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As formas contemporâneas de trabalho, por Gustavo Hasselmann

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Gustavo Hasselmann – A Terra é Redonda – 11/10/2025 O mesmo sistema que prometeu liberdade através das plataformas entregou o controle algorítmico total, transformando o sonho do empreendedorismo no pesadelo da jornada interminável sem direitos ou horizonte coletivo 1. O trabalho é inerente à condição humana. Ele é vital para o homem na vida em sociedade. Ele opera transformações na natureza e na sociedade. Para muitos, impera o adágio popular: o trabalho “dignifica o homem”. Ao longo de mais de cinco séculos, o trabalho, no ocidente, conviveu com as várias formas de capitalismo: comercial, industrial e financeiro, este último a partir dos anos 70 do século passado. No capitalismo que vigeu nos 30 anos dourados do ocidente, em que o trabalho se dava, preponderantemente, no chão da fábrica, imperavam os sistemas fordista e taylorista. Principalmente a partir do pós segunda guerra mundial, o trabalho visava a produção em massa de mercadorias, como automóveis, máquinas, eletrodomésticos etc. Para Michel Foucault, era a época da sociedade disciplinar, em que, nos hospitais, nas escolas, nos presídios, nas fábricas etc., as regras e valores eram impostos de forma cogente em prol do sistema capitalista. Nesse diapasão, vale citar e transcrever excerto da lavra de Ricardo Antunes: “Se no apogeu do taylorismo -fordismo a força de uma fábrica mensurava-se pelo número de operários – o operário – massa magistralmente representado por Charles Chaplin em tempos modernos – , podemos dizer que, na era da acumulação flexível e da “empresa enxuta”, as empresas que se destacam são aquelas que empregam o menor contingente de força de trabalho, pois com o avanço tecnológico, elas podem aumentar fortemente os seus índices de produtividade”.[1] Com efeito, nesse período áureo do capitalismo objetivava-se a produção. O sistema financeiro, majoritariamente, estava voltado para financiar a produção em massa. Vigia a regulação do capital e as regras estabelecidas nos acordos de Bretton Woods. O câmbio era fixo e lastreado no dólar e no ouro, o que veio a desaparecer a partir dos anos 70 do século passado, quando o câmbio passou a ser flutuante, com arrimo exclusivamente no dólar. O filósofo germânico – coreano, Byng Chul Han, em A sociedade do cansaço, assim descreve a passagem da sociedade da produção\disciplinar (período fordista-taylorista ) para a sociedade do desempenho: “A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade do desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais sujeitos da obediência, mas sujeitos de desempenho e produção. São empresários de si mesmos”.[2] 2. Efetivamente, o trabalho prioritariamente na indústria – com a desregulamentação do capital e o advento das tecnologias, no trabalho e nas fábricas, que geraram um grande desemprego – foi transferido para o setor de serviços e financeiro. Houve um grande processo de desindustrialização, que no Brasil começou a partir dos anos 80 do passado e dura até hoje. O capitalismo produtivo cede espaço à financeirização, leia-se, rentismo, que campeia sob a doutrina neoliberal. Antonio Negri e Michel Hart – com a saída da hegemonia fabril e o ingresso da predominância do setor de serviços, inclusive digitalizados e plataformizados – empregam o conceito de “fábrica social” para designar estes últimos, onde a produção se entrelaça com as formas de vida no tecido social: “A fim de restabelecer margens de lucro que não podiam mais ser extraídas das fábricas, o capital teve de colocar o terreno social para trabalhar, e o modo de produção teve de ser ainda mais entrelaçado às formas de vida. Enquanto processos industriais automatizados produziam maior número de bens materiais, desenvolveram-se, do lado de fora das fábricas robotizadas, “serviços” produtivos cada vez mais sofisticados e integrados que combinavam tecnologias complexas com ciência fundamental, serviços industriais e serviços humanos. Nessa segunda fase a digitalização tornou-se mais importante que a automação. Com efeito, é essa característica que dissemina por toda a sociedade uma transformação técnica da força de trabalho que já havia se dado na fábrica. Aqui, então, ao fim dessa marcha selvagem, temos a entrada triunfal dos computadores e das redes sociais, que unem a automação das fábricas à digitalização da sociedade, dos modos de produção e das formas de vida: o autômato administra e controla a sociedade por meio de algoritmos”.[3] Efetivamente, emerge, a partir dos anos 80 do século passado, o trabalho uberizado ou plataformizado, ou melhor, melhor o trabalho na era digital. Ricardo Antunes, a respeito do trabalho digital, assinala o seguinte: “Uma de suas formulações centrais talvez possa assim ser resumida: em plena era da informatização do trabalho, do mundo maquinal e digital, estamos presenciando o nascimento e ampliação do “cibertariado”, o proletariado que trabalha com informática, com o mundo digital, e que, paralelamente, vivencia uma pragmática moldada cada vez mais pela precarização que muda profundamente a forma de ser do trabalho”. Com efeito, nesse particular, há que se realçar que o trabalho dos motoristas por aplicativo é por demais precarizado. Eles ganham pouco, trabalham horas intermináveis, sob a direção do aplicativo, têm que custear as despesas de manutenção dos veículos etc. Não têm direitos trabalhistas e previdenciários assegurados. O governo Lula, para minorar o problema vivenciado por eles, editou o PLP 12\2024, que é muito pífio e inexpressivo no combate a essa exploração, tendo estabelecido, pasmem, o limite de 12 horas para a jornada de trabalho. De outro lado, nesse diapasão, o STF, contrariando orientação firmada no TST, não vem reconhecendo a relação de emprego entre os motoristas por aplicativo e as empresas de plataforma. Ademais, esperava-se que o governo Lula 3 revogasse, como ele prometeu em campanha, a reforma trabalhista de Michel Temer, primeiramente, aprofundada no governo Bolsonaro depois. Ela mudou completamente as relações de trabalho no Brasil, aviltando os diretos dos trabalhadores. Criou o trabalho intermitente, em que o trabalhador só recebe o salário quando trabalha e é chamado para tanto, não tendo direitos trabalhistas e previdenciários assegurados. Concebeu também o trabalho terceirizado, tanto para a atividade meio como para a atividade fim, o que foi chancelado pelo STF. Fez prevalecer o acordado sobre o legislado, em detrimento de direitos anteriormente conquistado, com muito suor, sangue e luta, pela classe trabalhadora. Reduziu a importância tanto do Ministério do Trabalho, como da Justiça do trabalho. Neste último caso, visando reduzir o número de demandas trabalhistas, impôs pesados custos judiciais para os trabalhadores, tais como pagamento de honorários de advogado, custos com perícia etc, etc. De outro lado, dita reforma não baixou o índice de desemprego no país, como prometido pelos Presidentes da República da época, parlamentares de direita e empresários. 3. Outro aspecto a ser destacado, na esteira do pensamento de Byng Chul Han, é que, na sociedade do desempenho em que vivemos na atualidade reina absoluto o individualismo na vida e no trabalho. O trabalhador, empresário de si mesmo, quer sempre superar o seu concorrente, trabalhando horas intermináveis por dia. Ele também procura “bater metas”. Com a era digital, ele não tem jornada de trabalho fixa, pois trabalha de forma extenuante dia e noite, através do celular e do computador. Ao mais das vezes, até mesmo nas atividades de entretenimento, ele presta um trabalho adicional e não remunerado para os empresários de plataformas digitais e para as empresas que comercializam produtos e serviços. Outra forma de trabalho atual, cujo desfecho sobre a sua legalidade ou constitucionalidade pende de julgamento do STF, é a pejotização. Nesta relação laboral os trabalhadores são tratados como empresas, tendo CNPJ e tudo mais. Ao que tudo indica, se o STF reconhecer a validade desse tipo de contratação, assistiremos ao fim do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho. Desse modo, para arrematar, como o capital precisa do trabalho, e sempre vai precisar, para sobreviver, embora a precarização deste, fazemos votos de que um trabalho mais humanizado, num futuro bem próximo, venha a existir no país e no sul global. Só que vejo isso não acontecer, nem mesmo nas sociais democracias fortes do ocidente, muito menos no sul global. Antevejo, pois, como utopia, o advento do socialismo como solução para esses e outros problemas vivenciados pela humanidade nessa quadra. Gustavo Hasselmann é procurador do município de Salvador. Notas [1] Ricardo Antunes. Capitalismo pandêmico, editora Boitempo, pag. 94. [2] Byng Chul Han. A sociedade do cansaço, editora Vozes, pag. 23. [3] Antonio Negri e Michel Hart. A organização multitudinária do comum. São Paulo, Politeia, 2018, p. 152. [4] Ricardo Antunes, Capitalismo pandêmico, pag. 125.

