estão usando a palavra “fascismo” para se distanciar da extrema direita. Esse uso do termo é mais moralista do que preciso, pois nega a intimidade entre os liberais e a extrema direita. Para isso, formulamos dez teses sobre essa extrema direita de um tipo especial, que esperamos que provoque discussões e debates. Esta é uma formulação provisória, um convite para o diálogo.

Tese um. A extrema direita de um tipo especial usa instrumentos democráticos até onde for possível. Ela acredita no processo conhecido como “longa marcha através das instituições”, por meio do qual constrói pacientemente o poder político e aparelha as instituições permanentes da democracia liberal com seus quadros, que depois levam seus pontos de vista para o pensamento dominante. As instituições educacionais também são fundamentais para a extrema direita de um tipo especial, pois determinam os programas de estudo para os alunos em seus respectivos países. Não é necessário que essa extrema direita de um tipo especial deixe de lado essas instituições democráticas, desde que elas ofereçam o caminho para o poder não apenas sobre o Estado, mas sobre a sociedade.

Tese dois. A extrema direita de um tipo especial está promovendo o desgaste do Estado e a transferência de suas funções para o setor privado. Nos Estados Unidos, por exemplo, sua propensão à austeridade está ajudando a reduzir a quantidade e a qualidade dos quadros em funções essenciais do Estado, como o Departamento de Estado dos EUA. Muitas das funções dessas instituições, agora privatizadas, são realizadas sob os auspícios de organizações não governamentais lideradas por capitalistas bilionários emergentes, como Charles Koch, George Soros, Pierre Omidyar e Bill Gates.

Tese três. A extrema direita de um tipo especial usa o aparato repressivo do Estado de modo a silenciar seus críticos e desmobilizar movimentos de oposição econômica e política. As constituições liberais oferecem ampla latitude para esse tipo de uso, do qual as forças políticas liberais se aproveitaram ao longo do tempo para reprimir qualquer resistência da classe trabalhadora, do campesinato e da esquerda.

Tese quatro. A extrema direita de um tipo especial incita uma dose homeopática de violência na sociedade por parte dos elementos mais fascistas de sua coalizão política para criar medo, mas não medo suficiente para que as pessoas se voltem contra ela. A maioria das pessoas de classe média em todo o mundo busca conforto e se incomoda com os inconvenientes (como os causados por manifestações, etc.). Mas, ocasionalmente, um assassinato de um líder trabalhista ou uma ameaça a mão armada feita a um jornalista não é atribuída à extrema direita de um tipo especial, que muitas vezes nega apressadamente qualquer associação direta com os grupos fascistas marginais (que, no entanto, estão organicamente ligados a ela).

Tese cinco. A extrema direita, de um tipo especial, oferece uma resposta parcial à solidão que está presente no tecido da sociedade capitalista avançada. Essa solidão decorre da alienação das condições precárias de trabalho e das longas jornadas, que corroem a possibilidade de construir uma comunidade e uma vida social vibrantes. Essa extrema direita não constrói uma comunidade real, exceto quando se trata de seu relacionamento parasitário com comunidades religiosas. Em vez disso, ela desenvolve a ideia de comunidade, comunidade pela Internet ou por meio de mobilizações ou comunidade por meio de símbolos e gestos compartilhados. A imensa fome de comunidade é aparentemente resolvida pela extrema direita, enquanto a essência da solidão se transforma em raiva, e não em amor.

Tese seis. A extrema direita de um tipo especial usa sua proximidade com conglomerados privados de mídia para normalizar seu discurso, e sua proximidade com os proprietários de mídias sociais para aumentar a aceitação social de suas ideias. Esse discurso de agitação cria um frenesi, mobilizando setores da população, seja on-line ou nas ruas, para participar de manifestações em que, no entanto, continuam sendo indivíduos e não membros de um coletivo. O sentimento de solidão gerado pela alienação capitalista é atenuado por um momento, mas não superado.

Tese sete. A extrema direita de um tipo especial é uma organização tentacular, com suas raízes espalhadas por vários setores da sociedade. Ela atua onde quer que as pessoas se reúnam, seja em clubes esportivos ou organizações beneficentes. Seu objetivo é construir uma base de massa na sociedade, enraizada na identidade da maioria em um determinado lugar (seja raça, religião ou senso de nacionalidade), marginalizando e demonizando qualquer minoria. Em muitos países, essa extrema direita se apoia em estruturas e redes religiosas para incorporar cada vez mais profundamente uma visão conservadora da sociedade e da família.

Tese oito. A extrema direita de um tipo especial ataca as instituições de poder que são o próprio alicerce de sua base sociopolítica. Ela cria a ilusão de ser plebéia em vez de patrícia, quando, na verdade, está nos bolsos da oligarquia. Ela cria a ilusão de plebeia ao desenvolver uma forma altamente masculina de hipernacionalismo, cuja decadência transparece em sua feia retórica. Essa extrema direita se aproveita do poder da testosterona desse hipernacionalismo e, ao mesmo tempo, joga com sua retratada vitimização diante do poder.

Tese nove. A extrema direita de um tipo especial é uma formação internacional, organizada por meio de várias plataformas, como o The Movement de Steve Bannon (com sede em Bruxelas), o partido Vox do Fórum de Madrid (com sede na Espanha) e a anti-LGBTQ+ Fundação Fellowship  (com sede em Seattle, EUA). Esses grupos estão enraizados em um projeto político no mundo atlântico que reforça o papel da direita no Sul Global e lhes fornece os recursos para aprofundar as ideias de direita onde elas têm pouco solo fértil. Eles criam novos “problemas” que antes não existiam nessa proporção, como a algazarra sobre sexualidade no leste da África. Esses novos “problemas” enfraquecem os movimentos populares e reforçam o controle da direita sobre a sociedade.

Tese dez. Embora a extrema direita de um tipo especial possa se apresentar como um fenômeno global, há diferenças entre a forma como ela se manifesta nos principais países imperialistas e no Sul Global. No Norte Global, tanto os liberais quanto a extrema direita defendem vigorosamente os privilégios que obtiveram por meio da pilhagem nos últimos 500 anos – por meio de seus meios militares e outros – enquanto no Sul Global a tendência geral entre todas as forças políticas é estabelecer a soberania.

A extrema direita de um tipo especial surge em um período definido pelo hiperimperialismo para mascarar a realidade do poder hediondo e fingir que se preocupa com os indivíduos isoladamente quando, na verdade, os prejudica.

Ela conhece bem a loucura humana e se aproveita dela.

 

Capitalismo Parasitário, por Luiz Guilherme de Besurepaire

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Luiz Guilherme de Besurepaire – 11/05/2020 .

O capitalismo tem uma incrível capacidade de se reinventar, de se regenerar. No entanto, após o tsunami financeiro de 2008, demonstrou a todos nós que a prosperidade não é algo para sempre e que os bancos capitalistas, através de seus métodos que se dizem “solucionadores de problemas”, na verdade se destacam por criar problemas, e não por solucioná-los. É assim que começa esse livro maravilhoso de Zygmunt Bauman chamado “Capitalismo Parasita”.

Bauman cita um artigo publicado na New York Books Review, em intitulado “The Crisis and What to Do About It”, em que George Soros apresenta as (des)venturas do capitalismo como um ciclo de bolhas que chegam ao seu limite de resistência. Quando a bolha em 2008 estourou, ocorreu de imediato a contração do crédito.

Alguns antecipavam o fim do capitalismo, mas na verdade tudo não passou de uma exaustão de mais um pasto. O Estado capitalista, através dos recursos públicos (usando impostos em vez do poder de sedução do mercado), buscará novas pastagens enquanto ficar fora de operação.

Rosa Luxemburgo, em seu livro chamado “Acumulação Capitalista”, diz que o capitalismo não pode viver sem as economias “não capitalistas”, ou seja, enquanto existirem “terras virgens” para expansão e houver capacidade de explorá-las até exaurirem as fontes de sua própria alimentação. Em outras palavras, o capitalismo é um sistema parasitário.

Como todos os parasitas, pode prosperar durante certo período, desde que encontre um organismo ainda não explorado que lhe forneça alimento. Mas só pode fazer isso destruindo o hospedeiro, destruindo as condições de sua prosperidade, ou mesmo de sua sobrevivência. Após uma exaustão completa ou quase completa de um organismo hospedeiro, um parasita procura encontrar outro, para supri-lo de sucos vitais por um período sucessivo, embora também limitado, de tempo.

Rosa Luxemburgo, quando escreveu o seu livro, não previa nem podia prever que os territórios pré-modernos cheios de continentes exóticos não eram os únicos “hospedeiros” potenciais dos quais o capitalismo poderia se nutrir para prolongar a própria existência e gerar uma série de períodos de prosperidade.

