Sofrimento individual tomou lugar do conflito de classe, diz sociólogo francês

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Folha de São Paulo, 09/11/2025

Ricardo Henriques, Economista, superintendente executivo do Instituto Unibanco, professor associado da Fundação Dom Cabral e presidente do Conselho da Anistia Internacional Brasil

[RESUMO] Em diálogo com o economista Ricardo Henriques, o sociólogo francês François Dubet analisa o papel do ressentimento e das múltiplas desigualdades que sustentam uma nova economia moral, o que levou à ascensão da extrema direita em diversos países, tema de seu livro “O Tempo das Paixões Tristes”. Embora hoje sobrem motivos para pessimismo, ainda há espaço para esperança em redes de solidariedade locais.

Nascido na sociedade industrial, mas atento às transformações do presente, o sociólogo francês François Dubet tem se dedicado a entender como as desigualdades sociais fragmentam identidades coletivas e transformam injustiças em sofrimentos individuais.

Essa nova economia moral enfraquece as lutas comuns e alimenta o populismo e o iliberalismo. No livro “O tempo das Paixões Tristes” (2019, editora Vestígio), Dubet analisa de que maneiras esse cenário impulsionou o ressentimento e a ascensão da extrema direita.

Seis anos depois, diante da escalada de violência e negacionismo nos EUA, ele reafirma a importância da convivência, das experiências locais e da construção de um novo pacto civilizatório. Nesta entrevista para a Folha, Dubet alerta: “Eu detesto as ideias radicais, elas têm consequências radicais e não correspondem à experiência das pessoas”.

Ao revisitar sua formação, Dubet reconhece que aprendeu sociologia em um tempo marcado pelos conflitos de classe. É nesse contexto que evoca a coruja de Minerva, símbolo da sabedoria que só alça voo ao entardecer, quando os acontecimentos já podem ser compreendidos com alguma distância.

Em “O Tempo das Paixões Tristes”, a expressão “paixão triste” é inspirada em Spinoza, e você descreve os climas emocionais das sociedades contemporâneas. Quais as características de nossa época você mais valoriza neste livro e como pensa as paixões tristes da sociedade contemporânea?

Preciso começar com uma confissão: nasci na sociedade industrial. Era leitor de Marx, Durkheim e Weber. Escrevi alguns livros com Alain Touraine. Vivi em uma sociedade na qual os problemas eram percebidos em termos de conflitos de classe, que organizavam a esquerda e a direita com representações do futuro.

Na França, pensamos nessas categorias por muito tempo, até os anos 1980. Aliás, como sempre, é quando a esquerda chega ao poder que seu mundo começa a desmoronar. É a coruja de Minerva. Aprendi sociologia assim e por muito tempo pensei nessas categorias.

O que aconteceu? As desigualdades de classe permaneceram, claro. Mas não são mais, do meu ponto de vista, estruturadas em volta das classes sociais. Ou seja, as pessoas não dizem mais: “nós, os trabalhadores”, “eles, os patrões”. Elas dizem “eu”. “Eu” sou desigual em função do meu diploma, das minhas origens, do meu gênero, da minha sexualidade, do lugar onde moro.

Há uma espécie de individualização das desigualdades. O que, aliás, faz com que a consciência de classe não resista mais ao desprezo de classe.

Então esta é a primeira transformação: o capitalismo desigual, brutal, que de certa forma destrói as classes sociais —não a classe dirigente, obviamente—, atomizou as classes sociais.

A segunda evolução é que, até os anos 1980, quando você falava de desigualdades aos atores sociais, eles respondiam e pensavam imediatamente nas grandes desigualdades, isto é, as desigualdades no trabalho, na renda, nas condições de vida.

A justiça social é a redução das desigualdades de condições. É fazer com que os trabalhadores sejam menos pobres, e os ricos, menos ricos.

Atualmente, se eu perguntar o que é justiça social na França, e mais ainda nos Estados Unidos, as pessoas dizem que é a luta contra as discriminações: se você é homem, mulher, homossexual, branco, negro, uma pessoa da cidade ou do campo etc. A desigualdade de chances de acesso aos recursos é percebida como a desigualdade principal.

E isso tem consequências. Quando você pensa em termos de desigualdades sociais, pode pronunciar a famosa frase “Proletários de todos os países, uni-vos”, temos todos os interesses em comum. Mas ao pensar em termos de discriminação, todos temos interesses contraditórios.

Temos uma cena de conflitos que se reunia em torno de uma consciência coletiva e que hoje explodiu, gerando ressentimentos. O conflito social à la Marx ou Weber é substituído pela ideia de que somos vítimas dos outros.

Há esse efeito sobre a subjetividade dos indivíduos de regimes de desigualdades múltiplas, como você chama. Se essa especificidade do mundo contemporâneo foi muito bem para o velho mundo civilizado, como isso repercute na construção da fraternidade e da solidariedade? Você tem uma reflexão sobre a gramática política da ação coletiva. Como pensa essa construção dos vínculos de solidariedade, de ação coletiva?

É muito complexo. Se eu raciocinar no quadro europeu, a fraternidade era a nação, com seu aspecto positivo (“eu gosto das pessoas que são como eu, que falam a mesma língua e que têm a mesma cultura, a mesma história’) e negativo, que é o nacionalismo (“eu detesto aqueles que não são como eu”).

Acreditava-se que a França, por exemplo, era um Estado nacional, uma burguesia nacional e uma cultura nacional. Não era verdade. Hoje todo mundo sabe muito bem que a burguesia francesa não é nacional. Que o Estado é extremamente fraco. E que a cultura está invadida pela cultura de massa, pelo mercado e pela guerra das identidades.

Nos anos 1970 e 1980, na França, diziam que um imigrante italiano ou português seria um futuro trabalhador francês. Hoje, os filhos dos imigrantes votam na extrema direita porque detestam os novos imigrantes que vêm de ainda mais longe.

Considero como um dos grandes problemas o fato de questões como fraternidade e identidade terem sido abandonados por intelectuais de esquerda para serem apropriados pela direita e extrema direita.

Quando há sucesso dos partidos de extrema direita na França, a esquerda diz que são racistas e fascistas. Evidentemente, são racistas e fascistas. Mas eles levantam uma questão: o que temos em comum? Ora, as únicas forças políticas que respondem a isso hoje são a direita e a extrema direita.

Quando escrevi sobre isso em 2019, não estava muito seguro de mim. Mas agora, com Trump, estou totalmente seguro. Porque é pior do que aquilo que havíamos imaginado.

A questão que nos é colocada para a esquerda mundial é: somos capazes de dizer o que temos em comum? O que temos em comum para que uns aceitem sacrifícios pelos outros? O que temos em comum para reconhecer a identidade dos outros sem sermos ameaçados?

Se não tivermos a sensação de algo em comum, as diferenças culturais tornam-se ameaças.
É nesse quadro que é possível identificar a intencionalidade de desconstrução do sentido de comum à sociedade e a imposição de visões que, por vezes, negam o próprio valor da ciência. Os métodos de Trump diante dos ataques às universidades, aos museus, ao Departamento de Educação, e sua ação neste domínio de violência contra as pessoas, sobretudo os progressistas, procuram simultaneamente negar o que lhe incomoda no campo dos valores e da ciência e impor uma visão particular (e diria excêntrica) do mundo que deveria ser compartilhada como o comum.

Há um ano eu jamais teria imaginado isso. Um presidente dos Estados Unidos que busca liquidar universidades, que tem comportamentos xenofóbicos e racistas… enfim, nunca teria imaginado.

E o problema é que Trump não é um conservador autoritário, ele é ultraliberal. É em nome do declínio da autoridade que temos essa violência. Ele diz: “vocês não vão se submeter à autoridade dos sábios, vocês não vão se submeter à autoridade dos especialistas”.

É uma escala de decadência contínua: não nos libertamos do desprezo senão desprezando os outros, ao dizer que não sou eu quem merece ser desprezado, são os outros.

Qual o caminho para produzirmos uma certa esperança?

Penso que a esperança é um dever. Acho que ainda existem coisas que funcionam. Por exemplo, redes de solidariedade: há uma vida associativa muito intensa e, pelo menos no caso francês, a vida social local é muito mais positiva do que a imagem nacional. As pessoas organizam festas, se ajudam. Então, não é verdade que todo mundo é dominado pelo ressentimento.

A segunda coisa, acho que seria preciso dar toda a importância ao trabalho. O que a força do movimento operário fez, de fato, foi dar dignidade aos trabalhadores.

Hoje existe na França um sindicato que tenta fazer isso, mas que ainda assim busca reconstruir uma dignidade a partir da qualidade do trabalho, do sentido de utilidade do trabalho.

Quando houve a pandemia da Covid e o confinamento, todo mundo descobriu que os motoristas de caminhão, as pessoas que recolhem o lixo e as caixas de supermercado eram pessoas formidáveis e indispensáveis. Bem, desde então já esquecemos disso.

Isso aconteceu da mesma forma aqui.

Sim. Parece-me que a ideia é a necessidade de redefinir o que é comum, tentar redefini-lo fora das categorias nacionalistas.
Acredito que é preciso revalorizar o trabalho, repensar a educação. Mas a experiência histórica mostra que isso não acontecerá em três semanas. E é verdade que é muito difícil resistir a uma espécie de pessimismo. Mas com certeza, entre nós, neste momento, deixamos o pessimismo de lado.

Os jovens também sonham com um futuro, não? Como você pensa em projetar uma visão para que os adultos, que viveram em outros momentos, possam construir isso? Não está relacionado ao teletrabalho fútil, mas ao futuro. Como garantir esse pertencimento? Como projetar futuros possíveis e desejáveis? Existe o risco de um pessimismo, de surgir um niilismo enorme, não?

A gente ficaria paralisado aqui se não pudéssemos projetar um futuro. Você me diz que, por ora, é muito difícil não ser pessimista.

Mas, para mim, é quase uma visão moral. Eu observo que muitas pessoas não se deixam levar: na França, há uma crise da educação, mas há muitos professores que fazem um trabalho formidável. Constato que o hospital não funciona muito bem, mas o pessoal é incrível.

Constato que a vida política, em geral, é um tanto catastrófica, mas a maioria dos franceses acha que o prefeito de sua cidade faz um trabalho formidável, seja de direita ou de esquerda; aliás, isso não é muito importante.

Na prática, o que se desfaz não é tanto a realidade da vida social. O que se desfaz são as representações da vida social.

Eu acredito que as razões para ter esperança hoje são os que dizem “eu atuo onde estou, localmente, na minha instituição de ensino, com meus alunos, no meu hospital, no meu município, com meu pequeno clube de futebol”. Enfim, em tudo que cria uma sociedade. Do local para o global.

Na França, os políticos de esquerda ou passam para o populismo de esquerda, ou nada dizem, ou dizem “não podemos dizer nada”. Então, acrescenta-se a esse sentimento de crise o fato de termos um Estado-providência extremamente complexo, relativamente eficiente, porém é um Estado ilegível, incompreensível, o que faz com que todos tenham a sensação de estarem sendo roubados pelo sistema.

Devemos tornar o Estado-providência legível, para que cada um entenda o que paga e o que recebe.
Você sustenta que a Justiça deve estar atenta às condições reais de vida. Como pensa que podemos inspirar não apenas a educação, mas políticas públicas mais inclusivas?

Eu sou favorável a compromissos de justiça. Quero dizer com isso que uma sociedade de pura liberdade é a sociedade libertária, é um mundo selvagem absoluto. Uma sociedade de pura igualdade, já conhecemos isso, é o stalinismo, é a China de Mao Tsé-tung; se não houver liberdade, não há igualdade. Uma sociedade puramente meritocrática é uma sociedade darwiniana. Ou seja, os melhores vencem, e os outros perdem.

A boa sociedade é aquela que combina, que faz com que a liberdade, a igualdade e o mérito se combinem de maneira moderada. É por isso que detesto as ideias radicais, elas têm consequências radicais e não correspondem à experiência das pessoas.

Minha hipótese é que nos Estados Unidos, na Alemanha, na Grã-Bretanha, na França, na Itália, o voto da extrema direita é o voto das pessoas que falharam na escola. É o voto antielite, de ressentimento, é o voto contra os mais pobres. Portanto, se você considera que a igualdade de chances meritocrática é um sistema um pouco darwiniano, os vencidos se vingam.

E, mesmo assim, é terrível. Não consigo me livrar da imagem da entronização de Trump, que para mim foi o choque. Trump está cercado por todos os bilionários do planeta e fala em nome dos pobres. Os pobres encontraram nesse homem a expressão de seu ressentimento contra os formados, as elites. É realmente inacreditável.

A nuance que você propõe, equilibrar o mérito entre os plurais, é central para uma estratégia que reconheça as desigualdades, mas também promova equidade, equilibrando mérito, liberdade e igualdade. Talvez estejamos falando de caminhos para a esperança. Na Assembleia Mundial da Anistia Internacional deste ano, Ammar Dweik, diretor-geral da Comissão Independente de Direitos Humanos da Palestina, fez uma conferência contundente sobre a situação de Gaza. Falou com lucidez impressionante em meio às dores na região. Terminou dizendo que, apesar da fome e do horror, os palestinos continuarão ensinando amor aos filhos, plantando oliveiras e escrevendo poemas. Foi um testemunho de resistência e esperança de quem decidiu não morrer.

Nem todos sobreviveram, mas aqueles que sobreviveram decidiram que não morreriam. Penso muitas vezes em São Tomás, que diz que a virtude essencial é a esperança. E nestes tempos é preciso ter esperança. É exatamente o que diz seu amigo palestino, seja o que for que aconteça, é preciso ter esperança, não se deve mais esperar pelo fim.

Os dois lados da dívida pública, por Samuel Pessoa

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Samuel Pessoa, Pesquisador do BTG Pactual e do FGV IBRE e doutor em economia.

Folha de São Paulo, 09/11/2025.

No caderno de fim de semana do jornal Valor Econômico da semana passada, o economista André Lara Resende (ALR) nos lembrou que a dívida pública tem dois lados. É um passivo do setor público, mas é riqueza, ativo, para o setor privado. Qualquer plano de consolidação fiscal que pretenda reduzir o endividamento público precisa se lembrar dessa dualidade.

Se o setor público pretende promover uma consolidação fiscal que irá reduzir o endividamento de um país, cabe a questão: essa ação será um equilíbrio do ponto de vista dos detentores da dívida pública? Há o desejo, por parte do setor privado, de reduzir seu carregamento de dívida pública?

Há sociedades que são muito poupadoras. O excesso de poupança estrutural do setor privado faz com que essas sociedades experimentem permanentemente uma situação de excesso de oferta sobre a demanda. Há uma pressão deflacionária permanente. Nesse caso, o setor público precisa incorrer em déficits permanentes para ocupar o espaço de demanda que o setor privado não ocupa.

O aumento do endividamento financia a demanda pública necessária para manter e economia a pleno emprego e compensar a carência de demanda do setor privado. Tecnicamente, diz-se que o setor público tem a função de demandante residual no mercado de bens e serviços.

Na coluna de 18 de maio do ano passado, mostrei que a dívida pública do Japão era de 252% do PIB em 2023. Os juros reais para o período dos 23 anos anteriores foram negativos em 0,3%, e a inflação, positiva em 0,4%, ambas as taxas anualizadas.

A taxa de poupança do Japão nos mesmos 23 anos foi de incríveis 28% do PIB, apesar do envelhecimento da população.

De sorte que o setor privado carrega nos seus portfólios os 252% do PIB de dívida pública e ainda sobram 80% do PIB para acumular no exterior: o setor privado japonês tem 80% do PIB de ativos contra não residentes. De fato, nesses 23 anos o Japão apresentou superávit de transações correntes de 2,9% do PIB!

Ou seja, o Japão é um caso que descreve bem o fenômeno descrito por ALR em sua coluna. Se o governo japonês quiser proceder a uma forte consolidação fiscal, gerará uma recessão. Haverá carência de demanda agregada, os juros nominais serão zero, e a economia entrará em uma espiral deflacionária. A taxa de desemprego elevar-se-á.

Certamente essa não é a situação da economia brasileira. Nos 23 anos terminados em 2023, a taxa real de juros foi de 5,1%, e a inflação, de 6,5%, já considerando a taxa anualizada.

A taxa média de poupança no período foi de ridículos 16,2% do PIB, e houve déficit nas contas externas de 2,1% do PIB. A consequência é que, em vez de termos ativos no exterior, temos passivos no valor de 39% do PIB.

A expressão de que no Brasil o setor privado não está muito disposto a carregar quantidades expressivas de dívida pública é dada, olhando a dinâmica das quantidades, pelo fato de termos acumulado um passivo contra o resto do mundo —se houvesse uma situação de forte demanda por ativos, acumularíamos no exterior—, e, olhando a dinâmica dos preços, pelo fato de a taxa de juros reais ser muito elevada.

Assim, para o Brasil, se houvesse uma fada que reduzisse fortemente o endividamento público, haveria uma força na direção de redução das taxas de juros domésticas.

Quais as causas da riqueza das nações? por Marcos Lisboa

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Marcos Lisboa, Economista, ex-presidente do Insper e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005, governo Lula).

Folha de São Paulo, 09/11/2025

Nos últimos 250 anos, houve uma revolução na vida cotidiana. Até o fim do século 19, a expectativa de vida nos países mais ricos era perto de 40 anos. A cesta de consumo de uma pessoa de renda média nesses países custaria cerca de R$ 10 por dia em valores atuais.
Pouco mais de dois séculos depois, a expectativa de vida dobrou nas principais economias e a renda por habitante multiplicou cerca de 50 vezes, em alguns casos ainda mais.

Estudar as causas desse fenômeno foi um dos temas fundadores da economia. Nos últimos 30 anos, houve avanços nessa agenda de pesquisa, que resultaram em vários Prêmios Nobel de Economia, inclusive o deste ano, conferida a Joel Mokyr, Philippe Aghion e Peter Howitt.

O desenvolvimento ocorreu nos diversos países, mas de forma desigual. Ele se inicia na Inglaterra e na Holanda no fim do século 18, se espalha pelos Estados Unidos, depois na Europa ocidental do Norte e, mais tarde, na América Latina. O restante da Europa e o sudoeste da Ásia tiveram desempenho impressionante desde 1990.

Robert Fogel, Nobel de 1993, e Angus Deaton, Nobel de 2015, mostram como os avanços são impressionantes, porém esse processo não é homogêneo, nem linear. No começo do século 19, por exemplo, parte da população urbana da Inglaterra apresentou indícios de perda da qualidade de vida, com redução da altura média e aumento dos índices de mortalidade.

A imensa migração dos campos para as cidades e a falta de políticas públicas resultaram nessa piora temporária.

Em algumas décadas, o quadro se reverteu. Os salários começaram a aumentar com a produtividade e se iniciou um aumento da expectativa de vida, de perto de 50 anos em 1900 para mais de 60 anos em 1930.

Avanços desmedidos, mas com alguns retrocessos localizados, continuaram no último século.

Esse processo foi reforçado por reformas na política pública. O fim do século 19 inicia uma agenda de seguridade social, de políticas de segurança e de meio ambiente, entre outras.

O desenvolvimento das técnicas de estimação de impacto e a construção de grandes bases de dados nos últimos 30 anos têm permitido avanços na pesquisa em economia sobre temas como educação, discriminação e crescimento, entre outros.

Amory Gethin, com uma imensa base de dados global e metodologia inovadora, identificou que, de 1980 a 2019, a educação contribuiu com cerca de 50% do crescimento, 70% do aumento de renda dos 20% mais pobres e 40% da queda da extrema pobreza.

O desenho das regras da política pública e do funcionamento dos mercados é igualmente fundamental para explicar o crescimento. Instituições importam, como sistematizam Daron Acemoglu, Simon Johnson e James Robinson, vencedores do Nobel do ano passado.

As sutilezas de como o sistema Judiciário é desenhado, as normas dos mercados de crédito, as regras de comércio exterior e a regulação dos setores de infraestrutura, por exemplo, estão associadas ao desempenho relativo dos países.

Nos anos 1980, Paul Romer, Nobel de 2018, desenvolveu modelos que contribuíram para analisar o problema. Parte essencial do desenvolvimento econômico decorre de inovações que resultam em aumentos de produtividade.

