Duelos de gigantes

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A sociedade mundial vem passando por grandes abalos econômicos, sociais e políticos nestes últimos meses, que estão impactando toda a comunidade internacional. O crescimento das políticas protecionistas adotada pelos governos, onde destacamos o tarifaço adotado pelo governo estadunidense, impactando sobre países de todas as regiões do mundo, gerando fortes constrangimentos econômicos e produtivos nas nações parceiras e aliadas e países mais distantes, com visões ideológicas diferentes e sem alinhamento político com os Estados Unidos.

Neste momento, o que nos chama a atenção é o confronto entre as duas maiores economias do mundo, China e Estados Unidos. Este confronto econômico e político deve nortear as discussões estratégicas nos próximos anos, quem sabe décadas, que devem estimular medidas protecionistas variadas para angariar espaço e vantagens na economia internacional.

De um lado, encontramos uma nação que vem perdendo espaço no cenário global, caracterizada como a mais relevante do ambiente internacional no século passado. Nesta época, os Estados Unidas da América se caracterizaram como a maior economia do mundo, detentora do maior setor indústria e bélico, responsável pela emissão da moeda referência dos setores comercial e financeiro, responsável pelos maiores investimentos científicos e tecnológicos do mundo e dona da classe média vista como referência global.

Do outro lado encontramos uma nação milenar, detentora de uma das maiores populações do globo, responsável por um feito histórico da sociedade mundial, a única nação do mundo que conseguiu retirar da pobreza extrema mais de 800 milhões de pessoas num período de quarenta anos. Uma nação que se transformou rapidamente, com fortes investimentos em ciência, pesquisa e tecnologia, se transformando na indústria do mundo e transformando toda sua estrutura produtiva, com forte planejamento estatal e empresas referências na economia mundial.

Neste confronto, os estadunidenses tentaram impedir a comercialização de semicondutores, os chamados chips, para seu maior competidor, impedindo que as grandes empresas norte-americanas vendessem este produto para os produtores chineses, desta forma, sem este produto, os asiáticos não conseguiriam construir o seu setor produtivo global, fragilizando seu setor industrial e obrigando-os a aceitar as exigências do governo dos Estados Unidos. Para infelicidade dos estadunidenses, o governo chinês canalizou grandes investimentos para as áreas científica e tecnológica, fortalecendo a produção local, garantindo sua soberania política e fomentando sua autonomia econômica.

Em contrapartida, recentemente, os chineses passaram a limitar as exportações das chamadas terras raras para os Estados Unidos, já que a China detém mais de 80% da produção global, gerando grandes preocupações para os setores de tecnologia e de defesa, afinal, estas terras raras são minerais estratégicos que entram na cadeia global dos setores de alta tecnologia.

Neste duelo de gigantes, cada um dos lados busca arregimentar nações parceiras, ganhando musculatura para enfrentar o confronto do século e angariar novas alianças e novos espaços de comércio e integração produtiva. Neste cenário, marcado por um conflito desta envergadura, não podemos esquecer a possibilidade, ainda real, de um conflito militar entre estas potências que, com certeza, podem inviabilizar a vida humana no planeta Terra, uma guerra fratricida desta proporção, pode destruir a humanidade, o que seria um risco gigantesco e   uma possibilidade real, ainda mais sabendo que, nos últimos anos, a incivilidade e a crueldade vem dominando a sociedade global.

Ary Ramos da Silva Júnior, bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

 

Turma 2025 – Ciências Econômicas – Universidade Paulista (UNIP) – São José do Rio Preto

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Empregabilidade e empreendedorismo, por Ricardo Antunes

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Ricardo Antunes – A Terra é Redonda – 21/10/2025

O que se anuncia como a modernidade do trabalho por aplicativos é, na verdade, a legalização de um arcaísmo social, onde a flexibilidade significa a morte lenta de direitos e, literalmente, a morte de trabalhadores

Da fraude da “empregabilidade” ao contorcionismo do “empreendedorismo”, estamos presenciando uma fase de profunda derrelição dos direitos e das condições de trabalho no Brasil.

Podemos recordar o engodo da falta de “empregabilidade” como pretexto para as demissões no passado recente. Quem perdia seu emprego recebia esta justificativa: não havia empregabilidade! Nem o dicionário do mestre Aurélio conhecia esta inusitada palavra, inventada pelo ideário desprezível dos CEOs.

Para eliminar trabalho, era preciso ter uma “explicação”. Esperar que as grandes corporações exibissem coágulos de sinceridade é como imaginar que no deserto do Saara se possa ter gelo o ano inteiro! É por isso que, mesmo quando trabalhadores e trabalhadoras faziam cursos de todo tipo, das especializações às pós-graduações, não tinha jeito: sem “empregabilidade”, uma hora vinha a demissão!

Mas a classe trabalhadora percebeu, algum tempo depois, que seu emprego estava de fato sendo eliminado pelos novos inventos tecnológicos, que são preferencialmente programados para eliminar trabalho vivo. Era preciso, então, “culpar” a classe trabalhadora e responsabilizá-la pelo desemprego, na passagem do taylorismo-fordismo para o toyotismo e sua empresa flexível e enxuta (lean production).

Adentramos, então, uma nova era de financeirização do capital (do arcabouço fiscal que tem a face de calabouço social) impondo a demolição do trabalho regulamentado. Fenômeno global, basta recordar o trabalho contingente e dos jovens que compreendem os cyber-refugiados no Japão, sem esquecer os imigrantes nos Estados Unidos, as maquiladoras no México, o “trabalho atípico” na Itália ou os recibos verdes em Portugal, só para dar alguns exemplos.

No Brasil, vimos esparramarem-se as “falsas” cooperativas, depois a terceirização, inicialmente das atividades-meio e depois das atividades-fim. Todas concebidas, moldadas e calibradas pelo mundo do capital, visando à sistemática corrosão dos direitos do trabalho, que dilapidou ainda mais as condições de trabalho e de remuneração da classe trabalhadora, intensificando os níveis de exploração e de precarização da força de trabalho, da qual cerca de 40% trabalha na informalidade.

Com o neoliberalismo entrelaçado à financeirização, impôs-se também a privatização dos serviços públicos, turbinada pelas novas tecnologias digitais. Os objetivos e os resultados se evidenciam: quanto mais trabalho morto, com algoritmos e inteligência artificial, melhor. Mas como é impossível a eliminação completa do trabalho humano – e este é o calcanhar de Aquiles do capital – urge devastá-lo e depauperá-lo ao limite, eliminando tudo que um dia significou algum direito real.

Para que tal empreitada fosse efetivada, o léxico do capital ganhou uma impulsão frenética: era preciso adulterar profundamente o sentido etimológico original das palavras pelo novo dicionário empresarial: trabalhadores(as) tornaram-se “parceiros(as)”, “colaboradores(as)”; assalariados(as) converteram-se em “empreendedores(as)”.

A cada nova onda corporativa, a enxurrada de adulterações ganhava mais lustre catártico: “líder”, “times”, “metas”, “gestão de pessoas”, “inovação”, “sinergia”, “resiliência”.

Assim, proliferou-se o “novo” palavrório obrigatório da desmedida empresarial. Tudo cuidadosamente concebido para obliterar o assalariamento, como se vê na pejotização e no trabalho uberizado, de modo a recuperar modalidades de trabalhos vigentes nos séculos XVIII e XIX, agora recheadas com sabor algorítmico e digital e, “coincidentemente”, cada vez mais com menos direitos do trabalho.

O resultado é explosivo: mais informalidade, precarização, subemprego, desemprego, trabalho intermitente etc. A terceirização – que no fordismo se restringia à setores como limpeza, segurança, transporte, alimentação –, de exceção, vem se tornando regra (até mesmo no trabalho público) e se amplificando na era da inteligência artificial, “abrindo a porteira” para formas de contratação como PJ, MEI, microtrabalhos, crowdwork, à margem da legislação protetora do trabalho.

Suas consequências são profundas: como as “metas” são interiorizadas cotidianamente na subjetividade da classe trabalhadora (em substituição ao também nefasto cronômetro taylorista), aflora um resultado assustador: aproximadamente 30% da força de trabalho ocupada no Brasil sofre de burnout, doença que se caracteriza “pelo esgotamento físico e mental relacionado ao trabalho” (conforme dados da Associação Nacional de Medicina do Trabalho – ANAMT), o que nos coloca em segundo lugar no ranking mundial desta doença, que tristemente singulariza nosso tempo.

Adoecimentos mentais, assédios, depressões, suicídios, então, não podem ser efetivamente compreendidos se não se considera a realidade do trabalho precarizado no Brasil atual. O exemplo do trabalho em plataformas é também desolador: na cidade de São Paulo, em média, mais de um entregador por aplicativo morre por dia por acidente de trabalho. E a pesquisa recém-divulgada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em 17 de outubro de 2025, mostra que a jornada de trabalho realizada pelos trabalhadores de plataformas vem se ampliando: em 2024 ela foi, em média, 5,5 h mais extensa que a dos demais trabalhadores. É essa a dura realidade do trabalho “moderno” no Brasil.

É nesse cipoal que o STF terá que refletir e decidir, seja ao tratar do Tema 1389, sobre a pejotização, seja ao julgar as demandas do IFood e da Uber que pretendem legitimar essa modalidade de trabalho uberizado e sem direitos no Brasil, desconsiderando tanto as decisões do TST, como o princípio protetor do trabalho que consta do artigo 7º da Constituição de 1988. [1]

Como procederá o Supremo? Será seu nome escrito em maiúsculo, como tem feito na luta contra o golpismo em nosso país, ou será escrito em minúsculo, tornando-se diretamente responsável por uma irreversível regressão na legislação protetora do trabalho no Brasil?

Ricardo Antunes é professor titular de sociologia na Unicamp. Autor, entre outros livros, de O capitalismo pandêmico (Boitempo).

[1] Sobre os direitos dos trabalhadores em plataformas digitais, ver o recém-publicado Direitos de verdade: essa história também é sobre você. São Paulo: Boitempo, 2025, distribuição gratuita. Sobre as decisões de tribunais europeus e os processos de regulamentação no Brasil ver Trabalho em plataformas: regulamentação ou desregulamentação? São Paulo: Boitempo, 2024, distribuição gratuita. Ver também a campanha pública informativa do Ministério Público do Trabalho-15ª. Região, resultado de Projeto conjunto com o Grupo Mundo do Trabalho e suas Metamorfoses, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.

‘Pobreza não é fracasso pessoal’ por Ana Cristina Rosa

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Ana Cristina Rosa, Jornalista especializada em comunicação pública e vice-presidente de gestão e parcerias da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPública).

Folha de São Paulo, 20/10/2025

A pobreza não é um fracasso pessoal, é uma falha sistêmica, uma negação da dignidade e dos direitos humanos. A afirmação feita pelo secretário-geral da ONU, Antônio Guterres, no Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza (17/10), diz muito sobre a realidade do povo brasileiro.

Pessoas negras (pretos e pardos) representam a maioria dos que se encontram em situação de pobreza no nosso país. Para se ter uma ideia, entre 2012 e 2023, mais de 60% dos negros tinham renda de no máximo um salário-mínimo. Nesse período, a renda média nos domicílios com pretos e pardos foi menos da metade da auferida nos domicílios sem negros (Cedra).

No Brasil, a expectativa de vida de mulheres e homens negros chega a ser seis anos menor do que a dos brancos em razão de fatores decorrentes da pobreza, que expõe os mais pobres a doenças ligadas à falta de saneamento básico, à alimentação inadequada e à violência urbana.

Quem vive em situação de pobreza experimenta múltiplas privações que se conectam reforçando as carências e dificultando o acesso efetivo a direitos e garantias constitucionais. Um rol exemplificativo inclui o direito à moradia digna, nutrição adequada, trabalho decente, inclusão social, educação de qualidade e saúde.

Verdade que o país entrou num ciclo de redução da pobreza e da desigualdade nos últimos quatro anos, o que permitiu que quase 9 milhões de pessoas deixassem a chamada linha da pobreza (IBGE). Mas é muito importante lembrar que a pobreza é dinâmica, ou seja, as famílias muitas vezes entram e saem dessa condição de maneira cíclica

Nesse sentido, impedir que as pessoas voltem para a pobreza é tão importante quanto tirá-las dessa condição.

E é aí que entram programas sociais de transferência de renda e políticas públicas de redução das desigualdades. O combate à pobreza abrange a promoção da equidade racial, o acesso à justiça e a inclusão racial. Afinal de contas, pobreza não é um fracasso pessoal.

 

 

O futuro do trabalho ou o trabalho sem futuro? por Marcelo Augusto Vieira Graglia

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Marcelo Augusto Vieira Graglia – Revista Cult – 03/09/2023

Billy Turnbull era um rapaz astuto, nos seus recém-completados 14 anos de vida. Naquela manhã fria de maio de 1831, caminhava pela rua principal de Bedlington em direção à mina que ficava no lado oeste da cidade, próxima à estrada que levava ao norte. Por entre a névoa, Billy já distinguia as pedras da igreja de São Authbert. Cerca de 400 metros abaixo, virou à esquerda, após a casa de Walter Daglass. Três portas acima, havia um arco que levava a um pátio com seis residências e um pomar. As casas eram decrépitas, para dizer o mínimo. O campo de batatas ficava do outro lado da parede dos fundos, seguia por ali para cortar caminho.

Naquela manhã fria, quando Billy Turnbull finalmente chegou à entrada da mina, a querela já estava armada. Dezenas de homens, vestidos em seus farrapos e com seus rostos tingidos pelo pó preto do carvão, se aglomeravam em torno da máquina a vapor recém-adquirida pelo Sr. Stephens. Com suas pás e picaretas, amotinados, golpeavam o equipamento que respondia emitindo longos chiados. Em pouco tempo, a máquina parecia morta, imóvel e silenciosa. Assustado, Billy viu Brian Llewellin saindo do meio dos mineiros e vindo em sua direção. Quando o amigo se aproximou, perguntou: O que está havendo, Brian? Ao que este respondeu: Não sou Brian, meu nome é Ned Ludd.

A história acima foi construída a partir de personagens fictícios, mas baseada em fatos históricos. Ned Ludd era a alcunha utilizada por muitos dos trabalhadores envolvidos em protestos e sabotagens. O ludismo foi um movimento de trabalhadores iniciado na Inglaterra no início do século 19, que utilizou a destruição de máquinas como forma de pressionar os empregadores contra as condições precárias e contra a mecanização que causava demissões e substituição de funções mais qualificadas por outras de pouca exigência técnica e mais mal remuneradas.

No campo do trabalho humano, é histórico o temor pelos efeitos potencialmente destruidores da tecnologia sobre os postos de trabalho, simbolicamente representado pelo movimento ludista. Nesta segunda década do século 21, novamente a emergência de uma nova onda de inovação tecnológica reacende a polêmica com visões diametralmente opostas: de um lado, a daqueles que vislumbram um futuro brilhante, no qual a tecnologia libertaria a humanidade da obrigação do trabalho duro, repetitivo, desestimulante, ao mesmo tempo que elimina doenças, promove a longevidade, o conforto e o deleite com novas possibilidades lúdicas e sensoriais trazidas por artefatos tecnológicos e ambientes digitais; de outro, em posição antagônica, há aqueles que temem as consequências potencialmente nefastas da proliferação da tecnologia de forma intensa por tantos campos sensíveis. Soma-se ainda o risco da desumanização das relações e da interferência voraz de sistemas de inteligência artificial (IA) em campos eminentemente humanos, num cenário de pós-humanismo cibernético.

O que alimenta esses temores? Embora a automação tenha sido historicamente confinada a tarefas rotineiras envolvendo atividades baseadas em regras explícitas, a IA está entrando rapidamente em domínios dependentes de reconhecimento de padrões e pode substituir os humanos em uma ampla gama de tarefas cognitivas não rotineiras, seja em relação ao trabalho industrial, de serviço ou de conhecimento. Nessa transformação, há aspectos claramente positivos e outros que inspiram maior reflexão.

Parafraseando a célebre frase narrada por Tucídides, na colossal obra História da Guerra do Peloponeso, quando a delegação da cidade de Corinto se empenhava em convencer os relutantes espartanos a abandonar seu temor em declarar guerra a Atenas: não devemos temer a tecnologia (Atenas), o que devemos temer são a nossa ignorância, a nossa indiferença e a nossa inércia. A ignorância, no sentido de não entendermos ou não buscarmos entender o processo histórico que ora se movimenta; a indiferença, no sentido de não nos sensibilizarmos com os efeitos deletérios possíveis, especialmente sobre grandes parcelas menos protegidas ou desfavorecidas da nossa sociedade, de ignorarmos os riscos; ademais, a inércia, traduzida pelo não agir, enquanto indivíduos, sociedade e governos não se preparam devidamente, não estabelecem estratégias adequadas, não constroem seus diques, seus programas, projetos e políticas públicas robustas e suficientes para enfrentar um mundo em transformação.

John Maynard Keynes, em Economic possibilities for our grandchildren (1930), argumentava que o aumento da eficiência técnica havia ocorrido de forma mais rápida do que seria possível para lidar com o problema da absorção da força de trabalho. A depressão mundial – consumada com a quebra da Bolsa de Nova York em 1929 e a enorme anomalia do desemprego que se estabeleceu – impedia a clareza de visão necessária para que muitos pudessem captar as tendências que se afiguravam, como a do desemprego estrutural. Para Keynes, isso significava “desemprego devido à nossa descoberta de meios de economizar o uso do trabalho ultrapassando o ritmo em que podemos encontrar novos usos para o trabalho”. O economista previa que, mantidas as taxas de crescimento da produtividade geradas pela incorporação de tecnologias nos processos produtivos, e outras condições, em 100 anos o problema econômico mundial da escassez poderia ser resolvido. Em contrapartida, esse ganho de produtividade se daria, principalmente, pela substituição do trabalho humano; portanto, não seria necessário no futuro um contingente tão grande de pessoas trabalhando. Dessa forma, o principal problema econômico seria de distribuição de riqueza, não mais de escassez.

A nova onda de inovação tecnológica tem características que a diferem das anteriores, como as da eletricidade, do automóvel, do computador, da internet. Entre elas, a ruptura do padrão de crescimento dos empregos concomitante ao crescimento econômico. Isso nos leva a três questões distintas. Em primeiro lugar, a questão da distribuição de renda enquanto processo a ser revisto e adequado aos novos tempos; em segundo, a questão da transição segura de uma sociedade economicamente baseada na renda do trabalho e emprego para outra em que não haja para muitos; e, por último, mas não menos importante e desafiador, a construção e a viabilização de alternativas para a falta do trabalho enquanto fonte de significado e propósito subjetivos de vida.

A chegada dos chamados modelos de IA do tipo LLM – Large Language Models –, treinados a partir de algoritmos de aprendizagem profunda, com uso de quantidades colossais de dados, permitiu o desenvolvimento de produtos surpreendentes, como o ChatGPT, o Bard e o Midjourney. Esses produtos furaram a bolha técnica onde essa tecnologia vinha sendo desenvolvida, ao possibilitar que milhões de pessoas e organizações pudessem utilizar seus recursos nas mais diferentes aplicações. Ao mesmo tempo, trouxeram a concretude das possibilidades de substituição de inúmeras tarefas e funções humanas, reacendendo antigos temores.

Neste momento, há enormes diferenças entre as pesquisas e as projeções sobre o impacto dessas tecnologias. Há argumentos frágeis, e mesmo outros desonestos, tentando desqualificar as preocupações com o risco da eliminação de muitos postos de trabalho. Alguns destes apelam para uma aritmética primitiva e descabida, de que novos empregos e profissões surgirão e compensarão aqueles perdidos. Há dois equívocos nesta lógica: a de que o futuro sempre repete o passado e a de que se trata de uma conta de subtração. A realidade põe por terra esses argumentos: por um lado, milhões de pessoas desempregadas ou subempregadas, por outro, milhares de vagas não preenchidas pelas empresas por conta da sofisticação das competências exigidas. Isto sem falar do fenômeno da precarização do trabalho, bem representado pelos modelos de plataformas digitais. O pensamento de risco sugere que deveríamos considerar um cenário de intensa substituição de postos de trabalho por sistemas, robôs e máquinas e de crescimento da oferta de postos de trabalho precarizados. Não há mal algum, nessas circunstâncias, em nos prepararmos para isto. A história nos mostra o quanto é mais sábio prevenir do que remediar. E, preparados para o adverso, sabendo que a imagem do futuro não está ainda formada, poderemos esperar pela serendipidade.

Marcelo Augusto Vieira Graglia é engenheiro mecânico e mestre em Engenharia pela Unesp. Doutor em Tecnologias da Inteligência e pós-doutor em Inteligência Artificial pela PUC-SP, onde é professor do Departamento de Administração e coordenador do PEPG em Tecnologias da Inteligência e Design Digital.

Christian Laval: “Para que educar?”

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Sociólogo francês aponta: reduzida à eficiência, competição e performance, finalidade educativa perdeu o sentido. Leva jovens a frustração e alimenta a anomia – onde a lógica empresarial ocupa o vácuo. Como transformar a resistência em ofensiva?

