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Argentina, um dominium norte-americano? por José Luís Fiori

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José Luís Fiori – A Terra é Redonda – 19/11/2025 A pergunta que persegue a Argentina não é se pagará sua dívida, mas até quando aceitará trocar sua soberania pelo eterno papel de vassalo financeiro 1. Desta vez, a “operação de salvatagem”[1] da Argentina foi feita ao estilo de Donald Trump, como se fosse um grande espetáculo midiático, envolvendo diretamente o presidente americano, seu secretário do Tesouro, Scott Bessent, e os representantes dos principais bancos credores da Argentina liderados por Jamie Dimon, CEO do JP Morgan Chase. No mês de setembro de 2025, a Argentina encontrava-se em situação pré-falimentar, sem recursos para pagar o serviço da sua dívida com os bancos internacionais e com o FMI. O valor do peso estava em queda livre, e previa-se a derrota do presidente Javier Milei nas eleições parlamentares do dia 26 de outubro, seguida de uma corrida contra o peso e uma explosão inflacionária. A comunidade financeira internacional já antecipava uma nova moratória da dívida externa argentina, criando pânico nos mercados financeiros internacionais, tanto em Wall Street como na City de Londres. Foi nesse contexto emergencial que Scott Bessent anunciou, no dia 15 de outubro, a intervenção direta do Tesouro Americano, comprando pesos numa operação de swap loan de US$ 20 bilhões,[2] para impedir o colapso da moeda “portenha” às vésperas das eleições parlamentares. E logo em seguida, no dia 22 de outubro, desembarcaram em Buenos Aires os representantes dos quatro maiores bancos americanos – J.P. Morgan Chase, Goldman Sachs, Bank of America e Citigroup –, incluindo o ex-primeiro-ministro inglês Tony Blair, que agora é uma figura de proa do J.P. Morgan Chase International.[3] Em poucas horas foi montado um pacote de ajuda privada de US$ 20 bilhões, totalizando um resgate de US$ 40 bilhões, desta vez sem a participação do FMI. Esse tipo de intervenção externa na economia argentina não é um fenômeno novo nem excepcional. Basta dizer que, desde os anos 1950 a Argentina já recorreu mais de 20 vezes à ajuda emergencial do FMI. E, hoje, a Argentina é o país que tem a maior dívida do mundo com o Fundo, à frente da Ucrânia, que aparece em segundo lugar, depois de três anos de guerra. Somando tudo, a Argentina recebeu nesses oitenta anos cerca de 35% do montante total de US$ 164 bilhões emprestados pelo FMI para todos seus clientes ao redor do mundo.[4] Entre 1976 e 1981, durante a última ditadura militar argentina, o ministro da economia Martinez de Hoz utilizou pela primeira vez a estratégia de fortalecimento artificial do peso frente ao dólar, como forma de legitimar o regime militar, dando aos argentinos um poder de compra internacional inflado. A política econômica do ministro Martinez de Hoz facilitou a especulação financeira e enriqueceu um setor da sociedade argentina, permitindo-lhe acumular dólares a baixo custo, deixando, entretanto, uma dívida externa que se tornou impagável depois do “choque” das taxas de juros de Paul Volcker em 1979, provocando uma crise econômica e uma escalada inflacionária que contribuíram decisivamente para a queda do governo de Reynaldo Bignone e o fim da ditadura militar, em dezembro de 1983. 2. Para enfrentar esta crise econômica, o então presidente do Banco Central da Argentina, Domingos Cavallo, transferiu a dívida privada para o Tesouro Nacional em 1982, enquanto sucessivas desvalorizações do peso fizeram com que a inflação doméstica e o dólar disparassem. Assim mesmo, o Estado só conseguiu cobrir parcialmente os juros da dívida alimentando ainda mais a inflação e o endividamento recorrendo a novos financiamentos externos. Seguiu-se o governo do presidente radical, Raul Alfonsin, e o fracasso do seu Plano Austral de combate à inflação, culminando com sua própria renúncia seis meses antes do fim do seu mandato, em 8 de julho de 1989. No início da década seguinte, o mesmo Domingo Cavallo, agora na condição de ministro da Economia do governo peronista de Carlos Menem, voltou à estratégia de fortalecimento artificial do peso, através da sua Lei da Convertibilidade, aprovada em 1991, que estabeleceu um câmbio fixo entre o peso e o dólar, e representou na prática a “dolarização” da economia argentina. Seu objetivo era conter a inflação, mas acabou causando, sete anos depois, uma nova explosão hiperinflacionária que levou ao colapso da economia argentina e a uma crise política sem precedentes. O novo presidente radical, Fernando de la Rua, eleito em 1999, renunciou em 2001, e em apenas duas semanas a Argentina teve cinco presidentes, seu sistema monetário se desintegrou e a sociedade argentina esteve à beira do caos. Para culminar, o presidente interino, Adolfo Rodrigues Sá, decretou – no dia 23 de dezembro de 2001 – a moratória da dívida argentina, dando um calote na “comunidade financeira internacional” de US$ 93 bilhões. Depois disto, durante o período dos governos peronistas de Nestor e Cristina Kirchner, entre 2003 e 2015, a Argentina conseguiu honrar o serviço da sua dívida externa, graças aos preços extraordinários das commodities argentinas no mercado internacional. Mas em 2018, o presidente conservador Mauricio Macri voltou ao FMI, e obteve um empréstimo de US$ 45 bilhões, o maior que já havia sido concedido em toda a história da instituição. Entre seus objetivos não declarados, estava a reeleição do próprio presidente Mauricio Macri em 2019, mas ele foi derrotado já no primeiro turno, e seu sucessor, o peronista Alberto Fernández, passou a maior parte do seu governo renegociando uma forma mais elástica de pagamento do serviço da dívida com o FMI. 3. O insucesso econômico de Alberto Fernández contribuiu diretamente para a vitória de Javier Milei nas eleições presidenciais de 2023, com sua proposta ultraliberal de “eliminação do Estado” e “dolarização da economia”, voltando uma vez mais à tese ortodoxa e neoliberal de que a inflação é uma consequência dos abusos da “elite política” e de sua gastança fiscal. Um ano e quatro meses depois da sua posse, em abril de 2024, Javier Milei bateu às portas do FMI, onde foi recebido com entusiasmo pela sua presidenta, Kristalina Georgieva, e recebeu mais um empréstimo de US$ 20 bilhões, sem que a Argentina tivesse conseguido pagar um centavo de sua dívida de US$ 45 bilhões contraída por Mauricio Macri em 2018. E agora, seis meses apenas depois dessa ida ao FMI, Javier Milei já teve que ser socorrido uma vez mais pela nova operação de salvatagem da Argentina, no valor de US$ 40 bilhões, organizada por Donald Trump, Scott Bessent e Jamie Dimon. Numa matéria de destaque no jornal The New York Times sobre a Argentina, dia 23 de outubro, o articulista se pergunta com um certo ceticismo sobre o que passará se, no ano de 2026, o governo argentino não tiver recursos – uma vez mais – para honrar seus novos compromissos? Nesse ponto, para responder com franqueza ao The New York Times, há que ter claro que a Argentina não pagará jamais a sua dívida externa. Não tem a menor condição de fazê-lo, mas este não é e nunca será um grande problema. O FMI e os bancos privados rolarão mil vezes o passivo internacional da Argentina, desde que seu governo siga a cartilha ortodoxa do FMI. Afinal, nem os bancos privados nem o FMI vivem das dívidas pagas; eles vivem das novas dívidas contraídas e do pagamento regular de seus juros e demais serviços. O sonho da oligarquia econômica e da elite política conservadora argentina sempre foi estabelecer uma “relação carnal”[5] com os Estados Unidos, transformando a Argentina em um dominium norte-americano, como foi o caso de Canadá, Austrália e Nova Zelândia com relação à Inglaterra – mesmo que a cada nova crise e “ajuste” ou “arrocho interno”, a sociedade argentina fique mais pobre e subdesenvolvida, coisa que a Argentina nunca foi no passado. De qualquer maneira, a grande questão que o The New York Times não se coloca é saber se os Estados Unidos – depois de Donald Trump – quererão assumir o custo de um dominium na América do Sul, ou preferirão apenas manter a Argentina na condição de um vassalo de segunda linha (como outros pequenos países, tipo Equador, El Salvador, Guatemala etc.) “rolando sua dívida” de tempos em tempos, desde que os argentinos se comportem bem, sejam obedientes e rezem pelo catecismo do FMI. Neste novo modelo de vassalagem, o país paga sua dívida com seus recursos mas segue endividado em dólares. José Luís Fiori é professor emérito da UFRJ. Autor, entre outros livros, de Uma teoria do poder global (Vozes). Notas [1] Expressão utilizada por Guido di Tella ao referir-se ao objetivo central de sala política externa, na condição de Chanceler do governo peronista de Carlos Menem, entre 1991 e 1999. [2] Nome técnico dado a um conjunto de providências a serem tomadas para um resgate e/ou manutenção da vida após um grande desastre. [3] Financial Times. Investors bet Argentina will devalue peso despite $40 bn USS rescue effort. 23 October 2025. [4] The New York Times International Edition. Staking taxpayer Money on Argentina.