Ideias bem-sucedidas geram ganhos persistentes porque são não rivais. A mesma descoberta pode ser utilizada simultaneamente por muitos agentes e gerar retornos crescentes de escala: pode-se produzir mais com a mesma quantidade de insumos.

No começo dos anos 1990, Aghion e Howitt desenvolveram um modelo sofisticado para analisar a interação entre concorrência, inovação e crescimento.

O eixo é simples: mercados e concorrência, conhecido desde Karl Marx. As inovações bem-sucedidas de gestão, de tecnologia e de produtos permitem ganhos extraordinários para os seus responsáveis, o que incentiva a criatividade e o empreendedorismo. O resultado são as transformações frequentes a que assistimos no cotidiano.

Os detalhes dessa história, contudo, são sutis. Firmas bem-sucedidas por vezes tentam bloquear o surgimento de competidores, o que restringe a inovação. As regras para garantir o funcionamento adequado de diversos setores são complexas.

Para agravar, as formas de intervenção da política pública dependem das circunstâncias, como as características da tecnologia ou do acesso à informação.

Em “The Power of Creative Destruction” (O Poder da Destruição Criativa)”, Aghion e coautores sistematizam os imensos benefícios da concorrência e da inovação para os ganhos de produtividade e os desafios da política pública para garantir um processo saudável de concorrência e de inovação.

Mokyr foi o Prêmio Nobel mais inesperado e merecido. Seu monumental trabalho em história econômica documenta o papel das ideias nos mercados e na política. Uma concorrência permanente de interesses diversos, abordagens alternativas.

Ao contrário do maniqueísmo usual, nem sempre as ideias refletem interesses, nem sempre os grupos mais fortes acabam por dominar o debate. No enfrentamento de ideias, as negociações na política resultam em escolhas das regras, por vezes bem-sucedidas, outras não.

O mesmo ocorre com as inovações nos mercados. Ao contrário da visão usual, por exemplo, de uma Revolução Industrial, houve um processo com muitas inovações, com, por exemplo, centenas de patentes apenas para a máquina a vapor ao longo de décadas.

As primeiras máquinas não eram muito melhores do que os processos tradicionais. Seguidas inovações foram aperfeiçoando-as e as gerações sucessivas foram, lentamente, aprendendo a utilizar a nova tecnologia, que se transformava continuamente.

O mesmo processo ocorreu na agricultura inglesa nos séculos 16 e 17, com aumento da produção de trigo por hectare. Ele continua a ocorrer nas mais diversas atividades produtivas, como os ganhos de produtividade do nosso agronegócio ou nas inovações em medicamentos no resto do mundo. A interação entre concorrência, adequadas políticas públicas e ciência transforma nosso cotidiano.

Em “The Enlightened Economy”, Mokyr conta com detalhes a longa e profunda transformação que começou na Inglaterra, nas ideias, nas instituições e na economia que terminaram por transformar o mundo.

‘Terrorismo’ também implode o Estado de Direito, por Frei Betto.

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Frei Betto, Escritor, e autor de ‘Diário de Fernando – Nos Cárceres da Ditadura Militar Brasileira” (ed. Rocco), entre outros livros

Folha de São Paulo, 09/11/2025

Nas últimas décadas, o conceito de terrorismo tornou-se um dos mais poderosos instrumentos políticos e jurídicos para subverter os princípios do direito. Criado para descrever ações violentas com motivações ideológicas ou políticas, o termo se transformou em categoria jurídica e moral capaz de justificar exceções à lei e à própria ideia de justiça.

O que começou como resposta legítima a ameaças reais, acabou se tornando uma ferramenta perigosa em mãos de Estados e governos que, em nome da segurança, subverteram princípios do direito internacional e das liberdades individuais.

O ponto de inflexão ocorreu após 2001, com a derrubada das Torres Gêmeas. Diante do trauma coletivo, os EUA e seus aliados declararam a chamada “guerra ao terror”. Sob essa bandeira, práticas antes consideradas ilegais, como detenções sem mandado, tortura, sequestros internacionais e prisões secretas, foram normalizadas.

O centro de detenção de Guantánamo, em território cubano, simboliza esse novo paradigma. Ali, centenas de pessoas são mantidas presas e submetidas a torturas por tempo indeterminado, sem acusação formal ou julgamento, sob a justificativa de que a luta contra o terrorismo exige “novas regras”.

Essa “exceção permanente”, segundo o filósofo italiano Giorgio Agamben, abriu um precedente devastador. Em nome da segurança nacional, diversos países passaram a operar fora dos limites legais e éticos, e tratam o suspeito de terrorismo não como cidadão com direitos, mas como inimigo absoluto, alguém que pode ser neutralizado antes mesmo de se provar sua culpa. O direito à defesa, ao julgamento justo e à presunção de inocência foi substituído pela lógica de antecipação e punição preventiva.

O preocupante é que essa erosão da legalidade não se restringiu ao combate ao terrorismo internacional. A mentalidade de “guerra permanente” contaminou outras áreas da segurança pública.

Nos últimos anos, diversos governos, inclusive democráticos, passaram a aplicar a mesma lógica de exceção contra facções criminosas e organizações de narcotráfico. Operações policiais e militares têm adotado o discurso de que certos grupos representam uma ameaça tão grave à ordem pública que o Estado pode agir sem os freios da lei.

Sob o pretexto de combater o crime organizado, como ocorreuagora no Rio de Janeiro, multiplicam-se execuções extrajudiciais, desaparecimentos e intervenções letais em comunidades pobres. O inimigo agora não é o “terrorista estrangeiro”, mas o “traficante”, o “miliciano” ou o “membro de facção” —rótulos amplos e fluidos que permitem justificar ações fora do devido processo legal. Em muitos casos, a sociedade, movida pelo medo e pela descrença nas instituições, aplaude essa postura, sem perceber que mina as bases da própria democracia.

Ao transformar o combate ao crime em guerra, o Estado abre mão do papel de garantidor da lei para se tornar juiz e carrasco. A fronteira entre justiça e vingança se apaga. A morte passa a substituir o julgamento; a suspeita, a prova; e o inimigo, o cidadão. Esse processo corrói os princípios que sustentam o Estado de Direito, como a universalidade da lei, a proporcionalidade da punição e a dignidade da pessoa humana.

A força da lei não está em seu predicado de punir, mas em sua capacidade de limitar o poder. Quando o Estado reivindica o direito de matar sem julgar, ele nega a essência do contrato social.

Ao admitir que alguns indivíduos ou grupos podem ser eliminados sem defesa, a sociedade regride à barbárie, em que o mais forte impõe sua vontade sobre o mais fraco.

O desafio agora é resgatar a primazia da legalidade em um mundo que se acostumou à exceção. O combate ao terrorismo e ao crime organizado é legítimo e necessário, mas precisa submeter-se ao controle jurídico e ao respeito aos direitos humanos. Não há segurança duradoura quando o medo se torna justificativa para a suspensão da justiça.

Se o século 21 começou com a promessa de um mundo interconectado, rapidamente revelou o perigo de uma liberdade condicionada pelo terror. Hoje vivemos as consequências de um paradigma que transformou o inimigo em categoria política e o direito em instrumento de exceção. A luta contra o “narcoterrorismo” deve ser travada dentro da lei, nunca acima dela. Do contrário, o Estado, ao tentar nos proteger, acabará por destruir aquilo que mais deveria preservar: a própria ideia de justiça.

O neoliberalismo produz sujeitos para o autoritarismo, por Michel Aires de Souza Dias

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Michel Aires de Souza Dias – A Terra é Redonda – 05/11/2025

Mais que um modelo econômico, o neoliberalismo é uma engenharia social que, ao produzir indivíduos isolados e psicologicamente fragilizados, cria o terreno fértil para o florescimento de tendências autoritárias e fascistas

Hoje, o neoliberalismo é mais do que uma racionalidade política e econômica. É uma forma de engenharia social que molda as relações sociais, determina os modos de viver, as formas de comportamento e produz novas formas de subjetividade. Sob seu domínio, os indivíduos se transformam em seres genéricos, em átomos sociais isolados, sem autonomia crítica, incapazes de compreender a totalidade reificada que os subjuga. Nesse contexto, a racionalidade neoliberal enfraquece os indivíduos formando o caráter autoritário. Assim, mobiliza processos psicológicos e afetivos, orientando-os para fins políticos e econômicos.

Com o avanço do neoliberalismo no final dos anos 1980 na Europa e Estados Unidos (e no Brasil, nos anos 1990), ocorreram privatizações, desregulamentação da economia, cortes de gastos públicos e o enfraquecimento dos sindicatos, reduzindo a proteção social. As pessoas passaram a enfrentar sozinhas o desemprego, a precarização do trabalho e a crescente desigualdade. O resultado disso foi um maior enfraquecimento dos indivíduos, que diante das forças opressivas da realidade sentiram-se impotentes e frustrados. A partir disso, pode se observar a retomada das tendências fascistas na sociedade.

Como avaliou Bresser-Pereira (2020), quando há uma crise da democracia, ela se torna alvo de grupos minoritários neofascistas. Desse modo, a crise atual da democracia não se reduz a uma crise política, mas envolve dimensões econômicas e sociais profundas. A crise ocorre não porque as instituições democráticas falharam, mas sim porque o modelo econômico fracassou, produzindo consequências no plano social e político. Foi o fracasso das políticas neoliberais que fomentou essa onda de governos neofascistas pelo mundo. Os regimes autoritários surgem no seio da democracia por causa da emergência de uma forma histórica de capitalismo extremamente “agressiva, desestabilizadora e desestruturante” (BRESSER-PEREIRA, 2020, p. 52).

Hoje, a sociedade neoliberal tornou-se uma sociedade cada vez mais administrada, que enclausura os indivíduos determinando os padrões de pensamento e comportamento socialmente estabelecidos. Nesse sentido, o neoliberalismo se define pela união entre o capital e as instituições democráticas, buscando uma maior racionalidade e eficiência técnica e administrativa, a fim de se obter melhor organização, controle e planejamento dos indivíduos. Desse modo, a organização social continua sendo heterônoma, isto é, nenhuma pessoa pode existir na sociedade capitalista realmente conforme suas próprias determinações. O ego ajustado à realidade aprendeu a ordem e a subordinação por meio do aparato econômico que a tudo engloba (ADORNO, 1985).

Os defensores do neoliberalismo sempre se orgulharam de serem os porta-vozes da liberdade, sempre pregaram a ideia de uma economia livre e de um Estado que garanta as liberdades individuais. Contudo, essa liberdade é somente aparente. Apesar de não intervir na coordenação da atividade econômica, o Estado continua intervindo na esfera privada e dos conflitos sociais. Segundo Safatle (2020, p. 21-2): “[…] o que o neoliberalismo pregava eram intervenções diretas na configuração dos conflitos sociais e na estrutura psíquica dos indivíduos. Mais do que um modelo econômico, o neoliberalismo era uma engenharia social”. A partir desse modus operandi, o objetivo do neoliberalismo era eliminar toda forma de discurso crítico de entidades, sindicatos, organizações e associações da sociedade civil, que buscam questionar a liberdade neoliberal.

O pensador francês Michel Foucault (2008) compreendeu o neoliberalismo não apenas como uma política econômica, mas como uma forma de racionalidade que se escreve no âmbito das práticas de governar. Governar no sentido de racionalmente coordenar e organizar a existência humana, controlando e dirigindo as condutas dos indivíduos, assim como constrangendo suas ações e reações.

Desse modo, o neoliberalismo é uma forma de governamentalidade que impõe um sistema normativo e uma racionalidade que se estende a todas as esferas da vida social. O corpo humano e os processos biológicos tornam-se o centro de estratégias de poder. Há um gerenciamento da vida das populações que passam a ser administradas pelo Estado, como os índices de natalidade, as pandemias, a sexualidade, a higiene e as doenças. O objetivo é tornar o corpo do indivíduo útil à produtividade.

Em seu livro, La Nouvelle Raison du Monde (2009), Dardot e Laval procuraram mostrar, a partir do conceito de governamentalidade em Foucault, que o neoliberalismo é uma forma de racionalidade que molda as formas de comportamento, as relações sociais e as instituições políticas nas democracias ocidentais. Essa racionalidade normativa transforma as relações humanas, determinando os modos de viver e produzindo novas formas de subjetividade. Nesse sentido, o neoliberalismo deve ser compreendido como um sistema coordenado e organizado de normas e práticas, que impõe a concorrência entre os indivíduos como o fundamento da sociedade. Esse modelo concorrencial não seria apenas uma característica do mercado ou do Estado, mas transforma os indivíduos em empresários de si mesmos, incentivando a autoexploração, a competição e os conflitos de classe.

A partir dessa mesma linha de raciocínio, em seu livro A Sociedade do Cansaço, o sul-coreano Byulg-Chul Han procurou argumentar que vivemos hoje numa sociedade do desempenho, da autoexploração e do excesso de trabalho. Não se trata mais de uma sociedade disciplinar, que desde o século XIX usou técnicas e práticas para coordenar e organizar a vida dos indivíduos: “A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho” (HAN, 2015, p. 14). Cada indivíduo torna-se responsável por si mesmo, por seu sucesso ou fracasso. Há uma obrigação constante de produtividade e de autossuperação. Nessa forma de sociedade, o indivíduo se explora voluntariamente. A ilusão está no falso sentimento de liberdade que a pessoa sente ao ser cada vez melhor, cada vez mais produtiva. Ao acreditar que está se autorrealizado, ela está na verdade se explorando até a exaustão. O resultado disso são as doenças mentais, como a depressão, os déficits de atenção, a síndrome de burnout e as crises de ansiedade.

O que experimentamos hoje é o enfraquecimento psicológico dos indivíduos, que se tornam impotentes diante do aparato tecnológico do mundo industrial capitalista. Esse enfraquecimento fomentou as tendências fascistas na sociedade que temos visto em pleno século XXI. Para Gurski e Perrone (2021), esse novo fascismo seria um fenômeno globalizado que não possui características homogêneas. Ele possui múltiplas características, uma vez que se constitui como uma mistura de nacionalismo, xenofobia, racismo, lideranças carismáticas, identitarismo reacionário e políticas antiglobalização regressivas, que podem assumir diferentes matizes e que afrouxam naturalmente os vínculos de solidariedade da vida social. Por isso, no século XXI, a luta de classes se baseia na mobilização psicológica das massas – ou seja, em recursos internos, como as emoções e afetos. Daí o ressurgimento do fascismo em suas novas vestes e simbologias, tomando força no cotidiano das massas pela formação da subjetividade. Modificando os valores, transformando os conceitos e mistificando a realidade. Esse novo fascismo se consolida como uma ideologia que forma a subjetividade, por meio de uma visão de mundo utilitarista e fragmentada, que sustenta uma política econômica neoliberal perversa, de acordo com a nova fase de financeirização do capital (SCHLESENER, 2021).

Para o sociólogo brasileiro Octavio Ianni, o neoliberalismo não é apenas uma doutrina socioeconômica que preconiza os antigos valores do liberalismo clássico, mas ele representa, antes de tudo, formas de socialização que “implica a crescente administração das atividades e ideias de indivíduos e coletividades” (IANNI, 1998, p. 112). Nesse sentido, a racionalidade neoliberal generaliza tensões, contradições e lutas sociais, com o objetivo de condicionar a dinâmica da economia e da reprodução ampliada do capital. Como os governos neoliberais não conseguem convencer os indivíduos com argumentos, uma vez que sua política econômica suprime direitos sociais, precariza o trabalho e acentua as desigualdades, então sua ação se volta à manipulação psicológica, mobilizando processos inconscientes, irracionais e afetivos. O objetivo é canalizar as frustrações dos indivíduos para um determinado fim: “Daí as reivindicações, os protestos e as lutas sociais, com frequência mesclados de etnicismo, xenofobias, racismo, sexismo, fundamentalismo e outras expressões das desigualdades sociais multiplicadas pelo mundo afora” (IANNI, 1998, p. 113).

Apesar do discurso neoliberal sempre reafirmar o seu compromisso com a democracia, com as liberdades individuais, com o livre comércio e com o livre mercado, “a verdade é que sua ‘religião’ é o nazifascismo” (IANNI, 1998, p. 114). Para Ianni (1998), o nazifascismo deve ser compreendido como um produto extremo e exacerbado das mesmas forças sociais predominantes na sociedade administrada global em moldes neoliberais. É uma forma de racionalidade que produz as desigualdades, as tensões e as contradições que atravessam todo o corpo social.

O que podemos observar no mundo globalizado é que o neoliberalismo tanto produz quanto se aproveita da fraqueza interior dos indivíduos, criando uma atmosfera de agressividade irracional, ao mobilizar processos psicológicos e afetivos, guiando os indivíduos para seus fins políticos e econômicos. Com isso, colabora para formar o caráter autoritário, por diversos canais, como a indústria cultural, as instituições do Estado, a família, a igreja, a internet e as redes sociais, fomentando nos indivíduos sentimentos e emoções, desenvolvendo tensões, ressentimentos, preconceitos, ódio e valores individualistas. Como observou Adorno (2015a, p. 184): “Pode muito bem ser o segredo da propaganda fascista que ela simplesmente tome os homens pelo que eles são: verdadeiros filhos da cultura de massa padronizada de hoje, em grande parte subtraído de sua autonomia e espontaneidade” (ADORNO, 2015a, p. 184).

O estímulo da personalidade fascista pelo neoliberalismo tem a indústria cultural como seu principal meio de disseminação. É notório que os conteúdos e as imagens da semicultura são manipuladas pela indústria cultural, que dá grande ênfase à violência. Ela retrata apenas o que é de interesse para o capital, enfatizando apenas uma dimensão dos fatos, em especial, aquele que é espetacular: “O apelo a cenas surpreendentes e impactantes logo traz consigo cenas chocantes ou brutais. Ocorre uma estetização da violência” (IANNI 1998, p. 116). Com o avanço do neoliberalismo em escala global, preconceitos como o racismo, a xenofobia e o antissemitismo, que haviam diminuídos, ressurgem como fantasmas de um passado a assombrar o presente e a ameaçar as conquistas civilizatórias. Com isso, a indústria cultural alimenta a subjetividade de seus telespectadores e leitores, canalizando seus impulsos agressivos contra os excluídos socialmente.

Ela criminaliza certas camadas ou grupos sociais, tornando-os culpados pelos problemas sociais.
Por exemplo, se constrói a imagem do árabe como terrorista a pretexto de combater o fundamentalismo. O homossexual torna-se pervertido e destruidor dos valores cristãos e da família. O pobre é visto como preguiçoso e indolente, sendo acusado de viver de políticas sociais. Os miseráveis, pobres e excluídos da sociedade se tornam bodes expiatórios das mazelas do mundo e não suas vítimas. Assim, condenam-se indivíduos, coletividades, povos, nações e nacionalidades (IANNI, 1998).

É possível notar que as tendências fascistas são estimuladas em filmes, novelas, programas de auditório e no jornalismo televisivo: violência e agressividade; exaltação da autoridade e das forças policiais; apelo às convenções; estímulo ao conformismo; pensamento estereotipado; ódio ao que é diferente, pensamento supersticioso, realismo exagerado etc. Todas essas características conservadoras são estimuladas pela indústria cultural. O objetivo é ativar as forças emocionais para direcionar a vontade dos indivíduos para interesses políticos e econômicos. Como afirma Kehl (2000, p. 149): “Uma sociedade em que o imaginário prevalece, em que as formações imaginárias é que elaboram o real – esse real ao qual não temos acesso – é uma sociedade de certa forma totalitária, independentemente de qual seja a situação do governo, do Estado, da polícia”.
Outro instrumento empregado pelo neoliberalismo para coordenar e controlar as massas é a disseminação do medo. Hoje, os homens não precisam mais temer as forças míticas da natureza ou os animais selvagens, mas devem temer as forças aniquiladoras da sociedade. O medo da fome, da miséria, da criminalidade, da violência e da exclusão social substituiu o medo do homem primitivo das forças da natureza: “Tal como o medo ancestral do herói grego de sucumbir à natureza, no indivíduo burguês esse temor é atualizado em sua relação com o mercado: a concorrência é sentida como uma ameaça, devendo-se vencê-la ou ser derrotada por ela” (BATISTA, 2008, p. 9).