“Sem meias-palavras, o capitalismo é um sistema parasitário. Como todos os parasitas, pode prosperar durante certo período, desde que encontre um organismo ainda não explorado que lhe forneça alimento. Mas não pode fazer isso sem prejudicar o hospedeiro, destruindo assim, cedo ou tarde, as condições de sua prosperidade ou mesmo de sua sobrevivência.” (pg8, pg 9)

O parasita a que se refere Rosa Luxemburgo é a força do capitalismo que busca incessantemente novos lugares para se “hospedar”, ou seja, novos mercados. O capitalismo revelou desde então seu incrível talento para buscar e encontrar novas espécies de hospedeiro cada vez que a espécie explorada anteriormente diminuía em número.

Hoje, o capitalismo já alcançou a dimensão global ou, de qualquer forma, chegou muito perto de alcançá-la − uma façanha que para Luxemburgo ainda era uma perspectiva um tanto distante. O que aconteceu no último meio século mais ou menos é o capitalismo aprendendo a arte anteriormente desconhecida e inimaginável de produzir sempre novas “terras virgens”, em vez de limitar sua rapidez ao conjunto das já existentes. Milhões de homens e mulheres que se dedicavam antes a economizar em vez de viver do crédito foram transformados com astúcia em um desses territórios virgens ainda não explorados. Essa nova arte − possibilitada pela mudança da “sociedade de produtores” para a “sociedade de consumidores” e da reunião de capital e trabalho para a reunião de mercadorias e clientes como a principal fonte de “valor agregado” − lucro e acumulação consiste principalmente na mercantilização progressiva das funções da vida.

Com a sociedade de consumidores, o cartão de crédito foi o indício do aparecimento de um mercado sedutor. Nos velhos tempos, era preciso postergar as satisfações – que segundo Max Weber foi o princípio que tornou possível o capitalismo moderno –, apertar os cintos, negar outros prazeres, gastar de forma prudente, economizar dinheiro, que se podia separar com a esperança de que, com o devido cuidado e paciência, os sonhos seriam concretizados.

A expressão material deste parasitismo é o cartão de crédito, que, com seu slogan “não adie a realização dos seus sonhos”, induz o consumidor a gozar sem cessar, a consumir. A compra em débito não é boa para os emprestadores, os bancos em geral, porque não se paga juros.

O “devedor ideal” é aquele que jamais paga integralmente suas dívidas porque os juros são o alimento do “parasita”. Assim a contração do crédito decorrente da crise econômica mundial de 2008, para Bauman, não foi devido ao insucesso dos bancos; ao contrário, foi devido ao extraordinário sucesso destes porque introduziu a regra do “compre agora e pague depois”, produziu e produz em série indivíduos endividados. “Como poucas drogas, viver de crédito cria dependência”, diz Bauman.

O Estado teve um papel fundamental na criação desses “novos pastos” a explorar. Coube a Bill Clinton a iniciativa de introduzir nos Estados Unidos as hipotecas subprime. Elas foram vendidas aos mais pobres como solução dos problemas dos sem-tetos, mas na verdade multiplicou o número de pessoas sem casa com a epidemia de retomada dos imóveis, que ficou conhecida como subprime.

Elas foram garantidas pelo governo a fim de oferecer crédito para a compra da casa própria para pessoas desprovidas de meios de pagar a dívida assumida e, portanto, a fim de transformar setores da população até então inacessíveis à exploração creditícia em devedores.

A cooperação entre Estado e mercado no capitalismo é a regra; o conflito entre eles, quando acontece, é a exceção. O Estado e o mercado mantêm relações simbióticas, que é uma relação mutuamente vantajosa entre dois organismos vivos de espécies diferentes. No entanto, as políticas são construídas não contra o interesse dos mercados; seu objetivo natural é avalizar, permitir a segurança e a longevidade do domínio do mercado. Se a relação entre Estado e mercado é de vantagens mútuas, a relação entre mercado e o consumidor é de parasitismo.

“Se o Estado assistencial hoje vê seus recursos minguarem, cai aos pedaços ou é desmantelado de forma deliberada, é porque as fontes de lucro do capitalismo se deslocaram ou foram deslocadas da exploração da mão de obra operária para a exploração dos consumidores. E também porque os pobres, despojados dos recursos necessários para responder às seduções dos mercados de consumo, precisam de dinheiro − não dos tipos de serviço oferecidos pelo Estado assistencial − para se tornarem úteis segundo a concepção capitalista de “utilidade”. (pg 32)

Nossa sociedade deixou de ser de produtores para se transformar numa sociedade de consumidores. O mundo todo é visto e vivido como consumidores. A cultura também se transforma em um armazém de produto destinado ao consumo. Todos concorrendo contra todos para conquistar a atenção inconsciente dos potenciais consumidores, na esperança de atraí-la e conservá-la por pouco mais tempo.

Nosso mundo lembra cada vez mais Leônia, “a cidade invisível” de Italo Calvino, onde “mais do que pelas coisas que todos os dias são fabricadas vendidas compradas, a opulência… se mede pelas coisas que todos os dias são jogadas fora para dar lugar a novas”. (pg 41)

Numa sociedade consumidora como a nossa, as redes substituem as estruturas, em que o tabuleiro está estabelecido por um jogo de apego e desapego e uma infinita sucessão de conexões e desconexões. A cultura nos dias de hoje é feita de ofertas, para garantir que “a escolha continue a ser inevitável ou uma necessidade e, ainda, um dever de vida”. Ter não é mais suficiente. O sentimento que prevalece é o desejo de substituir o que se tem por bens novos e melhorados. Essa é a regra da sociedade líquida moderna. Trata-se da cultura da “obsolescência instantânea”, pois estimula o consumo.

A solidez dos vínculos é uma ameaça, pois um futuro com obrigações restringe a liberdade de movimento e a capacidade de vislumbrarmos novas oportunidades quando elas aparecerem e, por conseguinte, compromete a sociedade líquida moderna feita para o descartável. Relações duradouras não são consideradas boas.

As universidades não escapam a essa regra por uma razão bem simples: o mundo muda de uma forma que desafia o saber existente. Para Bauman, o mundo volátil da modernidade líquida “mais parece um mecanismo para esquecer do que um ambiente para aprender”. A memória, a longo prazo, cede lugar para os engajamentos flexíveis perante um vasto mundo de informações televisivas e virtuais, a tendência das notícias impressas é desaparecer, dando lugar a outros meios de informação.

Para Bauman, a antiga tarefa de representar o mundo para os alunos, por exemplo, o mundo tal como ele é, auxiliando a formação de uma personalidade adequada para viver em um mundo previsível, já não é mais possível. A massa de conhecimentos acumulados transformou-se no epítome contemporâneo da desordem e do caos. Bauman conclui que ainda não estamos preparados para este tipo de vida.

A parcela de conhecimento retirada para uso e consumo pessoal só pode ser avaliada com base na quantidade. Já não é mais possível utilizar o critério da qualidade com o restante, pois todas as informações se equivalem. Se no passado a educação adaptava-se às mutações, definia objetivos e projetava novas estratégias. Torna-se claro, para Bauman, que a arte de viver em um mundo hipersaturado de informação ainda não foi aprendida.

Fico por aqui. Apenas dizendo que Bauman mantém uma crítica ao mundo líquido, acrescentando o conceito de capitalismo parasitário em que o consumo desenfreado determina uma nova abordagem sobre alguns temas contemporâneos, desde os comportamentos da vida cotidiana. A utilização da metáfora da infestação, o conceito de parasita através de instituições como bancos e a exploração do crédito para o consumo desenfreado, somados a crises geracionais, e o modo de vida que vivemos.

Tudo isso fazem do livro “Capitalismo Parasitário”, de Zygmunt Bauman, um livro importantíssimo para os dias de hoje. Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.

Minha geração, por Francisco de Oliveira Barros Júnior

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Francisco de Oliveira Barros Júnior – A Terra é Redonda – 25/08/2025

O docente propõe um conjunto de interrogações com o objetivo de construir uma visão ampla e complexa sobre as novas gerações, representadas pelos alunos que participam das disciplinas

Refletir sobre o conceito de geração, a partir de textos musicais e fílmicos, é uma proposta metodológica a ser desenvolvida. Na sala de aula, do ensino fundamental ao superior, professores experimentam relações intergeracionais. Na exposição de um conteúdo, intitulado de “Intergeracionando”, o docente propõe um conjunto de interrogações com o objetivo de construir uma visão ampla e complexa sobre as novas gerações, representadas pelos alunos que participam das nossas disciplinas.

Estamos no campo universitário onde o professor vai projetar em uma tela, imagens e perguntas para serem pensadas. Uma metodologia dialogal, aberta para dar voz aos estudantes que têm, em média, 20 anos. Seguem as fotografias de nomes conhecidos do universo artístico nacional e internacional. Cada imagem vem acompanhada de uma interrogação.