América Latina na berlinda

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As transformações econômicas e geopolíticas em curso na sociedade internacional estão alterando todas as estruturas sociais e políticas, gerando novos movimentos protecionistas, aumentando a concorrência entre os atores econômicos, incrementando os conflitos militares e ameaças de guerras constantes, levando nações desenvolvidas a aumentarem as pressões econômicas e políticas, com ameaças de uso de forças e movimentos geopolíticos que podem gerar novos constrangimentos no cenário global. Neste momento, percebemos que a América Latina vem ganhando espaço nas discussões geopolíticas internacionais, onde os grandes atores políticos globais estão aumentando as pressões econômicas, buscando uma aproximação geopolítica como forma de dominar as variadas riquezas minerais da região, com isso, objetivando garantir acesso aos recursos naturais que caracterizam a América Latina, cuja história mostra, claramente, uma região que se caracterizou pela extração de recursos que sempre serviram de espaço de acumulação para os países ricos, riquezas estas que contribuíram imensamente para financiar os setores industriais europeus e deixando, para os povos nativos, rastros de exploração, degradação e corrupção. Desde a colonização latino-americana, os países da região foram fortemente dominados pelas potências hegemônicas, interessadas em suas variadas riquezas naturais, inicialmente seus colonizadores originais, Portugal e Espanha, depois a Inglaterra, pioneira da Revolução Industrial, cujas riquezas extraídas da região impulsionaram o desenvolvimento do setor Industrial, fazendo com que os ingleses dominassem a sociedade global até o começo do século XX. Posteriormente, depois da segunda guerra mundial, os Estados Unidos da América assumiram a hegemonia global e passaram a fortalecer seu poder na América Latina, cuja dominação começou com a chamada Doutrina Monroe, onde os norte-americanos passaram a dominar as mentes e os corações das elites locais, expandindo seu poderio econômico, trazendo empresas multinacionais, gerando empregos, difundindo os filmes de Hollywood e a visão de mundo estadunidense, exportando o modelo fordista e taylorista e garantindo ganhos substanciais para suas corporações. No começo do século XXI, depois dos atentados terroristas, os norte-americanos se afastaram da América Latina e fincaram os pés nos países do Oriente Médio, levando guerras, violências e destruições constantes. Neste momento, os espaços passaram a ser ocupados por outras nações, aumentando o comércio e a integração entre a China e os países da região, levando os chineses a se tornarem o maior parceiro comercial da América Latina, comprando empresas, aumentando os investimentos externos e gerando novos focos de ciúme e preocupação geopolíticas, levando o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Pete Hegseth, a dizer: “Vamos recuperar nosso quintal. Neste ambiente, conseguimos compreender a relevância da América latina no mundo contemporâneo, as nações desenvolvidas buscam na região novos espaços de acumulação, explorar as riquezas naturais e enriquecer uma pequena parte da população e deixando rastros de desigualdade e devastação. Essa situação de pilhagem constante sempre existiu na região, a exploração externa faz parte da trajetória dos países da América Latina e, ao mesmo tempo, precisamos destacar o papel das elites econômicas internas destes países, que sempre se associaram com os exploradores externos, se transformando em sócios secundários desta exploração, restringindo os espaços de desenvolvimento nacional, cultuando valores dos exploradores, defendendo hipocritamente interesses externos, levantando bandeiras externas e acreditando verdadeiramente serem nacionalistas e democratas. Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Financeirização e redistribuição da riqueza Marcio Pochmann