As corporações querem professores-robôs, por Leher e Moreira da Silva

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Está em curso nova fase de precarização dos docentes. Ensino à distância, via plataformas, permitiu exploração massiva: turmas de centenas de alunos, controle algorítmico e roubo de tempo livre. Leia 1º texto de série sobre redução da jornada Robert Leher e Amanda Moreira da Silva – OUTRAS PALAVRAS – 09/10/2025 Em parceria com o Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit) da Unicamp, Outras Palavras inicia uma série de textos que abordará a redução da jornada de trabalho no Brasil. Essa agenda histórica ganhou novo fôlego no ano passado, quando trabalhadores foram às ruas, em diferentes ocasiões, com um lema contundente: “Há vida além do trabalho”. Ela mostrou enorme potencial de mobilização – não só de trabalhadores, mas também de suas famílias – e deu uma chacoalhada nos sindicatos e partidos progressistas, instando-os a se renovar, a reencantar o mundo do trabalho diante da precarização – mais que de empregos, da vida.  Dois exemplos concretos ilustram essa força: a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da deputada Erika Hilton (Psol-SP) e o recente plebiscito popular pelo fim da escala 6×1, que reuniu mais de 1,5 milhão de assinaturas, evidenciando o forte apelo da causa. Este artigo de abertura da série, cujo título original é Mercantilização financeirizada da educação, ensino superior a distância e jornadas de trabalho jamais vistas, expõe a engrenagem perversa da financeirização da educação e seus impactos sobre o trabalho docente no Ensino Superior privado. O ponto central é a explosão do ensino a distância (EaD) a partir de 2017, que ocorreu paralelamente à redução das matrículas presenciais. Trata-se de um lucrativo projeto de massificação do EaD, conduzido por corporações educacionais listadas na Bolsa de Valores e com ramificações em todo o país. Os autores revelam dados que ilustram essa disparidade: professores, sem autonomia nas trocas e construção de saberes com os alunos, são reféns das plataformas e “enquanto nos cursos presenciais das instituições públicas a relação é de 12 estudantes por docente, nas privadas presenciais salta para 1:52 e, no EaD privado, chega a 1:168”. Nesse contexto, a “hora-aula” transformou-se na unidade básica de uma exploração sem precedentes. O trabalho, fragmentado por plataformas digitais, nunca tem fim. O controle algorítmico e a lógica do “tempo abstrato” invadem a vida privada, forjando uma subjetividade neoliberal digitalizada. Diante disso, a luta clássica pela redução da jornada de trabalho depara-se com uma nova realidade: a do cronômetro do capital que nunca para. (Rôney Rodrigues) Introdução O artigo examina o trabalho docente no Ensino Superior privado-mercantil, destacando o trabalho nos cursos a distância, ensino digital e ensino virtual, todos eles profundamente afetados pela intensificação e pela expropriação do trabalho. Atuam no Ensino Superior 328 mil docentes que atendem aproximadamente dez milhões de estudantes, sendo 79,3% nas instituições privadas. Entretanto, a rede pública, com apenas 20,7% das matrículas, possui 54% dos docentes em atividade no Ensino Superior, conforme o Censo do Ensino Superior de 2023 (Brasil, 2024). Em virtude das singularidades da forma de intensificação do tempo de trabalho na educação mercantilizada e financeirizada, notadamente na modalidade de cursos a distância, o tema é crucial para o debate político da redução da jornada de trabalho. Em virtude da escala da intensificação do tempo de exploração do trabalho nas corporações educacionais, a luta pelo fim da jornada 6X1 e a discussão relativa ao tempo de trabalho assumem importância fulcral. Conhecer e explicar a exacerbação da jornada laboral no setor da Educação Superior privada-mercantil permite aprofundar a discussão sobre a jornada de trabalho, especialmente no contexto da plataformização e da financeirização da educação, tema que abrange, a rigor, toda a Educação. Este segmento de trabalhadores passa a vivenciar jornadas reais de trabalho jamais vistas na educação. No caso do Ensino Superior, especialmente o privado-mercantil, os processos de exploração incidem diretamente sobre as condições de controle do tempo pelo trabalhador. A remuneração docente não se dá apenas pelos contratos de trabalho, mas, também, como em outras categorias, por meio de tarefas realizadas, no caso, aulas, correções de estudos, orientações, elaboração de materiais pedagógicos para uso (e incorporação sub-remunerada) nos sistemas de ensino e nas plataformas de trabalho das corporações. Desse modo, a consigna “existe vida após o trabalho” que orienta as lutas pelo fim da escala 6 x 1 não pode deixar de abarcar o labor de uma das categorias mais exploradas e que possuem as jornadas mais intensificadas, como a dos docentes das instituições privadas mercantis, especialmente aqueles que atuam na EaD. Como em milhões de outros trabalhadores, o tempo de trabalho não é expresso e regulado apenas na forma de jornada diária e semanal de trabalho. A rápida expansão, nos últimos 15 anos, da economia de plataformas e do trabalho digital tem gerado desafios para a compreensão do mundo do trabalho no setor da educação mercantilizada. Nesse campo há um esforço crescente de pesquisas que têm contribuído para compreender o funcionamento das plataformas digitais e identificar suas conexões com as relações de trabalho, como as de Abílio, Amorim e Grohmann (2021); Antunes (2023); Fuchs (2014); Huws (2014); Machado e Zanoni (2022), Sagrado, Da Matta e Gil (2023), Scholz (2016). A plataformização do trabalho e, particularmente, do trabalho docente, se caracteriza pela forte heterogeneidade, combinando, de diferentes formas, gestão algorítmica, intensificação, gamificação e controle de todo processo pedagógico. É notório o processo de precarização do trabalho docente no Ensino Superior e na Educação Básica (Silva, 2020). A plataformização do trabalho docente reproduz com novas características a heteronomia cultural própria do “capitalismo dependente” (Fernandes, 1981) que tem como bases as expropriações e brutais níveis de exploração, tema abordado por Marini (2000) em sua discussão sobre a “superexploração do trabalho”. A reconfiguração do trabalho docente impulsionada pelas corporações educacionais estruturadas como sociedades anônimas e com ações nas bolsas de valores possui como foco principal a jornada de trabalho, combinando a sua intensificação (Dal Rosso, 2008) por meio da subordinação real do trabalho ao capital e por novas formas de controle do tempo (Thompson, 2011) dos professores através das plataformas digitais. A introdução dessas tecnologias intensifica a carga de trabalho docente e reforça os mecanismos de controle externo e, o que é crucial, de autocontrole interno contidos nas tecnologias digitais gerando uma “subjetividade neoliberal digitalizada” (Sagrado, Da Matta, Gil, 2023). Por isso, a problemática do controle do tempo de trabalho pela classe trabalhadora compõe a nervura central do presente artigo. O artigo dedica uma seção para caracterizar o tema do tempo de trabalho como o fulcro das lutas de classes, abordando, em diálogo com E. P. Thompson, o significado das lutas pelo tempo; a seguir, caracteriza a relação entre a plataformização e a financeirização diante da mercantilização financeirizada na EaD, na terceira seção, a caracterização da intensificação da jornada em patamar inédito na História da Educação, realçando o problema da expropriação do trabalho. Nas conclusões, a partir da análise realizada, foram elaboradas proposições para fortalecer a luta contra a ofensiva do capital sobre o tempo que impossibilita a existência de uma vida plena de sentido imbricada aos processos de trabalho. Tempo de trabalho, tempo a serviço da exploração, tempo como luta de classes na Educação Leher (1998) ressalta que mesmo antes de Marx ter analisado o segredo da mercadoria, inúmeros movimentos proletários já haviam compreendido que, por trás da instituição da jornada de trabalho, estava uma forma do patrão aumentar a exploração do trabalho. Como assinalado por Thompson (2011), a luta pelo tempo está na própria origem da classe trabalhadora como classe que se forja em luta contra a burguesia. O autor faz um fascinante estudo do processo de internalização do tempo por parte das classes operárias inglesas, no qual argumenta que, nas sociedades camponesas, de pescadores e nas pequenas indústrias, o tempo era orientado para tarefas que, em grande parte, possuíam sentido como valores de uso. Este processo – que nada tem de homogêneo – levou, historicamente, após muitos embates e lutas, os trabalhadores pobres a interiorizar uma determinada disciplina de tempo. Contudo, na Inglaterra, o país de capitalismo mais avançado no Século XIX, os trabalhadores resistiram