Sigamos o roteiro da exposição: Com os Beatles, indago: “a que geração pertenço?” Estamos no ano de 2023, em tempos paradoxais, ambivalentes e incertos. Progressos e regressões. Em desassossego, propomos um exercício de contextualização histórica da sociedade na qual vive a juventude atual. Os jovens vivendo em riscos, conectados em redes, na cultura consumista das relações mercantilizadas. Companheiros dos avanços e retrocessos, eles fazem história, são de várias tribos e representam a diversidade.

Com os Rolling Stones, vem a seguinte questão: “quais as características da minha geração?” A sociabilidade juvenil encontra novos paradigmas nos espaços digitais ocupados pelos jovens. Munidos de aparelhos eletrônicos, na sociedade telânica, navegam nas redes sociais e constroem as suas cidadanias em movimentações políticas online. Movimentos sociais juvenis agitam o cenário político em um cyberativismo praticado na “sociedade em rede”. Na “era da informação”, sopram ventos sulistas e nortistas de uma mudança social na qual mentes articuladas contestam o poder.

Atitudes contestatórias em um contexto histórico de reinvenção democrática praticada por uma juventude que vive “uma revolução possibilitada pela internet”. “Indignação e esperança” em um mundo transformado, de reformas políticas e emergência de um padrão tecnologizado no modo de promover insurreições e discursos revolucionários (CASTELLS, 2013). No coletivo, indignados e esperançosos empunham a faixa com uma mensagem no plural: “somos a rede social”.

Com Roberto Carlos, pergunto: “que avanços e retrocessos acompanham a minha geração?” Progressos e regressões em um contexto de ambivalências e paradoxos. Longevidade populacional e altos índices de criminalidade. Notícias animadoras e sombrias. Novas barbáries e robótica presentes na sociedade do espetáculo. Inteligência artificial e pobreza dão matérias jornalísticas. Medos medievais são reatualizados. A covid-19 fez um strip-tease revelador das nossas vulnerabilidades e riscos. Como vivemos agora?

Uma jovem de 20 anos, nos dias de hoje, vive em sociedades paradoxais. Os brasis são exemplares. Um país de excluídos curtindo as viralizações das celebridades em suas pornográficas ostentações. “A galáxia da internet” convive com precários estados de bem-estar social. A pergunta antes feita necessita de um exercício de contextualização histórica. Mostrar as múltiplas faces da globalização, do capitalismo parasitário e do neoliberalismo. Quais as suas consequências humanas? Negócios e economia eletrônicos em movimentos milionários e os quadros de exclusão social correndo em paralelo.

Na “vida para consumo” e “a crédito”, “a geração jovem de hoje” conhece “uma sociedade de consumidores”. Nas redes sociais, a juventude é um terreno virginal a ser conquistado e explorado “pelo avanço das tropas consumistas”. “O jovem como lata de lixo da indústria de consumo”. Uma cultura consumista e “agorista”. Inquietos “e em perpétua mudança”, os jovens entram no “culto da novidade”. Em tempos excessivos e de descartabilidade, eles participam da “assombrosa velocidade dos novos objetos que chegam e dos antigos que se vão”. No império do efêmero, em suas curtições internéticas, a juventude navega nas compras virtuais e provoca a curiosidade: quantas horas por dia gasta com smartphones, computadores, telas diversas e outros instrumentos eletrônicos? (BAUMAN, 2013, p.34).

Com Gilberto Gil, indago: “quais os valores que conduzem a minha geração?” De que matrizes procedem? Estão sendo invertidos? No foco, os princípios que norteiam as nossas existências em uma sociedade de mercado, competitiva e violenta. Em termos necropolíticos, injusta, cruel e outros adjetivos desumanos. Um campo de conflitos. O que é valorizado nas relações capitalistas? O nosso pensamento tem sido crítico em relação às ações desumanizadoras observadas no cotidiano? A mercantilização de todas as relações expõe os homens transformados em mercadorias.

Todos os campos, destacando a saúde, a educação, a religião e outras esferas, são atravessadas pela lógica mercadológica, objetiva, calculista e voltada para o máximo de lucratividade. Números, quantidade de viralizações, vendas da bilheteria e audiência numérica são critérios prioritários. A qualidade do que é produzido e promovido está abaixo do objetivo número um: vender. Em termos mais sintonizados com a época atual, viralizar. Noticiário policial, fofocas e ti ti tis envolvendo celebridades, em especial, viralizam e geram milionários negócios.

Glamour, ostentações ao som de funk, badalações e chacinas telanizadas. “A civilização do espetáculo”, seus ópios, tragédias e frivolidades. Janelas indiscretas. Exposição da intimidade e privacidade pessoal desconhecem os limites entre o público e o privado. “Sou visto, logo existo”. Aparecer de qualquer jeito. Os olhos do poder e os seus plantonistas. Vamos ler “1984”, de George Orwell? Nas telas, o “grande irmão” vê o jogo do “vale-tudo”, o time dos que “topam tudo por dinheiro”.

Francisco de Oliveira Barros Júnior é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí (UFPI).

Referência

BAUMAN, Zygmunt. Sobre educação e juventude: conversas com Riccardo Mazzeo. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

O dilema silencioso da geração X, por Rodolfo Damiano

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Rodolfo Damiano – A Terra é Redonda – 18/09/2025

A resiliência da Geração X, forjada na adversidade, tornou-se sua própria armadilha. O verdadeiro legado que precisam construir não é mais de resistência silenciosa, mas de aprender a finalmente cuidar de quem sempre cuidou de todos – inclusive de si mesmos

1.

A geração X, formada por aqueles que nasceram entre 1965 e 1980, vive hoje um dos maiores desafios geracionais da história contemporânea. Criados sob a promessa de que estudo, trabalho e disciplina garantiriam estabilidade, muitos chegaram à vida adulta em um cenário que desmentiu essas expectativas. As últimas quatro décadas foram marcadas por crises econômicas sucessivas, mudanças tecnológicas radicais e um mercado de trabalho cada vez mais instável. O resultado é um grupo que, apesar de resiliente, enfrenta pressões simultâneas que afetam profundamente não apenas sua saúde física, mas sobretudo sua saúde mental.

Um dos dilemas mais marcantes é a chamada “geração sanduíche”, expressão usada para descrever adultos que cuidam, ao mesmo tempo, de filhos que ainda não conquistaram independência e de pais que envelhecem com crescente necessidade de apoio. No Brasil, quase metade dos jovens adultos ainda mora com os pais por dificuldades financeiras, desemprego ou salários insuficientes para manter uma vida autônoma (IBGE, 2023).

Ao mesmo tempo, a longevidade aumenta, mas nem sempre é acompanhada de autonomia: cresce o número de idosos dependentes de cuidados diários, exigindo tempo, energia e recursos. Para a geração X, isso significa viver em permanente estado de alerta, equilibrando responsabilidades múltiplas sem espaço para si.

Essa sobrecarga tem repercussões claras na saúde mental. Sintomas de ansiedade generalizada, depressão e burnout são cada vez mais comuns nessa faixa etária, frequentemente mascaradas pelo discurso da “resiliência”. Estudos mostram que o bem-estar subjetivo costuma atingir seu ponto mais baixo na meia-idade, fenômeno conhecido como a “curva em U da felicidade” (Blanchflower & Oswald, 2008). É exatamente nesse período, entre os 45 e 55 anos, que muitos gen xers enfrentam crises de identidade, frustrações profissionais e sobrecarga familiar, fatores sabidamente associados a maior risco de transtornos mentais (WHO, 2022).

2.

No campo do trabalho, os impactos psíquicos são evidentes. Muitos acreditaram que a ascensão social seria consequência natural do esforço, mas se depararam com um mercado hostil, instável e acelerado. A recessão de 2008, a pandemia de Covid-19 e as sucessivas transformações tecnológicas trouxeram perdas salariais, insegurança crônica e necessidade de reinvenção constante. Esse cenário alimenta sentimentos de inadequação, fadiga emocional e desesperança – todos reconhecidos pela psiquiatria como gatilhos importantes para quadros depressivos e transtornos de ansiedade (APA, 2019).

No plano cultural, a geração X enfrenta ainda a sensação de não pertencer. São jovens demais para se aposentar e velhos demais para se integrar plenamente ao universo digital dominado por TikTok e influenciadores. Suas referências culturais são tachadas de “vintage”, enquanto seus filhos navegam com naturalidade em ambientes virtuais que eles apenas decifram superficialmente. Essa experiência de deslocamento cultural reforça a sensação de isolamento e pode agravar quadros de solidão – hoje reconhecida pela OMS como um fator de risco comparável ao tabagismo para a saúde mental e física (WHO, 2022).

Apesar de tudo, a geração X desenvolveu notável capacidade de adaptação. Aprendeu a lidar com mudanças, a sobreviver em cenários de incerteza e a encontrar soluções criativas. No entanto, é urgente quebrar o mito de que resiliência significa suportar indefinidamente. A literatura em saúde mental mostra que essa geração apresenta níveis elevados de estresse crônico e desgaste emocional, especialmente entre aqueles que conciliam múltiplas funções familiares e profissionais (APA, 2019). Cuidar de si, nesse contexto, é não apenas legítimo: é uma necessidade de saúde pública.