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Marcio Pochmann – A Terra é Redonda – 17/11/2025 A financeirização, ao esvaziar a estrutura produtiva, não gera apenas desigualdade, mas um terreno fértil para o retorno trágico do fanatismo religioso e do banditismo social como respostas patológicas a uma massa sobrante sem destino 1. Pela segunda vez na história republicana, o processo de financeirização contamina a economia e a sociedade brasileira. Decorrente da adesão do país ao Consenso de Washington a partir de 1990, a economia dominada pelas finanças se instalou e ganhou forma, passando a reconfigurar profundamente a infraestrutura econômica, a estrutura social e a superestrutura nacional. Do ponto de vista da composição da produção, os impactos nos estados da federação têm sido diversos. Nas economias regionais que se encontravam mais vinculadas à industrialização, especialmente nas regiões litorâneas, os prejuízos têm sido os mais perceptíveis. No estado de São Paulo, por exemplo, o mais industrializado do país, a sua participação relativa no Produto Interno Bruto (PIB) tem sido de queda desde a década de 1980. No ano de 2023, por exemplo, o peso relativo do estado de São Paulo foi quase 22% inferior ao alcançado no auge da industrialização ocorrido na década de 1970. Em contrapartida, os estados mais identificados com o modelo primário-exportador que aparecem com mais força no interior do país registram significativa elevação na participação do PIB nacional. O conjunto dos estados pertencentes à Região Norte e ao Centro-Oeste tiveram aumentado o seu peso relativo no PIB nacional em 2,9 vezes e 2,7 vezes, respectivamente, entre as décadas de 1970 e 2020. O movimento republicano que colocou fim ao regime monárquico (1822-1889) não conseguiu se desvencilhar do processo de financeirização herdado originalmente da Guerra do Paraguai (1865-1870). O rentismo na República Velha se caracterizou pela dominância de uma parcela da elite econômica, majoritariamente agrária, que utilizou o seu poder político para manipular o aparato estatal e as políticas econômicas a fim de assegurar rendas e lucros com base em privilégios e intervenções de mercado, e não na produtividade ou no desenvolvimento de novas atividades produtivas. Em grande medida atendeu inicialmente à decadência dos cafeicultores fluminenses que direcionavam suas fortunas para as atividades financeiras, sustentando o endividamento estatal, sobretudo dependente de recursos externos. Em função disso, o centro econômico e financeiro daquela época representado pelo Rio de Janeiro perdeu posição relativa no PIB nacional. Entre as décadas de 1890 e 1930, por exemplo, o Rio de Janeiro diminuiu em cerca de 25% no valor da produção nacional. Em mais de três décadas de hegemonia neoliberal rentista, o Brasil assiste ao fortalecimento de uma frente ampla de forças política que parece operar de forma interligada na corrosão democrática da Nova República. Algo equivalente também aconteceu durante o domínio liberal rentista na República Velha diante do capitalismo nascente. 2. De certa forma, o rentismo, o fanatismo religioso e o banditismo social, identificados como fenômenos próprios da doutrina tanto liberal no passado com a neoliberal no presente, sustentam-se na minimização da atuação do Estado. Com a desregulação pública, os mercados passam a conviver com a pressão que decorre de atividades que até então estavam impossibilitadas de funcionar, com a presença de formas ilegais, inclusive provenientes do crime organizado e outras iniciativas. Em geral, o rentismo na financeirização permite a obtenção de renda a partir da mera propriedade de ativos como imóveis, ações ou títulos financeiros que pagam juros, sem que exista a necessidade de trabalho ou da produção de valor adicional. No período de alta do custo de vida como nas décadas de 1980 e início de 1990, o controle inflacionário pelo Plano Real, impôs juros elevadíssimos para atrair capital e valorizar os ativos financeiros, sendo acompanhado até os dias de hoje pela enorme valorização cambial. A combinação de juros elevados com o real valorizado contribui para o desmoronamento da estrutura produtiva complexa, integrada e diversificada até então existente. Com isso, a maior dependência de importações de mercadorias de maior valor agregado tornou mais central, tendo a desindustrialização fortalecido a convivência com a financeirização. Sem perspectivas de um futuro melhor, massas sociais sobrantes buscam se adaptar às alternativas possibilitadas pelo enfraquecimento estatal. Emergem, a partir de então, os fenômenos do fanatismo religioso e banditismo social. Na República Velha, o fanatismo religioso, ou mais precisamente o messianismo, foi uma resposta popular à miséria e ao descaso do Estado nas regiões rurais, assim como o banditismo social se tornou outra manifestação da exclusão e da luta pela sobrevivência em um ambiente de profunda desigualdade. Neste primeiro quarto do século XXI, o fanatismo religioso e o banditismo social retornaram patrocinados pela ruína da sociedade urbana e industrial imposta pelo receituário neoliberal. Esse terreno fértil para uma espécie de “coronelismo religioso”, especialmente nos grandes centros urbanos aponta em quem votar com base em crenças, corrompendo o processo político democrático assentado na intolerância, no discurso de ódio e na perseguição de minorias. Também no caso do banditismo social, a criminalidade encontra no contexto social da reprodução da pobreza, desigualdade e inoperância do Estado a fertilidade para a sua expansão. O crime organizado, por exemplo, pode até ser visto por parte da população como heróis ou justiceiros, atuando à margem da lei quando parte do Estado é associado à ausência, corrupção ou a opressão que se generaliza diante da falta de perspectivas para ascensão das massas sociais excluídas. Esses fenômenos, em vez de serem meros subprodutos, retroalimentam-se e desafiam a consolidação da democracia na Nova República. Nos anos de 1930, a implantação do projeto nacional desenvolvimentista projetou a construção de uma nova sociedade urbana e industrial frente ao pauperismo econômico e à imobilidade social da antiga Era Agrária. Para o segundo quarto do século XXI, o avanço da Era Digital está a demandar um novo projeto nacional de desenvolvimento. Do contrário, a presença de uma massa social sobrante e sem destino tende a potencializar ainda mais assentadas na frente política dos interesses do rentismo, fanatismo religioso e banditismo social. Marcio Pochmann, professor titular de economia na Unicamp, é o atual presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Autor, entre outros livros, de Novos horizontes do Brasil na quarta transformação estrutural (Editora da Unicamp).

Derrite contra a Polícia Federal, por Elio Gaspari

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Elio Gaspari, Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles “A Ditadura Encurralada”. Folha de São Paulo, 16/11/2025. Se Guilherme Derrite fosse um transeunte laçado na praça dos Três Poderes para redigir um projeto de combate ao crime organizado, teria sido compreensível a barafunda que ele produziu com as várias versões de seu relatório para o projeto de lei contra as facções criminosas. Infelizmente, Derrite é um veterano policial e secretário de Segurança do governador Tarcísio de Freitas, possível candidato a presidente da República. Mais: Derrite é um deputado federal e provável candidato ao Senado em nome do que seria um desejo do eleitorado por mais segurança. Foi laçado pelo presidente da Câmara, deputado Hugo Motta, para relatar o projeto de lei contra as facções criminosas. Com quatro versões, Derrite produziu um monstrengo, revelador dos interesses estabelecidos na máquina da segurança do país. Tome-se como exemplo a limitação que Derrite quis impor à Polícia Federal. Seu primeiro relatório estabelecia que a PF só poderia investigar depois de ter havido uma solicitação do governador do estado. Gracinha. Existem crimes federais, como o tráfico de armas e de drogas, mas a PF dependeria de uma licença dos governadores. Se esse sistema existisse nos Estados Unidos do século passado, teriam continuado as execuções de ativistas que lutavam contra a bandidagem racista de estados do Sul. Quem viu o filme “Mississippi Burning” sabe do que se trata. A bandidagem racista operava com o apoio de governadores, juízes e policiais. Foi a Polícia Federal quem desarmou as tramas. Lá, a Federal chama-se Federal Bureau of Investigation, o FBI. Foi dirigido de 1924 a 1972, quando morreu, por J. (de John) Edgar Hoover. Sujeito detestável, grampeava inimigos, chantageava políticos e presidentes. Solteirão misógino, foi um mau exemplo, mas criou uma instituição robusta e honesta (à sua maneira). Hoover foi um mau exemplo, mas criou e protegeu uma instituição exemplar. Com esse nome, a Polícia Federal brasileira surgiu em 1967. Desde então, ela se tornou, de longe, a mais respeitada instituição policial do país. Derrite queria que ela pedisse licença aos governos estaduais para desempenhar suas funções. O deputado-secretário é capitão da reserva da PM paulista, onde fez fama na tropa de elite da Rota. O Primeiro Comando da Capital operava sua rede de postos gasolina, empresas e fintechs de São Paulo há décadas. Graças à Operação Carbono Oculto, do Ministério Público e da Polícia Federal, parte dessa máquina foi desmontada, isso sem um só tiro. A Operação Escudo da polícia de Tarcísio e Derrite matou 28 pessoas num só mês de 2023. Quase todos pretos pobres e moradores da periferia. Com sua proposta de emasculação da Polícia Federal, Derrite mostrou que, enquanto o crime está organizado, o Governo de São Paulo tornou-se, na melhor das hipóteses, uma bagunça.

