A epidemia do sofrimento, por Mariliz Pereira Jorge

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Mariliz Pereira Jorge, Jornalista e roteirista

Folha de São Paulo, 08/10/2025

Se você se preocupa com sua saúde mental, não está sozinho. Virou o nosso check-up diário. Dormiu mal? Ansiedade. Não rendeu? Burnout. Mas o que parece modismo é, na verdade, um diagnóstico coletivo, uma questão que segue como o principal temor no país, superando câncer e outras doenças. Em 2024, 54% dos brasileiros já apontavam o tema no topo, tendência que se mantém na nova leva de dados da Ipsos —a média global é de 45%.

O salto é vertiginoso: de 18% em 2018 para o patamar atual. O ponto de virada veio com a pandemia —não só pelo vírus, mas por uma nova realidade: o trabalho invadiu a casa, a solidão virou rotina, empreender é a palavra da década, o sofrimento é o status normal. No meu círculo de amizades, estranho é quem não enfrenta algum grau de depressão, pânico, distúrbios, transtornos. Não deixa de ser sinal de loucura que a conversa sobre medicações, crises e tratamentos seja natural.

O tabu diminuiu porque as doenças mentais são democráticas. As mulheres declaram mais angústia; os homens, ironicamente, aparecem com maior frequência nas estatísticas fatais. E, de lá para cá, nasceu uma nova paisagem emocional: gerações mais jovens chegam à vida adulta mais alertas para o próprio despencar. Talvez por isso, estejam mais dispostas a nomear o que dói.

E o cotidiano só aduba o mal-estar: trabalho que invade a madrugada, renda incerta, boletos em fila, comparação infinita no feed. A conta fecha no corpo: insônia, palpitação, cansaço que não descansa.

Enfrentar essa epidemia de sofrimento exige pactos miúdos (sono, rotina, conversa, menos tela) e pactos coletivos (proteção social, escola que acolhe, empresa que não transforma gente em meta). Para atravessar, menos heroísmo solitário e mais rede: pedir ajuda sem culpa, oferecer ajuda sem julgamento.

Para alguém que, como eu, trata uma depressão há 11 anos, é um alento ver que os transtornos mentais saíram da margem e ganharam nomes, rostos, identificação. Mas, sem política e cuidado, tudo vira uma conversa solitária, um pedido de socorro que fica sem resposta.

A autocrítica de Lula e a defesa da democracia, por Luiz Filgueiras

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O que o terá levado a reconhecer os déficits da esquerda? Uma súbita visão sobre as transmutações do PT? Os rumos que imprimiu a seu governo, há três meses? Examinar a fala pode ser essencial para enfrentar a ultradireita – em 2026 e depois.

Luiz Filgueiras – OUTRAS PALAVRAS – 02/10/2025

No último dia 24/09 o presidente Lula participou na sede da ONU, em Nova York, em uma agenda paralela à Assembleia Geral das Nações Unidas, da segunda edição do evento “Em Defesa da Democracia e Contra o Extremismo”, fórum que busca uma articulação internacional em defesa das instituições democráticas e contra a desinformação, o discurso de ódio e a desigualdade social. Com a participação de 30 países, Brasil, Chile, Espanha, Colômbia e Uruguai estiveram na mesa principal. Nenhum dos organizadores cogitou chamar os EUA, como em 2024, e tampouco a atual administração de Donald Trump demonstrou interesse.

Nessa reunião, Lula fez uma breve fala que me pareceu muito importante, apesar de não ter tido repercussão maior na mídia, nem tampouco nas esquerdas. Ele fez uma autocrítica do que chamou de erros da esquerda, que propiciaram e facilitaram a ascensão da extrema-direita em todo o mundo. E mais especificamente, de forma pouco clara, fez uma autocrítica, não declarada enquanto tal, dos seus governos e dos governos de esquerda mundo afora.

Após elogiar a democracia e o multilateralismo, recuperou um aspecto de sua trajetória política, explicando o que o levou da antipolítica à política, com a criação do Partido dos Trabalhadores. Contou ter constatado, quando de uma visita ao Congresso Nacional, a ausência de trabalhadores nessa instituição democrática. Além disso, recuperou os resultados das eleições de 1989 a 2022, evidenciando o crescimento eleitoral do PT e a possibilidade concreta de chegar ao governo.

Mas é a partir daí que a sua fala se torna realmente importante, quando relembra a criação do Fórum de São Paulo, que reuniu as esquerdas latino-americanas e no qual chamou a atenção para a importância fundamental da organização dos trabalhadores. Esse foi “o gancho” para questionar “o que fazer para defender a democracia, em crise em todo o mundo, e a sua difusão nas massas”; e indagar “onde os democratas e a esquerda erraram e por que a extrema direita cresceu”. Segundo ele, antes de procurar as virtudes do extremismo de direita é preciso identificar os erros que a democracia cometeu.

A sua resposta começa enfatizando que o Partido dos Trabalhadores era organizado (no passado mesmo) em núcleos por local de trabalho, moradia e estudo. Não analisa o porquê disso ter sido abandonado pelo partido, posteriormente, mas pergunta: “o que eu fiz na Presidência da República; o que eu fiz para fortalecer a organização popular e social?”. A sua resposta genérica e sintética, estendida para a esquerda latino-americana: “abandonamos a organização dos trabalhadores e do povo”.

Avançando em sua autocrítica, Lula pergunta: “o que fazemos hoje, como estamos exercendo a democracia em nossos países”? E responde explicitamente que “a gente ganha as eleições com discurso de esquerda e quando começa a governar atende muito mais os interesses de nossos inimigos do que dos nossos amigos”. A preocupação maior é com “a cobrança do mercado e a necessidade de contentar o mercado e os adversários”, além de “dar resposta ao que a imprensa publica sobre nós”.

E surpreendentemente, destaca que “os nossos eleitores, que foram para ruas e apanharam, são considerados por nós como sectários e radicais”; “a gente não dá atenção a eles e dá atenção àqueles que falam mal da gente”. A sua conclusão é clara e direta: o fracasso da democracia se deve ao que “nós deixamos de fazer, aos erros que a democracia cometeu na sua relação com a sociedade civil”. Segundo Lula, reconhecer isso é crucial para não superestimarmos as virtudes do extremismo de direita e termos condições de derrotá-lo.

Nesse curto discurso, ao fazer uma espécie de mea-culpa, Lula resume uma questão essencial para entendermos a ascensão do neofascismo em todo mundo: o “transformismo” dos Partidos Socialistas, Social-democratas e Trabalhistas, iniciado a partir da década de 1980, após a ascensão e hegemonia do neoliberalismo -– primeiro nos países imperialistas, depois nos países periféricos, de capitalismo dependente. A adesão ativa ao ideário do adversário (a direita neoliberal), ou a sua aceitação passiva, criaram um vácuo político na representação dos trabalhadores e do povo. A incapacidade (por várias razões) das correntes mais à esquerda de o preencherem abriu as portas para a ascensão da extrema direita neofascista.

As consequências das reformas e políticas neoliberais, efetivadas em todo mundo durante mais de 30 anos, foram nefastas para a maioria da população: desemprego, precarização do trabalho, pobreza, concentração de renda, instabilidade, insegurança, desânimo e desesperança, crises reiteradas etc. A alternância de governos neoliberais e social-democratas, executando as mesmas políticas e reformas regressivas — e portanto, sem nenhuma diferença substantiva — concomitante ao abandono da crítica ao capitalismo e do projeto socialista pela esquerda, permitiram à extrema direita preencher o vácuo político e se apresentar como “antissistema”: contra a democracia liberal (e suas instituições) e a “globalização”, ambas culpadas por todos os males e o mal-estar generalizado.

E a resposta oferecida pelo neofascismo não é, evidentemente, a superação do “sistema capitalista”. Muito pelo contrário, ele faz a defesa explícita da exploração e dos valores capitalistas, no limite assumindo a ideologia e perspectiva do chamado anarcocapitalismo. Os seus objetivos mais gerais podem ser resumidos a:

  1. No âmbito dos distintos Estados nacionais, corromper a democracia “por dentro” e, num segundo momento, instalar um regime autoritário de natureza fascista. Para isso, sua ação política, em especial através da chamada “guerra cultural” que instila e difunde pânico político e moral entre as massas, elege diversos inimigos, reais ou imaginários: comunistas, imigrantes, terroristas, feministas (“ideologia de gênero”), comunidade LGBT, petistas, movimento negro, pedófilos, corruptos, ateus, pobres etc.
  2. No plano internacional, o combate à “globalização” expressa a nova etapa do imperialismo dos EUA e sua crise de hegemonia, convergindo e apoiando o seu ataque ao multilateralismo e às instituições internacionais – criadas e comandadas, a partir do pós-II Guerra Mundial, por esse mesmo imperialismo. Essa convergência, no interior dos países dependentes, dá origem, como no caso brasileiro, à defesa bizarra dos ataques do imperialismo à soberania do Estado nacional.

Há razões objetivas que explicam, parcialmente, o processo de transformismo e o abandono da utopia socialista. São, em especial, a derrota do “socialismo real” no Leste Europeu e a reestruturação produtiva capitalista, alicerçada nas novas tecnologias de informação e comunicação (TICs) e nas novas formas de organização do processo de trabalho, que reduziram a massa de trabalhadores assalariados industriais e fragmentaram o conjunto da classe trabalhadora, fragilizando os sindicatos e suas demais representações. Mas não se pode constatar e compreender esses fenômenos a partir de uma visão determinista/economicista. A razão fundamental do transformismo deve ser buscada na hegemonia da ideologia neoliberal, que adentrou todas as esferas e instituições das sociedades, submetendo “corações e mentes” e, em particular, capturando a vanguarda e as direções (lideranças) de partidos de esquerda e demais representações dos trabalhadores. Estas passaram a considerar, na prática, as reformas e políticas do neoliberalismo como inevitáveis, o único caminho possível pós-derrota do “socialismo real”.

No Brasil, os anos 1990 marcam a vitória do neoliberalismo (fomos o último país da América Latina a assumi-lo) e, ao mesmo tempo, o início do processo de transformismo do Partido dos Trabalhadores. Ele involuiu de um partido socialista atuando na ordem mas contra ela para um partido da ordem. Assumiu, paulatinamente, todas as características dos partidos tradicionais, abandonando os núcleos como forma de organização (substituídos pelos enclaves corporativos de comitês de parlamentares), fazendo da atuação institucional (em especial as eleições) o centro de suas preocupações e da vida partidária, estreitando laços com o capital para o financiamento das campanhas eleitorais, descartando os seus objetivos estratégicos (de mudanças estruturais) e abandonando a crítica do capitalismo (mesmo que apenas no discurso). Esta foi substituída pela ideologia desenvolvimentista (na prática um arremedo do antigo nacional-desenvolvimentismo dos anos 1930-1950 e, posteriormente, o desenvolvimentismo associado ao imperialismo). O resultado disso tudo foi a burocratização das instâncias partidárias, a mudança de composição de seus quadros, a perda de capacidade de mobilização popular e, por fim, o surgimento do “lulismo” – tão bem identificado e explicado por André Singer como uma espécie de bonapartismo que substituiu a oposição capitalversustrabalho pela oposição ricos versus pobres. Estes últimos com tendências conservadoras e sem capacidade de representação própria, a ponto de projetarem no Bonaparte a defesa de seus interesses.

Penso que essa fala de Lula foi influenciada pela ameaça do retorno ao governo da extrema direita (a eleição do próximo ano) e, principalmente, pela mudança da correlação de forças iniciada há três meses. Foi então que o governo trouxe para a sociedade – tirando a exclusividade do Parlamento –, o debate sobre a questão tributária (isenção do Imposto de Renda para os que ganham até R$ 5 mil e aumento da taxação dos mais ricos e das grandes fortunas) e a questão da jornada de trabalho (a adesão e apoio à campanha pelo fim da escala 6X1) – com forte utilização das redes sociais. Posteriormente, com a agressão de Trump ao Brasil, em especial contra o Supremo Tribunal Federal (exigindo a suspensão do processo contra Bolsonaro, como condição para retirar a tarifa de 50% sobre os produtos brasileiros importados pelos EUA), a conjuntura tornou-se ainda mais favorável ao governo Lula e às esquerdas. Possibilitou-lhes assumir a linha de frente da defesa da democracia e da soberania nacional, empurrando a extrema-direita para a defensiva.

Mais recentemente, as grandes mobilizações ocorridas em todo país, contra a PEC da bandidagem aprovada pela Câmara de Deputados e a proposta de anistia aos golpistas condenados pelo STF, expressaram de forma cabal a mudança da conjuntura. Ela alcançou também o parlamento, com a Comissão de Constituição de Justiça do Senado arquivando por unanimidade essa PEC e, ao mesmo tempo, evidenciando também uma correlação de forças desfavorável à aprovação de qualquer tipo de anistia aos golpistas. Fatores que, por sua vez, reforçam a necessidade de as forças políticas de esquerda e democráticas continuarem vigilantes e mobilizadas, para que se possa impor mais uma derrota à extrema direita.

E culminando todo esse processo de mudança da correção de forças, a Câmara de Deputados aprovou em 1º/10, por unanimidade, a isenção do Imposto de Renda para os que ganham até 5 mil reais por mês, além de uma isenção parcial para os que ganham entre 5 e 7,35 mil reais (16 milhões de brasileiros). Como compensação pela redução da receita do governo, haverá aumento da taxação dos mais ricos, que ganham a partir de 600 mil reais por ano. Com isso, além de se dar início a uma maior justiça tributária, o famigerado “ajuste fiscal” não será feito – pela primeira vez há muitos anos – por meio da redução dos gastos sociais e nem onerando os segmentos sociais de menor renda.

Em suma, o governo saiu das cordas e passou à ofensiva. O discurso de Lula não alterará, no fundamental, o caráter do PT no curto prazo, nem resolverá as contradições do terceiro governo do presidente. Mas o importante é que ele rema a favor da conjuntura mais favorável e sinaliza que há uma compreensão, que tende a disseminar-se, de que as esquerdas e o governo têm que voltar a defender as suas pautas/bandeiras estruturais e a organizar e mobilizar suas bases sociais, como condição de sobrevivência. A renúncia à crítica do capitalismo e o enclausuramento da disputa política exclusivamente no Parlamento e no Judiciário não são caminhos para derrotar o neofascismo neoliberal (ou o neoliberalismo neofascista). Foi preciso “o nível da água chegar ao pescoço” para essa obviedade ficar evidente.

Por fim, está cada vez mais claro que a prioridade do combate à extrema direita não pode se descolar do combate ao neoliberalismo, pois estão ambos cada vez mais unidos contra a democracia, a destruição dos direitos sociais-trabalhistas e a subordinação ao imperialismo. A natureza autoritária do neoliberalismo, já anunciada em 1944 por Hayek em seu livro O caminho da servidão (ao defender a prioridade da “liberdade” do capital em relação à democracia) e no seu apoio, na década de 1970, ao regime fascista e à ditadura de Pinochet no Chile, escancarou-se de vez na nova fase do capitalismo e do imperialismo: um regime de acumulação mundial sob a dominância financeira. A democracia tornou-se, definitivamente, um estorvo para o capitalismo financeirizado. A sua defesa e permanência, com um caráter cada vez mais favorável às classes trabalhadoras e à maioria da população, passou a ser responsabilidade, essencialmente, das forças de esquerda e democráticas.

O agro não é pop: é blindado para pagar menos imposto, por Adriana Fernandes

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Adriana Fernandes, Jornalista em Brasília, onde acompanha os principais acontecimentos econômicos e políticos há mais de 25 anos.

Folha de São Paulo, 04/10/2025

O agro não é pop. É blindado à custa do contribuinte brasileiro. A blindagem só tem aumentado graças à poderosa bancada do agronegócio no Congresso, que se agiganta num círculo vicioso em prejuízo a outros setores da economia. Quanto mais forte fica, mais consegue benesses e menos paga impostos.

O último bote ocorreu na votação na Câmara do projeto que isenta totalmente do Imposto de Renda quem ganha até R$ 5.000 mensais e cria um imposto mínimo de 10% para as altas rendas.

O texto aprovado garante que os grandes produtores rurais, que hoje já têm a renda isenta do pagamento do IR da pessoa física, também não serão alcançados pelo imposto dos milionários. Uma emenda ao projeto de lei excluiu a parcela isenta relativa à atividade rural do valor que será tributado. O privilégio foi garantido pelo relator do projeto, o alagoano e pecuarista Arthur Lima (PP).

Nunca é demais lembrar que produtores rurais já têm R$ 110 bilhões da renda isenta por ano. Metade desse dinheiro fica nas mãos de produtores que ganham mais de R$ 1 milhão por ano. Ou seja, não é pequeno produtor, pobrezinho, mas gente de alta renda mesmo.

O relator da MP do IOF (1303), o petista Carlos Zarattini (SP), também vai dar uma ajuda extra para manter a isenção do IRPF para as LCAs (Letras do Crédito do Agronegócio), títulos de renda fixa que se transformaram numa farra fiscal com o efeito colateral de distorcer as condições do mercado de outras aplicações.

Com esses novos privilégios, a blindagem está perfeita: juros subsidiados; seguro contra quebra de safra; subsídios tributários gigantescos; isenção do IBS e CBS na reforma tributária; imposto mínimo zero, que é usado para comprar LCA com zero de tributação. Se ainda assim o produtor quebrar, a indústria da recuperação judicial também está aí para ajudar.

Em tempos de Plano Brasil Soberano, temos a blindagem soberana do agro. Quando o Estado desonera um setor, outros acabam pagando mais. O que os demais setores da economia estão esperando para reagir?

É uma farsa o slogan de que o agro é pop.

 

Entrevista – Zygmunt Bauman

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Dennis de Oliveira – Revista Cult – 2009

Zygmunt Bauman é um dos pensadores contemporâneos que mais têm produzido obras que refletem os tempos contemporâneos. Nascido na Polônia em 1925, o sociólogo tem um histórico de vida que passa pela ocupação nazista durante a Segunda Guerra Mundial, pela ativa militância em prol da construção do socialismo no seu país sob a direta influência da extinta União Soviética e pela crise e desmoronamento do regime socialista. Atualmente, vive na Inglaterra, em tempo de grande mobilidade de populações na Europa. Professor emérito de sociologia da Universidade de Leeds, Bauman propõe o conceito de “modernidade líquida” para definir o presente, em vez do já batido termo “pós-modernidade”, que, segundo ele, virou mais um qualificativo ideológico.

Bauman define modernidade líquida como um momento em que a sociabilidade humana experimenta uma transformação que pode ser sintetizada nos seguintes processos: a metamorfose do cidadão, sujeito de direitos, em indivíduo em busca de afirmação no espaço social; a passagem de estruturas de solidariedade coletiva para as de disputa e competição; o enfraquecimento dos sistemas de proteção estatal às intempéries da vida, gerando um permanente ambiente de incerteza; a colocação da responsabilidade por eventuais fracassos no plano individual; o fim da perspectiva do planejamento a longo prazo; e o divórcio e a iminente apartação total entre poder e política. A seguir, a íntegra da entrevista concedida pelo sociólogo à revista CULT.

CULT – Na obra Tempos líquidos, o senhor afirma que o poder está fora da esfera da política e há uma decadência da atividade do planejamento a longo prazo. Entendo isso como produto da crise das grandes narrativas, particularmente após a queda dos regimes do Leste Europeu. Diante disso, é possível pensar ainda em um resgate da utopia?

Zygmunt Bauman – Para que a utopia nasça, é preciso duas condições. A primeira é a forte sensação (ainda que difusa e inarticulada) de que o mundo não está funcionando adequadamente e deve ter seus fundamentos revistos para que se reajuste. A segunda condição é a existência de uma confiança no potencial humano à altura da tarefa de reformar o mundo, a crença de que “nós, seres humanos, podemos fazê-lo”, crença esta articulada com a racionalidade capaz de perceber o que está errado com o mundo, saber o que precisa ser modificado, quais são os pontos problemáticos, e ter força e coragem para extirpá-los. Em suma, potencializar a força do mundo para o atendimento das necessidades humanas existentes ou que possam vir a existir.

CULT – Por que se fala tanto hoje de “fim das utopias”?

Bauman – Na era pré-moderna, a metáfora que simboliza a presença humana é a do caçador. A principal tarefa do caçador é defender os terrenos de sua ação de toda e qualquer interferência humana, a fim de defender e preservar, por assim dizer, o “equilíbrio natural”. A ação do caçador repousa sobre a crença de que as coisas estão no seu melhor estágio quando não estão com reparos; de que o mundo é um sistema divino em que cada criatura tem seu lugar legítimo e funcional; e de que mesmo os seres humanos têm habilidades mentais demasiado limitadas para compreender a sabedoria e harmonia da concepção de Deus.

Já no mundo moderno, a metáfora da humanidade é a do jardineiro. O jardineiro não assume que não haveria ordem no mundo, mas que ela depende da constante atenção e esforço de cada um. Os jardineiros sabem bem que tipos de plantas devem e não devem crescer e que tudo está sob seus cuidados. Ele trabalha primeiramente com um arranjo feito em sua cabeça e depois o realiza. Ele força a sua concepção prévia, o seu enredo, incentivando o crescimento de certos tipos de plantas e destruindo aquelas que não são desejáveis, as ervas “daninhas”. É do jardineiro que tendem a sair os mais fervorosos produtores de utopias. Se ouvimos discursos que pregam o fim das utopias, é porque o jardineiro está sendo trocado, novamente, pela ideia do caçador.