Estratégias individuais e coletivas são fundamentais. No nível pessoal, buscar apoio psicológico, praticar autocuidado e aprender a compartilhar responsabilidades são passos importantes. No nível social, políticas públicas que ampliem o acesso à saúde mental, incentivem o envelhecimento ativo e apoiem financeiramente famílias cuidadoras são urgentes.

O Brasil já ultrapassa os 15% de população idosa, mas o investimento em saúde mental segue abaixo das recomendações internacionais (The Lancet Commission, 2018). Sem uma rede sólida de apoio, o peso recai desproporcionalmente sobre essa geração.

No fim, a geração X está redefinindo o que significa “meia-idade” em um mundo de transformações aceleradas. Ao equilibrar cuidado com os outros e cuidado consigo mesmo, pode inaugurar uma forma mais honesta e sustentável de atravessar esse período da vida. Porque, afinal, quem cuida de todos também merece ser cuidado – inclusive por si próprio. Essa talvez seja a principal lição silenciosa que a geração X pode deixar: resiliência não se mede pela capacidade de resistir sozinho, mas pela coragem de reconhecer os próprios limites e buscar apoio.

Rodolfo Damianomédico psiquiatra, é pós-doutorando na USP. Autor, entre outros livros, de Compreendendo o suicídio (Editora Manole).

Referências

American Psychological Association (APA). Stress in America™: Stress and Current Events. Washington, DC: APA, 2019.

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

BLANCHFLOWER, D.G.; OSWALD, A.J. Is well-being U-shaped over the life cycle? Social Science & Medicine. 2008;66(8):1733-1749.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNAD Contínua. Rio de Janeiro: IBGE, 2023.

The Lancet Commission. Global Mental Health and Sustainable DevelopmentThe Lancet. 2018;392(10157):1553-1598.

World Health Organization (WHO). World Mental Health Report: Transforming mental health for all. Geneva: WHO, 2022.

 

 

O que é saúde mental? por Maria Rita Kehl

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Quais os fatores que nos satisfazem psíquica e emocionalmente? Freud pode chocar, ao dizer: a incompletude. Impulso que cria desejo, desloca-nos e gera a busca de sentido no amor e no trabalho. Força que nos afronta a encarar insuficiências e permite o arriscar

Por Maria Rita Kehl, no Blog da Boitempo. OUTRAS MÍDIAS

Começo com Freud, que era médico mas não tratava da saúde física. A definição de Freud quanto a esse tema é sucinta e (a meu ver), certeira. A saúde mental de uma pessoa pode ser resumida como a sua capacidade de amar e trabalhar. São duas ações muito diferentes, não acham? Mas entre elas há um ponto em comum: Tanto no amor quanto no trabalho, o sujeito, forçosamente, sai um pouco de si mesmo — de sua solidão, de suas ruminações estéreis, de sua vã vaidade — e se entrega a predisposições psíquicas que transcendem o ego.

Não que o ego seja supérfluo em nossas aventuras amorosas ou em nosso empenho profissional. O ego é nosso sustentáculo. Mas amor e trabalho nos forçam a ceder espaço psíquico para além dele. O ego nos estrutura, enquanto sujeitos, mas não é tão soberano quanto gostaríamos de acreditar. Quando amamos alguém, por exemplo: uma parte da satisfação que sentimos ao sermos correspondidos no amor é puramente egóica. A proposta freudiana, de que a saúde mental se define pela capacidade de amar e trabalhar, pode ser entendida também desta forma: amor e trabalho produzem saúde mental. Tanto um quanto o outro nos ajudam a dar sentido à vida porque forçosamente abrem brechas no rochedo que nos protege da castração.

Para os leigos em psicanálise (o que não é vergonha pra ninguém) vale esclarecer que “castração” é a metáfora com que Freud tenta explicar nossa incompletude — a qual, aliás, é condição para a saúde mental. A incompletude humana pode ser traduzida como “a falta que move”. É o que nos faz desejantes. Somos sujeitos, por definição, incompletos — por isso mesmo, a falta nos move. Nos move a quê? A criar. E a amar.

Em contrapartida, quando o outro deixa de nos amar, o ego, frequentemente, fica mais ferido do que o “coração”. Nessas horas, para quem for capaz disso, vale a pena entregar-se novamente a algum projeto de trabalho que talvez não traga de volta o ser amado, mas, sim, renova a autoestima.

Além disso, tanto o amor quanto o labor exigem que saibamos encarar nossas insuficiências: tanto um quanto o outro são incompatíveis com excessos narcísicos. Explico: o sujeito que se considera perfeito, ou completo, dificilmente vai conseguir abrir mão dessa agradável fantasia para se arriscar em alguma empreitada na qual pode tanto ter sucesso quanto fracassar. Por outro lado… se não nos arriscamos em empreitadas interessantes (e, se possível, bem-sucedidas), nosso ego se empobrece e deixa de atender a nossos ideais narcísicos.

Sim: algum narcisismo (vale simplificar aqui e traduzir por autoestima) é necessário. Quem não tem nenhum amor por si mesmo tende à depressão. Em situações em que o sujeito não encontra — ou não produz — nada que alimente sua autoestima, ele se deprime. Deixa de amar a si mesmo. Em casos extremos, essa falta de autoestima pode levar a tentativas de suicídio. Eu diria que o bom amor de si mesmo — que nada tem a ver com exageros de vaidade — se alimenta tanto das realizações que o sujeito se empenha em conquistar quanto da estima e do reconhecimento do outro. Mais, ainda: nossa autoestima também é acionada quando, além de receber admiração do outro, somos também capazes de dar o que ele necessita. Sermos solidários nos faz bem. Isso nada tem a ver com uma tendência sacrifical: quem se sacrifica por vaidade (“vejam como sou bom!”) corre o risco de se tornar ressentido: “fiz tanto por ele, mas ele não me agradeceu à altura”… Se você quer fazer algo pelo outro, faça de coração aberto, não como quem investe em uma futura medalha de bom comportamento. Fazer pelo outro, com gosto, nos alegra. “Saúde mental” (o tema desta coluna) tem mais a ver com alegria do que com vaidade.

Se for o caso de sacrificar alguma coisa, sacrifiquemos nosso egoísmo… mas não todo, ok? Vale guardar um pouco de egoísmo para conquistar, e desfrutar de coisas que nos fazem bem!

Maria Rita Kehl é doutora em psicanálise pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e atua, desde 1981, como psicanalista em São Paulo. Entre 2006 e 2011, atendeu na Escola Nacional Florestan Fernandes do MST, em Guararema (SP). Integrou a Comissão Nacional da Verdade (2012-2014). Foi jornalista de 1974 a 1981 e segue publicando artigos em diversos jornais e revistas de São Paulo e do Rio de Janeiro. Em 2010, ganhou o prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção, com a obra O tempo e o cão, a atualidade das depressões, publicada por nossa casa. Também pela Boitempo, publicou Tempo esquisito, Videologias: ensaios sobre televisão (em coautoria com Eugênio Bucci), 18 crônicas e mais algumas, Deslocamentos e o feminino, Bovarismo brasileiro e ressentimento. Pela Boitatá publicou, em parceria com Laerte Coutinho, Neném outra vez! E disco-pizza. 

A engenharia do eu na era das redes sociais, por José Alberto Roza

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Reflexões desde o Orkut como fenômeno cultural até as novas formas de existir no mundo hiperconectado atual. Hoje, a tecnologia é integrada ao corpo. E o sujeito é um curador de narrativas e imagens para a apreciação alheia, autopromoção, pertencimento e validação.

Por José Alberto Roza, na Cult – OUTRAS MÍDIAS – 19/09/2025

Do Orkut à hiperconectividade: o nascer da subjetividade digital

Há um eco recorrente nas redes sociais brasileiras: o burburinho sobre a possível volta do Orkut, marcado por nostalgia de uma era digital de comunidades vibrantes e autodescoberta. Para mim, esse tema tem um significado especial. Em 2009, quando o Orkut começava seu declínio frente ao Facebook, ele foi objeto central da minha dissertação de mestrado em Psicologia, que buscava entender as inter-relações adolescentes daquele tempo. Observei ali, mais que dinâmicas de uma rede social, o início de novas formas de existir e se relacionar que hoje são a essência da nossa hiperconectividade, ou dos tempos apressados e hipermodernos
propostos por Lipovetsky.