Jornalismo enviesado, por Hélio Schwartsman

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Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…” Folha de São Paulo, 15/11/2025. A BBC fez mau jornalismo ao editar de forma enviesada duas falas diferentes de Donald Trump, dando a falsa impressão de que ele fez um apelo direto por ações violentas no dia da invasão do Capitólio, em 2021. A história já custou os cargos a dois figurões da emissora e poderá deixar uma conta salgada para o contribuinte britânico. O Agente Laranja ameaça processar a BBC cobrando uma indenização de US$ 1 bilhão. O jornalismo, por tentar rascunhar a história em tempo real, é uma atividade mais afeita a erros do que ocupações que lidam com tarefas repetitivas e mais facilmente “protocolizáveis”, como cirurgias ou transporte aéreo. O problema não é tanto errar, mas errar sempre em direção ao mesmo lado nas questões politicamente carregadas. O relatório interno que apontou o erro no caso de Trump também identificou vieses nas coberturas da BBC sobre Gaza e pessoas trans. O que fazer? Parte do problema é que diferentes profissões atraem diferentes públicos. É comum ver uma maior concentração de esquerdistas em atividades como jornalismo e na academia e de direitistas em carreira militar ou no mercado financeiro. É um processo de autosseleção a partir de traços de personalidade e gostos. Não vejo muito o que possa ser feito para contrapor-se a isso. Para piorar, vivemos uma época moralista, que recompensa socialmente o engajamento e a militância. O caminho que me parece factível é criar uma cultura que distinga claramente a esfera pessoal, na qual a militância é legítima, da profissional, que precisa pautar-se por rigor técnico e afastamento de posições preconcebidas. A preocupação de repórteres e editores quando preparam textos para publicação deve ser a de informar seus leitores e não transformar o mundo. Precisam também desenvolver uma espécie de paranoia profissional, perguntando-se o tempo todo se não se deixaram levar por suas preferências e acabaram cruzando alguma linha vermelha. O jornalismo profissional, para cumprir sua missão, precisa ser diferente das redes sociais.

Segurança não é só repressão, por Oscar Vilhena Vieira

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Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023) Folha de São Paulo, 15/11/2025 A Câmara dos Deputados ofereceu nesta semana mais um espetáculo de irresponsabilidade política e desprezo pelo destino de milhões de brasileiros submetidos cotidianamente à tirania do crime organizado. O despreparo do deputado indicado para a tarefa de relatar a proposta do chamado Marco Legal do Combate ao Crime Organizado ficou patente pelas sucessivas e contraditórias versões dos relatórios apresentadas ao longo da semana. Até restringir a competência da Polícia Federal para investigar o crime organizado aventou-se, sabe-se lá com que objetivo. Um dos paradoxos das políticas de segurança, como destacado por Theo Dias e Carolina Ricardo em recente artigo nesta Folha, é que a ineficácia de políticas estritamente repressivas apenas aumenta a demanda por mais repressão, criando um enorme mercado para o populismo penal. A experiência do Rio de Janeiro é uma expressão desse ciclo vicioso, que precisa ser rapidamente interrompido. A repressão, quando praticada à margem da lei, apenas agrava o problema. Quando devidamente conduzida, em conformidade com os princípios do Estado de Direito e associada a outras políticas públicas, é parte essencial do enfrentamento de organizações criminosas. Nas últimas décadas, diversas experiências na Itália e na Colômbia, bem como nos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Espírito Santo, Pernambuco e Minas Gerais e em cidades como Nova York, nos oferecem um importante repertório de políticas exitosas de combate ao crime organizado e controle da criminalidade violenta. Em vez de respostas legislativas meramente simbólicas ou espetáculos sangrentos e ineficazes, precisamos capacitar e fortalecer as instituições de aplicação das leis, coordenar melhor suas ações e integrar as políticas de segurança às demais políticas públicas que dificultem ao crime se espraiar pelo tecido social e se alojar no poder político e no sistema econômico. Três são os pilares dessas políticas exitosas que deveriam estar ocupando os esforços daqueles efetivamente preocupados em enfrentar o crime e não apenas em se beneficiar eleitoralmente do medo por ele criado. Recuperação dos territórios dominados pelo crime organizado, que devem ser imediatamente ocupados pelo Estado. Os criminosos precisam ser presos. Como as experiências de Bogotá e Medellín indicam, a reurbanização e revitalização das áreas dominadas pelo crime são indispensáveis para devolver dignidade e expectativa de desenvolvimento para as comunidades. O Estado precisa se fazer presente para prover ordem, justiça e bem-estar. Profissionalização e qualificação do sistema de Justiça e das diversas agências de aplicação da lei, com ênfase para mecanismos de inteligência. Não apenas inteligência policial, mas também financeira. É o que foi feito na Itália por meio da criação de uma Agência Nacional Anticrime. É necessário seguir o dinheiro no espaço digital. O Brasil precisa rever sua obtusa regra de sigilo bancário, que apenas favorece a infiltração do crime no sistema financeiro e em outros setores da economia formal. Combater a corrupção é uma pré-condição para combater o crime organizado. Por fim, é necessário integrar e coordenar todas essas atividades. Esse é um trabalho politicamente desafiador e administrativamente complexo, especialmente num país com estrutura federativa e imerso em forte polarização política. Talvez Geraldo Alckmin seja a pessoa talhada para a tarefa. Político com perfil mais conservador, num governo progressista, protagonizou, ao lado de Mário Covas, a mais bem-sucedida redução de homicídios na história no Brasil.