Christian Laval – OUTRAS MÍDIAS – 16/10/2025

Por que aprendemos o que aprendemos? E de que forma o discurso comum sobre a educação, ainda que de maneira instintiva, ecoa políticas econômicas dominantes, instaurando a lógica da competição de mercado até mesmo dentro do setor público?

Esse é um roteiro bem conhecido e frequentemente questionado por educadores.  Aos poucos, a escola vai sendo colocada sob pressão por metas de desempenho e exigências de rentabilidade. Com isso, o clima escolar, ou seja, a forma como professores e demais profissionais da educação vivenciam o cotidiano da comunidade escolar, acaba sendo diretamente afetado.

“A escola deveria ser o lugar onde se formam cidadãos capazes de pensar e participar da vida coletiva — não apenas indivíduos treinados para o mercado.” A afirmação é do sociólogo francês Christian Laval, professor emérito da Universidade Paris-Nanterre, e sintetiza uma de suas principais críticas ao avanço do neoliberalismo na educação.

Reconhecido internacionalmente por seus estudos sobre o tema, Laval é autor de obras fundamentais como A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal e A escola não é uma empresa. Nessas publicações, ele analisa como a lógica da concorrência, da performance e da rentabilidade passou a moldar não apenas as políticas públicas, mas também a cultura escolar e a subjetividade dos indivíduos.

Em entrevista ao Porvir em São Paulo (SP), antes de participar do Seminário Educação Insurgente, promovido pela Escola da Árvore, em Brasília (DF), Laval reflete sobre os efeitos dessa racionalidade neoliberal na vida cotidiana de escolas e universidades, nas relações entre professores e alunos, e no próprio sentido de educar.

Para ele, o desafio contemporâneo está em recuperar o ideal de uma educação comum e democrática, capaz de promover a reflexão crítica e fortalecer a vida coletiva. “Quando a escola se torna uma empresa, perdemos de vista sua verdadeira missão: formar sujeitos livres e solidários.” Leia abaixo destaques da conversa.

Como o neoliberalismo transcende a economia para impactar políticas educacionais e o cotidiano de escolas e universidades?

Para entender isso, é preciso começar dizendo que o que entendemos por neoliberalismo não é simplesmente uma política econômica particular, uma política monetária ou uma política de oferta. O neoliberalismo é, na verdade, muito mais uma lógica geral de governo da sociedade e dos indivíduos. Creio que este é o ponto fundamental.

Não se trata apenas de gerir as finanças, as contas públicas de outra forma, ou de favorecer apenas as empresas. É mais complicado. O neoliberalismo é a ideia de que toda a sociedade deve ser submetida a uma lógica de concorrência, a uma forma empresarial. É a ideia de que o mercado e a empresa são formas universais que devem ser aplicadas a todas as atividades e esferas institucionais.

Uma vez que compreendemos isso, podemos nos perguntar como essa lógica se aplica a diferentes setores como a saúde, a justiça e, claro, a educação. Concretamente, políticas neoliberais na educação promovem a concorrência entre os setores público e privado, e até mesmo dentro do setor público. A doutrina neoliberal supõe que a concorrência é um fator de eficiência e um estímulo que pressiona os profissionais a darem o melhor de si.

Poderia exemplificar?

Isso significa entrar em uma lógica de mercado, onde cada instituição de ensino deve se ver como uma unidade em um mercado educacional. Essa ideia tem efeitos diretos na organização interna: o diretor da escola se torna um “manager”, um chefe de empresa, e os professores são vistos como funcionários que devem seguir uma lógica de rentabilidade e performance.

Cria-se, então, uma lógica bizarra, especialmente no setor público. O serviço educacional, que a priori não é um serviço comercial, passa a ser tratado como se fosse. Introduzem-se critérios e ferramentas de avaliação que transformam a educação em uma “quase-mercadoria”. Ela não tem necessariamente um preço, como no setor privado, mas é tratada como uma mercadoria fictícia.

Isso altera todas as relações…

Sim. Altera as relações entre professores e alunos, e entre professores e famílias, que passam a se ver como “consumidores” de escola ou “investidores” em educação. A própria linguagem da educação muda. Não se formam mais cidadãos ou seres humanos adultos; formam-se consumidores e investidores. A grande mudança é na mentalidade, na subjetividade.

O que se desenvolveu foi um utilitarismo profundo e generalizado, que afeta a relação dos alunos com o saber. Por que se aprende? Para obter um diploma. Por que obter um diploma? Para ter uma boa profissão e ganhar dinheiro. O saber se torna uma ferramenta econômica para alcançar uma posição social e renda, perdendo seu valor intrínseco e passando a ter apenas um valor instrumental.

Em diferentes contextos, o foco em métricas de eficiência e desempenho não está apenas gerando insegurança. Ele não estaria também esvaziando o debate sobre a própria finalidade democrática da escola?

Sim, você toca no ponto importante: para que educar? Qual é a finalidade da educação? Essa questão foi amplamente deixada de lado em favor de considerações sobre meios, eficiência e performance, o que é típico de uma lógica empresarial. A discussão se resume à relação entre “input” (investimento) e “output” (resultados), despolitizando a educação como se ela fosse apenas uma questão econômica.

Esquecemos pelo caminho que a finalidade educativa poderia ser a de construir uma sociedade democrática, com igualdade real e cidadãos capazes de participar da vida coletiva, deliberar e decidir. Esse ideal iluminista, republicano, de formar cidadãos com capacidade de reflexão e crítica, foi descartado para formar o que chamo de “homem econômico”, alguém feito essencialmente para a economia.

O que o “homem econômico” representa na educação?

Essa ideia gera uma profunda perda de sentido na educação. Para aqueles com vantagens sociais, o sistema funciona. Mas para as classes populares, a promessa de que a escola lhes trará uma posição melhor não se cumpre, devido à reprodução social. Isso cria uma frustração enorme e uma visão da democracia como algo sem sentido. Esse cenário favorece o que os sociólogos chamam de anomia (a perda de normas), gerando insegurança e delinquência.

A ideia de que a economia poderia dar sentido à educação é um fracasso. Em resposta a essa anomia, os setores mais autoritários, a extrema-direita, propõem o reforço da autoridade. Eles acreditam que, se a economia não é suficiente para dar sentido e integrar a todos, a solução é mais repressão e mais autoridade. É compreensível que, à economização da vida, se responda com uma politização autoritária, uma resposta que eu qualificaria como neofascista, tendência que vemos em todo o mundo.

Professor, seu livro sobre educação democrática fala em passar da crítica para uma “ofensiva da democracia”. Como podemos transformar a resistência em construção, criando alternativas concretas na educação e na sociedade?

O sentimento de ter que resistir a essa lógica mundial é algo universal entre os professores. Muitos resistem, seja de forma passiva, limitando os efeitos negativos das políticas neoliberais, ou de forma ativa, com mobilizações sociais e sindicais.

No entanto, a resistência por si só é insuficiente. Todos que resistem se perguntam: “O que podemos fazer? O que podemos propor?”. Não basta recusar; é preciso afirmar uma nova finalidade, uma nova organização para o ensino. É preciso uma refundação do ensino.

Quais os entraves para a refundação do ensino?

O que nos enfraquece e nos leva ao desespero é a falta de um objetivo claro. Perdemos o sentido do projeto: que educação construir? Como refundar a escola e a universidade?

É isso que busquei abordar com meu colega Francis Vergne no livro Educação democrática – A revolução escolar iminente (Editora Vozes, 272 páginas). Usamos a expressão do filósofo Jacques Derrida sobre fazer “propostas ofensivas”. É o que tentamos fazer neste livro.

Diante deste cenário, o senhor defende uma abordagem baseada em princípios como a liberdade de pensamento, produção da igualdade, cultura comum, pedagogia da cooperação e autogestão. Como podemos colocá-los em prática?

Tudo é e será muito difícil. Para compreendê-la, é preciso entender que nosso objetivo é tornar visível um sistema educacional coerente, fundamentado em uma abordagem sistêmica. Não se trata de melhorias pontuais, mas de conceber uma nova estrutura para a educação, alinhada a um propósito genuinamente democrático. Primeiramente, é necessário ter clareza sobre qual modelo de sociedade buscamos.

O que define uma sociedade democrática? Christian Laval – Em linhas gerais, uma sociedade democrática é aquela em que todos os indivíduos, em condições de igualdade, podem deliberar e participar das decisões que os afetam diretamente. O princípio fundamental da democracia é o autogoverno. A questão que se impõe é: como seria uma sociedade com um autogoverno mais desenvolvido?

Abraham Lincoln definiu a democracia como “o governo do povo, pelo povo e para o povo”. Essa é a base de tudo. Ao considerarmos essa premissa, percebemos que não vivemos, de fato, em uma sociedade plenamente democrática, pois estamos submetidos a decisões das quais não participamos. Portanto, o desafio central é construir uma sociedade democrática efetivamente fundada no autogoverno.

A partir dessa definição, podemos, então, desenhar um sistema educacional correspondente. Não nos iludamos: a revolução escolar que idealizamos só ocorrerá em conjunto com uma reorganização mais ampla da sociedade, baseada em finalidades verdadeiramente democráticas.

Com a pressão por uma formação que prioriza o mercado de trabalho, que cultura escolar é possível construir para garantir o desenvolvimento integral dos estudantes?

Uma cultura para a democracia. Uma cultura que vá além das competências exigidas pelas empresas. Embora seja evidente que o sistema educativo deva formar trabalhadores qualificados, isso não é suficiente para a formação de um adulto responsável. Nós pertencemos a uma coletividade com interesses comuns. Uma educação hiperespecializada cria o perigo de que as pessoas não tenham mais como se comunicar umas com as outras.

A questão sobre o que constitui uma cultura comum existe desde o século 18. Hoje, essa cultura deve incluir conhecimentos essenciais para o exercício democrático. Isso significa conhecimentos de sociologia, política e, fundamentalmente, ecologia. É um dever de todo educador oferecer aos alunos com o mínimo saber sobre a crise climática, por exemplo.

Além disso, a cultura comum supõe uma reorganização dos saberes. A separação estrita entre as ciências sociais e as ciências naturais é um grande problema, pois as questões atuais, como a ecológica, exigem uma compreensão da interação entre as atividades humanas e a natureza. Precisamos pensar em um saber mais integrador.

Com a chegada da inteligência artificial, como a educação pode desenvolver uma abordagem crítica para integrar essa tecnologia, sem cair na armadilha do tecnocentrismo?

Esse é um perigo iminente. O que está acontecendo é uma transferência do conhecimento humano para a máquina, como a inteligência artificial generativa. Isso se assemelha ao que Marx analisou no século 19 sobre a maquinaria industrial: um processo que transfere o saber-fazer humano para um sistema maquínico e, ao mesmo tempo, individualiza a relação de cada um com a máquina.

O que está em risco é a aprendizagem coletiva. Embora cada um aprenda de forma singular, há uma dimensão coletiva e cooperativa no aprendizado: aprendemos juntos, conversando, trabalhando juntos. Para compensar a individualização tecnológica, a escola deve desenvolver ao máximo todas as práticas de cooperação possíveis: trabalhos em grupo, trocas entre alunos, etc.

Isso é fundamental, pois é na escola que se aprende a “colocar em comum” nossos saberes e desejos, que é a chave da democracia. Fomos muito influenciados por pedagogos como John Dewey, que dizia que a democracia se aprende através da experiência democrática na própria escola. Não se trata de despejar um saber sobre os alunos, mas de colocá-los para trabalhar juntos para que adquiram conhecimento coletivamente.

O debate educacional no Brasil tem buscado valorizar a diversidade do país. O que é necessário para construir uma educação que reconheça os saberes locais e respeite as raízes indígenas e afro-brasileiras, em vez de se limitar a testes padronizados e a um currículo homogêneo?

O projeto de se libertar da uniformização ocidental é um desafio enorme, especialmente quando modelos como o capitalismo e o Estado-nação já foram importados.

A questão é: como, a partir dessa imposição, podemos traçar um caminho original? Em meu trabalho com Pierre Dardot (“A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal?, Boitempo Editorial, 416 páginas), argumentamos pela necessidade de uma pluralidade de mundos. A mudança não virá de cima. Acredito que são as dinâmicas sociais, as lutas e os movimentos de base, como os movimentos indígenas, que podem reinventar a sociedade a partir de traços originais.

Esses movimentos, ao lutarem por sua autonomia, necessariamente pensarão no tipo de educação de que precisam. A dificuldade está em como mesclar esses traços originais com uma cultura comum democrática. O interessante é que os movimentos indígenas, por exemplo, não buscam apenas o isolamento. Eles se dirigem ao mundo dizendo: “Temos algo a lhes oferecer”, como uma nova relação com a natureza que pode servir a todos. A luta deles contra o agronegócio e o desmatamento, por exemplo, pode inspirar e renovar a cultura crítica global.

O que esses movimentos podem trazer para a educação de todos é precisamente uma consciência ecológica e uma nova relação com a natureza. Isso me parece absolutamente urgente e indispensável.

Que saberes e competências são essenciais ao educador que atuará na linha de frente para construir a sociedade democrática, cooperativa e autônoma que o senhor propõe?

Esta é uma questão central, uma questão decisiva: como educar os educadores?

O maior problema está na reprodução dos mesmos modelos. Quem foi formado em uma escola tradicional, marcada por métodos autoritários e centrados na exposição oral do professor, tende a reproduzir os únicos modelos que conheceu. Foi moldado dessa forma. Então, como esse educador poderia se transformar?

Minha resposta é simples: pela experiência democrática. Somente vivenciando a democracia os educadores podem transformar-se de fato. E o que isso significa? Que a escola, a meu ver, deve formar pessoas capazes de se autogovernar.

Por onde começar?

Dentro da própria escola, que também precisa incorporar formas de autogestão.

Se o educador está preso a relações hierárquicas rígidas, subordinado a um diretor ou inserido em uma burocracia local, ele vive uma experiência de obediência e controle. E como esperar que alguém que apenas cumpre ordens forme sujeitos autônomos? Ele acaba reproduzindo o que vivencia. A única saída possível é que o próprio educador seja autônomo. Mas não estamos falando de uma autonomia individualista, e sim de uma autonomia coletiva.

Os professores precisam assumir responsabilidades em suas escolas e enxergar-se como agentes do autogoverno educacional. Isso significa criar espaços e práticas de autogestão nos ambientes escolares. Claro, isso não quer dizer que cada um faça o que quiser. É necessário estabelecer um marco legal e institucional, com regras claras. Mas, dentro desse marco, deve-se cultivar o sentido de responsabilidade coletiva.

E qual caminho evitar? 

O pior cenário é o do autoritarismo local, ou seja, a dependência de um chefe que centraliza o poder. Nesse modelo, o professor apenas repete o que sofre. Educar os educadores significa dar a eles condições para autogovernar suas escolas.

Isso vale também para o trabalho pedagógico. Professores, por exemplo, poderiam reunir-se por área para discutir o currículo, propor mudanças e refletir coletivamente sobre os métodos de ensino. Em todos os níveis, os educadores devem atuar como adultos responsáveis. Afinal, são eles que detêm o conhecimento, são os responsáveis por ensinar e também devem ter voz nas decisões sobre como ensinar.

Hoje, na França, isso faz muita falta. A formação de educadores é um desafio grave: há pouca ou nenhuma formação continuada. E, quando há, ela raramente se baseia na auto-organização docente. Acredito profundamente na ideia de que os professores devem poder se organizar por escola e por disciplina, para decidir juntos, em diálogo com universidades, pesquisadores e outros atores, o que é mais relevante ensinar.

Para mim, essa é a essência de uma escola democrática: educadores democráticos, com autonomia e responsabilidade coletivas.

Aposta na vassalagem, por Thomas Palley

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Socorro financeiro de Trump e FMI tem objetivos claros: sustentar Milei e seu projeto até as eleições, fazer de Buenos Aires a fortaleza de Washington na América Latina e contrapor-se à presença chinesa. Mas e se o povo argentino disser não?

Thomas Palley – OUTRAS PALAVRAS – 15/10/2025

A Argentina voltou aos noticiários com a renovada turbulência financeira impulsionada pela má reputação política do presidente Milei. Essa má reputação é fruto da indignação com o péssimo desempenho econômico da Argentina e da corrupção maciça dentro do governo Milei, e é um mau presságio para o desempenho de seu partido nas próximas eleições de outubro de 2025.

Em resposta, o FMI e os EUA entraram em ação para salvar o governo de Milei. O FMI já havia fornecido um resgate de US$ 20 bilhões em abril de 2025. Agora, o governo dos EUA forneceu outros US$ 20 bilhões (na forma de uma linha de swap cambial entre bancos centrais). Além disso, os EUA expressaram disposição para fornecer crédito stand-by adicional e até mesmo comprar dívida do governo argentino.

A mídia tem se concentrado na longa e problemática história financeira da Argentina, na difícil situação inflacionária que o presidente Milei herdou e na afinidade política do presidente Trump com Milei. No entanto, isso não explica por que o FMI e os EUA forneceram uma assistência tão grande à Argentina, dada a sua falta de credibilidade.

O apoio a Milei deve ser entendido como uma continuação dos empréstimos passados aos presidentes Macri (2015-2019) e Menem (1989-1999). O objetivo é enraizar o neoliberalismo na Argentina e aprisioná-la com dívida em dólar. Ele é apoiado pelas elites locais porque elas são as beneficiárias do neoliberalismo e também porque conseguem saquear o Estado argentino por meio do processo de endividamento.

  1. A complicada verdade na Argentina

Chegar à verdade na Argentina é como “descascar uma cebola”. Primeiro, é preciso descobrir a real situação econômica, que é fundamentalmente diferente daquela descrita pela mídia mainstream. Em seguida, é preciso introduzir a política e trazer à tona as reais agendas que impulsionam os eventos. Depois, é preciso explicar como esses eventos funcionam e suas consequências.

Uma vez descascada a cebola, a imagem que surge é a de que a assistência financeira do FMI e dos EUA é uma interferência eleitoral visando salvar o presidente Milei e seu programa neoliberal extremista; diminuir a influência econômica da China; e algemar financeiramente a Argentina por meio do endividamento em dólar. Além disso, a assistência permite o saque tácito do Estado argentino pelas elites argentinas e multinacionais americanas. Esse é um quadro muito diferente daquele apresentado pela grande mídia e pelos principais economistas.

  1. O mito do milagre econômico de Milei

O ponto de partida é o desempenho econômico da Argentina, que tem sido descrito de forma efusiva pela grande mídia como um “milagre econômico”. Por exemplo, o New York Times declarou que Milei estava “à beira de alcançar um milagre econômico” antes da recente turbulência financeira. Essa formulação é crucial porque distorce a percepção pública, dando legitimidade econômica aos empréstimos do FMI e dos EUA.

A verdade é que não houve milagre. As políticas de Milei foram uma catástrofe tanto para os argentinos comuns quanto para o futuro da Argentina. Essa realidade explica a impopularidade política de Milei, que gerou temores no mercado financeiro.

Milei assumiu o cargo em dezembro de 2023, e a Argentina está em profunda recessão desde então. A recessão foi causada por uma austeridade fiscal extrema que reduziu drasticamente os serviços públicos e o investimento; uma taxa de câmbio extremamente sobrevalorizada que enfraqueceu a balança comercial; e uma desregulamentação que aumentou os lucros às custas dos salários.

A recessão é visível no colapso da produção industrial e do crescimento do PIB. A produção industrial permanece em queda, mas algum crescimento do PIB finalmente retornou (como sempre iria acontecer porque as economias não encolhem para sempre). No entanto, a recuperação foi fraca e a economia encolheu.

Além disso, o quadro é ainda pior porque o PIB não capta miséria, fome e insegurança. A insegurança alimentar e a fome inicialmente dispararam, com o escorbuto aumentando entre os pobres. A taxa oficial de pobreza agora diminuiu novamente, mas ela subestima a situação por não reconhecer os preços massivamente mais altos da água, gás e eletricidade. As pensões dos aposentados foram dizimadas, os preços dos medicamentos prescritos dispararam, e o governo Milei também reprimiu brutalmente os protestos de aposentados.

As políticas de Milei não apenas causaram uma recessão econômica, mas também sabotaram o futuro da Argentina. O colapso do investimento público e privado significa um estoque de capital menor. Os cortes nos gastos com educação e saúde significam uma população menos educada e mais doente. E o corte no apoio às universidades e às artes é um ataque às indústrias de alto valor do futuro (como tecnologia da informação, ciências médicas e produção cinematográfica), e contribuiu para uma maior fuga de cérebros da Argentina.

Os empréstimos estrangeiros de Milei também significam aumento nos pagamentos de juros futuros, o que sobrecarregará o orçamento do governo, limitará as possibilidades de política econômica e ameaçará permanentemente uma crise financeira.

O único resultado econômico positivo é a taxa de inflação, que caiu significativamente, mas mesmo aqui a história é complicada. A inflação inicialmente aumentou significativamente sob Milei. Embora tenha voltado a cair, ainda está em 35% ao ano. O governo anterior de Fernández perdeu o controle da inflação, mas também herdou uma taxa de inflação de 50% do governo Macri anterior. Além disso, a inflação só acelerou em 2022 quando as consequências da pandemia de Covid surgiram. A taxa de inflação da Argentina saltou cinco vezes, como também aconteceu em outros países. No entanto, dada a alta inflação inicial da Argentina e sua vulnerabilidade estrutural à inflação, o aumento absoluto foi muito maior.