O Orkut foi, para o Brasil, mais que um site de relacionamentos – foi um fenômeno cultural inédito, reunindo cerca de 35 milhões de usuários e oferecendo aos adolescentes um palco para definir a própria identidade, colecionar validações, expressar sentimentos e pertencer a comunidades. Era uma experimentação em massa da vida mediada por telas, que à época dependia dos computadores de mesa, antes da onipresença dos celulares. Naquele ambiente efervescente, era possível perceber ainda restavam certos limites entre identidade digital e offline, mas já se notava a tendência à fusão. Atualmente, esses limites praticamente desapareceram: o real e o virtual se mesclam de forma quase indissociável, com o “estar conectado” tornando-se condição permanente da subjetividade contemporânea.

Minha pesquisa aconteceu nesse cenário de transição, centrada na adolescência imersa no ciberespaço nascente. Não era uma análise tecnológica, mas sim um esforço para desvendar como a presença crescente das redes e dispositivos poderia reconfigurar a psique humana. O Orkut serviu de laboratório aberto, onde pude testemunhar as primeiras manifestações do que hoje é comum: a ansiedade da desconexão, a curadoria da imagem e a fluidez dos relacionamentos.

A Psicanálise acompanhou-me ao longo dessas duas décadas de mudanças. Três adolescentes, protagonistas da minha pesquisa, forneceram as primeiras pistas das subjetividades emergentes: uma conectada e ansiosa, outra indiferente aos ditames digitais, uma terceira adaptando-se com leveza surpreendente. Suas vozes, angústias e esperanças, revisitadas hoje, convidam a uma reflexão mais humana e psicanalítica sobre nossa relação com o mundo conectado.

Máquina In-corporada: Tecnologia, Corpo e Vínculos

Com o passar dos anos, já era visível que a tecnologia deixava de ser apenas uma ferramenta externa, passando a se integrar ao próprio ser humano. O que antes era um simples artefato se transformava em uma extensão quase orgânica do corpo. Em meus estudos daquele período, propunha-se que a tecnologia não estivesse mais “diante” do homem, mas se situasse “dentro” do corpo contemporâneo. O conceito de “máquina in-corporada” — aprofundado sob o olhar psicanalítico — sugere que o dispositivo, ao ser internalizado, transforma nossa percepção, desejos e corporalidade, dissolvendo fronteiras entre o “eu” e a tecnologia. Ela deixa de ser algo externo e passa a moldar profundamente nossas formas de sentir, relacionar-se e existir.

O imperativo de “estar conectado” deixava de ser mera escolha social e tornava-se o início de uma simbiose. Comunidades, “scraps” e depoimentos operavam como mecanismos de validação e demandavam a curadoria de identidades digitais cada vez mais relevantes que a pessoa offline. Cada atualização e interação era direcionada a um público amplo, exigindo performance contínua e auto-observação intensa, antecipando o ciclo de validação social que hoje nos atravessa.

Além disso, nos últimos anos, a inteligência artificial passou a influenciar fortemente as redes sociais, otimizando a criação de conteúdo e a análise de dados do comportamento dos usuários. Ferramentas automatizadas ajudam desde a sugestão de temas à edição de imagens, moldando novas formas de interação e autoexpressão.

Nos relatos dos jovens, a urgência da conexão digital se manifestava nitidamente. Uma frase emblemática: “Eu tô incomunicável, daí dá desespero, parece que você não faz parte do mundo, sabe?”. Isso revela o medo profundo de exclusão e esquecimento: a tecnologia, que antes era meio, havia sido elevada a condição fundamental de pertencimento, quase uma prótese existencial. Para alguns, desconectar equivalia a perder uma parte de si, uma ameaça à integridade psíquica e social.

Hoje, o smartphone representa o ápice da máquina in-corporada. Nossas “próteses cognitivas” nos acompanham o tempo todo e já não estão restritas ao celular: relógios inteligentes e outros wearables monitoram e notificam em tempo real, tornando-se “extensões biométricas e comunicacionais”. O celular, antes posse, agora compõe um ecossistema de dispositivos que nos mantém constantemente conectados, inclusive em momentos antes reservados à introspecção ou à interação direta. A ansiedade da desconexão, que antes parecia traço isolado de alguns jovens, agora é uma neurose global, conhecida como FOMO (Fear of Missing Out). A vida sem celular soa inimaginável; a falta de internet pode desencadear angústia comparável a grandes perdas.

As consequências psíquicas dessa incorporação ainda estão sendo desvendadas. O tempo se fragmenta em microinterações, induzindo imediatismo. O espaço se desloca prioritariamente para o virtual, enquanto o entorno físico pode perder sentido. A linha entre “eu” físico e digital dissolve-se: autoestima frequentemente atrelada a números de curtidas e seguidores, performance que nunca cessa, e crescente dificuldade de aceitar vulnerabilidades. A máquina in-corporada não é só avanço técnico, mas agente reformador do psiquismo, dos laços sociais e da própria concepção do que é ser humano.

Ilha de Edição e Disfarce: A Curadoria e Performance da Identidade Digital

A profunda integração da tecnologia deu origem à “ilha de edição”, conceito que pode representar o indivíduo como curador de imagens e narrativas cuidadosamente selecionadas para apreciação alheia. Mais que espaço virtual, a ilha de edição é a sala de controle onde cada um edita sua própria presença. O
fenômeno antes restrito às celebridades agora se generalizou: redes sociais transformam todos em editores e promotores da própria imagem, tornando rotineira — e muitas vezes exaustiva — a prática da autopromoção.

Na época do Orkut, esse processo já se desenhava, embora de modo mais rudimentar. Perfis funcionavam como vitrines: exibiam as melhores fotos, textos idealizados e depoimentos estrategicamente selecionados. Os adolescentes, atentos aos mínimos detalhes desses espaços, buscavam pertencimento e validação pelo pertencimento a comunidades e pela curadoria quase instintiva de si mesmos. Esse exercício antecipava o que seria mais tarde necessidade existencial na hiperconectividade: a montagem de uma versão “aprimorada” do eu, em contínua busca por aceitação digital.

A “ilha de edição” é, portanto, um processo dinâmico, impulsionado por feedbacks constantes e novas tendências. Ela exige permanente vigilância sobre a própria performance, submetendo a pessoa a um ciclo de remodelação da identidade guiado pelo olhar externo. Tal liberdade de expressão, paradoxalmente, aprisiona na busca por perfeição, gerando divergência entre realidade e imagem digital, e pode acentuar a fragilidade do eu real por trás da tela.

O conceito de “Paixão do Disfarce”, trabalhado por Fábio Herrmann, torna-se central nesse contexto. O disfarce não é mera enganação, mas um comportamento social necessário: seguimos códigos implícitos de relacionamento, adaptando-nos e experimentando papéis diversos. No ambiente digital, a necessidade de disfarce se intensifica, tornando-se estratégia quase obrigatória para aceitação social. O palco digital potencializa a maleabilidade das identidades: o indivíduo adapta suas subjetividades conforme o ambiente e o público, não como falsidade, mas em resposta às demandas de adaptação e reconhecimento.

Além de aprimorar a exposição, o disfarce digital também serve como proteção diante da constante exposição e da busca por aprovação. Herrmann considera que o “eu” é em si uma “máscara inventada”, trabalhada ao longo da vida — e as redes são o espaço primordial dessa construção e revisão. A circulação da imagem de si torna-se permanente, impulsionada pelo imperativo de pertencer e de manter-se visível, instaurando um ideal de “autenticidade performada” que pode ser insustentável a longo prazo.

Conexão versus Vínculo: Relações, Mal-estar e Cultura Digital

A incorporação tecnológica não impactou apenas o modo como nos apresentamos, mas reformulou profundamente as formas de nos relacionarmos. A passagem do século XX para a era digital abriu espaço à “conexão”, que suplantou o vínculo como modelo dominante das interações. Profundidade e permanência foram substituídas pela instantaneidade e funcionalidade, alterando inclusive o significado dos próprios termos: “amigos” e “relacionamentos” passaram a dar lugar a “conexões”, “seguidores” e “contatos”. Essa incorporação pode ser pensada a partir Sherry Turkle, que analisa a fusão entre os dois mundos desde “Alone Together” e outros escritos sobre “vida nas telas”.

O padrão de descartabilidade, antes restrito ao ambiente virtual, agora influencia expectativas sobre relações offline, tornando o compromisso menos valorizado. Bloqueio, unfollow ou ghosting são práticas comuns, evidenciando a preferência por conveniência e menor exposição à vulnerabilidade. Relações caracterizadas pela busca de satisfação imediata, alimentadas pela ilusão de infinitas possibilidades, promovem impermanência e evitam investimento emocional profundo — menos investimento, menos insegurança.

Paradoxalmente, tal hiperconectividade intensifica a solidão: o volume de interações não garante qualidade, e a constante disponibilidade raramente se traduz em apoio significativo. A superficialidade dos contatos — mediada por telas, sem entonação ou contato humano direto — resulta em vazio relacional e dificulta a construção de laços autênticos. O resultado é uma solidão mascarada por notificações e conversas instantâneas, que estimula um ciclo vicioso de mais conexões em busca de preenchimento.