Da China, com inveja, por Paulo Nogueira Batista Júnior

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Paulo Nogueira Batista Júnior – A Terra é Redonda – 14//11/2025. O despertar chinês ensina que a verdadeira soberania nasce de um projeto próprio: rejeitar receitas alheias para construir, com pragmatismo e orgulho civilizatório, um palco onde o Estado conduz e os agentes atuam Uma frase atribuída a Napoleão Bonaparte correu o mundo: “Quando a China despertar, o mundo estremecerá”. Bem, a China está totalmente acordada e os demais países, especialmente o Ocidente, e dentro do Ocidente especialmente os Estados Unidos, não sabem como lidar com o desafio que ela representa. No Ocidente, a China e, em menor medida, a Rússia são vistas com grande preocupação, como rivais poderosos, pelo eixo Atlântico Norte. Há dois tipos de inveja, leitor ou leitora. A maligna, que é a dos EUA e da Europa, leva-os a tentar barrar o progresso da China o tempo todo. A benigna admira esse progresso e quer, dentro do possível, e mutatis mutandi, aprender com os chineses e incorporar elementos do processo que eles vêm seguindo. Estou aproveitando uma viagem pela China, de onde escrevo, para conhecer um pouco mais este grande país. Otto von Bismarck dizia: “Não aprendo com a experiência – apenas com a dos outros”. Os chineses são fiéis seguidores dessa máxima, ainda que talvez não tenham ouvido falar dela. Os chineses aprenderam, por exemplo, com a experiência latino-americana, infelizmente de forma negativa. Ou seja, observando nossos erros estratégicos, viram o que não fazer. Se pudesse resumir a questão em uma frase, diria: a China, ao contrário da América Latina, ignorou solenemente as recomendações do assim-chamado Consenso de Washington. Pensou por conta própria e construiu com grande sucesso as suas próprias soluções, adaptadas às circunstâncias nacionais. Copiou quando conveniente, inovou sempre que necessário. Antes de prosseguir no comentário sobre o bem-sucedido modelo chinês, duas rápidas ressalvas. Primeira: não tenho a pretensão de conhecer em profundidade um país tão complexo e tão diferente do nosso, em uma viagem de algumas semanas. É verdade que vivi por mais de dois anos em Xangai, quando fui vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (mais conhecido como Banco dos BRICS), hoje comandado pela ex-presidente Dilma Roussef. Mas já se vão oito anos desde que deixei o banco e a China mudou muito desde então. Além disso, na época em que morei aqui, estava tão envolvido na criação do novo banco multilateral, um projeto ambicioso dos BRICS, que tive menos tempo do que queria para me familiarizar com as singularidades de um país que, como escreveu Henry Kissinger, não é uma nação, mas uma civilização em si mesma. Segunda ressalva: a admiração pela performance da China não deve nos impedir de ver as dificuldades que o país enfrenta. Destaco rapidamente alguns dos principais desafios macroeconômicos e políticos, sem pretender, claro, exaurir a questão. Um deles é a desaceleração do crescimento da economia, decorrente de certa perda de dinamismo das exportações e do investimento. O protecionismo contra a China cresceu, estreitando ou mesmo fechando mercados importantes, nos Estados Unidos e na Europa principalmente, e ameaçando estreitar outros. Em alguns setores da economia chinesa, houve investimentos em excesso, resultando em capacidade ociosa, que a China não consegue mais direcionar para mercados estrangeiros com a facilidade de antes. Essa desaceleração da economia cobra o seu preço em termos de mercado de trabalho. A alta taxa de desemprego entre os jovens, por exemplo, constitui um problema social e político de primeira ordem. Além disso, o consumo agregado ainda é muito baixo, o que reflete várias dificuldades que a população vivencia e que, se não forem enfrentados, podem corroer o apoio ao governo. Entre as razões que limitam o consumo privado estão as insuficiências do sistema de aposentadoria e dos serviços de saúde. O governo chinês está plenamente consciente do problema e procura melhorar os sistemas nacionais de previdência e saúde. Com o envelhecimento da população, entretanto, o problema se torna mais grave, pois aumenta a demanda por aposentadorias, pensões, serviços médicos e remédios. Por isso, as pessoas continuam poupando muito para tentar garantir o padrão de vida na idade avançada. Assim, não é fácil alcançar o objetivo do governo, já antigo, de aumentar o mercado de consumo e tornar a economia chinesa menos dependente do dinamismo das exportações. O sucesso extraordinário da China nos últimos 40 anos Essas ressalvas parecem verdadeiras, mas não obscurecem o fato básico – a China despertou no final do século XX e não voltará mais ao sono profundo de outras épocas históricas. O modelo econômico chinês tem sido extraordinariamente bem-sucedido e não é bem compreendido no resto do mundo. Como caracterizá-lo de forma sintética? Talvez começando pelo que ele não é. Não se trata de uma economia de mercado pura e simples, ou seja, não é um sistema capitalista clássico ou tradicional. Não cabe nem mesmo designá-lo como “capitalismo de Estado”, como se faz com frequência nos meios ocidentais, tanto acadêmicos como jornalísticos. O Estado tem presença tão avassaladora na economia e na sociedade que essa expressão se revela enganosa. Note-se que, ao adotá-la, credita-se indevidamente ao capitalismo, ainda que “de Estado”, mérito que ele não teve e não tem pelo sucesso da China. Também está claro que o modelo chinês iniciado por Deng Xiao Ping em 1979 é bem diferente dos modelos soviéticos e chineses do tempo da economia centralmente planificada. O que se buscou na China foi reestruturar a economia, abrindo espaço para o mercado e o setor privado, sem repetir, porém, os erros cometidos por Mikhail Gorbachev, nos anos 1980, com a Perestroika (reestruturação econômica) e a Glasnost (liberalização política). O que fez (e não fez) a China, com base em uma avaliação cuidadosa da trajetória da União Soviética na sua década final e da Rússia nos anos 1990? Duas coisas, basicamente. Primeira: a Perestroika chinesa foi muito mais cautelosa e gradual. Não houve, como na Rússia, tratamento de choque na economia, privatizações em massa e liberalização abrupta. A abertura econômica foi feita passo-a-passo, sem desmontar as estruturas estatais e mantendo o controle sobre os setores estratégicos da economia. Segunda coisa: não houve Glasnost na China. O Partido Comunista Chinês permanece como partido único, todo-poderoso, com grande influência na sociedade e na economia. Existem bilionários e empresários privados poderosos, mas na China eles não se criam. Eles não têm papel político e não se lhes permite dominar as políticas públicas. Um cenário totalmente diferente do que se vê, por exemplo, nos Estados Unidos, onde os donos do dinheiro são donos do poder, convertendo a chamada democracia em uma plutocracia (o governo dos endinheirados). Outro dado importante: o combate à corrupção assume proporções ferozes na China e atinge quando necessário figuras proeminentes e poderosas. Diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos e em muitos outros países, os bilionários chineses têm muita dificuldade de comprar políticos e funcionários. Não se estabelece, portanto, uma cleptocracia (o governo dos ladrões). Também não se estabelece a kakistocracia (o governo dos piores), típica dos Estados Unidos e da Europa. No Ocidente, o sistema político obedece em geral a uma lógica de seleção adversa que premia os mais medíocres e os menos comprometidos com o interesse público. Quem tiver dúvida sobre isso, que passe em revista os líderes políticos atuais e recentes nos Estados Unidos e na Europa. Ou que considere, outro exemplo, a classe política brasileira. Na China, impera um sistema fechado em que as lideranças são selecionadas com base no mérito. Uma meritocracia, portanto. Imperfeita, como se pode imaginar, mas suficiente para afastar o risco de que se forme uma kakistocracia. Os chineses são seres humanos, claro, e enfrentam também a necessidade de lutar contra a dominação dos super-ricos, a corrupção e a mediocridade. Mas eles têm sido mais bem-sucedidos do que o resto do mundo em enfrentar esses desafios “humanos, humanos demais”, como diria Friedrich Nietzsche. O modelo chinês O que é então o modelo chinês? Vamos dar voz aos próprios chineses. Eles caracterizam o seu modelo como “socialismo com características chinesas”. Usam sintomaticamente o termo “socialismo” no lugar do “comunismo” soviético ou maoísta. E porque dizem “com características chinesas”? É que aqui as forças de mercado têm grande peso, mas operam dentro um quadro estritamente controlado pelo Estado e pelas agências e instituições estatais. Uma máxima popular na China, citada pelo professor Wen Yi em debate do qual participei aqui em Xangai, reflete bem isso: “o Estado arma o palco e os agentes econômicos atuam”. Dois exemplos, explicados em “apertada síntese”, como dizem os advogados. O sistema bancário da China é quase totalmente dominado por bancos estatais. Aqui não existem Bradescos, Itaús ou Santanders. Os chineses não conhecem e nem querem conhecer esse tipo de instituição. O setor bancário é estratégico do ponto de vista macroeconômico e sempre ficou sob domínio de bancos públicos. Por outro lado, um aspecto importante é que, dentro das regras estabelecidas pelo governo e pelo banco central, esses bancos estatais competem entre si, o que favorece maior eficiência. Outro exemplo crucial. A estabilidade da economia chinesa repousa sobre uma conta de capitais fechada, vale dizer pela aplicação rigorosa de controles sobre a entrada e saída de capitais. Houve certo afrouxamento dos controles no passado mais recente, mas a China continua relutante em expor a sua economia aos surtos de entrada e saída de capitais que tanto mal fazem na América Latina. Esse foi um dos muitos pontos em que a China fez ouvidos de mercador às recomendações do Consenso de Washington. Aprenderam com nossa experiência infeliz, dentro do espírito de Bismarck. Se tivessem se pautado pelos conselhos ocidentais, não teriam chegado aonde chegaram. A continuidade na civilização milenar da China Para terminar, algumas observações sobre uma singularidade da China que é crucial, mas infelizmente inimitável. Raramente se leva na devida conta, que a história milenar da China é marcada por uma extraordinária continuidade. A maior parte das outras civilizações antigas dos vários continentes não tiveram a longa e ininterrupta duração, de quatro ou cinco milênios, que caracteriza a civilização chinesa. Os egípcios têm uma relação remota, para não dizer fictícia, com o Egito dos faraós e suas pirâmides. Os gregos atuais pouco têm a ver com a Grécia antiga. Os italianos de hoje pouco têm a ver com o Império Romano. Os astecas e incas foram totalmente obliterados pela Espanha. A Rússia também tem uma civilização contínua, mas da ordem de 1000 anos. A China é um caso muito especial. Sofreu, ao longo de milênios, diversas turbulências, invasões, guerras externas, guerras civis, mas conseguiu, apesar disso, preservar um fio cultural condutor. Isso se reflete em alguns aspectos da trajetória chinesa que são, a meu ver, centrais para entender o sucesso do país. Um deles é o respeito, mais do que isso veneração pelos antepassados e pelas tradições históricas. Esse respeito à tradição não bloqueia, entretanto, a inovação e a criatividade das novas gerações. A busca do novo, ao contrário, é omnipresente, mas não implica descartar o passado. Mesmo um revolucionário marxista radical, como Mao Zedong, citava com frequência os pensadores clássicos da China como Lao Tse e Sun Tzu. Considerava a obra principal deste último, A Arte da Guerra, quase como um segundo manifesto comunista. Por seu turno, quando o maoísmo foi superado por Deng Xiao Ping e seus sucessores até o atual líder, Xi Jinping, não houve rejeição total da figura de Mao. Ela aparece até hoje em todas as notas de dinheiro. Suas obras são lidas e circulam amplamente. Compare-se com o Brasil. Nós não respeitamos e, muitas vezes, sequer conhecemos nosso passado. Essa ignorância alimenta a tendência a depreciar sistematicamente a nossa história. E esse é um entre muitos fatores a derrubar a nossa autoestima. Oscar Wilde dizia: “Self-love is the beginning of a long life romance” (o amor próprio é o começo de um romance para toda a vida). Esse amor-próprio é central para o sucesso individual e nacional. Os chineses têm isso em abundância. Mas, veja bem, leitor ou leitora: amor-próprio, e não desprezo pelos outros; orgulho, não vaidade ou arrogância; respeito por si mesmo e sua família imediata, sim, mas sem cair no individualismo egoísta tão típico das sociedades ocidentais. Por esses e outros motivos, precisamos estudar mais a China e aumentar nossas interações com os chineses. Vale o esforço de superar as barreiras linguísticas, culturais e geográficas. Sem cair na imitação servil, levando sempre em conta as nossas condições históricas e políticas, podemos aprender muito com eles. Paulo Nogueira Batista Jr. é economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS. Autor, entre outros livros, de Estilhaços (Contracorrente).