No capitalismo neoliberal, para sobreviver os indivíduos precisam se submeter aos imperativos de eficiência e da produtividade. Com o avanço técnico e científico, não seria mais necessária a luta dos indivíduos pela existência, uma vez que a humanidade criou todas as condições materiais e intelectuais para acabar com a fome, a miséria e a luta pela vida. Contudo, para manter seu poder e a hegemonia, o capitalismo fixou os instintos numa época anterior da evolução humana e manteve a luta pela existência. Os homens são obrigados a regredirem seus instintos a estágios antropologicamente mais primitivos. Essa condição regressiva caracteriza as sociedades modernas reificadas. É fundamental para a manutenção do modo de produção capitalista. Como avalia Adorno (2015b, p. 77): “O medo de ser excluído [Angst], a sanção social do comportamento econômico, internalizou-se há muito através de outros tabus, sedimentando-se no indivíduo. Tal medo transformou-se historicamente em segunda natureza.”

Se no homem primitivo o Ego se forma por causa do medo da morte, diante das forças destrutivas da natureza; no homem moderno o Ego se forma por causa do medo das forças aniquiladoras da sociedade. É pelo mesmo instinto de autoconservação que o Ego se desenvolve. Tal como o homem primitivo mimetizava as forças míticas da natureza para preservar sua vida, o homem moderno mimetiza as forças opressoras da sociedade para sobreviver. O indivíduo imita os padrões de comportamento, pensamento e conduta socialmente necessários para a preservação de sua existência. Ele identifica-se com a realidade. Como ser extremamente integrado e atomizado, ele racionaliza sua ação e seu comportamento com o único objetivo de ganhar a vida. Como afirma Horkheimer (2002, p. 46):

“Através da repetição e imitação das circunstâncias que o rodeiam, da adaptação a todos os grupos poderosos a que eventualmente pertença, da transformação de si mesmo de um ser humano em um membro da organização, do sacrifício de suas potencialidades em proveito da capacidade de adaptar-se e conquistar influência em tais organizações, ele consegue sobreviver. A sua sobrevivência se cumpre pelo mais antigo dos meios biológicos de sobrevivência, isto é, o mimetismo”.

A disseminação do medo como forma de controle e coordenação dos indivíduos é típico da racionalidade neoliberal. Segundo Schlesener (2021), o medo de perder o emprego, de passar fome, de não ter como morar, nem como proteger os filhos, paralisa os trabalhadores e os faz aceitar qualquer oferta de trabalho ou desistir de procurar trabalho, tentando sobreviver com alternativas humilhantes. Mais do que a violência física, a violência psicológica vivida cotidianamente por grande parcela da população dificulta qualquer forma de resistência. Se os indivíduos buscam viver em sociedade, não há outra saída senão se adaptar as condições de existência, precisam se conformar e desistir de sua subjetividade autônoma, que remete a ideia de democracia (ADORNO, 1995).

Em uma passagem de Mínima Moralia, “Devagar e Sempre”, Adorno (2008) compara a pressa dos indivíduos nos grandes centros urbanos ao medo do homem primitivo ao correr de um animal na selva. O homem contemporâneo carrega traços mnemônicos de épocas passadas. Hoje, mesmo que os indivíduos se beneficiem dos confortos propiciados pelo progresso técnico e científico, não temendo os animais selvagens, eles ainda temem as forças aniquiladoras da sociedade, que se tornam uma segunda natureza. Por este motivo, eles estão sempre com pressa para cumprir seus compromissos: “Houve tempo em que se corria de perigos que não admitiam descanso, e inadvertidamente ainda o demonstra quem corre atrás do ônibus. A ordenação do tráfego não mais precisa preocupar-se com animais selvagens, mas não chegou a pacificar a corrida, estranha ao caminhar burguês. Torna-se visível a verdade de que não se está seguro da segurança, que estamos condenados a fugir das potências desenfreadas da vida, mesmo quando meros veículos” (ADORNO, 2008, p. 158).

Ao produzir o medo nas pessoas, o objetivo do neoliberalismo é tornar os indivíduos cada vez mais dóceis e adaptados. A luta pela sobrevivência deve se transformar em eficiência padronizada. Em uma sociedade em que o indivíduo deve se transformar em empresário de si mesmo, ele tem que se tornar uma mercadoria desejável. Ele deve buscar no mercado as competências, as habilidades e os conhecimentos para que se torne cada vez melhor como uma mercadoria. Seu crescimento individual depende cada vez mais de sua capacidade de adaptação, de submissão aos imperativos da realidade.

Desse modo, “o desempenho individual é motivado, guiado e medido por padrões externos ao indivíduo, padrões que dizem respeito a tarefas e funções predeterminadas” (MARCUSE, 1999, p. 78).

Michel Aires de Souza Dias é doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP).
Este texto é parte do artigo “Neoliberalismo e a produção da subjetividade fascista”, publicado em Aurora: revista de arte, mídia e política, São Paulo, v.17, n.51, p. 63-81, janeiro-abril 2025

Referências
ADORNO, Theodor W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Unesp, 2019.

ADORNO, Theodor W. Teoria Freudiana e o padrão da propaganda fascista. In: ADORNO, Theodor W. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. São Paulo: Unesp, 2015a, p.153-189.

ADORNO, Theodor W. Sobre a relação entre sociologia e psicologia. In: ADORNO, Theodor W. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. São Paulo: Unesp, 2015b, p.71-135.

ADORNO, Theodor W. Minima Moralia: reflexões da vida lesada. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008.

ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

BATISTA, Maria. A formação do indivíduo no capitalismo tardio: um estudo sobre a juventude contemporânea, São Paulo. Tese (Doutorado –Psicologia Social), PUC-SP, 2008.

BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. A democracia não está morrendo: foi o neoliberalismo que fracassou. Lua Nova, São Paulo, nº 111, p. 51-79, 2020.

DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Editora Boi Tempo, 2016.

FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

GURSKI, Rose; PERRONE, Claudia Maria. O Jovem ‘Sem Qualidades’ e o Desejo de Fascismo: enlaces entre psicanálise, educação e política. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 46, n. 1, 2021, p. 2-19.

HAN, Byung-Chul Sociedade do Cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.
HORKHEIMER, Max. Eclipse da Razão. São Paulo: Centauro, 2002.

IANNI, Octávio. Neoliberalismo e nazifascismo. Crítica Marxista, São Paulo, nº7, 1998, p. 112-121.

KEHL; Maria Rita. Televisão e violência do imaginário. In: BUCCI, Eugênio (org.). A TV aos 50: criticando a televisão brasileira no seu cinquentenário. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2000.

MARCUSE, Herbert. Algumas Implicações Sociais da Tecnologia Moderna. In: Tecnologia, Guerra e Fascismo, São Paulo: Editora Unesp, 1999, p.71-104.

SAFATLE, Vladimir; JUNIOR, Nelson da Silva; DUNKER, Christian Dunker (orgs.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte, Autêntica, 2020.

SCHLESENER, Anita. Educação repressiva e educação emancipadora: notas acerca da personalidade autoritária e seus desdobramentos na educação. Revista Katálises, Florianópolis, v.24, n. 2, 2021, p. 417-426.

O que explica o fenômeno “pobre de direita”? por Falcão Filho.

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O livro “Pobre de direita – a vingança dos bastardos”, do sociólogo Jesse Souza, caiu no gosto popular após as eleições municipais

Aluizio Falcão Filho – Veja – 05/11/2024

O livro “Pobre de direita – a vingança dos bastardos”, do sociólogo Jesse Souza, está no topo dos best-sellers de não-ficção da revista Veja pela segunda semana consecutiva. O texto caiu no gosto popular logo após as eleições municipais, que apontaram uma derrota fragorosa da esquerda, que perdeu quase metade de suas prefeituras. O título, assim, traria uma explicação para a votação significativa do conservadorismo no último pleito, que não seria obtida sem a adesão das camadas sociais de baixo poder aquisitivo.

Não se trata, porém, de uma publicação que exalta conservadores. Pelo contrário. A narrativa traz críticas (veladas ou não) aos direitistas e às diferenças sociais do capitalismo. Além disso, boa parte de seu conteúdo é dedicado a discutir o racismo no Brasil.

Há três pontos, no entanto, que merecem destaque.

O primeiro é que Jessé Souza busca entender o fenômeno sem desmerecer o eleitor de classe baixa que decidiu votar em candidatos direitistas. “Dizer que o pobre de direita é burro, ‘bolsominion’, ou que a raiz do problema é a filiação religiosa ou o caráter intrinsecamente conservador da pessoa, como muitos fazem, não ajuda muito. Afinal, como já foi dito, o que importa é saber o que motivou a escolha por determinada filiação religiosa e aprofundar ‘o que’ a inclinação ‘conservadora’ lhe proporciona”, escreve o autor.

A tese de Souza é a de que a religião tem papel importante na aproximação dos pobres com a direita – mas há outros fatores que explicam esse fenômeno. “Foi o decidido apoio do mundo evangélico que funcionalizou o voto do negro a favor de [Jair] Bolsonaro. Mas o decisivo aqui é que o negro não se identifica integralmente com Bolsonaro, enquanto o branco pobre, sim. O que está por trás da relação tão especial de Bolsonaro com os brancos pobres? A identificação afetiva e irracional é o mecanismo decisivo, e é o que explica o irracionalismo das massas”, interpreta o sociólogo.

Por fim, o autor aponta como “razão maior” o “ressentimento e a raiva juntos, na medida em que “o acesso a boas escolas e boas universidades é restrito para a classe média branca e ‘real’ e o branco pobre foi injustamente excluído dessas chances pelo nascimento em uma família pobre”. Souza vai adiante: “Se ele fosse consciente de sua opressão, então poderia transformar a raiva e o ressentimento em indignação – o que o levaria para a luta política junto com os demais oprimidos.

Mas não é isso o que acontece. Ninguém explica, muito menos nossa imprensa venal, quem causa seu sofrimento. Como a relação com a classe média ‘real’ e a elite é ambivalente, misturando inveja e admiração, então ele se torna presa de seu próprio desconhecimento.

Como se vê, é a visão de um sociólogo de esquerda tentando encontrar as razões de um fenômeno que vem drenando eleitores do PT, PSOL e congêneres. Além disso, trata-se de um livro escrito antes das eleições municipais – daí as menções constantes ao ex-presidente Bolsonaro. Mas pelo menos duas razões listadas por Souza – a interferência da religião e o ressentimento reinante em boa parte da sociedade – devem ser analisadas com maior profundidade.

O livro se baseia fortemente no teor de entrevistas feitas com eleitores que se encaixam no perfil abordado pelo autor – e frequentemente mistura direita e extrema-direita, como se fossem uma coisa só. Mas é uma leitura que deve ser feita, mesmo com o risco de desagradar muitos leitores. Os de esquerda podem se sentir desconfortáveis com o cenário descrito por Souza, que lhes é desfavorável – e os de direita seguramente não vão gostar de certas opiniões, francamente alinhadas com a chamada pauta progressista. Para aproveitar o que o texto tem a oferecer, portanto, é preciso se livrar de boa parte dos preconceitos políticos que a maioria de nós carrega. E usar o livro como ponto de partida para suas próprias reflexões.

A tragédia como política, por Cidoval Morais de Sousa

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Cidoval Morais de Sousa – A Terra é Redonda – 04/11/2025

A violência estatal letal não é um fracasso da ordem, mas a trágica realização de uma ordem que hierarquiza vidas e transforma a morte do “outro” em espetáculo e capital político
A manhã do dia 28 de outubro de 2025 amanheceu com o céu encoberto sobre o Complexo da Penha, no Rio de Janeiro, mas não foi a meteorologia que trouxe escuridão à cidade. A operação policial batizada de “Contenção” mobilizou mais de 2.500 agentes das forças de segurança, blindados, helicópteros e drones armados.

O saldo: 124 mortos, entre eles adolescentes, trabalhadores e moradores que sequer tinham relação com o tráfico. A ação foi considerada a mais letal da história do estado, superando inclusive o massacre do Jacarezinho em 2021. A justificativa oficial: combate ao crime organizado. A realidade: uma política de extermínio que se repete, se intensifica e se naturaliza.

A repercussão internacional foi imediata. A ONU emitiu nota de preocupação com o uso desproporcional da força e a violação sistemática dos direitos humanos. O The Guardian classificou a operação como “um banho de sangue estatal”, enquanto o El País apontou para “a falência da democracia brasileira nas periferias”. O Le Monde destacou o silêncio cúmplice das instituições, e o Washington Post questionou a ausência de responsabilização. Mas, dentro do Brasil, a reação foi marcada por polarização: enquanto parte da sociedade se indignava, outra aplaudia, alimentada por discursos de ódio e pela lógica do inimigo interno.

Essa tragédia não é um ponto fora da curva. É parte de um padrão. Em agosto de 2023, na Bahia, uma série de operações policiais deixou mais de 40 mortos em menos de uma semana, em bairros periféricos de Salvador. Em julho de 2022, em São Paulo, a Operação Escudo matou 16 pessoas na Baixada Santista, após a morte de um policial. No Rio de Janeiro, os massacres se acumulam como capítulos de uma história escrita com sangue: Jacarezinho (2021), Vila Cruzeiro (2022), Salgueiro (2021), Maré (2014), e tantos outros que sequer ganharam manchetes. A violência policial no Brasil não é exceção – é política de Estado.

O que está em curso é a consolidação de um projeto político autoritário, que transforma a segurança pública em campo de guerra. A militarização das polícias, o uso de armamento pesado, a lógica da ocupação territorial e a ausência de controle externo revelam uma concepção bélica da gestão urbana. O inimigo não é o crime, mas o pobre, o negro, o favelado. Como afirma Achille Mbembe, vivemos sob a lógica da necropolítica, onde o Estado decide quem pode viver e quem deve morrer. “A soberania se manifesta como o poder de matar, de deixar viver ou de expor à morte”, escreve o filósofo camaronês. No Brasil, essa ‘soberania’ se exerce diariamente nas vielas e becos das periferias.

A banalização da morte é acompanhada pela espetacularização da violência. Imagens de corpos caídos, helicópteros atirando, blindados invadindo casas circulam nas redes sociais como se fossem cenas de videogame. A mídia tradicional, em muitos casos, reforça a narrativa oficial, reproduzindo termos como “suspeitos”, “confronto” e “troca de tiros”, mesmo quando não há evidência de resistência. A linguagem se torna cúmplice da barbárie. Como diria Hannah Arendt, “o mal pode ser banal, mas nunca inocente”. A repetição da violência sem questionamento é a normalização do inaceitável.

Vivemos uma crise civilizatória profunda. A vida humana perdeu centralidade no debate público. O neoliberalismo, ao transformar tudo em mercadoria, também mercantiliza a existência. A segurança pública se torna produto, vendido como promessa de ordem e progresso. A política se reduz à gestão da morte. Como aponta Zygmunt Bauman, “a modernidade líquida dissolve os vínculos sociais, tornando o outro um estranho, um inimigo, um risco”. A solidariedade dá lugar ao medo, e o medo justifica a violência.

A operação policial no Rio não foi apenas um massacre – foi uma performance. Uma demonstração de força para consolidar um projeto político que se alimenta da morte. A extrema direita, utiliza essas ações como capital simbólico, reforçando sua base eleitoral e sua narrativa de “ordem contra o caos”. A vida humana se torna moeda de troca.

Diante desse cenário, é urgente recuperar o sentido da vida como valor absoluto. A sociologia crítica tem o dever de desvelar os mecanismos da violência, denunciar sua naturalização e propor caminhos de resistência. Este ensaio é mais um grito de alerta: nenhuma política pode ser legítima se se constrói sobre cadáveres. Como escreveu Eduardo Galeano, “a história é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi, e contra o que foi, anuncia o que será”. Este texto é, em síntese, um anúncio de indignação.

Desvelando o projeto político por trás da violência

A violência policial no Brasil não é um desvio, tampouco um erro operacional. Ela é parte constitutiva de um projeto político que se alimenta, como já mostramos acima, da lógica do inimigo interno, da eliminação do indesejável e da normalização da morte. O Estado, ao invés de garantir direitos, sem julgamento, sentencia e executa a pena de morte. A favela, o quilombo urbano, o território periférico, tornam-se zonas de sacrifício, onde a vida é precária e descartável.

A lógica do inimigo interno é um dispositivo de poder que constrói uma figura a ser combatida, não por seus atos, mas por sua existência. O inimigo não é o crime, mas o corpo racializado, pobre, periférico. Como explica Michel Foucault, o poder moderno não se limita a reprimir, ele produz verdades, identidades e inimigos. O “bandido” é uma construção discursiva que permite justificar o uso extremo da força. A frase “bandido bom é bandido morto” não é apenas uma opinião – é uma política. Ela autoriza o Estado a matar sem julgamento, sem processo, sem culpa.

Essa lógica se expressa em frases como “limpamos o lixo”, “fizemos uma faxina”, “restauramos a ordem”. O vocabulário da limpeza revela uma política higienista, que vê determinados corpos como sujeira a ser removida. É o mesmo discurso que sustentou regimes autoritários ao longo da história: o nazismo com sua “solução final”, o apartheid com sua “segregação sanitária”, e as ditaduras latino-americanas com suas “operações de pacificação”. No Brasil contemporâneo, essa retórica é reciclada e aplicada às periferias urbanas.

A eliminação do indesejável é parte da necropolítica, conceito desenvolvido por Achille Mbembe. Para ele, o Estado moderno exerce poder não apenas sobre a vida, mas sobre a morte. “A necropolítica é o poder de decidir quem pode viver e quem deve morrer”, afirma Achille Mbembe. No Brasil, essa decisão é racializada e territorializada. Os corpos negros e pobres são os principais alvos das operações policiais. A geografia da morte é precisa: ela se concentra nos morros, nas favelas, nos bairros esquecidos pelo Estado.

A normalização da morte como política pública é um dos traços mais perversos da nossa crise civilizatória. A cada nova chacina, a reação institucional é a mesma: justificativas, números, promessas de investigação. Mas a estrutura permanece intacta. A morte se torna rotina, estatística, ruído. Como escreveu Giorgio Agamben, vivemos sob o estado de exceção permanente, onde a suspensão dos direitos se torna regra. O morador da favela é tratado como homo sacer – aquele que pode ser morto, mas não sacrificado; aquele cuja morte não é crime, nem luto.

A indiferença diante da tragédia é sintoma de uma sociedade adoecida. Quando autoridades afirmam que “para mim, só tivemos como vítima os policiais que morreram”, revelam não apenas insensibilidade, mas cumplicidade. Essa frase não é um deslize – é uma doutrina. Ela expressa a hierarquização da vida, onde alguns corpos valem mais que outros. Como aponta Judith Butler, “a vida precária é aquela cuja perda não é lamentada, cuja morte não é reconhecida como perda”. No Brasil, a vida periférica é precária por definição.

O projeto político por trás dessa violência é autoritário, neoliberal e ultraconservador. Autoritário porque concentra poder nas mãos das forças de segurança, com pouca ou nenhuma fiscalização. Neoliberal porque transforma a segurança em mercadoria, vendida como solução para o medo. Ultraconservador porque se apoia em valores punitivistas, racistas e patriarcais. A extrema direita brasileira utiliza a violência como capital político, mobilizando afetos como medo, raiva e ressentimento. A morte se torna espetáculo, campanha, propaganda.

Cidoval Morais de Sousa, professor do Departamento de Comunicação da Universidade Estadual da Paraíba, é secretário regional da SBPC Paraíba.

Segurança Pública: O que fazer, por Soares, Rolim & Krenzinger

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Após ação brutal no Rio, direita busca explorar eleitoralmente o medo e colocá-lo no centro da agenda brasileira. Governo hesita. Mas alternativas, concretas e já testadas em diversos pontos do mundo, pode refundar a Segurança e as Polícias
Luiz Eduardo Soares, Marcos Rolim e Míriam Krenzinger

OUTRAS PALAVRAS – 06/11/2025

O controle territorial por grupos armados no Rio de Janeiro submete a população residente nessas áreas a um domínio tirânico e a toda sorte de abusos, incluindo a cobrança de taxas por bens e serviços e interdições ao exercício de direitos básicos. Trata-se, portanto, não apenas de um sério problema de segurança pública como de uma forma de negar aos mais pobres o respeito e a condição plena de cidadania. Esse controle territorial armado é exercido por dois tipos de organizações criminosas: as fações criminais e as milícias.