CULT – O que isso significa para a humanidade de hoje?

Bauman – Ao contrário do momento em que um dos tipos passou a prevalecer, o caçador não podia cuidar do global equilíbrio das coisas, natural ou artificial. A única tarefa do caçador é perseguir outros caçadores, matar o suficiente para encher seu reservatório. A maioria dos caçadores não considera que seja sua responsabilidade garantir a oferta na floresta para outros, que haja reposição do que foi tirado. Se as madeiras de uma floresta forem relativamente esvaziadas pela sua ação, ele acha que pode se deslocar para outra floresta e reiniciar sua atividade. Pode ocorrer aos caçadores que um dia, em um futuro distante e indefinido, o planeta poderia esgotar suas reservas, mas isso não é a sua preocupação imediata, isso não é uma perspectiva sobre a qual um único caçador, ou uma “associação de caçadores”, se sentiria obrigado a refletir, muito menos a fazer qualquer coisa.

Estamos agora, todos os caçadores, ou ditos caçadores, obrigados a agir como caçadores, sob pena de despejo da caça, se não de sermos relegados das fileiras do jogo. Não é de admirar, portanto, que, sempre que estamos a olhar a nosso redor, vemos a maioria dos outros caçadores quase sempre tão solitária quanto nós. Isso é o que chamamos de “individualização”. E precisamos sempre tentar a difícil tarefa de detectar um jardineiro que contempla a harmonia preconcebida para além da barreira do seu jardim privado. Nós certamente não encontraremos muitos encarregados da caça com interesse nisso, e sim entretidos com suas ambições. Esse é o principal motivo para as pessoas com “consciência ecológica” servirem como alerta para todos nós. Esta cada vez mais notória ausência do jardineiro é o que se chama de “desregulamentação”.

CULT – Diante disso, a esquerda não tem possibilidades de ter força social?

Bauman – É óbvio que, em um mundo povoado principalmente por caçadores, não há espaço para a esquerda utópica. Muitas pessoas não tratam seriamente propostas utópicas. Mesmo que saibamos como fazer o mundo melhor, o grande enigma é se há recursos e força suficientes para poder fazê-lo. Essas forças poderiam ser exercidas pelas autoridades do engenhoso sistema do Estado-nação, mas, como observou Jacques Attali em La voie humaine, “as nações perderam influência sobre o curso das coisas e delegaram às forças da globalização todos os meios de orientação do mundo, do destino e da defesa contra todas as variedades do medo”. E as forças da globalização são tudo, menos instintos ou estratégias de “jardineiros”, favorecem a caça e os caçadores da vez. O Thesaurus [dicionário da língua inglesa, de 1892] de Roget, obra aclamada por seu fiel registro das sucessivas mudanças nos usos verbais, tem todo o direito de listar o conceito de utópico como “fantasia”, “fantástico”, “fictício”, “impraticável”, “irrealista”, “pouco razoável” ou “irracional”. Testemunhando assim, talvez, o fim da utopia.

Se digitarmos a palavra utopia no portal de buscas Google, encontraremos cerca de 4 milhões e 400 mil sites, um número impressionante para algo que estaria “morto”. Vamos, porém, a uma análise mais atenta desses sites. O primeiro da lista e, indiscutivelmente, o mais impressionante é o que informa aos navegantes que “Utopia é um dos maiores jogos livres interativos online do mundo, com mais de 80 mil jogadores”. Eu não fiz uma pesquisa em todos os 4 milhões de sites listados, mas a impressão que tive após uma leitura de uma amostra aleatória é que o termo utopia aparece em marcas de empresas de cosméticos, de design de interiores, de lazer para feriados, bem como de decoração de casas. Todas as empresas fornecem serviços para pessoas que procuram satisfações individuais e escapes individuais para desconfortos sofridos individualmente.

CULT – Nesta sociedade líquido-moderna, como fica a ideia de progresso e de fluxos de tempo?

Bauman – A ideia de progresso foi transferida da ideia de melhoria partilhada para a de sobrevivência do indivíduo. O progresso é pensado não mais a partir do contexto de um desejo de corrida para a frente, mas em conexão com o esforço desesperado para se manter na corrida. Você ouve atentamente as informações de que, neste ano, “o Brasil é o único local com sol no inverno”, neste inverno, principalmente se você quiser evitar ser comparado às pessoas que tiveram a mesma ideia que você e foram para lá no inverno passado. Ou você lê que deve jogar fora os ponchos que estiveram muito em voga no ano passado e que agora, se você os vestir, parecerá um camelo. Ou você aprende que usar coletes e camisetas deve “causar” na temporada, pois simplesmente ninguém os usa agora.

O truque é manter o ritmo com as ondas. Se não quiser afundar, mantenha-se surfando – e isso significa mudar o guarda-roupa, o mobiliário, o papel de parede, o olhar, os hábitos, em suma, você mesmo, quantas vezes puder. Eu não precisaria acrescentar, uma vez que isso deva ser óbvio, que essa ênfase em eliminar as coisas – abandonando-as, livrando-se delas –, mais que sua apropriação, ajusta-se bem à lógica de uma economia orientada para o consumidor. Ter pessoas que se fixem em roupas, computadores, móveis ou cosméticos de ontem seria desastroso para a economia, cuja principal preocupação, e cuja condição sine qua non de sobrevivência, é uma rápida aceleração de produtos comprados e vendidos, em que a rápida eliminação dos resíduos se tornou a vanguarda da indústria.

CULT – Neste mundo de “caçadores”, e não de jardineiros, não há então uma utopia possível? O “aqui e agora” se impõe como a única referência da existência humana?

Bauman – O problema é que, uma vez tentada, a caça se transforma em compulsão, dependência e obsessão. Atingir uma lebre é um anticlímax que só se torna atraente com a perspectiva de uma nova caça, com a esperança de que essa caça será a mais deliciosa (ou a única deliciosa?). Apanhar a lebre prenuncia o fim de todas as expectativas, salvo se outra caçada for planejada e imediatamente empreendida. Será que isso é o fim da utopia? Em um aspecto, é – na medida em que as primeiras utopias modernas previam um ponto em que o tempo chegaria a uma paragem, na verdade, o fim do tempo como história. Não existe tal ponto na vida de um caçador, um momento em que se poderia dizer que o trabalho foi feito, a missão, cumprida, e, assim, poder-se-ia olhar para a frente, para o descanso e gozo do saque, a partir de agora até a eternidade.

Em uma sociedade de caçadores, uma perspectiva de fim da caça não é tentadora, mas assustadora – uma vez que significa uma derrota pessoal. Os chifres anunciam o início de uma nova aventura, a doce memória e a ressurreição das aventuras do passado; não haverá fim à emoção universal… Só eu que fiquei de lado, excluído, impedido de usufruir as alegrias dos outros, apenas um espectador passivo do outro lado do muro, apenas vendo a outra parte, mas proibido de participar.

Se, em uma vida contínua e continuada, a caça é uma utopia, ela é – ao contrário das outras – uma utopia sem nenhum efeito. A utopia torna-se um fato bizarro se for medida por normas ortodoxas; as utopias clássicas prometiam o fim da labuta, mas a utopia dos caçadores encapsula o sonho de uma labuta que nunca termina. Ao contrário das utopias de outrora, a utopia dos caçadores não oferece sentido nenhum à vida, verdadeira ou fraudulenta. Ela apenas ajuda a perseguir o significado da vida longe do espírito da vida. Tendo redesenhado o curso da vida em uma interminável série de perseguições autocentradas, cada episódio vivido como uma abertura para o próximo, ela (a utopia) não oferece oportunidade de reflexão sobre a direção e o sentido da sua totalidade. Quando vem finalmente uma ocasião, um momento de queda ou de proibição da vida de caça, geralmente é tarde demais para a reflexão sobre a maneira de suportar a vida, da própria vida como a vida dos outros: é demasiado tarde para se opor à forma atual da vida.

CULT – Mas os sonhos persistem, não? O ser humano não pode viver sem acreditar em alguma coisa, ainda que seja algo fora do seu domínio imediato. E o desejo por um outro mundo possível persiste e mobiliza vários setores da sociedade, particularmente com a percepção cada vez mais forte das dificuldades de resolver os problemas da humanidade.

Bauman – Em um notável artigo sobre a persistência da utopia intitulado “Persistent utopia” (2008), Miguel Abensour cita William Morris (A dream of John Ball, Elec Book, 2001), que escreve em 1886 que os homens lutam e perdem a batalha, e as coisas que eles lutaram para acontecer, apesar da derrota, transformam-se para não ter o mesmo significado que antes, e outros homens têm de lutar por aquilo que agora se entende por outro nome. Morris escreveu sobre os seres humanos como tais e sugere que lutam por uma “coisa que não é”; é a forma como as pessoas são, é o caráter do ser humano. O “não” (nicht) como Ernst Bloch salientou “é a falta de algo e também o fugir do que falta”; assim, é o que falta para conduzir. Se estivermos de acordo com Morris, iríamos sempre ter utopias a ser elaboradas, já que expressões sistematizadas como essa fazem parte do aspecto crucial da natureza humana. Utopias foram todas as tentativas de enunciar e descrever em detalhes a coisa para a qual a próxima luta seria dirigida. Notamos, contudo, que todas as utopias escritas por Morris, antecessores e contemporâneos foram esquemas de um mundo em que as batalhas de coisas que não são não estão longe dos cartões. Essas batalhas não eram exigidas. Então, se estivermos de acordo com Morris, a natureza das coisas para as quais as pessoas lutavam era o fim da guerra, o fim das necessidades e dos deveres, e o desejo e a conveniência de ir à luta. E a grande coisa que manteve proveniente a ideia de lutar não pensando na batalha perdida, mas em seu significado e em incitar outras pessoas a lutar novamente pela mesma coisa com outro nome, foi o Estado, que não usa as mãos para lutar.

Temos as hostilidades que reaparecem após o armistício, que ficam muito aquém do êxtase de quem lutou e esperava pela paz. A inquietação do compulsivo, obsessivo, viciado caçador de utopias foi impelida e sustentada por um desejo de descanso. As pessoas corriam para a batalha que sempre persegue o sonho. Outra característica das utopias de William Morris, e por quase um século depois, foi o seu radicalismo.

CULT – O que vem a ser “radical”?

Bauman – Atos, empresas, meios e medidas podem ser chamados de “radicais” quando eles chegam até suas “raízes”, às de um problema, um desafio, uma tarefa. Note, contudo, que o substantivo latino radix, do qual se origina o adjetivo “radical”, diz respeito não só às raízes, mas também a fundações e origens. O que essas três noções – raiz, fundações e origens – têm em comum? Dois atributos.

Primeiro: em circunstâncias normais, o material de todos os três são referentes escondidos da vista e impossíveis de ser analisados, muito menos tocados diretamente. Qualquer coisa que tenha crescido em um deles, como troncos ou caules, no caso das raízes, a edificação, no caso das fundações, ou as consequências, no caso das origens, foi sobreposta sobre sua parte inferior, cobriu-a e depois emergiu escondida da visão. Por isso, tem que ser, primeiro, perfurada, as partes lançadas fora do caminho ou tomadas à parte, se se deseja um dos objetos segmentados quando pensar ou agir radicalmente. Segundo: no decurso do trilhar para esses objetivos, o crescimento desse material deve ser desconstruído, ou materialmente empurrado para fora do caminho, ou desmantelado. A probabilidade de que, a partir do trabalho de desconstrução/desmontagem das metas, emerjam todas as deficiências é alta. Tomar uma atitude radical sinaliza para a intenção da destruição – ou melhor, de assumir o risco da destruição, mais frequentemente o significado de uma destruição criativa –, destruição no sentido de um lugar para limpeza, ou para lavrar o solo, preparando-o para acomodar outros tipos de raízes. A política é radical se ela aceita todas as condições e se orienta por todas essas intenções e objetivos.

CULT – Uma das características dos tempos líquido-modernos é a decadência do planejamento a longo prazo. É possível um pensamento crítico e uma utopia neste contexto de queda da perspectiva do planejamento?

Bauman – Russel Jacoby propõe distinguir duas tradições, aparentemente coincidentes, mas não necessariamente ligadas, tradições do moderno pensamento utópico: o modelo (o projeto utopista de traçar o futuro em polegadas e minutos) e a tradição iconoclasta (os utopistas iconoclastas sonharam com uma sociedade superior, mas recusaram-lhe dar medidas precisas). Proponho que se mantenha o nome, como sugere Jacoby para o segundo, como tradição da utopia do “não projeto”. A característica definidora dessa tradição do segundo é a intenção de desconstruir, de desmistificar e, em última instância, de desacreditar os valores da vida dominante e suas estratégias de tempo, através da demonstração de que, contrariamente às crenças atuais, em vez de assegurarem uma sociedade ou vida superior, constituem um obstáculo no caminho para ambas.

Em outras palavras, o que eu proponho para descompactar o conceito de utopia iconoclasta, em primeiro lugar, é sobretudo a afirmação de uma possibilidade de uma outra realidade social – possibilidade ainda aterrada na revisão crítica dos meios e formas de apresentar a vida. Sendo este o principal interesse e a preocupação do utopista iconoclasta, não é de admirar que a alternativa ao atual permaneça incompleta; a principal causa do utopismo iconoclasta é a possibilidade de uma alternativa à realidade social, apesar de o seu desenho estar pouco desenvolvido. As utopias iconoclastas, presumo, são aberta ou tacitamente o caminho para uma sociedade superior, não se conduzem por meio de desenhos ou conselhos, mas sim por meio da reflexão crítica sobre práticas e crenças existentes de forma a – para recordar uma ideia de Bloch – explicitar que “uma coisa está faltando” e assim “inspirar a unidade para a sua criação e recuperação”.

Globalização: a crise e as duas saídas possíveis, por Walden Bello

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Agora, até os neoliberais enxergam: o fim das fronteiras fracassou. Caminharemos para um supremacismo neofascista, como o de Trump? Ou para uma comunidade de nações soberanas porém solidárias, imaginada por Polanyi e Keynes?

Walden Bello – OUTRAS PALAVRAS – 01/09/2025

Nos anos 1990, o pensamento dominante sustentou que estávamos entrando em uma era, conhecida como globalização; que o livre comércio e os fluxos de capital sem obstáculos, em uma economia global sem fronteiras, levariam ao melhor dos mundos possíveis. A maior parte das elites econômicas, políticas e intelectuais do Ocidente comprou essa visão. Ainda me lembro de como o venerável Thomas Friedman, do New York Times, zombou daqueles que resistíamos a essa visão, chamando-nos de “terraplanistas”. Ainda recordo a igualmente venerável revista Economist chamando as atenções sobre mim, por ter cunhado o termo “desglobalização”. Não para me aclamar como um profeta, mas como um tolo pregando um retorno a um passado jurássico.

Trinta anos depois, este terraplanista não sente orgulho algum de ter previsto o caos em que nos metemos, no qual globalização desenfreada teve papel destacado. As maiores taxas de desigualdade em décadas, pobreza crescente tanto no Norte Global quanto no Sul Global, desindustrialização nos Estados Unidos e em muitos outros países, endividamento massivo de consumidores no Norte Global e de países inteiros no Sul Global, uma crise financeira atrás da outra, a ascensão da extrema direita, mudança climática descontrolada e intensificação do conflito geopolítico. A globalização não levou a uma nova ordem mundial, mas a um Admirável Mundo Novo à moda de Huxley

Retratos de uma Era Sombria

Vou apresentar três imagens da era da globalização que agora estamos deixando para trás:

Retrato nº 1: A Apple foi uma das principais beneficiárias da globalização. A empresa liderou a fuga dos limites das economias nacionais para criar cadeias de suprimentos globais, sustentadas por mão de obra barata. Cito o New York Times a respeito:

A Apple emprega 43 mil pessoas nos Estados Unidos e 20 mil no exterior, uma pequena fração dos mais de 400 mil trabalhadores norte-americanos da General Motors nos anos 1950, ou das centenas de milhares na General Electric nos anos 1980. Muitas mais pessoas trabalham para as contratadas da Apple: outras 700 mil pessoas projetam, constroem e montam iPads, iPhones e outros produtos. Mas quase nenhuma delas trabalha nos Estados Unidos. Em vez disso, trabalham para empresas estrangeiras na Ásia, Europa e outros lugares, em fábricas das quais quase todas as empresas que desenham eletrônicos dependem, para fabricar seus produtos.

A Apple, é claro, não estava sozinha no movimento para desindustrializar os Estados Unidos. Foi acompanhada pelas coirmãs do setor de TI – Microsoft, Intel e Nvidia; pelas montadoras GM, Ford e Tesla; pelos gigantes farmacêuticos Johnson & Johnson e Pfizer; e por outras líderes em outros setores e serviços, como Procter & Gamble, Coca-Cola, Walmart e Amazon, para citar apenas algumas. O destino favorito foi a China, onde os salários correspondiam, à época, a 3-5% dos salários dos trabalhadores nos Estados Unidos. Estima-se, de forma conservadora, que o “Choque da China” tenha levado à perda de 2,4 milhões de empregos norte-americanos. O emprego na manufatura caiu para 11,7 milhões em outubro de 2009, uma perda de 5,5 milhões, ou 32% de todos os empregos no setor, a partir de outubro de 2000. A última vez em que menos de 12 milhões de pessoas trabalharam no setor manufatureiro nos EUA foi antes da Segunda Guerra Mundial, em 1941.

Retrato nº 2: A remoção das barreiras ao livre fluxo de capital global levou à crise da dívida do Terceiro Mundo no início dos anos 1980, que quase derrubou o Citibank e outras instituições financeiras norte-americanas, e à crise financeira asiática de 1997, que derrubou as chamadas economias milagrosas asiáticas. A eliminação dos controles de capitais globais foi acompanhada pela desregulamentação do sistema financeiro dos EUA, o que levou à criação de esquemas massivos de obtenção de lucro por meio da chamada mágica da engenharia financeira, como a negociação frenética de hipotecas subprime. Quando os títulos subprime foram expostos como “podres”, em 2008, milhões de pessoas faliram e perderam suas casas e todo o sistema global ficou à beira do colapso em 2008. Foi salvo apenas pelo resgate dos bancos norte-americanos, com dinheiro dos contribuintes, na ordem de mais de US$ 1 trilhão.

O Retrato nº 3 é o resumo do famoso economista francês Thomas Piketty sobre a tragédia econômica dos Estados Unidos no primeiro quartel do século XXI.

Quero enfatizar que a palavra “colapso” [no caso dos Estados Unidos] não é um exagero. Os 50% inferiores, na pirâmide da distribuição de renda detinham cerca de 20% da renda nacional de 1950 a 1980; mas essa participação foi reduzida quase à metade, caindo para apenas 12% em 2010–2015. A participação do centil superior seguiu na direção oposta, de apenas 11% para mais de 20%.

Paralelamente a esse aumento massivo da desigualdade nos Estados Unidos, houve um aumento da pobreza. Globalmente, de acordo com dados disponíveis, desde as crises financeiras de 2007-08, a desigualdade de riqueza aumentou, e agora o 1% mais rico detém metade da riqueza total das pessoas no planeta.

Vamos deixar de lado essa releitura nostálgica do passado e voltar à nossa boa amiga Apple. Ela agora está liderando o chamado processo de “reshoring” (relocalização). Leu os sinais nas estrelas e, embora isso afete negativamente seu lucro final e desorganize suas operações, está liderando, para proteger o restante de seus super  lucros, a relocalização de suas cadeias de suprimentos, com um investimento planejado de US$ 600 bilhões na fabricação dentro dos Estados Unidos de iPhone, iPad, MacBook, bem como na fabricação de chips semicondutores. Alardeando que os planos de manufatura da Apple criarão supostamente 450 mil empregos nos Estados Unidos, o CEO Tim Cook admitiu ser um refém da pressão de Trump para desglobalizar as operações das empresas norte-americanas, afirmando: “O presidente disse que quer mais nos Estados Unidos… então nós queremos mais nos Estados Unidos.” Onde a Apple vai, outros seguem, entre elas as fabricantes de chips norte-americanas Intel e Nvidia, a líder automotiva Tesla e a gigante farmacêutica Johnson & Johnson.

Mas as empresas estadunidenses não são as únicas reféns da política. Entre as companhias estrangeiras que cederam ao impulso ultraprotecionista de Trump por meio de aumentos unilaterais de tarifas, regionalizando ou nacionalizando suas linhas de suprimento, estão a Hyundai Motors, a Honda Motors, a Samsung Electronics, a fabricante taiwanesa de chips TSMC e a empresa farmacêutica Sanofi.