Uma alternativa ao neoliberalismo, por Emir Sader

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Emir Sader – A Terra é Redonda – 12/11/2025 O fracasso comprovado do modelo neoliberal na América Latina projeta a região como o epicentro da disputa hegemônica do século XXI, redefinindo os parâmetros políticos e ideológicos globais 1. O modelo neoliberal fracassou na América Latina. O único país que o mantem, ainda assim promovendo uma crise social nunca vista no pais, com concentração de renda e exclusão social enormes, é a Argentina de Javier Milei. Nos outros países a recessão que provocou favoreceu a eleição de governos anti-neoliberais em grande parte dos outros países do continente, entre eles o Brasil, o México, a Colômbia, a Venezuela, o Uruguai, Honduras. No entanto, o neoliberalismo continua sendo predominante no mundo, marcando o período histórico atual. Mesmo em países com governos anti-neoliberais, a presença do capital financeiro, sob sua modalidade especulativa, continua predominante. A América Latina á a única região do mundo com governos anti-neoliberais, tornando-se assim o epicentro das principais lutas no mundo contemporâneo. Não por acaso então é o continente que projetou os mais importantes lideres políticos do século XXI, entre eles Lula, Hugo Chavez, Rafael Correa, Nestor e Cristina Kirchner, Lopes Obrador e Claudia Sheinbaum, Evo Morales, Pepe Mujica entre outros. Assim, a disputa hegemônica no século XXI se dá entre o neoliberalismo e o antineoliberalismo. O neoliberalismo continua dando os parâmetros gerais políticos e ideológicos no novo século. Depois da ultima década do século XX, eminentemente neoliberal, o novo século trouxe o protagonismo das forças anti-neoliberais. Na segunda década do século XXI, o Brasil e o México aparecem como os governos mais consolidados na nova perspectiva, enquanto a Argentina, isolada, busca resgatar politicas neoliberais. Uma disputa que marca toda a primeira metade do século XXI, de cujo desenlace dependerá o futuro da América Latina, o epicentro das lutas antineoliberais. É também por essa razão que um líder brasileiro como Lula pode se projetar como o principal personagem político da esquerda em escala mundial. Porque ele pode apresentar uma alternativa concreta e vitoriosa frente ao neoliberalismo. 2. Enquanto a outra característica marcante deste século é o declínio da hegemonia norte-americana, depois de ter reinado, de forma soberana, no século XX. Uma decadência que se estende para a Europa, aliada estratégica dos Estados Unidos. Um continente que, depois de dar os contornos ideológicos para grande parte do mundo, ficou prisioneira do seu eurocentrismo, no momento em que a Ásia, especialmente a China, reapareciam com força. Por essa razão também que eu considero Peter Frankopan, inglês, como o primeiro grande historiador do século XXI. Sua obra se inicia justamente com a crítica do eurocentrismo, reivindicando o papel especial da China, que havia sido a potência mais importante do mundo, até que a Inglaterra introduziu o consumo do ópio naquele pais, levando-o à decadência. Um processo do qual a China renasce, de novo, como a maior potência econômica do mundo no século XXI. E protagoniza, junto ao poderio militar da Rússia e a presença de outros países emergentes, como o Brasil, a África do Sul, a Indonésia, entre tantos outros hoje, os Brics, que se tornou o fenômeno político mais importante do século XXI. A disputa hegemônica no plano político se dá então, neste século, entre a hegemonia declinante do bloco liderado pelos Estados Unidos, e a aliança entre a China, a Rússia, o Brasil e outros aliados. Dessa disputa e de seu desfecho depende o futuro da humanidade ao longo de todo o século XXI. Emir Sader é professor aposentado do departamento de sociologia da USP. Autor, entre outros livros, de A nova toupeira: os caminhos da esquerda latino-americana (Boitempo).