Durante o governo Cláudio Castro, as facções e as milícias expandiram seus territórios, sendo que as milícias mais que dobraram o número de pessoas sob seu domínio. Atualmente, mais de dois milhões de pessoas vivem em áreas controladas por milícias no Rio. Por qualquer indicador de gravidade possível, o desafio de desmontar as organizações milicianas é, de longe, o mais urgente e o mais importante pela simples razão de que as milícias são formadas sobretudo por policiais e ex-policiais e não há como se pensar em qualquer política de segurança séria no RJ se as instituições policiais seguirem infiltradas pelo crime organizado.

O crime organizado se infiltrou nas instituições policiais, porque elas operam em uma moldura institucional de ampla autonomia e nenhum controle. A Constituição Federal atribuiu ao Ministério Público (MP) a missão do controle externo da atividade policial, missão que nunca foi cumprida efetivamente. No caso do RJ, a omissão institucional é mais pronunciada e tem se confundido com a conivência com a violência policial e as práticas de extermínio. Entre 2003 e 2024, 22.361 pessoas foram mortas por ações policiais no estado do Rio de Janeiro. Menos de 10% dos casos chegaram a julgamento. O MP do RJ tem se colocado como aliado do governo do Estado; foi contrário à ADPF 635 e, diante do questionamento que o procurador federal Dr. Julio Araújo dirigiu ao governador, depois da chacina, solicitou ao Conselho Nacional do MP que impedisse sua atuação.

Também nesse ponto, o governador Cláudio Castro ofereceu valiosa contribuição às milícias no momento em que garantiu às Polícias Civil e Militar duas Secretarias de Estado não subordinadas a um órgão centralizado de gestão. A mensagem, desde o início, não poderia ser mais clara: “façam o que vocês quiserem”. As milícias apreciaram muito.

A ausência de controle efetivo sobre as polícias é funcional à violência e à corrupção, irmãs siamesas que crescem nas gestões ineptas ou sócias do crime e se disseminam em metástase pela máquina pública. Vejamos o exemplo clássico do fenômeno que esteve na gênese da degradação policial fluminense: quando a autoridade superior concede ao policial na ponta liberdade para matar (não se trata de legítima defesa, por óbvio), concede-lhe também liberdade para, em vez de matar, negociar a sobrevivência do suspeito. A vida converte-se numa moeda, que se inflaciona célere e indefinidamente. Os policiais dispostos a vender a sobrevida do suspeito se organizam e as permutas escalam do varejo ao atacado, até que se firmem pactos, acordos, os “arregos”, fazendo com que muitos profissionais da segurança sejam sócios do crime. Nascem dessa dinâmica perversa não apenas os esquadrões da morte e scuderies policiais, como as próprias milícias. Vendo os acordos e pagamentos se processando sem pudor, desde cedo, os jovens dos bairros pobres aprendem a olhar com desconfiança não só as polícias, mas também a Justiça criminal, a política e o conjunto das instituições.

O resultado tem sido expresso por elevados indicadores de letalidade por ação policial e pela absoluta ineficiência das “operações” sempre realizadas em comunidades pobres nas quais jovens pretos são chacinados e policiais são expostos a riscos desnecessários. Nos episódios necrófilos de 28 de outubro, que envolveram mutilações, facadas e decapitação de suspeitos, o Estado não controlou o território sequer por um dia. Logo após a matança de suspeitos e a morte de quatro policiais, as dinâmicas criminais anteriores retomaram seu curso e o domínio territorial do tráfico seguiu inabalado.

A situação dramática em que nos encontramos na área da Segurança é exatamente o legado de anos em que se faz mais do mesmo, sobretudo no Rio de Janeiro: mais descaso ante o tráfico de armas e a epidemia de homicídios, mais descaso com a perícia e a investigação inteligente, mais descoordenação entre as instituições, mais tolerância com a corrupção e a brutalidade policiais, mais negligência com o controle das polícias, mais encarceramento, mais abandono do sistema penitenciário, mais guerra às drogas, mais descaso com os policiais como profissionais e cidadãos – inclusive com sua formação, sua saúde e segurança -, mais recusa em repensar a arquitetura institucional da segurança pública que herdamos da ditadura, mais indiferença no tratamento de dados, pesquisas, evidências e avaliações, mais improviso voluntarista e reativo, mais cumplicidade corporativista – mais cloroquina e negacionismo, menos vacina, prevenção e conhecimento.

Diante de um quadro dessa gravidade, as posições sustentadas pelo governo federal tem sido, até agora, parte do problema e não das soluções. É inadmissível que o Brasil, um dos países mais violentos do mundo, não conte sequer com um Ministério da Segurança Pública capaz de exercer a governança no setor e ser o centro proponente de políticas públicas com base em evidências. Ao se afastar do tema da segurança, o governo federal preferiu habitar o deserto herdado, permitindo que os seres do deserto, como Cláudio Castro, falassem sozinhos.

Para enfrentar os complexos problemas da Segurança Pública no Rio de Janeiro, seria preciso adotar medidas iniciais e estruturantes. Entre elas, propomos 25 iniciativas:
• Restabelecer a autoridade da secretaria de segurança sobre as polícias, que deixariam de se vincular a secretarias próprias;

• Promover a independência da Perícia;

• Contando com o apoio da Polícia Federal – responsável pela questão -, impedir o envolvimento de policiais no agenciamento de segurança privada informal e ilegal, o que exigirá revisão das bases salariais;

• Construir um pacto com a sociedade civil e com os Poderes em torno da redução dos homicídios como centro de uma política de segurança capaz de proteger o bem essencial, aos moldes do Pacto Pela Paz proposto pelo Instituto Cidade, atuando em cidades como Niterói (RJ) e Pelotas (RS), apontadas internacionalmente como exemplos na redução de homicídios;

• Desenvolver a estratégia de policiamento conhecida como “Dissuasão Focada” para a redução dos homicídios, aplicada com sucesso em todo o mundo e já com experiências concretas em alguns municípios brasileiros. A estratégia supõe a qualificação das áreas de investigação e perícia e exige sua independência;

• Definir política de repressão qualificada ao tráfico de armas, interceptando seu fluxo, evitando que cheguem aos bunkers criminosos e substituindo incursões de tipo bélico por ações cirúrgicas inteligentes fora das favelas;

• Definir uma estratégia de policiamento de “hot spots”, uma das iniciativas reconhecidamente mais impactantes na prevenção situacional do crime em todo o mundo, rompendo com a dinâmica inoperante do policiamento aleatório;

• Iniciar a reforma da execução penal implementando projeto piloto de tratamento com base no modelo de Risco, Necessidade e Responsividade (Modelo RNR), comprovadamente capaz de reduzir reincidência;

• Implantar o modelo das APACs (Associações de Proteção e Assistência aos Condenados) em todo o estado para construir um caminho efetivo de desistência do crime com foco em jovens vinculados ao tráfico;

• Implantar política séria de uso de câmeras corporais no policiamento que registre todas as intervenções policiais e seus contatos com os residentes;

• Realizar pesquisa de vitimização sobre os policiais fluminenses para diagnóstico do tipo e da intensidade da violência, abandono e estresse vividos pelos profissionais da segurança pública, com a competente definição de um programa efetivo de saúde mental;

• Prevenir roubos e furtos de celulares aos moldes da política exitosa desenvolvida pela polícia no Piauí que, em três anos, reduziu esses crimes em 50%;

• Definir com a sociedade civil políticas específicas para proteção de grupos em maior vulnerabilidade social como mulheres, público LGBTQIAP+ e pessoas com transtornos mentais, desenvolvendo protocolos específicos para a abordagem desses grupos;

• Produzir uma estratégia de policiamento antirracista e desenvolver política efetiva de letramento racial no Poder Público e de rigoroso protocolo de abordagens de suspeitos, colocando em xeque procedimentos e métodos que tendem a reproduzir o viés racista e a seletividade social nas ações policiais;

• Suprimir o uso de tecnologias, que, sob aparência de neutralidade e mera efetividade operacional, reproduzem o viés de raça, classe e território, como é o caso da identificação facial;

• Instituir a Ouvidoria das Polícias independente, a partir de indicações da sociedade civil, aos moldes do realizado pelas Defensorias Públicas, com mandato, recursos e autoridade para receber denúncias contra policiais e de policiais contra suas instituições, e dar sequência à responsabilização administrativa e judicial;

• Autorizar a PM a lavrar Termos Circunstanciados de Ocorrência, sem necessidade de condução do caso à delegacia de Polícia Civil, quando se tratar de transgressão da Lei 9.099 (crimes de pequeno potencial ofensivo);

• Mobilizar o poder regulador municipal para identificar e mitigar funcionamento irregular de transporte e comércio, em territórios vulnerabilizados, propondo que as Guardas Municipais atuem em conflitos de baixa intensidade que degradam a vida dos residentes como disputas entre vizinhos e incivilidades;

• Articular o trabalho de inteligência e investigativo (das Polícias Civil e Federal) às ações administrativas municipais, visando identificar fluxos de lavagem de dinheiro, extorsão e monopolização no acesso à energia, bens imobiliários e outros bens.

• Afastar das tarefas externas, temporariamente, policiais envolvidos em confrontos, e lhes fornecer atendimento psicológico, estendendo a atenção terapêutica àqueles que demonstrem sofrimento psíquico, relacionados ou não à drogadição (uso abusivo de álcool e outras drogas, lícitas ou não);

• Dado o contexto fluminense, é indispensável suprimir o princípio de que a palavra do policial deve prevalecer, incondicionalmente, sobre a de testemunhas;

• Investir no encarceramento que decorra de investigação – sobretudo de homicidas, feminicidas, criminosos sexuais e corruptos -, revertendo a dinâmica irracional de prisões em
flagrante presumido, as quais, além de ineficientes, superlotam as penitenciárias e reforçam as facções;

• Revisar o plano de acompanhamento de jovens que cumprem medidas socioeducativas, cuja internação é supervisionada pelo Estado e o período subsequente, aberto, é coordenado pela assistência social dos municípios, desprovida, entretanto, de recursos e pessoal suficientes para função tão delicada e importante. O desenho atual é interessante, mas as atribuições deveriam corresponder à dotação dos meios pertinentes;

• Em parceria com o ministério e a secretaria estadual de Educação, mobilizando entidades da sociedade civil no esforço comum, é urgente implementar iniciativas voltadas para a redução da evasão escolar;

• Embora o tema provoque resistência severa e escape ao poder de instituições políticas estaduais, é urgente insistir no debate público em torno da necessidade imperiosa de mudar a política de drogas, que têm promovido encarceramento em massa de jovens varejistas do comércio de substâncias ilícitas, forçando-os a vincular-se, para sobreviver, às facções criminosas que dominam unidades prisionais, ante o descumprimento da Lei de Execuções penais por parte do Estado. O proibicionismo, o predomínio do flagrante presumido (posto que a PM é proibida de investigar) no encarceramento e o descaso com o sistema penitenciário constituem o principal mecanismo de reprodução ampliada das facções criminosas.

Pensando os desafios da Segurança Pública no Brasil, é urgente e imprescindível que o Governo Federal tome iniciativas concretas como a construção do ministério da Segurança Pública, aglutinando, nesse espaço de governança, policiais qualificados, pesquisadores de ponta e técnicos com experiência em gestão e bloqueando, pelo menos nesse ministério, as dinâmicas tradicionais do clientelismo político e das nomeações desqualificadas.

Uma vez formado o ministério, se poderá abrir no Brasil uma agenda de reformas na Segurança Pública, envolvendo mudanças de médio e longo prazos, como, por exemplo, a refundação do modelo de polícia herdado do Império e da ditadura. Nesse tema, destacamos a importância de que cada polícia tenha apenas uma carreira, como ocorre em todo o mundo, de modo que se assegure aos policiais as condições necessárias de valorização e progressão funcional e que se rompa com as práticas autoritárias internas às corporações e que vitimam os policiais em posições subalternas. A introdução do ciclo completo para todas as polícias é outra reforma essencial para que o Brasil possa ter mais eficiência na área; assim como o estabelecimento de padrões nacionais de recrutamento e formação policial; padronização de registros; garantia de transparência e nova sistemática de controle externo.

O momento, sobretudo, exige discernimento, ousadia e disposição para pensar políticas em diálogo com as evidências científicas e para ouvir os bons policiais e a população oprimida por uma “guerra” que só produz mais sofrimento e votos para demagogos.

* Antropólogo e cientista político, professor da Cátedra Patricia Acioli do Colégio Brasileiro de Altos Estudos da UFRJ, ex-secretário nacional de Segurança Pública, ex-subsecretário de Segurança do estado do Rio de Janeiro e ex-secretário municipal de Prevenção da Violência em Porto Alegre e Nova Iguaçu, autor de “Escolha sua distopia; ou pense pelo avesso” (Edições 70, 2025).

** Pesquisador, membro fundador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Professor da Universidade Lasalle em Canoas (RS). Autor, entre outros de: “A Síndrome da Rainha Vermelha, policiamento e segurança pública no séc. XXI” (Zahar) e “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema (Appris).

*** Professora titular do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFRJ. Líder do Grupo de Pesquisa do CNPq “Núcleo Políticas de Prevenção da Violência, Acesso à Justiça, Educação em Direitos Humanos e Gênero”. Co-coordenadora do Observatório dos Conselhos e Observatório do Feminicídio no Estado do Rio de Janeiro. Ex-diretora do Centro de Observação Criminológica do Rio Grande do Sul.

‘Narcoterrorismo’: um olhar geográfico sobre o tema, por Gabriel de Pieri & Padilha

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Vitor Stuart Gabriel de Pieri e Marcela do Nascimento Padilha

Professores associados do Instituto de Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)

Folha de São Paulo, 06/11/2025

O emprego do termo “narcoterrorismo”, cada vez mais recorrente no debate político brasileiro para equiparar a violência urbana ao terrorismo, revela uma leitura distorcida das dinâmicas espaciais da criminalidade. O conceito confunde dimensões distintas: a criminalidade, orientada pelo lucro, e a subversão política, guiada por ideologias. Essa distorção se evidencia na forma diferenciada como cada um desses atores se relaciona e se projeta sobre o território.

O crime organizado é guiado por uma essência eminentemente lucrativa. Seu objetivo primário é o acúmulo incessante de capital por meio do domínio de atividades ilícitas, não a tomada de poder político.

Requer um ambiente operacional estável, buscando coexistência funcional com o Estado ou a ocupação de suas lacunas. A relação do crime organizado com o espaço é essencialmente pragmática e logística.

O controle de territorialidades, entendido como o conjunto de regras, símbolos e práticas de poder que um grupo impõe sobre determinado espaço, constitui um recurso logístico e econômico crucial, um ativo fundamental para otimizar o lucro das operações. Em síntese, o crime organizado instrumentaliza o controle do espaço como um ativo empresarial, garantindo a continuidade e a maximização de seus negócios ilegais.

Em nítido contraste, o terrorismo possui natureza predominamente política ou ideológico. Sua motivação fundamental não é financeira, mas a obtenção de poder e influência, orientando suas ações para a modificação estrutural da ordem estatal vigente. A violência é sua ferramenta primária de coerção.

A relação do terrorismo com o espaço não é de domínio para fins de lucro, mas de comunicação política: a violência é deliberadamente propagada no território —espaço geográfico sob soberania estatal—, convertendo-o em palco de mensagem ideológica e efeito simbólico.
O objetivo central é amplificar sua projeção política, espalhar o pânico social e impor sua agenda, mirando a alteração da própria estrutura estatal. Em síntese, o terrorismo instrumentaliza a violência no espaço para alcançar seu objetivo político.

A discrepância fundamental entre os dois conceitos é crucial: enquanto o crime organizado instrumentaliza o controle do espaço para garantir o negócio, o terrorismo, em geral, instrumentaliza a violência no espaço com finalidade política.
É vital reconhecer que facções criminosas geram terror, mas seu propósito primordial é a otimização de ganhos financeiros, não a subversão ideológica do Estado. Tais grupos exploram o vazio de controle estatal para prosperar em seus negócios, sem a meta de impor um novo sistema político.

Nesse sentido, o termo “narcoterrorismo” revela-se conceitualmente inadequado para descrever a natureza da criminalidade organizada no Brasil.

Sua aplicação acrítica e indiscriminada acarreta dois riscos conceituais de graves implicações: a banalização do conceito de terrorismo e o deslocamento da análise técnica e especializada em favor de classificações de caráter meramente político-ideológico.

Desse modo, tal mecanismo tende a legitimar práticas de exceção incompatíveis com os direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal, abrindo espaço para o alinhamento automático a agendas de segurança externas, expressão de um movimento de subordinação a um modelo hegemônico global que articula elementos de guerra cultural, estratégias de ataques preventivos e naturalização de zonas de influência.

Fugindo dos Consensos: Apresentação

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O livro “Fugindo dos Consensos: Realidade Global e Novas Reflexões” nasce com o objetivo de discutir assuntos econômicos referentes a economia brasileira e os cenários econômicos globais, abordando assuntos variados, desde os conflitos externos, os confrontos comerciais, as brigas econômicas entre nações, as disputas hegemônicas e variados assuntos que movimentam a economia global e suas repercussões sobre a economia nacional.

Os materiais publicados pelo livro descrito acima surgem como uma coletânea de artigos escritos no jornal Diário da Região nos anos de 2024 e 2025, um período onde o autor escreveu no caderno Conjuntura do referido jornal, refletindo sobre as grandes transformações econômicas globais e seus impactos sobre a sociedade brasileira, deixando de lado, diretamente, uma discussão sobre questões políticas mais evidentes, afinal, percebemos um conservadorismo latente na sociedade brasileira, muitas vezes, muito fanatizadas e incapaz de conduzir uma discussão mais madura, preferindo o chamado cancelamento e adotando uma agressividade verbal e, muitas vezes, se aproximando constantemente da violência física.

Os artigos disponíveis na mídia comercial estão sempre defendendo agendas ultrapassadas, exaltando o pensamento liberal ou neoliberal, criticando o Estado Nacional, degradando os serviços públicos e destruindo os funcionários públicos, sendo visto, todas as vezes, como ineficientes, despreparados e corruptos, contribuindo para defender a diminuição do papel do estado na sociedade nacional, fomentando a privatização, estimulando a abertura econômica, exaltando os serviços privados e criando um ambiente de que o mercado é o todo poderoso, se esquecendo de estudar a história econômica mundial e perceber, com maturidade, que os governos nacionais e as políticas de desenvolvimento, o planejamento estratégico e os investimentos públicos estão o centro do crescimento econômico e o chamado desenvolvimento, lembro ainda, que a atuação governamental contribuiu imensamente para que alguns países conseguissem seu desenvolvimento, mas muitas vezes, na maioria dos casos, os dispêndios dos governos não conseguiram alcançar o tão sonhado desenvolvimento.

No livro, o autor faz uma análise da conjuntura econômica nacional, destacando as grandes dificuldades na condução da economia nacional, ressaltando que vivemos numa sociedade marcada por grandes investimentos governamentais, onde os grupos políticos à direita criticam o assistencialismo estatal e as variadas políticas públicas e, se “esquecem” dos grandes dispêndios dos governos nacionais, estaduais e municipais que beneficiam os grupos mais poderosos na nação, com subsídios gigantescos, isenções fiscais e financeiras, onde nos caracterizamos como um dos poucos países que isentam dividendos e aprovam leis como a Lei Kandir, que garante grandes benefícios para um grupo específico, mesmo sabendo que este mesmo grupo, são os grandes beneficiados da sociedade, mudam governos e os benefícios continuam e, muitas vezes, crescem vertiginosamente em detrimento de grupos mais precarizados.

Vivemos numa sociedade marcada por grandes alterações estruturais, os governos nacionais estão se movimentando para defender seus setores econômicos e produtivos, garantindo recursos para a sobrevivência de suas organizações e garantindo, com isso, investimentos internos, geração de empregos e novos horizontes para as empresas.

Neste ambiente de forte competição, a concorrência não é mais local, nacional, a competição é global, envolvendo cadeias globais de produção transnacional, onde encontramos fornecedores mundiais, com padrões de qualidade e eficiência, exigindo que todos os atores estejam capacitados para a concorrência, sob pena de perderem espaços valiosos no mercado mundial.