Embora a relocalização tenha avançado aos tropeços na última década, sob o primeiro governo Trump e o governo Biden, é provável que se acelere nos próximos anos, apesar de restrições e ineficiências, à medida que o nacionalismo econômico cresce nos Estados Unidos e no Ocidente. Em 2023, um estudo exaustivo sobre empresas norte-americanas mostrou que mais de 90% das corporações industriais da região haviam movido pelo menos parte de sua produção ou cadeia de suprimentos nos últimos cinco anos. Outro estudo realizado ao mesmo tempo mostrou que, até 2026, 65% das empresas pesquisadas estariam comprando a maioria dos itens essenciais de fornecedores regionais, em comparação com apenas 38% em 2023. Como Trump impôs tarifas unilaterais ao México e ao Canadá, as empresas estão percebendo que não será suficiente mudarem-se para os parceiros do NAFTA para apaziguar Trump. Elas terão que se realocar nos próprios Estados Unidos, apesar da ruptura e do caos que possam acompanhar esse processo, como o que viu 300 trabalhadores vitais para a instalação da Hyundai na Geórgia serem presos pela ICE (Polícia de Imigração) e deportados para a Coreia.

A revolta: desencadeada pela esquerda, capturada pela direita

A tremenda raiva e ressentimento globais diante da distopia à qual a globalização liderada pelas corporações nos levou é talvez a maior razão pela qual a desglobalização será a tendência por muito, muito tempo. Essa revolta surgiu primeiro entre a esquerda, que infligiu um revés do qual a globalização corporativa nunca se recuperou durante a histórica Batalha de Seattle em dezembro de 1999. Mas foram Donald Trump e outras forças da extrema direita que cavalgaram com sucesso essa revolta, para chegarem ao triunfo político nos Estados Unidos e na Europa nas décadas seguintes.

Em outras palavras, a política da revolta, e não a economia da eficiência estreita a serviço da rentabilidade corporativa, é o que agora comanda. Nos Estados Unidos, a globalização criou duas comunidades antagônicas: uma que se beneficiou do processo, devido à sua educação e renda superiores, a outra que sofreu com ela devido a suas desvantagens tanto econômicas quanto educacionais. Esta última é o vasto setor da população que Hillary Clinton chamou de “deploráveis”, mas que é mais conhecido como o povo do “Make America Great Again” ou base MAGA. Essa comunidade não esquecerá facilmente nem os sofrimentos provocados pela desindustrialização liderada pela Apple e outras transnacionais conhecidas, nem as ofensas que sofreram de Hillary, a quem consideram estar no bolso de Wall Street.

Uma segunda razão para a força da onda de desglobalização é que a ordem multilateral – que servia como biombo político ou sistema de governança para o livre comércio e fluxos de capital sem obstáculos – está à beira do colapso. A Organização Mundial do Comércio (OMC), que já foi descrita como a joia da coroa do multilateralismo, não é mais capaz de governar o comércio mundial, em parte devido a sabotagens dos Estados Unidos. Sob Obama e depois Trump e Biden. Washington não pôde mais contar com decisões favoráveis em disputas comerciais. O Fundo Monetário Internacional não se recuperou de sua reputação de promover a “austeridade” nos países em desenvolvimento e seu impulso por fluxos de capital sem freios que derrubaram as economias dos tigres asiáticos. O Banco Mundial também está desacreditado por sua cumplicidade na imposição de medidas de “austeridade”, bem como pela política equivocada de industrialização orientada para a exportação para os mercados do Norte Global que prescreveu como a rota para a prosperidade dos países em desenvolvimento. Esta rota agora é especialmente fatal para aqueles que a seguiram, dado o ultraprotecionismo que varre os Estados Unidos.

Em terceiro lugar, a segurança nacional, tanto a segurança econômica quanto a segurança militar, substituiu a prosperidade por meio do comércio e do investimento como a principal consideração nas relações entre países. Tanto o governo Biden quanto o governo Trump proibiram a transferência de chips de computador avançados para a China, e mais medidas desse tipo virão. Reorganizar e regionalizar – quando não nacionalizar – o acesso e as linhas de suprimento para recursos-chave de tecnologias avançadas como lítio, terras raras, cobre, cobalto e níquel é agora uma preocupação primordial, com o objetivo não apenas de monopolizar essas commodities sensíveis, mas também de impedir que concorrentes se apossem delas.


Dois Caminhos para um Mundo Desglobalizado

A questão não é a inevitabilidade da desglobalização, mas a forma que o processo assumirá. A desglobalização marcada pelo ultraprotecionismo nas relações comerciais, pelo unilateralismo e isolacionismo nas relações econômicas e militares, e pela criação de um mercado interno voltado principalmente para os interesses da maioria racial e étnica é uma maneira de desglobalizar. Esse é o rumo para o qual Trump está liderando os Estados Unidos.

Mas existe outra maneira de desglobalizar, cujos elementos-chave apresentei no meu livro Desglobalização: Ideias para uma Nova Economia Mundial, há 25 anos.

Primeiro, não exigimos um retorno à autarquia, mas sim uma participação contínua na economia internacional, porém de forma que garanta que, em vez de inundá-la, as forças do mercado internacional sejam aproveitadas para ajudar a construir a capacidade de sustentar uma economia doméstica vibrante.

Segundo, propomos que, por meio de uma combinação criteriosa de medidas redistributivas que promovam a igualdade e de tarifas e cotas razoáveis, o mercado interno volte a ser o motor de uma economia saudável, em vez de ser um apêndice de uma economia orientada para a exportação.

Terceiro, promovemos a participação em uma pluralidade de agrupamentos econômicos – aqueles que permitem aos países manter um espaço político para o desenvolvimento, em vez de aprisioná-los em um único organismo global, a Organização Mundial do Comércio, com um conjunto uniforme de regras, que favorece os interesses das corporações transnacionais em vez de os interesses de seus cidadãos.

Quarto, inspirados pelo trabalho de Karl Polanyi, defendemos a reinserção do mercado na comunidade, de modo que, em vez de conduzi-la, como no capitalismo global, o mercado fique sujeito aos valores e ritmos da comunidade.

E finalmente, em contraste com a extrema direita, sustentamos a noção de comunidade como aquela em que a participação não é determinada por sangue ou etnia, mas por uma crença compartilhada em valores democráticos.

Essa é a alternativa que oferecemos um quarto de século atrás. Esse sistema fluido de comércio internacional capaz de permitir, especialmente às economias do Sul Global, o espaço para buscar um desenvolvimento sustentável não está distante do sistema comercial global flexível anterior à decolagem da globalização, no final dos anos oitenta — o Acordo Geral de Tarifas e Comércio, GATT. Vinte e cinco anos atrás, promovíamos e continuamos a promover uma rota de desglobalização progressiva, que evita, por um lado, o extremo da distopia doutrinária da globalização liderada pelas corporações e, por outro, o unilateralismo e protecionismo selvagens.

Esse caminho para a desglobalização não é novo, nem, alguns alegariam, particularmente radical. O consenso de senso comum de Keynes, abordando a situação global nos anos 1930, é muito relevante para os nossos tempos: “Que as mercadorias sejam feitas em casa sempre que for razoável e convenientemente possível, e, acima de tudo, que as finanças sejam primordialmente nacionais.”

Se tivéssemos seguido esse caminho, ouso dizer, é muito provável que não estaríamos imersos no caos terrível em que o mundo se encontra hoje, com a ameaça não apenas de guerra comercial, mas de guerra real à sua porta. Ainda há tempo para seguir esse caminho, mas a janela de oportunidade está se fechando rapidamente.

Modelo econômico

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Vivemos numa sociedade bem interessante, marcada pelo crescimento da tecnologia, que aproximam as pessoas e, ao mesmo tempo, nos distanciam; uma sociedade marcada pelo crescimento da riqueza material onde poucos podem usufruir de bens sofisticados e, uma grande massa, sobrevive na indignidade, na exploração e na subserviência. Estamos vivendo em um momento de grandes transformações estruturais, cujos impactos ainda não podem ser mensurados, onde os vestígios do futuro são preocupantes e muito inquietantes.

De um lado, percebemos uma alteração nos relacionamentos humanos, neste cenário de instabilidades, medos e incertezas, as pessoas evitam relacionamentos duradouros e compromissos mais sólidos, como nos ensina o grande sociólogo polonês, Zygmunt Bauman, estamos no mundo sólido, dos amores sólidos e dos sentimentos líquidos, marcados pela superficialidade, onde as pessoas se refugiam em seu individualismo crescente, no imediatismo defensivo, buscando seus prazeres imediatos, vontades variadas e se distanciando das frustrações, acumulando imaturidades e vazios sentimentais.

Vivemos num mundo onde a ciência destravou grandes descobertas científicas e tecnológicas, superando doenças vistas como incuráveis e criou novos horizontes para a vida humana, mas ao mesmo tempo, nos deliciamos com a destruição material, destruímos nações inteiras para nos apoderarmos de suas riquezas naturais, deixando os povos na devastação e na degradação, aumentando as privações materiais e as pobrezas morais, um mundo marcado por grandes contradições.

Vivemos numa sociedade marcada pela hiperconcorrência, neste cenário estamos em constante competição, antes competíamos com produtores locais, muitos deles conhecidos, atualmente estamos num mercado global, competindo com produtores de outras regiões do mundo. Neste ambiente estamos cotidianamente nos preparando para a sobrevivência, requalificando, recapacitando, reconectando e mesmo assim, não temos a garantia de que conseguiremos sobreviver na competição global, acreditamos nas virtudes do livre comércio e percebemos que, em muitas nações, governos dispendem bilhões de dólares para garantir seus negócios bilionários e proteger seus sistemas econômicos e produtivos.

Vivemos num mundo marcado pela busca frenética por riquezas naturais, minérios estratégicos e energias alternativas para garantir e manter o status quo de poucos e, para isso, destroem nações inteiras, acusam terrorismo externo e invadem países, gerando destruições e colocando, no poder, apaniguados e fantoches para garantirem e perpetuarem a exploração e um novo colonialismo.

Vivemos num mundo onde os donos do poder controlam os grandes recursos monetários e financeiros globais, exigem taxas de juros estratosféricas, controlam os Bancos Centrais, compram governos subservientes e garantem enriquecimento de seus apaniguados e, num momento de crises financeiras globais, como a acontecida nos anos 2007/2008, exigem resgates bilionários para evitar perdas elevadas e transferem os passivos estratosféricos para os pobres, endividando a classe média e levando pessoas ao desemprego crescente, criando uma epidemia de depressão e suicídios, que embora crescentes, são ignoradas e deixadas de lado pela mídia tradicional.

Vivemos num momento de grandes degradações da humanidade, na meca do capitalismo global, os Estados Unidos, estamos percebendo o surgimento de mortes por desespero, todos percebemos as devastações crescentes do mundo contemporâneo e deixam de lado uma reflexão sobre o modelo econômico dominante, excludente, destruidor da dignidade humana, impulsionando a desigualdade global e, neste cenário, percebemos um receituário surreal, mais privatização, mais empreendedorismo, mais concorrência e mais devastação ambiental. O mundo civilizado acordou deste nefasto receituário, mas nós, infelizmente, estamos adotando as mesmas políticas e acreditando que somos modernos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

 

China, na antecâmara do futuro, por Marcelo Viana

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Marcelo Viana, Diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e Aplicada, ganhador do Prêmio Louis D., do Institut de France.

Folha de São Paulo, 30/09/2025.

Nas décadas que se seguiram à independência dos Estados Unidos, pensadores e estudiosos europeus como o aristocrata francês Alexis de Tocqueville (1805-1859) viajaram extensivamente pelo jovem país, admirando e analisando criticamente o nascimento de uma nação, uma cultura e uma sociedade como o mundo nunca vira. Hoje, algo semelhante está acontecendo na China.

São as pequenas coisas, como o robozinho do meu hotel em Pequim. Nos conhecemos no elevador. Entrou no terceiro andar, deu oi (“Ni hao!”) e girou para encarar a saída. Não sei como disse ao elevador para onde ia. Quando a porta abriu no sétimo andar, saiu para ir à sua vida.

A segunda interação foi mais substancial. Encomendei o jantar por aplicativo, para entrega no quarto. Algum tempo depois ligaram da recepção: eu não falo chinês, a pessoa não falava inglês, foi um diálogo bem curto. Alguns minutos depois ouvi a campainha do quarto. Abri a porta e lá estava o robozinho, entregando a minha comida e me desejando bom apetite (acho…).

São coisas maiores, como o centro de treinamento de última geração onde a Universidade Beihang forma anualmente centenas de profissionais para a indústria aeronáutica e aeroespacial da China (Beihang é a número um do mundo na área). Novos modelos de avião são testados em simuladores equipados com softwares avançados, muito antes de qualquer protótipo da aeronave começar sequer a ser construído para testes reais. A matemática e a computação guiando a engenharia.

E são as coisas realmente grandes, como a incrível rede de trens de alta velocidade que a China construiu nos últimos 15 anos. Cerca de 50 mil quilômetros de linhas eletrificadas que já ligam todas as cidades acima de 1 milhão de habitantes, a velocidades entre 200 e 350 km/h. E não para de crescer: até 2035 deverão alcançar 70 mil quilômetros.

O conforto e a eficiência, econômica e ambiental, estão muito além dos sonhos do transporte rodoviário ou aéreo baseado em combustíveis fósseis. A viagem de cerca de 1.250 quilômetros entre Pequim e Hangzhou, na região de Xangai, tomou 4h40 e foi muito repousante. Vou lembrar na próxima vez que eu for do Rio a Brasília (mesma distância) de carro, ônibus ou avião.

Certos aspectos do modelo de desenvolvimento da China são um pouco perturbadores para um visitante ocidental. Nas universidades chinesas, não há folha de frequência para os alunos assinarem: a presença de cada um é aferida automaticamente pela detecção do respectivo celular na sala de aula. Em algumas instituições, as aulas são filmadas e as imagens ficam acessíveis a uma comissão interna da universidade. O objetivo oficial é aferir a qualidade da docência.

A minha entrada na Cidade Proibida, a espetacular residência histórica dos imperadores da China, foi validada por reconhecimento facial. O estudante de doutorado da Universidade de Pequim que gentilmente me servia de guia e tradutor questionou: “Quando eles tomaram seus dados?”. “Só pode ter sido a polícia no aeroporto, na chegada”, respondi. Aparentemente, a minha biometria ficou automaticamente acessível a uma miríade de instituições em todo o país.

As pessoas com quem interagi durante as três semanas no país parecem aceitar tais coisas com naturalidade, estimando que o lucro em comodidade e eficiência supera o prejuízo em privacidade individual. O que não elimina os riscos, obviamente. Continuarei na semana que vem.

 

Miséria, desespero e suicídio no capitalismo, por Michel Goulart da Silva

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É somente uma escolha pessoal tirar a própria vida? Quando isso se torna epidêmico, não revelaria um sistema opressor, que impõe o produtivismo e o fetiche da felicidade ao mesmo tempo, gerando um sofrimento coletivo? Haveria aí um recorte de classes?

Michel Goulart da Silva – OUTRAS PALAVRAS – 26/09/2025

O suicídio se manifesta como um fenômeno social complexo, como expressão do sofrimento ao qual as pessoas estão submetidas, especialmente em relação à exploração de classe. Leva-se em conta que

“[…] o grosso dos homens e mulheres que se suicidam são da classe trabalhadora. Quem se suicida não é um indivíduo abstrato que, na melhor das hipóteses, é homem ou mulher, tem uma certa idade e vive em determinadas condições socioeconômicas. O porquê de ele estar em tais condições é ocultado ou, simplesmente, dado como natural, em vez de explicado”.1

O adoecimento mental é produto das contradições da sociedade capitalista, que se materializa em ansiedade, estresse, depressão, fobia social, desordens alimentares, automutilação, insônia, entre outras coisas. O massivo adoecimento se dá em meio a um cenário no qual se fala muito na necessidade do “sentir-se bem”, mas o fetiche de uma vida feliz, vendido pela classe dominante e baseado num certo entendimento de sucesso profissional e de família estável, além de pressionar as pessoas para que almejem alcançar conquistas muitas vezes irreais, esconde as contradições que levam os trabalhadores a situações de desgaste físico e mental, de sofrimento e adoecimento.

Na sociedade capitalista, os trabalhadores se veem pressionados pela manutenção ou ampliação da produtividade, ao mesmo tempo exigindo-se que sejam o que se convencionou chamar de profissionais “bem-sucedidos” e, ao mesmo tempo, devendo ter uma vida feliz em âmbito privado. Contudo, no sistema capitalista até mesmo essa vida pessoal está nas mãos do capital, que não pode permitir que qualquer coisa atrapalhe a produtividade do trabalho. Exige-se que o trabalhador alcance a “felicidade”, desde que se mantenha o funcionamento da economia e a exploração sobre a força de trabalho.

O tema da saúde mental deve ser entendido como parte da realidade concreta da exploração capitalista. Associar a saúde mental apenas a fatores biológicos de indivíduos isolados implica em excluir o seu caráter histórico e social. Os fatores biológicos, que podem concorrer para o adoecimento, não se explicam sozinhos, devendo estar articulados à compreensão da dinâmica histórica e das contradições da sociedade. O ciclo vital do ser humano varia em diferentes épocas, a partir das condições materiais em que produz sua existência. Pode inclusive ter particularidades no interior das diferentes classes sociais em uma mesma época e sociedade, ou seja, em última instância, a forma de produção e reprodução da vida em sociedade determina a existência de diferentes transtornos físicos e mentais.

Nesse sentido, para pensar a saúde e a doença, é fundamental compreender as formas como se organiza o processo de trabalho e de produção de mercadorias e como isso impacta na vida das pessoas; essa compreensão permite entender como se adoece e se morre nas diferentes classes em determinada sociedade. No capitalismo, a burguesia precisa de trabalhadores aptos a produzirem em suas fábricas, ou seja, na lógica capitalista, o que determina ser saudável ou não é a capacidade do sujeito de trabalhar e manter-se produtivo. Marx destacava que o capital não tem “a mínima consideração pela saúde e duração da vida do trabalhador, a menos que seja forçado pela sociedade a ter essa consideração”.2

Neste modo de produção, ser ou não saudável está relacionado ao desgaste da força de trabalho. Esse desgaste aponta elementos que extrapolam as análises focadas apenas nas causas imediatas do adoecimento, devendo abarcar também os impactos físicos e psicológicos do processo de trabalho, no médio e no longo prazo, que afetam a vida e até mesmo o cotidiano do trabalhador. Marx comentava que o capital

“[…] usurpa o tempo para o crescimento, o desenvolvimento e a manutenção saudável do corpo. Rouba o tempo requerido para o consumo de ar puro e de luz solar. Avança sobre o horário das refeições e os incorpora, sempre que possível, ao processo de produção, fazendo com que os trabalhadores, como meros meios de produção, sejam abastecidos de alimentos do mesmo modo como a caldeira é abastecida de carvão, e a maquinaria, de graxa ou óleo”.3

Engels, em seu clássico estudo sobre a situação da classe trabalhadora na Inglaterra no século XIX, associava o adoecimento às adversidades “a que os operários estão expostos em razão das flutuações do comércio, do desemprego e dos salários miseráveis em tempos de crise”. 4 Segundo o estudo de Engels, essa situação trazia graves consequências para a saúde dos trabalhadores:

“Acontece com frequência que, acabando o salário semanal antes do fim da semana, nos últimos dias a família careça de alimentação ou tenha apenas o estritamente necessário para não morrer de fome. É claro que semelhante modo de vida só pode originar toda sorte de doenças; quando as enfermidades chegam, quando o homem — cujo trabalho sustenta a família e cuja atividade física exige mais alimentação e, por conseguinte, é o primeiro a adoecer —, quando esse homem adoece, é então que começa a grande miséria”.5

Nos últimos séculos, o capitalismo passou por mudanças na forma de organização do trabalho, como respostas às suas crises cíclicas, garantindo a manutenção da extração de mais-valia. Essas formas de organização têm impacto também no cotidiano do trabalhador, como a perspectiva de controle inclusive sobre a vida privada, como foi o caso do fordismo. Nas últimas décadas, o que marca mais profundamente o processo de organização do trabalho é o chamado toyotismo. Essa forma de organização da produção tem como uma de suas características o chamado trabalho flexível, exigindo do trabalhador um maior engajamento no processo de produção, também afetando a sua subjetividade.

Diante do desgaste físico e mental, os trabalhadores sofrem com o medo de serem descartados. Suas condições física e psicológica, como a idade ou o desenvolvimento de doenças crônicas, podem se tornar um problema para a permanência no trabalho ou para encontrar um novo emprego, correndo o risco de ficar sem qualquer ocupação. Marx comentava que, para o capital, “as forças de trabalho retiradas do mercado por estarem gastas ou mortas têm de ser constantemente substituídas, no mínimo, por uma quantidade igual de novas forças de trabalho”.6

O adoecimento mental pode se manifestar por meio de diversos sintomas e transtornos, tendo relação com as diferentes formas de organização do processo produtivo. Uma doença comum entre os trabalhadores é a depressão, associada ao desânimo em relação à realidade e à própria vida, fazendo com que a pessoa perca a vontade não apenas de agir, mas até mesmo de ter qualquer interação com o mundo que a cerca. Outro transtorno mental comum é a ansiedade, relacionada ao sentimento de angústia, em que a pessoa se vê impotente diante de uma realidade que a oprime.