Inovação e desenvolvimento

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Numa sociedade marcada por grandes competições entre os agentes econômicos e produtivos, onde os atores buscam manter seus espaços e consolidar novos ganhos monetários e financeiros, a chave do sucesso se concentra na chamada inovação, instrumento central para alcançar o desenvolvimento econômico e melhorar as condições sociais e políticas. Numa rápida retrospectiva do desenvolvimento econômico, todas as nações que conseguiram construir uma sociedade mais igualitária, marcadas pelas instituições políticas sólidas e consistentes, tiveram, em sua trajetória política marcada pelo fomento da inovação e o fortalecimento do empreendedorismo, angariando nossos espaços produtivos, com melhoras nos setores produtivos, enriquecimento da população, transparência crescente e maior respeitabilidade no cenário internacional. As nações desenvolvidas construíram uma sociedade marcada pela inovação, conseguindo construir um ambiente ousado e cheio de novidades, criando políticas ativas e fomentando os setores educacionais, garantindo recursos monetários para melhorar o ambiente escolar, fortes investimentos em capital humano, capacitações constantes dos trabalhadores, taxas de juros reduzidas, estímulos crescentes em ciências, pesquisas e tecnologias e, principalmente, uma política que fortalecesse o pensamento científico, instrumento central para a construção de espaços de inovação e de empreendedorismo. Um dos economistas mais importantes para compreendermos a importância da inovação, foi o austríaco Joseph Schumpeter, responsável pela publicação do livro “Capitalismo, socialismo e Democracia” onde destacou a chamada destruição criativa, responsável pelas grandes transformações tecnológicas da sociedade global, uma verdadeira revolução que destroem os modelos econômicos e produtivos existentes e constroem novos modelos de negócios, revolucionando as sociedades, criando novas oportunidades e, ao mesmo tempo, criem novos desafios e incertezas. O economista austríaco Joseph Schumpeter nos mostra a importância da inovação, que contribui para a criação de novos produtos, bens ou mercadorias, gerando novos espaços de investimentos produtivos, que serve para movimentar todo o sistema econômico, gerando novos empregos, aumentando a renda agregada e garantindo novas oportunidades, novas perspectivas e mudando realidades. As nações que conseguiram construir novos espaços de inovação e de empreendedorismo fizeram grandes investimentos em capital humano, um forte aporte na construção de um ambiente de inovação constante, reflexões críticas, questionamentos variados, inquietações crescentes e estímulos diversos para atrair pessoas e organizações empreendedoras. A educação é fundamental para a criação deste cenário de inovação, a construção de um projeto educacional consistente que dialoga francamente com a comunidade, com os setores produtivos e a sociedade civil, garantindo para que todos os setores chancelem o projeto e participem ativamente na estratégia de desenvolvimento. Inúmeros países conseguiram consolidar espaços de crescimento econômico e produtivo através de fortes investimentos em inovação, melhorando as condições de vida da população, tais como o Japão, a Coréia do Sul, a China, dentre outros. Todas estas nações tiveram em comum, a capacidade de eleger a educação como o instrumento central para o desenvolvimento econômico, para isso, foi necessário a construção de um consenso interno, garantindo fontes sólidas de investimentos, uma valorização dos profissionais da educação, criando estímulos crescentes para atrair para a docência os melhores quadros da sociedade. O caminho do desenvolvimento econômico é espinhoso, cheio de desafios e turbulências, muitas nações menores que o Brasil conseguiram alcançar seu desenvolvimento e se transformaram em grandes potências tecnológicas, chegou a hora de seguirmos os bons exemplos de desenvolvimento econômico e deixarmos de lado ideologias ultrapassadas e reacionárias que servem para aprofundar nosso subdesenvolvimento. Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Dívida e juros: Quatro décadas de um beco sem saída, por José Álvaro de Lima Cardoso