à imposição do tempo burguês. A luta pelo dia livre “Saint Monday” motivou embates memoráveis e, como expresso na luta pelo fim da Jornada 6×1 segue impulsionando no Brasil as lutas do presente. Hobsbawm (1987) registra que a primeira manifestação internacional dos trabalhadores teve o tempo como bandeira: “O Primeiro de Maio foi planejado como uma única manifestação simultânea internacional pela jornada legal de oito horas de trabalho” (Hobsbawn, 1987, p. 112 apud Leher, 1998). O feriado do Dia do Trabalhador foi estabelecido pela luta dos trabalhadores: foi através da participação pública que o 1o de Maio se tornou um feriado tanto no sentido ritual, quanto no sentido festivo. Apesar da resistência, os capitalistas tiveram vitórias expressivas. Enquanto as primeiras gerações de trabalhadores ingleses lutaram contra o relógio, isto é, contra as horas (de trabalho) em si mesmas, as gerações seguintes, admitindo o controle da jornada de trabalho, lutaram pela redução legal das horas de trabalho. Com isso, assinala Thompson (2011), a classe operária inglesa expressou a sua aceitação da organização da sociedade em termos de tempo abstrato (Leher, 1998), porém inserindo-o nas lutas de classes, posição discutida de modo original por Marx na Associação Internacional dos Trabalhadores. Como demonstrado empírica e teoricamente por Marx (2014) e Engels (2010), as lutas contra o aumento das jornadas, a intensificação e a expropriação do trabalho conformam uma situação de sofrimento laboral das classes trabalhadoras e, por conseguinte, devem compor uma nervura axial da estratégia de luta contra o morticínio do capital. O tempo abstrato, precisamente o tempo de exploração do trabalho, possui imensas particularidades na educação. Nas lutas históricas das classes trabalhadoras, a garantia do acesso real das crianças, dos jovens e dos adultos à educação foi compreendida como uma dimensão da estratégia de ‘fazimento’ das classes trabalhadoras. E o trabalho de ensinar, nesses contextos, não se confunde com o tempo sob o jugo do capital. Para além do debate entre trabalho produtivo e improdutivo no âmbito do serviço público, em períodos em que as escolas estão auto-organizadas e dirigidas por educadores e estudantes a vivência do tempo é outra. Em processos revolucionários da segunda metade do Século XX, como a Revolução Cubana (1959), ou a Revolução dos Cravos (1974), a questão da jornada de trabalho docente foi percebida e mensurada pelos trabalhadores de modo totalmente distinto do tempo imposto nas fábricas estruturadas com base no maquinismo. A possibilidade de compartilhar experiências de educação de crianças, jovens e adultos, assim como os círculos de discussões e as práticas de teatro, música etc., tornavam o tempo na escola uma experiência plena de sentido (Varela et Al., 2022). Essas experiências seguem práticas como as das escolas do campo do MST, em que o tempo igualmente não é uma forma de subordinação, intensificação e controle do trabalho, mas de compromisso com a Educação Popular. O trabalho não alienado não pode ser mensurado pelo cronômetro. No entanto, o trabalho não alienado é compreendido pelo estado maior da burguesia como um trabalho subversivo que precisa ser suprimido. Por isso, sempre as políticas que objetivam extirpar a soberania popular sobre os assuntos públicos incidem sobre o controle do tempo. Com efeito, as ações da burguesia se deram no sentido de impor outra lógica de trabalho nas escolas, objetivando torná-las instituições afastadas do controle e da soberania popular. O próprio estado maior do capital logo compreendeu que o intento dos trabalhadores, expressos originalmente na Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), de que a defesa da Escola Pública não equivale a nomear o Estado (e os governos) como educadores do povo, levaria a uma perda dos meios de subordinação da educação ao capital. Por isso, a expropriação do conhecimento e a intensificação do trabalho docente tornaram-se objetivos estratégicos. No período de ascenso do neoliberalismo uma das manifestações mais explícitas desse propósito do capital pode ser encontrada na proposição de Labarca, consultor da CEPAL no contexto de implantação da neoliberalização da educação pública latino-americana nos anos 1990: Os docentes deixam de ser os principais depositários do conhecimento e passam a ser consultores metodológicos e animadores de grupos de trabalho. Esta estratégia obriga a reformular os objetivos da educação. O desenvolvimento de competências-chave […] substitui a sólida formação disciplinar até então visada. O uso de novas tecnologias educativas leva ao apagamento dos limites entre as disciplinas, redefinindo ao mesmo tempo a função, a formação e o aperfeiçoamento dos docentes (Labarca, 1995, p. 175). O processo de expropriação do conhecimento dos docentes é indissociável das contrarreformas que objetivam impor uma nova escala de subordinação real do trabalho ao capital, o que requer mudanças na composição orgânica do capital, via-de-regra pela exacerbação das tecnologias. E será por esta via que as corporações educacionais financeirizadas irão impor uma nova ordem de grandeza na escala da exploração do trabalho dos docentes que atuam na EaD. Conforme é possível depreender da análise dos Censos do Ensino Superior do INEP, o crescimento exponencial das matrículas em EaD entre 2017 e 2023 é proporcional ao decréscimo das matrículas presenciais, o que confirma a opção do setor privado-mercantil pela massificação por meio desta modalidade. Na segunda coluna fica evidente que a expansão se dá no setor privado, liderada pelas corporações (Bielschowsky, 2020). O que frequentemente não é observado é o fato de que o crescimento dos ingressantes, matrículas e cursos na modalidade EaD das corporações não foi acompanhado pelo crescimento do número de professores. Em 2017, ingressaram 1,17 milhão de estudantes, em 2,1 mil cursos (o que já indicava a amplitude de tipos de cursos) somando então 1,8 milhão de estudantes; em 2023, ingressaram 2,94 milhões apenas nas instituições com fins lucrativos, agora em 10,5 mil cursos, totalizando 4,26 milhões de matrículas a maioria delas nas dez maiores corporações. Neste período, os docentes do setor privado (incluindo as ditas sem fins lucrativos) foram substancialmente reduzidos, passando de 186 mil (2017) para 150 mil (2023), situação agravada na modalidade a distância. Enquanto nos cursos presenciais das instituições públicas o número de estudantes por docente é de 1:12, nas privadas presenciais é de 1:52 e nas privadas em EaD de 1:168. Analisando mais detidamente a intensificação do trabalho nas maiores corporações financeirizadas, é necessário destacar uma instituição privada-mercantil que oferta seus cursos perto de 100% em EaD. Esta corporação, não nomeada nos dados do Censo do Ensino Superior de 2023 (Brasil, 2024) possui 709 mil estudantes e escassíssimos 326 docentes, o que corresponde a 1 docente para 2,2 mil estudantes; outra instituição, também basicamente a distância, possui 771 mil estudantes (764 mil a distância) e igualmente irrisórios 524 docentes. Uma grande instituição pública, por sua vez, possui 62 mil estudantes, todos presenciais, e 5.597 professores (Brasil, 2024). O panorama do trabalho nas corporações que atuam na modalidade de cursos a distância é de inédita intensificação da jornada de trabalho, conformando um quadro adoecedor. Não pode haver dúvida de que a escala da exploração foi alterada. Relação entre a plataformização e a financeirização na educação superior privada-mercantil A rápida expansão das plataformas digitais nos holdings educacionais é impulsionada por uma lógica de hiperprodutividade para a maximização do lucro característica do capitalismo de hoje. A dinâmica dos circuitos capital, comércio de dinheiro e processos de extração de Mais-Valor foi redimensionada, e está transformando radicalmente o trabalho docente, aumentando sua jornada regulada e, ainda mais, o tempo de trabalho efetivamente realizado. Ademais, a mudança na composição orgânica gera novas formas de controle algorítmico, por meio de descritores de competência elaborados em conformidade com a pedagogia do capital. Essa combinação de fatores reconfigura a jornada de trabalho dos professores e está em conexão com a intrínseca relação entre a plataformização do trabalho no setor da educação superior privada-mercantil e o processo de financeirização da economia, exacerbando, em novos patamares, a exploração efetiva do trabalho. A plataformização é, ao mesmo tempo, materialização e consequência de um processo histórico que mistura capitalismo rentista, ideologia do Vale do Silício, extração contínua de dados e gestão neoliberal. Uma das bases está na crescente responsabilização individual dos trabalhadores por tudo que envolve o trabalho, circunstância que Wendy Brown chama de “cidadania