Um elemento que se relaciona a todos esses sintomas e transtornos é o estresse. Trata-se de um conjunto de reações do indivíduo diante dos problemas com os quais precisa lidar em seu cotidiano, provocando nervosismo, tristeza, apatia, entre outras coisas. O acúmulo desses sentimentos pode provocar uma diversidade de reações fisiológicas e psíquicas, que levam ao esgotamento.

Fenômenos como a depressão, a ansiedade e o estresse e outras formas de adoecimento estão relacionados entre si, podendo ser não apenas a causa de uma ou outra, como uma possível manifestação de agravamento. Esses não são fenômenos que surgem ao acaso, como um problema individual causado por uma crise momentânea, mas produto do vivenciar a sociedade e do estar no mundo. Diante dessas formas de adoecimento, ainda prevalece uma certa percepção da saúde mental que “individualiza o fracasso, na forma de culpa”, fazendo com que se isole “a dimensão política, das determinações objetivas que atacam nossas formas de vida, redimensionando trabalho, linguagem e desejo, do sofrimento psíquico”.7

O suicídio não escapa a esse tipo de interpretação simplista, prevalecendo a ideia de que se trata de uma escolha subjetiva ou de uma vontade individual. Essa percepção lembra a polêmica de Marx em seu escrito de 1846 sobre o suicídio, quando critica a perspectiva dos socialistas utópicos. Para Marx, o número de suicídios deveria “ser considerado um sintoma da organização deficiente de nossa sociedade”, afinal, segundo sua compreensão, “na época da paralisação e das crises da indústria, em temporadas de encarecimento dos meios de vida e de invernos rigorosos, esse sintoma é sempre mais evidente e assume um caráter epidêmico”.8

O suicídio é um ato que nunca se pode ter total certeza de quais são as suas causas. Especula-se sobre os motivos que teriam levado a pessoa ao suicídio, normalmente procurando em questões imediatas um gatilho que a teria levado a esse extremo. Contudo, dificilmente se consegue chegar a uma plena compreensão das motivações. Na medida em que o senso comum considera o suicida alguém fraco e desprotegido, possivelmente a vítima opta por esconder a profundidade de seu sofrimento, escondendo parte de suas motivações, seja numa carta de despedida ou mesmo numa sessão de psicoterapia.

Sabe-se que o suicida, de alguma forma, perde suas esperanças em estar no mundo. O ato suicida parece ser uma escolha equivocada, afinal, segundo o senso comum, bastaria continuar lutando contra tudo e contra todos e ter a vontade de se erguer. Contudo, isso ignora as condições materiais a que essa pessoa foi submetida ao longo de sua vida. Soma-se a isso uma realidade em que as relações pessoais são afetadas pelos problemas sociais e, portanto, paixões e sonhos de futuro acabam não encontrando a satisfação que se espera de uma vida em comum.

Portanto, se uma pessoa chega ao limite de tentar tirar a própria vida, não significa apenas uma escolha ou ação pessoal, mas a expressão do esgotamento diante de uma realidade opressora, exploradora e cheia de dores e adoecimento. O suicídio muitas vezes é associado à depressão, ainda que não seja a única explicação possível. Diante da depressão, parece que “o sujeito interpreta adversidades como sinal e permissão para a desistência. Os triunfos são sentidos como derrotas e as realizações, como sinais de insuficiência”.9

Para começar a resolver o problema do adoecimento físico e mental, não resta outra coisa que não seja atacar sua causa, ou seja, é preciso construir uma nova sociedade. Contudo, um primeiro obstáculo para que se possa caminhar no sentido dessa solução passa justamente pelo fato de que uma das consequências do adoecimento físico e mental das pessoas é o abandono de quaisquer perspectivas de futuro, optando não por saídas complexas e de longo prazo, mas por soluções mais imediatas, como o consumo de drogas, entre outras coisas. Certamente não se trata de um erro procurar amenizar os sofrimentos provocados pela sociedade capitalista e sua fábrica de misérias. Contudo, ao mesmo tempo, é preciso lutar contra uma das mais cruéis consequências do capitalismo, que é a perda do senso de coletividade e a busca de soluções baseadas no individualismo.

Uma nova sociedade, em que o lucro não esteja no centro de tudo e que o trabalho não seja um pesado fardo carregado pelas pessoas, pode ser um primeiro passo para que se possa viver uma vida mais saudável. Um novo mundo, em que seja possível superar a miséria e o adoecimento, precisa ser construído, mas, para tanto, é fundamental que os trabalhadores transformem a realidade e se coloquem na luta pelo socialismo, superando, assim, as sequelas que a miséria capitalista impõe cotidianamente.

Notas:

1 COSTA, Paulo Henrique Antunes; MENDES, Kíssila Teixeira. Sobre o suicídio (no Brasil contemporâneo): um retorno a Marx. Brasília: Editora UnB, 2024, p. 36-7.

2 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 342.

3 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013, Livro I, p. 337-8.

4 Engels, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 141.

5 Engels, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 115.

6 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013, Livro I, p. 246.

7 DUNKER, Christian. A hipótese depressiva. In: Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. São Paulo: Autêntica, 2021, p. 190.

8 MARX, Karl. Sobre o suicídio. São Paulo: Boitempo, 2006, p. 24.

9 DUNKER, Christian. Reinvenção da intimidade: políticas do sofrimento cotidiano. São Paulo: Ubu, 2017, p. 225.

 

Como o Legislativo capturou o Orçamento, por Glauco Faria

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Estudo da UFRJ disseca as emendas parlamentares, uma deformação que corrói a política brasileira. Quais suas modalidades e como surgiram. Como fragmentam o fundo público e o desviam para corrupção eleitoral. Por que isso só ocorre no Brasil

Glauco Faria – OUTRAS PALAVRAS – 25/09/2025

O fortalecimento do Legislativo diante dos outros dois Poderes nos últimos anos, e a captura do Orçamento Público que ele promove, quase nunca são tratados da forma como merecem. Em geral, são banalizados como se fossem apenas uma expressão do jogo de poder político. Ou então, como mais um dado da paisagem de Brasília, em que personagens se sucedem num enredo no qual se discute se o governo perdeu ou não, ou se os parlamentares estão “insatisfeitos” com determinada medida do Judiciário. O quadro é bem mais grave do que sugerem os comentaristas da mídia corporativa e traçar o caminho que nos trouxe até aqui é essencial para compreender o grau de deformação do nosso sistema político.

Por isso, é tão importante o relatório “As emendas parlamentares no Brasil e no Mundo”, elaborado pelo Laboratório de eleições, Partidos e Política Comparada (Lappcom) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A partir de vasta pesquisa, o estudo recupera a trajetória do principal instrumento que tornou o Congresso Nacional capaz de renegar o diálogo com o Executivo para avançar em suas prerrogativas orçamentárias.

“Mais do que simples instrumentos de alocação de recursos, as emendas se tornaram expressão de um conflito federativo: de um lado, o Executivo busca preservar sua capacidade de conduzir a política econômica e coordenar prioridades nacionais; de outro, o Legislativo amplia sua autonomia e fragmenta o orçamento em múltiplos interesses locais”, destaca a coordenadora do Lappcom, Mayra Goulart.

Ela pontua ainda que não se trata de um simples embate entre Executivo e Legislativo, mas algo que reconfigura o arranjo institucional concebido pela Constituição de 1988. Seu sentido é de uma “uma ameaça republicana”, já que “corrói a lógica universalista de provisão de direitos e aprofunda um afastamento entre representantes e representados”, aponta Mayra. “O resultado é um fechamento do Congresso em torno de suas próprias lógicas de autopreservação, desconectando-se das preferências populares.”

O ocaso de um modelo

Desde a redemocratização, o modelo de presidencialismo de coalizão no Brasil funcionou basicamente de dois modos na relação Executivo-Legislativo. O governo tentava garantir um apoio parlamentar mais fiel e perene, negociando com os partidos cargos nos ministérios e em outros escalões do aparelho estatal. Em votações mais problemáticas, nas quais era necessário um esforço maior para obter a maioria, também eram acionadas negociações pontuais de forma individual com parlamentares, mesmo aqueles que não faziam parte da base governista. Neste caso, a moeda de troca era o destravamento de emendas e a liberação de recursos.

Este cenário começa a mudar em 2015. A Emenda Constitucional 86 tornou impositivas as emendas individuais dos parlamentares, garantindo a elas ainda uma reserva de 1,2% da Receita Corrente Líquida (RCL) da União. Estas emendas também passaram a ter uma espécie de salvaguarda em relação ao contingenciamento de recursos, um artifício usado pelo Executivo para restringir a execução do Orçamento. Elas somente podem ser contingenciadas de forma proporcional às despesas discricionárias.

Assim, mesmo o chamado “baixo clero”, aquela parcela do Congresso Nacional apartada das lideranças políticas da Casa e das direções dos partidos, passou a ter em mãos um instrumento poderoso de articulação política local, aumentando ainda seu poder de barganha com o Executivo. À época, um deputado que fazia parte do segmento celebrou a decisão.

Em entrevista à jornalista Mariana Godoy, na RedeTV!, o então deputado federal fluminense do PP, Jair Bolsonaro, afirmava que, com a mudança promovida pela Emenda Constitucional 86, o governo não poderia mais “chantagear” o Legislativo. “O que um parlamentar tem para negociar em Brasília? É seu voto. Esse Congresso melhorou muito em relação ao do passado, em especial, graças ao atual presidente, Eduardo Cunha, que aprovou uma PEC, proposta de emenda à Constituição, que trata do Orçamento impositivo”, disse. Questionado sobre o governo ficar refém do Congresso Nacional, Bolsonaro respondeu: “Não fica refém. O governo não está refém, o governo tem de respeitar. Somos três Poderes aqui”.

As declarações do parlamentar foram resgatadas por deputados em fevereiro de 2020 quando ele, agora na condição de presidente da República, resistia em negociar com o Legislativo um pacto que permitia ao Congresso indicar a prioridade de execução de todos os R$ 16 bilhões de emendas parlamentares e de R$ 15 bilhões dos R$ 30 bilhões aprovados no Orçamento como emendas de relator. Mais adiante, Bolsonaro cederia bem mais do que isso.

A evolução das emendas

O confronto entre o deputado Bolsonaro e o presidente Bolsonaro evidencia como alterações casuísticas, tomadas diante de certa indiferença da sociedade em função de disputas políticas de momento, podem resultar em grandes distorções e conflitos no âmbito institucional.

A transformação iniciada em 2015 foi aprofundada em 2019, quando a Emenda Constitucional número 100 determinou a execução obrigatória das emendas das bancadas estaduais no Congresso, conferindo maior poder coletivo a elas e ampliando o alcance da influência direta dos parlamentares no destino dos recursos. No mesmo ano, surgiu um novo instrumento, a “transferência especial”, instituída pela Emenda Constitucional número 105, conhecida mais tarde como “emenda Pix” (RP 7). Essa modalidade permitiu repasses diretos da União a estados e municípios sem nenhuma necessidade de convênios ou planos de trabalho, sob o argumento de agilizar a execução e reduzir a burocracia.

A opacidade era tal que a medida que acabou provocando, mais tarde, um debate sobre transparência e controle, culminando na suspensão temporária pelo STF, em 2024 e, posteriormente, na imposição de regras mais rígidas por meio da Lei Complementar número 210/2024.

Em seu conjunto, estas medidas produziram um aumento exponencial do volume de recursos públicos controlado de forma fragmentada pelos parlamentares — e subtraído, portanto do planejamento da União. relatório do Lappi-UFRJ descreve que, entre 2014 e 2016, no governo Dilma, o total empenhado em emendas foi de R$ 21,79 bilhões, enquanto no governo Temer, o valor saltou para R$ 37,35 bilhões. Já na gestão Bolsonaro, o montante atingiu R$ 108,36 bilhões, consolidando as emendas como peça central da política orçamentária. Posteriormente, no governo Lula 3, até 2024, o volume chegou a R$ 80,19 bilhões, com autorização de mais R$ 50 bilhões para 2025.

Essa curva de crescimento não se deu da mesma forma entre os diferentes tipos de emenda. As individuais, por exemplo, tiveram aumentos sucessivos até dobrarem de peso entre Bolsonaro e Lula, enquanto as de bancada avançaram em ritmo acelerado a partir de 2016. As de comissão, por muito tempo coadjuvantes na definição do orçamento já que não são impositivas, tiveram uma explosão, com um crescimento de um crescimento de 2967,24% entre as gestões Bolsonaro e Lula.

O auge de todo esse processo foi o uso, entre 2020 e 2022, das chamadas emendas de relator (RP 9), núcleo do “orçamento secreto”, com poder discricionário de distribuição de verbas. Nesse último ano, elas foram declaradas inconstitucionais pelo STF, por falta de transparência e critérios específicos.

Na prática, o que antes era um recurso acessório e importante em termos de complementariedade de políticas públicas tornou-se um canal gigantesco de drenagem orçamentária. O Legislativo conquistou poder sem precedentes sobre os cofres públicos, em um movimento que reforça sua centralidade e impõe dilemas como a ausência de transparência, a emergência de um novo tipo de clientelismo e, sobretudo, a redefinição a governabilidade.

O orçamento brasileiro diante das experiências internacionais

Com o nítido cenário de crise permanente, resultante deste empoderamento do Legislativo, fica a questão: o Brasil, mais uma vez, adotou um modelo que poderia ser apelidado no jargão político como “jabuticaba”, por só existir aqui? Nesse aspecto, o relatório traz uma análise comparativa para situar o sistema brasileiro modificado a partir de 2015 em relação a outras experiências internacionais.

O estudo destaca que o constitucionalista britânico Philip Norton distinguiu três tipos de Legislativos: os que efetivamente fazem políticas (policy-making), os que apenas influenciam (policy-influencing) e os que pouco ou nada decidem, limitando-se a ratificar a vontade do Executivo. Em 2021, o cientista político alemão especialista em orçamento público Joachim Wehner aplicou essa tipologia ao campo orçamentário, mostrando que alguns parlamentos elaboram e substituem orçamentos inteiros, outros apenas os emendam, enquanto muitos simplesmente se limitam a carimbar as decisões do Executivo.

No Reino Unido, por exemplo, mesmo após a Revolução Gloriosa de 1688 o Parlamento nunca assumiu o papel de formulador de políticas públicas. A ascensão dos partidos no século XIX consolidou a primazia do Executivo, transformando o Legislativo num espaço mais de controle e ritual do que de criação. “O modelo inglês, conhecido como modelo de Westminster, enfatiza a supervisão ex post, mas com influência limitada na fase de aprovação e uma quase incapacidade de, na prática, usar poderes de emenda — pois isso seria equiparado a um voto de desconfiança em relação ao governo”, pontuam os pesquisadores.

Essa mesma lógica se reproduz em boa parte do continente europeu, onde a capacidade de intervenção parlamentar sobre os orçamentos é limitada, quase sempre subordinada ao equilíbrio macroeconômico e às prioridades do governo. Na França, o artigo 49.3 da Constituição permite que o Executivo imponha orçamentos sem votação, sob risco apenas de censura parlamentar. Graças a este instrumento, François Bayrou, então o quarto primeiro-ministro do atual mandato do presidente Emmanuel Macron, impôs, em fevereiro, o orçamento para 2025. Mesmo em países com maior abertura, como Portugal ou Bélgica, o peso das emendas é residual, e sua execução depende da correlação política de forças.

Já na África, conforme a pesquisa, observa-se uma diversidade maior. O Quênia, por exemplo, fortaleceu seu Legislativo após a Constituição de 2010. O ciclo orçamentário é iniciado com a formulação do orçamento pelo Executivo, que estabelece uma proposta formal, o Budget Policy Statement (BPS). O Parlamento, por meio de seu Comitê de Orçamento e Assuntos Fiscais, analisa o texto e pode propor emendas, com alocações dentro de certos limites legais. Além disso há audiências públicas para coletar contribuições da sociedade civil. Ainda assim, a execução do orçamento aprovado fica a cargo do Executivo, que está sujeito à fiscalização parlamentar.

Zâmbia e Gana criaram fundos de desenvolvimento distrital, que territorializam recursos públicos, o que também acabou gerando tensões locais. Os ganeses contam com o Fundo Comum das Assembleias Distritais [District Assemblies Common Fund (DACF)], que destina um mínimo de 5% das receitas nacionais para transferências diretas aos distritos. Mas a destinação é feita por um administrador nomeado pelo presidente da República, com aprovação do Parlamento. “O mecanismo oficial de alocação de recursos destoa do Brasil pois não há controle direto das emendas por parte dos parlamentares, visto que o dinheiro vai diretamente para os distritos, ao invés de ser alocado pelos deputados. Este modelo, assim como o de Zâmbia, é interessante na medida em que a territorialização e descentralização orçamentária não é determinada diretamente por lógicas personalistas e eleitorais”, aponta o estudo.

Na América Latina, o que vale como regra geral também é a centralização no Executivo, com algumas variações importantes conforme o país. No México e no Chile, os parlamentos podem emendar orçamentos, mas a execução segue sob controle quase exclusivo do governo. O Executivo chileno tem a prerrogativa de apresentar a proposta orçamentária, e o Congresso pode revisá-la, mas as emendas legislativas estão sujeitas a uma análise técnica rigorosa e, caso afetem o montante global do gasto, alterem a estrutura de financiamento ou infrinjam a política fiscal, podem ser rejeitadas pelo governo.

Argentina e Colômbia mantêm mecanismos de revisão — entretanto, com forte limitação técnica e legal. O Uruguai destaca-se pela transparência, com um sistema político unitário baseado no planejamento de um orçamento plurianual de cinco anos, respaldado pela atuação do Tribunal de Contas e pela participação cidadã por meio de portal aberto de orçamento. O controle é essencialmente técnico e posterior, sem atuação política durante o processo, aproximando o modelo uruguaio do chileno quando se fala do poder do governo.

Disfuncionalidade e democracia

A análise comparativa mostra a singular realidade brasileira após 2015. Se por um lado territorializa mais os recursos, o que em certo sentido poderia ser visto como um fator positivo ao enxergar de uma outra forma a realidade local, por outro fragmenta a execução de políticas públicas, reforça a lógica distributiva e clientelista e impõe novos desafios à coordenação das políticas públicas.

“O Brasil, portanto, é um caso-limite, um ponto extremo no qual o Legislativo concentra poder orçamentário em escala inédita entre democracias, tensionando os próprios fundamentos republicanos do regime”, concluem os pesquisadores.

Se o modelo anterior era considerado problemático por muitos, em função de concentrar muito poder nas mãos do Executivo, o que o substituiu torna o sistema ainda mais errático, por distorcer a própria noção da atividade política e parlamentar. Com um montante significativo de recursos em mãos, deputados e senadores podem entregar obras e serviços localmente, em articulações com prefeituras e organizações da sociedade civil reais ou existentes apenas no papel, para assegurar suas próprias reeleições e também a eleição de políticos aliados em seus territórios, em cargos distintos.

No Parlamento, suas atuações tendem a se desvincular ainda mais da responsabilização em temas nacionais, com um possível reforço de uma tendência à espetacularização e exposição em mídias sociais que garante visibilidade para alçar voos maiores, relegando questões próprias do debate nacional a um segundo plano, já que o sucesso eleitoral estaria garantido por conta da execução de emendas.

Mais do que uma questão meramente política, as emendas e o poder hiperbólico do Congresso Nacional remetem a que modelo de democracia queremos. E de que forma o povo vai participar dele.

Ultradireita, por Jorge Alemán

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Jorge Alemán – A Terra é Redonda – 18/09/2025

Prólogo do autor ao livro recém-lançado

“Na escuridão mais densa, é fácil apelar para as mandíbulas de um leão e dizer: “Eu fiz meu trabalho”. Mas acelerar a ferida, provocar o fim inevitável, não nos isenta do cuidado de criar nossa alma.  Antes do limiar final, é aconselhável parar o impulso e, com atenção, sentir as mandíbulas cavarem em nós e a ferida se tornar leve” (Chantal Maillard).

1.

Escrever sobre a extrema direita não é simplesmente um exercício intelectual. É uma necessidade política. As páginas que compõem este livro são o produto de uma insistência: uma ânsia de entender os mecanismos pelos quais o neoliberalismo e sua lógica de fragmentação deram origem a uma nova ordem pós-democrática. Não é um retorno ao passado, mas uma mutação na qual a extrema direita não é mais apresentada como uma anomalia ou uma regressão, mas como a saída do regime niilista do capitalismo tardio.

Minha preocupação com a irrupção da extrema direita no Ocidente remonta a vários anos. De fato, foi Jacques Lacan o primeiro que, graças às propriedades e condições que atribuiu ao discurso capitalista, me permitiu vislumbrar a deriva neofascista do imperialismo. Se as listo aqui, é porque talvez elas também possam ajudar alguns de meus leitores a entender esse novo fenômeno político.

As suas observações são hoje, de fato, mais pertinentes do que nunca, pois entre elas estão certos temas que poderíamos facilmente reconhecer no neoliberalismo contemporâneo. Um movimento circular que não é suscetível, em princípio, de ser interrompido por uma vontade histórico-política; a destruição da experiência da verdade e dos laços sociais; as condições para um individualismo de massa governado pelo prazer mortal; um funcionamento sem repressão apoiado em uma lógica de rejeição psicótica que se expande na esfera social.