O livro “Fugindo dos Consensos: Realidade Global e Novas Reflexões” analisa questões referentes ao comércio internacional, assunto deveras importante para a contemporaneidade, afinal, com as medidas adotadas pelo governo estadunidense de adotar um incremento nas tarifas comerciais para todos os parceiros dos Estados Unidos, acabou gerando uma verdadeira reviravolta no comércio global, aumentando as animosidades entre parceiros antigos e gerando novos constrangimentos no comércio mundial. O livro destaca que as medidas adotadas pelos Estados Unidos foram negativas para os próprios norte-americanos, afinal, foram eles mesmos os grandes perdedores, com aumento dos preços internos e impactos sobre a inflação interna, além de uma drástica redução da renda da população.

Para outros países, percebemos muitas nações se movimentando depois deste tarifaço, onde destacamos o Brasil, mesmo sentindo na pele, o governo federal conseguiu abrir novos espaços de comércio global, se aproximando de outras nações e garantindo o escoamento de produtos nacionais, mesmo assim, percebemos uma polarização crescente na sociedade brasileira, uns apoiando as medidas externas e criticando as medidas adotadas pelo governo federal.

O livro tem como pano de fundo uma discussão econômica sobre o Brasil, as oportunidades, as dificuldades nacionais, os rumos da sociedade brasileira e as limitações do desenvolvimento nacional, afinal, com taxas de juros neste patamar e uma propensão ao rentismo, dificilmente, conseguiremos alçar voos maiores no sempre sonhado sonho do desenvolvimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Novas disputas

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A sociedade internacional vem percebendo que o mundo contemporâneo está, cada vez mais, centrado na busca frenética pelo lucro monetário, os agentes econômicos e políticos buscam o incremento dos ganhos materiais, numa sociedade que transforma tudo em mercadoria, os conceitos que dominam a sociedade estão centrados no imediatismo, no hedonismo e no individualismo, desta forma, a comunidade deixa de falar em direitos, justiça ou igualdade e passam a falar em metas, custos e resultados.

No século XXI percebemos novos conflitos e novas disputas na sociedade internacional, neste cenário, percebemos que novas demandas movimentam a economia internacional, as apostas estão no domínio das chamadas terras raras e nas energias sustentáveis, que tem potencial para reconfigurar a estrutura de poder global, levando ganhadores centenários a amargar perdas consideráveis e, neste ambiente, de constante concorrência, percebemos o surgimento de novos eixos de poder, de influência e de hegemonia.

Neste cenário, encontramos uma verdadeira guerra entre nações, os interesses privados se consolidam e superam os interesses coletivos, os governos nacionais empenham trilhões de dólares para defender seus setores produtivos, ao mesmo tempo, divulgam os ideais do liberalismo, da livre concorrência e das vantagens dos mercados autorregulados, uma verdadeira falácia que muitos difundem como verdadeiros papagaios, defendendo pensamentos ultrapassados que levam os incautos a defenderem ideias e teorias que privilegiam os donos do poder e contribuem para perpetuar as desigualdades visíveis da sociedade. Como disse Millôr Fernandes “Quando uma ideologia fica bem velhinha, vem morar no Brasil”.

Neste momento, percebemos o crescimento de uma nova disputa geopolítica, antes as grandes potências vinham extrair riquezas das nações subdesenvolvidas, transformando estas matérias primas em produtos complexos e industrializados, exportando a preços exorbitantes e garantindo lucros astronômicos em detrimento de uma degradação dos países exportadores de produtos primários, lembrando que este modelo sempre se caracterizou pela espoliação com a conivência de uma elite financeira dos países subdesenvolvidos, perpetuando salários reduzidos, degradação da vida dos trabalhadores, educação de péssima qualidade, saúde precária e transporte pública degradado.

Em pleno século XXI, percebemos a mesma estratégia das nações desenvolvidas, intensificando as pressões econômicas e produtivas, além de esforços políticos para terem acesso as riquezas das nações em desenvolvimento, adquirindo estas matérias primas a preços baixos, prometendo cinicamente a participação nas cadeias globais e, como na história dos países desenvolvidos, continuam explorando as nações mais atrasadas, garantindo ganhos substanciais para seus setores produtivos, suas elites globais e garantindo ganhos para as elites locais que vendem suas riquezas e se comprazem com os restos dos sócios externos.

Vivemos num momento estratégico para países como o Brasil, uma nação repleta de riquezas naturais, energias alternativas, solos abundantes e uma grande quantidade de minerais estratégicos, como as terras raras. Tudo isso nos coloca no centro de uma grande disputa global, onde várias potências apresentam interesses, promessas ousadas e valores monetários atraentes. As escolhas estão na mesa e os caminhos devem ser feitos com soberania, buscando retornos imediatos para a população, garantindo transferência de tecnologias e fortes investimentos em capital humano, evitando, como sempre na história nacional, que os ganhos se concentrassem numa pequena elite endinheirada, que fala do nacionalismo e abraça uma bandeira estrangeira.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Economias e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Varoufakis: a lógica econômica dos genocídios

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Com massacre dos palestinos, bolsa de Tel-Aviv subiu mais de 160% e indústria bélica nada em dinheiro. Big techs testam tecnologias de vigilância, manipulação e seleção de alvos humanos por IA – as mesmas que querem usar contra todos nós

Yanis Varoufakis – OUTRAS PALAVRAS – 04/11/2025

No dia 23 de outubro, depus perante o Júri da Consciência, no contexto do Tribunal de Gaza. O foco de minha fala foi jogar luz sobre as forças econômicas que sustentam o genocídio do povo palestino. Eis o discurso:

Meu nome é Yanis Varoufakis. Sou economista, político e ativista, representando o MeRA25 da Grécia e também o movimento radical paneuropeu DiEM25. Estou aqui na condição de especialista sobre a maneira pela qual a dinâmica do capitalismo está alimentando e reforçando o genocídio do povo palestino.

Com o objetivo de auxiliar o júri a chegar a um veredito fundamentado, abordarei as forças econômicas que sustentam a cumplicidade do capital global, primeiro na limpeza étnica do povo palestino e, mais recentemente, em seu genocídio.

O júri deve ter em mente que o genocídio é lucrativo. E, como argumentarei adiante, é muito mais lucrativo agora, quando uma nova forma de capital está envolvida em sua execução. Para começar, o júri deve reconhecer que o capitalismo prospera com a miséria humana e com a pura destruição. Portanto, não há paradoxo algum no fato de que, em um momento em que a demanda, a produção e a confiança do consumidor estão caindo abruptamente em Israel, a Bolsa de Valores israelense não apenas não caiu desde que o genocídio em Gaza começou, mas, na verdade, subiu mais de 160%.

Isso reflete a Economia Política subjacente da Ocupação e, em particular, a maneira pela qual milhares de empresas israelenses estão entrelaçadas com megacorporações dos EUA, da Europa e da Coreia – incluindo os conglomerados financeiros mais influentes do mundo – formando uma rede internacional que entrou em funcionamento acelerado após outubro de 2023. No momento em que o orçamento de defesa israelense dobrou, ele atraiu maciços “investimentos” para a máquina de morte de Israel.

Para informações mais detalhadas sobre isso, o júri deve levar em consideração o Relatório para as Nações Unidas publicado por Francesca Albanese, Relatora Especial da ONU para os Territórios Palestinos Ocupados, intitulado “De uma Economia da Ocupação a uma Economia do Genocídio”.

É claro que nada disso é novo. A história nos ensina que os interesses econômicos foram propulsores e facilitadores cruciais dos empreendimentos coloniais e, frequentemente, dos genocídios que estes perpetraram. O setor corporativo é intrínseco ao colonialismo desde o seu início. As corporações – começando pelas Companhias das Índias Orientais holandesa e britânica – contribuíram historicamente para a violência, a exploração e, por fim, o despojo dos povos e terras indígenas, um modo de dominação conhecido como capitalismo colonial racial. A colonização israelense das terras palestinas ocupadas não poderia ser uma exceção.

O júri deve estar ciente da maneira como a Palestina hoje expõe as três fases da expropriação colonial. Primeiro, veio a fase da expropriação não sofisticada – a pilhagem brutal da terra e a conversão dos povos indígenas em mão de obra barata ou mesmo escrava. Essa fase, que levou ao surgimento do capitalismo no século XVIII, foi evidenciada na Palestina desde a Declaração Balfour e, muito mais, durante e após a Nakba. A terra palestina foi brutalmente expropriada e os palestinos foram transformados em refugiados ou confinados em bantustões, que acabaram fornecendo, pelo menos até a segunda intifada, mão de obra barata para os colonizadores.

A segunda fase do colonialismo moderno, também conhecida como neoimperialismo, não dizia tanto respeito à pilhagem de terras, mas sim a garantir mercados para o excedente de mercadorias das metrópoles capitalistas – excedente que elas não conseguiam absorver internamente devido à insuficiência da demanda doméstica. Essa dimensão neoimperialista também esteve presente na Palestina, ligada à situação do povo palestino, quando Israel começou a absorver quantidades enormes de armamentos importados dos EUA, da Alemanha e do Reino Unido, contribuindo, assim, significativamente para a demanda agregada desses países. E, mais recentemente, os fabricantes de armas israelenses conseguiram ingressar nesse jogo como exportadores – vendendo armamentos de alta tecnologia testados e comprovados na população palestina para países estrangeiros, incluindo (vergonhosamente) meu próprio país, a Grécia, mas também países árabes.

A terceira fase da acumulação de capital contemporânea, que alimenta a expropriação internamente e o colonialismo no exterior, é a que eu denomino de fase tecnofeudal – uma fase sustentada pelo acúmulo de uma nova forma radical de capital à qual dei o nome de capital na nuvem.

O júri deve notar que o capital na nuvem é uma rede de máquinas (composta por celulares, tablets, servidores e algoritmos) que faz algo notável: nós o treinamos para nos treinar a treiná-lo a nos conhecer bem e, por fim, a manipular nosso comportamento, conferindo assim aos proprietários desse capital na nuvem poderes exorbitantes para fazer coisas conosco contra nossa vontade, em benefício deles.

Nesse contexto, o júri deve levar em conta o fato de que nenhum país forneceu tanto acesso aos dados biométricos de uma população quanto Israel concedeu à IBM. Desde que o genocídio em Gaza começou, Microsoft, Amazon, Alphabet e Palantir vêm expandindo sua penetração de capital na nuvem em um ritmo alucinante. Softwares de reconhecimento facial, algoritmos de seleção de alvos e sistemas de execução automatizada estão sendo testados em tempo real, à vontade e com menos restrições éticas do que em experimentos com ratos de laboratório. As grandes corporações tecnológicas norte-americanas não poderiam estar mais satisfeitas.

A guerra, senhoras e senhores, sempre foi lucrativa. Os comerciantes de armas acumularam fortunas fornecendo armas ao maior pagador. Indiretamente, todo tipo de capital – incluindo o capital que produzia bens de consumo – acumulava-se mais rapidamente em tempos de guerra e destruição. Mas, nesta era tecnofeudal, o capital na nuvem acumula novos poderes nos campos de batalha diretamente, ao melhorar a capacidade de seus algoritmos de compreender e manipular os seres humanos. Nada ajuda mais o capital na nuvem a melhorar sua eficiência do que a experiência em tempo real de monitorar e manipular o comportamento dos combatentes, dos selecionadores de alvos, dos políticos que autorizam esses selecionadores e, sim, tragicamente, da população alvo de aniquilação.

O júri deve, portanto, estar ciente de que os dispositivos de direcionamento de mira por IA, que hoje maximizam a morte e a destruição em Gaza, na manhã seguinte estarão alimentando os algoritmos da Amazon, do Google ou da Microsoft – algoritmos que nos fazem comprar coisas de que não precisamos nem queremos; que envenenam nossas conversas nas redes sociais; que tornam proletários, motoristas, enfermeiros e trabalhadores de armazéns gigantes cada vez mais despossuídos.

Em outras palavras, apelo ao júri que observe como o que está acontecendo na Palestina – a limpeza étnica e o genocídio em curso – estão totalmente interligados com as formas de exploração e a toxificação do nosso meio social no resto do mundo. Nesse sentido, sim, a nossa liberdade no resto do mundo está completamente interligada com a libertação dos palestinos do colonialismo, da expropriação, do medo e da manipulação.

Para concluir, gostaria de agradecer ao júri por seu trabalho importante e implorar a seus membros que prestem atenção à maneira pela qual a dinâmica capitalista, especialmente aquela que sustenta a reprodução do capital na nuvem, está alimentando e reforçando o genocídio do povo palestino

 

A Reforma como rito: A servidão financeira do Estado brasileiro, por João dos Reis da Silva Júnior

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João dos Reis da Silva Júnior – A Terra é Redonda – 01/11/2025
Sob o véu da eficiência, a reforma administrativa consolida a financeirização do Estado, convertendo o fundo público em ativo e o cidadão em cliente, num gesto que atualiza uma secular colonialidade do poder

A chamada Reforma Administrativa — a PEC 32 de 2020 — chega ao Brasil como eco tardio de um projeto global iniciado nos anos 1980, quando o neoliberalismo converteu o Estado social em Estado gerencial, servil às finanças. Aqui, a modernização chega deformada: enquanto o mundo revê o dogma neoliberal, o país o abraça como se fosse novo. Reformamos não para libertar o Estado, mas para aperfeiçoar sua servidão.

A Constituição de 1988 havia prometido um Estado social; a PEC 32 rompe esse pacto, convertendo o fundo público em ativo financeiro. Sob o pretexto da eficiência, instala-se a lógica da rentabilidade: o servidor torna-se custo, o cidadão, cliente. Como observa Leda Paulani (2017), “a financeirização transforma o fundo público no mais importante meio de sustentação do capital fictício.” A reforma é, portanto, o instrumento jurídico da financeirização — o Estado transformado em gestor do rentismo.

A estabilidade e a função pública cedem lugar a contratos precários e métricas empresariais. O “servidor” é substituído pelo “colaborador”. O Estado republicano se desfaz, e o serviço público torna-se empresa. Eleutério Prado (2021) descreve essa mutação como “subsunção real do Estado ao capital”: o poder público torna-se engrenagem do lucro. Em vez de planejar o futuro, o Estado curva-se ao curto prazo da valorização financeira.

O resultado é um Estado contábil que silencia a linguagem da justiça. Em nome da moralidade administrativa, sacrifica-se o sentido público. A reforma não combate privilégios — combate a própria ideia de política como mediação coletiva. Maria Lúcia Fattorelli (2020) adverte: “não é contra privilégios, é contra o Estado público e contra a democracia.” Ao flexibilizar vínculos e dissolver a estabilidade, a PEC 32 reabre as portas do patrimonialismo sob a máscara da eficiência.

A temporalidade é também perversa: enquanto os centros capitalistas enfrentam a crise de suas reformas, o Brasil as imita com atraso. Reformar-se tardiamente é repetir a história como caricatura. A modernização nunca significou emancipação — sempre significou ajuste. É o que Aníbal Quijano (1992) chamaria de colonialidade do poder: a reprodução da dependência sob o discurso da racionalidade moderna. Assim, o Brasil reforma o que nunca completou — um Estado social — e conserva, com nova linguagem, a velha subordinação.

A reforma administrativa é o rosto burocrático da desesperança. Desmonta-se o Estado democrático de 1988 e instala-se o Estado planilha. O servidor é número; o orçamento, ativo; o cidadão, consumidor. Quando a política se transforma em contabilidade, o futuro se reduz à perpetuação da crise.

O contexto político e a perda da palavra

A reforma administrativa amadurece num Brasil de crise prolongada, onde a democracia se esvazia sob o peso de uma racionalidade fiscal que se apresenta como neutra. Desde 2016, o país atravessa uma sequência de rupturas silenciosas: o impeachment sem crime, o avanço do ultraliberalismo, a militarização da política e a captura das instituições pela austeridade. É nesse ambiente que a PEC 32 surge — travestida de técnica, mas portando um programa de poder: transformar o Estado em empresa e o cidadão em cliente. Não se trata de corrigir excessos, mas de consolidar um regime novo — o da administração sem política.

O discurso da eficiência converteu-se em dogma. Fala-se em enxugar, otimizar, profissionalizar — mas sem dizer a serviço de quem. O verbo público da democracia é substituído pela gramática contábil do mercado. O Estado deixa de falar em direitos, justiça ou igualdade; fala em metas, custos e resultados. Essa mutação da linguagem é o primeiro sinal da perda da política: quando o poder fala o idioma das finanças, o povo deixa de compreender o que o Estado diz. A comunicação republicana é substituída por slogans gerenciais, e o espaço público se converte em vitrine de desempenho. A reforma administrativa é o sintoma desse empobrecimento da palavra pública — um Estado que já não articula o “nós”, apenas administra o “eles”.

Nas palavras de Eleutério Prado, o Estado curvado ao capital não apenas serve às finanças — internaliza sua moral. Essa submissão é também simbólica. As instituições passam a reproduzir a lógica do lucro, naturalizando a desigualdade como preço da estabilidade. A democracia, reduzida a ritual eleitoral, perde substância: os orçamentos são decididos por índices de confiança, as políticas públicas por agências de rating, e a soberania nacional por planilhas de investimento. O Estado deixa de mediar conflitos e passa a zelar pela dívida.

Perde-se a palavra — e com ela, a esperança. A política, esvaziada de conteúdo, é substituída pela gestão. A promessa de 1988, que unia cidadania e justiça social, dissolve-se no pragmatismo fiscal. O Estado deixa de projetar o futuro e se limita a administrar o presente. Como lembra David Harvey (2010), o neoliberalismo “não apenas transforma a economia, mas a própria imaginação do possível.” O Brasil vive essa redução do imaginável: o futuro foi hipotecado. O servidor torna-se descartável; o serviço público, custo; o Estado, operador do curto prazo.

O discurso da responsabilidade fiscal encobre a irresponsabilidade social. O Estado que se curva às finanças renuncia à escuta da sociedade. A reforma administrativa, mais do que um arranjo técnico, é o sintoma de uma democracia que perdeu a voz: fala em eficiência, mas silencia sobre justiça. A política se converte em contabilidade, e o cidadão é reduzido a usuário. Quando o Estado não fala em nome de todos, torna-se apenas administrador da desigualdade.

O peso da história do Estado brasileiro

A atual reforma administrativa é o capítulo mais recente de uma longa história de subordinação. Desde a Primeira República, o Estado brasileiro não se ergueu como expressão da soberania popular, mas como instrumento de conciliação entre elites. A política nasceu tutelada, e a administração pública foi extensão das relações de mando herdadas do escravismo e do patriarcalismo colonial. A burocracia moderna, quando surgiu, não apagou essas marcas — apenas as racionalizou.

Ao longo do século XX, cada reforma do Estado serviu menos à democracia e mais adaptação do capital. A República Velha atendeu às oligarquias cafeeiras; o Estado Novo, à industrialização autoritária; a ditadura militar, ao capital internacional que financiou o chamado milagre econômico. Reformas sempre vieram de cima, em nome da modernização — e essa modernização sempre foi excludente. Ampliou o aparato técnico, mas reduziu a participação popular. A reforma administrativa atual repete o padrão: reforma-se para submeter-se, agora sob a lógica das finanças globais.

A Constituição de 1988 representou um breve respiro: tentou erguer um Estado social num país desigual, reconhecendo o trabalho, a saúde e a educação como direitos universais. Mas as bases econômicas permaneceram intocadas. Nos anos 1990, a abertura financeira e a dependência de capitais externos corroeram a autonomia do Estado e limitaram a promessa democrática. As reformas seguintes, sob o manto da estabilidade, esvaziaram lentamente o pacto social. A reforma administrativa é o desfecho lógico desse percurso: retira do Estado o pouco que restava de seu conteúdo republicano.

Essa continuidade revela o peso da dependência. O Estado brasileiro nasceu subordinado e continua a reformar-se segundo receitas externas. Se antes havia tutela política das potências, hoje há tutela dos mercados. O FMI, o Banco Mundial e as agências de rating exercem a autoridade que antes cabia aos diplomatas e militares estrangeiros. A soberania, aqui, é exercício vigiado. Cada modernização promete autonomia, mas reforça o ajuste permanente à racionalidade do centro.