sacrificial”. Assim, os trabalhadores são obrigados a fazer a gestão das próprias sobrevivências com toda a sorte de vulnerabilidades, tendo de escutar que isso é um “privilégio”. Já os dados e metadados transformados em capital, somados à convergência de capital, auxiliam a dar forma às distintas possibilidades de extração do valor das plataformas, dependentes das mais variadas configurações de trabalho vivo (Grohmann, 2021, p. 14). A plataformização é uma noção em movimento que compartilha um sentido comum de precariedade do trabalho e de triunfo de um modelo de negócio assimétrico, típico do capitalismo financeiro e com formas renovadas de exploração do trabalho (Fuchs, 2014; Huws, 2014; Scholz, 2016), como informalização, baixas remunerações, intensificação do trabalho, perda da identificação e insegurança generalizada para o trabalhador e generalização do modo de vida periférico (Abílio, 2020). Essas plataformas são catalisadoras das tendências e processos de transformações no mundo do trabalho, das quais derivam novas configurações organizacionais, novos tipos de controle, subordinação e terceirização do trabalho, e que também se associam às políticas neoliberais e ao processo de financeirização. As plataformas podem também ter o poder de influenciar ou estipular diferentes aspectos do trabalho, seja por meio de regras explícitas ou por meio de estímulos e desestímulos via algoritmos – que possuem objetivos bem definidos voltados à otimização da plataforma para ganhar participação no mercado e/ou voltados à maximização do lucro. Podem fazer parte desses aspectos a remuneração (valores e condições), a jornada de trabalho (horas e horário), o modo de realização do trabalho, o modo de relação com as partes envolvidas, a forma de direcionamento do trabalho, a localidade de onde o trabalho deve ser realizada, o nível de liberdade para recusa, os sistemas de avaliação, entre outros (Machado e Zanoni, 2022, p. 57). Ludmila Abílio (2020) argumenta que compreender as plataformas requer analisar suas inter-relações com a financeirização, que é um elemento central na compreensão da lógica por trás da expansão das plataformas digitais de trabalho, influenciando as estratégias das empresas, a organização do trabalho e as condições para os trabalhadores docentes que atuam nesse novo cenário. Aspectos da realidade do trabalho intensificado na EaD A base principal da exploração exacerbada e da intensificação do trabalho dos docentes que atuam em EaD é o regime de hora-aula, retomando, em novos padrões, as relações precárias de trabalho no setor mercantil. Em uma série de reportagens de autoria de Domenici, a Agência Pública mergulhou na situação laboral dos trabalhadores da Laureate, notadamente dos que atuavam em cursos de EaD. Os depoimentos de docentes com nomes fictícios, explicita a dura realidade do trabalho nessas corporações: “A palavra que melhor define meu momento é desespero”, conta Horácio*, professor da Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo, do grupo Laureate, referindo-se à redução de 75% das suas horas de trabalho no atual semestre letivo, situação dramática considerando ser seu único emprego. Não há salário, apenas tarefas, no caso, horas-aula. Enzo*, professor de outra universidade do grupo Laureate, a FMU, passou de 21 horas semanais no último semestre para apenas 3 horas. Ele diz que a maioria dos professores está nessa situação. “Nós estamos recebendo em média R$500,00 por mês.” Muitos docentes foram informados da demissão por um pop-up na tela do computador, ao acessarem o sistema. Nesse quadro, o sofrimento laboral e o estresse são evidentemente exacerbados. Cabe registrar que o estudo das condições laborais dos trabalhadores em EaD é dificultada pela individualização das tarefas demandadas pela corporação e pelo assédio que impede a presença de sindicatos de professores nessas organizações. Em virtude da relação entre o número de estudantes e o de docentes, que, nessas instituições podem chegar a 2,2 mil estudantes por docente, a Laureate instaurou robôs para corrigir os trabalhos dos estudantes sem que estes soubessem da situação (Domenici, 2020a). Mesmo nas aulas síncronas, as turmas normalmente possuem 250 a 350 estudantes, inviabilizando as interações ensino e aprendizagem. Um dos principais articuladores das denúncias sobre as condições de trabalho, Gabriel Teixeira, organizador da Rede de Educadores do Ensino Superior em Luta, destaca que eles criaram uma Plataforma de Apoio Psicológico para Profissionais da Educação e receberam 300 inscrições em apenas cinco horas (Domenici, 2020b). Conforme Gemelli e Closs (2023), o principal indicador de precarização para os entrevistados, aferido por um survey realizado pelos autores, é a contratação com jornada ou definição de horas-aula muito abaixo das tarefas realizadas, corroborando a existência de intensificação do trabalho. Esse cenário apresentado tende a se agravar com a complexificação da Inteligência Artificial. Funções como atendimento aos alunos por meio de monitoria ou tutoria nos polos de EaD, funções já altamente exploradas, podem ser amplamente substituídas por tutorias exclusivamente virtuais (Júnior e Schlesener, 2024). “Os últimos avanços da Khan Academy3, incluem o ChatGPT-4 da OpenAI, que criou a figura do Khanmigo: um tutor de IA que conversa com estudantes em linguagem natural, recriando a experiência de um(a) professor(a) humano(a)” (Sagrado, Da Matta e Gil, 2023, p. 87, Tradução Nossa). Essas plataformas permitem também a implementação de assistentes que atuam junto aos professores, sob a alegação de facilitar o trabalho docente. Delegar às plataformas, por meio de assistentes virtuais, atividades como a sumarização de pontos de um texto para serem usados em aulas, elaboração de sínteses, criação de questões para trabalhos e avaliações, sugestões de temas e exemplos, correção de atividades e, como já mencionado anteriormente, o atendimento e interação com os alunos, podem endossar argumentos para reduzir o já escasso tempo de trabalho remunerado destinado aos professores para atividades fora da sala de aula (Júnior e Schlesener, 2024, p. 150). Inexiste publicidade sobre as condições de trabalho nos 47 mil polos de EaD, 46% deles terceirizados, ou seja, desvinculados das instituições que formalmente os instauraram. Todo um complexo de relações de trabalho precarizadas move a reprodução do capital nessas organizações que, simultaneamente, promovem um apartheid formativo, afetando, inclusive, os formadores dos novos docentes, propagando a segregação da formação dos 47 milhões de crianças e jovens que cursam a Educação Básica. Considerações finais Diante da mudança na composição orgânica do capital, do mercado de ações, da dissociação entre propriedade do capital e a direção dos negócios e, ainda, da conversão dos grupos educacionais em sociedades anônimas, há um redimensionamento, em níveis inéditos, da jornada de trabalho dos professores. A intensificação do trabalho no âmbito da jornada regulada e remunerada envolve estratégias sutis e menos visíveis de exploração, como o número de estudantes com os quais o sujeito docente trabalha que, como visto, pode ser mais de 160 vezes a razão encontrada nos cursos presenciais das instituições públicas. A necessária consigna “Pelo fim da jornada 6X1” que consubstancia a Proposta de Emenda à Constituição – PEC no 8/2025 reduz a jornada semanal para 36h a serem distribuídas de modo a assegurar três dias de descanso. Entretanto, será necessário buscar formas de coibir a intensificação do trabalho “dentro da jornada regular”, pois, sem isso, os três dias de descanso seguirão sendo três dias de trabalho adicional não remunerado – afinal, um docente plataformizado que possui centenas e até milhares de estudantes dificilmente poderá ignorar demandas legítimas dos estudantes por um mínimo de conexão com seus professores. Será necessário incorporar na regulamentação da referida PEC o problema dos precarizados plataformizados. Os milhares de tutores e monitores, grande parte deles terceirizados, que atuam nos polos e mesmo no atendimento cotidiano aos cinco milhões de estudantes que estudam na modalidade EaD, com a nova legislação poderão ter uma referência de direito à uma vida fora do trabalho alienado e explorado, o que favorece a organização e as lutas. No entanto, como não se trata do tempo linear da jornada de trabalho, mas de uma inteira mudança no manejo do tempo pelo capital, a resistência e as lutas requerem um ambiente de crítica às formas de exploração no âmbito das plataformas e dos sistemas de ensino. O estranhamento dessas formas sub-reptícias de exploração é estratégico e somente ganhará força política nas lutas de classes se forem movimentos de amplas frações das classes trabalhadoras igualmente expropriadas e exploradas. Conforme destacado, a primeira manifestação