O espaço social também é redefinido: fronteiras entre físico e virtual se diluem, com conversas migrando para aplicativos e redes, onde predominam trocas utilitárias sobre o aprofundamento do diálogo. O custo da praticidade é ignorar recursos essenciais da comunicação — voz, olhar, presença corpórea— tornando o outro mais facilmente descartável e adaptável à nossa própria “edição” digital.

Essa lógica algorítmica permite hoje uma personalização cada vez maior das experiências digitais, aproximando conteúdos e pessoas segundo interesse compartilhados. Ainda que essa segmentação prometa conexões mais genuínas, ela reforça tanto comunidades quanto bolhas de convivência limitadas.

O fenômeno pode ser compreendido a partir dos pressupostos freudianos sobre o “mal-estar na civilização”. Freud observa que as exigências, normas e interdições culturais sempre entram em conflito com os desejos e impulsos individuais, gerando tensões constantes entre desejo, frustração e adaptação. Na era digital, essa dinâmica se potencializa: as redes sociais promovem uma promessa de felicidade e reconhecimento coletivo, que é rapidamente frustrada pela comparação contínua, busca de aprovação imediata e exposição a padrões inalcançáveis de sucesso e felicidade.

Esse fenômeno expande a repressão, já apontada por Freud como um dos “preços” da civilização: reprime-se, nas redes, não apenas o inaceitável socialmente, mas também tudo aquilo que diverge do ideal de felicidade e produtividade incessantes. Essa constante exposição e necessidade de validação levam muitos ao sofrimento psíquico, ansiedade e até quadros depressivos. O sujeito, submetido à aprovação social medida por curtidas, seguidores e comentários, muitas vezes renuncia aos próprios desejos e necessidades para se encaixar nas demandas externas.

Freud, ademais, definiu o desamparo psíquico como uma condição universal humana. Na contemporaneidade digital, esse sentimento é radicalizado: vivemos conectados, em permanente exposição, na fronteira cada vez mais difusa entre realidade e virtualidade. O excesso de estímulos, os “laços” frágeis e transitórios e o imperativo de pertencimento ampliam tanto a experiência de solidão quanto o desamparo, potencializando o mal-estar e a sensação de insuficiência diante dos padrões impostos pelas plataformas sociais.

Bauman aponta que essa liquidez dos vínculos —relações rápidas e potentes, porém frágeis e prontas para o descarte — é amplificada pelas mídias digitais. Goffman, por sua vez, poderia entender as redes como palcos de encenações múltiplas, onde a gestão da impressão se torna exaustiva e central.

Assim, o mal-estar na civilização adquire contornos digitais: as novas formas de sofrimento emergem do choque entre o ideal de plenitude produzido pela cultura das redes e a impossibilidade de sua realização concreta. O sintoma social contemporâneo manifesta-se no ciclo de performance, ansiedade, solidão e busca incessante por reconhecimento.

A era digital exige reflexão: ampliar conexões não significa qualidade relacional. A valorização da superfície em detrimento da profundidade, o medo constante de perder o lugar no ciclo de visibilidade digital, e o predomínio do disfarce como instrumento de relação impõem desafios inéditos à saúde mental e à construção do eu. O desafio hoje é cultivar vínculos genuínos num universo que estimula a circulação veloz de imagens e a performance exaustiva, afetando perigosamente aquilo que realmente somos.

O Eco Digital na Psique e Caminhos para (Re)Humanização

A profunda remodelação de nosso psiquismo pelas “máquinas in-corporadas” e “ilhas de edição” produz efeitos complexos na saúde mental. O ideal de performance ininterrupta nas redes sociais, sustentado pelo desejo de validação, impõe ansiedade crescente, dependência de aprovação externa e um ciclo de autocrítica e comparação constante. O eu digital, ao buscar aceitação, pode se aprisionar em narrativas editadas, minando espontaneidade e autenticidade.

Neste ambiente de hiperconectividade, a solidão se manifesta paradoxalmente: ampliam-se as possibilidades de comunicação, mas a qualidade das interações se dilui. Relações intermediadas por telas — sem contato direto, sem o corpo, sem a tridimensionalidade das trocas — facilitam vínculos frágeis e dificultam o suporte emocional real, agravando a sensação de desamparo e o medo do esquecimento ou do isolamento. Pesquisas recentes apontam que essa “neurose de ansiedade digital” apresenta sintomas próprios: preocupação crônica com avaliação social, medo constante de exclusão e manutenção de uma vigilância inquieta sobre a própria imagem digital.

Recentemente, os vídeos curtos e dinâmicos tornaram-se o formato dominante, favorecendo a busca por engajamento emocional imediato. Plataformas priorizam conteúdos visuais rápidos, ampliando tanto o potencial criativo quanto a superficialidade das trocas. Comparar-se continuamente a vidas editadas intensifica sentimentos de inadequação, especialmente entre jovens, cuja identidade está em construção e que buscam aprovação para consolidar autoestima e autovalor. O tédio, antes estímulo para criatividade e reflexão, se torna experiência aversiva — combatida com mais estímulos digitais, reforçando o ciclo de superficialidade e fuga da própria interioridade.

Diante desse quadro, a (re)humanização da experiência digital é imperativa. A Psicanálise propõe autoconhecimento crítico: podemos reconhecer a “ilha de edição” e o papel do disfarce como construções sociais, e não verdades sobre o eu; estabelecer limites de uso, cultivar interações presenciais, valorizar vínculos autênticos e a escuta mútua. O autocuidado digital, que inclui o “detox”, a contemplação do presente e a priorização da vida “não editada”, é cada vez mais essencial para o bem-estar psíquico.

A liberdade na era digital exige agência. O desafio não está em negar a tecnologia, mas utilizá-la como aliada, não como ditadora de nossa subjetividade. Cabe-nos buscar autenticidade e profundidade nos vínculos, discernir entre performance e verdade e encontrar espaços de silêncio para que a psique floresça além do algoritmo e do ruído. Mesmo diante da predominância da edição e da performance digital, cresce o discurso da valorização da autenticidade. Os usuários e influenciadores buscam se mostrar ‘reais’, expondo vulnerabilidades e cotidiano, numa tentativa de criar laços mais sinceros e diferenciados no meio virtual. Neste cenário, uma engenharia do eu consciente e crítica é essencial: optar pela qualidade do vínculo em vez da quantidade de conexões, reconhecer limites, acolher vulnerabilidades e cultivar a riqueza de experiências reais — restaurando, assim, o valor do humano diante da máquina e das imagens.

Os males da desindustrialização, por Marcio Pochmann

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 Marcio Pochmann – A Terra é Redonda – 16/09/2025

O abandono da industrialização madura condenou o país a uma reprimarização da economia, fragmentando o tecido social e espalhando a pobreza urbana para o interior. O fim da metropolização industrial não significou desenvolvimento, mas a multiplicação de favelas em novos polos de commodities, onde a riqueza exportadora convive com a informalidade e a violência organizada

De forma prematura, o processo de industrialização nacional promovido pela Revolução de 1930 foi interrompido pelas regressivas reformas neoliberais instaladas a partir de 1990. Com isso, as características principais da sociedade urbana e industrial – ainda incompleta – que havia sucedido o longevo e primitivo agrarismo há cem anos passou a dar lugar a outra estrutura social dos serviços hiperconectada por tecnologias de informação e comunicação.

Concomitante com a ruína da sociedade industrial, o fenômeno da metropolização, outrora promovida pela dinâmica da industrialização mais concentrada nas cidades litorâneas, terminou sendo embargado. Com o esvaziamento da importância da indústria, os empregos de qualidade e maior remuneração foram sucedidos por ocupações nos serviços associados, em geral, mais à circulação do que a produção, estimulando o inédito processo da desmetropolização nas regiões litorâneas.

Simultaneamente, a retomada do modelo econômico primário exportador passou a promover – mais distante da convencional rede urbana nacional – a emergência de enclaves nos espaços urbanos no interior do país face à expansão da renda nos negócios, em geral, voltados ao comércio exterior. Dessa forma, o fenômeno da urbanização periférica do capitalismo que estava praticamente concentrado nas antigas metrópoles litorâneas brasileiras passou rapidamente a ser interiorizado com outro tipo de dinâmica urbana em cidades de médio porte.

Os males da desindustrialização

O declínio da atividade industrial no conjunto da economia brasileira compreende, em geral, o processo antecipado da desindustrialização desde o final do século 20. Nos países do Norte Global com a industrialização considerada madura, a queda relativa da atividade industrial aconteceu em grande medida após o pleno atendimento da demanda populacional por bens manufaturados, favorecendo o maior deslocamento do consumo para serviços mediados pela elevação da renda per capita menos desigual.

No Brasil, contudo, a desindustrialização terminou ocorrendo precocemente, sem que o país tivesse ainda atingido o nível de industrialização madura. Assim, uma parcela significativa da população ficou distante do acesso pleno aos bens manufaturados, simultaneamente à estagnação relativa da renda per capita e à repartição desigual da riqueza sustentada no processo fictício da financeirização.