Essa é a modernização como servidão: o gesto de reformar-se para caber na ordem global. A colonialidade, como definiu Aníbal Quijano, persiste sob novas formas. Já não é o domínio militar, mas o domínio epistêmico e econômico — a convicção de que o progresso virá de fora. Por isso, o Brasil nunca completou o ciclo de construção de um Estado público e democrático. A cada avanço, uma contraofensiva restaura a função original: administrar a desigualdade.

As palavras de Quijano ecoam: a América Latina é o espaço em que o capitalismo mundial se forma como dependente e colonial. O Estado brasileiro, ao reformar-se, confirma essa condição. O discurso da eficiência substitui o da justiça; a modernização, o outro nome da servidão. Reformar é obedecer — e a obediência tornou-se nossa forma de modernidade.

Relações internacionais e a erosão do trabalho

A reforma administrativa brasileira não é um evento isolado, mas parte de uma reestruturação global que ajusta os Estados nacionais às exigências do capital financeiro. Desde a crise de 2008, a austeridade tornou-se linguagem universal, e o trabalho, um obstáculo à rentabilidade. Nos países centrais, desmontaram-se direitos; nas periferias, consolidou-se a dependência. O Brasil insere-se nessa lógica como executor tardio de um mesmo roteiro: o desmonte do público e a conversão da cidadania em risco fiscal.

A América Latina é o laboratório dessa política. A Argentina ilustra o ciclo: endividamento, cortes, deterioração do trabalho, sob o jugo do FMI. O Estado torna-se administrador da crise, e o orçamento, instrumento de punição. Em Portugal, sob a troika europeia, a administração pública foi reformada à imagem dos credores. O resultado é sempre o mesmo: redução dos direitos sociais e precarização do trabalho. O Brasil segue a receita, mas sem amortecedores sociais — aqui, o ajuste é direto e sem anestesia.

A reforma administrativa prolonga o efeito corrosivo das reformas trabalhistas de 2017. Ao flexibilizar vínculos e permitir terceirizações, leva ao setor público a mesma precariedade que já domina o privado. O servidor, antes símbolo da continuidade institucional, converte-se em trabalhador intermitente, sujeito às oscilações do orçamento e à vontade dos governos. O serviço público, antes expressão do coletivo, torna-se prestação eventual. A eficiência, nesse vocabulário, significa desproteção institucional. O Estado abandona a linguagem do direito para adotar a da produtividade.

Essa erosão do trabalho público é também erosão da soberania. O Brasil internaliza as reformas ditadas por organismos multilaterais e agências de risco, adotando o discurso da modernização como espelho burocrático da dependência. Reformar o Estado é, na prática, obedecer. O que em outros países é política doméstica, aqui é destino. A colonialidade reaparece não mais sob a espada, mas sob a forma financeira e epistêmica. O país deixa de pensar — imita. A dependência, agora, é modo de governar.

Ao alinhar-se à austeridade global, o Brasil renuncia ao futuro. A reforma administrativa, ao precarizar o trabalho e desmontar o público, aprofunda a subordinação e consolida a posição periférica no capitalismo mundial. A política perde o gesto emancipador e torna-se técnica de gestão da escassez. O servidor financeirizado — endividado, vulnerável, sem estabilidade — encarna a tragédia nacional: um país que se reforma não para mudar, mas para permanecer dependente.

Dependência para além da economia: Aníbal Quijano e a colonialidade do poder

O pensamento de Aníbal Quijano oferece a chave para compreender o que a teoria da dependência deixou em aberto: a subordinação latino-americana não é apenas econômica — é civilizatória. A modernidade, lembra ele, nasce da colonização da América. A América Latina não é o espaço atrasado da modernidade, mas seu ponto de origem e laboratório. O capitalismo mundial formou-se como sistema colonial, articulando exploração econômica e dominação epistêmica. As independências nacionais não romperam esse vínculo; apenas o traduziram em novas formas. A essa continuidade invisível, Quijano deu o nome de colonialidade do poder.

A colonialidade é o lado escuro e permanente da modernidade: o modo como as hierarquias raciais, de gênero, de saber e de trabalho se naturalizam dentro da ordem global. O trabalho forçado, a expropriação dos povos originários, o patriarcado e o eurocentrismo não são resquícios do passado — são mecanismos ativos do capitalismo mundial. O Brasil é exemplo eloquente dessa persistência. Sua modernização econômica nunca significou ruptura com a lógica colonial, mas sua atualização. A reforma administrativa, vista por essa lente, traduz em linguagem jurídica a subordinação histórica: transforma o Estado em aparelho de reprodução da dependência.

Em Quijano, a dependência deixa de ser mero vínculo externo e torna-se estrutura interna de poder, que organiza as formas de pensar, agir e governar. No Brasil, ela se manifesta em múltiplas dimensões: o Estado que precariza o trabalho é o mesmo que perpetua desigualdades raciais e regionais, e o mesmo que marginaliza os saberes populares. A racionalidade da eficiência administrativa é, no fundo, uma racionalidade colonial, que desqualifica o conhecimento local e exalta o modelo europeu de gestão como o único legítimo. O discurso técnico da reforma é, assim, a nova face do eurocentrismo.

Ao rastrear a formação da modernidade, Quijano mostra que o capitalismo mundial é, desde o início, um sistema global de hierarquias. A reforma administrativa brasileira, ao importar modelos de gestão e racionalidade fiscal, reatualiza essa hierarquia. É o mesmo gesto histórico: acreditar que o progresso virá de fora, que a modernidade é um produto de importação. Essa crença é o núcleo ideológico da colonialidade. Por isso, a reforma administrativa é regressiva e subalterna: copia o discurso da eficiência para perpetuar a dependência.

A crítica de Quijano vai além da economia: propõe uma descolonização do saber. Romper o monopólio epistemológico do Norte é condição para repensar o Estado e suas formas de racionalidade. Aplicada à administração pública, essa crítica exige recuperar o sentido de justiça social e a pluralidade dos saberes. Um Estado descolonizado não seria apenas eficiente — seria capaz de reconhecer a diversidade como fundamento. No Brasil, isso implicaria reconstruir o sentido do público a partir das experiências populares, e não das planilhas do mercado.

A colonialidade do poder, porém, sobrevive justamente por neutralizar essas possibilidades. A reforma administrativa é sua forma contemporânea: uma política de Estado que reafirma, sob o pretexto da modernidade, a velha servidão colonial. Sob a linguagem da gestão, reintroduz a hierarquia; sob a aparência do mérito, legitima a exclusão. O Brasil, ao reformar-se, reafirma a crença de que modernizar-se é imitar — e que pensar por conta própria seria atraso. É o triunfo silencioso da colonialidade epistêmica. Assim, a reforma administrativa não é apenas um programa técnico, mas um gesto de submissão intelectual: revela que a dependência deixou de ser relação econômica e tornou-se forma de consciência. A modernização, nesse contexto, é rito de fé — uma liturgia em que o país oferece seu futuro em troca da aprovação dos mercados.

Estado dependente e financeirizado: Jaime Osorio e Eleutério Prado

As reflexões de Jaime Osorio e Eleutério Prado revelam o ponto de chegada dessa longa trajetória. Ambos concordam que o Estado contemporâneo, especialmente nas economias dependentes, já não é mediador neutro entre capital e trabalho: é parte ativa da acumulação. O Estado financeirizado tornou-se operador da valorização fictícia do capital; seu orçamento, um campo de disputa entre a reprodução da vida e a reprodução do lucro.

Osorio, retomando a tradição marxista latino-americana, entende a dependência como relação estrutural e ativa, forma própria de existência do capitalismo periférico. Nela, o Estado é nacional apenas na forma; em sua função, é estrangeiro, ajustado à lógica da valorização global. O discurso da eficiência, que legitima a reforma administrativa, é o idioma técnico dessa submissão. O Estado atua para garantir a rentabilidade do capital mundializado, não para sustentar a cidadania.

Para Eleutério Prado, a financeirização desloca o centro da acumulação para as finanças. O capital fictício domina a reprodução social, subordinando produção e Estado à lógica rentista. No Brasil, a política fiscal, as reformas e até a linguagem da administração pública refletem essa hegemonia. O fundo público vira ativo, o servidor torna-se custo, o cidadão, variável contábil. O Estado deixa de mediar o conflito e passa a administrar a desigualdade. O que se apresenta como técnica é, na verdade, submissão política: o Estado age como engrenagem da valorização financeira.

Entre Osorio e Prado delineia-se uma convergência: o Estado dependente e financeirizado institucionaliza a servidão sob o disfarce da racionalidade. Se antes o Estado legitimava-se pela promessa de desenvolvimento, agora o faz pela obediência ao mercado. A cidadania cede lugar à confiança dos investidores; a democracia, ao ajuste permanente. A gestão substitui o governo; o cálculo substitui o juízo. O Estado financeirizado é, assim, a forma política da colonialidade econômica — um Estado que governa para fora e administra para dentro.

Essa metamorfose encerra o ciclo da modernização como projeto emancipador. O Estado já não promete progresso; promete estabilidade. O orçamento deixa de ser instrumento de redistribuição e torna-se mecanismo de acumulação financeira. O fundo público, antes pensado como base da universalização dos direitos, é capturado pelo rentismo. A financeirização transforma o Estado em operador da dívida, e a democracia em ritual de legitimação do poder dos mercados.

A convergência entre Osorio e Prado revela o conteúdo da reforma administrativa: ela é o código jurídico da dependência em sua forma financeira. O Estado brasileiro, que um dia se legitimou pela ideia de desenvolvimento, agora o faz pela austeridade. Modernizar, aqui, significa adaptar-se ao império das finanças. O gestor substitui o cidadão; o orçamento substitui o projeto; o ajuste substitui a imaginação. O Estado financeirizado é o espelho da dependência: reflete o capital global e apaga a sociedade que o sustenta.

Como advertia Quijano, a modernidade latino-americana é inseparável de sua colonialidade. Osorio e Prado completam essa crítica, mostrando que, no século XXI, essa colonialidade assume a forma da racionalidade financeira. O Brasil reforma-se sem projeto, racionaliza-se sem justiça e moderniza-se sem autonomia. O Estado converte-se em administrador da escassez, e a política em contabilidade. O futuro se reduz a uma equação fiscal. Enquanto o fundo público for tratado como ativo e o cidadão como passivo, a emancipação continuará adiada.

Conclusão

A reforma administrativa brasileira expressa mais que uma reorganização institucional: é o sintoma final de um ciclo histórico e da persistência de um padrão de subordinação que se reinventa a cada modernização. Sob o discurso da eficiência e da moralidade fiscal, o Estado se desfaz como espaço público e se consolida como instrumento de valorização financeira. A política cede lugar à gestão; a cidadania, à contabilidade; o futuro, à administração da crise.

Desde a República, o Brasil acostumou-se a reformar-se de fora para dentro. O Estado sempre se modernizou segundo as exigências do capital — nacional ou estrangeiro —, raramente a partir das demandas da sociedade. A reforma atual é a versão financeirizada dessa tradição: reconfigura o Estado como empresa, esvazia o sentido do serviço público e transforma o servidor em peça fiscal. O Estado, que deveria mediar o comum, passa a gerenciar a escassez.

A dependência, que antes se explicava pela economia, agora se reproduz pela linguagem. Como ensinou Aníbal Quijano, a colonialidade do poder não desapareceu: apenas trocou de vocabulário. Hoje, a submissão se expressa em jargões de gestão, planilhas de eficiência e dogmas de austeridade. O Brasil importa racionalidades e as toma como destino. Reformar é crer que a obediência técnica substitui o pensamento político.

Jaime Osorio e Eleutério Prado mostram que o Estado contemporâneo, especialmente nas economias dependentes, tornou-se parte do circuito de acumulação financeira. O Estado financeirizado é aquele que perdeu o poder de decidir sobre si e passou a operar como agente da valorização fictícia do capital. No Brasil, ele é dependente duas vezes: financeiramente, das exigências do mercado global; epistemicamente, das ideias que o convencem de que essa dependência é inevitável.

Reformar-se, nesse contexto, significa ajustar-se ao império das finanças. O fundo público, que poderia sustentar a vida, é capturado pelo rentismo. O servidor, que deveria garantir continuidade institucional, é transformado em custo. A democracia, privada de conteúdo social, torna-se rito. A reforma administrativa, ao consolidar esse processo, marca o ponto em que o Estado abdica da promessa de universalidade e se curva definitivamente ao cálculo do mercado.

O desafio, portanto, é epistemológico e político. Repensar o Estado exige descolonizar o pensamento, romper com a naturalização da dependência e recuperar a centralidade do trabalho e da vida. Enquanto a eficiência substituir a justiça e a gestão ocupar o lugar do cuidado, o Estado continuará a reproduzir a dominação que o funda. A verdadeira reforma não será administrativa, mas histórica: aquela que devolva à palavra pública o poder de nomear o comum e à política a capacidade de criar futuros.

O Brasil que um dia sonhou com o desenvolvimento agora administra a própria impotência. O desafio é reaprender a sonhar — não com o progresso ditado de fora, mas com a emancipação que nasce do próprio povo.

João dos Reis Silva Júnior é professor titular do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Autor, entre outros livros, de Educação, sociedade de classes e reformas universitárias (Autores Associados).

Referências

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A direita convida à política do medo, por Caíque Azael

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Sobram sinais de que no Rio houve chacina planejada, para levantar governador que, decaído, flerta apenas com o medo. Direita se agarrará à brutalidade das armas, consolo que lhe resta. Para outro Brasil, é preciso propor outra Segurança

Caíque Azael – OUTRAS PALAVRAS – 29/10/2025

O Rio de Janeiro viveu mais uma chacina nesta terça-feira (28/10). A operação mais letal da história do estado, até o momento. Há notícias que mencionam ao menos 110 pessoas mortas e mais de 2.500 agentes da polícia civil e militar envolvidos, tanto do BOPE como da CORE. Não por acaso, um ano antes das eleições para o cargo de governador. Assim como em 2021, quando vivemos uma das maiores chacinas na favela do Jacarezinho, com dezenas de execuções, houve o alastramento do pânico moral em toda a população, fato que se conecta diretamente com a abertura de um período de campanhas para a sucessão do governo.

O governador Cláudio Castro (PL), em franca disputa com o governo federal petista, tentou transformar o debate da chacina que ele conduziu na cidade em palanque para atacar um suposto abandono do presidente Lula (PT) diante da situação do Estado. A política do medo ocupou as ruas, em uma megaoperação que mais parecia um espetáculo, envolvendo milhares de trabalhadores das forças de segurança, com veículos blindados (mais conhecidos como Caveirões), helicópteros sobrevoando casas, escolas e serviços de saúde fechados, vidas sob cerco. Para além dos complexos do Alemão e da Penha, diretamente envolvidos nas operações nesta terça-feira, há relatos de retaliações por parte das facções em toda a região metropolitana, com fechamento de vias e saques em comércios.

Segurança pública é o tema que mais os brasileiros, e não por acaso aparece recorrentemente na agenda dos gestores das grandes cidades e estados, em uma certa confusão sobre a atribuição de cada ente do pacto federativo. Um problema que temos observado é que muitos vendem mais violência como solução: na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, o Prefeito Eduardo Paes (PSD) decidiu armar a guarda municipal, treinando-a militarmente, em um ato que contraria as principais indicações de pesquisadores e ativistas na área da segurança pública. Afinal, isso reproduz a lógica equivocada de que o aumento da força policial ou armamento garante segurança, quando, na prática, amplia a violência, reforça desigualdades e expõe ainda mais a população negra e periférica ao risco de morte. No caso da capital fluminense, o armamento da guarda significa maior repressão aos trabalhadores informais e a completa falência de um modelo de gestão que, incapaz de lidar com os conflitos urbanos cotidianos por meio de esforços intersetoriais, decide incrementar as ontologias militarizadas de governo.

Sem dúvidas, o Rio de Janeiro vive uma grande crise na segurança pública, que merece ser analisada a partir de esforços multidimensionais, intersetoriais e de longo prazo. Pesquisas e experiências nacionais e internacionais mostram que segurança pública efetiva se constrói por meio de prevenção, com políticas sociais, investimento em educação, saúde e infraestrutura comunitária, não com fuzis, blindados e operações espetaculares que transformam o medo em espetáculo. A experiência da Colômbia, por exemplo, demonstra como a redução da violência integra um programa articulado de inclusão social, diálogo comunitário e fortalecimento de instituições locais que promovam o acesso a direitos básicos e a reconstrução do tecido social. Isso mostra que segurança pública é, antes de tudo, um projeto de cuidado coletivo e prevenção, e que políticas baseadas na repressão e na espetacularização da violência só perpetuam ciclos de morte e medo, aprofundando desigualdades e fragilizando a cidadania.

No Rio de Janeiro, na contramão, vemos a intensificação de uma certa agenda de guerra urbana, coordenada pelo Estado, como parte das táticas de governança da extrema-direita, com o terror sendo o principal alicerce de um projeto ultraliberal de retirada de direitos da população. Por um lado, intensifica-se a violência de Estado nas favelas e periferias e, por outro, violam-se direitos dos trabalhadores.

Aliás, ao abordar o episódio de ontem, a mídia hegemônica deveria usar o nome adequado para se referir ao ocorrido. Não é operação policial, é chacina. E, talvez, a maior da história do país.

O endurecimento de práticas violentas de Estado ocupa um lugar central nessa agenda de retirada de direitos, como nos lembra Wacquant (em “Punir os Pobres”, livro publicado em 2001), pois a criminalização de pobreza e a militarização das políticas urbanas reforçam a lógica de exclusão social necessária para avançar agendas ultraliberais. Como elucidado pelo autor, o Estado neoliberal desloca seu eixo da proteção social para o controle penal, punindo os pobres em vez de protegê-los. O que se vê, ao longo do dia, são milhares de trabalhadores desesperados sem ter como voltar para suas casas, sem notícias precisas de suas famílias e dezenas de pessoas executadas, inclusive trabalhadores das forças de segurança. O pano de fundo das grandes operações policiais, que se inscrevem em uma agenda de extermínio das populações negras no Brasil, também se relaciona com a desarticulação de quaisquer possibilidades de organização da população, que vive sob cerco, sem direitos e sem perspectivas de uma vida digna e tranquila. Nesse cenário, a segurança pública deixa de ser uma garantia cidadã e se converte em método de controle social, eleitoral e econômico.

O resultado concreto é a morte em escala industrial e o aprofundamento de uma lógica de governança pelo terror. Uma política que substitui direitos por tiros, e cidadania por medo. Qual é o espaço para a esperança em um cotidiano marcado pela suspensão total de direitos — até mesmo do direito de sonhar? Essa militarização crescente, longe de resolver qualquer problema de segurança, amplia os abismos social e racial do Rio de Janeiro. Enquanto as favelas se tornam palco de guerra, outros espaços da cidade assistem, paralisados, ao espetáculo que naturaliza o extermínio como rotina. Será que os moradores de Ipanema viveram as mesmas preocupações que os moradores do Complexo da Penha?

O padrão da chacina como política de Estado

Pesquisas reunidas pelo Dicionário de favelas Marielle Franco (Fiocruz) demonstram que o Rio de Janeiro vive há mais de três décadas sob a recorrência de chacinas que se repetem com a mesma lógica, as mesmas vítimas e a mesma impunidade. O verbete chacinas favelas no Rio de Janeiro identifica esses episódios como parte de um padrão estrutural de atuação violenta do Estado, voltado especialmente contra populações negras e periféricas. Casos como Acari (1990), Candelária (1993), Vigário Geral (1993), Borel (2003), Complexo de Alemão (2007) e Jacarezinho (2021), entre tantos outros, revelam não eventos isolados, mas uma política contínua de extermínio, sustentada por práticas de militarização e ausência de responsabilização. A sucessão dessas tragédias evidencia que as chacinas não são desvios ou excessos pontuais, mas expressões permanentes de um projeto de segurança pública que naturaliza a morte nas favelas como forma de governo.

A continuidade da letalidade, mesmo diante de decisões judiciais que tentaram restringir operações (como a ADPF 635, conhecida como ADPF das favelas), revela a falência da política de segurança pública e a fragilidade da capacidade estatal de controlar suas próprias forças. Não se trata de uma polícia “fora de controle”; trata-se de uma política que, em muitos momentos, escolhe não controlar.