internacional dos trabalhadores teve o tempo como bandeira, um aspecto que nunca saiu de cena. No Século XXI, a luta pela abolição da escala 6×1 no Brasil unificou de modo original segmentos expressivos da classe trabalhadora, ganhou amplo apoio da sociedade e se tornou um objetivo central do Primeiro de Maio de 2025, que reuniu milhares de pessoas nas ruas em torno da pauta. Além disso, dias antes também houve uma importante manifestação, a greve nacional dos entregadores, conhecido como o “breque dos apps”, caracterizada como a maior mobilização nacional dos entregadores desde 2020. De fato, em 2020, pela primeira vez, esses trabalhadores fizeram uma greve contra as condições de trabalho impostas pelas plataformas. Partindo destes exemplos recentes é possível propugnar que há movimentos originais surgindo a partir das novas facetas da superexploração, incluindo a criação de sindicatos e associações que representam os trabalhadores mais precarizados. Está evidente que é necessário ousadia estratégica para retomar a constituição de organizações autônomas dos trabalhadores, com pautas que sejam capazes de unificar as lutas em curso nos movimentos contestatórios. Afinal, a história é, de distintas formas, a história da luta de classes. As possibilidades de resistência estão abertas no Século XXI. O trabalho é sempre um elemento vivo e o tempo condensa os grandes embates e lutas da sociedade, gerando conflitos e oposições permanentes. O contexto atual, marcado, entre outros aspectos, pela ampliação das formas de contratação precárias, pelas tentativas de esfacelamento dos coletivos de lutas e pelas políticas de cerceamento à liberdade de cátedra das professoras e professores nas instituições educacionais, exigem amplo debate, permanente reflexão e resistências em direção à defesa dos direitos sociais que, no capitalismo dependente, necessitam ser fortemente universalizados Urge, no Brasil, lutas pela desmercantilização radical da Educação. Isso requer urgentemente proibir a massificação do Ensino Superior a distância, tema que deve ser tratado como exceção para situações específicas; é imperioso proibir grupos educacionais com a participação de fundos de investimentos, organizados como sociedades anônimas e com ações nas bolsas; as lutas precisam combater o uso do fundo público que alavancou esses holdings, assegurando o princípio de verbas públicas exclusivamente para as instituições públicas. A partir dessas bases, articular a luta em prol da consigna “existe vida após o trabalho”, assegurando, em todo país, nas instituições públicas e privadas, da Educação Básica e da Educação Superior, o regime de dedicação exclusiva como padrão básico para o exercício do Magistério, objetivando forjar uma educação a altura dos desafios do tempo histórico. Referências ABÍLIO, L. C. Plataformas digitais e uberização: a globalização de um Sul administrado? Contracampo, v. 39, n. 1, pp. 12-26, 2020. ABÍLIO, L. C.; AMORIM, H.; GROHMANN, R. Uberização e plataformização do trabalho no Brasil: conceitos, processos e formas. Sociologias, v. 23, n. 57, pp. 26-56, 2021. ANTUNES, R. Icebergs à deriva: o trabalho em plataformas digitais. São Paulo: Boitempo, 2023. BIELSCHOWSKY, C. E. Tendências de precarização do ensino superior privado no Brasil. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação -Periódico científico editado pela ANPAE, v. 36, n. 1, pp. 241-271, 2020. BRASIL. Censo da Educação Superior 2023: notas estatísticas. Brasília: INEP, 2024. FUCHS, C. Digital Labour and Karl Marx. New York: Routledge, 2014. GEMELLI, C. E.; CLOSS, L. Precariousness of Higher Education Teaching Work in Brazilian Private HEIs. BBR. Brazilian Business Review, v. 20, n. 3, pp. 339-361, 2023. HOBSBAWM, E. Mundos do trabalho: novos estudos sobre história operária. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. HUWS, U. Labor in the global digital economy: the cybertariat comes of age. Londres: Merlin, 2014. DAL ROSSO, S. Mais trabalho! A intensificação do labor na sociedade contemporânea. São Paulo: Boitempo, 2008. DOMENICI, T. Após uso de robôs, Laureate agora demite professores de EaD. Agência Pública, 13 de maio de 2020a. Disponível em: https://apublica.org/2020/05/apos-uso-de-robos-laureate-agora-demite-professo-res-de-ead/. DOMENICI, T. “É cruel”: professores relatam de aulas on-line com 300 alunos a demissões por pop-up. Agência Pública, 13 de setembro de 2020b. Disponível em: https://apublica.org/2020/11/laureate-o-raio-x-de-uma-fraude-para-reconhecer-uma-graduacao-no-mec ENGELS, F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2010. FERNANDES, F. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. GROHMANN, R. Os laboratórios do trabalho digital: entrevistas. São Paulo: Boitempo, 2021. JÚNIOR, V. D.; SCHLESENER, A. H. Inteligências artificais e capitalismo digital: as armadilhas da ideologia da técnica. Dossiê Germinal: marxismo e educação em debate, v. 16, n. 3, pp. 132-153, 2024. LABARCA, G. Cuánto se puede gastar en educación? Revista de la CEPAL, n. 56, pp. 163-178, 1995. LEHER, R. Da ideologia do desenvolvimento à ideologia da globalização: a educação como estratégia do Banco Mundial para “alívio” da pobreza. [Tese de Doutorado]. São Paulo: USP, 1998. MACHADO, S.; ZANONI, A. P. (Orgs.). O trabalho controlado por plataformas digitais no Brasil: dimensões, perfis e direitos. 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Brasil precisa descobrir os assassinatos, por Luiz Francisco Carvalho Filho

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Luiz Francisco Carvalho Filho, Advogado criminal, é autor de “Newton” e “Nada mais foi dito nem perguntado” Folha de São Paulo, 11/10/2025 São mais de 44 mil assassinatos, o mais grave dos crimes, em 2024. O número está em queda desde pelo menos 2012, mas não há motivo para comemorar. O problema brasileiro é gigantesco. Monitoramento do Instituto da Paz registra uma média estável, entre 35% e 44%, de casos esclarecidos nos últimos nove anos. A média mundial é 63%. A divulgação da pesquisa “Onde Mora a Impunidade” (em 2023, 36% dos homicídios foram esclarecidos) coincidiu com mais um intrigante assassinato em novelinha da Globo, e não faltaram referências. Quem matou Odete Roitman? “Na vida real”, diz o Sou da Paz, “as chances de essa pergunta ser respondida são bem pequenas”. O desfecho da trama sem a identificação do autor e do motivo do crime poderia frustrar os telespectadores, mas não estaria distante da realidade. Matar premeditadamente sempre foi complexo. Antigamente, locais ermos. Agora, lugares sem vigilância de smart cam. A esperteza sempre foi capaz de proteger assassinos, transferir culpas, incriminar falsamente bandidos ou inocentes, confundir autoridades. Com a inteligência artificial, a capacidade de enganar e despistar parece infinita. O impacto do crime de morte no meio social é dramático. O assassinato é instrumento de poder no âmbito do crime organizado. Assim como o sentimento de impunidade, o efeito colateral do homicídio praticado por agentes policiais (6.243 em 2024) corrói gravemente a credibilidade do poder público. Sucateamento da Polícia Civil por governadores de todos as linhas ideológicas, despreparo dos agentes, corrupção, falta de vontade política, falta de meios e recursos, falta de inteligência, falta de acesso a banco de dados, desrespeito a protocolos, ineficiência processual, tudo ajuda a explicar os números desalentadores. O Atlas da Violência revela que entre 2013 e 2023 mais de 135 mil mortes não tiveram a intencionalidade identificada. Os “homicídios ocultos” nas estatísticas proliferam em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia —responsáveis por 66,4% das chamadas MVCI (Mortes Violentas por Causa Indeterminada). O Brasil ainda não tem um indicador nacional de esclarecimento de homicídios. O Sou da Paz criou o seu indicador para estimular a criação de uma métrica oficial. Os dados que recolhe do Ministério Público e dos Tribunais de Justiça, via Lei de Acesso à Informação, afetados pela falta de padronização, são incompletos e insuficientes, sobretudo em relação a marcadores de gênero, raça e faixa etária de vítimas. O indicador nacional de esclarecimento de homicídio é ferramenta inestimável para o conhecimento da realidade e para políticas de prevenção e punição de atentados que atingem a vida de famílias e comunidades. O recente crime contra Luiz Fernando Pacheco, advogado querido e notável, é uma exceção porque, filmados os suspeitos, identificados por reconhecimento facial, a repercussão do caso faz a polícia trabalhar. O sentimento de segurança conspira contra a privacidade, a intimidade, a liberdade de ir e de estar. Se a erosão dos direitos da personalidade é irreversível, retirar o manto escuro que encobre assassinatos é uma contrapartida obrigatória para o espírito de vigilância extrema que se instala em nossas cidades.