Foram essas questões que me possibilitaram estabelecer uma conexão estrutural entre o discurso capitalista e o niilismo da tecnologia, um elo que hoje, quando olhamos para Donald Trump e sua proximidade com os tecnoligarcas, se torna cada vez mais claro para nós.

2.

As primeiras reflexões que compõem este livro nos permitem situar o problema em seu contexto atual. Nelas, proponho como a política contemporânea não pode mais ser pensada sem a presença de um excesso destrutivo que atravessa discursos e práticas coletivas. A extrema direita usou a raiva e o ressentimento como essa força dirigida contra tudo aquilo que o neoliberalismo tornou precário. Portanto, podemos dizer que opera sob a lógica da devastação.

Enquanto o fascismo histórico foi sustentado pela ideia de uma ordem total, o pós-fascismo contemporâneo funciona dentro da anarquia do mercado, aproveitando suas ruínas para estabelecer formas de governo baseadas na administração do ódio e da exclusão. Não é uma ditadura clássica, mas uma governabilidade onde o sujeito se submete voluntariamente, guiado por discursos identitários e pelo apelo permanente à ameaça externa.

Na segunda metade do livro, coleciono três de minhas palestras públicas, proferidas nos últimos anos, sobre três tópicos que acredito estarem intimamente ligados aos problemas delineados na primeira parte: a relação do indivíduo com a lei, o monoteísmo e a inteligência artificial.

Se em outros momentos históricos o sintoma operava como um ponto de tensão entre desejo e lei, hoje o sintoma social tornou-se parte do regime dominante. A extrema direita, longe de tentar resolver a agitação, a administra, amplifica e a transforma em uma máquina de mobilização política. Aqui fica claro que o neoliberalismo não oferece uma promessa de felicidade, mas uma administração da miséria na qual todos devem encontrar seu próprio culpado e desfrutar do exercício contínuo do sadismo.

Nesse ponto, a leitura de Franz Kafka, que é a espinha dorsal da primeira intervenção, torna-se inevitável. Se em sua obra encontramos a imagem de um poder opaco, inacessível, que submete o sujeito a uma lei indecifrável, hoje nos deparamos com uma versão ainda mais perversa: uma lógica em que o sujeito não é mais apenas confrontado por um tribunal inalcançável, mas ele próprio foi absorvido pela maquinaria, devorado por um sistema que o torna responsável por sua própria miséria. Como em O Processo, não é mais uma questão de buscar justiça, mas de aceitar a condenação como parte da ordem das coisas.

Por outro lado, na segunda dissertação, falo de como o monoteísmo, com sua herança do absoluto, nos ensinou a pensar a verdade em termos de um fundamento último, de uma lei que, embora inacessível, garantia uma ordem simbólica. No entanto, na atual era neoliberal, essa garantia desapareceu.

Não é que tenha havido uma secularização completa, mas que o mercado tomou o lugar do sagrado, gerando um regime de crença baseado na acumulação infinita e na promessa de satisfação total. A extrema direita tem sabido tirar proveito dessa questão, reativando a inclinação monoteísta sob novas formas de identidade fechada, onde a exclusão do outro se torna o novo ritual de pertencimento.

Soma-se a tudo isso o surgimento da inteligência artificial, que é o assunto da minha terceira palestra. Se o capitalismo encontrou na digitalização uma nova fronteira de exploração, a inteligência artificial representa o ponto em que a automação do desejo se torna possível. Resta saber, como Jacques Lacan argumentou em Roma, qual será sua versão sintomática.

Este livro não é apenas uma análise, mas um aviso. A extrema direita é um sintoma do fracasso das democracias neoliberais e da incapacidade de construir um horizonte alternativo. Mas não basta denunciá-los: é preciso pensar em como sair desse tempo, como sustentar um desejo que não seja capturado pela lógica do gozo mortal.

Franz Kafka nos ensinou que o julgamento nunca é final, que a culpa pode ser uma construção arbitrária. A questão é se ainda é possível pensar em uma política que não seja governada pela lógica da culpa e da punição, mas pela abertura ao que não pode ser programado, ao que resiste à captura total da IA, do mercado e da identidade. Essa é a aposta destas páginas.

Jorge Alemán é psicanalista e escritor. Autor, entre outros livros, de Capitalismo: crimen perfecto o emancipación (Ned Ediciones).

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

 

Mutações do financismo na era digital, por Paulo Kliass

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Com inovações tecnológicas, fintechs abalam a hegemonia dos bancos tradicionais. Mas comungam da mesma essência: relações incestuosas entre o privado e o público. Tanto que BTG tem grande interlocução com Haddad e ex-presidente do BC ganhou alto cargo no Nubank

Paulo Kliass – OUTRAS PALAVRAS – 23/09/2025

Os impactos provocados pelo desenvolvimento tecnológico sempre impuseram transformações efetivas na organização das forças produtivas. Os novos patamares alcançados na capacidade de produzir bens e serviços provocam mudanças na forma de se produzir e na definição daquilo que passa a ser manufaturado. Esse processo implica em alteração também nas formas de organização das empresas e em sua composição societária. Tais inovações acompanham a evolução da humanidade muito antes do advento do próprio capitalismo. Assim foi com a introdução de técnicas de manufatura em substituição ao artesanato. O mesmo ocorreu com a chegada da mecanização nos mais variados processos vinculados à agricultura.

A evolução na obtenção de novas fontes de energia, por outro lado, também contribuiu sobremaneira para mudanças estruturais na forma de produção. A máquina a vapor e depois a energia elétrica revolucionaram os processos produtivos. A capacidade de navegação para atravessar oceanos, a inovação das ferrovias, o transporte por veículos e depois a aviação proporcionaram transformações profundas na circulação e nas trocas mercantis. Foram criadas novas formas de capital e de mercadorias, bem como surgiram ramos, setores e empresas até então inexistentes.

O ingresso no terceiro milênio teve o significado de um profundo salto nesse longo processo de transformações. A era digital e a economia do conhecimento estão promovendo alterações de qualidade substancial em nossa forma de organização social e econômica. Dentre as inúmeras mutações observadas, salta aos olhos o que se verifica no âmbito do sistema financeiro. No que se refere à dimensão monetária, por exemplo, parece ter sido enterrado de uma vez por todas o uso do papel moeda e das moedas metálicas como instrumentos de troca. Em um primeiro momento, o avanço nos processos da financeirização e da internacionalização colocou em destaque o uso crescente dos cartões de crédito nas operações de compra e venda de mercadorias e de serviços.

Inovação tecnológica e mudança no sistema financeiro

No entanto, uma quase-revolução surge na sequência com a generalização do uso dos chamados dispositivos móveis. Nem mesmo a tendência anterior foi respeitada: o dinheiro de plástico representado pelos cartões foi sendo substituído em larga escala por meros impulsos digitais, quando os valores monetários são então transferidos de um titular de recursos a outro por simples comandos nos instrumentos utilizados. A tendência à digitalização completa de nossa vida social passou a incluir também a concentração dos serviços bancários e financeiros nos computadores pessoais ou nos aparelhos de telefonia celular.

A ideia de instituições bancárias como um sistema amplo e complexo, ostentando uma extensa rede de agências para oferecer todo o tipo de serviços aos clientes e correntistas, passa a ser, com o passar do tempo, um conceito tão desnecessário quanto ultrapassado. Como dizia uma campanha de marketing pouco tempo atrás, “você passa a ter o seu banco ao alcance de suas mãos”. A grande maioria dos usuários do sistema quase não se dirige mais fisicamente a uma unidade de atendimento presencial de seu banco. Tudo se resolve digitalmente por meio de comandos no aparelho celular ou no computador pessoal.

Essa transformação radical no modelo de uso de tais serviços levou a uma mudança igualmente profunda nas empresas do setor. As chamadas “fintech” e os bancos digitais passaram a competir com os bancos tradicionais, oferecendo soluções mais ágeis, mais rápidas, menos burocráticas e com menores custos para os clientes. Esse processo de metamorfose do sistema bancário e financeiro continua em pleno movimento atualmente. Inovações tecnológicas específicas realizadas no Brasil, como o sistema de transferência e pagamento PIX, estão operando como catalisadores de tal processo de aceleração da obsolescência dos bancos que operaram no modelo até então vigente.

Oligopólio financeiro mudando de perfil

O sistema bancário brasileiro tem suas origens na constituição de alguns poucos conglomerados de origem nacional, com forte influência de patrimônio de famílias tradicionais. O poder econômico derivado da concentração bancária e financeira proporcionou o crescimento do poder político de tais grupos. Alguns exemplos podem ser listados para ilustrar um determinado período da história brasileira, onde a associação do núcleo familiar e o respectivo banco e sua origem de atuação regional eram muito evidentes. Peguem-se os seguintes casos: i) família Magalhães Pinto (Banco Nacional-MG); ii) família Safra (Banco Safra-SP); iii) família Aguiar (Banco Bradesco-SP); iv) família Setúbal (Banco Itaú-SP); v) família Calmon de Sá (Banco Econômico-BA); dentre tantos outros casos.

Esse oligopólio bancário privado sofreu alterações em sua composição interna ao longo das últimas décadas, mas sempre marcou a sua existência por uma convivência relativamente harmoniosa com a estrutura existente dos bancos estatais. Até a década de 1990, havia um importante sistema de bancos pertencentes a cada uma das 27 unidades subnacionais, os bancos estaduais. Esse conjunto foi privatizado e a rede de bancos públicos se restringiu aos bancos comerciais federais — Banco do Brasil (BB), Caixa Econômica Federal (CEF), Banco do Nordeste e Banco da Amazônia. Além disso, havia o Banco Nacional da Habitação (BNH — que foi extinto em 1986 e incorporado à CEF) e permanece bem atuante o BNDES, como banco de investimento.

A longa tradição sempre foi marcada pela presença dos dois grandes bancos federais (BB e CEF) se revezando com alguns dos grandes conglomerados privados na disputa pela posição dos cinco maiores gigantes do sistema bancário e financeiro. O grupo multinacional de origem espanhola Santander penetrou no mercado brasileiro a partir da privatização do banco estadual de São Paulo, o Banespa. O desenho do oligopólio da banca privada foi se redefinindo por meio de aquisições e fusões, com a presença sempre marcante de Itaú/Unibanco e do Bradesco.

No entanto, o fenômeno da digitalização e das novas empresas de natureza bancária e financeira promovem uma reviravolta no sistema. Um levantamento realizado pelo jornal Valor Econômico aponta para o ingresso do Banco BTG e do Nubank nesse seleto grupo das maiores empresas bancárias e financeiras atuando no Brasil. De acordo com o estudo, o banco presidido por André Esteves ultrapassou, segundo dados do segundo trimestre de 2025, o BB e o Bradesco em termos de valor de seu ativo patrimonial a preços de mercado. Assim, o BTG teria se tornado o terceiro maior banco da América Latina, atrás somente do Nubank e do Itaú.

Empresas financeiras e bancos digitais na liderança

Esta informação, por outro lado, coloca em questão a presença de empresas no setor financeiro que não são consideradas juridicamente bancos pela nossa legislação. Esse é o caso do Nubank brasileiro, por exemplo. O Banco Central (BC) não o classifica como “banco”, apesar de que sua atuação seja muito similar à concorrência. Não obstante, o Nubank é classificado, segundo dados de setembro de 2025, como a segunda maior empresa de todos os ramos e setores operando no Brasil, com seu valor de mercado apenas superado pelo da Petrobrás. A própria empresa se apresenta como “uma das maiores plataformas de serviços financeiros digitais do mundo”.

É evidente que existem diferentes critérios para se avaliar o peso e a importância das empresas, em especial os bancos. Considerar apenas o valor de mercado delas, segundo a cotação das ações nas bolsas de valores, talvez não seja o mais indicado. Há outras variáveis relevantes que podem ser introduzidas na análise, a exemplo do número de clientes e correntistas, do valor patrimonial contabilmente apurado, do lucro realizado no exercício, dentre tantas outras possibilidades. No entanto, o que não pode ser deixado de lado é a confirmação da tendência de uma importância crescente a ser exercida pelas novas organizações empresariais.

Assim, com certeza não é coincidência o fato de que o ministro da Fazenda quase sempre escolhe os eventos organizados por grupos como o BTG ou a XP para realizar suas palestras direcionadas ao mercado. Ou ainda que o Nubank tenha trazido para exercer um estratégico cargo na direção do grupo ninguém mais nem menos do que o ex-presidente do BC, Roberto Campos Neto. Quer seja no passado do talão de cheque e da fila na agência física, quer seja no mundo atual das transações digitais, as instituições financeiras jamais deixaram de exercer seu poder efetivo junto aos tomadores de decisão no interior do aparelho de Estado.

As relações incestuosas entre o capital privado e o setor público não se alteraram em sua essência. Mudam apenas as faces de seus representantes, os sobrenomes dos dirigentes e as avenidas em que se localizam suas sedes suntuosas. Mas a influência do capital financeiro só aumenta com os novos tempos. A ponto de que o BTG construiu um teminal próprio no aeroporto internacional de Guarulhos (SP), justamente aquele que registra o maior movimento de passageiros em todo o país. Questão de oferecer comodidade, luxo e serviços exclusivos para sua seleta clientela, que sempre exige o melhor para satisfazer seus desejos e necessidades.

 

Inquietações

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O mundo contemporâneo nos traz grandes desafios e oportunidades, vivemos numa sociedade marcada por grandes desenvolvimentos tecnológicos, máquinas e novos equipamentos trouxeram grandes avanços para a sociedade global, doenças agressivas que foram responsáveis por milhões de mortes de indivíduos foram eliminadas. O sistema econômico passou por novos modelos de negócios, o marketing ganhou relevância e os seres humanos, para sobreviverem, passaram a desenvolver novas habilidades emocionais, construírem novos comportamentos e valores, estimulando novas formas de inovação, uma verdadeira revolução que impactou sobre as pessoas, os relacionamentos, as famílias, os valores e as necessidades humanas.

Os modelos econômicos e produtivos anteriores transformaram os comportamentos humanos, o estudo e a busca crescente pelos conhecimentos  abriam novos horizontes para a comunidade, a obtenção de um curso superior consolidava novas habilidades profissionais, as religiões ganhavam adeptos e os cultos eram espaços de fortalecimento dos laços sociais e comunitários, as famílias cresciam e se consolidavam como um ator central na sociedade, todos buscavam estabilidade econômica, emocional e espiritual, esperando uma aposentadoria digna e decente que pudessem consolidar uma vida de trabalho.

Nesta sociedade em constante transformação, percebemos grandes modificações, as gerações passaram por alterações crescentes de valores, novos comportamentos e novas motivações, anteriormente as pessoas por volta dos quarenta anos falavam em casa própria, estabilidade, relacionamentos sólidos e duradouros, buscando casamentos e, posteriormente os filhos, buscando uma formação e constituição familiar. Na atualidade, para pessoas da mesma idade, percebemos novos comportamentos e novas conversas, agora, estão falando sobre boletos, faturas atrasadas, dívidas acumuladas, qualificação profissional constante, valor do aluguel, ansiedades, depressão e uma sensação de que a vida está sempre atrasada. O cotidiano do indivíduo da meia idade passou por grandes alterações, essa geração percebe na pele que estão envelhecendo rapidamente, sem estabilidade, sem segurança profissional, aposentadoria precária, endividamento elevado ou, neste cenário preocupante, buscando se reinventar constantemente, para descobrir ou redescobrir o que é viver bem.

Pesquisas feitas pela revista Fortune mostram que essa geração ganha, em média, menos que seus pais recebiam em nossas idades, além do salário menor, percebemos que os custos de vida cresceram, o aluguel disparou sensivelmente, a previdência social nos parece inalcançável e o emprego, cada vez mais instável e incerto, marcados por fortes instabilidades, desta forma, é impossível que os indivíduos construam um planejamento futuro, com isso, percebemos o incremento das ansiedades, os medos e os ressentimentos.

Essa geração, chamada de millenials, está vivendo a crise da meia idade, uma sociedade centrada na volatilidade, no individualismo, no imediatismo, a cultura do sucesso se transformou em uma verdadeira tirania, convivendo constantemente com a exaustão física, exploração profissional, salários degradados, benefícios sendo reduzidos, aumento do burnout, reinvenções profissionais forçadas, dívidas acumuladas e o peso de não ter seguido o roteiro prometido pelo mercado, promessas e mais promessas, quando param para perceber, o tempo passou…

Neste ambiente, percebemos um choque constante entre as promessas do capitalismo contemporâneo e o que o mundo se tornou, um ambiente mais incerto e competitivo, onde foram prometidos estabilidade, ascensão profissional e prosperidade econômica e, ao invés disso, percebemos a perpetuação da instabilidade, da precariedade e do crescimento constante e sistemático das cobranças cotidianas. Neste cenário de degradação e instabilidades, percebemos que estamos envelhecendo, sem perspectivas, sem previdência e sem esperanças de dias melhores.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel de Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

 

 

Dívida, outra forma de explorar uberizados, por Salvagni, Festi e Valente

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Oprimidos por baixa remuneração, eles pagam muito pela compra, aluguel e manutenção dos veículos. Depois, corporações apresentam-se como “salvadoras”, concedendo empréstimos e cobrando juros, em nova modalidade de “escravidão por dívidas”

Julice Salvagni, Ricardo Festi e Jonas Valente – OUTRAS PALAVRAS – 23/09/2025

A financeirização da economia, marca do neoliberalismo no século XXI, atualizou os mecanismos de dominação colonial através das plataformas digitais. A lógica do capital financeiro, materializada na especulação, dataficação, rentismo e hiperexploração é o vetor desse processo. Isso passa a redesenhar o mapa global da exploração com o advento das plataformas digitais, dando ao capitalismo um novo fôlego até outra crise estrutural. Essas corporações transcendem fronteiras nacionais e atuam como agentes de um neocolonialismo digital, extraindo valor e mão de obra excedente de países periféricos de forma eficiente e desterritorializada.

O relatório do Fairwork Brasil 2025, evidencia a questão do endividamento dos trabalhadores de plataformas digitais no Brasil como um problema crescente e multifacetado. A pesquisa traz uma seção específica sobre o tema intitulado “Neocolonizadores digitais: plataformas pagam pouco e ainda lucram com empréstimos aos trabalhadores”, em que a lógica do endividamento é detalhada. A síntese sobre o endividamento pode ser organizada, basicamente, tendo por base dois principais pontos: o primeiro compõe as causas que levam ao endividamento e, o segundo, que coloca as plataformas como agentes financeiros.

No que diz respeito às causas do endividamento, a combinação de baixos salários com os altos custos de manutenção dos instrumentos de trabalho (veículo, combustível, pacotes de dados, etc.) cria um cenário onde os ganhos muitas vezes não cobrem as despesas. Isso força os trabalhadores a contraírem dívidas para conseguirem continuar trabalhando. Uma pesquisa citada no relatório aponta que cerca de 92% dos motoristas de plataformas digitais no Brasil estão endividados1.

A falta de cobertura em casos de acidentes ou problemas de saúde, que são comuns devido às jornadas exaustivas, contribui para o acúmulo de dívidas, pois os trabalhadores ficam impedidos de atuar e gerar renda. Ou seja, a ausência de proteção social ao trabalhador, embora seja um aspecto que passa na maior parte das vezes como despercebido, acaba sendo uma armadilha para quem trabalha nas plataformas. Isso porque elas simplesmente transferem todos os riscos da atividade para os trabalhadores.

Além disso, não só para o caso de acidentes, mas também para caso de multas ou manutenção com o veículo, são fontes de gastos que podem levar os trabalhadores a acumularem dívidas. Há ainda as situações de envolvimento direto com as empresas, como os casos de cancelamento de pedidos, extravio de produtos (mesmo por motivos de roubo) ou quando não conseguem localizar o cliente. Nestas todas, os trabalhadores costumam ser responsabilizados pelos custos do material que não foi entregue. Um trabalhador da Rappi relatou: “Quando o cliente cancelar um pedido em sua mão, ele já gera uma dívida para você”. Situações como esta são recorrentes nos relatos dos trabalhadores, sobretudo dando margem aos clientes que, porventura, querem agir de má fé, alegando que o produto não foi recebido, quando na verdade foi, por exemplo.

Outro aspecto central nas muitas camadas que envolvem a temática do endividamento é o amplo comércio de aluguel de carros, motos e bicicletas que se cria em torno e na relação direta com as plataformas. Frequentemente, essas locadoras são parceiras das plataformas, que autorizam o débito direto na conta do profissional. Isso faz com que os trabalhadores comecem o dia com um saldo negativo. Um motorista descreveu a situação: “sem ter trabalhado nada, já cheguei na segunda-feira para trabalhar endividado”.

No segundo ponto desta organização, está o papel das plataformas como agentes financeiros. O relatório do Fairwork 2025 revela que as empresas de plataforma têm atuado cada vez mais como provedoras financeiras, oferecendo empréstimos pré-aprovados diretamente aos trabalhadores através dos aplicativos. Plataformas como Uber (Banco Didio), 99 (com o serviço 99 Empresta), o iFood (com o iFood Pago) e Indrive (com a inDrive.Money) adotam essa prática.