Em suma, não houve nenhum “milagre econômico”. O programa de Milei nunca poderia ou pretendeu produzir prosperidade compartilhada na Argentina. Em vez disso, é um programa ultra-neoliberal que visa baixar a inflação por meio de uma recessão profunda e uma taxa de câmbio sobrevalorizada; aumentar os lucros às custas dos salários por meio da desregulamentação e do enfraquecimento do trabalho; permitir que o capital explore os recursos naturais da Argentina; e usar a austeridade fiscal para destruir as instituições sociais que promovem o bem-estar e o progresso da sociedade.

  1. O FMI e os EUA: a política do saque e do endividamento

O caráter desastroso do programa econômico de Milei levanta a questão de por que o FMI e os EUA se apressaram em fornecer um resgate financeiro. Isso introduz a questão política. Para Milei, um resgate financeiro é essencial para seu futuro político. As elites argentinas também o apoiam, pois são as beneficiárias do programa. Mas e quanto ao FMI e aos EUA?

3.a O FMI como uma ferramenta útil dos EUA

O FMI é o mais fácil de entender. Ele é dominado pelos EUA e há muito é um bastião do neoliberalismo, ajudando a espalhar e impor esse sistema global nos últimos 40 anos. Isso torna fácil apoiar Milei, que é submisso aos EUA e alinhado com ao ultra-neoliberalismo.

O aspecto incomum do momento atual é a cumplicidade aberta do FMI, que o leva a violar seus próprios protocolos de maneiras que o colocam em risco legal no futuro. As marcas da corrupção política estão por toda parte no empréstimo de US$ 20 bilhões do FMI.

Primeiro, apesar da significativa oposição ao empréstimo dentro do Conselho Executivo do FMI com base no argumento de que o empréstimo não atendia aos padrões de crédito, ele ainda foi forçado a passar pelos EUA e seus aliados. Quando somados aos empréstimos pré-existentes, mais de 40% do total de empréstimos do FMI serão para a Argentina, o que potencialmente coloca a solvência financeira do FMI em risco.

Em segundo lugar, o novo empréstimo foi concedido sem rigorosas condicionalidades econômicas, que são parte integrante dos pacotes de empréstimos do FMI. Essa ausência não se deve à mudança de postura neoliberal do FMI. Trata-se, sim, de uma condição que prejudicaria a economia argentina, comprometendo assim o propósito político do empréstimo, que é ajudar Milei a vencer as eleições de outubro de 2025.

O propósito abertamente político do empréstimo do FMI fica evidente nos comentários de abril de 2025 da Diretora-Geral do FMI, Kristalina Georgieva, que declarou publicamente na reunião anual de primavera do FMI: “O país terá eleições em outubro e é muito importante que elas não descarrilem a vontade de mudança. Até o momento, não vemos o risco se materializando, mas eu instaria a Argentina a manter o rumo.” Suas declarações violam os protocolos fundamentais do FMI que proíbem interferência política.

  1. Os EUA e a interferência eleitoral na Argentina

O fornecimento de assistência financeira dos EUA não passa nos testes econômicos convencionais, e seu propósito é político. O objetivo é salvar o governo Milei, excluir a China e aprisionar a Argentina com dívida em dólar.

Os EUA intervieram em nome de Milei porque ele é ideologicamente pró-EUA e pró-empresas americanas, enquanto seus rivais são nacionalistas argentinos pragmáticos. Eles acreditam que as empresas (incluindo as multinacionais americanas) devem responder ao Estado argentino e estão dispostos a negociar com a China se isso for em benefício da Argentina. Isso é um anátema para Washington, D.C.

Para os EUA, Milei é o “nosso cara”, que está do lado dos EUA e trata as multinacionais americanas de forma favorável. Emprestar dinheiro à Argentina é uma interferência eleitoral. A esperança é que um empréstimo maciço possa evitar uma crise financeira até depois das eleições para o Congresso em outubro, salvando assim o governo de Milei.

Inicialmente, os EUA pensaram que conseguiriam levar Milei até o fim com empréstimos do FMI, do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). No entanto, isso se mostrou insuficiente, obrigando o Tesouro americano a intervir diretamente.

Entre parênteses, esse processo de empréstimos do FMI (e do Banco Mundial e do BID) para fins de interferência eleitoral não é novo. As mesmas táticas foram usadas em 2019 para apoiar o presidente Macri, então o candidato favorito dos EUA. O FMI emprestou US$ 40 bilhões ao governo Macri, o maior empréstimo da história do FMI. Macri perdeu a eleição, os US$ 40 bilhões evaporaram e o governo seguinte ficou com o ônus disso.

O ânimo anti-chinês que motiva a política americana é evidente na condição de que a assistência americana esteja condicionada à substituição do atual acordo de swap cambial da Argentina com a China por um acordo apoiado pelos EUA. O acordo de swap China-Argentina foi estabelecido em 2009. Ele se baseia na lógica comercial, visto que os países mantêm um comércio massivo e mutuamente benéfico envolvendo produtos manufaturados e agrícolas argentinos. Os EUA querem sabotar essa relação, protegendo a Argentina dos EUA, reduzindo assim seu poder.

Por fim, há indícios de negociações privadas impróprias por parte do Secretário do Tesouro dos EUA, Bessent. Há relatos de que Bessent impulsionou tanto o empréstimo de abril do FMI quanto a proposta americana de setembro para resgatar seu sócio em Wall Street, Robert Citrone, e outros fundos de Wall Street que haviam apostado especulativamente em títulos argentinos. Essas apostas fracassaram com as crescentes dificuldades políticas de Milei. O resgate de Bessent impulsionou uma recuperação do preço dos títulos argentinos que salvou e beneficiou Wall Street.

  1. A mecânica do saque e do endividamento da Argentina

A parte óbvia dessas negociações é a interferência eleitoral e o endividamento em dólar. A parte menos óbvia é a mecânica do saque.

O processo de saque centra-se na taxa de câmbio sobrevalorizada que artificialmente torna o peso mais valioso. Isso significa que aqueles com pesos excedentes (ou seja, a elite argentina) podem lucrar com a sobrevalorização comprando dólares a um preço subsidiado. A conta é paga pelo Estado argentino, que vende os dólares que tomou emprestado e se endivida em dólar. Este processo tem sido usado repetidamente por governos argentinos anteriores, pró-negócios e pró-EUA. Ele explica como o empréstimo anterior de US$ 40 bilhões do FMI em 2019 ao presidente Macri evaporou sem deixar rastro.

O processo ficou evidente após o novo empréstimo do FMI. A Argentina suspendeu imediatamente a maioria de seus controles de capital, permitindo que empresas e indivíduos ricos comprassem dólares subsidiados.

O processo também ficou evidente após a declaração de apoio dos EUA. A Argentina suspendeu temporariamente o imposto de exportação de grãos e soja, e houve uma onda massiva instantânea de exportações. Essas exportações saíram isentas de impostos, beneficiando grandes exportadores agrícolas que apoiam a Milei. O Estado argentino perdeu uma enorme quantidade de receita de impostos de exportação, que é essencial para as finanças públicas argentinas. Dado o enfraquecimento dos controles de capital, essas vendas de exportação abundantes puderam então ser convertidas em dólares, causando um golpe duplo. Os exportadores agrícolas sonegaram impostos e compraram dólares subsidiados. O Estado argentino perdeu receita tributária e se endividaram em dólares.

O dólar sobrevalorizado também tem sido usado para saquear a classe média argentina. Essas famílias acumulam dólares como uma forma de poupança para “tempos difíceis”. A recessão econômica causada pelas políticas de Milei as compeliu a vender dólares para chegar ao final do mês. A taxa de câmbio sobrevalorizada significa que elas receberam menos, e seus dólares foram aspirados por aqueles com pesos excedentes. Isso, assim, contribuiu para uma maior redistribuição adversa de riqueza dentro da Argentina.

  1. Os empréstimos do FMI e dos EUA são “dívida odiosa”

Dívida odiosa, também conhecida como dívida ilegítima, é uma doutrina do direito internacional segundo a qual dívidas contraídas ilegitimamente não precisam ser quitadas. Normalmente, ela é vista pela ótica do caráter do mutuário, mas a fraude também pode ser cometida por credores e mutuários que colaboram. De fato, é mais fácil quando isso acontece.

Para garantir o uso adequado do crédito, os credores têm uma responsabilidade e dever legal de garantir que os fundos sejam usados adequadamente e que os mutuários sejam capazes de reembolsá-los. Os empréstimos do FMI e dos EUA falham nesse teste fundamental, tornando-os dívida odiosa. Os empréstimos foram feitos explicitamente para fins políticos, e não comerciais, e não passam nos testes apropriados de credibilidade.

Além disso, o empréstimo do FMI de abril de 2025 contornou uma lei argentina de 2021 que exigia aprovação congressional para empréstimos do FMI. Essa lei foi explicitamente aprovada para evitar a repetição do saque que ocorreu com o empréstimo de US$ 40 bilhões do FMI em 2019 ao presidente Macri. No entanto, Milei autorizou as negociações por decreto executivo, que só pode ser anulado por uma maioria de dois terços em ambas as casas do Congresso. O FMI e os EUA estão ambos cientes dessa manobra política, o que os incrimina ainda mais.

Nesta fase, para parar o saque adicional e o endividamento em dólar da Argentina, a oposição política deve declarar que as novas dívidas com o FMI e os EUA serão tratadas como odiosas e não pagas. Mesmo que a declaração não tenha força legal imediata, ela deve desencorajar empréstimos adicionais e deslegitimar ainda mais qualquer empréstimo adicional que venha a ocorrer.

  1. Colonização pela dívida: quo vadis, Argentina?

A história de Milei é a história dos presidentes Macri e Menem, apenas mais cruel. Cada um perseguiu políticas neoliberais extremas baseadas em uma taxa de câmbio sobrevalorizada, endividamento externo, aperto da classe trabalhadora e privatização e desregulamentação.

Cada um deles foi apresentado como um “milagre econômico”, mas nunca foi o caso. Em todas as ocasiões, o Estado argentino foi retratado como o problema fundamental, e em todas as ocasiões o Estado foi saqueado e ainda mais aprisionado por dívidas em dólares, enquanto sua riqueza era transferida para as elites econômicas. E em todas as ocasiões, o FMI e os EUA foram os principais facilitadores.

Os presidentes Milei, Macri e Menem são todos parte de uma história comum. Essa história é o saque neoliberal e o endividamento da Argentina. A interferência eleitoral do FMI e dos EUA pode ainda garantir a vitória de Milei. Se isso acontecer, a Argentina se tornará uma colônia de dívida dos EUA. Também se tornará ainda mais desigual com um ultraneoliberalismo enraizado. A grande mídia e os economistas a descreverão como um milagre, mas será miséria para aqueles que vivenciarem o milagre.

Caminhos para superar a Grande Distorção, por Ladislau Dowbor

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Quando o sistema financeiro captura a democracia e a tecnologia avança mais rápido que nossa capacidade de governar e planejar o futuro, é a hora de rupturas. O caminho: novo pacto global que conecte economia, política e sustentabilidade

Ladislau Dowbor – OUTRAS PALAVRAS – 14/10/2025

Dificilmente podemos ainda ser chamados de cidadãos. Em vez disso, uma plateia, espectadores de um ritmo acelerado de mudança sobre o qual não temos controle. A lente política que herdamos, socialismo e capitalismo, estado e corporação, esquerda e direita, nos dá uma visão distorcida e trêmula. Adam Smith, Karl Marx, Joseph Schumpeter, J.M. Keynes? Uma nova e poderosa geração de economistas criativos certamente nos fornece imagens atualizadas, mas o denominador comum é que a catástrofe em câmera lenta não é mais lenta, mesmo que a orquestra ainda esteja tocando.

Permitam-me uma visão geral. Em primeiro lugar, a população mundial está prestes a se estabilizar em torno de 9 a 10 bilhões de habitantes na década de 2050, e é para isso que temos que organizar nosso planeta, pensando a longo prazo, com condições de vida razoáveis e sustentáveis para todos. Certamente é possível. Mas ainda estamos em uma absurda corrida de “salve-se quem puder”, lutando por privilégios, chegando ao topo à custa dos outros, saqueando e destruindo recursos não renováveis, poluindo tudo no planeta e enchendo nossas cabeças com idiotices que buscam chamar a atenção. Nosso problema não está nos problemas, mas em nossa persistência em criá-los mesmo vendo as consequências, e nossa impotência para reverter seu aprofundamento. Bem-vindos ao mundo rico, high-tech e autodestrutivo do século XXI. E eu sou um otimista.

Rico? Tomemos o fato básico de que o PIB mundial atingiu US$ 115 trilhões em 2025, o que significa que o que produzimos em bens e serviços equivale a aproximadamente US$ 5.000 por mês para uma família de quatro pessoas. Trago os trilhões enormes para o nível familiar, porque isso nos faz pisar no chão: produzimos o suficiente para todos. Pode-se brincar com esse número, apresentar a renda nacional líquida em vez do produto interno bruto, e também adicionar o enorme capital acumulado que não é contabilizado nas cifras do PIB, mas o fato básico e enorme é que produzimos o suficiente para todos nós termos uma vida confortável e próspera, como Tom Malleson gosta de chamar. Sei que estou me repetindo com esses números, mas é um ponto de referência para qualquer raciocínio sobre nossos desafios estruturais: temos que colocá-los aqui como ponto de partida.

Portanto, a questão não é produzir mais e glorificar as porcentagens de crescimento, mas desacelerar, recuperar o fôlego e olhar mais profundamente para o que estamos produzindo, para quem e com quais consequências ambientais. Bem, a comida que produzimos é suficiente para 12 a 14 bilhões de pessoas, de acordo com a FAO, no entanto temos 750 milhões passando fome, 2,3 bilhões em insegurança alimentar, 150 milhões de crianças menores de cinco anos sofrendo de nanismo, além de 42,8 milhões sofrendo de emagrecimento patológico¹. Cerca de 6 milhões morrem dessas condições todos os anos. Isso não é uma crise repentina, é uma tendência permanente de longo prazo, uma falha estrutural. Fechar os olhos para esta tragédia não significa necessariamente que sejamos bárbaros, como indivíduos, mas certamente significa que ainda estamos em tempos bárbaros como sociedade. MAGA, alguém?

Este artigo não trata de alertar para os nossos dramas; temos a catástrofe das mudanças climáticas, a perda de biodiversidade, a poluição por plástico, produtos químicos em cada curso d’água, a destruição das florestas tropicais, e temos o noticiário da noite mostrando os incêndios, as inundações, a violência. E reuniões intermináveis sobre todas essas questões. Este artigo trata de como estamos desorganizados e de como podemos nos organizar. Participei ativamente da Cúpula Mundial sobre Sustentabilidade de 1992 no Rio de Janeiro, organizando a exposição de tecnologias sustentáveis em São Paulo, um evento paralelo. Isso foi há 33 anos, já sabíamos o que precisava ser feito e tínhamos os meios tecnológicos. Ainda estou lutando por essas questões, esperando que atinjamos 20% dos objetivos de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030. Esta é uma medida de nossas conquistas, esperar por 20% dos objetivos. Com mais de 30 COPs, discutimos todos os anos o quão fundo estamos nos metendo em problemas. Esta é uma medida de quão impotentes somos. Davos, alguém?

Então, temos os meios financeiros, sabemos o que deve ser feito e temos as reuniões. E em 2025, temos um poderoso presidente de um país rico proclamando “Perfure, baby, perfure” e tirando os Estados Unidos das metas da Conferência de Paris novamente, em uma espécie de jogo de ioiô. O problema aqui não é Donald Trump; temos demagogos aos montes para cada eleição em cada país. O problema é que, não obstante os óbvios desafios que enfrentamos, e o fato de que temos os recursos, bem como as medidas passo a passo que devem ser tomadas, estamos elegendo esse tipo de político. Com um presidente eleito tendo 13 bilionários sorridentes atrás dele na cerimônia de posse, o problema está com o demagogo. Significa que o dinheiro no topo está divorciado de contribuir para o bem comum. Significa também que a narrativa fundamental, de que maximizar o lucro é legítimo, independentemente das consequências para a sociedade e para o meio ambiente, assumiu o controle tanto do processo de decisão econômico quanto do político.

É uma tendência destrutiva, ainda assim as pessoas votaram nela, os congressistas votam nela, Wall Street está entusiasmada, temos um mercado em alta, o que significa que o sistema de recompensas e feedback positivo nos empurra corredeira abaixo. Não é um erro social; é um equívoco social, político e econômico. A questão é que esse tipo de deformação sistêmica exige mudança estrutural, e não temos o contrapoder político correspondente. Se fosse apenas os EUA, mas está se fortalecendo em tantos países. Não se trata de esperar a próxima eleição, trata-se do que aconteceu com a eleição, com a democracia em geral, e quão profunda é a mudança estrutural. É essencial chegar às engrenagens motrizes dessa transformação.

Temos todos os dados de que precisamos sobre a dramática desigualdade que progride no mundo. As engrenagens são simples: a maioria das pessoas no mundo tem dificuldade para chegar ao fim do mês, ou está endividada, enquanto as pessoas ricas, uma vez satisfeitas suas amplas necessidades básicas, têm dinheiro para “investir”. E quanto mais dinheiro sobrando você tem para investir, mais rico você fica: este é o efeito bola de neve financeiro, quanto mais dinheiro você tem, mais dinheiro você ganha. E não é um investimento produtivo, mas um investimento financeiro. A Forbes nos dá os números: 3.028 bilionários têm uma fortuna de US$ 16 trilhões, enquanto a metade mais pobre da população, 4,1 bilhões de pessoas, tem uma riqueza total de US$ 5 trilhões. Era inevitável que esse nível de poder econômico no topo gerasse o correspondente poder político.

A mudança curiosamente chamada Citizens United na Constituição americana, em 2010, permitindo que dinheiro corporativo financie eleições, é uma deformação estrutural do que ainda chamamos de democracia. Não é simplesmente um problema; é uma falha estrutural em nossa capacidade de resolver problemas. Isso é muito mais do que o poder dos ricos, a plutocracia. É uma deformação do processo decisório no topo. As maiores corporações de gestão de ativos detinham US$ 50 trilhões em 2022, aproximadamente metade do PIB mundial. A BlackRock sozinha, em 2025, gerencia US$ 12 trilhões. Apenas como lembrete, o orçamento federal dos EUA é de US$ 6 trilhões. Essas plataformas enormes capturam dinheiro de todo o mundo, em uma rede de dinheiro virtual, e Larry Fink não tem escolha a não ser maximizar os retornos sobre esses investimentos financeiros. O mesmo vale para UBS, JP Morgan, State Street, Vanguard, Fidelity e afins.

Tantas fortunas ao redor do mundo dependem desse sistema extrativista, capitalismo extrativista como tem sido chamado, que ele se tornou poderoso demais para ser movido. O gigantesco sistema de especulação financeira em escala mundial detém aproximadamente seis vezes o valor do PIB mundial, mais de US$ 600 trilhões, apenas em derivativos. Dinheiro demais e interesses demais estão entrelaçados nessa teia de interesses para que o sistema se mova. As mensagens anuais excessivamente adocicadas de Larry Fink, para “investidores” ao redor do mundo, são o equivalente financeiro da mensagem “perfure, baby, perfure” para as corporações de petróleo e gás. Os gestores não são estúpidos; estão perfeitamente cientes das consequências, até afirmam aderir aos princípios ESG, mas estão presos na teia, e o fato de que também ficam tão ricos não ajuda. Estamos enfrentando uma falha estrutural.

Isso vai muito além do que chamávamos de capitalismo, quando enriquecer também significava que você produzia algo útil. E com o dinheiro virtual, apenas um número em computadores, percorrendo o mundo em frações de segundo, perdemos completamente o controle: os bancos centrais são basicamente instituições nacionais, enquanto o dinheiro é global. E não temos regulação internacional, as instituições de Bretton Woods datam de 80 anos atrás e são impotentes, o BIS (Banco de Compensações Internacionais) apenas dá alguns conselhos e informações sobre derivativos pendentes. A facilidade com que as plataformas financeiras – acho que este é o nome apropriado para essas instituições, já que são essencialmente uma rede de gestão de dinheiro em nuvem – transferem recursos gigantescos no espaço global criou uma falha sistêmica naquilo que antes era um sistema financeiro a serviço do investimento produtivo, transformando nossas poupanças em produção, bens e serviços.

Uma questão essencial é que o sistema de maximização financeira em escala mundial de dinheiro virtual – “cloud-money” (dinheiro em nuvem) é um nome apropriado nos escritos de Yanis Varoufakis – naturalmente transforma a lógica das mais diferentes áreas de atividade econômica². Peter Phillips nos traz uma apresentação excepcionalmente bem organizada da nova estrutura de poder econômico global que resulta dessa financeirização geral, em seu estudo Titans of Capital³. Os interesses financeiros das 10 maiores plataformas globais de gestão de ativos lhes permitem exercer controle sobre as principais plataformas de mídia social (Alphabet, Meta, Amazon e grupos de alta tecnologia em geral), mas também sobre as principais empresas de tabaco, corporações de petróleo e gás, indústria militar e até mesmo redes de prisões privadas.