Como surge o indivíduo fascista? por Michel Aires de Souza Dias

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Michel Aires de Souza Dias – A Terra é Redonda – 09/10/2025 A personalidade autoritária floresce onde o eu é fraco e a experiência formativa, deteriorada. Mais que uma patologia individual, é o resultado previsível de uma sociedade que produz sujeitos incapazes de resistir às promessas de poder e pertencimento 1. Os estudos de Theodor Adorno, na década de 1940, sobre a personalidade autoritária continuam atuais, pois nos oferecem instrumentos teóricos para refletirmos sobre o advento de regimes autoritários nos dias de hoje. Ao chegar aos Estados Unidos, os frankfurtianos ficaram espantados com o antissemitismo daquele país. Eles descobriram que o fascismo não se restringia ao contexto histórico e político da Europa, não se tratava de um fenômeno isolado, mas estava presente de forma latente na estrutura psíquica dos indivíduos, em uma grande parcela da população norte-americana. Como observou Costa (2019), ao se exilarem nos Estados Unidos, os pensadores alemães se depararam com um grande preconceito contra judeus, que correspondiam a 3,5% da população nacional. Tratava-se de uma grande contradição para um país que se orgulhava da liberdade e dos princípios democráticos, mas que convivia com um enorme preconceito racial. Essa experiência culminou na seguinte indagação: seria possível um fenômeno análogo ao nazifascismo em um país que se diz democrático, como os Estados Unidos? O livro A personalidade autoritária é considerado um clássico da psicologia social. Foi um trabalho interdisciplinar, dirigido pela equipe da Universidade de Berkeley, fundamentado em pesquisas empíricas nos Estados Unidos, que usou escalas de atitudes, entrevistas e testes projetivos. Todos esses instrumentos foram usados ao lado de uma teoria social e a uma teoria do inconsciente, procurando entender a psicologia do homem autoritário. A grande preocupação foi com os indivíduos potencialmente fascistas, que possuíam certa estrutura de personalidade, tornando-se suscetíveis à propaganda antidemocrática. Os pesquisadores descobriram que os indivíduos que apresentam extrema suscetibilidade à propaganda autoritária possuíam características em comum, que formavam uma síndrome. A partir disso foi elaborada uma escala denominada escala F, que buscou avaliar o preconceito etnocêntrico e as disposições latentes, que tornam uma pessoa inclinada ao caráter autoritário. Nove traços de personalidade mais comuns foram vistos como autoritários: convencionalismo; submissão acrítica; agressividade autoritária; destruição e cinismo; poder e rudeza; superstição e estereotipia; exteriorização; projeção; e obsessão com a sexualidade (ADORNO, 2019). As pesquisas feitas nos Estados Unidos mostraram que, em alguns indivíduos, o antissemitismo formava um padrão de comportamento antidemocrático. Não se tratava apenas de características psíquicas. Para os pesquisadores, os preconceitos racistas têm uma origem socialmente determinada. Ao serem expostos a determinadas condições sociais, alguns indivíduos responderiam de forma preconceituosa. Desse modo, os estudos encontraram um tipo antropológico autoritário, com um padrão psicológico, determinado por certas condições sociais objetivas (COSTA, 2019). Como o próprio Theodor Adorno aponta: “Estamos convencidos de que a fonte última do preconceito deve ser buscada em fatores sociais incomparavelmente mais fortes que a ‘psique’ de qualquer indivíduo envolvido” (ADORNO, 2021, p. 352). Significa, portanto, que a psicologia do indivíduo não pode ser hipostasiada, uma vez que os aspectos sociais são fundamentais para a compreensão do caráter autoritário. As convicções econômicas, políticas e sociais de um indivíduo fascista formam um padrão amplo e coerente, desenvolvendo um tipo de mentalidade específica, que expressa certas tendências preconceituosas de sua personalidade. 2. O que é bastante relevante nas descobertas de Theodor Adorno é que, mesmo com o fim dos regimes totalitários na Europa, os pressupostos sociais objetivos que produziram o nazifascismo ainda estavam presentes. Desse modo, a personalidade fascista não pode ser compreendida apenas como um fenômeno circunscrito a um período histórico particular, mas deve, antes, ser entendida a partir da ordem e organização econômica da realidade, que transformam as pessoas em átomos sociais dessubjetivados. A superioridade do aparato técnico e econômico exerce enorme pressão sobre os indivíduos. Para sobreviver, eles precisam se adaptar e aceitar as coerções impostas pela realidade. Como Theodor Adorno (1995) avalia, personalidades com características autoritárias, de modo geral, se identificam com instâncias de poder, independentemente de seu conteúdo. Os indivíduos carregam consigo uma identidade fragilizada, que as leva a se identificar com toda espécie de coletivo. No capitalismo avançado, as pessoas se tornaram objetos de controle, organização e coordenação em larga escala, sendo determinadas por um grande aparato técnico e burocrático. Desse modo, a formação dos indivíduos tornou-se tecnologicamente mediada, sendo estabelecida pela indústria cultural, impossibilitando que eles adquiram autonomia e liberdade de pensamento. Hoje, mesmo com o avanço das tecnologias da informação, onde se reduziu o tempo e o espaço para a circulação da informação e do conhecimento, as pessoas se tornam presas fáceis do discurso ideológico. Na sociedade tecnológica, as formas de dominação e controle se tornaram cada vez mais interligadas, cada vez mais conectadas. Essas novas tecnologias, como smartphones, tablets, notebooks, celulares, câmeras, vídeo games, inserem-se na mesma lógica de dominação da indústria cultural. Com o processo de globalização, essas novas tecnologias possibilitaram o desenvolvimento de uma nova cultura internacional popular e, em consequência disso, permitiram um maior controle sobre os indivíduos. Como avalia Rodrigo Duarte (2003), com o processo de globalização, os meios de comunicação de massa vêm passando por enormes transformações. Observa-se uma grande concentração de capitais, de modo que apenas uma dúzia de corporações controla quase toda oferta de mercadorias culturais colocadas à disposição do mercado mundial. 3. Na avaliação de Theodor Adorno e Max Horkheimer (1985), a produtividade econômica, que poderia ser usada para a construção de um mundo mais justo e igualitário, conferiu ao aparelho técnico e aos grupos sociais que o controlam um poder descomunal sobre o resto da população. Desse modo, a autonomia do indivíduo foi anulada em face dos poderes econômicos. Ele se tornou um átomo social isolado, mediado socialmente, sem consciência da totalidade reificada que o subjuga. Na esfera da interioridade, a subjetividade foi capturada pelos mecanismos ideológicos da indústria cultural, tornando-se incapaz de desenvolver a consciência crítica da realidade. O resultado disso foi a massificação do indivíduo, que se tornou parte das engrenagens sociais: “Na sua individualização, o indivíduo reflete a lei social estabelecida da exploração” (ADORNO, 2008, p.145). Na sociedade de massas a racionalidade instrumental se impõe como forma predominante do pensar e agir. Desse modo, o sujeito moderno não se constitui de maneira autônoma. O “eu” (Ich) semiformado pela indústria cultural e pelo aparato técnico é moldado pelas exigências sociais objetivas do capitalismo administrado. Os pensadores frankfurtianos partem do princípio materialista de que o indivíduo é determinado pela totalidade social. A subjetividade não possui uma natureza fixa, acabada, mas é moldada na interação com as estruturas econômicas, políticas e culturais da sociedade. Nesse sentido, o “eu” se torna fraco e impotente, tornando-se incapaz de resistir às pressões sociais externas. O indivíduo passa a reproduzir os valores impostos de fora, tornando-se psicologicamente vulnerável a manipulação e a sedução autoritária. A falta de autonomia e o conformismo dos indivíduos decorrem, portanto, da forma como a sociedade está organizada. A cultura do consumo e a avalanche de mercadorias impedem uma verdadeira consciência da realidade. A grande consequência disso é que os sujeitos se tornam presas fáceis de instâncias heterônomas. Os mecanismos de controle do mundo administrado determinam a interioridade do indivíduo em seu íntimo, naquilo que deveria constituir o núcleo de sua autonomia. A deterioração da experiência formativa produz sujeitos impotentes, paralisados e incapazes de ação. Os estudos de Theodor Adorno mostraram que a personalidade autoritária não se define a partir de características psicológicas e, também, não é resultado de ideologias políticas conservadoras, mas ela se desenvolve devido à impotência, à paralisia e à incapacidade do indivíduo de reagir frente à racionalidade opressora do mundo administrado. No fundo os indivíduos fascistas “dispõem de um eu fraco” (ADORNO, 1995, p. 37). Para o pensador frankfurtiano, o caráter opressor do aparato técnico-industrial – que submete o indivíduo a exigências de eficiência e desempenho previamente estabelecidas – anula qualquer possibilidade de autonomia, liberdade e espontaneidade subjetiva. Na sociedade reificada, as pessoas só podem se afirmar como sujeitos a partir de padrões externos de adaptação, desempenho e eficiência, que são colocados como imperativos para a sobrevivência. Elas vivem em permanente pressão econômica e instabilidade material, tornando-se debilitadas e ansiosas. Assim, a personalidade autoritária “[…] seria definida muito mais