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Da hiperinflação nos anos 1990 às crises internacionais do fim do século e de 2008, passando pelo golpe e até os dias de hoje, a economia brasileira ostenta juros absurdos. País alimenta ciclo perverso, engorda rentismo e se mantém eternamente vulnerável. José Álvaro de Lima Cardoso – OUTRAS PALAVRAS – 12/11/2025 Os anos 1980 e meados dos 1990 marcam um período em que a dívida pública se tornou uma espécie de refém da hiperinflação. O Brasil enfrentava inflação acelerada — especialmente após os choques de preço do petróleo na década de 1970 — e a dívida pública era financiada através de instrumentos de curtíssimo prazo, com forte indexação à taxa básica de juros e, frequentemente, às variações do câmbio. Esta combinação era guiada por uma lógica perversa: quando a inflação disparava, os juros subiam para contê-la, o que automaticamente aumentava o custo de rolagem da dívida. Diferentemente dos dias atuais, a inflação realmente era muito alta: no ano de 1993, por exemplo, que precedeu o ano de implementação do Plano Real, a inflação chegou a 2.477,15%, medida pelo IPCA-IBGE. Com o processo de indexação, a dívida pública tornou-se um mecanismo de transmissão de instabilidade para toda a economia. A inflação galopante inviabilizava fazer planejamento de médio e longo prazos. Com inflação que, em alguns períodos, chegou a 1,5% ao dia, as empresas se limitavam a tentar proteger o valor do seu capital. Havia um tipo de aplicação financeira, por exemplo, chamada de overnight (da noite para o dia), com prazo de apenas um dia útil, com rentabilidade equivalente as taxas de juros diárias, extremamente altas para acompanhar a inflação. Nesse contexto, as empresas maiores, os ricos, e a classe média, conseguiam preservar seu capital de forma relativamente segura, mas o grosso da população ficava à mercê da queda contínua e rápida do seu poder aquisitivo. A superinflação funcionava como uma espécie de mecanismo extra de exploração dos trabalhadores. Nesse ambiente, a dívida pública consumia recursos que tirava do sistema a capacidade de investir na produção e no aumento da produtividade. A dívida tinha que ser constantemente refinanciada a taxas crescentes, consumindo recursos públicos através dos juros elevados e protegendo os detentores dos títulos públicos. Com a chegada do Plano Real, em 1994, que fixou a taxa de câmbio (política que foi mantida até 1999), a dívida continuou indexada ao dólar. Para estabilizar a inflação através de uma âncora cambial, foi necessário aceitar uma dívida mais cara. Entre 1995 e 1998, a taxa média de juros real (Selic menos a inflação) foi de aproximadamente 22% ao ano. No período de 1995 e 1998 a taxa chegou a aproximadamente 30% ao ano. Nesse período a taxa de juros real brasileira era a mais alta do mundo em termos reais. Em 1999, a taxa de juros chegou a 45% ao ano em termos nominais, para uma IPCA-IBGE de 8,94%. Ou seja, o país tinha uma taxa de juros reais de 36%., o que tornava quase impossível o investimento produtivo. Na realidade, era uma combinação de política macroeconômica para matar qualquer ambição de crescimento econômico. Em 18 de janeiro de 1999 o governo anunciou a adoção do câmbio flutuante. Até então, o Brasil operava com uma âncora cambial, ou seja, o regime de câmbio fixo. Em função dessa mudança, o preço do dólar disparou. No início de janeiro a moeda estava cotada em torno de R$ 1,20 e, ao final do mês, tinha chegado a R$ 2,10, uma desvalorização do real de cerca de 75% em poucos dias. No início de março de 1999, a cotação chegou a R$ 2,20, representando uma desvalorização acumulada de mais de 83%. Esse período ficou conhecido como a “maxidesvalorização de 1999” e teve reflexos muito significativos na inflação e na economia geral do país. A transição para o câmbio flutuante no Brasil em janeiro de 1999 foi decorrência de uma crise econômica brutal ao nível internacional – que arrastou as economias mais frágeis – assim como dos problemas estruturais da economia brasileira. O país estava enfrentando grande fuga de capitais, decorrentes da Crise Russa de 1998, que gerou pânico nos mercados globais. Investidores internacionais retiraram recursos de economias atrasadas, com medo de um efeito dominó e o Brasil era uma das economias mais expostas ao contágio. Um sintoma da doença foi o comportamento das reservas internacionais brasileiras, que despencaram de US$ 74 bilhões em julho de 1998 para US$ 42 bilhões em janeiro de 1999 (7,6% do PIB). Nesse período a capacidade do Brasil em termos de reservas era muito pequena. Para efeitos comparativos, atualmente o país possui US$ 346,4 bilhões de reservas, cerca de 15% do PIB O regime de câmbio fixo (ou âncora cambial) do Plano Real, que mantinha o dólar artificialmente controlado, tornou-se insustentável porque o país tinha um grande déficit nas transações externas e a dívida externa crescia continuamente, porque o país precisava tomar dólares emprestados para manter a cotação fixa. Como os especuladores apostavam que o real seria inevitavelmente desvalorizado a qualquer momento, havia uma fuga de capitais, que aumentou a pressão sobre as reservas. O Banco Central tinha que injetar dólares o tempo todo na economia para defender a paridade, sustentáculo do Plano Real. A adoção do câmbio flutuante em janeiro de 1999 aumentou o peso da dívida externa em reais, decorrente da apreciação do dólar. A dívida interna, por sua vez, cresceu expressivamente em função de juros reais extorsivos, que ultrapassavam 30%, visando financiar o déficit fiscal e manter a estabilidade da moeda, a qualquer custo. Esses juros reais visavam manter o controle da inflação e a confiança na moeda, ingrediente fundamental do regime cambial, baseado, até janeiro de 1999, na paridade com o dólar. Um dos efeitos desses juros foi o crescimento da dívida pública em relação ao PIB, que passou de 17,6% em 1994, para 31,7% em 1998, praticamente dobrando em 4 anos. No período 2003 a 2013, a dívida pública entrou em fase de alívio relativo. Este período reuniu três fatores, de rara convergência, que aliviaram o peso da dívida pública: 1. Crescimento econômico razoável (média pouco acima de 3% ao ano) 2. Termos de troca favoráveis (preços de commodities em alta, em função da demanda chinesa) 3. Superávits primários robustos Apesar da reunião destes fatores a dívida pública fechou o período apontado um pouco acima do que iniciou, em relação ao PIB, chegando a 63,2% em 2013. Este alívio momentâneo com os gastos com a dívida, deve ser bastante relativizado. Mesmo com toda a confluência positiva de fatores apontada acima, os gastos com serviço da pública em 2013 correspondeu a 8,3% do PIB, ou seja, o sistema da dívida permaneceu intacto. Para efeitos comparativos o Brasil gastou no mesmo ano 7,5% do PIB com a previdência. Neste mesmo ano, cerca de 42% do orçamento federal foi destinado ao pagamento dos serviços da dívida pública. O fato é que, por condições econômicas muito excepcionais, foi possível compatibilizar durante um curto período, os gastos com a dívida pública, com um modesto ciclo de crescimento. Obviamente este alívio era estruturalmente muito frágil. Dependia de preços de commodities que o Brasil não controlava e de crescimento econômico que não era robusto o suficiente. O peso da dívida caiu um pouco por conta de fatores externos, que de certa forma encobriam problemas estruturais, como baixa taxa de investimentos, pobreza, desemprego e os próprios gastos com a dívida. Quando as condições externas mudaram, especialmente a partir da crise de 2008, a dívida voltaria a subir rapidamente: a razão entre dívida e PIB, que em 2008 chegou a 47,7%, em 2013 já estava em 63,2%. A partir de 2014, já em um cenário de franca operação do golpe de 2016, os indicadores desabam. Os preços das commodities em 2013 dão os primeiros sinais de desaceleração. O ano de 2014 pode ser considerado um ano de virada: cai abruptamente preços de minério de ferro, petróleo, soja e outras commodities exportadas pelo Brasil, com efeitos em cascata na economia brasileira. Há uma queda das receitas públicas: redução de arrecadação de impostos sobre exportações; diminuição de royalties e participações especiais do pré-sal. A taxa de desemprego saltou de cerca de 5% em 2014 para 11% em 2016. Neste quadro há a deterioração da dívida pública: com a desaceleração do crescimento aumenta a razão dívida/PIB, chegando em 2015 a 74%. A crise é amplificada, em função do peso da dívida pública. Cai a receita pública, o PIB recua, juros aumentam em função do aumento do risco-país; juros mais altos exigem mais superávits primários para pagar os serviços da dívida, são feitos cortes em investimentos públicos e sociais, o que aumenta a recessão. É um ciclo perverso que se retroalimenta: recessão → elevação da dívida → cortes de gastos → recessão mais profunda. E assim por diante. As crescentes obrigações com a dívida, cada vez mais dão a tônica nas decisões de política pública. Os juros reais elevados durante este período, em torno de 5%, quase sempre o mais alto do mundo no período, representavam menos recursos para saúde, educação e desenvolvimento. Os países imperialistas em geral, operavam com taxas de juros reais próximas de zero ou negativas nesse período, o que destacava ainda mais a posição do Brasil como líder em juros reais mundiais. Em 2023, o novo arcabouço fiscal substitui o teto de gastos, implantado pelo governo golpista de Michel Temer, que vigorava desde 1º de janeiro de 2017. Como sempre, o novo arcabouço manteve a lógica de todos os planos fiscais das últimas décadas. Criou uma fórmula de controle dos gastos primários, procurando manter o superávit nesses gastos, mas sem nenhuma medida voltada para o fulcro do problema, que são os gastos com a dívida. A partir de 2023, a dívida volta a subir, ainda que moderadamente, em função dos juros reais extremamente elevados e baixo crescimento da economia. A economia brasileira nesse período, como até agora, é prisioneira da política de manter juros lá em cima, supostamente para controlar a inflação. Essa política impede investimentos e reduzem o crescimento. Essa combinação de política macroeconômica, que é a mesma, com nuances, independentemente do governo nas últimas décadas, conduz o país a um beco sem saída: os juros são aumentados para manter inflação sob controle, mas juros altos impedem investimento, reduzem crescimento, e com isso, impedem que a dívida caia em relação ao PIB. É um beco sem saída para o país como um todo, mas uma situação maravilhosa para quem ganha muito dinheiro com o ciclo especulativo que se forma a partir dele. A observação da trajetória completa da dívida nas últimas décadas, revela um padrão, que é comum a todos os períodos, independentemente do ciclo econômico que esteja vigorando: sempre que há choques econômicos de todo tipo (inflação, câmbio, crise financeiras globais), há uma deterioração no quadro da dívida pública, e a resposta é sempre direcionada para os gastos primários que, em princípio, nada têm a ver com a dívida. Não são os gastos primários que deterioram a relação dívida/PIB, e sim a própria elevação dos juros, ou o baixo crescimento da economia. As ações de combate aos gastos primários, cortes de gastos sociais, redução do investimento público não só não resolvem o problema, como deterioram ainda mais a situação e tornam a economia ainda mais vulnerável aos choques futuros. Longe de ser uma variável econômica dependente, os gastos com a dívida pública no Brasil, e o conjunto de medidas que são tomadas para garantir a normalidade do fluxo desses gastos, impedem o enfrentamento de problemas centrais da economia brasileira: vulnerabilidade a choques externos, fragilidade da base produtiva e desindustrialização e baixa taxa de investimentos. O mais impressionante nesse processo é que, independentemente da posição política dos governos, todos atacaram o problema fiscal exclusivamente sob a ótica dos gastos primários, mantendo intocado os lucros de banqueiros e especuladores.