Um controle similar pelos Titãs é exercido sobre grandes empresas no Brasil, por exemplo, com bancos como Itaú ou Bradesco, empresas de energia, planos de saúde e assim por diante. Essa economia de proprietário ausente, com drenagens internacionais sobre atividades produtivas ou financeiras em todo o mundo, é estruturalmente diferente do capitalismo industrial que conhecíamos, mesmo que o Fórum Econômico Mundial em Davos goste de chamá-lo de Indústria 4.0, significando o mesmo sistema com um passo à frente tecnológico. Não há uma “mão invisível” para regular atividades nessa escala, e o livro de Phillips mostra que os gestores dos principais gigantes financeiros participam simultaneamente do processo de decisão das mais diferentes corporações, gerando políticas globais convergentes.

Quão instável o mundo se tornou, com todas essas riquezas e todas essas tecnologias? Quão frágeis são nossas vidas e a própria natureza neste pequeno planeta. É inescapável que precisamos de um novo Bretton Woods, um Global Green New Deal (Novo Acordo Verde Global) como tem sido chamado, mas parece que temos que esperar até que a catástrofe se aprofunde muito mais para que o mundo crie o impulso político e cultural correspondente para que isso aconteça. Demis Hassabis, ganhador do Nobel, considera que esta revolução digital que estamos vivendo “será 10 vezes maior que a Revolução Industrial e talvez 10 vezes mais rápida”. Mas a política está firmemente presa no século passado. A fratura entre o ritmo tecnológico e a política estagnada está se aprofundando.

A questão básica é que estamos vivendo neste processo acelerado de mudança sistêmica, enquanto nossa capacidade de governança permanece presa no mundo analógico do século passado, nas rivalidades nacionais e na competição destrutiva. O desafio é mobilizar nossas enormes capacidades financeiras, tecnológicas e de rede para nos recolocar nos trilhos. 2050, em termos históricos, é um piscar de olhos⁴.

Trabalho contemporâneo

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A sociedade contemporânea vem vivendo uma verdadeira mutação em todas as áreas e setores, com impactos sobre os setores produtivos, organizações e indivíduos. Nestas transformações cotidianas, motivadas pelo incremento da tecnologia e da inovação, um dos setores mais sensíveis da contemporaneidade é o mundo do trabalho, onde os avanços da tecnologia estão moldando um mundo novo, mais complexo e cheio de desafios e oportunidades.

Especialistas em carreira nos mostram que muitas profissões tendem a desaparecer por completo e, ao mesmo tempo, novas ocupações tendem a ganhar espaço nas organizações, exigindo novas habilidades, novos comportamentos e novos valores. Neste ambiente, marcado por alterações cotidianas, percebemos o crescimento das incertezas, o incremento dos medos e das ansiedades, impulsionando comportamentos extremados e violências generalizadas, além do aumento significativo da depressão e dos suicídios.

Neste ambiente de grandes transformações estruturais, encontramos novas profissões, que exigem novas habilidades e novos comportamentos, onde destacamos especialista em IA e aprendizagem de máquina, especialista em sustentabilidade, analista em inteligência de negócios, analista de segurança da informação, engenharia de Fintech, especialistas em transformação digital, cientistas e analistas de dados, além dos conhecidos youtubers, influenciadores e motoristas de aplicativos, que estão revolucionando a sociedade contemporânea, gerando novas oportunidades e exigindo, da comunidade, a construção de novas estratégias e muita criatividade para empregarem os trabalhadores, evitando que muitos grupos econômicos e sociais fiquem excluídos.

O mundo do trabalho passou por grandes modificações, o século XX foi caracterizado pelos modelos fordista e taylorista, uma sociedade industrial, marcada pela quantidade de trabalhadores, pela disciplina e pelo comando centralizado. No modelo contemporâneo percebemos uma transformação estrutural, os valores são outros, o setor de serviços ganhou espaço da indústria, o setor financeiro, que anteriormente financiava os setores industriais, passou a impor valores, adquirindo empresas e passaram a gerenciar os setores industriais, gerando instabilidades e incertezas, com impactos generalizados sobre o emprego e a empregabilidade, além de exigir da mão-de-obra novas habilidades, novas qualificações e novas capacitações.

A tecnologia contemporânea está alterando estruturalmente as relações trabalhistas, novas ocupações demandam novas habilidades, o desenvolvimento de novas tecnologias e novas formas de comunicação, os relacionamentos profissionais estão em movimento, cada vez mais marcada pelo individualismo e pelo imediatismo que reina na sociedade, onde a competição e a concorrência são as tônicas crescentes da comunidade. Neste cenário de individualismos crescentes, os setores econômicos e produtivos demandam flexibilidades, inteligência emocional, agilidade e empatia, lembrando que muitas destas habilidades demandadas no mundo dos negócios, confrontam cotidianamente com este ambiente de competição e de individualismo exacerbados, mais uma das contradições da sociedade contemporânea.

Neste ambiente, percebemos o crescimento de um sistema que promete liberdade através do desenvolvimento de plataformas e tecnologias digitais mas, ao mesmo tempo, está entregando o controle de algoritmos e transformando o sonho de empreender num verdadeiro pesadelo das jornadas intermináveis, extenuantes e ausência de direitos sociais ou horizontes coletivos, gerando frustrações, endividamentos, ansiedade e depressões constantes. Como diz o filósofo germânico – coreano, Byng Chul Han, na obra A sociedade do cansaço, estamos vivendo a sociedade do desempenho, onde o sonho de ser empresário de si mesmo está se tornando um verdadeiro calvário de endividamento e depressão.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário

A magia da financeirização, por Márcio Pochmann

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Márcio Pochmann – A Terra é Redonda – 14/10/2025

O domínio parasitário das finanças, que esteriliza a economia real em benefício de uma minoria, cavou sepulturas para impérios e ameaça a própria soberania das nações periféricas

A financeirização, entendida como a crescente dominância de agentes, mercados, práticas e narrativas financeiras sobre a economia e a sociedade, tem sido um fenômeno mais evidente na contemporaneidade, embora possua raízes históricas profundas. Trata-se de parte dos ciclos de longa duração do capitalismo que alterna fases de expansão e contração material valorizativa do capital pela produção de mercadorias com a amplificação financeira parasitária dominada pelas finanças em acumulação rentista.

Do ponto de vista histórico, cada ciclo de longa duração tem sido marcado pela existência de um centro dinâmico no interior do sistema capitalista mundial. Assim, por exemplo, a Inglaterra respondeu pela centralidade do ciclo de acumulação de longa duração no período da segunda metade do século XVIII à primeira Guerra Mundial (1914-1918). Após o auge de sua expansão material transcorrido até a Grande Depressão de 1873-1896, a financeirização parasitária terminou marcando o fim do domínio inglês no mundo.

Em seu lugar, um novo ciclo de acumulação centrado nos Estados Unidos percorreu o século XX, cujo auge da expansão material teria se esgotado na década de 1970. Com isso, a financeirização parasitária tendeu a sinalizar cada vez mais o término do domínio mundial centrado nos Estados Unidos.

Em países como o Brasil que se encontra em posição periférica e dependente estrutural do sistema capitalismo mundial, o processo de financeirização adquire contornos especiais. Influência decisiva na sustentação do desenvolvimento diante do bloqueio ao dinamismo produtivo tecnológico, da degeneração da estrutura social, do comprometimento das instituições, entre outras importantes dimensões das esferas pública e privada.

Exemplificação disso encontra-se nos dias de hoje na forma alienante da comunicação dominante a apontar que o problema das finanças públicas no Brasil situa-se nas despesas primárias como saúde, educação e outras. Enquanto o déficit total nas contas públicas em 2025 deve atingir a cerca de 1 trilhão e 40 bilhões de reais, o foco termina sendo os R$ 40 bilhões de despesas primárias.

Dessa forma, os gastos públicos com juros que atingem RS 1 trilhão são escamoteados pela comunicação dominante, enquanto o processo de amplificação financeira parasitária segue praticamente intacto desde o final da década de 1990. Tudo isso porque o avanço das despesas públicas com juros segue enriquecendo o poderoso e minoritário “andar de cima” da população ao passo que a austeridade fiscal voltada aos gastos primários serve mais ao desorganizado e majoritário “andar de baixo” no Brasil profundo.

Em síntese, a dominância da lógica financeira esteriliza recursos públicos com a elevada rentabilidade do setor financeiro e desestimula a produção interna no Brasil por força das altas taxas de juros sobre o endividamento público concomitantemente com o movimento geral da financeirização no centro do capitalismo mundial. Por ser um processo amplo e complexo, suas consequências sobre a decadência nacional têm sido evidentes do período monárquico aos dias de hoje, salvo entre as décadas de 1930 e 1970, quando o Brasil perseguiu o projeto nacional desenvolvimentista.

Quebra da monarquia e República velha

A análise da financeirização no Brasil monárquico e na República velha permite revelar o cenário de constantes desafios econômico-financeiros e sociopolíticos. Por sua posição periférica e dependente estrutural no sistema capitalismo mundial centrado na Inglaterra, o país esteve exposto ao fim do ciclo de acumulação marcado pela expansão financeira parasitária desde a Grande Depressão de 1873-1896.

Em grande medida, as seis décadas de financeirização presente entre os anos de 1870 e 1920 tiveram origem convergente no endividamento público decorrente da Guerra do Paraguai (1864-1870) concomitante com o esgotamento dos cafezais fluminenses. Assim, a expansão financeira na monarquia soldou um conjunto de interesses no “andar de cima” ao reciclar a fortuna do baronato do café em decadência na província do Rio de Janeiro por meio dos títulos públicos que financiavam a dívida pública interna em conexão com banqueiros ingleses.

Também a indenização dos banqueiros na abolição da escravatura procedida pelo maior empréstimo obtido junto a bancos ingleses de todo o período imperial, em 1889, contribuiu para selar o próprio fim da monarquia. Sem conseguir romper com a financeirização herdada do antigo regime, a República Velha avançou fraquejada, pois soldada pelos interesses do antigo e novo baronato cafeicultor, cujo desempenho econômico foi marcado pelo atraso da semi-estagnação na economia primário-exportadora.

Sem alçar uma fase de expansão material que valorizasse suficientemente o capital pela produção de mercadorias, as crises do endividamento prosseguiram diante do descompasso das instituições liberais em relação à realidade social brasileira. Da crise do encilhamento (1890-1881) à política deflacionária ancorada nos empréstimos externos (Funding Loan de 1898) e na defesa da decadente produção de café, seja pelo Convênio de Taubaté (1906), seja pela Caixa de Estabilização (1926), a República Velha terminou também cavando a sua própria sepultura.

Desmonte da Nova República

Surgida na derrota da campanha das Diretas Já, a Nova República buscou se alicerçar na Constituição de 1988 que correspondeu a uma espécie de simbiose entre o ressentimento com o período autoritário e a frágil projeção de futuro. Guardada a devida proporção, parece lembrar a Constituição de 1891 por seu formalismo desconectado da realidade gerada por uma sociedade em mudanças, seja da escravidão para o capitalismo no final do século XIX, seja da industrialização para os serviços hiperconetados da Era Digital desde o final do século XX.

Com isso, a financeirização parasitária emergida da crise da dívida externa passou a moldar a economia e a sociedade desde a década de 1980. A adoção do receituário neoliberal pelo Brasil desde então esteve em sintonia com o fim do ciclo longo de acumulação centrado nos Estados Unidos, marcado pela amplificação financeira sucessora do esgotamento do expansionismo material valorizativo do capital pela produção de mercadorias.

A dominância da lógica financeira, impulsionada por altas taxas de juros e pelo endividamento público, compromete a sustentabilidade do desenvolvimento, bloqueia o dinamismo produtivo tecnológico e produz a degeneração da estrutura social, o enfraquecimento das instituições, as políticas públicas, entre outras dimensões das esferas pública e privada.

A superação dos desafios impostos pela financeirização exige um debate aprofundado e a formulação de um novo projeto nacional que priorize o investimento e a modernização do sistema produtivo, a distribuição da riqueza e constituições de novas instituições comprometidas com o futuro na era digital.

Sem isso, as já quatro décadas que acumulam a dominância financeira paralisante e decadente da nação tenderão a prosseguir. Uma excelente oportunidade para que o seu rompimento ocorra, sendo possível reconstruir outra maioria política em novas bases econômica e social para o segundo quarto do século XXI. Será possível?

Marcio Pochmann, professor titular de economia na Unicamp, é o atual presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Autor, entre outros livros, de Novos horizontes do Brasil na quarta transformação estrutural (Editora da Unicamp).

Referências

ARRIGHI, G. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2003.

BRAGA, J. Financeirização global – O padrão sistêmico de riqueza do capitalismo contemporâneo. In: TAVARES, M.; FIORI, J. Poder e dinheiro: uma economia política da globalização. Petrópolis: Vozes, 1997.

CARNEIRO, R. Financeirização e dinâmica produtiva-tecnológica: uma reflexão. Texto de discussão, 487; IE/Unicamp, 2025.

DOWBOR, L. A era do capital improdutivo. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.

POCHMANN, M. O próximo Brasil. São Paulo: Ideias & Letras, 2025.

SOARES, R. Entre oligarquias. Rio de Janeiro: FGV, 2024.

VIANA, F. Instituições políticas brasileiras. Brasília: Senado Federal, 1999.

As formas contemporâneas de trabalho, por Gustavo Hasselmann

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Gustavo Hasselmann – A Terra é Redonda – 11/10/2025

O mesmo sistema que prometeu liberdade através das plataformas entregou o controle algorítmico total, transformando o sonho do empreendedorismo no pesadelo da jornada interminável sem direitos ou horizonte coletivo

1.

O trabalho é inerente à condição humana. Ele é vital para o homem na vida em sociedade. Ele opera transformações na natureza e na sociedade. Para muitos, impera o adágio popular: o trabalho “dignifica o homem”.

Ao longo de mais de cinco séculos, o trabalho, no ocidente, conviveu com as várias formas de capitalismo: comercial, industrial e financeiro, este último a partir dos anos 70 do século passado.

No capitalismo que vigeu nos 30 anos dourados do ocidente, em que o trabalho se dava, preponderantemente, no chão da fábrica, imperavam os sistemas fordista e taylorista. Principalmente a partir do pós segunda guerra mundial, o trabalho visava a produção em massa de mercadorias, como automóveis, máquinas, eletrodomésticos etc.

Para Michel Foucault, era a época da sociedade disciplinar, em que, nos hospitais, nas escolas, nos presídios, nas fábricas etc., as regras e valores eram impostos de forma cogente em prol do sistema capitalista.

Nesse diapasão, vale citar e transcrever excerto da lavra de Ricardo Antunes: “Se no apogeu do taylorismo -fordismo a força de uma fábrica mensurava-se pelo número de operários – o operário – massa magistralmente representado por Charles Chaplin em tempos modernos – , podemos dizer que, na era da acumulação flexível e da “empresa enxuta”, as empresas que se destacam são aquelas que empregam o menor contingente de força de trabalho, pois com o avanço tecnológico, elas podem aumentar fortemente os seus índices de produtividade”.[1]

Com efeito, nesse período áureo do capitalismo objetivava-se a produção. O sistema financeiro, majoritariamente, estava voltado para financiar a produção em massa. Vigia a regulação do capital e as regras estabelecidas nos acordos de Bretton Woods. O câmbio era fixo e lastreado no dólar e no ouro, o que veio a desaparecer a partir dos anos 70 do século passado, quando o câmbio passou a ser flutuante, com arrimo exclusivamente no dólar.

O filósofo germânico – coreano, Byng Chul Han, em A sociedade do cansaço, assim descreve a passagem da sociedade da produção\disciplinar (período fordista-taylorista ) para a sociedade do desempenho: “A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade do desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais sujeitos da obediência, mas sujeitos de desempenho e produção. São empresários de si mesmos”.[2]

2.

Efetivamente, o trabalho prioritariamente na indústria – com a desregulamentação do capital e o advento das tecnologias, no trabalho e nas fábricas, que geraram um grande desemprego – foi transferido para o setor de serviços e financeiro. Houve um grande processo de desindustrialização, que no Brasil começou a partir dos anos 80 do passado e dura até hoje. O capitalismo produtivo cede espaço à financeirização, leia-se, rentismo, que campeia sob a doutrina neoliberal.

Antonio Negri e Michel Hart – com a saída da hegemonia fabril e o ingresso da predominância do setor de serviços, inclusive digitalizados e plataformizados – empregam o conceito de “fábrica social” para designar estes últimos, onde a produção se entrelaça com as formas de vida no tecido social: “A fim de restabelecer margens de lucro que não podiam mais ser extraídas das fábricas, o capital teve de colocar o terreno social para trabalhar, e o modo de produção teve de ser ainda mais entrelaçado às formas de vida. Enquanto processos industriais automatizados produziam maior número de bens materiais, desenvolveram-se, do lado de fora das fábricas robotizadas, “serviços” produtivos cada vez mais sofisticados e integrados que combinavam tecnologias complexas com ciência fundamental, serviços industriais e serviços humanos. Nessa segunda fase a digitalização tornou-se mais importante que a automação. Com efeito, é essa característica que dissemina por toda a sociedade uma transformação técnica da força de trabalho que já havia se dado na fábrica. Aqui, então, ao fim dessa marcha selvagem, temos a entrada triunfal dos computadores e das redes sociais, que unem a automação das fábricas à digitalização da sociedade, dos modos de produção e das formas de vida: o autômato administra e controla a sociedade por meio de algoritmos”.[3]

Efetivamente, emerge, a partir dos anos 80 do século passado, o trabalho uberizado ou plataformizado, ou melhor, melhor o trabalho na era digital.

Ricardo Antunes, a respeito do trabalho digital, assinala o seguinte: “Uma de suas formulações centrais talvez possa assim ser resumida: em plena era da informatização do trabalho, do mundo maquinal e digital, estamos presenciando o nascimento e ampliação do “cibertariado”, o proletariado que trabalha com informática, com o mundo digital, e que, paralelamente, vivencia uma pragmática moldada cada vez mais pela precarização que muda profundamente a forma de ser do trabalho”.

Com efeito, nesse particular, há que se realçar que o trabalho dos motoristas por aplicativo é por demais precarizado. Eles ganham pouco, trabalham horas intermináveis, sob a direção do aplicativo, têm que custear as despesas de manutenção dos veículos etc. Não têm direitos trabalhistas e previdenciários assegurados.

O governo Lula, para minorar o problema vivenciado por eles, editou o PLP 12\2024, que é muito pífio e inexpressivo no combate a essa exploração, tendo estabelecido, pasmem, o limite de 12 horas para a jornada de trabalho.

De outro lado, nesse diapasão, o STF, contrariando orientação firmada no TST, não vem reconhecendo a relação de emprego entre os motoristas por aplicativo e as empresas de plataforma.

Ademais, esperava-se que o governo Lula 3 revogasse, como ele prometeu em campanha, a reforma trabalhista de Michel Temer, primeiramente, aprofundada no governo Bolsonaro depois. Ela mudou completamente as relações de trabalho no Brasil, aviltando os diretos dos trabalhadores. Criou o trabalho intermitente, em que o trabalhador só recebe o salário quando trabalha e é chamado para tanto, não tendo direitos trabalhistas e previdenciários assegurados.

Concebeu também o trabalho terceirizado, tanto para a atividade meio como para a atividade fim, o que foi chancelado pelo STF. Fez prevalecer o acordado sobre o legislado, em detrimento de direitos anteriormente conquistado, com muito suor, sangue e luta, pela classe trabalhadora. Reduziu a importância tanto do Ministério do Trabalho, como da Justiça do trabalho. Neste último caso, visando reduzir o número de demandas trabalhistas, impôs pesados custos judiciais para os trabalhadores, tais como pagamento de honorários de advogado, custos com perícia etc, etc. De outro lado, dita reforma não baixou o índice de desemprego no país, como prometido pelos Presidentes da República da época, parlamentares de direita e empresários.

3.

Outro aspecto a ser destacado, na esteira do pensamento de Byng Chul Han, é que, na sociedade do desempenho em que vivemos na atualidade reina absoluto o individualismo na vida e no trabalho. O trabalhador, empresário de si mesmo, quer sempre superar o seu concorrente, trabalhando horas intermináveis por dia. Ele também procura “bater metas”.

Com a era digital, ele não tem jornada de trabalho fixa, pois trabalha de forma extenuante dia e noite, através do celular e do computador. Ao mais das vezes, até mesmo nas atividades de entretenimento, ele presta um trabalho adicional e não remunerado para os empresários de plataformas digitais e para as empresas que comercializam produtos e serviços.

Outra forma de trabalho atual, cujo desfecho sobre a sua legalidade ou constitucionalidade pende de julgamento do STF, é a pejotização. Nesta relação laboral os trabalhadores são tratados como empresas, tendo CNPJ e tudo mais. Ao que tudo indica, se o STF reconhecer a validade desse tipo de contratação, assistiremos ao fim do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho.