por traços como pensar conforme as dimensões de poder — impotência, paralisia e incapacidade de reagir, comportamento convencional, conformismo, ausência de autorreflexão, enfim, ausência de aptidão à experiência” (ADORNO, 1995, p. 37) 4. Embora Theodor Adorno expresse um certo pessimismo em relação à cultura de massa, ele acredita que a emancipação é possível. Em sua opinião, os indivíduos propensos à personalidade autoritária podem ganhar consciência da fragilidade de seu ego e podem desenvolver uma resistência frente às tendências fascistas na sociedade. No seu texto, Educação e emancipação, Adorno (1995, p. 119) afirma que “a exigência mais importante da educação é que Auschwitz não se repita”. Enquanto o aparato técnico e a indústria cultural fragilizam os indivíduos para ajustá-los cada vez mais ao sistema produtivo, o frankfurtiano propõe a reconstrução da individualidade por meio da experiência formativa, de modo que essa singularidade se torne uma força propulsora de resistência. Nesse contexto, a educação assume o papel de instrumento de conscientização da realidade e das formas de dominação social, ao formar sujeitos esclarecidos, críticos e autônomos. [1] Michel Aires de Souza Dias é doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP). Referências ADORNO, Theodor W. Observações sobre a Personalidade autoritária, de Adorno, Frenkel-Brunswik, Levinson e Sanford. Trans/Form/Ação, Marília, v. 44, n. 2, p. 345-384, Abr./Jun., 2021. ADORNO, Theodor W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Unesp, 2019. ADORNO, Theodor W. Minima Moralia: reflexões da vida lesada. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008. ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimentofragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. COSTA, Virginia H. Ferreira. Apresentação a edição brasileira. In: ADORNO, Theodor W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Unesp, 2019. DUARTE, Rodrigo. Teoria crítica da indústria cultural. Belo Horizonte: UFMG, 2003. Nota [1] Esse texto é parte do artigo “Neoliberalismo e a produção da subjetividade fascista”, publicado em Aurora: revista de arte, mídia e política, São Paulo, v.17, n.51, p. 63-81, janeiro-abril 2025    

Tributação e Desigualdades

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Vivemos num momento marcado por grandes alterações na sociedade global, neste ambiente percebemos novos modelos econômicos que surgem cotidianamente, novas profissões surgem e modificam o mercado de trabalho e, ao mesmo tempo, profissões consolidadas perdem espaço, exigindo dos trabalhadores transformações no cotidiano, novos conhecimentos, novos valores e novos comportamentos. O desenvolvimento tecnológico vem transformando o dia a dia dos indivíduos, afinal, somos impulsionados por novas plataformas, novos produtos e novos aplicativos, que alteram a comunicação, o entretenimento, os relacionamentos humanos e as relações sociais. Neste ambiente, marcado por grandes transformações tecnológicas, onde os modelos de convivência social estão sendo alterados e transformados, novos modelos de negócios surgem e destroem os modelos anteriores, gerando, o que o grande economista austríaco Joseph Schumpeter, chamou de destruição criadora, onde empreendedores e inovadores constroem novos modelos produtivos e destroem modelos antigos, inaugurando novas formas de acumulação e contribuindo para a criação de riquezas. Neste momento, percebemos o surgimento de novas discussões econômicas e sociais, onde aparentes consensos passaram a ser questionados, gerando confrontos de ideias e pensamentos, motivando novos questionamentos e trazendo novas reflexões que organizam a opinião pública, exigindo novas posturas e novos instrumentos de resolução de problemas complexos. Na sociedade brasileira, desde os anos 1990 vivemos uma agenda econômica centrada na austeridade financeira, onde os governos devem ser austeros com os gastos públicos pois estes podem gerar processos inflacionários crônicos, diante disso, deveríamos cortar os repasses públicos, privatizar empresas estatais e abrir a economia nacional, um receituário “moderno” para superarmos nossos atrasos e nossos retrocessos históricos. Adotamos as medidas “modernizantes” e colhemos uma economia sem setor industrial, dependentes de tecnologias do setor de serviços, comandadas pelos grandes conglomerados estadunidense e asiáticos, além de sermos dominados por um setor agroexportador, marcado por subsídios exagerados e isenções fiscais ilimitadas. Nossas empresas estatais, que eram ineficientes, foram vendidas na bacia das águas para grandes grupos internacionais e, atualmente, fazem parte do portfólio de grandes fundos financeiros globais que dominam a economia mundial, com isso, perdemos nossa autonomia interna, dependendo, cada vez mais, de tecnologias externas e exportamos produtos primários de baixo valor agregado. Em tempo de transformações econômicas, políticas e sociais, precisamos rever nossa estrutura tributária, afinal somos um dos países mais desiguais da sociedade global, segundo dados do Banco suíço UBS, que analisa a dinâmica da riqueza em 56 nações, o Brasil fica no primeiro lugar, a frente da Rússia, África do Sul, Emirados Unidos, Suécia, Estados Unidos, Índia, Turquia e México e, ao mesmo tempo, nos coloca com o maior número de milionários da América Latina, mais uma estatística que nos envergonha perante a sociedade internacional. Os motivos desta desigualdade são conhecidos por muitos teóricos, neste espaço gostaria de destacar apenas um dos mais evidentes, a tributação. Muitos dizem que pagamos muitos impostos, mas quem realmente paga imposto no Brasil? Os grandes contribuintes que movimentam a estrutura estatal são os mais pobres e a classe média, os donos do grande capital financeiro pagam muito pouco, patrocinam isenções variadas que garantem seus benefícios tributários, deixando de pagar quase 1trilhão por ano, nada pagam dividendos e usam seu poder político para manter suas benesses. Se estamos num momento de reflexões intensas, está na hora de revermos as desigualdades criadas pelo sistema tributário nacional… Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Doutor em Sociologia

Previsões fracassadas, por Maria Hermínia Tavares

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Maria Hermínia Tavares, Professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, é pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Folha de São Paulo, 09/10/2025 Não foram poucos os analistas a vaticinar que o governo Lula fracassaria, travado pelo “pior Congresso da história do país”. A aprovação na Câmara da reforma do Imposto de Renda — agora a caminho do mesmo Senado que acaba de enterrar a chamada PEC da Blindagem — é um bom momento para avaliar o que tem resultado das relações entre um Executivo em mãos de presidente de centro-esquerda governando com amplíssima coalizão e um Legislativo dominado pela encrencada família das direitas. Inimagináveis para todos quantos previam o pior, ambas as decisões ensejam repensar as visões dominantes tanto sobre a capacidade do Executivo de implementar sua agenda quanto sobre o Congresso de maioria direitista e empoderado por emendas ao Orçamento e Fundo Partidário. Não foi pouco, nem desimportante, o que o governo Lula logrou aprovar em pouco mais de dois anos e meio: o novo arcabouço fiscal; a reforma tributária; a taxação de fundos exclusivos; a política de valorização do salário-mínimo; a reoneração parcial dos combustíveis; o novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento); a retomada do Minha Casa, Minha Vida; a política de igualdade salarial entre homens e mulheres; o novo Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais); e o Pé de Meia, que apoia a permanência de estudantes no ensino médio. Todas medidas de inequívoco pedigree progressista. Continuam em apreciação nas casas legislativas dois projetos de peso: a reforma administrativa e a constitucionalização do Sistema Nacional de Segurança Pública. É certo que, sob Lula, o Executivo teve menos êxito em aprovar propostas e teve mais vetos derrubados do que em gestões anteriores. Mas nada do obtido teria sido possível se este fosse um governo sem rumo, sem projetos, sem coalizão de governo e sem capacidade de negociar cada proposta com os legisladores, cedendo aqui, perdendo acolá, como é próprio nas democracias. Da mesma forma, nada seria factível se, como pensa a maioria dos analistas e formadores de opinião, o Congresso —robustecido pelas emendas parlamentares e pelo Fundo Partidário— não passasse de um aglomerado de partidos povoados por picaretas, clientelistas, patrimonialistas ou corruptos em geral, os quais, mesmo quando pareçam acertar, estariam fazendo apenas um jogo de aparências para esconder seus verdadeiros fins. Essa é uma visão caricatural do Congresso. Os poucos estudos de fôlego sobre a destinação das emendas parlamentares chegam a conclusões mais matizadas sobre seus efeitos: alguns positivos, outros perversos. Por outro lado, não há evidências sólidas de que ministérios e outros órgãos de governo se pautem sempre ­—e apenas— por critérios técnicos não contaminados pelo raciocínio político. Que a distribuição dos recursos de emendas, a disputa por cargos e o apoio a propostas do governo sejam influenciados por cálculo eleitoral é apenas o esperado nas democracias, onde a competição pelo poder depende das urnas. Aqueles objetivos não impedem —antes esclarecem— as condições para cooperação entre os Poderes. Eis o que permitiu, na contramão das previsões, que a agenda do governo prosperasse.