Essa estratégia cria um ciclo vicioso: a plataforma paga pouco, gerando a necessidade de crédito e depois lucra com os juros dos empréstimos que ela mesma oferece. Um motorista da Uber relatou ter aceitado um empréstimo por desespero para pagar o que gastou com remédios para tratar doenças ocupacionais. Ou seja, a empresa cria o problema ao trabalhador, transfere a responsabilidade integralmente a ele que, na condição de não ter como pagar, acaba refém de um financiamento fornecido por essa mesma empresa. Ao final, a plataforma não só explora o trabalho dos sujeitos que dependem dela, como ainda ganha com juros do que ele foi obrigado a pagar por não ser responsável pelos custos da própria atividade.

Além de gerar lucro adicional, essa prática aumenta a probabilidade de o trabalhador permanecer vinculado à empresa para quitar a dívida. Tal contexto pode alimentar intimamente um ciclo de dependência do trabalhador à plataforma. Em suma, o relatório destaca que o endividamento não é uma consequência acidental, mas sim um elemento estrutural e estratégico do modelo de negócio das plataformas digitais no Brasil. Elas impõem condições precárias que levam ao endividamento e, em seguida, se posicionam como a “solução” financeira, lucrando duas vezes sobre a vulnerabilidade dos trabalhadores e aprofundando a sua dependência e exploração.

Vários autores têm destacado que o capital tem atuado não apenas por meio da exploração, mas também da espoliação e da expropriação do trabalho (Antunes, 2018). Harvey (2024) define esse atual contexto como “novo imperialismo”, já que é marcado crescentemente pela “acumulação por espoliação”, na qual o capital busca lucros por meio de práticas predatórias e não pela reprodução ampliada. Lazzarato (2010) evidencia que a política de dívidas constitui uma das características fundamentais da financeirização. Para ele, a sujeição e a servidão trabalham em conjunto para capturar o desejo e a força produtiva do social, exigindo uma nova abordagem para a ação política que vise a dessubjetivação. Nesse contexto, a financeirização configura-se como um mecanismo central para a plataformização do trabalho, operando como um modo de acumulação de riqueza das plataformas (Grohmann; Salvagni, 2023). Para os autores, esse mecanismo atua de forma articulada com o gerenciamento algorítmico e a dataficação, incluindo suas dimensões ideológicas da racionalidade neoliberal como uma etapa crucial nesse processo.

A exploração é o caso clássico da extração de mais valor no processo de trabalho. Trata-se, portanto, de uma forma de acumulação de capital por meio de uma relação no âmbito econômico. Em teoria, os trabalhadores são “livres” para oferecer a sua força de trabalho para o capital. A expropriação e a espoliação eram conceitos até então vinculados à formas não capitalistas de produção, como o feudalismo e o escravagismo. No entanto, no século XXI, tem-se visto cada vez mais a utilização pelo capital de recursos extra-econômicos, muitos no campo político e coercitivo, para impor seus regimes de trabalho e avançar na acumulação do capital.

A retirada de direitos protetivos do trabalho e de cidadania é um exemplo disso, constituindo-se fenômenos sociais como é o caso do precariado (assalariados que recebem rendas abaixo do necessário para sua reprodução social e está destituído ou limitado de seus direitos como cidadãos). Antigamente, a dívida como recurso de espoliação e expropriação da renda de um trabalhador esteve vinculada às atividades do meio rural. O lavrador acabava assumindo uma dívida com o fazendeiro (por conta do aluguel da moradia, da dívida na mercearia da fazenda, da viagem gasta pela migração etc.) e, apesar de não ser um escravo, era impedido de fugir por meio de capatazes. O próprio isolamento das propriedades rurais, longe dos grandes centros urbanos, dificultava qualquer tentativa de se libertar desta dívida injusta. No caso da dívida moderna, como é o caso da verificada entre entregadores de aplicativos, os mecanismos de dependência e coerção são mais sofisticados. As condições de vida foram erodidas ao longo dos anos e direitos protetivos foram retirados (tais como o poder de fiscalização e o reconhecimento do vínculo de emprego), deixando-se ainda mais vulneráveis frente ao poder do capital. Dessa forma, esses trabalhadores acabam se subjugando à condição das dívidas, sobretudo porque o contexto não lhes apresenta outra alternativa.

Esse contexto demonstra que a alegada autonomia no trabalho plataformizado é ilusória. A transferência dos riscos empresariais para o trabalhador resulta em uma posição de subserviência. A opção por empréstimos não decorre de uma escolha livre, mas de uma realidade marcada pelo endividamento e pela escassez de opções. As experiências narradas evidenciam as nuances de uma significativa reestruturação do mundo do trabalho, impulsionada pela tecnologia. O trabalho nas plataformas digitais, portanto, aprofunda a exploração e pode acabar estabelecendo uma relação de dependência direta para com a empresa.

Referências

Antunes, R. (2018). O privilégio da servidão: O novo proletariado de serviços na era digital. Boitempo.

Grohmann, R., & Salvagni, J. (2023). Trabalho por plataformas digitais: do aprofundamento da precarização à busca por alternativas democráticas. Edições Sesc SP.

Harvey, D. (2004). O “novo” imperialismo: acumulação por espoliação. Socialist register, 40(1), 95-126.

Lazzarato, M. (2010). Sujeição e servidão no capitalismo contemporâneo. Cadernos de subjetividade, (12), 168-179.

Sobre os autores:

Julice Salvagni – Professora da Escola de Administração e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Ricardo Festi – Professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília e pesquisador convidado do Institut de recherches interdisciplinar en sciences sociales (Irisso) da Université Paris Dauphine.

Jonas Chagas Lucio Valente – Pesquisador no Oxford Internet Institute.

1 Zem, R. (2025) Os motoristas de aplicativos trabalham até 60 horas semanais, ganham menos de R$ 4 mil e acumulam dívidas; diz pesquisa. Em G1, 26/07/2025. Pode ser encontrado em https://g1.globo.com/trabalho-e-carreira/noticia/2025/07/26/motoristas-de-app-faturamento-trabalho-horas-pesquisa.ghtml.

 

A reforma administrativa, por Sérgio Botton Barcellos

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Sérgio Botton Barcellos – A Terra é Redonda – 06/09/2025

A reforma administrativa não é apenas uma questão de gestão tecnocrática ou de ajuste fiscal, mas um projeto que toca diretamente na estrutura do Estado brasileiro e o modo como ele pode garantir direitos sociais

O debate sobre a reforma administrativa (PEC 32/2020) que estava em voga, em um período histórico mais recente, entre os anos de 2019 e 2022, voltou com força em 2025, por meio de um grupo de trabalho (GT) no Congresso que avança com baixa clareza, diálogo público restrito e indefinições sobre vínculos, estabilidade e carreiras.

Conforme noticiado amplamente na mídia no dia 25 de agosto é anunciado que a reforma administrativa entra na pauta prioritária da Câmara, afirma Hugo Motta, presidente da Câmara dos Deputados. Ou seja, é reforçado o status central dessa agenda política no Congresso e sinaliza um avanço pressionado, mesmo diante das diversas críticas na atual conjuntura vivida no Brasil, o que agrava os riscos de avanços legislativos de caráter austero e tecnobutrocrático, apressados e feitos sem a discussão apropriada e igualitária com todos os atores envolvidos.

Não nos enganemos, sobretudo a reforma administrativa, sob a ótica do mercado e da iniciativa privada, representa um esforço para reconfigurar o Estado brasileiro em função de interesses econômicos dominantes. Digamos que é uma entrega que determinados setores da elite vinculados ao setor empresarial e financeiro estão pedindo ao governo e ao congresso.

A proposta de reduzir a presença do Estado como executor direto de políticas sociais e aumentar a sua função reguladora mínima está em consonância com a lógica neoliberal consolidada desde os anos 1990. Bresser-Pereira, ao discutir a Reforma Gerencial do Estado, já apontava que a noção de eficiência e a ideia de administração pública orientada por resultados se tornaram centrais em um momento de ajuste estrutural e de pressão de organismos internacionais como Banco Mundial (BM), Fundo Monetário Internacional (FMI) etc.

Essa lógica de eficiência, no entanto, se traduziu em redução da estrutura estatal, flexibilização de vínculos de trabalho e abertura de espaços de mercado para empresas privadas em setores tradicionalmente públicos como a educação, saúde, ambiente etc.

David Harvey, em sua análise sobre o neoliberalismo destacou que esse modelo não se limita a um conjunto de medidas econômicas, mas corresponde a um projeto político de redistribuição de poder e de riqueza em favor de elites políticas e econômicas. A reforma administrativa brasileira está sendo construída porque, ao flexibilizar – o quê na verdade é precarizar – a estabilidade e as formas de acesso ao serviço público, amplia as condições de captura do Estado por interesses privados e reduz a autonomia técnica de servidores(as). Esse movimento tem como fim, apesar dos discursos e malabarismos semânticos, o enfraquecimento da capacidade estatal de regular mercados, manter e fiscalizar atividades estratégicas e garantir direitos universais a sociedade.

Em Souza (2017) há uma dimensão sociológica a ser considerada nessa discussão que é o pacto das elites brasileiras em torno da manutenção de privilégios e da reprodução de desigualdades históricas e estruturais. Supostas reformas como a administrativa não atacam os privilégios localizados no topo do funcionalismo e nos mecanismos de reprodução das classes dominantes, nem mesmo os(as) servidores(as) que não cumprem suas responsabilidades e obrigações funcionais.

Se concentram na base, onde estão a maioria dos(as) servidores(as) que garantem direitos sociais fundamentais. Assim, a narrativa da modernização e do combate a supostos privilégios se revela, na prática, um mecanismo de precarização do serviço público e de transferência de funções para o setor privado, reforçando a desigualdade e aprofundando a dependência do Estado em relação a interesses empresariais e alheios ao conjunto da sociedade que mais necessita de serviços públicos.

O mercado e a iniciativa privada objetivam na reforma administrativa uma oportunidade de expandir a terceirização e as parcerias público-privadas, capturar fatias do orçamento público e obter maior influência sobre políticas e regulações. A estabilidade e os concursos, que funcionam como barreiras republicanas contra o clientelismo, são mais enfraquecidos, abrindo caminho para contratações temporárias para as carreiras que não são consideradas típicas de Estado.

Isso tornará nomeações e seleções no serviço público tendencialmente mais suscetíveis a pressões políticas e econômicas. Nesse cenário, o Estado se torna menos capaz de coordenar políticas de longo prazo, mais vulnerável a ciclos eleitorais, interesses de famílias tradicionais na política para nomeação em cargos e a interesses privados nacionais e internacionais de curto prazo, e mais dependente de soluções privadas que, longe de serem universais, são orientadas pela lógica da lucratividade, eficiência alheia aos interesses da maioria da sociedade e a manutenção da desigualdade estrutural.

Ou seja, a reforma administrativa que está em pauta no Congresso não é algo apenas de interesse do funcionalismo público, mas da sociedade brasileira no que tange a acesso e garantia a direitos sociais básicos e a construção de direitos universais.

Notas técnicas de sindicatos, organizações e movimentos sociais

Além disso, de imediato o que se percebe é que a justificativa para fazer a reforma o ponto de vista fiscal, a promessa de “economia estrutural”, que está alicerçado no projeto do governo Lula 3 que é o arcabouço fiscal, carece de base consistente: a Nota Técnica n° 69/2021 da Consultoria de Orçamento do Senado apontou que os efeitos da PEC 32 eram, na melhor das hipóteses, incertos e limitados, e sugeriu medidas alternativas mais eficazes para qualificar os gastos com pessoal.

A ANFIP reforçou à crítica, alertando que a proposta poderia agravar o panorama fiscal ao desorganizar capacidades essenciais de arrecadação, fiscalização e planejamento.

As análises do DIEESE apontam que a reforma desloca o foco da gestão pública consolidada para a precarização dos vínculos e o enfraquecimento de garantias republicanas. A Nota Técnica número 254/2021 demonstrou que a combinação de novas contratações, instabilidade e discricionariedade em carreiras compromete acesso e qualidade dos serviços, sobretudo nas áreas de saúde, educação e assistência.

Dois artigos recentes aprofundam essa crítica. Primeiro, o texto “A quem interessa a Reforma Administrativa?” expõe que o discurso de que o serviço público seria “inchado” e ineficiente é um mito que, repetido insistentemente, legitima cortes e flexibilizações, embora os desperdícios de fato estejam em segmentos mais privilegiados e não na base do funcionalismo. No outro artigo “Os riscos da Reforma Administrativa” ainda há o alerta “A reforma de que o Brasil precisa é aquela que serve à maioria da população, especialmente às pessoas que dependem de bens e serviços públicos de qualidade. Em outras palavras, o Brasil necessita de um Estado de bem-estar social, uma economia verde e digital e uma democracia resiliente.”

Um outro vetor de preocupação está no uso da remuneração por produtividade como solução simplista. Em outra análise alerta-se que, ao tentar medir produtividade em serviços públicos complexos, incentiva-se o “jogo de indicadores”, priorizam-se tarefas mensuráveis em detrimento do essencial, corroem-se as cooperações e fomentam-se práticas de curto prazo. Essas medidas tendem a deslocar prioridades públicas, aprofundar desigualdades territoriais e prejudicar a eficácia do serviço público.

Ou seja, somando-se esses elementos, a contradição se torna clara: a proposta de reforma reflete um ideal de eficiência e economia, mas destrói capacidades estatais, sem enfrentar privilégios factuais, históricos e estruturais, oferecendo na prática um Estado desmantelado e menos capaz de coordenar políticas de longo prazo em um momento em que o país carece de planejamento para enfrentar crises geopolíticas, sociais, econômicas e climáticas.

Isto é, não faz sentido para a maioria da sociedade brasileira uma reforma administrativa que não seja no sentido de fortalecer o Estado em suas diretrizes para promover práticas de gestão administrativa e de pessoas com foco na resolução de gargalos reais como políticas públicas orientadas por dados e indicadores sociais públicos, não por interesses de deputados(as) e senadores(as) via emendas, por investimento em tecnologia, nos processos, na execução orçamentária, coordenação e na gestão com base na soberania popular.

O governo Lula 3 diante da Reforma administrativa

A posição do governo Lula 3 diante da reforma administrativa é marcada por ambiguidade e contradições, o que pode ser visto na recente entrevista concedida por Esther Dweck, ministra do MGI. Desde a transição em 2023, o governo adotou um discurso de que não retomaria a PEC 32 apresentada no governo anterior, considerada uma proposta abertamente hostil ao serviço público.

O discurso oficial afirmava que qualquer debate sobre modernização da gestão pública deveria ser construído com diálogo e com foco na valorização do servidor. No entanto, com o avanço das negociações no Congresso em 2025, o Planalto não se colocou frontalmente contra a retomada da reforma e, em diferentes momentos, ministros da área econômica e da Casa Civil sinalizaram disposição em negociar pontos com a base congressual.

Esse movimento revela uma tática para demonstrar compromisso com o projeto de governo que é o arcabouço fiscal e com a agenda de responsabilidade exigida pelo mercado, mas cria uma posição ambígua: de um lado, o governo nega a reforma nos termos originais da PEC 32, de outro aceita discuti-la para atender pressões políticas e fiscais.

Essa postura coloca em evidência a contradição entre a base social e a base política do governo. Os sindicatos, as centrais e os movimentos sociais que foram pilares históricos de apoio a Lula se manifestam de forma contundente contra a reforma, denunciando riscos de precarização do serviço público. Por outro lado, os partidos que compõem o centrão e setores empresariais, fundamentais para a carcomida governabilidade, pressionam pela aprovação de uma pauta de modernização do Estado e tratam a reforma administrativa como prioridade.

Essa tensão revela o dilema do governo que já está em modo campanha eleitoral: se assumir a defesa plena de sua base social pode enfrentar custos no Congresso, mas se ceder à pressão congressual corre o risco de se distanciar de sindicatos e movimentos.

O discurso oficial de modernização busca suavizar o debate, enfatizando termos como digitalização de processos, carreiras mais atrativas e racionalização administrativa. A ambivalência atual repete contradições já observadas em outras agendas do Lula 3, como na política ambiental, na questão agrária e na política fiscal, com a promessa de priorizar direitos sociais ao mesmo tempo em que se mantém um arcabouço fiscal restritivo que engessa o orçamento.

As consequências dessa postura podem ser múltiplas. Para os(as) servidores(as) públicos(as), o governo pode perder legitimidade relativa ao assumir posturas ambíguas e contraditórias ao não ter um projeto estratégico de país, inclusive para o serviço público, além do arcabouço fiscal.

Para a governabilidade, a concessão a pressões do centrão pode garantir vitórias momentâneas, tende a enfraquecer o capital político diante de sua base social tradicional. Para o nosso esboço de democracia, há o risco de que um governo eleito com a promessa de recompor o Estado, após o desmonte bolsonarista, acabe por entregar uma agenda que mantém e amplia a lógica neoliberal de austeridade e desmonte institucional.

Chama-se atenção que os aspectos que têm respaldo da sociedade para mudanças, como as assimetrias de remuneração entre os três poderes e a aposentadoria dos militares não são pautados por parte do discurso oficial do governo e muito menos na relatoria da PEC.

Bom, a ver os próximos desdobramentos das articulações do governo Lula 3 junto as bancadas do Congresso Nacional, com a Faria Lima e demais setores privados interessados na reforma administrativa.

As centrais sindicais

Um aspecto fundamental do atual debate até o momento pode ser a mobilização sindical. A oportunidade e o espaço estão aí para serem ocupados. Diferentes entidades têm se articulado debates e formas de barrar a reforma administrativa. O Fórum Nacional dos Servidores Públicos Federais (Fonasefe), a Conferência dos Trabalhadores no Serviço Público Federal (Condsef), o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES-SN), a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e a Federação Nacional dos Sindicatos de Trabalhadores em Saúde, Trabalho, Previdência e Assistência Social (Fenasps), entre outros, têm organizado agendas para discutir a proposta.

Além da mobilização de base, os sindicatos têm investido em pressão parlamentar. Centrais sindicais como a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) e a Intersindical têm promovido campanhas, a seu jeito e com suas limitações conjunturais e políticas, debatendo os mitos de que o Estado brasileiro estaria “inchado” ou que os servidores “ganham muito”. Dados sistematizados mostram que o número de servidores no Brasil é proporcionalmente menor que a média da OCDE e que a maioria das carreiras de base recebe salários abaixo da média das ocupações de nível superior.

O desafio de construir mobilizações de grande lastro, contudo, permanece no sentido de: (i) superar a fragmentação e as contradições internas entre categorias e entidades sindicais devido à proximidade ou distanciamento político e partidário com o governo; (ii) disputar a opinião pública contra o discurso de modernização e privilégios generalizados propagado pela mídia hegemônica; e (iii) enfrentar a pressão de setores privados que colocam a reforma como prioridade imediata no Congresso.

O que fazer?

Parece que a conjuntura impõe que precisamos nos mobilizar o quanto antes diante da reforma administrativa porque o processo legislativo relativo a essa proposta tende a ser rápido, marcado por negociações intensas no Congresso e com baixo nível de participação popular. A experiência recente com outras reformas estruturais, como a previdenciária em 2019 e a trabalhista em 2017, mostra que, quando a mobilização social ocorre apenas depois do avanço do texto, as possibilidades de barrar retrocessos ou de introduzir mudanças significativas e de interesse popular ficam muito reduzidas.

Fora que nos processos de votação nos plenários os textos são alterados e podem ser colocados “jabutis” passando por cima do acúmulo de discussões feitas anteriormente. Por isso da necessidade de constante articulação e vigilância popular junto ao Congresso antes que decisões de grande impacto nessa reforma sejam tomadas a portas fechadas.

A reforma administrativa não é apenas uma questão de gestão tecnocrática ou de ajuste fiscal, mas um projeto que toca diretamente na estrutura do Estado brasileiro e o modo como ele pode garantir direitos sociais. Até porque, diante da desigualdade social estrutural brutal que temos no Brasil, a máquina pública brasileira necessita ser ampliada para assegurar dignidade à população e direitos universais como educação, saúde, ambiente, moradia, transporte público etc.

Parece que o quanto antes sindicatos, movimentos sociais, entidades acadêmicas e organizações da sociedade civil se articularem, maior será a capacidade de disputar narrativas, de esclarecer a população sobre os efeitos concretos da reforma, de pressionar parlamentares e mobilizar manifestações de peso para que haja um amplo debate na sociedade sobre a reforma administrativa e os seus efeitos.

Sérgio Botton Barcellos é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Direita proibiu prender políticos, por Celso Rocha de Barros

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Celso Rocha de Barros, Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra) e autor de “PT, uma História”.

Folha de São Paulo, 21/09/2025

A direita brasileira aprovou um projeto de emenda constitucional, a PEC da Blindagem, que, na prática, proíbe prender políticos.

Não, não foi “o Congresso” que aprovou. Não foram “os políticos”. Foi a direita.

Sim, teve gente do PT que apoiou a PEC da Blindagem, mas 80% dos deputados petistas votaram contra. Somando todos os partidos de esquerda, mais de 70% dos deputados votaram contra a proibição de prender políticos.