Desse modo, para arrematar, como o capital precisa do trabalho, e sempre vai precisar, para sobreviver, embora a precarização deste, fazemos votos de que um trabalho mais humanizado, num futuro bem próximo, venha a existir no país e no sul global.

Só que vejo isso não acontecer, nem mesmo nas sociais democracias fortes do ocidente, muito menos no sul global. Antevejo, pois, como utopia, o advento do socialismo como solução para esses e outros problemas vivenciados pela humanidade nessa quadra.

Gustavo Hasselmann é procurador do município de Salvador.

Notas

[1] Ricardo Antunes. Capitalismo pandêmico, editora Boitempo, pag. 94.

[2] Byng Chul Han. A sociedade do cansaço, editora Vozes, pag. 23.

[3] Antonio Negri e Michel Hart. A organização multitudinária do comum. São Paulo, Politeia, 2018, p. 152.

[4] Ricardo Antunes, Capitalismo pandêmico, pag. 125.

As corporações querem professores-robôs, por Leher e Moreira da Silva

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Está em curso nova fase de precarização dos docentes. Ensino à distância, via plataformas, permitiu exploração massiva: turmas de centenas de alunos, controle algorítmico e roubo de tempo livre. Leia 1º texto de série sobre redução da jornada

Robert Leher e Amanda Moreira da Silva – OUTRAS PALAVRAS – 09/10/2025

Em parceria com o Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit) da Unicamp, Outras Palavras inicia uma série de textos que abordará a redução da jornada de trabalho no Brasil. Essa agenda histórica ganhou novo fôlego no ano passado, quando trabalhadores foram às ruas, em diferentes ocasiões, com um lema contundente: “Há vida além do trabalho”. Ela mostrou enorme potencial de mobilização – não só de trabalhadores, mas também de suas famílias – e deu uma chacoalhada nos sindicatos e partidos progressistas, instando-os a se renovar, a reencantar o mundo do trabalho diante da precarização – mais que de empregos, da vida.  Dois exemplos concretos ilustram essa força: a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da deputada Erika Hilton (Psol-SP) e o recente plebiscito popular pelo fim da escala 6×1, que reuniu mais de 1,5 milhão de assinaturas, evidenciando o forte apelo da causa.

Este artigo de abertura da série, cujo título original é Mercantilização financeirizada da educação, ensino superior a distância e jornadas de trabalho jamais vistas, expõe a engrenagem perversa da financeirização da educação e seus impactos sobre o trabalho docente no Ensino Superior privado. O ponto central é a explosão do ensino a distância (EaD) a partir de 2017, que ocorreu paralelamente à redução das matrículas presenciais. Trata-se de um lucrativo projeto de massificação do EaD, conduzido por corporações educacionais listadas na Bolsa de Valores e com ramificações em todo o país.

Os autores revelam dados que ilustram essa disparidade: professores, sem autonomia nas trocas e construção de saberes com os alunos, são reféns das plataformas e “enquanto nos cursos presenciais das instituições públicas a relação é de 12 estudantes por docente, nas privadas presenciais salta para 1:52 e, no EaD privado, chega a 1:168”. Nesse contexto, a “hora-aula” transformou-se na unidade básica de uma exploração sem precedentes. O trabalho, fragmentado por plataformas digitais, nunca tem fim. O controle algorítmico e a lógica do “tempo abstrato” invadem a vida privada, forjando uma subjetividade neoliberal digitalizada. Diante disso, a luta clássica pela redução da jornada de trabalho depara-se com uma nova realidade: a do cronômetro do capital que nunca para. (Rôney Rodrigues)

Introdução

O artigo examina o trabalho docente no Ensino Superior privado-mercantil, destacando o trabalho nos cursos a distância, ensino digital e ensino virtual, todos eles profundamente afetados pela intensificação e pela expropriação do trabalho. Atuam no Ensino Superior 328 mil docentes que atendem aproximadamente dez milhões de estudantes, sendo 79,3% nas instituições privadas. Entretanto, a rede pública, com apenas 20,7% das matrículas, possui 54% dos docentes em atividade no Ensino Superior, conforme o Censo do Ensino Superior de 2023 (Brasil, 2024). Em virtude das singularidades da forma de intensificação do tempo de trabalho na educação mercantilizada e financeirizada, notadamente na modalidade de cursos a distância, o tema é crucial para o debate político da redução da jornada de trabalho.

Em virtude da escala da intensificação do tempo de exploração do trabalho nas corporações educacionais, a luta pelo fim da jornada 6X1 e a discussão relativa ao tempo de trabalho assumem importância fulcral. Conhecer e explicar a exacerbação da jornada laboral no setor da Educação Superior privada-mercantil permite aprofundar a discussão sobre a jornada de trabalho, especialmente no contexto da plataformização e da financeirização da educação, tema que abrange, a rigor, toda a Educação. Este segmento de trabalhadores passa a vivenciar jornadas reais de trabalho jamais vistas na educação.

No caso do Ensino Superior, especialmente o privado-mercantil, os processos de exploração incidem diretamente sobre as condições de controle do tempo pelo trabalhador. A remuneração docente não se dá apenas pelos contratos de trabalho, mas, também, como em outras categorias, por meio de tarefas realizadas, no caso, aulas, correções de estudos, orientações, elaboração de materiais pedagógicos para uso (e incorporação sub-remunerada) nos sistemas de ensino e nas plataformas de trabalho das corporações. Desse modo, a consigna “existe vida após o trabalho” que orienta as lutas pelo fim da escala 6 x 1 não pode deixar de abarcar o labor de uma das categorias mais exploradas e que possuem as jornadas mais intensificadas, como a dos docentes das instituições privadas mercantis, especialmente aqueles que atuam na EaD. Como em milhões de outros trabalhadores, o tempo de trabalho não é expresso e regulado apenas na forma de jornada diária e semanal de trabalho.

A rápida expansão, nos últimos 15 anos, da economia de plataformas e do trabalho digital tem gerado desafios para a compreensão do mundo do trabalho no setor da educação mercantilizada. Nesse campo há um esforço crescente de pesquisas que têm contribuído para compreender o funcionamento das plataformas digitais e identificar suas conexões com as relações de trabalho, como as de Abílio, Amorim e Grohmann (2021); Antunes (2023); Fuchs (2014); Huws (2014); Machado e Zanoni (2022), Sagrado, Da Matta e Gil (2023), Scholz (2016).

A plataformização do trabalho e, particularmente, do trabalho docente, se caracteriza pela forte heterogeneidade, combinando, de diferentes formas, gestão algorítmica, intensificação, gamificação e controle de todo processo pedagógico. É notório o processo de precarização do trabalho docente no Ensino Superior e na Educação Básica (Silva, 2020). A plataformização do trabalho docente reproduz com novas características a heteronomia cultural própria do “capitalismo dependente” (Fernandes, 1981) que tem como bases as expropriações e brutais níveis de exploração, tema abordado por Marini (2000) em sua discussão sobre a “superexploração do trabalho”.

A reconfiguração do trabalho docente impulsionada pelas corporações educacionais estruturadas como sociedades anônimas e com ações nas bolsas de valores possui como foco principal a jornada de trabalho, combinando a sua intensificação (Dal Rosso, 2008) por meio da subordinação real do trabalho ao capital e por novas formas de controle do tempo (Thompson, 2011) dos professores através das plataformas digitais. A introdução dessas tecnologias intensifica a carga de trabalho docente e reforça os mecanismos de controle externo e, o que é crucial, de autocontrole interno contidos nas tecnologias digitais gerando uma “subjetividade neoliberal digitalizada” (Sagrado, Da Matta, Gil, 2023). Por isso, a problemática do controle do tempo de trabalho pela classe trabalhadora compõe a nervura central do presente artigo.

O artigo dedica uma seção para caracterizar o tema do tempo de trabalho como o fulcro das lutas de classes, abordando, em diálogo com E. P. Thompson, o significado das lutas pelo tempo; a seguir, caracteriza a relação entre a plataformização e a financeirização diante da mercantilização financeirizada na EaD, na terceira seção, a caracterização da intensificação da jornada em patamar inédito na História da Educação, realçando o problema da expropriação do trabalho. Nas conclusões, a partir da análise realizada, foram elaboradas proposições para fortalecer a luta contra a ofensiva do capital sobre o tempo que impossibilita a existência de uma vida plena de sentido imbricada aos processos de trabalho.

Tempo de trabalho, tempo a serviço da exploração, tempo como luta de classes na Educação

Leher (1998) ressalta que mesmo antes de Marx ter analisado o segredo da mercadoria, inúmeros movimentos proletários já haviam compreendido que, por trás da instituição da jornada de trabalho, estava uma forma do patrão aumentar a exploração do trabalho. Como assinalado por Thompson (2011), a luta pelo tempo está na própria origem da classe trabalhadora como classe que se forja em luta contra a burguesia. O autor faz um fascinante estudo do processo de internalização do tempo por parte das classes operárias inglesas, no qual argumenta que, nas sociedades camponesas, de pescadores e nas pequenas indústrias, o tempo era orientado para tarefas que, em grande parte, possuíam sentido como valores de uso. Este processo – que nada tem de homogêneo – levou, historicamente, após muitos embates e lutas, os trabalhadores pobres a interiorizar uma determinada disciplina de tempo.

Contudo, na Inglaterra, o país de capitalismo mais avançado no Século XIX, os trabalhadores resistiram à imposição do tempo burguês. A luta pelo dia livre “Saint Monday” motivou embates memoráveis e, como expresso na luta pelo fim da Jornada 6×1 segue impulsionando no Brasil as lutas do presente. Hobsbawm (1987) registra que a primeira manifestação internacional dos trabalhadores teve o tempo como bandeira: “O Primeiro de Maio foi planejado como uma única manifestação simultânea internacional pela jornada legal de oito horas de trabalho” (Hobsbawn, 1987, p. 112 apud Leher, 1998). O feriado do Dia do Trabalhador foi estabelecido pela luta dos trabalhadores: foi através da participação pública que o 1o de Maio se tornou um feriado tanto no sentido ritual, quanto no sentido festivo.

Apesar da resistência, os capitalistas tiveram vitórias expressivas. Enquanto as primeiras gerações de trabalhadores ingleses lutaram contra o relógio, isto é, contra as horas (de trabalho) em si mesmas, as gerações seguintes, admitindo o controle da jornada de trabalho, lutaram pela redução legal das horas de trabalho. Com isso, assinala Thompson (2011), a classe operária inglesa expressou a sua aceitação da organização da sociedade em termos de tempo abstrato (Leher, 1998), porém inserindo-o nas lutas de classes, posição discutida de modo original por Marx na Associação Internacional dos Trabalhadores. Como demonstrado empírica e teoricamente por Marx (2014) e Engels (2010), as lutas contra o aumento das jornadas, a intensificação e a expropriação do trabalho conformam uma situação de sofrimento laboral das classes trabalhadoras e, por conseguinte, devem compor uma nervura axial da estratégia de luta contra o morticínio do capital.

O tempo abstrato, precisamente o tempo de exploração do trabalho, possui imensas particularidades na educação. Nas lutas históricas das classes trabalhadoras, a garantia do acesso real das crianças, dos jovens e dos adultos à educação foi compreendida como uma dimensão da estratégia de ‘fazimento’ das classes trabalhadoras. E o trabalho de ensinar, nesses contextos, não se confunde com o tempo sob o jugo do capital. Para além do debate entre trabalho produtivo e improdutivo no âmbito do serviço público, em períodos em que as escolas estão auto-organizadas e dirigidas por educadores e estudantes a vivência do tempo é outra. Em processos revolucionários da segunda metade do Século XX, como a Revolução Cubana (1959), ou a Revolução dos Cravos (1974), a questão da jornada de trabalho docente foi percebida e mensurada pelos trabalhadores de modo totalmente distinto do tempo imposto nas fábricas estruturadas com base no maquinismo. A possibilidade de compartilhar experiências de educação de crianças, jovens e adultos, assim como os círculos de discussões e as práticas de teatro, música etc., tornavam o tempo na escola uma experiência plena de sentido (Varela et Al., 2022).

Essas experiências seguem práticas como as das escolas do campo do MST, em que o tempo igualmente não é uma forma de subordinação, intensificação e controle do trabalho, mas de compromisso com a Educação Popular. O trabalho não alienado não pode ser mensurado pelo cronômetro. No entanto, o trabalho não alienado é compreendido pelo estado maior da burguesia como um trabalho subversivo que precisa ser suprimido. Por isso, sempre as políticas que objetivam extirpar a soberania popular sobre os assuntos públicos incidem sobre o controle do tempo.

Com efeito, as ações da burguesia se deram no sentido de impor outra lógica de trabalho nas escolas, objetivando torná-las instituições afastadas do controle e da soberania popular. O próprio estado maior do capital logo compreendeu que o intento dos trabalhadores, expressos originalmente na Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), de que a defesa da Escola Pública não equivale a nomear o Estado (e os governos) como educadores do povo, levaria a uma perda dos meios de subordinação da educação ao capital. Por isso, a expropriação do conhecimento e a intensificação do trabalho docente tornaram-se objetivos estratégicos. No período de ascenso do neoliberalismo uma das manifestações mais explícitas desse propósito do capital pode ser encontrada na proposição de Labarca, consultor da CEPAL no contexto de implantação da neoliberalização da educação pública latino-americana nos anos 1990:

Os docentes deixam de ser os principais depositários do conhecimento e passam a ser consultores metodológicos e animadores de grupos de trabalho. Esta estratégia obriga a reformular os objetivos da educação. O desenvolvimento de competências-chave […] substitui a sólida formação disciplinar até então visada. O uso de novas tecnologias educativas leva ao apagamento dos limites entre as disciplinas, redefinindo ao mesmo tempo a função, a formação e o aperfeiçoamento dos docentes (Labarca, 1995, p. 175).

O processo de expropriação do conhecimento dos docentes é indissociável das contrarreformas que objetivam impor uma nova escala de subordinação real do trabalho ao capital, o que requer mudanças na composição orgânica do capital, via-de-regra pela exacerbação das tecnologias. E será por esta via que as corporações educacionais financeirizadas irão impor uma nova ordem de grandeza na escala da exploração do trabalho dos docentes que atuam na EaD.

Conforme é possível depreender da análise dos Censos do Ensino Superior do INEP, o crescimento exponencial das matrículas em EaD entre 2017 e 2023 é proporcional ao decréscimo das matrículas presenciais, o que confirma a opção do setor privado-mercantil pela massificação por meio desta modalidade. Na segunda coluna fica evidente que a expansão se dá no setor privado, liderada pelas corporações (Bielschowsky, 2020). O que frequentemente não é observado é o fato de que o crescimento dos ingressantes, matrículas e cursos na modalidade EaD das corporações não foi acompanhado pelo crescimento do número de professores. Em 2017, ingressaram 1,17 milhão de estudantes, em 2,1 mil cursos (o que já indicava a amplitude de tipos de cursos) somando então 1,8 milhão de estudantes; em 2023, ingressaram 2,94 milhões apenas nas instituições com fins lucrativos, agora em 10,5 mil cursos, totalizando 4,26 milhões de matrículas a maioria delas nas dez maiores corporações. Neste período, os docentes do setor privado (incluindo as ditas sem fins lucrativos) foram substancialmente reduzidos, passando de 186 mil (2017) para 150 mil (2023), situação agravada na modalidade a distância.

Enquanto nos cursos presenciais das instituições públicas o número de estudantes por docente é de 1:12, nas privadas presenciais é de 1:52 e nas privadas em EaD de 1:168. Analisando mais detidamente a intensificação do trabalho nas maiores corporações financeirizadas, é necessário destacar uma instituição privada-mercantil que oferta seus cursos perto de 100% em EaD. Esta corporação, não nomeada nos dados do Censo do Ensino Superior de 2023 (Brasil, 2024) possui 709 mil estudantes e escassíssimos 326 docentes, o que corresponde a 1 docente para 2,2 mil estudantes; outra instituição, também basicamente a distância, possui 771 mil estudantes (764 mil a distância) e igualmente irrisórios 524 docentes. Uma grande instituição pública, por sua vez, possui 62 mil estudantes, todos presenciais, e 5.597 professores (Brasil, 2024). O panorama do trabalho nas corporações que atuam na modalidade de cursos a distância é de inédita intensificação da jornada de trabalho, conformando um quadro adoecedor. Não pode haver dúvida de que a escala da exploração foi alterada.

Relação entre a plataformização e a financeirização na educação superior privada-mercantil

A rápida expansão das plataformas digitais nos holdings educacionais é impulsionada por uma lógica de hiperprodutividade para a maximização do lucro característica do capitalismo de hoje. A dinâmica dos circuitos capital, comércio de dinheiro e processos de extração de Mais-Valor foi redimensionada, e está transformando radicalmente o trabalho docente, aumentando sua jornada regulada e, ainda mais, o tempo de trabalho efetivamente realizado. Ademais, a mudança na composição orgânica gera novas formas de controle algorítmico, por meio de descritores de competência elaborados em conformidade com a pedagogia do capital. Essa combinação de fatores reconfigura a jornada de trabalho dos professores e está em conexão com a intrínseca relação entre a plataformização do trabalho no setor da educação superior privada-mercantil e o processo de financeirização da economia, exacerbando, em novos patamares, a exploração efetiva do trabalho.

A plataformização é, ao mesmo tempo, materialização e consequência de um processo histórico que mistura capitalismo rentista, ideologia do Vale do Silício, extração contínua de dados e gestão neoliberal. Uma das bases está na crescente responsabilização individual dos trabalhadores por tudo que envolve o trabalho, circunstância que Wendy Brown chama de “cidadania sacrificial”. Assim, os trabalhadores são obrigados a fazer a gestão das próprias sobrevivências com toda a sorte de vulnerabilidades, tendo de escutar que isso é um “privilégio”. Já os dados e metadados transformados em capital, somados à convergência de capital, auxiliam a dar forma às distintas possibilidades de extração do valor das plataformas, dependentes das mais variadas configurações de trabalho vivo (Grohmann, 2021, p. 14).

A plataformização é uma noção em movimento que compartilha um sentido comum de precariedade do trabalho e de triunfo de um modelo de negócio assimétrico, típico do capitalismo financeiro e com formas renovadas de exploração do trabalho (Fuchs, 2014; Huws, 2014; Scholz, 2016), como informalização, baixas remunerações, intensificação do trabalho, perda da identificação e insegurança generalizada para o trabalhador e generalização do modo de vida periférico (Abílio, 2020). Essas plataformas são catalisadoras das tendências e processos de transformações no mundo do trabalho, das quais derivam novas configurações organizacionais, novos tipos de controle, subordinação e terceirização do trabalho, e que também se associam às políticas neoliberais e ao processo de financeirização.

As plataformas podem também ter o poder de influenciar ou estipular diferentes aspectos do trabalho, seja por meio de regras explícitas ou por meio de estímulos e desestímulos via algoritmos – que possuem objetivos bem definidos voltados à otimização da plataforma para ganhar participação no mercado e/ou voltados à maximização do lucro. Podem fazer parte desses aspectos a remuneração (valores e condições), a jornada de trabalho (horas e horário), o modo de realização do trabalho, o modo de relação com as partes envolvidas, a forma de direcionamento do trabalho, a localidade de onde o trabalho deve ser realizada, o nível de liberdade para recusa, os sistemas de avaliação, entre outros (Machado e Zanoni, 2022, p. 57).

Ludmila Abílio (2020) argumenta que compreender as plataformas requer analisar suas inter-relações com a financeirização, que é um elemento central na compreensão da lógica por trás da expansão das plataformas digitais de trabalho, influenciando as estratégias das empresas, a organização do trabalho e as condições para os trabalhadores docentes que atuam nesse novo cenário.

Aspectos da realidade do trabalho intensificado na EaD

A base principal da exploração exacerbada e da intensificação do trabalho dos docentes que atuam em EaD é o regime de hora-aula, retomando, em novos padrões, as relações precárias de trabalho no setor mercantil. Em uma série de reportagens de autoria de Domenici, a Agência Pública mergulhou na situação laboral dos trabalhadores da Laureate, notadamente dos que atuavam em cursos de EaD. Os depoimentos de docentes com nomes fictícios, explicita a dura realidade do trabalho nessas corporações: “A palavra que melhor define meu momento é desespero”, conta Horácio*, professor da Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo, do grupo Laureate, referindo-se à redução de 75% das suas horas de trabalho no atual semestre letivo, situação dramática considerando ser seu único emprego. Não há salário, apenas tarefas, no caso, horas-aula. Enzo*, professor de outra universidade do grupo Laureate, a FMU, passou de 21 horas semanais no último semestre para apenas 3 horas. Ele diz que a maioria dos professores está nessa situação. “Nós estamos recebendo em média R$500,00 por mês.” Muitos docentes foram informados da demissão por um pop-up na tela do computador, ao acessarem o sistema.