No ano de 2024, por exemplo, o setor industrial representou a metade da participação que havia sido registrada, em 1985, no Produto Interno Bruto nacional. No mesmo período de tempo, tanto a parcela do emprego industrial em relação ao total do emprego formal decaiu 44% como avançou parte dos postos de trabalhos mais qualificados na indústria foram substituídos pelos de serviços, em geral de menor produtividade e contida capacidade de geração de riqueza e desenvolvimento tecnológico.

Assim, o antigo projeto de avançar na direção nacional de uma economia complexa e diversificada foi sendo gradualmente superado pelo novo perfil da especialização produtiva ancorado em certo dinamismo regional assentado em commodities para exportação. Com a geração da renda exportadora, o Brasil passou a ter melhores condições de financiar o acesso aos bens e serviços de maior valor agregado por meio das importações, reposicionando-se na Divisão Internacional do Trabalho1.

A desmetropolização litorânea

A metropolização marca o processo de industrialização nacional concomitante com o enorme êxodo rural acontecido ao longo do século XX. Sem a realização da reforma agrária, comum nos países do Norte Global, o Brasil assistiu – concentrado no tempo – ao brutal deslocamento da população do campo no interior do país para poucas cidades litorâneos providas de intenso crescimento econômico industrial.

A cidade do Rio de Janeiro que até 1960 era a capital federal e economicamente uma das mais dinâmicas do país serve de exemplo da expansão desordenada ocorrida nos centros urbanos com base produtiva industrial. Entre os anos de 1950 e 1980, a intensa expansão populacional do município do Rio de Janeiro registrou o aumento de moradores em favelas que passou de 7,2% para 12,1% do total da população.2

Algo diferente da realidade das favelas que surgiram no final do século XIX no Brasil, quando muitos libertos sem recursos e excluídos de políticas públicas se deslocaram para áreas pouco povoadas, mais afastadas e precárias dos centros urbanos. A primeira favela brasileira teria surgido no ano de 1897 na cidade do Rio de Janeiro, em pleno Morro da Providência, com a chegada dos ex-combatentes da Guerra de Canudos (1897-1897) que lutaram na expectativa de receber uma moradia.

Uma especificidade da urbanização brasileira transcorrida durante o ciclo da industrialização nacional deveu-se, em geral, à ausência do planejamento nas cidades que diante da migração desenfreada produziu enorme desigualdade na ocupação do espaço urbano, sobretudo concentrado nas regiões litorâneas. De certa forma, a antiga pobreza rural terminou sendo transferida parcialmente para as grandes cidades, concomitante com o aparecimento de favelas em paralelo à ampliação da riqueza produzida pelo crescimento industrial do país.3

Toda essa transformação estrutural da sociedade brasileira imposta pela urbanização até a década de 1980 esteve submetida à elevação dos ganhos de produtividade do trabalho. Com isso, parte importante da pobreza advinda do campo foi sendo superada por empregos com salário superior ao nível de subsistência, sobretudo no segmento industrial.

Mas com a desindustrialização posta em marcha pelas reformas neoliberais regressivas desde 1990, a desmetropolização passou a se processar enquanto processo inverso da metropolização. Isso porque correspondeu ao afastamento da população, empresas e investimentos centrado nas grandes metrópoles na faixa litorânea para cidades de médio porte, seja em regiões metropolitanas, seja no interior do país.

Com a estagnação da produtividade do trabalho, especialmente nos antigos centros industriais do país, as grandes cidades litorâneas deixaram de ser atrativas à migração como anteriormente. Mesmo assim as favelas continuaram a se reproduzir com a presença de múltiplas gerações de moradores com antepassados, ainda que assistidos por avanços de urbanização.

Conforme revelado pelo Censo Demográfico de 2022, a população brasileira aumentou, diferentemente do conjunto dos residentes nas metrópoles litorâneas. As 27 capitais brasileiras mantiveram a participação no total da população entre os anos de 2010 e 2022, por exemplo, enquanto entre os censos demográficos de 1872 e 1980 foram as cidades com maior concentração de habitantes.

Os municípios de São Paulo e do Rio de Janeiro, as duas cidades mais populosas do país, exemplificam o processo da desmetropolização em regiões litorâneas. No ano de 2022, por exemplo, os dois municípios juntos responderam por 8,7% do total da população do país, enquanto em 1991 representavam 10,3%. Somente em 2025, quase 38% dos 5.571 municípios brasileiros tiveram redução no número de habitantes em relação ao ano de 2024.

Favelização no interior do país

O fenômeno da favelização ocorrido durante a urbanização processada no ciclo da industrialização nacional entre as décadas de 1930 e 1980 deixou de ser mais recentemente um problema exclusivo das metrópoles próximas da costa atlântica do país. Com a desindustrialização e a desmetropolização, a favelização tem avançado para algumas cidades do interior, compreendendo, por exemplo, os municípios que enriqueceram assentados, em geral, no modelo econômico primário-exportador.

Sejam estados com desindustrialização mais avançada como em São Paulo, exemplificado pelas cidades abastadas na produção sucroalcooleira (Ribeirão Preto e Sertãozinho), e no Rio de Janeiro, nas regiões petroleira (Macaé e Rio das Ostras) e da turística serrana (Petrópolis e Teresópolis), sejam estados com baixo graus de industrialização como nas regiões do Norte (Amazônia e Pará) e do Centro-Oeste (Distrito Federal e Goiás), a favelização da população no interior cresceu.4

A partir da década de 1990, justamente quando se tornou mais evidente no país a contenção do crescimento demográfico e a desaceleração da urbanização, ganhou impulso a parcela da população residindo em domicílios definidos como favela que saltou de 6,1 milhões (3,3% da população total), em 1991, para 16,4 milhões de pessoas (8,1% da população total), em 2022. Ainda que a comparação populacional não seja adequada diante de alterações metodológicas, percebe-se a aceleração tanto da quantidade de municípios com registros de população favelada, multiplicada por 3,1 vezes (de 209 para 656 cidades), como do número de favelas que passou de 2,7 mil para 12,3 mil (4,6 vezes maior).

De um lado, o Brasil segue concentrando população favelada nas metrópoles litorâneas diante do esvaziamento econômico provocado pela desindustrialização, violência e elevado custo da vida. Assim, a informalidade ocupacional em decréscimo nos antigos centros industriais passou a recuperar espaço urbano, tendo o destino das massas sobrantes aos novos requisitos do capitalismo rentista exposto a disputas entre o importantíssimo conjunto governamental dos programas de transferência de renda e o salto organizativo do banditismo social e/ou fanatismo religioso (sistema jagunço urbano).

De outro lado, as concentrações urbanas mais favelizadas revelam o deslocamento demográfico para municípios do interior que guardam alguma dinamicidade econômica a atrair população que vem, por exemplo, da floresta para se acumular ao longo de grandes rios da Amazônia. Também o fenômeno da favelização em cidades médias do interior do país que decorre do processo vinculado à dominância do modelo econômico primário-exportador.

Ao concentrar riqueza do comércio externo estimula localmente ocupações em atividades vinculadas ao comércio e serviços em geral. Dessa forma estimula a formação de quase enclaves locais que parecem repetir o passado da urbanização desigual ocorrida no passado sem planejamento nas regiões litorâneas, porém, agora, submetida à presença do novo sistema jagunço.

Marcio Pochmann, professor titular de economia na Unicamp, é o atual presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Autor, entre outros livros, de Novos horizontes do Brasil na quarta transformação estrutural (Editora da Unicamp).

Notas

  1. ARAUJO, E.; FEIJÓ, C. Industrialização e desindustrialização no Brasil.Curitiba: Appris, 2024; POCHMANN, M. Brasil sem industrialização: a herança renunciada. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2016; SAMPAIO, D. Desindustrialização e desenvolvimento regional (1985-2015). In: MONTEIRO NETO, A. et al. (orgs.) Desenvolvimento regional no Brasil: políticas, estratégias e perspectivasRio de Janeiro: Ipea, 2017.
  2. GUIMARÃES, A. As favelas do Distrito Federal e o Recenseamento de 1950. Revista Brasileira de Estatística. ano 14, n.55, jul./set., 1953; COSTA, V. Expansão e quantificação de favelas no município do Rio de Janeiro nas últimas décadas. Rio de Janeiro: Ippur/Ufrj, 1992.
  3. DA MATA, D. et alFavelas e dinâmica das cidades brasileiras. In: CARVALHO, A. et al. (orgs.) Ensaios sobre economia regional e urbana. Brasília: Ipea, 2007; SANTOS, M.  A urbanização brasileira. São Paulo: Editora HUCITEC, 1993; POCHMANN, M. A desmetropolização regressiva do Brasil. Outras palavras, 2022.
  4. PEQUENO, R. Expansão da favelização no Brasil.Observatório das Metrópoles, 2024; FREITAS, A. Favelas rurais e favelas urbanas no Brasil. Revista Políticas Públicas & Cidades, 13 (2), 2024; PÁDUA, J. Favelização na cidade média do agronegócio. Porto Alegre: UFRGS, 2020.