Enquanto a retórica da guerra ao tráfico insiste em transformar favelas em campos de batalha, o que se observa cotidianamente é que as operações letais e descoordenadas pouco alteram a estrutura do crime organizado. Estudos promovidos por instituições como o Grupo de Estudos dos Novos ilegalismo (GEN) ou pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) têm mostrado que as facções e milícias não se sustentam apenas pela venda de drogas nas comunidades, mas por redes complexas de circulação de armas, lavagem de dinheiro e corrupção institucional que operam fora delas, nas fronteiras, nos portos, nas instituições financeiras e nas próprias forças de segurança do Estado. Sufocar as favelas é enxugar gelo: a cada invasão violenta, o Estado reorganiza o próprio terreno da criminalidade, mantendo toda a população sitiada e produzindo medo e insegurança em larga escala, enquanto os verdadeiros fluxos do crime permanecem intocados.

Uma alternativa à política de extermínio passa por recolocar a inteligência e a coordenação entre os diferentes entes federativos no centro da estratégia de segurança pública. Aqui, não convoco a inteligência como uma entidade abstrata, mas justamente como um ator capaz de produzir investigações e métodos de trabalho que sejam menos letais e mais eficazes. Não é possível viver em um dos estados que mais gasta dinheiro com segurança pública (estudos apontam que o RJ é o estado que mais investe nas policiais no Brasil) e, ainda assim, não conseguir apontar horizontes de resolver o problema que se coloca para a população, sem combater os grupos civis armados vinculados ao tráfico de drogas ou aos grupos milicianos que também dominam grande parte dos territórios. Facções e milícias não são o oposto do Estado, mas se relacionam com esse modelo contemporâneo de governar a vida, como efeito de redes que emergem das brechas da corrupção, das desigualdades, da especulação imobiliária e da própria política de segurança pública.

As operações mais eficazes em apreensão de fuzis, drogas e munições, inclusive as que levaram à prisão de agentes como Ronnie Lessa (envolvido na execução da vereadora Marielle Franco, do PSOL), foram conduzidas sem tiros, com base em investigação, cruzamento de dados e cooperação entre órgãos. Por que não seguir sempre assim? Não foram em favelas, tampouco exigiram blindados ou helicópteros. Mostraram, na prática, que o enfrentamento à criminalidade organizada depende muito mais de método e integração do que de uma afirmação midiática de força. Esse contraste revela que o modelo militarizado não é a via mais eficaz, mas é a via que produz visibilidade política. Nossa segurança precisa de coordenação técnica e nitidez política do que deve ser enfrentado — e não de espetáculos de poder. A administração seletiva dos ilegalismos, portanto, permite que as engrenagens lucrativas do crime continuem rodando, enquanto vende soluções falsas para a segurança, associando pobreza e criminalidade em leituras modernas do positivismo criminológico.

O faroeste é terra sem lei (e não tem preceitos fundamentais)

As megaoperações em favelas do Rio de Janeiro já foram objeto de debate até mesmo no Supremo Tribunal Federal, por força da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, protocolada pelo PSB em conjunto com dezenas de movimentos sociais e instituições com atuação em favelas. A ADPF das Favelas, proposta em 2019, indicou a gravidade das operações e requereu limites concretos para incidir sobre a escalada de letalidade policial no estado. Entre as decisões preliminares do STF, estava o uso obrigatório de câmeras corporais pelos policiais, aviso prévio ao Ministério Público antes de operações, preservação das cenas do crime e restrições ao uso de helicópteros como plataforma de tiros, atos que reduziram temporariamente as mortes, sobretudo no contexto da pandemia de coronavírus.

Em 2025, quando concluiu o julgamento da ação, o Tribunal homologou parcialmente o plano do Estado de Rio de Janeiro para redução de letalidade policial, afrouxando certas restrições às operações policiais: por exemplo, foi autorizada a retirada da exigência de excepcionalidade para incursões nas favelas e foi permitida uma maior atuação dos helicópteros e blindados (os Caveirões) em operações rotineiras. Avanços normativos (como uso de câmeras e informes ao Ministério Público) sem monitoramento e responsabilização real tendem a se traduzir em letra morta.

O Estado do Rio não fornece dados consistentes e detalhados para justificar as operações, justamente porque não há um desenvolvimento com inteligência que as justifique. Não há fiscalização externa efetiva para dizer se helicópteros e blindados são usados conforme regras, ou se os protocolos de preservação de cena são realmente seguidos, pois a decisão final do STF não discrimina protocolos para tais ações ou responsáveis por elas. As próprias operações seguem sob justificativas de combate ao tráfico, como foi nesta terça-feira, que podem driblar a aplicação das regras.

Ainda assim, o governador parece preferir viver em um Estado sem lei, já que tem tratado a ADPF como problema, mesmo com tantas flexibilizações depois da decisão final do STF. Essa postura sinaliza que, para o projeto de poder atual, a lei não serve como mediação, mas como um entrave. O “faroeste” que ele prefere não é apenas terra sem lei; é um território onde a cidadania é permanentemente suspensa para que a governança pelo terror possa operar livremente. Não por acaso, o líder do governo na Alerj, deputado Rodrigo Amorim (PL), propôs que o estado voltasse a pagar a famosa ‘gratificação faroeste‘, que, na prática, instituiria um bônus financeiro para policiais que promovessem a neutralização de “criminosos” durante operações, além da apreensão de armas de grosso calibre.

Essa emenda ao projeto de reestruturação da Polícia Civil, aprovada pela Alerj em setembro, significaria a legalização da política de extermínio e a transformação da letalidade em meta de trabalho. Ela pretendia institucionalizar um incentivo financeiro para a lógica do abate que a própria ADPF 635 tentava conter.

O governador, pressionado pelos movimentos sociais, STF e pelo Ministério Público, vetou a emenda na semana passada (23/10). Contudo, a justificativa oficial para o veto não se baseou na defesa da vida ou nos preceitos constitucionais, mas em supostas questões técnicas e financeiras, ligadas ao Regime de Recuperação Fiscal. Isso expõe a controvérsia que tratamos aqui: há um grupo político que tenta institucionalizar um mundo sem leis, com incentivos discursivos e até mesmo financeiros para que mais mortes sejam operadas pelo Estado. Essa encenação compõe um roteiro político. Em entrevistas, o governador preferiu atacar publicamente a ADPF, creditando o seu fracasso como gestor aos mecanismos de controle da barbárie, em uma certa articulação entre intervenções na cidade e militarização do medo, das favelas ao asfalto.

Aumentar as mortes para aumentar os votos? Outro mundo precisa ser possível

Por enquanto, as esperanças estão dispersas entre tantas operações. O que precisamos entender, nesse momento, é que a recorrência das chacinas em períodos eleitorais não é coincidência. Nos últimos anos, grandes intervenções militarizadas de alta letalidade se intensificaram em momentos de disputa política. Como esquecer a intervenção militar no Rio em 2018, logo antes de se escancarar os portões do inferno que possibilitaram a eleição de Bolsonaro e Wiztel? Como esquecer cada operação policial, sempre quebrando recordes de letalidade, ao mesmo tempo em que os grupos civis armados (tanto tráfico como milícias) apenas aprofundam seu poderio no Estado?

A cada ano, a retórica da guerra é reativada porque ela tem a capacidade de reposicionar lideranças políticas diante da opinião pública. Mesmo com a guerra constante, nunca vivemos um período real e duradouro de contenção das dinâmicas do crime organizado por aqui. O pânico moral, pelo contrário, é uma ferramenta de marketing de longa duração: a violência é apresentada como demonstração de força e controle — com megaoperações, enquanto a insegurança cotidiana produzida por essa política ineficaz é transformada em justificativa para o autoritarismo do Estado. Essa tática, característica de um modo bolsonarista de fazer política, reforça o medo como linguagem de governo e alimenta o ciclo que torna a morte uma cena pública legitimada.

Não podemos naturalizar a narrativa de Claudio Castro de que os direitos humanos seriam obstáculos à segurança. O governador diz que “não acredita que segurança se faz politizando”, mas politiza quando segue o padrão de governo no qual o direito de viver é substituído pelas bonificações por atirar.

Que a gente não se esqueça, contudo, que há frestas de resistência: grupos de mães, movimentos e coletivos constroem lutas por outro mundo, com diversas ações de enfrentamento à violência de Estado. É preciso transformar essa potência em projeto e disputar o sentido da segurança pública.

Superar a lógica da morte exige deslocar o debate da segurança pública do campo da violência para o campo dos direitos humanos. Uma política de segurança cidadã precisa caminhar junto de políticas de educação, cultura, saúde e infraestrutura. Segurança se constrói com confiança, cuidado e proteção, não com Caveirão e fuzil. Isso implica relocalizar a presença do Estado nas favelas, construindo esperança de que a vida pode ser melhor.

Por que Brasil virou refém de Lula para preservar democracia, por Marcio Aith

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Marcio Aith, Advogado e jornalista, foi secretário de comunicação do Supremo Tribunal Federal e do Estado de São Paulo (governo Alckmin). Foi também correspondente da Folha em Tóquio e Washington

Folha de São Paulo, 02/11/2025

[RESUMO] Na Indonésia, Lula encerrou o teatro: disputará novamente a Presidência em 2026, aos 81 anos. Há quatro décadas ele eclipsa a política brasileira, renascendo das cinzas a cada crise — da prisão ao encontro com Trump na Malásia. Mas na sombra dele cresce apenas o deserto político, sem alternativas, que ele mesmo ajudou a criar.

Quando Lula sentou-se ao lado do turbulento Donal Trump em Kuala Lumpur, no domingo passado, o encontro tinha todos os ingredientes do impossível. Três meses antes, Washington havia imposto tarifas de 50% sobre produtos brasileiros e sanções a ministros do Supremo Tribunal Federal. A crise bilateral era a mais grave em dois séculos de relações diplomáticas.

E ali estava Lula —perseguido, preso, com processos anulados pelo STF, reeleito— conversando de igual para igual com Trump, que declarou admirar a carreira política do brasileiro, eleito três vezes presidente da República.

A cena na Malásia é a síntese perfeita da extraordinária capacidade de sobrevivência política de Lula. Ele renasce das cinzas. Da prisão em Curitiba ao Palácio do Planalto em menos de cinco anos. Do político com processos judiciais ao estadista que negocia com potências. Essa capacidade de renascimento, porém, tornou-se também sintoma de uma debilidade nacional: nossa democracia não consegue produzir alternativas ao seu protagonista mais longevo.

Poucos dias antes, em Jacarta (Indonésia), Lula havia encerrado qualquer suspense sobre 2026. “Eu vou completar 80 anos, mas pode ter certeza que eu estou com a mesma energia de quando tinha 30 anos. Vou disputar um quarto mandato no Brasil”, declarou ao lado do presidente indonésio Prabowo Subianto. E completou, com uma franqueza reveladora: “Estou preparado para disputar outras eleições.”

Com essa frase, acabou o falatório mais previsível da política brasileira. Em 2022, o mesmo Lula dizia: “Quando chegar 31 de dezembro de 2026, quando a gente entregar esse mandato para outra pessoa, o país estará bem”.

Pois bem. Chegou o segundo ato. Prometeu mudar tudo e mudou de ideia. Jurou sair, mas só jurou. A indecisão foi teatro. O final, previsível.

Ao confirmar que disputará um quarto mandato, Lula encerra o teatro da dúvida e revela um país incapaz de substituí-lo. Neste ponto, o autor se vê obrigado a corrigir o próprio texto: não se trata de disputar um quarto mandato, mas de uma sétima tentativa presidencial. Lula foi candidato em 1989, 1994, 1998, 2002, 2006, 2022 e agora será novamente em 2026. Antes disso, foi eleito deputado federal em 1986 e derrotado ao governo de São Paulo em 1982.

Ou seja: há 43 anos Lula é candidato a alguma coisa. E talvez o país tenha se acostumado tanto a vê-lo disputar que, quando vota nele, parece reencenar o mesmo ato.

A questão, portanto, não é a idade, mas a longevidade. Não a biológica, mas a política: o fato de o Brasil, quatro décadas depois, ainda depender do mesmo nome para salvar a democracia, articular esperança, poder e estabilidade. A política brasileira parece um carrossel: gira, mas o eixo continua sendo Lula.

Nascido em 27 de outubro de 1945, ele chegará ao primeiro turno de 2026 com 80 anos e 11 meses; ao segundo, com 81. Nenhum presidente em democracia consolidada chegou tão longe em idade e, sobretudo, em tempo de influência contínua. Mas não é o corpo que preocupa. É o vazio em volta.

A energia de Lula aos 80 é, de fato, notável. Viajou 22 horas de avião até a Indonésia. Participou de cerimônias, firmou acordos comerciais, ganhou uma festa de aniversário antecipada com o presidente Subianto (que fez 74 anos dias antes). Seguiu para a Malásia. Reuniu-se com Trump por 50 minutos. Negociou tarifas, defendeu ministros do STF, propôs mediação na Venezuela. Voltou ao Brasil após uma semana de agenda intensa.

Não há sinais de fadiga cognitiva. Não há perda de comando. Lula mantém o instinto político, o carisma, a capacidade de improvisação —que, de tão eficiente, às vezes tropeça na autoconfiança e comete gafes, como a de dizer que traficantes são vítimas de usuários. Sua lucidez aos 80 anos supera a de muitos líderes mais jovens.

Individualmente, tanta vitalidade é admirável. Coletivamente, nosso problema é a ausência de energia ao redor dele. Lula persiste porque o sistema não produziu alternativas —e ele mesmo não permitiu que existissem.

Em 2010, obrigado a deixar o cargo, Lula tinha capital político para eleger qualquer um. Havia quadros preparados, lideranças jovens, ministros de talento. Ele escolheu Dilma Rousseff, uma técnica sem trajetória eleitoral, com origem em outro partido.

O objetivo era claro: não o ameaçar. Dilma não foi projetada para liderar, mas para guardar o lugar até o retorno do chefe. Lula quis voltar em 2014? Os que o conhecem de perto dizem que sim. Não voltou por resistência da própria Dilma, em um episódio nunca satisfatoriamente esmiuçado por jornalistas, historiadores e cientistas políticos.

Fernando Haddad, desprezado em 2010, só virou alternativa na missão impossível de 2018, quando Lula estava preso, e Bolsonaro varreu o país. E Haddad, agora, carrega pedras no Ministério da Fazenda. É assim que Lula move as suas peças

(Aqui, o autor se vê obrigado a corrigir novamente o próprio texto. Mesmo da prisão, em 2018, Lula se lançou candidato, mas foi barrado pela Justiça Eleitoral. O que leva a oito o número de suas tentativas presidenciais.)

Dilma não foi herdeira, foi interregno. Haddad virou preposto. Gleise Hoffmann é bedel, não alternativa. Nenhum sucessor sobreviveu dentro do PT. O partido envelheceu sob a sombra do homem que o fundou. E ali ficou. Na sombra. Houve várias oportunidades de forjar novas lideranças ao longo de décadas. E 2010 talvez tenha sido o momento mais adequado para uma verdadeira renovação.

Em 2022, Lula literalmente segurou a democracia pelo colarinho. Por pouco. Mas 2026 será outra história. O golpismo bolsonarista, que venceu, foi contido e punido. O próximo pleito promete correr dentro da normalidade democrática. A direita terá seu nome. À esquerda, só há Lula. Ao redor dele, o deserto político que ele mesmo ajudou a criar.

E sempre há uma justificativa para Lula concorrer. Desta vez, é o avanço da direita no eleitorado. Só ele poderia se contrapor a essa onda. Só ele manteria a esquerda no poder. A lógica se renova a cada ciclo, mas o protagonista permanece o mesmo.

A crítica, repito, não é ao octogenário candidato, mas ao sistema político que o torna indispensável, ao partido que se dissolveu nele e ao país que não soube criar alternativas.

Lula é populista. E isso não é ofensa, é constatação. Dispenso o aval acadêmico: a palavra tem valor descritivo, não depreciativo. Quando “Vem fazer o L” substitui programa partidário, fica óbvio que não há mais partido, apenas um homem.

O homem que fala “como o povo” há décadas aprendeu a ser o próprio povo. Seu populismo é democrático, performático, conciliador e centrado em si. Fala aos de baixo contra os de cima, encarna o injustiçado que venceu, transforma a biografia em mito. Promove inclusão social sem romper o pacto dos privilegiados: rentistas, conglomerados erguidos por crédito estatal.

Seria injusto, porém, tratar Lula como aberração. Os modelos de representação mudaram no mundo todo, como bem demonstrou o cientista político francês Bernard Manin, falecido em novembro de 2024. Segundo ele, as democracias contemporâneas deixaram de ser de partido para se tornarem “democracias de público”.

Nelas, os eleitores não se guiam mais por ideologias ou programas coletivos, mas por vínculos afetivos com figuras carismáticas. A política virou espetáculo, e o voto, ato de identificação pessoal. O líder passa a representar o sentimento difuso da maioria —não uma plataforma, mas um personagem.

Nesse ambiente, o populismo não é desvio nem destino: é uma possibilidade constante. Surge quando a representação política se confunde com a performance, e o público transforma o político em protagonista. A democracia de partido deu lugar à democracia do público.

Há outro fator a se registrar. Lula também é filho legítimo do sistema que o cerca, o mesmo que manteve oligarquias no poder por décadas. Alckmin governou São Paulo durante 12 anos no período de hegemonia tucana; Sarney controlou o Maranhão por quase meio século; ACM transformou a Bahia em dinastia; Maluf, Quércia, Garotinho e Barbalho são variações regionais do mesmo padrão. No Brasil, o poder raramente troca de mãos.

Lula, portanto, não inventou a perpetuação, apenas a democratizou. Construiu sua longevidade no voto direto, na popularidade genuína e no carisma pessoal. No entanto, o resultado é o mesmo: a incapacidade do sistema de produzir renovação.

E não apenas nas eleições majoritárias. Como observa o cientista político Antonio Lavareda, o voto proporcional em “lista aberta” é, na prática, uma lista desordenada, um convite para escolher rostos, não ideias. O modelo transforma cada candidatura em uma franquia pessoal de poder. O voto deixa de representar um projeto coletivo e vira ativo privado.

As legendas, dominadas por seus donos de voto, perdem a capacidade de se renovar. O resultado é um Congresso imóvel, de caciques vitalícios e reeleições sem fim. É nesse terreno que o populismo prospera —e que Lula se torna, mais do que líder, uma instituição.

Democracias tendem a se apegar a líderes que parecem insubstituíveis, como os Estados Unidos fizeram com Franklin D, Roosevelt, eleito quatro vezes seguidas entre 1933 e 1945. Sua permanência no poder foi tamanha que o país criou, em 1951, a 22ª Emenda, limitando todos os presidentes a dois mandatos. A medida nasceu do medo de ver uma democracia transformar-se em monarquia eletiva.

O Brasil, ao permitir a reeleição em 1997 através da Emenda Constitucional nº 16, seguiu caminho oposto. Acreditou que a limitação a dois mandatos consecutivos, ainda que com a possibilidade de retorno depois de um interregno, seria suficiente para evitar a perpetuação.

Ignorou, porém, a lição que o caso Roosevelt havia ensinado: um líder não precisa de golpe ou fraude para se perpetuar. Bastam a popularidade e a falta de alternativas. Foi exatamente isso que os americanos temeram: não o abuso do poder, mas a dependência em relação ao líder.

Lula, como Roosevelt, não governa pela força, mas pela ausência de quem possa substituí-lo. E, como Roosevelt, tornou-se o fiador de uma estabilidade que, também, esconde a fragilidade das instituições. A diferença é que os americanos aprenderam a lição em 1951. O Brasil ainda a adia.

Lula, aos 81, será o mais velho candidato de uma democracia estável. E o mais longevo líder popular da história do país. Getúlio Vargas, é verdade, governou por mais tempo —18 anos e meio, entre 1930 e 1954. Mas desses, apenas seis anos e meio foram em governos democráticos (1934 a 1937, eleito pela Assembleia Nacional Constituinte, e 1951 a 1954, dessa vez pelo voto popular). Oito anos foram de ditadura declarada, no Estado Novo (1937-1945). Quatro anos, de governo provisório sem eleições (1930-1934), após tomar o poder pela Revolução de 1930. Getúlio construiu sua longevidade também pela força, pelo golpe, pela supressão do voto.