Nesse quadro, o sofrimento laboral e o estresse são evidentemente exacerbados. Cabe registrar que o estudo das condições laborais dos trabalhadores em EaD é dificultada pela individualização das tarefas demandadas pela corporação e pelo assédio que impede a presença de sindicatos de professores nessas organizações. Em virtude da relação entre o número de estudantes e o de docentes, que, nessas instituições podem chegar a 2,2 mil estudantes por docente, a Laureate instaurou robôs para corrigir os trabalhos dos estudantes sem que estes soubessem da situação (Domenici, 2020a). Mesmo nas aulas síncronas, as turmas normalmente possuem 250 a 350 estudantes, inviabilizando as interações ensino e aprendizagem. Um dos principais articuladores das denúncias sobre as condições de trabalho, Gabriel Teixeira, organizador da Rede de Educadores do Ensino Superior em Luta, destaca que eles criaram uma Plataforma de Apoio Psicológico para Profissionais da Educação e receberam 300 inscrições em apenas cinco horas (Domenici, 2020b). Conforme Gemelli e Closs (2023), o principal indicador de precarização para os entrevistados, aferido por um survey realizado pelos autores, é a contratação com jornada ou definição de horas-aula muito abaixo das tarefas realizadas, corroborando a existência de intensificação do trabalho.

Esse cenário apresentado tende a se agravar com a complexificação da Inteligência Artificial. Funções como atendimento aos alunos por meio de monitoria ou tutoria nos polos de EaD, funções já altamente exploradas, podem ser amplamente substituídas por tutorias exclusivamente virtuais (Júnior e Schlesener, 2024).

“Os últimos avanços da Khan Academy3, incluem o ChatGPT-4 da OpenAI, que criou a figura do Khanmigo: um tutor de IA que conversa com estudantes em linguagem natural, recriando a experiência de um(a) professor(a) humano(a)” (Sagrado, Da Matta e Gil, 2023, p. 87, Tradução Nossa). Essas plataformas permitem também a implementação de assistentes que atuam junto aos professores, sob a alegação de facilitar o trabalho docente.

Delegar às plataformas, por meio de assistentes virtuais, atividades como a sumarização de pontos de um texto para serem usados em aulas, elaboração de sínteses, criação de questões para trabalhos e avaliações, sugestões de temas e exemplos, correção de atividades e, como já mencionado anteriormente, o atendimento e interação com os alunos, podem endossar argumentos para reduzir o já escasso tempo de trabalho remunerado destinado aos professores para atividades fora da sala de aula (Júnior e Schlesener, 2024, p. 150).

Inexiste publicidade sobre as condições de trabalho nos 47 mil polos de EaD, 46% deles terceirizados, ou seja, desvinculados das instituições que formalmente os instauraram. Todo um complexo de relações de trabalho precarizadas move a reprodução do capital nessas organizações que, simultaneamente, promovem um apartheid formativo, afetando, inclusive, os formadores dos novos docentes, propagando a segregação da formação dos 47 milhões de crianças e jovens que cursam a Educação Básica.

Considerações finais

Diante da mudança na composição orgânica do capital, do mercado de ações, da dissociação entre propriedade do capital e a direção dos negócios e, ainda, da conversão dos grupos educacionais em sociedades anônimas, há um redimensionamento, em níveis inéditos, da jornada de trabalho dos professores. A intensificação do trabalho no âmbito da jornada regulada e remunerada envolve estratégias sutis e menos visíveis de exploração, como o número de estudantes com os quais o sujeito docente trabalha que, como visto, pode ser mais de 160 vezes a razão encontrada nos cursos presenciais das instituições públicas.

A necessária consigna “Pelo fim da jornada 6X1” que consubstancia a Proposta de Emenda à Constituição – PEC no 8/2025 reduz a jornada semanal para 36h a serem distribuídas de modo a assegurar três dias de descanso. Entretanto, será necessário buscar formas de coibir a intensificação do trabalho “dentro da jornada regular”, pois, sem isso, os três dias de descanso seguirão sendo três dias de trabalho adicional não remunerado – afinal, um docente plataformizado que possui centenas e até milhares de estudantes dificilmente poderá ignorar demandas legítimas dos estudantes por um mínimo de conexão com seus professores. Será necessário incorporar na regulamentação da referida PEC o problema dos precarizados plataformizados. Os milhares de tutores e monitores, grande parte deles terceirizados, que atuam nos polos e mesmo no atendimento cotidiano aos cinco milhões de estudantes que estudam na modalidade EaD, com a nova legislação poderão ter uma referência de direito à uma vida fora do trabalho alienado e explorado, o que favorece a organização e as lutas. No entanto, como não se trata do tempo linear da jornada de trabalho, mas de uma inteira mudança no manejo do tempo pelo capital, a resistência e as lutas requerem um ambiente de crítica às formas de exploração no âmbito das plataformas e dos sistemas de ensino. O estranhamento dessas formas sub-reptícias de exploração é estratégico e somente ganhará força política nas lutas de classes se forem movimentos de amplas frações das classes trabalhadoras igualmente expropriadas e exploradas.

Conforme destacado, a primeira manifestação internacional dos trabalhadores teve o tempo como bandeira, um aspecto que nunca saiu de cena. No Século XXI, a luta pela abolição da escala 6×1 no Brasil unificou de modo original segmentos expressivos da classe trabalhadora, ganhou amplo apoio da sociedade e se tornou um objetivo central do Primeiro de Maio de 2025, que reuniu milhares de pessoas nas ruas em torno da pauta. Além disso, dias antes também houve uma importante manifestação, a greve nacional dos entregadores, conhecido como o “breque dos apps”, caracterizada como a maior mobilização nacional dos entregadores desde 2020. De fato, em 2020, pela primeira vez, esses trabalhadores fizeram uma greve contra as condições de trabalho impostas pelas plataformas. Partindo destes exemplos recentes é possível propugnar que há movimentos originais surgindo a partir das novas facetas da superexploração, incluindo a criação de sindicatos e associações que representam os trabalhadores mais precarizados.

Está evidente que é necessário ousadia estratégica para retomar a constituição de organizações autônomas dos trabalhadores, com pautas que sejam capazes de unificar as lutas em curso nos movimentos contestatórios. Afinal, a história é, de distintas formas, a história da luta de classes. As possibilidades de resistência estão abertas no Século XXI. O trabalho é sempre um elemento vivo e o tempo condensa os grandes embates e lutas da sociedade, gerando conflitos e oposições permanentes.

O contexto atual, marcado, entre outros aspectos, pela ampliação das formas de contratação precárias, pelas tentativas de esfacelamento dos coletivos de lutas e pelas políticas de cerceamento à liberdade de cátedra das professoras e professores nas instituições educacionais, exigem amplo debate, permanente reflexão e resistências em direção à defesa dos direitos sociais que, no capitalismo dependente, necessitam ser fortemente universalizados Urge, no Brasil, lutas pela desmercantilização radical da Educação. Isso requer urgentemente proibir a massificação do Ensino Superior a distância, tema que deve ser tratado como exceção para situações específicas; é imperioso proibir grupos educacionais com a participação de fundos de investimentos, organizados como sociedades anônimas e com ações nas bolsas; as lutas precisam combater o uso do fundo público que alavancou esses holdings, assegurando o princípio de verbas públicas exclusivamente para as instituições públicas. A partir dessas bases, articular a luta em prol da consigna “existe vida após o trabalho”, assegurando, em todo país, nas instituições públicas e privadas, da Educação Básica e da Educação Superior, o regime de dedicação exclusiva como padrão básico para o exercício do Magistério, objetivando forjar uma educação a altura dos desafios do tempo histórico.

Referências

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Brasil precisa descobrir os assassinatos, por Luiz Francisco Carvalho Filho

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Luiz Francisco Carvalho Filho, Advogado criminal, é autor de “Newton” e “Nada mais foi dito nem perguntado”

Folha de São Paulo, 11/10/2025

São mais de 44 mil assassinatos, o mais grave dos crimes, em 2024. O número está em queda desde pelo menos 2012, mas não há motivo para comemorar. O problema brasileiro é gigantesco.

Monitoramento do Instituto da Paz registra uma média estável, entre 35% e 44%, de casos esclarecidos nos últimos nove anos. A média mundial é 63%.

A divulgação da pesquisa “Onde Mora a Impunidade” (em 2023, 36% dos homicídios foram esclarecidos) coincidiu com mais um intrigante assassinato em novelinha da Globo, e não faltaram referências. Quem matou Odete Roitman? “Na vida real”, diz o Sou da Paz, “as chances de essa pergunta ser respondida são bem pequenas”.

O desfecho da trama sem a identificação do autor e do motivo do crime poderia frustrar os telespectadores, mas não estaria distante da realidade.

Matar premeditadamente sempre foi complexo. Antigamente, locais ermos. Agora, lugares sem vigilância de smart cam. A esperteza sempre foi capaz de proteger assassinos, transferir culpas, incriminar falsamente bandidos ou inocentes, confundir autoridades. Com a inteligência artificial, a capacidade de enganar e despistar parece infinita.

O impacto do crime de morte no meio social é dramático. O assassinato é instrumento de poder no âmbito do crime organizado. Assim como o sentimento de impunidade, o efeito colateral do homicídio praticado por agentes policiais (6.243 em 2024) corrói gravemente a credibilidade do poder público.

Sucateamento da Polícia Civil por governadores de todos as linhas ideológicas, despreparo dos agentes, corrupção, falta de vontade política, falta de meios e recursos, falta de inteligência, falta de acesso a banco de dados, desrespeito a protocolos, ineficiência processual, tudo ajuda a explicar os números desalentadores.

O Atlas da Violência revela que entre 2013 e 2023 mais de 135 mil mortes não tiveram a intencionalidade identificada. Os “homicídios ocultos” nas estatísticas proliferam em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia —responsáveis por 66,4% das chamadas MVCI (Mortes Violentas por Causa Indeterminada).

O Brasil ainda não tem um indicador nacional de esclarecimento de homicídios. O Sou da Paz criou o seu indicador para estimular a criação de uma métrica oficial. Os dados que recolhe do Ministério Público e dos Tribunais de Justiça, via Lei de Acesso à Informação, afetados pela falta de padronização, são incompletos e insuficientes, sobretudo em relação a marcadores de gênero, raça e faixa etária de vítimas.

O indicador nacional de esclarecimento de homicídio é ferramenta inestimável para o conhecimento da realidade e para políticas de prevenção e punição de atentados que atingem a vida de famílias e comunidades.

O recente crime contra Luiz Fernando Pacheco, advogado querido e notável, é uma exceção porque, filmados os suspeitos, identificados por reconhecimento facial, a repercussão do caso faz a polícia trabalhar.

O sentimento de segurança conspira contra a privacidade, a intimidade, a liberdade de ir e de estar. Se a erosão dos direitos da personalidade é irreversível, retirar o manto escuro que encobre assassinatos é uma contrapartida obrigatória para o espírito de vigilância extrema que se instala em nossas cidades.

Como surge o indivíduo fascista? por Michel Aires de Souza Dias

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Michel Aires de Souza Dias – A Terra é Redonda – 09/10/2025

A personalidade autoritária floresce onde o eu é fraco e a experiência formativa, deteriorada. Mais que uma patologia individual, é o resultado previsível de uma sociedade que produz sujeitos incapazes de resistir às promessas de poder e pertencimento

1.

Os estudos de Theodor Adorno, na década de 1940, sobre a personalidade autoritária continuam atuais, pois nos oferecem instrumentos teóricos para refletirmos sobre o advento de regimes autoritários nos dias de hoje.

Ao chegar aos Estados Unidos, os frankfurtianos ficaram espantados com o antissemitismo daquele país. Eles descobriram que o fascismo não se restringia ao contexto histórico e político da Europa, não se tratava de um fenômeno isolado, mas estava presente de forma latente na estrutura psíquica dos indivíduos, em uma grande parcela da população norte-americana.

Como observou Costa (2019), ao se exilarem nos Estados Unidos, os pensadores alemães se depararam com um grande preconceito contra judeus, que correspondiam a 3,5% da população nacional. Tratava-se de uma grande contradição para um país que se orgulhava da liberdade e dos princípios democráticos, mas que convivia com um enorme preconceito racial. Essa experiência culminou na seguinte indagação: seria possível um fenômeno análogo ao nazifascismo em um país que se diz democrático, como os Estados Unidos?

O livro A personalidade autoritária é considerado um clássico da psicologia social. Foi um trabalho interdisciplinar, dirigido pela equipe da Universidade de Berkeley, fundamentado em pesquisas empíricas nos Estados Unidos, que usou escalas de atitudes, entrevistas e testes projetivos. Todos esses instrumentos foram usados ao lado de uma teoria social e a uma teoria do inconsciente, procurando entender a psicologia do homem autoritário.

A grande preocupação foi com os indivíduos potencialmente fascistas, que possuíam certa estrutura de personalidade, tornando-se suscetíveis à propaganda antidemocrática. Os pesquisadores descobriram que os indivíduos que apresentam extrema suscetibilidade à propaganda autoritária possuíam características em comum, que formavam uma síndrome. A partir disso foi elaborada uma escala denominada escala F, que buscou avaliar o preconceito etnocêntrico e as disposições latentes, que tornam uma pessoa inclinada ao caráter autoritário.

Nove traços de personalidade mais comuns foram vistos como autoritários: convencionalismo; submissão acrítica; agressividade autoritária; destruição e cinismo; poder e rudeza; superstição e estereotipia; exteriorização; projeção; e obsessão com a sexualidade (ADORNO, 2019).

As pesquisas feitas nos Estados Unidos mostraram que, em alguns indivíduos, o antissemitismo formava um padrão de comportamento antidemocrático. Não se tratava apenas de características psíquicas. Para os pesquisadores, os preconceitos racistas têm uma origem socialmente determinada. Ao serem expostos a determinadas condições sociais, alguns indivíduos responderiam de forma preconceituosa. Desse modo, os estudos encontraram um tipo antropológico autoritário, com um padrão psicológico, determinado por certas condições sociais objetivas (COSTA, 2019).

Como o próprio Theodor Adorno aponta: “Estamos convencidos de que a fonte última do preconceito deve ser buscada em fatores sociais incomparavelmente mais fortes que a ‘psique’ de qualquer indivíduo envolvido” (ADORNO, 2021, p. 352). Significa, portanto, que a psicologia do indivíduo não pode ser hipostasiada, uma vez que os aspectos sociais são fundamentais para a compreensão do caráter autoritário. As convicções econômicas, políticas e sociais de um indivíduo fascista formam um padrão amplo e coerente, desenvolvendo um tipo de mentalidade específica, que expressa certas tendências preconceituosas de sua personalidade.

2.

O que é bastante relevante nas descobertas de Theodor Adorno é que, mesmo com o fim dos regimes totalitários na Europa, os pressupostos sociais objetivos que produziram o nazifascismo ainda estavam presentes. Desse modo, a personalidade fascista não pode ser compreendida apenas como um fenômeno circunscrito a um período histórico particular, mas deve, antes, ser entendida a partir da ordem e organização econômica da realidade, que transformam as pessoas em átomos sociais dessubjetivados.

A superioridade do aparato técnico e econômico exerce enorme pressão sobre os indivíduos. Para sobreviver, eles precisam se adaptar e aceitar as coerções impostas pela realidade. Como Theodor Adorno (1995) avalia, personalidades com características autoritárias, de modo geral, se identificam com instâncias de poder, independentemente de seu conteúdo. Os indivíduos carregam consigo uma identidade fragilizada, que as leva a se identificar com toda espécie de coletivo.

No capitalismo avançado, as pessoas se tornaram objetos de controle, organização e coordenação em larga escala, sendo determinadas por um grande aparato técnico e burocrático. Desse modo, a formação dos indivíduos tornou-se tecnologicamente mediada, sendo estabelecida pela indústria cultural, impossibilitando que eles adquiram autonomia e liberdade de pensamento. Hoje, mesmo com o avanço das tecnologias da informação, onde se reduziu o tempo e o espaço para a circulação da informação e do conhecimento, as pessoas se tornam presas fáceis do discurso ideológico.

Na sociedade tecnológica, as formas de dominação e controle se tornaram cada vez mais interligadas, cada vez mais conectadas. Essas novas tecnologias, como smartphones, tablets, notebooks, celulares, câmeras, vídeo games, inserem-se na mesma lógica de dominação da indústria cultural. Com o processo de globalização, essas novas tecnologias possibilitaram o desenvolvimento de uma nova cultura internacional popular e, em consequência disso, permitiram um maior controle sobre os indivíduos.

Como avalia Rodrigo Duarte (2003), com o processo de globalização, os meios de comunicação de massa vêm passando por enormes transformações. Observa-se uma grande concentração de capitais, de modo que apenas uma dúzia de corporações controla quase toda oferta de mercadorias culturais colocadas à disposição do mercado mundial.

3.

Na avaliação de Theodor Adorno e Max Horkheimer (1985), a produtividade econômica, que poderia ser usada para a construção de um mundo mais justo e igualitário, conferiu ao aparelho técnico e aos grupos sociais que o controlam um poder descomunal sobre o resto da população. Desse modo, a autonomia do indivíduo foi anulada em face dos poderes econômicos. Ele se tornou um átomo social isolado, mediado socialmente, sem consciência da totalidade reificada que o subjuga.

Na esfera da interioridade, a subjetividade foi capturada pelos mecanismos ideológicos da indústria cultural, tornando-se incapaz de desenvolver a consciência crítica da realidade. O resultado disso foi a massificação do indivíduo, que se tornou parte das engrenagens sociais: “Na sua individualização, o indivíduo reflete a lei social estabelecida da exploração” (ADORNO, 2008, p.145).

Na sociedade de massas a racionalidade instrumental se impõe como forma predominante do pensar e agir. Desse modo, o sujeito moderno não se constitui de maneira autônoma. O “eu” (Ich) semiformado pela indústria cultural e pelo aparato técnico é moldado pelas exigências sociais objetivas do capitalismo administrado. Os pensadores frankfurtianos partem do princípio materialista de que o indivíduo é determinado pela totalidade social. A subjetividade não possui uma natureza fixa, acabada, mas é moldada na interação com as estruturas econômicas, políticas e culturais da sociedade.

Nesse sentido, o “eu” se torna fraco e impotente, tornando-se incapaz de resistir às pressões sociais externas. O indivíduo passa a reproduzir os valores impostos de fora, tornando-se psicologicamente vulnerável a manipulação e a sedução autoritária. A falta de autonomia e o conformismo dos indivíduos decorrem, portanto, da forma como a sociedade está organizada. A cultura do consumo e a avalanche de mercadorias impedem uma verdadeira consciência da realidade. A grande consequência disso é que os sujeitos se tornam presas fáceis de instâncias heterônomas. Os mecanismos de controle do mundo administrado determinam a interioridade do indivíduo em seu íntimo, naquilo que deveria constituir o núcleo de sua autonomia. A deterioração da experiência formativa produz sujeitos impotentes, paralisados e incapazes de ação.

Os estudos de Theodor Adorno mostraram que a personalidade autoritária não se define a partir de características psicológicas e, também, não é resultado de ideologias políticas conservadoras, mas ela se desenvolve devido à impotência, à paralisia e à incapacidade do indivíduo de reagir frente à racionalidade opressora do mundo administrado.

No fundo os indivíduos fascistas “dispõem de um eu fraco” (ADORNO, 1995, p. 37). Para o pensador frankfurtiano, o caráter opressor do aparato técnico-industrial – que submete o indivíduo a exigências de eficiência e desempenho previamente estabelecidas – anula qualquer possibilidade de autonomia, liberdade e espontaneidade subjetiva. Na sociedade reificada, as pessoas só podem se afirmar como sujeitos a partir de padrões externos de adaptação, desempenho e eficiência, que são colocados como imperativos para a sobrevivência.

Elas vivem em permanente pressão econômica e instabilidade material, tornando-se debilitadas e ansiosas. Assim, a personalidade autoritária “[…] seria definida muito mais por traços como pensar conforme as dimensões de poder — impotência, paralisia e incapacidade de reagir, comportamento convencional, conformismo, ausência de autorreflexão, enfim, ausência de aptidão à experiência” (ADORNO, 1995, p. 37)

4.

Embora Theodor Adorno expresse um certo pessimismo em relação à cultura de massa, ele acredita que a emancipação é possível. Em sua opinião, os indivíduos propensos à personalidade autoritária podem ganhar consciência da fragilidade de seu ego e podem desenvolver uma resistência frente às tendências fascistas na sociedade. No seu texto, Educação e emancipação, Adorno (1995, p. 119) afirma que “a exigência mais importante da educação é que Auschwitz não se repita”.

Enquanto o aparato técnico e a indústria cultural fragilizam os indivíduos para ajustá-los cada vez mais ao sistema produtivo, o frankfurtiano propõe a reconstrução da individualidade por meio da experiência formativa, de modo que essa singularidade se torne uma força propulsora de resistência. Nesse contexto, a educação assume o papel de instrumento de conscientização da realidade e das formas de dominação social, ao formar sujeitos esclarecidos, críticos e autônomos. [1]

Michel Aires de Souza Dias é doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP).

Referências

ADORNO, Theodor W. Observações sobre a Personalidade autoritária, de Adorno, Frenkel-Brunswik, Levinson e Sanford. Trans/Form/Ação, Marília, v. 44, n. 2, p. 345-384, Abr./Jun., 2021.

ADORNO, Theodor W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Unesp, 2019.

ADORNO, Theodor W. Minima Moralia: reflexões da vida lesada. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008.

ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimentofragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

COSTA, Virginia H. Ferreira. Apresentação a edição brasileira. In: ADORNO, Theodor W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Unesp, 2019.

DUARTE, Rodrigo. Teoria crítica da indústria cultural. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

Nota

[1] Esse texto é parte do artigo “Neoliberalismo e a produção da subjetividade fascista”, publicado em Aurora: revista de arte, mídia e política, São Paulo, v.17, n.51, p. 63-81, janeiro-abril 2025

 

 

Tributação e Desigualdades

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Vivemos num momento marcado por grandes alterações na sociedade global, neste ambiente percebemos novos modelos econômicos que surgem cotidianamente, novas profissões surgem e modificam o mercado de trabalho e, ao mesmo tempo, profissões consolidadas perdem espaço, exigindo dos trabalhadores transformações no cotidiano, novos conhecimentos, novos valores e novos comportamentos. O desenvolvimento tecnológico vem transformando o dia a dia dos indivíduos, afinal, somos impulsionados por novas plataformas, novos produtos e novos aplicativos, que alteram a comunicação, o entretenimento, os relacionamentos humanos e as relações sociais.

Neste ambiente, marcado por grandes transformações tecnológicas, onde os modelos de convivência social estão sendo alterados e transformados, novos modelos de negócios surgem e destroem os modelos anteriores, gerando, o que o grande economista austríaco Joseph Schumpeter, chamou de destruição criadora, onde empreendedores e inovadores constroem novos modelos produtivos e destroem modelos antigos, inaugurando novas formas de acumulação e contribuindo para a criação de riquezas.

Neste momento, percebemos o surgimento de novas discussões econômicas e sociais, onde aparentes consensos passaram a ser questionados, gerando confrontos de ideias e pensamentos, motivando novos questionamentos e trazendo novas reflexões que organizam a opinião pública, exigindo novas posturas e novos instrumentos de resolução de problemas complexos. Na sociedade brasileira, desde os anos 1990 vivemos uma agenda econômica centrada na austeridade financeira, onde os governos devem ser austeros com os gastos públicos pois estes podem gerar processos inflacionários crônicos, diante disso, deveríamos cortar os repasses públicos, privatizar empresas estatais e abrir a economia nacional, um receituário “moderno” para superarmos nossos atrasos e nossos retrocessos históricos.

Adotamos as medidas “modernizantes” e colhemos uma economia sem setor industrial, dependentes de tecnologias do setor de serviços, comandadas pelos grandes conglomerados estadunidense e asiáticos, além de sermos dominados por um setor agroexportador, marcado por subsídios exagerados e isenções fiscais ilimitadas. Nossas empresas estatais, que eram ineficientes, foram vendidas na bacia das águas para grandes grupos internacionais e, atualmente, fazem parte do portfólio de grandes fundos financeiros globais que dominam a economia mundial, com isso, perdemos nossa autonomia interna, dependendo, cada vez mais, de tecnologias externas e exportamos produtos primários de baixo valor agregado.

Em tempo de transformações econômicas, políticas e sociais, precisamos rever nossa estrutura tributária, afinal somos um dos países mais desiguais da sociedade global, segundo dados do Banco suíço UBS, que analisa a dinâmica da riqueza em 56 nações, o Brasil fica no primeiro lugar, a frente da Rússia, África do Sul, Emirados Unidos, Suécia, Estados Unidos, Índia, Turquia e México e, ao mesmo tempo, nos coloca com o maior número de milionários da América Latina, mais uma estatística que nos envergonha perante a sociedade internacional.

Os motivos desta desigualdade são conhecidos por muitos teóricos, neste espaço gostaria de destacar apenas um dos mais evidentes, a tributação. Muitos dizem que pagamos muitos impostos, mas quem realmente paga imposto no Brasil? Os grandes contribuintes que movimentam a estrutura estatal são os mais pobres e a classe média, os donos do grande capital financeiro pagam muito pouco, patrocinam isenções variadas que garantem seus benefícios tributários, deixando de pagar quase 1trilhão por ano, nada pagam dividendos e usam seu poder político para manter suas benesses. Se estamos num momento de reflexões intensas, está na hora de revermos as desigualdades criadas pelo sistema tributário nacional…

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Doutor em Sociologia

Previsões fracassadas, por Maria Hermínia Tavares

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Maria Hermínia Tavares, Professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, é pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Folha de São Paulo, 09/10/2025

Não foram poucos os analistas a vaticinar que o governo Lula fracassaria, travado pelo “pior Congresso da história do país”. A aprovação na Câmara da reforma do Imposto de Renda — agora a caminho do mesmo Senado que acaba de enterrar a chamada PEC da Blindagem — é um bom momento para avaliar o que tem resultado das relações entre um Executivo em mãos de presidente de centro-esquerda governando com amplíssima coalizão e um Legislativo dominado pela encrencada família das direitas.

Inimagináveis para todos quantos previam o pior, ambas as decisões ensejam repensar as visões dominantes tanto sobre a capacidade do Executivo de implementar sua agenda quanto sobre o Congresso de maioria direitista e empoderado por emendas ao Orçamento e Fundo Partidário.

Não foi pouco, nem desimportante, o que o governo Lula logrou aprovar em pouco mais de dois anos e meio: o novo arcabouço fiscal; a reforma tributária; a taxação de fundos exclusivos; a política de valorização do salário-mínimo; a reoneração parcial dos combustíveis; o novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento); a retomada do Minha Casa, Minha Vida; a política de igualdade salarial entre homens e mulheres; o novo Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais); e o Pé de Meia, que apoia a permanência de estudantes no ensino médio. Todas medidas de inequívoco pedigree progressista.

Continuam em apreciação nas casas legislativas dois projetos de peso: a reforma administrativa e a constitucionalização do Sistema Nacional de Segurança Pública.

É certo que, sob Lula, o Executivo teve menos êxito em aprovar propostas e teve mais vetos derrubados do que em gestões anteriores. Mas nada do obtido teria sido possível se este fosse um governo sem rumo, sem projetos, sem coalizão de governo e sem capacidade de negociar cada proposta com os legisladores, cedendo aqui, perdendo acolá, como é próprio nas democracias.

Da mesma forma, nada seria factível se, como pensa a maioria dos analistas e formadores de opinião, o Congresso —robustecido pelas emendas parlamentares e pelo Fundo Partidário— não passasse de um aglomerado de partidos povoados por picaretas, clientelistas, patrimonialistas ou corruptos em geral, os quais, mesmo quando pareçam acertar, estariam fazendo apenas um jogo de aparências para esconder seus verdadeiros fins.

Essa é uma visão caricatural do Congresso. Os poucos estudos de fôlego sobre a destinação das emendas parlamentares chegam a conclusões mais matizadas sobre seus efeitos: alguns positivos, outros perversos. Por outro lado, não há evidências sólidas de que ministérios e outros órgãos de governo se pautem sempre ­—e apenas— por critérios técnicos não contaminados pelo raciocínio político.

Que a distribuição dos recursos de emendas, a disputa por cargos e o apoio a propostas do governo sejam influenciados por cálculo eleitoral é apenas o esperado nas democracias, onde a competição pelo poder depende das urnas. Aqueles objetivos não impedem —antes esclarecem— as condições para cooperação entre os Poderes. Eis o que permitiu, na contramão das previsões, que a agenda do governo prosperasse.

A epidemia do sofrimento, por Mariliz Pereira Jorge

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Mariliz Pereira Jorge, Jornalista e roteirista

Folha de São Paulo, 08/10/2025

Se você se preocupa com sua saúde mental, não está sozinho. Virou o nosso check-up diário. Dormiu mal? Ansiedade. Não rendeu? Burnout. Mas o que parece modismo é, na verdade, um diagnóstico coletivo, uma questão que segue como o principal temor no país, superando câncer e outras doenças. Em 2024, 54% dos brasileiros já apontavam o tema no topo, tendência que se mantém na nova leva de dados da Ipsos —a média global é de 45%.

O salto é vertiginoso: de 18% em 2018 para o patamar atual. O ponto de virada veio com a pandemia —não só pelo vírus, mas por uma nova realidade: o trabalho invadiu a casa, a solidão virou rotina, empreender é a palavra da década, o sofrimento é o status normal. No meu círculo de amizades, estranho é quem não enfrenta algum grau de depressão, pânico, distúrbios, transtornos. Não deixa de ser sinal de loucura que a conversa sobre medicações, crises e tratamentos seja natural.

O tabu diminuiu porque as doenças mentais são democráticas. As mulheres declaram mais angústia; os homens, ironicamente, aparecem com maior frequência nas estatísticas fatais. E, de lá para cá, nasceu uma nova paisagem emocional: gerações mais jovens chegam à vida adulta mais alertas para o próprio despencar. Talvez por isso, estejam mais dispostas a nomear o que dói.

E o cotidiano só aduba o mal-estar: trabalho que invade a madrugada, renda incerta, boletos em fila, comparação infinita no feed. A conta fecha no corpo: insônia, palpitação, cansaço que não descansa.

Enfrentar essa epidemia de sofrimento exige pactos miúdos (sono, rotina, conversa, menos tela) e pactos coletivos (proteção social, escola que acolhe, empresa que não transforma gente em meta). Para atravessar, menos heroísmo solitário e mais rede: pedir ajuda sem culpa, oferecer ajuda sem julgamento.

Para alguém que, como eu, trata uma depressão há 11 anos, é um alento ver que os transtornos mentais saíram da margem e ganharam nomes, rostos, identificação. Mas, sem política e cuidado, tudo vira uma conversa solitária, um pedido de socorro que fica sem resposta.

A autocrítica de Lula e a defesa da democracia, por Luiz Filgueiras

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O que o terá levado a reconhecer os déficits da esquerda? Uma súbita visão sobre as transmutações do PT? Os rumos que imprimiu a seu governo, há três meses? Examinar a fala pode ser essencial para enfrentar a ultradireita – em 2026 e depois.

Luiz Filgueiras – OUTRAS PALAVRAS – 02/10/2025

No último dia 24/09 o presidente Lula participou na sede da ONU, em Nova York, em uma agenda paralela à Assembleia Geral das Nações Unidas, da segunda edição do evento “Em Defesa da Democracia e Contra o Extremismo”, fórum que busca uma articulação internacional em defesa das instituições democráticas e contra a desinformação, o discurso de ódio e a desigualdade social. Com a participação de 30 países, Brasil, Chile, Espanha, Colômbia e Uruguai estiveram na mesa principal. Nenhum dos organizadores cogitou chamar os EUA, como em 2024, e tampouco a atual administração de Donald Trump demonstrou interesse.

Nessa reunião, Lula fez uma breve fala que me pareceu muito importante, apesar de não ter tido repercussão maior na mídia, nem tampouco nas esquerdas. Ele fez uma autocrítica do que chamou de erros da esquerda, que propiciaram e facilitaram a ascensão da extrema-direita em todo o mundo. E mais especificamente, de forma pouco clara, fez uma autocrítica, não declarada enquanto tal, dos seus governos e dos governos de esquerda mundo afora.

Após elogiar a democracia e o multilateralismo, recuperou um aspecto de sua trajetória política, explicando o que o levou da antipolítica à política, com a criação do Partido dos Trabalhadores. Contou ter constatado, quando de uma visita ao Congresso Nacional, a ausência de trabalhadores nessa instituição democrática. Além disso, recuperou os resultados das eleições de 1989 a 2022, evidenciando o crescimento eleitoral do PT e a possibilidade concreta de chegar ao governo.

Mas é a partir daí que a sua fala se torna realmente importante, quando relembra a criação do Fórum de São Paulo, que reuniu as esquerdas latino-americanas e no qual chamou a atenção para a importância fundamental da organização dos trabalhadores. Esse foi “o gancho” para questionar “o que fazer para defender a democracia, em crise em todo o mundo, e a sua difusão nas massas”; e indagar “onde os democratas e a esquerda erraram e por que a extrema direita cresceu”. Segundo ele, antes de procurar as virtudes do extremismo de direita é preciso identificar os erros que a democracia cometeu.

A sua resposta começa enfatizando que o Partido dos Trabalhadores era organizado (no passado mesmo) em núcleos por local de trabalho, moradia e estudo. Não analisa o porquê disso ter sido abandonado pelo partido, posteriormente, mas pergunta: “o que eu fiz na Presidência da República; o que eu fiz para fortalecer a organização popular e social?”. A sua resposta genérica e sintética, estendida para a esquerda latino-americana: “abandonamos a organização dos trabalhadores e do povo”.

Avançando em sua autocrítica, Lula pergunta: “o que fazemos hoje, como estamos exercendo a democracia em nossos países”? E responde explicitamente que “a gente ganha as eleições com discurso de esquerda e quando começa a governar atende muito mais os interesses de nossos inimigos do que dos nossos amigos”. A preocupação maior é com “a cobrança do mercado e a necessidade de contentar o mercado e os adversários”, além de “dar resposta ao que a imprensa publica sobre nós”.

E surpreendentemente, destaca que “os nossos eleitores, que foram para ruas e apanharam, são considerados por nós como sectários e radicais”; “a gente não dá atenção a eles e dá atenção àqueles que falam mal da gente”. A sua conclusão é clara e direta: o fracasso da democracia se deve ao que “nós deixamos de fazer, aos erros que a democracia cometeu na sua relação com a sociedade civil”. Segundo Lula, reconhecer isso é crucial para não superestimarmos as virtudes do extremismo de direita e termos condições de derrotá-lo.

Nesse curto discurso, ao fazer uma espécie de mea-culpa, Lula resume uma questão essencial para entendermos a ascensão do neofascismo em todo mundo: o “transformismo” dos Partidos Socialistas, Social-democratas e Trabalhistas, iniciado a partir da década de 1980, após a ascensão e hegemonia do neoliberalismo -– primeiro nos países imperialistas, depois nos países periféricos, de capitalismo dependente. A adesão ativa ao ideário do adversário (a direita neoliberal), ou a sua aceitação passiva, criaram um vácuo político na representação dos trabalhadores e do povo. A incapacidade (por várias razões) das correntes mais à esquerda de o preencherem abriu as portas para a ascensão da extrema direita neofascista.

As consequências das reformas e políticas neoliberais, efetivadas em todo mundo durante mais de 30 anos, foram nefastas para a maioria da população: desemprego, precarização do trabalho, pobreza, concentração de renda, instabilidade, insegurança, desânimo e desesperança, crises reiteradas etc. A alternância de governos neoliberais e social-democratas, executando as mesmas políticas e reformas regressivas — e portanto, sem nenhuma diferença substantiva — concomitante ao abandono da crítica ao capitalismo e do projeto socialista pela esquerda, permitiram à extrema direita preencher o vácuo político e se apresentar como “antissistema”: contra a democracia liberal (e suas instituições) e a “globalização”, ambas culpadas por todos os males e o mal-estar generalizado.

E a resposta oferecida pelo neofascismo não é, evidentemente, a superação do “sistema capitalista”. Muito pelo contrário, ele faz a defesa explícita da exploração e dos valores capitalistas, no limite assumindo a ideologia e perspectiva do chamado anarcocapitalismo. Os seus objetivos mais gerais podem ser resumidos a:

  1. No âmbito dos distintos Estados nacionais, corromper a democracia “por dentro” e, num segundo momento, instalar um regime autoritário de natureza fascista. Para isso, sua ação política, em especial através da chamada “guerra cultural” que instila e difunde pânico político e moral entre as massas, elege diversos inimigos, reais ou imaginários: comunistas, imigrantes, terroristas, feministas (“ideologia de gênero”), comunidade LGBT, petistas, movimento negro, pedófilos, corruptos, ateus, pobres etc.
  2. No plano internacional, o combate à “globalização” expressa a nova etapa do imperialismo dos EUA e sua crise de hegemonia, convergindo e apoiando o seu ataque ao multilateralismo e às instituições internacionais – criadas e comandadas, a partir do pós-II Guerra Mundial, por esse mesmo imperialismo. Essa convergência, no interior dos países dependentes, dá origem, como no caso brasileiro, à defesa bizarra dos ataques do imperialismo à soberania do Estado nacional.

Há razões objetivas que explicam, parcialmente, o processo de transformismo e o abandono da utopia socialista. São, em especial, a derrota do “socialismo real” no Leste Europeu e a reestruturação produtiva capitalista, alicerçada nas novas tecnologias de informação e comunicação (TICs) e nas novas formas de organização do processo de trabalho, que reduziram a massa de trabalhadores assalariados industriais e fragmentaram o conjunto da classe trabalhadora, fragilizando os sindicatos e suas demais representações. Mas não se pode constatar e compreender esses fenômenos a partir de uma visão determinista/economicista. A razão fundamental do transformismo deve ser buscada na hegemonia da ideologia neoliberal, que adentrou todas as esferas e instituições das sociedades, submetendo “corações e mentes” e, em particular, capturando a vanguarda e as direções (lideranças) de partidos de esquerda e demais representações dos trabalhadores. Estas passaram a considerar, na prática, as reformas e políticas do neoliberalismo como inevitáveis, o único caminho possível pós-derrota do “socialismo real”.

No Brasil, os anos 1990 marcam a vitória do neoliberalismo (fomos o último país da América Latina a assumi-lo) e, ao mesmo tempo, o início do processo de transformismo do Partido dos Trabalhadores. Ele involuiu de um partido socialista atuando na ordem mas contra ela para um partido da ordem. Assumiu, paulatinamente, todas as características dos partidos tradicionais, abandonando os núcleos como forma de organização (substituídos pelos enclaves corporativos de comitês de parlamentares), fazendo da atuação institucional (em especial as eleições) o centro de suas preocupações e da vida partidária, estreitando laços com o capital para o financiamento das campanhas eleitorais, descartando os seus objetivos estratégicos (de mudanças estruturais) e abandonando a crítica do capitalismo (mesmo que apenas no discurso). Esta foi substituída pela ideologia desenvolvimentista (na prática um arremedo do antigo nacional-desenvolvimentismo dos anos 1930-1950 e, posteriormente, o desenvolvimentismo associado ao imperialismo). O resultado disso tudo foi a burocratização das instâncias partidárias, a mudança de composição de seus quadros, a perda de capacidade de mobilização popular e, por fim, o surgimento do “lulismo” – tão bem identificado e explicado por André Singer como uma espécie de bonapartismo que substituiu a oposição capitalversustrabalho pela oposição ricos versus pobres. Estes últimos com tendências conservadoras e sem capacidade de representação própria, a ponto de projetarem no Bonaparte a defesa de seus interesses.

Penso que essa fala de Lula foi influenciada pela ameaça do retorno ao governo da extrema direita (a eleição do próximo ano) e, principalmente, pela mudança da correlação de forças iniciada há três meses. Foi então que o governo trouxe para a sociedade – tirando a exclusividade do Parlamento –, o debate sobre a questão tributária (isenção do Imposto de Renda para os que ganham até R$ 5 mil e aumento da taxação dos mais ricos e das grandes fortunas) e a questão da jornada de trabalho (a adesão e apoio à campanha pelo fim da escala 6X1) – com forte utilização das redes sociais. Posteriormente, com a agressão de Trump ao Brasil, em especial contra o Supremo Tribunal Federal (exigindo a suspensão do processo contra Bolsonaro, como condição para retirar a tarifa de 50% sobre os produtos brasileiros importados pelos EUA), a conjuntura tornou-se ainda mais favorável ao governo Lula e às esquerdas. Possibilitou-lhes assumir a linha de frente da defesa da democracia e da soberania nacional, empurrando a extrema-direita para a defensiva.

Mais recentemente, as grandes mobilizações ocorridas em todo país, contra a PEC da bandidagem aprovada pela Câmara de Deputados e a proposta de anistia aos golpistas condenados pelo STF, expressaram de forma cabal a mudança da conjuntura. Ela alcançou também o parlamento, com a Comissão de Constituição de Justiça do Senado arquivando por unanimidade essa PEC e, ao mesmo tempo, evidenciando também uma correlação de forças desfavorável à aprovação de qualquer tipo de anistia aos golpistas. Fatores que, por sua vez, reforçam a necessidade de as forças políticas de esquerda e democráticas continuarem vigilantes e mobilizadas, para que se possa impor mais uma derrota à extrema direita.

E culminando todo esse processo de mudança da correção de forças, a Câmara de Deputados aprovou em 1º/10, por unanimidade, a isenção do Imposto de Renda para os que ganham até 5 mil reais por mês, além de uma isenção parcial para os que ganham entre 5 e 7,35 mil reais (16 milhões de brasileiros). Como compensação pela redução da receita do governo, haverá aumento da taxação dos mais ricos, que ganham a partir de 600 mil reais por ano. Com isso, além de se dar início a uma maior justiça tributária, o famigerado “ajuste fiscal” não será feito – pela primeira vez há muitos anos – por meio da redução dos gastos sociais e nem onerando os segmentos sociais de menor renda.