Entre os partidos de centro (PSD, MDB, PSDB e Cidadania), a proporção é bem menor: 30% dos centristas votaram contra a PEC da blindagem.

Já entre os partidos de direita (Avante, Novo, PL, PP, PRD, Podemos, Republicanos, Solidariedade e União Brasil), o contraste é óbvio: só 6,7% dos deputados votaram contra a PEC da Blindagem.

Mais de 90% da direita votou a favor de proibir prender político.

Os números são esses. Mostrá-los não é ter viés de esquerda. Fingir que eles não existem é que é ter viés de direita.

Todos, absolutamente todos os deputados do partido de Bolsonaro e de seus principais seguidores, o PL, votaram a favor de proibir prender políticos. Cem por cento. Todo mundo. Nenhum contra.

O bolsonarista Nikolas Ferreira tentou argumentar que a PEC não proíbe prender parlamentares: basta que o Congresso aprove a abertura dos inquéritos criminais contra eles.

Você leu direito. Lembra dos bolsonaristas “contra o sistema”? Eles agora argumentam que os deputados são perfeitamente confiáveis para decidirem se podem ou não ser investigados.

O deputado Kim Kataguiri foi um dos poucos direitistas que votaram contra a PEC da Blindagem. Mais especificamente, 1 dos 4 entre os 57 deputados votantes de seu partido, o União Brasil.

Após a votação, Kataguiri gravou um vídeo aparentando desânimo com o fato de que os políticos que o haviam acompanhado na luta contra a corrupção durante a Lava Jato apoiaram com entusiasmo a PEC da Blindagem.

Deputado, com todo respeito, é hora de reconhecer o óbvio: a direita brasileira só foi contra a corrupção enquanto as acusações eram contra o PT. Os deputados que votaram pelo impeachment que o senhor defendeu votaram pensando no acordão prometido por Jucá e Temer. Embora a Lava Jato tenha acumulado derrotas depois do impeachment, o acordão só foi sacramentado definitivamente com Bolsonaro e Augusto Aras, quando já começava a farra do orçamento secreto. Seus colegas de direita votaram a favor da PEC da Blindagem com medo dessa roubalheira ser investigada.

Foi inclusive notável ver a oposição votar pela blindagem e o governo votar pela ética. Em geral, quem luta contra a corrupção é quem está na oposição: afinal, quem costuma ter acesso a dinheiro para roubar é quem está no governo.

Isso parece ter mudado com o aumento do controle do Congresso Nacional sobre o orçamento nos últimos dez anos. Agora quem está no Congresso já pode desviar dinheiro sem precisar do presidente da República.

A votação da PEC da Blindagem também nos dá uma ideia do que teria sido uma ditadura Bolsonaro. Se é esse o tipo de acordo que os golpistas fizeram na democracia, expostos à crítica da opinião pública, imaginem o quanto teriam roubado em uma ditadura sem imprensa livre ou judiciário independente.

 

O estertor do ‘sonho americano’ por Eduardo Giannetti

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Eduardo Giannetti, Economista, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras; seu mais recente livro é “Imortalidades” (Companhia das Letras).

Folha de São Paulo, 21/09/2025

Embora coetânea da cultura ianque, a expressão “sonho americano” demorou a nascer. Foi só em 1931 —no início da Grande Depressão— que ela ingressou no mundo letrado pelas mãos do historiador James Truslow Adams no epílogo do livro “O Épico da América”.

Ao cunhar a expressão, Adams definiu-a como “o sonho de uma ordem social na qual cada homem e cada mulher estejam aptos a alcançar a mais plena estatura da qual são congenitamente capazes, e de serem reconhecidos pelos demais por aquilo que são, independentemente das circunstâncias fortuitas de berço ou posição social”. Nos Estados Unidos, emendou, este sonho “tem se realizado de forma mais plena do que em qualquer outro lugar, embora muito imperfeitamente mesmo entre nós”.

Palavras edificantes, porém ocas. A omissão de Adams ao elencar o que via como entraves à plena realização do “sonho americano” é gritante.

Pois ele critica o sistema educacional, a disparidade de renda, a idolatria do dinheiro, mas é absolutamente omisso diante da mais grave injustiça da sociedade em que vivia: o apartheid racial que condenava 12 milhões de negros e mestiços (10% da população) a uma existência oprimida e humilhada pela segregação formal e informal.

Diante do silêncio do pai de batismo do “sonho americano”, não há como evitar a suspeita de um sinistro subtexto racialista —embutido na expressão “congenitamente capazes”— atrelado à noção que ele consagrou.

Quase um século depois, como anda o “sonho americano”? Começo por alguns fatos, antes de sugerir um esboço de interpretação:

1 – Para um jovem do sexo masculino de 18 anos, a probabilidade de morrer antes de chegar aos 50 é hoje maior nos EUA do que em Bangladesh. A causa são as “mortes de desespero”, provocadas por opioides, alcoolismo, abuso de drogas e suicídio (os opioides matam mais que os crimes violentos no Brasil);

2 – O número de presos nos EUA cresceu 700% desde 1970, atingindo cerca de 2 milhões de pessoas; nenhum outro país tem uma parcela maior da população encarcerada (a taxa é quatro vezes maior que na União Europeia). A chance de um afrodescendente ser preso nos EUA é seis vezes maior que a de um branco;

3 – O “transtorno do déficit de atenção” afeta cerca de 15% dos meninos americanos entre 3 e 17 anos, ao passo que na UE a cifra é um terço menor. O consumo per capita de antidepressivos e de ansiolíticos nos EUA é o dobro do verificado na União Europeia;

4 – Um cidadão americano com a renda mediana (US$ 83,7 mil/ano) pertence à elite dos 5% mais ricos do planeta; aos seus próprios olhos, porém, e aos olhos da sociedade onde vive, ele não passa de um “loser” fracassado na corrida por status e “sucesso”. Estima-se que um americano comum seja bombardeado por cerca de 3.000 mensagens publicitárias por dia;

5 – Os 400 americanos mais ricos possuem um patrimônio líquido (US$ 16,5 bilhões em ativos per capita) maior que toda a riqueza detida pelas 150 milhões de pessoas que estão entre os 60% mais pobres (US$ 21 mil per capita).

As peças se coadunam. Postiço na origem, o “sonho americano” dá sinais de falência múltipla.
Embora Donald Trump acelere o declínio estadunidense, ele não é a causa, mas antes sintoma, de uma sociedade adoecida e cindida por ódios e rancores intestinos, como as irrupções de fúria e a escalada da violência política ilustram.

O tecnoconsumismo americano promoveu uma aceleração do trabalho e do afã por riqueza como jamais o mundo conheceu. E tudo em nome do quê?

Tudo em nome de um mundo em que as pessoas esperam cada vez mais dos seus gadgets e pílulas miraculosas, mas cada vez menos umas das outras em suas relações pessoais e afetivas. Em que a ansiedade financeira, conjugada ao temor de colapso ambiental, só faz crescer.

E o Brasil com isso? Será desvairadamente utópico imaginar que temos tudo para não capitularmos à opressiva industriosidade ianque geradora de objetos demais, alegria de menos?

Que o Brasil, embora modesto nos meios, mantém viva sua aptidão para a arte da vida? Que podemos ousar modelos de economia e de convivência mais humanos e adequados ao que somos e sonhamos?

Dez teses sobre a extrema direita do século XXI, por Vijay Prashad

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A princípio, ela não está preocupada em derrubar a democracia liberal. É tentacular na sociedade, com o apoio das Big Techs. Capitaliza a solidão gerada pelo neoliberalismo. E se serve de um poder hediondo com a promessa de “salvar” o indivíduo

Por Vijay Prashad, com tradução no GGN – 22/08/2024 – OUTRAS MÍDIAS.

Desde 2016, verificamos uma consternação generalizada sobre como compreender o surgimento de Donald Trump como um candidato sério a presidente dos EUA. Longe de ser um fenômeno isolado, Trump chegou ao poder ao lado de outros “homens fortes” como Viktor Orbán (primeiro-ministro da Hungria desde 2010), Recep Tayyip Erdoğan (presidente da Turquia desde 2014) e Narendra Modi (primeiro-ministro da Índia desde 2014). Parece ser impossível que homens como esses, que chegaram ao poder e consolidaram seu governo por meio de instituições liberais, saiam de cena permanentemente por meio das urnas. Está claro que está ocorrendo um giro para a direita nos Estados democráticos liberais, cujas constituições enfatizam as eleições multipartidárias e, ao mesmo tempo, permitem que o espaço para o governo de um partido seja gradualmente estabelecido.

O conceito de democracia liberal foi e é um conceito altamente contestado que surgiu das potências coloniais da Europa e dos EUA nos séculos 18 e 19. Suas alegações de pluralismo e tolerância interna, o Estado de Direito e a separação dos poderes políticos surgiram ao mesmo tempo em que suas conquistas coloniais e seu uso do Estado para manter o poder de classe sobre suas próprias sociedades. É difícil conciliar o liberalismo atual com o fato de que os países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) são responsáveis por 74,3% dos gastos militares mundiais.

Países com constituições que enfatizam eleições multipartidárias têm visto cada vez mais o estabelecimento gradual do que é efetivamente um governo de partido único. Essa regra de partido único pode, às vezes, ser mascarada pela existência de dois ou até mesmo três partidos, ocultando a realidade de que a diferença entre esses partidos tem se tornado cada vez mais insignificantes.

Tornou-se evidente que um novo tipo de direita surgiu não apenas por meio de eleições, mas exercendo domínio nas arenas da cultura, da sociedade, da ideologia e da economia, e que esse novo tipo de direita não está necessariamente preocupado em derrubar as normas da democracia liberal, como debatemos no nosso mais recente dossiê, O avanço do neofascismo e os desafios da esquerda na América Latina. Isso é o que chamamos de “abraço íntimo entre o liberalismo e a extrema direita”, seguindo os escritos de nosso falecido membro sênior Aijaz Ahmad.

A formulação desse “abraço íntimo” nos permite entender que não há contradição necessária entre o liberalismo e a extrema direita e, de fato, que o liberalismo não é um escudo contra a extrema direita, e certamente não é seu antídoto. Quatro elementos teóricos são fundamentais para entender esse “abraço íntimo” e a ascensão dessa extrema direita de um tipo especial:

  1. As políticas de austeridade neoliberal em países com instituições eleitorais liberais destruíram os programas de bem-estar social que permitiam a existência de sensibilidades progressistas. O fracasso do Estado em cuidar dos pobres se transformou em severidade para com eles.
  2. Sem um compromisso sério com o bem-estar social e com os programas redistributivos, o próprio liberalismo entrou no mundo das políticas de extrema direita. Isso inclui o aumento dos gastos com o aparato repressivo que policia os bairros da classe trabalhadora e as fronteiras internacionais, juntamente com a distribuição cada vez mais avarenta de bens sociais, distribuídos somente se os beneficiários aceitarem a destituição de direitos humanos básicos (como “concordar” com a obrigatoriedade do controle de natalidade).
  3. Nesse terreno, a extrema direita de um tipo especial descobriu que se tornava cada vez mais aceita como uma força política, dado o giro dos partidos liberais em direção às políticas defendidas pela extrema direita. Em outras palavras, essa tendência de basear-se em políticas de extrema direita permitiu que esta ala se tornasse convencional.
  4. Por fim, as forças políticas liberais e de extrema direita se uniram em todos os setores para diminuir o alcance da esquerda sobre as instituições. A extrema direita e seus colegas liberais não possuem divergências econômicas fundamentais em relação à classe. Nos países imperialistas, há uma grande confluência de pontos de vista sobre a manutenção da hegemonia dos EUA, a hostilidade e o desprezo pelo Sul Global e o aumento do chauvinismo, conforme observado pelo apoio militar total ao genocídio que Israel está realizando contra os palestinos.

Após a derrota do fascismo italiano, alemão e japonês em 1945, os analistas do Ocidente se preocuparam com a incubação da extrema direita em suas sociedades. Enquanto isso, a maioria dos marxistas reconhecia que a extrema direita não havia surgido do nada, mas das contradições do próprio capitalismo. O colapso do Terceiro Reich foi apenas uma fase na história da extrema direita e do desenvolvimento do capitalismo; ela ressurgiria, talvez com roupas diferentes.

Em 1964, o marxista polonês Michał Kalecki escreveu o estimulante artigo “The Fascism of Our Times” [Faszyzm naszych czasów]. Nesse ensaio, Kalecki disse que os novos tipos de grupos fascistas que estavam surgindo na época apelavam “para os elementos reacionários das grandes massas da população” e eram “subsidiados pelos grupos mais reacionários dos grandes negócios”. No entanto, escreveu Kalecki, “a classe dominante como um todo, embora não aprecie a ideia de grupos fascistas tomarem o poder, não faz nenhum esforço para suprimi-los e se limita a reprimendas por excesso de zelo”. Essa atitude persiste até hoje: a classe dominante como um todo não teme a ascensão desses grupos fascistas, mas apenas seu comportamento “excessivo”, enquanto as seções mais reacionárias das grandes empresas apoiam financeiramente esses grupos.

Uma década e meia depois, quando Ronald Reagan parecia estar prestes a se tornar o presidente dos Estados Unidos, Bertram Gross publicou Friendly Fascism: The New Face of Power in America (1980) [A nova face do poder na América], que se baseou livremente em The Power Elite (1956) [A elite do poder] de C. Wright Mills e Monopoly Capital: An Essay on the American Economic and Social Order (1966), [Capital monopolista: um ensaio sobre a ordem econômica e social americana] de Paul A. Baran e Paul M. Sweezy. Gross argumentou que, como as grandes empresas monopolistas haviam estrangulado as instituições democráticas nos Estados Unidos, a extrema direita não precisava de botas e suásticas: essa orientação viria por meio das próprias instituições da democracia liberal. Quem precisa de tanques quando se tem os bancos para fazer o trabalho sujo?

As advertências de Kalecki e Gross nos lembram que a intimidade entre o liberalismo e a extrema direita não é um fenômeno novo, mas emerge das origens capitalistas do liberalismo: este nunca foi nada além da face amigável da brutalidade normal do capitalismo.

Os liberais estão usando a palavra “fascismo” para se distanciar da extrema direita. Esse uso do termo é mais moralista do que preciso, pois nega a intimidade entre os liberais e a extrema direita. Para isso, formulamos dez teses sobre essa extrema direita de um tipo especial, que esperamos que provoque discussões e debates. Esta é uma formulação provisória, um convite para o diálogo.

Tese um. A extrema direita de um tipo especial usa instrumentos democráticos até onde for possível. Ela acredita no processo conhecido como “longa marcha através das instituições”, por meio do qual constrói pacientemente o poder político e aparelha as instituições permanentes da democracia liberal com seus quadros, que depois levam seus pontos de vista para o pensamento dominante. As instituições educacionais também são fundamentais para a extrema direita de um tipo especial, pois determinam os programas de estudo para os alunos em seus respectivos países. Não é necessário que essa extrema direita de um tipo especial deixe de lado essas instituições democráticas, desde que elas ofereçam o caminho para o poder não apenas sobre o Estado, mas sobre a sociedade.

Tese dois. A extrema direita de um tipo especial está promovendo o desgaste do Estado e a transferência de suas funções para o setor privado. Nos Estados Unidos, por exemplo, sua propensão à austeridade está ajudando a reduzir a quantidade e a qualidade dos quadros em funções essenciais do Estado, como o Departamento de Estado dos EUA. Muitas das funções dessas instituições, agora privatizadas, são realizadas sob os auspícios de organizações não governamentais lideradas por capitalistas bilionários emergentes, como Charles Koch, George Soros, Pierre Omidyar e Bill Gates.

Tese três. A extrema direita de um tipo especial usa o aparato repressivo do Estado de modo a silenciar seus críticos e desmobilizar movimentos de oposição econômica e política. As constituições liberais oferecem ampla latitude para esse tipo de uso, do qual as forças políticas liberais se aproveitaram ao longo do tempo para reprimir qualquer resistência da classe trabalhadora, do campesinato e da esquerda.

Tese quatro. A extrema direita de um tipo especial incita uma dose homeopática de violência na sociedade por parte dos elementos mais fascistas de sua coalizão política para criar medo, mas não medo suficiente para que as pessoas se voltem contra ela. A maioria das pessoas de classe média em todo o mundo busca conforto e se incomoda com os inconvenientes (como os causados por manifestações, etc.). Mas, ocasionalmente, um assassinato de um líder trabalhista ou uma ameaça a mão armada feita a um jornalista não é atribuída à extrema direita de um tipo especial, que muitas vezes nega apressadamente qualquer associação direta com os grupos fascistas marginais (que, no entanto, estão organicamente ligados a ela).

Tese cinco. A extrema direita, de um tipo especial, oferece uma resposta parcial à solidão que está presente no tecido da sociedade capitalista avançada. Essa solidão decorre da alienação das condições precárias de trabalho e das longas jornadas, que corroem a possibilidade de construir uma comunidade e uma vida social vibrantes. Essa extrema direita não constrói uma comunidade real, exceto quando se trata de seu relacionamento parasitário com comunidades religiosas. Em vez disso, ela desenvolve a ideia de comunidade, comunidade pela Internet ou por meio de mobilizações ou comunidade por meio de símbolos e gestos compartilhados. A imensa fome de comunidade é aparentemente resolvida pela extrema direita, enquanto a essência da solidão se transforma em raiva, e não em amor.

Tese seis. A extrema direita de um tipo especial usa sua proximidade com conglomerados privados de mídia para normalizar seu discurso, e sua proximidade com os proprietários de mídias sociais para aumentar a aceitação social de suas ideias. Esse discurso de agitação cria um frenesi, mobilizando setores da população, seja on-line ou nas ruas, para participar de manifestações em que, no entanto, continuam sendo indivíduos e não membros de um coletivo. O sentimento de solidão gerado pela alienação capitalista é atenuado por um momento, mas não superado.

Tese sete. A extrema direita de um tipo especial é uma organização tentacular, com suas raízes espalhadas por vários setores da sociedade. Ela atua onde quer que as pessoas se reúnam, seja em clubes esportivos ou organizações beneficentes. Seu objetivo é construir uma base de massa na sociedade, enraizada na identidade da maioria em um determinado lugar (seja raça, religião ou senso de nacionalidade), marginalizando e demonizando qualquer minoria. Em muitos países, essa extrema direita se apoia em estruturas e redes religiosas para incorporar cada vez mais profundamente uma visão conservadora da sociedade e da família.

Tese oito. A extrema direita de um tipo especial ataca as instituições de poder que são o próprio alicerce de sua base sociopolítica. Ela cria a ilusão de ser plebéia em vez de patrícia, quando, na verdade, está nos bolsos da oligarquia. Ela cria a ilusão de plebeia ao desenvolver uma forma altamente masculina de hipernacionalismo, cuja decadência transparece em sua feia retórica. Essa extrema direita se aproveita do poder da testosterona desse hipernacionalismo e, ao mesmo tempo, joga com sua retratada vitimização diante do poder.

Tese nove. A extrema direita de um tipo especial é uma formação internacional, organizada por meio de várias plataformas, como o The Movement de Steve Bannon (com sede em Bruxelas), o partido Vox do Fórum de Madrid (com sede na Espanha) e a anti-LGBTQ+ Fundação Fellowship  (com sede em Seattle, EUA). Esses grupos estão enraizados em um projeto político no mundo atlântico que reforça o papel da direita no Sul Global e lhes fornece os recursos para aprofundar as ideias de direita onde elas têm pouco solo fértil. Eles criam novos “problemas” que antes não existiam nessa proporção, como a algazarra sobre sexualidade no leste da África. Esses novos “problemas” enfraquecem os movimentos populares e reforçam o controle da direita sobre a sociedade.

Tese dez. Embora a extrema direita de um tipo especial possa se apresentar como um fenômeno global, há diferenças entre a forma como ela se manifesta nos principais países imperialistas e no Sul Global. No Norte Global, tanto os liberais quanto a extrema direita defendem vigorosamente os privilégios que obtiveram por meio da pilhagem nos últimos 500 anos – por meio de seus meios militares e outros – enquanto no Sul Global a tendência geral entre todas as forças políticas é estabelecer a soberania.

A extrema direita de um tipo especial surge em um período definido pelo hiperimperialismo para mascarar a realidade do poder hediondo e fingir que se preocupa com os indivíduos isoladamente quando, na verdade, os prejudica.

Ela conhece bem a loucura humana e se aproveita dela.

 

Capitalismo Parasitário, por Luiz Guilherme de Besurepaire

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Luiz Guilherme de Besurepaire – 11/05/2020 .

O capitalismo tem uma incrível capacidade de se reinventar, de se regenerar. No entanto, após o tsunami financeiro de 2008, demonstrou a todos nós que a prosperidade não é algo para sempre e que os bancos capitalistas, através de seus métodos que se dizem “solucionadores de problemas”, na verdade se destacam por criar problemas, e não por solucioná-los. É assim que começa esse livro maravilhoso de Zygmunt Bauman chamado “Capitalismo Parasita”.

Bauman cita um artigo publicado na New York Books Review, em intitulado “The Crisis and What to Do About It”, em que George Soros apresenta as (des)venturas do capitalismo como um ciclo de bolhas que chegam ao seu limite de resistência. Quando a bolha em 2008 estourou, ocorreu de imediato a contração do crédito.