Lula, ao contrário, construiu a sua exclusivamente pelo voto direto, pela popularidade genuína, pela capacidade de se reinventar dentro das regras democráticas. É exatamente isso que torna sua longevidade ainda mais emblemática: não apenas o tempo no poder impressiona, mas sobretudo os 43 anos de influência política ininterrupta, de candidaturas sucessivas, de presença constante no imaginário nacional.

Um feito admirável e, ao mesmo tempo, um sintoma alarmante: o de uma nação que confunde continuidade com futuro. A democracia envelhece quando o futuro é tratado como risco, e o passado, como zona de conforto.

O encontro com Trump provou que Lula ainda tem energia, sagacidade e presença de palco. Mas também revelou algo mais profundo: o Brasil, após 43 anos, ainda precisa dele para se fazer ouvir no mundo. O Brasil não envelheceu com Lula. O Brasil envelheceu por não conseguir sair de dentro dele.

 

Contas externas testam limites da economia, por Samuel Pessoa

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Samuel Pessoa, Pesquisador do BTG Pactual e do FGV IBRE e doutor em economia.

Folha de São Paulo, 02/11/2025

A formulação da política econômica nos governos petistas faz com que a economia teste os limites da capacidade produtiva.

Na área externa, há uma clara piora recente no balanço de transações correntes. Neste, são contabilizadas todas as transações entre residentes e não residentes de um país.

Há quatro contas: balança comercial de mercadorias; balança comercial de serviços; balanço das rendas primárias; e da renda secundária, antigamente conhecida como transferências unilaterais.

Os serviços correspondem a turismo, fretes, aluguéis de equipamento, streamings, uso de nuvens etc. A renda primária corresponde à remuneração dos investimentos que brasileiros fizeram no exterior, líquido da remuneração dos investimentos de estrangeiros no Brasil. Trata-se dos juros pagos e dividendos distribuídos. A renda secundária corresponde às remessas de imigrantes aos seus familiares, doações e ajuda internacional, além de transferências do país para o custeio das agências multilaterais.

Nos 12 meses terminados em setembro, o saldo das transações correntes foi negativo em US$ 79 bilhões. Representa uma piora de US$ 57 bilhões sobre os 12 meses terminados em fevereiro do ano passado. A deterioração em pouco mais de um ano e meio impressiona. Como proporção da economia, saímos de um déficit de 1%, em fevereiro de 2024, para 3,6% do PIB, em setembro passado.

A piora de US$ 57 bilhões das transações correntes divide-se em US$ 45 bilhões para a balança de mercadorias, US$ 9 bilhões para a balança dos serviços e US$ 3 bilhões de piora para as duas balanças de rendas. A balança de mercadorias responde por 79% da piora (45/57).

Um sinal claro de que a economia testa os limites de sua capacidade, isto é, os limites da demanda sobre a oferta, é que somente a elevação das importações foi de US$ 37 bilhões, ou 65% da piora de US$ 57 bilhões das transações correntes. O valor das importações elevou-se muito em um período no qual os preços dos bens importados caíram. O que indica que a piora deveu-se à elevação das quantidades importadas. De fato, elas responderam, de fevereiro de 2024 até setembro passado, por uma piora de US$ 55 bilhões.

A elevação das importações é sinal de que a oferta doméstica não tem conseguido atender à demanda. Como tenho escrito neste espaço, a elevada inflação de serviços é outro sinal do excesso da demanda sobre a oferta. A maior parcela dos serviços é de oferta doméstica e, para estes, o excesso de demanda sobre a oferta se transforma em elevação do preço doméstico, isto é, em inflação.

Esperamos que a desaceleração em curso da atividade irá reduzir as importações e melhorar o saldo das transações correntes em 2026.

De qualquer forma, o saldo tão negativo das transações correntes, 3,6% do PIB, como vimos, expressa a característica básica de nós sermos uma economia de baixa poupança. Com superávit comercial na balança de petróleo e derivados de US$ 33 bilhões em 2025, deveríamos ter conta-corrente bem melhor. O mesmo se aplica às contas públicas: com a contribuição para as contas da União das receitas de impostos ligados ao setor petrolífero de R$ 261 bilhões, deveríamos observar superávit primário nas contas públicas.

Já estamos produzindo 4 milhões de barris por dia de petróleo. Na prática, o bilhete premiado das reservas petrolíferas do pré-sal está virando consumo corrente. Não é necessariamente ruim, mas contribui para perpetuar nossa mediocridade.

 

O custo econômico da violência, por Bráulio Borges

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Bráulio Borges, doutorando em economia da FGV EESP, mestre em economia na FEA-USP, é diretor da LCA Consultores e pesquisador-associado do FGV Ibre.

Folha de São Paulo, 31/10/2025

A megaoperação policial que deixou mais de 120 mortos no Rio de Janeiro reacende um debate crucial para o Brasil: qual é o custo real da violência e da criminalidade para nosso desenvolvimento econômico e social? Esse episódio ilustra de forma bastante dramática um problema que deve estar custando ao Brasil pontos preciosos de crescimento econômico, entre outros impactos deletérios.

Há diversas métricas para medir o grau de violência e a criminalidade. Um dos mais acompanhados é o número de homicídios cometidos a cada 100 mil habitantes. No caso do Brasil, esse indicador vinha em tendência de alta desde o começo dos anos 1990, atingindo um pico em 2017, com cerca de 31 homicídios por 100 mil habitantes.

Desde então, houve um recuo expressivo desse indicador, inclusive em 2023 e 2024, chegando a cerca de 20 no ano passado (e continua caindo em 2025). Trata-se de uma queda expressiva, de quase 40% ante 2017. Não obstante, o patamar da violência em nosso país ainda é muito elevado: a média mundial desse indicador é de cerca de 5 homicídios.

Qual o custo econômico desse desvio tão elevado da taxa de homicídios brasileira ante a média mundial? Um estudo publicado pelo Fundo Monetário Internacional no final de 2023 dá uma ideia disso: reduzir as taxas de homicídio na América Latina ao nível da média mundial poderia elevar o crescimento econômico anual da região em 0,5 ponto percentual. Para países com alto grau de violência, como é o caso brasileiro, fechar completamente essa lacuna poderia elevar o crescimento do PIB em cerca de 0,8 ponto percentual.

O estudo identificou os canais de transmissão: a violência prejudica a acumulação de capital ao afastar investidores que temem roubos e violência, além de reduzir a produtividade ao desviar recursos para investimentos menos produtivos (como segurança patrimonial).

Nesse contexto, muitos vêm advogando pela replicação da experiência recente de El Salvador. A taxa de homicídios no país despencou de 108 por 100 mil habitantes em 2015 para cerca de 2,0 em 2024, refletindo a política linha-dura do presidente Nayib Bukele.

Contudo, esse aparente sucesso veio acompanhado de um custo elevado: cerca de 2% da população do país foi detida, com registro de prisões arbitrárias, desaparecimentos, mortes sob custódia e tortura. A Freedom House rebaixou El Salvador de um país “livre” para “parcialmente livre”, com sua pontuação caindo de 67 em 2019 para 47 em 2025 (o Brasil recebeu nota 72 em 2025, classificado como “livre”).

O crescimento econômico salvadorenho, ao menos até agora, não se acelerou, tendo-se mantido em torno de 2,5% a.a, indicando que reduzir a violência através da erosão democrática pode neutralizar ou mesmo reverter os ganhos associados à redução da taxa de homicídios.

Não muito longe do Brasil, temos o caso do Chile: embora tenha passado de cerca de 3 para 6 por 100 mil ao longo da última década, a taxa de homicídio no país ainda é relativamente baixa em ampla comparação internacional (é semelhante àquela dos EUA). E o país tem sustentado isso sem sacrificar o Estado de Direito (pontuação de 95 no indicador da Freedom House). Certamente esse é um dos fatores por trás do sucesso deles em termos de desenvolvimento: o PIB per capita chileno praticamente triplicou entre 1990 (último ano da ditadura iniciada em 1973) e 2024, ao passo que o brasileiro cresceu menos de 60% nesse mesmo período.

No caso do Brasil, não há uma “bala de prata” para gerar uma redução adicional expressiva da violência. É preciso investir em uma abordagem multifacetada, combinando gestão estratégica, articulação entre União, estados e municípios, inteligência, controle de armas, gestão de dados e políticas baseadas em evidências.

 

Massacre do Rio: o dedo da Faria Lima, por Ricardo Queiroz Pinheiro

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O “ajuste fiscal” prepara o terreno: corta futuro, elimina alternativas, cria inimigos. Polícia executa. Círculo perfeito: quem perde tudo vira ameaça e é morto como exemplo. A mão que nutre as fintechs aperta o gatilho e derruba o moleque-avião

Ricardo Queiroz Pinheiro – Outras Palavras – 30/10/2025

Foi ontem. O Rio de Janeiro, mais uma vez, serviu de palco habitual das mazelas da República. Helicópteros rasgaram o céu da favela; rajadas, correria, corpos rolando no chão. Mães se agarraram às portas, celulares trêmulos tentando registrar o que restava de luz. Horas depois, o governador miliciano Cláudio Castro surgiu em cadeia nacional para converter o sangue em manchete: “operação concluída, a inteligência atuou”. Estava inaugurada a campanha de 2026.

O sociologo Loïc Wacquant em uma frase deu o quadro há décadas: quando o Estado social se retrai, o Estado penal se impõe. No Rio (não só), essa retração é programada. A austeridade corta horizontes, desmonta escolas, precariza vidas; em seguida, o aparelho punitivo toma seu lugar, disciplinando corpos sem futuro. A violência é a ferramenta de regulação. A política econômica e a política da bala são faces do mesmo projeto.

É oportuno olhar o Atlas da Violência 2025, produzido pelo IPEA. Ali, se formaliza o que a rua já conhece: enquanto o país vê uma pequena queda nas taxas gerais, o Rio caminhou na direção oposta, com aumento de 13,6% nos homicídios. Esses números têm endereço: são jovens negros sem empregos, sem escola, sem perspectiva. Onde faltam políticas públicas, cresce a justificativa punitiva — e com ela, o aplauso de uma parte significativa do eleitorado que aprendeu a ver ordem na bala.

A juventude é o alvo. As estatísticas mostram aumento nas mortes entre 15 e 29 anos; entre adolescentes, a explosão é ainda mais brutal. E quando a contabilidade alcança crianças — 50% de aumento nas mortes entre 5 e 14 anos —, fica claro que não se trata de “efeitos colaterais”: é desenho político. A execução aparece como resposta ao vazio social que a própria política de austeridade ajudou a produzir.

A pesquisadora Alba Zaluar vem insistindo numa leitura que hoje é central: a violência do Rio é um ecossistema, sustentado por circulação de armas, cumplicidade institucional e abandono social. O que era economia ilegal encontrou tradução na gestão pública — e o Estado passou a operar como parceiro e restaurador de uma “ordem” que sacrifica vidas. No governo atual, essa simbiose se institucionalizou: as operações são mensagens, as mortes, métricas; o aparelho repressivo se consolida, bloco por bloco.

Houve um momento de interrupção possível. A ADPF 635 mostrou que limitar procedimentos letais produz efeitos reais: mortes por intervenção policial caíram drasticamente — de 1.814 em 2019 para 699 em 2024 — e, com isso, também diminuíram homicídios dolosos e roubos. Mas a contenção foi interpretada pelo governo como perda simbólica, não como ganho civilizatório. Assim, a estratégia foi reverter limites e reafirmar a estética do choque: liberar helicópteros, permitir operações perto de escolas, normalizar a artilharia urbana.

Esse movimento é um processo — a construção deliberada do nosso aparelho repressivo. É um projeto com roteiro eleitoral, pois parte da população legitima como única solução possível. A violência funciona como espetáculo para uma plateia que, empobrecida e esmagada pela Bíblia neoliberal da eficiência, recebe no massacre a sensação imediata de “ordem”. O bordão — “bandido bom é bandido morto” — é pedagogia política que convence porque promete simplicidade onde faltam políticas públicas complexas.

O austericídio transformou a privação econômica em argumento moral. A austeridade prepara o terreno: corta futuro, elimina alternativas, cria inimigos; depois o aparelho punitivo executa a lição. O resultado é um círculo perfeito: quem perde tudo passa a ser identificado como ameaça; quem cruza esse limiar é punido com morte e exposto como exemplo. O Estado, assim, não só permite a violência — ele a modela, a racionaliza e a capitaliza politicamente.

A mesma mão que afaga as fintechs — vitrines reluzentes da austeridade — é a que customiza a lavagem de dinheiro das grandes redes do tráfico, arma a polícia e derruba o moleque-avião. O garoto que largou a escola para virar vapor, buscando uma grana pra sobreviver, é abatido pela mesma máquina que financia o seu patrão invisível. O circuito é perfeito: o capital se legitima no alto, a bala fecha a conta embaixo.

Ainda assim, a engrenagem encontra resistência — ruidosa e concreta. A mãe que não permite o silêncio, moradores que filmam e denunciam, defensores públicos que acumulam processos, jornalistas que persistem em nomear o que se tenta apagar. Esses gestos não são românticos: são a última barreira contra a normalização completa do extermínio. Na medida em que o aparelho repressivo se organiza, cada denúncia retém um pouco da liquidação moral que o poder busca.

O massacre de ontem funciona como demonstração de continuidade e recado. Ele disse o que o capital, vocalizado pela extrema direita, quer que o país saiba: que a ordem se restabelece com medo, que a pobreza é punida com letalidade, que o ódio rende voto e garante o abismo social. Reconhecer isso é o primeiro passo para desmontar o aparelho que transforma a política em matança

Indústria do mundo

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 Nas últimas décadas a sociedade internacional vem passando por muitas reviravoltas e inúmeras transformações, o surgimento de novos modelos de negócios vem ganhando espaço, uma verdadeira revolução no mundo do trabalho, com novas tecnologias e o incremento da inteligência artificial, além do crescimento vertiginoso da economia chinesa que se transformou na indústria do mundo, responsável por uma grande parte das mercadorias comercializadas no cenário global.

A ascensão chinesa deslocou setores industriais inteiros de seus países de origem para grandes investimentos produtivos nas cidades chinesas, levando regiões atrasadas e dependentes de produtos primários para se transformarem em grandes produtores de produtos industrializados, com fortes investimentos governamentais em capital humano, grandes recursos financeiros canalizados para setores de pesquisa e inovação científica. O resultado desta política foi a construção de grandes metrópoles, como Shenzhen, uma aldeia de camponeses, nos anos 1980 com apenas 120 mil habitantes que, atualmente, se transformou numa metrópole de 17 milhões de pessoas, com um setor produtivo inovador, dinâmico e dotado de grande capacidade empreendedora.

Neste período, a China passou por inúmeras revoluções, marcadas por uma política industrial rigorosa e muito disciplinada, onde os setores estratégicos receberam grandes aportes financeiros, exigindo parcerias com empresas estrangeiras que tinham interesses em produzir no mercado chinês, com câmbio desvalorizado, juros baixos, créditos fartos, mão de obra barata e fortes investimentos em capital humano, além de estímulos crescentes nas áreas de pesquisa científica e cobranças sistemáticas para angariar novos mercados internacionais.

Nos últimos vinte anos, a economia chinesa ganhou musculatura, eficiência e produtividade, levando os países ocidentais a sentirem receio da ascensão chinesa, atualmente o maior competidor dos Estados Unidos. Em 2006, 148 países e territórios tinham mais trocas comerciais com os EUA do que com a China, em 2024 o cenário passou por grandes alterações: 141 nações priorizam os chineses enquanto 82 fazem mais negócios com os americanos.

Nestas duas décadas, os chineses ganharam novos parceiros comerciais, inicialmente começaram na Oceania, depois se aproximaram da África, espalharam seu comércio para as Américas, ganhando relevância na região e se transformaram no maior parceiro comercial da América Latina, desbancando os Estados Unidos. Atualmente, os europeus passaram a se aproximar dos chineses e a Europa ganhou relevância no comércio exterior, muitos países da região estão integrados na iniciativa Um Cinturão, Uma Rota, onde o país asiático vai despejar trilhões de dólares em setores de infraestrutura e de logística em países que são parceiros comerciais, com isso a China se transformou na maior fábrica do mundo, responsável por mais de US$ 4 trilhões em produtos industrializados, transformando a China, para muitos especialistas, no detentor do maior produto interno bruto (PIB) do mundo, superando o estadunidense.

Em equipamentos e maquinaria elétrica, a China detém sozinho 32% do mercado global de exportação. Em computadores pessoais a China foi responsável por 75% do valor e volume das exportações mundiais. Na indústria fotovoltaica o gigante asiático responde por cerca de 80% da produção em toda a cadeia de valor. Neste cenário de instabilidades constantes, o incremento industrial chinês pode ser visto como inspirador da recuperação industrial brasileira, valorizando inovação, garantindo oportunidades e políticas industriais ativas, vislumbrando um país industrializado, aproveitando novas oportunidades, alavancando tecnologias e abandonando os resquícios de exportadores de produtos primários de baixo valor agregado.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Duelos de gigantes

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A sociedade mundial vem passando por grandes abalos econômicos, sociais e políticos nestes últimos meses, que estão impactando toda a comunidade internacional. O crescimento das políticas protecionistas adotada pelos governos, onde destacamos o tarifaço adotado pelo governo estadunidense, impactando sobre países de todas as regiões do mundo, gerando fortes constrangimentos econômicos e produtivos nas nações parceiras e aliadas e países mais distantes, com visões ideológicas diferentes e sem alinhamento político com os Estados Unidos.

Neste momento, o que nos chama a atenção é o confronto entre as duas maiores economias do mundo, China e Estados Unidos. Este confronto econômico e político deve nortear as discussões estratégicas nos próximos anos, quem sabe décadas, que devem estimular medidas protecionistas variadas para angariar espaço e vantagens na economia internacional.

De um lado, encontramos uma nação que vem perdendo espaço no cenário global, caracterizada como a mais relevante do ambiente internacional no século passado. Nesta época, os Estados Unidas da América se caracterizaram como a maior economia do mundo, detentora do maior setor indústria e bélico, responsável pela emissão da moeda referência dos setores comercial e financeiro, responsável pelos maiores investimentos científicos e tecnológicos do mundo e dona da classe média vista como referência global.

Do outro lado encontramos uma nação milenar, detentora de uma das maiores populações do globo, responsável por um feito histórico da sociedade mundial, a única nação do mundo que conseguiu retirar da pobreza extrema mais de 800 milhões de pessoas num período de quarenta anos. Uma nação que se transformou rapidamente, com fortes investimentos em ciência, pesquisa e tecnologia, se transformando na indústria do mundo e transformando toda sua estrutura produtiva, com forte planejamento estatal e empresas referências na economia mundial.

Neste confronto, os estadunidenses tentaram impedir a comercialização de semicondutores, os chamados chips, para seu maior competidor, impedindo que as grandes empresas norte-americanas vendessem este produto para os produtores chineses, desta forma, sem este produto, os asiáticos não conseguiriam construir o seu setor produtivo global, fragilizando seu setor industrial e obrigando-os a aceitar as exigências do governo dos Estados Unidos. Para infelicidade dos estadunidenses, o governo chinês canalizou grandes investimentos para as áreas científica e tecnológica, fortalecendo a produção local, garantindo sua soberania política e fomentando sua autonomia econômica.

Em contrapartida, recentemente, os chineses passaram a limitar as exportações das chamadas terras raras para os Estados Unidos, já que a China detém mais de 80% da produção global, gerando grandes preocupações para os setores de tecnologia e de defesa, afinal, estas terras raras são minerais estratégicos que entram na cadeia global dos setores de alta tecnologia.

Neste duelo de gigantes, cada um dos lados busca arregimentar nações parceiras, ganhando musculatura para enfrentar o confronto do século e angariar novas alianças e novos espaços de comércio e integração produtiva. Neste cenário, marcado por um conflito desta envergadura, não podemos esquecer a possibilidade, ainda real, de um conflito militar entre estas potências que, com certeza, podem inviabilizar a vida humana no planeta Terra, uma guerra fratricida desta proporção, pode destruir a humanidade, o que seria um risco gigantesco e   uma possibilidade real, ainda mais sabendo que, nos últimos anos, a incivilidade e a crueldade vem dominando a sociedade global.

Ary Ramos da Silva Júnior, bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.