Em suma, o governo saiu das cordas e passou à ofensiva. O discurso de Lula não alterará, no fundamental, o caráter do PT no curto prazo, nem resolverá as contradições do terceiro governo do presidente. Mas o importante é que ele rema a favor da conjuntura mais favorável e sinaliza que há uma compreensão, que tende a disseminar-se, de que as esquerdas e o governo têm que voltar a defender as suas pautas/bandeiras estruturais e a organizar e mobilizar suas bases sociais, como condição de sobrevivência. A renúncia à crítica do capitalismo e o enclausuramento da disputa política exclusivamente no Parlamento e no Judiciário não são caminhos para derrotar o neofascismo neoliberal (ou o neoliberalismo neofascista). Foi preciso “o nível da água chegar ao pescoço” para essa obviedade ficar evidente.

Por fim, está cada vez mais claro que a prioridade do combate à extrema direita não pode se descolar do combate ao neoliberalismo, pois estão ambos cada vez mais unidos contra a democracia, a destruição dos direitos sociais-trabalhistas e a subordinação ao imperialismo. A natureza autoritária do neoliberalismo, já anunciada em 1944 por Hayek em seu livro O caminho da servidão (ao defender a prioridade da “liberdade” do capital em relação à democracia) e no seu apoio, na década de 1970, ao regime fascista e à ditadura de Pinochet no Chile, escancarou-se de vez na nova fase do capitalismo e do imperialismo: um regime de acumulação mundial sob a dominância financeira. A democracia tornou-se, definitivamente, um estorvo para o capitalismo financeirizado. A sua defesa e permanência, com um caráter cada vez mais favorável às classes trabalhadoras e à maioria da população, passou a ser responsabilidade, essencialmente, das forças de esquerda e democráticas.

O agro não é pop: é blindado para pagar menos imposto, por Adriana Fernandes

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Adriana Fernandes, Jornalista em Brasília, onde acompanha os principais acontecimentos econômicos e políticos há mais de 25 anos.

Folha de São Paulo, 04/10/2025

O agro não é pop. É blindado à custa do contribuinte brasileiro. A blindagem só tem aumentado graças à poderosa bancada do agronegócio no Congresso, que se agiganta num círculo vicioso em prejuízo a outros setores da economia. Quanto mais forte fica, mais consegue benesses e menos paga impostos.

O último bote ocorreu na votação na Câmara do projeto que isenta totalmente do Imposto de Renda quem ganha até R$ 5.000 mensais e cria um imposto mínimo de 10% para as altas rendas.

O texto aprovado garante que os grandes produtores rurais, que hoje já têm a renda isenta do pagamento do IR da pessoa física, também não serão alcançados pelo imposto dos milionários. Uma emenda ao projeto de lei excluiu a parcela isenta relativa à atividade rural do valor que será tributado. O privilégio foi garantido pelo relator do projeto, o alagoano e pecuarista Arthur Lima (PP).

Nunca é demais lembrar que produtores rurais já têm R$ 110 bilhões da renda isenta por ano. Metade desse dinheiro fica nas mãos de produtores que ganham mais de R$ 1 milhão por ano. Ou seja, não é pequeno produtor, pobrezinho, mas gente de alta renda mesmo.

O relator da MP do IOF (1303), o petista Carlos Zarattini (SP), também vai dar uma ajuda extra para manter a isenção do IRPF para as LCAs (Letras do Crédito do Agronegócio), títulos de renda fixa que se transformaram numa farra fiscal com o efeito colateral de distorcer as condições do mercado de outras aplicações.

Com esses novos privilégios, a blindagem está perfeita: juros subsidiados; seguro contra quebra de safra; subsídios tributários gigantescos; isenção do IBS e CBS na reforma tributária; imposto mínimo zero, que é usado para comprar LCA com zero de tributação. Se ainda assim o produtor quebrar, a indústria da recuperação judicial também está aí para ajudar.

Em tempos de Plano Brasil Soberano, temos a blindagem soberana do agro. Quando o Estado desonera um setor, outros acabam pagando mais. O que os demais setores da economia estão esperando para reagir?

É uma farsa o slogan de que o agro é pop.

 

Entrevista – Zygmunt Bauman

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Dennis de Oliveira – Revista Cult – 2009

Zygmunt Bauman é um dos pensadores contemporâneos que mais têm produzido obras que refletem os tempos contemporâneos. Nascido na Polônia em 1925, o sociólogo tem um histórico de vida que passa pela ocupação nazista durante a Segunda Guerra Mundial, pela ativa militância em prol da construção do socialismo no seu país sob a direta influência da extinta União Soviética e pela crise e desmoronamento do regime socialista. Atualmente, vive na Inglaterra, em tempo de grande mobilidade de populações na Europa. Professor emérito de sociologia da Universidade de Leeds, Bauman propõe o conceito de “modernidade líquida” para definir o presente, em vez do já batido termo “pós-modernidade”, que, segundo ele, virou mais um qualificativo ideológico.

Bauman define modernidade líquida como um momento em que a sociabilidade humana experimenta uma transformação que pode ser sintetizada nos seguintes processos: a metamorfose do cidadão, sujeito de direitos, em indivíduo em busca de afirmação no espaço social; a passagem de estruturas de solidariedade coletiva para as de disputa e competição; o enfraquecimento dos sistemas de proteção estatal às intempéries da vida, gerando um permanente ambiente de incerteza; a colocação da responsabilidade por eventuais fracassos no plano individual; o fim da perspectiva do planejamento a longo prazo; e o divórcio e a iminente apartação total entre poder e política. A seguir, a íntegra da entrevista concedida pelo sociólogo à revista CULT.

CULT – Na obra Tempos líquidos, o senhor afirma que o poder está fora da esfera da política e há uma decadência da atividade do planejamento a longo prazo. Entendo isso como produto da crise das grandes narrativas, particularmente após a queda dos regimes do Leste Europeu. Diante disso, é possível pensar ainda em um resgate da utopia?

Zygmunt Bauman – Para que a utopia nasça, é preciso duas condições. A primeira é a forte sensação (ainda que difusa e inarticulada) de que o mundo não está funcionando adequadamente e deve ter seus fundamentos revistos para que se reajuste. A segunda condição é a existência de uma confiança no potencial humano à altura da tarefa de reformar o mundo, a crença de que “nós, seres humanos, podemos fazê-lo”, crença esta articulada com a racionalidade capaz de perceber o que está errado com o mundo, saber o que precisa ser modificado, quais são os pontos problemáticos, e ter força e coragem para extirpá-los. Em suma, potencializar a força do mundo para o atendimento das necessidades humanas existentes ou que possam vir a existir.

CULT – Por que se fala tanto hoje de “fim das utopias”?

Bauman – Na era pré-moderna, a metáfora que simboliza a presença humana é a do caçador. A principal tarefa do caçador é defender os terrenos de sua ação de toda e qualquer interferência humana, a fim de defender e preservar, por assim dizer, o “equilíbrio natural”. A ação do caçador repousa sobre a crença de que as coisas estão no seu melhor estágio quando não estão com reparos; de que o mundo é um sistema divino em que cada criatura tem seu lugar legítimo e funcional; e de que mesmo os seres humanos têm habilidades mentais demasiado limitadas para compreender a sabedoria e harmonia da concepção de Deus.

Já no mundo moderno, a metáfora da humanidade é a do jardineiro. O jardineiro não assume que não haveria ordem no mundo, mas que ela depende da constante atenção e esforço de cada um. Os jardineiros sabem bem que tipos de plantas devem e não devem crescer e que tudo está sob seus cuidados. Ele trabalha primeiramente com um arranjo feito em sua cabeça e depois o realiza. Ele força a sua concepção prévia, o seu enredo, incentivando o crescimento de certos tipos de plantas e destruindo aquelas que não são desejáveis, as ervas “daninhas”. É do jardineiro que tendem a sair os mais fervorosos produtores de utopias. Se ouvimos discursos que pregam o fim das utopias, é porque o jardineiro está sendo trocado, novamente, pela ideia do caçador.

CULT – O que isso significa para a humanidade de hoje?

Bauman – Ao contrário do momento em que um dos tipos passou a prevalecer, o caçador não podia cuidar do global equilíbrio das coisas, natural ou artificial. A única tarefa do caçador é perseguir outros caçadores, matar o suficiente para encher seu reservatório. A maioria dos caçadores não considera que seja sua responsabilidade garantir a oferta na floresta para outros, que haja reposição do que foi tirado. Se as madeiras de uma floresta forem relativamente esvaziadas pela sua ação, ele acha que pode se deslocar para outra floresta e reiniciar sua atividade. Pode ocorrer aos caçadores que um dia, em um futuro distante e indefinido, o planeta poderia esgotar suas reservas, mas isso não é a sua preocupação imediata, isso não é uma perspectiva sobre a qual um único caçador, ou uma “associação de caçadores”, se sentiria obrigado a refletir, muito menos a fazer qualquer coisa.

Estamos agora, todos os caçadores, ou ditos caçadores, obrigados a agir como caçadores, sob pena de despejo da caça, se não de sermos relegados das fileiras do jogo. Não é de admirar, portanto, que, sempre que estamos a olhar a nosso redor, vemos a maioria dos outros caçadores quase sempre tão solitária quanto nós. Isso é o que chamamos de “individualização”. E precisamos sempre tentar a difícil tarefa de detectar um jardineiro que contempla a harmonia preconcebida para além da barreira do seu jardim privado. Nós certamente não encontraremos muitos encarregados da caça com interesse nisso, e sim entretidos com suas ambições. Esse é o principal motivo para as pessoas com “consciência ecológica” servirem como alerta para todos nós. Esta cada vez mais notória ausência do jardineiro é o que se chama de “desregulamentação”.

CULT – Diante disso, a esquerda não tem possibilidades de ter força social?

Bauman – É óbvio que, em um mundo povoado principalmente por caçadores, não há espaço para a esquerda utópica. Muitas pessoas não tratam seriamente propostas utópicas. Mesmo que saibamos como fazer o mundo melhor, o grande enigma é se há recursos e força suficientes para poder fazê-lo. Essas forças poderiam ser exercidas pelas autoridades do engenhoso sistema do Estado-nação, mas, como observou Jacques Attali em La voie humaine, “as nações perderam influência sobre o curso das coisas e delegaram às forças da globalização todos os meios de orientação do mundo, do destino e da defesa contra todas as variedades do medo”. E as forças da globalização são tudo, menos instintos ou estratégias de “jardineiros”, favorecem a caça e os caçadores da vez. O Thesaurus [dicionário da língua inglesa, de 1892] de Roget, obra aclamada por seu fiel registro das sucessivas mudanças nos usos verbais, tem todo o direito de listar o conceito de utópico como “fantasia”, “fantástico”, “fictício”, “impraticável”, “irrealista”, “pouco razoável” ou “irracional”. Testemunhando assim, talvez, o fim da utopia.

Se digitarmos a palavra utopia no portal de buscas Google, encontraremos cerca de 4 milhões e 400 mil sites, um número impressionante para algo que estaria “morto”. Vamos, porém, a uma análise mais atenta desses sites. O primeiro da lista e, indiscutivelmente, o mais impressionante é o que informa aos navegantes que “Utopia é um dos maiores jogos livres interativos online do mundo, com mais de 80 mil jogadores”. Eu não fiz uma pesquisa em todos os 4 milhões de sites listados, mas a impressão que tive após uma leitura de uma amostra aleatória é que o termo utopia aparece em marcas de empresas de cosméticos, de design de interiores, de lazer para feriados, bem como de decoração de casas. Todas as empresas fornecem serviços para pessoas que procuram satisfações individuais e escapes individuais para desconfortos sofridos individualmente.

CULT – Nesta sociedade líquido-moderna, como fica a ideia de progresso e de fluxos de tempo?

Bauman – A ideia de progresso foi transferida da ideia de melhoria partilhada para a de sobrevivência do indivíduo. O progresso é pensado não mais a partir do contexto de um desejo de corrida para a frente, mas em conexão com o esforço desesperado para se manter na corrida. Você ouve atentamente as informações de que, neste ano, “o Brasil é o único local com sol no inverno”, neste inverno, principalmente se você quiser evitar ser comparado às pessoas que tiveram a mesma ideia que você e foram para lá no inverno passado. Ou você lê que deve jogar fora os ponchos que estiveram muito em voga no ano passado e que agora, se você os vestir, parecerá um camelo. Ou você aprende que usar coletes e camisetas deve “causar” na temporada, pois simplesmente ninguém os usa agora.

O truque é manter o ritmo com as ondas. Se não quiser afundar, mantenha-se surfando – e isso significa mudar o guarda-roupa, o mobiliário, o papel de parede, o olhar, os hábitos, em suma, você mesmo, quantas vezes puder. Eu não precisaria acrescentar, uma vez que isso deva ser óbvio, que essa ênfase em eliminar as coisas – abandonando-as, livrando-se delas –, mais que sua apropriação, ajusta-se bem à lógica de uma economia orientada para o consumidor. Ter pessoas que se fixem em roupas, computadores, móveis ou cosméticos de ontem seria desastroso para a economia, cuja principal preocupação, e cuja condição sine qua non de sobrevivência, é uma rápida aceleração de produtos comprados e vendidos, em que a rápida eliminação dos resíduos se tornou a vanguarda da indústria.

CULT – Neste mundo de “caçadores”, e não de jardineiros, não há então uma utopia possível? O “aqui e agora” se impõe como a única referência da existência humana?

Bauman – O problema é que, uma vez tentada, a caça se transforma em compulsão, dependência e obsessão. Atingir uma lebre é um anticlímax que só se torna atraente com a perspectiva de uma nova caça, com a esperança de que essa caça será a mais deliciosa (ou a única deliciosa?). Apanhar a lebre prenuncia o fim de todas as expectativas, salvo se outra caçada for planejada e imediatamente empreendida. Será que isso é o fim da utopia? Em um aspecto, é – na medida em que as primeiras utopias modernas previam um ponto em que o tempo chegaria a uma paragem, na verdade, o fim do tempo como história. Não existe tal ponto na vida de um caçador, um momento em que se poderia dizer que o trabalho foi feito, a missão, cumprida, e, assim, poder-se-ia olhar para a frente, para o descanso e gozo do saque, a partir de agora até a eternidade.

Em uma sociedade de caçadores, uma perspectiva de fim da caça não é tentadora, mas assustadora – uma vez que significa uma derrota pessoal. Os chifres anunciam o início de uma nova aventura, a doce memória e a ressurreição das aventuras do passado; não haverá fim à emoção universal… Só eu que fiquei de lado, excluído, impedido de usufruir as alegrias dos outros, apenas um espectador passivo do outro lado do muro, apenas vendo a outra parte, mas proibido de participar.

Se, em uma vida contínua e continuada, a caça é uma utopia, ela é – ao contrário das outras – uma utopia sem nenhum efeito. A utopia torna-se um fato bizarro se for medida por normas ortodoxas; as utopias clássicas prometiam o fim da labuta, mas a utopia dos caçadores encapsula o sonho de uma labuta que nunca termina. Ao contrário das utopias de outrora, a utopia dos caçadores não oferece sentido nenhum à vida, verdadeira ou fraudulenta. Ela apenas ajuda a perseguir o significado da vida longe do espírito da vida. Tendo redesenhado o curso da vida em uma interminável série de perseguições autocentradas, cada episódio vivido como uma abertura para o próximo, ela (a utopia) não oferece oportunidade de reflexão sobre a direção e o sentido da sua totalidade. Quando vem finalmente uma ocasião, um momento de queda ou de proibição da vida de caça, geralmente é tarde demais para a reflexão sobre a maneira de suportar a vida, da própria vida como a vida dos outros: é demasiado tarde para se opor à forma atual da vida.

CULT – Mas os sonhos persistem, não? O ser humano não pode viver sem acreditar em alguma coisa, ainda que seja algo fora do seu domínio imediato. E o desejo por um outro mundo possível persiste e mobiliza vários setores da sociedade, particularmente com a percepção cada vez mais forte das dificuldades de resolver os problemas da humanidade.

Bauman – Em um notável artigo sobre a persistência da utopia intitulado “Persistent utopia” (2008), Miguel Abensour cita William Morris (A dream of John Ball, Elec Book, 2001), que escreve em 1886 que os homens lutam e perdem a batalha, e as coisas que eles lutaram para acontecer, apesar da derrota, transformam-se para não ter o mesmo significado que antes, e outros homens têm de lutar por aquilo que agora se entende por outro nome. Morris escreveu sobre os seres humanos como tais e sugere que lutam por uma “coisa que não é”; é a forma como as pessoas são, é o caráter do ser humano. O “não” (nicht) como Ernst Bloch salientou “é a falta de algo e também o fugir do que falta”; assim, é o que falta para conduzir. Se estivermos de acordo com Morris, iríamos sempre ter utopias a ser elaboradas, já que expressões sistematizadas como essa fazem parte do aspecto crucial da natureza humana. Utopias foram todas as tentativas de enunciar e descrever em detalhes a coisa para a qual a próxima luta seria dirigida. Notamos, contudo, que todas as utopias escritas por Morris, antecessores e contemporâneos foram esquemas de um mundo em que as batalhas de coisas que não são não estão longe dos cartões. Essas batalhas não eram exigidas. Então, se estivermos de acordo com Morris, a natureza das coisas para as quais as pessoas lutavam era o fim da guerra, o fim das necessidades e dos deveres, e o desejo e a conveniência de ir à luta. E a grande coisa que manteve proveniente a ideia de lutar não pensando na batalha perdida, mas em seu significado e em incitar outras pessoas a lutar novamente pela mesma coisa com outro nome, foi o Estado, que não usa as mãos para lutar.

Temos as hostilidades que reaparecem após o armistício, que ficam muito aquém do êxtase de quem lutou e esperava pela paz. A inquietação do compulsivo, obsessivo, viciado caçador de utopias foi impelida e sustentada por um desejo de descanso. As pessoas corriam para a batalha que sempre persegue o sonho. Outra característica das utopias de William Morris, e por quase um século depois, foi o seu radicalismo.

CULT – O que vem a ser “radical”?

Bauman – Atos, empresas, meios e medidas podem ser chamados de “radicais” quando eles chegam até suas “raízes”, às de um problema, um desafio, uma tarefa. Note, contudo, que o substantivo latino radix, do qual se origina o adjetivo “radical”, diz respeito não só às raízes, mas também a fundações e origens. O que essas três noções – raiz, fundações e origens – têm em comum? Dois atributos.

Primeiro: em circunstâncias normais, o material de todos os três são referentes escondidos da vista e impossíveis de ser analisados, muito menos tocados diretamente. Qualquer coisa que tenha crescido em um deles, como troncos ou caules, no caso das raízes, a edificação, no caso das fundações, ou as consequências, no caso das origens, foi sobreposta sobre sua parte inferior, cobriu-a e depois emergiu escondida da visão. Por isso, tem que ser, primeiro, perfurada, as partes lançadas fora do caminho ou tomadas à parte, se se deseja um dos objetos segmentados quando pensar ou agir radicalmente. Segundo: no decurso do trilhar para esses objetivos, o crescimento desse material deve ser desconstruído, ou materialmente empurrado para fora do caminho, ou desmantelado. A probabilidade de que, a partir do trabalho de desconstrução/desmontagem das metas, emerjam todas as deficiências é alta. Tomar uma atitude radical sinaliza para a intenção da destruição – ou melhor, de assumir o risco da destruição, mais frequentemente o significado de uma destruição criativa –, destruição no sentido de um lugar para limpeza, ou para lavrar o solo, preparando-o para acomodar outros tipos de raízes. A política é radical se ela aceita todas as condições e se orienta por todas essas intenções e objetivos.

CULT – Uma das características dos tempos líquido-modernos é a decadência do planejamento a longo prazo. É possível um pensamento crítico e uma utopia neste contexto de queda da perspectiva do planejamento?

Bauman – Russel Jacoby propõe distinguir duas tradições, aparentemente coincidentes, mas não necessariamente ligadas, tradições do moderno pensamento utópico: o modelo (o projeto utopista de traçar o futuro em polegadas e minutos) e a tradição iconoclasta (os utopistas iconoclastas sonharam com uma sociedade superior, mas recusaram-lhe dar medidas precisas). Proponho que se mantenha o nome, como sugere Jacoby para o segundo, como tradição da utopia do “não projeto”. A característica definidora dessa tradição do segundo é a intenção de desconstruir, de desmistificar e, em última instância, de desacreditar os valores da vida dominante e suas estratégias de tempo, através da demonstração de que, contrariamente às crenças atuais, em vez de assegurarem uma sociedade ou vida superior, constituem um obstáculo no caminho para ambas.

Em outras palavras, o que eu proponho para descompactar o conceito de utopia iconoclasta, em primeiro lugar, é sobretudo a afirmação de uma possibilidade de uma outra realidade social – possibilidade ainda aterrada na revisão crítica dos meios e formas de apresentar a vida. Sendo este o principal interesse e a preocupação do utopista iconoclasta, não é de admirar que a alternativa ao atual permaneça incompleta; a principal causa do utopismo iconoclasta é a possibilidade de uma alternativa à realidade social, apesar de o seu desenho estar pouco desenvolvido. As utopias iconoclastas, presumo, são aberta ou tacitamente o caminho para uma sociedade superior, não se conduzem por meio de desenhos ou conselhos, mas sim por meio da reflexão crítica sobre práticas e crenças existentes de forma a – para recordar uma ideia de Bloch – explicitar que “uma coisa está faltando” e assim “inspirar a unidade para a sua criação e recuperação”.