35 anos: o sistema que queremos e que precisamos ter, por Guimarães, Costa & Fernandes

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O SUS que almejamos e necessitamos passa inevitavelmente pela ampliação da Medicina de Família e Comunidade

Por Fabiano Guimarães, Brenda Costa e Arthur Fernandes

O Estado de São Paulo, 19/09/2025.

Em 2025, o Sistema Único de Saúde (SUS), um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde pública do mundo, celebra 35 anos de existência. Fundamentado a partir do artigo 196 da Constituição federal de 1988, o SUS é um pilar da cidadania brasileira, garantindo acesso integral à saúde, da prevenção e da atenção primária ao tratamento de alta complexidade, como câncer e transplantes, para milhões de pessoas, servindo como modelo e inspiração global por sua universalidade e abrangência, que contrastam com modelos fragmentados e de alto custo em outras nações.

Nessas três décadas e meia, o SUS impulsionou avanços notáveis: a drástica redução da mortalidade infantil, a erradicação da poliomielite e um calendário vacinal robusto e atualizado são testemunhos de sua eficácia e resiliência. Mais do que inspirar sistemas de saúde globais, o SUS alcança os locais mais remotos e as populações mais vulneráveis, oferecendo cuidado essencial sem custo direto ao paciente, um contraste marcante com a realidade de muitos países, onde o acesso à saúde é determinado pela capacidade de pagamento.

Mesmo com ampla atuação em diversas frentes, o SUS ainda está em processo de avanço em muitas áreas, principalmente na Atenção Primária à Saúde (APS) e no programa Estratégia Saúde da Família (ESF). Ambos são o ponto inicial de contato da população com o sistema, por meio das mais de 44 mil Unidades Básicas de Saúde espalhadas pelo País. Enquanto você lê este artigo, profissionais das mais de 50 mil equipes da ESF estão atuando nos mais diversos territórios do Brasil.

E qual seria o SUS que queremos e precisamos dentro da perspectiva real e futura da população brasileira? O SUS que almejamos e necessitamos, à luz das crescentes demandas futuras da população, como o envelhecimento demográfico e o aumento das doenças crônicas, passa inevitavelmente pela ampliação da Medicina de Família e Comunidade (MFC). Experiências bem-sucedidas em países como Canadá, Holanda e Reino Unido demonstram que investir massivamente na atenção integral e coordenada eleva a qualidade de vida da população e otimiza os recursos do sistema, gerando eficiência e sustentabilidade.

Na APS, o indivíduo é atendido de forma holística, considerando não apenas a doença, mas o contexto social, econômico e familiar do paciente, sendo encaminhado a especialistas apenas quando estritamente necessário. A presença de médicos e médicas de família e comunidade acessíveis, atuando como o profissional de referência para cada cidadão, é uma estratégia de saúde pública comprovadamente eficaz e custo-efetiva. Essa abordagem, alinhada às melhores práticas internacionais, é capaz de transformar o panorama da saúde no Brasil ao promover a saúde, prevenir doenças e gerenciar condições crônicas de forma mais eficiente.

A Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) corrobora: o investimento robusto na APS não só reduz custos operacionais, mas eleva a qualidade de vida e a eficiência global do sistema de saúde.

Ao centralizar os cuidados num único especialista que atua com a abordagem centrada na pessoa, o SUS oferta os princípios de longitudinalidade e integralidade. O acompanhamento ao longo da vida faz com que aquele médico ou médica conheça a pessoa com todos os seus determinantes sociais, inserida em seu contexto familiar e comunitário, e como tudo isso afeta a sua saúde, produzindo melhores tratamentos e prevenindo doenças, reduzindo excesso de exames e intervenções desnecessárias, promovendo assim uma economia ao sistema.

O SUS que existe já é grande, robusto e funcional, mas pode melhorar e estamos caminhando para isso. Novas políticas públicas estão sendo implementadas, assim como outras estão em discussão. Que o Sistema Único de Saúde, patrimônio do povo brasileiro, continue sua trajetória de sucesso, assegurando saúde e dignidade a todos. Vida longa ao SUS!

Fabiano Guimarães, Médico de família e comunidade, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, mestre em Saúde da Família Profsaude/UFJF, preceptor da Residência em Medicina de Família e Comunidade do HC-UFMG, é professor da Graduação em Medicina na Unifenas-BH

Brenda Costa, Médica de Família e Comunidade, diretora de Comunicação da Sbmfc, doutoranda em Saúde Pública na ENSP/Fiocruz, professora no departamento de Medicina Integral, Familiar e Comunitária, é preceptora do programa de residência em Medicina de Família e Comunidade da UERJ

Arthur Fernandes, Médico de família e comunidade, diretor do Departamento de Comunicação da Sbmfc, mestre em Cuidados Paliativos e Paliativista, preceptor da Residência em Medicina de Família e Comunidade da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF), é referência técnica distrital em MFC da SES-DF

Polarizações crescentes

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Vivemos numa comunidade internacional marcada por grandes confrontos políticos, discussões econômicas e desajustes sociais, com impactos generalizados para todos os indivíduos, empresas e governos nacionais, gerando constrangimentos para todos os setores sociais, conflitos bélicos e militares, crescimento tecnológico inimaginável e dificuldades crescentes de relacionamento interpessoal, além de grandes desequilíbrios emocionais e espirituais.

Neste ambiente de tantos desequilíbrios percebemos o aumento sistemático da polarização em todas as esferas e setores da comunidade global, cientistas renomados, responsáveis por pesquisas relevantes, se sentem ameaçados e perseguidos por movimentos negacionistas que renegam descobertas científicas importantes para a comunidade mundial, gerando incertezas, medos e instabilidades na população, contribuindo para a divulgação do pânico, da confusão e do descrédito das pesquisas científicas.

No front político, percebemos o incremento da polarização, embora percebamos que a discussão faz parte da lógica política para a construção dos ideais democráticos, os debates nos parlamentos são imprescindíveis, as conversações são fundamentais entre os atores sociais, políticos e econômicos para defenderem ideias e pensamentos com o intuito de fortalecer os laços sociais, aumentar e consolidar os consensos sociais, vislumbrando um bem-estar na comunidade. Infelizmente, as polarizações crescentes, em todas as regiões do mundo, nos trazem confrontos físicos, agressões constantes, violências verbais, cancelamentos, represálias e inverdades, que contribuem para a fragilização dos ideais democráticos, levando a sociedade a perder tempos preciosos com discussões estéreis e inapropriadas, onde cada grupo defende seus interesses imediatos.

No campo econômico, percebemos um conflito secular entre ortodoxos e desenvolvimentistas, com visões diferentes do comportamento econômico e da percepção política, um se deliciando com políticas de austeridade, juros altos e arrocho da renda da população mais fragilizada, defendendo a limitação dos gastos públicos e sociais, além de manterem os subsídios para grupos mais abonados da sociedade, muitos deles seus empregadores. De outro lado, percebemos que outros priorizam os investimentos produtivos, a geração de emprego, aumento da renda e salários melhores, sendo vistos, muitas vezes, como populistas e gastadores.

No campo ideológico, percebemos um conflito crescente e assustador, pessoas defendendo pensamentos e ideologias desconhecidas, bradando ideias e teorias conspiratórias supostamente defendidas por intelectuais e, pasmem, autores que não foram lidos e mesmo assim, se arvoram na condição de críticos travestidos de intelectuais e dotados de capacidade reflexiva. Neste cenário, percebemos, na sociedade global, uma visão binária, acreditando que um dos lados é o representante do bem e outros são representantes do mal, uma dualidade medíocre e limitadora da capacidade de reflexão crítica sobre os grandes desafios da comunidade internacional.

A polarização do mundo coloca os indivíduos em um grande conflito existencial, neste cenário ao encontrarmos pessoas com ideias e pensamentos diferentes são taxados de ignorantes e atrasados, limitando a capacidade cognitiva, gerando um conflito de todos contra todos, num momento fundamental para compreendermos os grandes desafios da humanidade. Esta polarização nos coloca em polos contrários, num momento imprescindível para unir forças em prol da humanidade, elencando desafios coletivos, tais como a degradação ambiental, a corrupção generalizada, a pobreza material que assola parte significativa da sociedade mundial, a concentração de riqueza que patrocina uma guerra fratricida entre ricos versus pobres, dentre outros. Será que estamos na hora de acabarmos com essa polarização equivocada e atrasada, que destroem os elos dos seres humanos e leva a sociedade global para uma desagregação civilizacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre e Doutor em Sociologia e Professor universitário