Alguns antecipavam o fim do capitalismo, mas na verdade tudo não passou de uma exaustão de mais um pasto. O Estado capitalista, através dos recursos públicos (usando impostos em vez do poder de sedução do mercado), buscará novas pastagens enquanto ficar fora de operação.

Rosa Luxemburgo, em seu livro chamado “Acumulação Capitalista”, diz que o capitalismo não pode viver sem as economias “não capitalistas”, ou seja, enquanto existirem “terras virgens” para expansão e houver capacidade de explorá-las até exaurirem as fontes de sua própria alimentação. Em outras palavras, o capitalismo é um sistema parasitário.

Como todos os parasitas, pode prosperar durante certo período, desde que encontre um organismo ainda não explorado que lhe forneça alimento. Mas só pode fazer isso destruindo o hospedeiro, destruindo as condições de sua prosperidade, ou mesmo de sua sobrevivência. Após uma exaustão completa ou quase completa de um organismo hospedeiro, um parasita procura encontrar outro, para supri-lo de sucos vitais por um período sucessivo, embora também limitado, de tempo.

Rosa Luxemburgo, quando escreveu o seu livro, não previa nem podia prever que os territórios pré-modernos cheios de continentes exóticos não eram os únicos “hospedeiros” potenciais dos quais o capitalismo poderia se nutrir para prolongar a própria existência e gerar uma série de períodos de prosperidade.

“Sem meias-palavras, o capitalismo é um sistema parasitário. Como todos os parasitas, pode prosperar durante certo período, desde que encontre um organismo ainda não explorado que lhe forneça alimento. Mas não pode fazer isso sem prejudicar o hospedeiro, destruindo assim, cedo ou tarde, as condições de sua prosperidade ou mesmo de sua sobrevivência.” (pg8, pg 9)

O parasita a que se refere Rosa Luxemburgo é a força do capitalismo que busca incessantemente novos lugares para se “hospedar”, ou seja, novos mercados. O capitalismo revelou desde então seu incrível talento para buscar e encontrar novas espécies de hospedeiro cada vez que a espécie explorada anteriormente diminuía em número.

Hoje, o capitalismo já alcançou a dimensão global ou, de qualquer forma, chegou muito perto de alcançá-la − uma façanha que para Luxemburgo ainda era uma perspectiva um tanto distante. O que aconteceu no último meio século mais ou menos é o capitalismo aprendendo a arte anteriormente desconhecida e inimaginável de produzir sempre novas “terras virgens”, em vez de limitar sua rapidez ao conjunto das já existentes. Milhões de homens e mulheres que se dedicavam antes a economizar em vez de viver do crédito foram transformados com astúcia em um desses territórios virgens ainda não explorados. Essa nova arte − possibilitada pela mudança da “sociedade de produtores” para a “sociedade de consumidores” e da reunião de capital e trabalho para a reunião de mercadorias e clientes como a principal fonte de “valor agregado” − lucro e acumulação consiste principalmente na mercantilização progressiva das funções da vida.

Com a sociedade de consumidores, o cartão de crédito foi o indício do aparecimento de um mercado sedutor. Nos velhos tempos, era preciso postergar as satisfações – que segundo Max Weber foi o princípio que tornou possível o capitalismo moderno –, apertar os cintos, negar outros prazeres, gastar de forma prudente, economizar dinheiro, que se podia separar com a esperança de que, com o devido cuidado e paciência, os sonhos seriam concretizados.

A expressão material deste parasitismo é o cartão de crédito, que, com seu slogan “não adie a realização dos seus sonhos”, induz o consumidor a gozar sem cessar, a consumir. A compra em débito não é boa para os emprestadores, os bancos em geral, porque não se paga juros.

O “devedor ideal” é aquele que jamais paga integralmente suas dívidas porque os juros são o alimento do “parasita”. Assim a contração do crédito decorrente da crise econômica mundial de 2008, para Bauman, não foi devido ao insucesso dos bancos; ao contrário, foi devido ao extraordinário sucesso destes porque introduziu a regra do “compre agora e pague depois”, produziu e produz em série indivíduos endividados. “Como poucas drogas, viver de crédito cria dependência”, diz Bauman.

O Estado teve um papel fundamental na criação desses “novos pastos” a explorar. Coube a Bill Clinton a iniciativa de introduzir nos Estados Unidos as hipotecas subprime. Elas foram vendidas aos mais pobres como solução dos problemas dos sem-tetos, mas na verdade multiplicou o número de pessoas sem casa com a epidemia de retomada dos imóveis, que ficou conhecida como subprime.

Elas foram garantidas pelo governo a fim de oferecer crédito para a compra da casa própria para pessoas desprovidas de meios de pagar a dívida assumida e, portanto, a fim de transformar setores da população até então inacessíveis à exploração creditícia em devedores.

A cooperação entre Estado e mercado no capitalismo é a regra; o conflito entre eles, quando acontece, é a exceção. O Estado e o mercado mantêm relações simbióticas, que é uma relação mutuamente vantajosa entre dois organismos vivos de espécies diferentes. No entanto, as políticas são construídas não contra o interesse dos mercados; seu objetivo natural é avalizar, permitir a segurança e a longevidade do domínio do mercado. Se a relação entre Estado e mercado é de vantagens mútuas, a relação entre mercado e o consumidor é de parasitismo.

“Se o Estado assistencial hoje vê seus recursos minguarem, cai aos pedaços ou é desmantelado de forma deliberada, é porque as fontes de lucro do capitalismo se deslocaram ou foram deslocadas da exploração da mão de obra operária para a exploração dos consumidores. E também porque os pobres, despojados dos recursos necessários para responder às seduções dos mercados de consumo, precisam de dinheiro − não dos tipos de serviço oferecidos pelo Estado assistencial − para se tornarem úteis segundo a concepção capitalista de “utilidade”. (pg 32)

Nossa sociedade deixou de ser de produtores para se transformar numa sociedade de consumidores. O mundo todo é visto e vivido como consumidores. A cultura também se transforma em um armazém de produto destinado ao consumo. Todos concorrendo contra todos para conquistar a atenção inconsciente dos potenciais consumidores, na esperança de atraí-la e conservá-la por pouco mais tempo.

Nosso mundo lembra cada vez mais Leônia, “a cidade invisível” de Italo Calvino, onde “mais do que pelas coisas que todos os dias são fabricadas vendidas compradas, a opulência… se mede pelas coisas que todos os dias são jogadas fora para dar lugar a novas”. (pg 41)

Numa sociedade consumidora como a nossa, as redes substituem as estruturas, em que o tabuleiro está estabelecido por um jogo de apego e desapego e uma infinita sucessão de conexões e desconexões. A cultura nos dias de hoje é feita de ofertas, para garantir que “a escolha continue a ser inevitável ou uma necessidade e, ainda, um dever de vida”. Ter não é mais suficiente. O sentimento que prevalece é o desejo de substituir o que se tem por bens novos e melhorados. Essa é a regra da sociedade líquida moderna. Trata-se da cultura da “obsolescência instantânea”, pois estimula o consumo.

A solidez dos vínculos é uma ameaça, pois um futuro com obrigações restringe a liberdade de movimento e a capacidade de vislumbrarmos novas oportunidades quando elas aparecerem e, por conseguinte, compromete a sociedade líquida moderna feita para o descartável. Relações duradouras não são consideradas boas.

As universidades não escapam a essa regra por uma razão bem simples: o mundo muda de uma forma que desafia o saber existente. Para Bauman, o mundo volátil da modernidade líquida “mais parece um mecanismo para esquecer do que um ambiente para aprender”. A memória, a longo prazo, cede lugar para os engajamentos flexíveis perante um vasto mundo de informações televisivas e virtuais, a tendência das notícias impressas é desaparecer, dando lugar a outros meios de informação.

Para Bauman, a antiga tarefa de representar o mundo para os alunos, por exemplo, o mundo tal como ele é, auxiliando a formação de uma personalidade adequada para viver em um mundo previsível, já não é mais possível. A massa de conhecimentos acumulados transformou-se no epítome contemporâneo da desordem e do caos. Bauman conclui que ainda não estamos preparados para este tipo de vida.

A parcela de conhecimento retirada para uso e consumo pessoal só pode ser avaliada com base na quantidade. Já não é mais possível utilizar o critério da qualidade com o restante, pois todas as informações se equivalem. Se no passado a educação adaptava-se às mutações, definia objetivos e projetava novas estratégias. Torna-se claro, para Bauman, que a arte de viver em um mundo hipersaturado de informação ainda não foi aprendida.

Fico por aqui. Apenas dizendo que Bauman mantém uma crítica ao mundo líquido, acrescentando o conceito de capitalismo parasitário em que o consumo desenfreado determina uma nova abordagem sobre alguns temas contemporâneos, desde os comportamentos da vida cotidiana. A utilização da metáfora da infestação, o conceito de parasita através de instituições como bancos e a exploração do crédito para o consumo desenfreado, somados a crises geracionais, e o modo de vida que vivemos.

Tudo isso fazem do livro “Capitalismo Parasitário”, de Zygmunt Bauman, um livro importantíssimo para os dias de hoje. Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.

Minha geração, por Francisco de Oliveira Barros Júnior

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Francisco de Oliveira Barros Júnior – A Terra é Redonda – 25/08/2025

O docente propõe um conjunto de interrogações com o objetivo de construir uma visão ampla e complexa sobre as novas gerações, representadas pelos alunos que participam das disciplinas

Refletir sobre o conceito de geração, a partir de textos musicais e fílmicos, é uma proposta metodológica a ser desenvolvida. Na sala de aula, do ensino fundamental ao superior, professores experimentam relações intergeracionais. Na exposição de um conteúdo, intitulado de “Intergeracionando”, o docente propõe um conjunto de interrogações com o objetivo de construir uma visão ampla e complexa sobre as novas gerações, representadas pelos alunos que participam das nossas disciplinas.

Estamos no campo universitário onde o professor vai projetar em uma tela, imagens e perguntas para serem pensadas. Uma metodologia dialogal, aberta para dar voz aos estudantes que têm, em média, 20 anos. Seguem as fotografias de nomes conhecidos do universo artístico nacional e internacional. Cada imagem vem acompanhada de uma interrogação.

Sigamos o roteiro da exposição: Com os Beatles, indago: “a que geração pertenço?” Estamos no ano de 2023, em tempos paradoxais, ambivalentes e incertos. Progressos e regressões. Em desassossego, propomos um exercício de contextualização histórica da sociedade na qual vive a juventude atual. Os jovens vivendo em riscos, conectados em redes, na cultura consumista das relações mercantilizadas. Companheiros dos avanços e retrocessos, eles fazem história, são de várias tribos e representam a diversidade.

Com os Rolling Stones, vem a seguinte questão: “quais as características da minha geração?” A sociabilidade juvenil encontra novos paradigmas nos espaços digitais ocupados pelos jovens. Munidos de aparelhos eletrônicos, na sociedade telânica, navegam nas redes sociais e constroem as suas cidadanias em movimentações políticas online. Movimentos sociais juvenis agitam o cenário político em um cyberativismo praticado na “sociedade em rede”. Na “era da informação”, sopram ventos sulistas e nortistas de uma mudança social na qual mentes articuladas contestam o poder.

Atitudes contestatórias em um contexto histórico de reinvenção democrática praticada por uma juventude que vive “uma revolução possibilitada pela internet”. “Indignação e esperança” em um mundo transformado, de reformas políticas e emergência de um padrão tecnologizado no modo de promover insurreições e discursos revolucionários (CASTELLS, 2013). No coletivo, indignados e esperançosos empunham a faixa com uma mensagem no plural: “somos a rede social”.

Com Roberto Carlos, pergunto: “que avanços e retrocessos acompanham a minha geração?” Progressos e regressões em um contexto de ambivalências e paradoxos. Longevidade populacional e altos índices de criminalidade. Notícias animadoras e sombrias. Novas barbáries e robótica presentes na sociedade do espetáculo. Inteligência artificial e pobreza dão matérias jornalísticas. Medos medievais são reatualizados. A covid-19 fez um strip-tease revelador das nossas vulnerabilidades e riscos. Como vivemos agora?

Uma jovem de 20 anos, nos dias de hoje, vive em sociedades paradoxais. Os brasis são exemplares. Um país de excluídos curtindo as viralizações das celebridades em suas pornográficas ostentações. “A galáxia da internet” convive com precários estados de bem-estar social. A pergunta antes feita necessita de um exercício de contextualização histórica. Mostrar as múltiplas faces da globalização, do capitalismo parasitário e do neoliberalismo. Quais as suas consequências humanas? Negócios e economia eletrônicos em movimentos milionários e os quadros de exclusão social correndo em paralelo.

Na “vida para consumo” e “a crédito”, “a geração jovem de hoje” conhece “uma sociedade de consumidores”. Nas redes sociais, a juventude é um terreno virginal a ser conquistado e explorado “pelo avanço das tropas consumistas”. “O jovem como lata de lixo da indústria de consumo”. Uma cultura consumista e “agorista”. Inquietos “e em perpétua mudança”, os jovens entram no “culto da novidade”. Em tempos excessivos e de descartabilidade, eles participam da “assombrosa velocidade dos novos objetos que chegam e dos antigos que se vão”. No império do efêmero, em suas curtições internéticas, a juventude navega nas compras virtuais e provoca a curiosidade: quantas horas por dia gasta com smartphones, computadores, telas diversas e outros instrumentos eletrônicos? (BAUMAN, 2013, p.34).

Com Gilberto Gil, indago: “quais os valores que conduzem a minha geração?” De que matrizes procedem? Estão sendo invertidos? No foco, os princípios que norteiam as nossas existências em uma sociedade de mercado, competitiva e violenta. Em termos necropolíticos, injusta, cruel e outros adjetivos desumanos. Um campo de conflitos. O que é valorizado nas relações capitalistas? O nosso pensamento tem sido crítico em relação às ações desumanizadoras observadas no cotidiano? A mercantilização de todas as relações expõe os homens transformados em mercadorias.

Todos os campos, destacando a saúde, a educação, a religião e outras esferas, são atravessadas pela lógica mercadológica, objetiva, calculista e voltada para o máximo de lucratividade. Números, quantidade de viralizações, vendas da bilheteria e audiência numérica são critérios prioritários. A qualidade do que é produzido e promovido está abaixo do objetivo número um: vender. Em termos mais sintonizados com a época atual, viralizar. Noticiário policial, fofocas e ti ti tis envolvendo celebridades, em especial, viralizam e geram milionários negócios.

Glamour, ostentações ao som de funk, badalações e chacinas telanizadas. “A civilização do espetáculo”, seus ópios, tragédias e frivolidades. Janelas indiscretas. Exposição da intimidade e privacidade pessoal desconhecem os limites entre o público e o privado. “Sou visto, logo existo”. Aparecer de qualquer jeito. Os olhos do poder e os seus plantonistas. Vamos ler “1984”, de George Orwell? Nas telas, o “grande irmão” vê o jogo do “vale-tudo”, o time dos que “topam tudo por dinheiro”.

Francisco de Oliveira Barros Júnior é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí (UFPI).

Referência

BAUMAN, Zygmunt. Sobre educação e juventude: conversas com Riccardo Mazzeo. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

O dilema silencioso da geração X, por Rodolfo Damiano

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Rodolfo Damiano – A Terra é Redonda – 18/09/2025

A resiliência da Geração X, forjada na adversidade, tornou-se sua própria armadilha. O verdadeiro legado que precisam construir não é mais de resistência silenciosa, mas de aprender a finalmente cuidar de quem sempre cuidou de todos – inclusive de si mesmos

1.

A geração X, formada por aqueles que nasceram entre 1965 e 1980, vive hoje um dos maiores desafios geracionais da história contemporânea. Criados sob a promessa de que estudo, trabalho e disciplina garantiriam estabilidade, muitos chegaram à vida adulta em um cenário que desmentiu essas expectativas. As últimas quatro décadas foram marcadas por crises econômicas sucessivas, mudanças tecnológicas radicais e um mercado de trabalho cada vez mais instável. O resultado é um grupo que, apesar de resiliente, enfrenta pressões simultâneas que afetam profundamente não apenas sua saúde física, mas sobretudo sua saúde mental.

Um dos dilemas mais marcantes é a chamada “geração sanduíche”, expressão usada para descrever adultos que cuidam, ao mesmo tempo, de filhos que ainda não conquistaram independência e de pais que envelhecem com crescente necessidade de apoio. No Brasil, quase metade dos jovens adultos ainda mora com os pais por dificuldades financeiras, desemprego ou salários insuficientes para manter uma vida autônoma (IBGE, 2023).

Ao mesmo tempo, a longevidade aumenta, mas nem sempre é acompanhada de autonomia: cresce o número de idosos dependentes de cuidados diários, exigindo tempo, energia e recursos. Para a geração X, isso significa viver em permanente estado de alerta, equilibrando responsabilidades múltiplas sem espaço para si.

Essa sobrecarga tem repercussões claras na saúde mental. Sintomas de ansiedade generalizada, depressão e burnout são cada vez mais comuns nessa faixa etária, frequentemente mascaradas pelo discurso da “resiliência”. Estudos mostram que o bem-estar subjetivo costuma atingir seu ponto mais baixo na meia-idade, fenômeno conhecido como a “curva em U da felicidade” (Blanchflower & Oswald, 2008). É exatamente nesse período, entre os 45 e 55 anos, que muitos gen xers enfrentam crises de identidade, frustrações profissionais e sobrecarga familiar, fatores sabidamente associados a maior risco de transtornos mentais (WHO, 2022).

2.

No campo do trabalho, os impactos psíquicos são evidentes. Muitos acreditaram que a ascensão social seria consequência natural do esforço, mas se depararam com um mercado hostil, instável e acelerado. A recessão de 2008, a pandemia de Covid-19 e as sucessivas transformações tecnológicas trouxeram perdas salariais, insegurança crônica e necessidade de reinvenção constante. Esse cenário alimenta sentimentos de inadequação, fadiga emocional e desesperança – todos reconhecidos pela psiquiatria como gatilhos importantes para quadros depressivos e transtornos de ansiedade (APA, 2019).

No plano cultural, a geração X enfrenta ainda a sensação de não pertencer. São jovens demais para se aposentar e velhos demais para se integrar plenamente ao universo digital dominado por TikTok e influenciadores. Suas referências culturais são tachadas de “vintage”, enquanto seus filhos navegam com naturalidade em ambientes virtuais que eles apenas decifram superficialmente. Essa experiência de deslocamento cultural reforça a sensação de isolamento e pode agravar quadros de solidão – hoje reconhecida pela OMS como um fator de risco comparável ao tabagismo para a saúde mental e física (WHO, 2022).

Apesar de tudo, a geração X desenvolveu notável capacidade de adaptação. Aprendeu a lidar com mudanças, a sobreviver em cenários de incerteza e a encontrar soluções criativas. No entanto, é urgente quebrar o mito de que resiliência significa suportar indefinidamente. A literatura em saúde mental mostra que essa geração apresenta níveis elevados de estresse crônico e desgaste emocional, especialmente entre aqueles que conciliam múltiplas funções familiares e profissionais (APA, 2019). Cuidar de si, nesse contexto, é não apenas legítimo: é uma necessidade de saúde pública.

Estratégias individuais e coletivas são fundamentais. No nível pessoal, buscar apoio psicológico, praticar autocuidado e aprender a compartilhar responsabilidades são passos importantes. No nível social, políticas públicas que ampliem o acesso à saúde mental, incentivem o envelhecimento ativo e apoiem financeiramente famílias cuidadoras são urgentes.

O Brasil já ultrapassa os 15% de população idosa, mas o investimento em saúde mental segue abaixo das recomendações internacionais (The Lancet Commission, 2018). Sem uma rede sólida de apoio, o peso recai desproporcionalmente sobre essa geração.

No fim, a geração X está redefinindo o que significa “meia-idade” em um mundo de transformações aceleradas. Ao equilibrar cuidado com os outros e cuidado consigo mesmo, pode inaugurar uma forma mais honesta e sustentável de atravessar esse período da vida. Porque, afinal, quem cuida de todos também merece ser cuidado – inclusive por si próprio. Essa talvez seja a principal lição silenciosa que a geração X pode deixar: resiliência não se mede pela capacidade de resistir sozinho, mas pela coragem de reconhecer os próprios limites e buscar apoio.

Rodolfo Damianomédico psiquiatra, é pós-doutorando na USP. Autor, entre outros livros, de Compreendendo o suicídio (Editora Manole).

Referências

American Psychological Association (APA). Stress in America™: Stress and Current Events. Washington, DC: APA, 2019.

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

BLANCHFLOWER, D.G.; OSWALD, A.J. Is well-being U-shaped over the life cycle? Social Science & Medicine. 2008;66(8):1733-1749.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNAD Contínua. Rio de Janeiro: IBGE, 2023.

The Lancet Commission. Global Mental Health and Sustainable DevelopmentThe Lancet. 2018;392(10157):1553-1598.

World Health Organization (WHO). World Mental Health Report: Transforming mental health for all. Geneva: WHO, 2022.