A epidemia do sofrimento, por Mariliz Pereira Jorge

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Mariliz Pereira Jorge, Jornalista e roteirista Folha de São Paulo, 08/10/2025 Se você se preocupa com sua saúde mental, não está sozinho. Virou o nosso check-up diário. Dormiu mal? Ansiedade. Não rendeu? Burnout. Mas o que parece modismo é, na verdade, um diagnóstico coletivo, uma questão que segue como o principal temor no país, superando câncer e outras doenças. Em 2024, 54% dos brasileiros já apontavam o tema no topo, tendência que se mantém na nova leva de dados da Ipsos —a média global é de 45%. O salto é vertiginoso: de 18% em 2018 para o patamar atual. O ponto de virada veio com a pandemia —não só pelo vírus, mas por uma nova realidade: o trabalho invadiu a casa, a solidão virou rotina, empreender é a palavra da década, o sofrimento é o status normal. No meu círculo de amizades, estranho é quem não enfrenta algum grau de depressão, pânico, distúrbios, transtornos. Não deixa de ser sinal de loucura que a conversa sobre medicações, crises e tratamentos seja natural. O tabu diminuiu porque as doenças mentais são democráticas. As mulheres declaram mais angústia; os homens, ironicamente, aparecem com maior frequência nas estatísticas fatais. E, de lá para cá, nasceu uma nova paisagem emocional: gerações mais jovens chegam à vida adulta mais alertas para o próprio despencar. Talvez por isso, estejam mais dispostas a nomear o que dói. E o cotidiano só aduba o mal-estar: trabalho que invade a madrugada, renda incerta, boletos em fila, comparação infinita no feed. A conta fecha no corpo: insônia, palpitação, cansaço que não descansa. Enfrentar essa epidemia de sofrimento exige pactos miúdos (sono, rotina, conversa, menos tela) e pactos coletivos (proteção social, escola que acolhe, empresa que não transforma gente em meta). Para atravessar, menos heroísmo solitário e mais rede: pedir ajuda sem culpa, oferecer ajuda sem julgamento. Para alguém que, como eu, trata uma depressão há 11 anos, é um alento ver que os transtornos mentais saíram da margem e ganharam nomes, rostos, identificação. Mas, sem política e cuidado, tudo vira uma conversa solitária, um pedido de socorro que fica sem resposta.

A autocrítica de Lula e a defesa da democracia, por Luiz Filgueiras

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O que o terá levado a reconhecer os déficits da esquerda? Uma súbita visão sobre as transmutações do PT? Os rumos que imprimiu a seu governo, há três meses? Examinar a fala pode ser essencial para enfrentar a ultradireita – em 2026 e depois. Luiz Filgueiras – OUTRAS PALAVRAS – 02/10/2025 No último dia 24/09 o presidente Lula participou na sede da ONU, em Nova York, em uma agenda paralela à Assembleia Geral das Nações Unidas, da segunda edição do evento “Em Defesa da Democracia e Contra o Extremismo”, fórum que busca uma articulação internacional em defesa das instituições democráticas e contra a desinformação, o discurso de ódio e a desigualdade social. Com a participação de 30 países, Brasil, Chile, Espanha, Colômbia e Uruguai estiveram na mesa principal. Nenhum dos organizadores cogitou chamar os EUA, como em 2024, e tampouco a atual administração de Donald Trump demonstrou interesse. Nessa reunião, Lula fez uma breve fala que me pareceu muito importante, apesar de não ter tido repercussão maior na mídia, nem tampouco nas esquerdas. Ele fez uma autocrítica do que chamou de erros da esquerda, que propiciaram e facilitaram a ascensão da extrema-direita em todo o mundo. E mais especificamente, de forma pouco clara, fez uma autocrítica, não declarada enquanto tal, dos seus governos e dos governos de esquerda mundo afora. Após elogiar a democracia e o multilateralismo, recuperou um aspecto de sua trajetória política, explicando o que o levou da antipolítica à política, com a criação do Partido dos Trabalhadores. Contou ter constatado, quando de uma visita ao Congresso Nacional, a ausência de trabalhadores nessa instituição democrática. Além disso, recuperou os resultados das eleições de 1989 a 2022, evidenciando o crescimento eleitoral do PT e a possibilidade concreta de chegar ao governo. Mas é a partir daí que a sua fala se torna realmente importante, quando relembra a criação do Fórum de São Paulo, que reuniu as esquerdas latino-americanas e no qual chamou a atenção para a importância fundamental da organização dos trabalhadores. Esse foi “o gancho” para questionar “o que fazer para defender a democracia, em crise em todo o mundo, e a sua difusão nas massas”; e indagar “onde os democratas e a esquerda erraram e por que a extrema direita cresceu”. Segundo ele, antes de procurar as virtudes do extremismo de direita é preciso identificar os erros que a democracia cometeu. A sua resposta começa enfatizando que o Partido dos Trabalhadores era organizado (no passado mesmo) em núcleos por local de trabalho, moradia e estudo. Não analisa o porquê disso ter sido abandonado pelo partido, posteriormente, mas pergunta: “o que eu fiz na Presidência da República; o que eu fiz para fortalecer a organização popular e social?”. A sua resposta genérica e sintética, estendida para a esquerda latino-americana: “abandonamos a organização dos trabalhadores e do povo”. Avançando em sua autocrítica, Lula pergunta: “o que fazemos hoje, como estamos exercendo a democracia em nossos países”? E responde explicitamente que “a gente ganha as eleições com discurso de esquerda e quando começa a governar atende muito mais os interesses de nossos inimigos do que dos nossos amigos”. A preocupação maior é com “a cobrança do mercado e a necessidade de contentar o mercado e os adversários”, além de “dar resposta ao que a imprensa publica sobre nós”. E surpreendentemente, destaca que “os nossos eleitores, que foram para ruas e apanharam, são considerados por nós como sectários e radicais”; “a gente não dá atenção a eles e dá atenção àqueles que falam mal da gente”. A sua conclusão é clara e direta: o fracasso da democracia se deve ao que “nós deixamos de fazer, aos erros que a democracia cometeu na sua relação com a sociedade civil”. Segundo Lula, reconhecer isso é crucial para não superestimarmos as virtudes do extremismo de direita e termos condições de derrotá-lo. Nesse curto discurso, ao fazer uma espécie de mea-culpa, Lula resume uma questão essencial para entendermos a ascensão do neofascismo em todo mundo: o “transformismo” dos Partidos Socialistas, Social-democratas e Trabalhistas, iniciado a partir da década de 1980, após a ascensão e hegemonia do neoliberalismo -– primeiro nos países imperialistas, depois nos países periféricos, de capitalismo dependente. A adesão ativa ao ideário do adversário (a direita neoliberal), ou a sua aceitação passiva, criaram um vácuo político na representação dos trabalhadores e do povo. A incapacidade (por várias razões) das correntes mais à esquerda de o preencherem abriu as portas para a ascensão da extrema direita neofascista. As consequências das reformas e políticas neoliberais, efetivadas em todo mundo durante mais de 30 anos, foram nefastas para a maioria da população: desemprego, precarização do trabalho, pobreza, concentração de renda, instabilidade, insegurança, desânimo e desesperança, crises reiteradas etc. A alternância de governos neoliberais e social-democratas, executando as mesmas políticas e reformas regressivas — e portanto, sem nenhuma diferença substantiva — concomitante ao abandono da crítica ao capitalismo e do projeto socialista pela esquerda, permitiram à extrema direita preencher o vácuo político e se apresentar como “antissistema”: contra a democracia liberal (e suas instituições) e a “globalização”, ambas culpadas por todos os males e o mal-estar generalizado. E a resposta oferecida pelo neofascismo não é, evidentemente, a superação do “sistema capitalista”. Muito pelo contrário, ele faz a defesa explícita da exploração e dos valores capitalistas, no limite assumindo a ideologia e perspectiva do chamado anarcocapitalismo. Os seus objetivos mais gerais podem ser resumidos a:
  1. No âmbito dos distintos Estados nacionais, corromper a democracia “por dentro” e, num segundo momento, instalar um regime autoritário de natureza fascista. Para isso, sua ação política, em especial através da chamada “guerra cultural” que instila e difunde pânico político e moral entre as massas, elege diversos inimigos, reais ou imaginários: comunistas, imigrantes, terroristas, feministas (“ideologia de gênero”), comunidade LGBT, petistas, movimento negro, pedófilos, corruptos, ateus, pobres etc.
  2. No plano internacional, o combate à “globalização” expressa a nova etapa do imperialismo dos EUA e sua crise de hegemonia, convergindo e apoiando o seu ataque ao multilateralismo e às instituições internacionais – criadas e comandadas, a partir do pós-II Guerra Mundial, por esse mesmo imperialismo. Essa convergência, no interior dos países dependentes, dá origem, como no caso brasileiro, à defesa bizarra dos ataques do imperialismo à soberania do Estado nacional.
Há razões objetivas que explicam, parcialmente, o processo de transformismo e o abandono da utopia socialista. São, em especial, a derrota do “socialismo real” no Leste Europeu e a reestruturação produtiva capitalista, alicerçada nas novas tecnologias de informação e comunicação (TICs) e nas novas formas de organização do processo de trabalho, que reduziram a massa de trabalhadores assalariados industriais e fragmentaram o conjunto da classe trabalhadora, fragilizando os sindicatos e suas demais representações. Mas não se pode constatar e compreender esses fenômenos a partir de uma visão determinista/economicista. A razão fundamental do transformismo deve ser buscada na hegemonia da ideologia neoliberal, que adentrou todas as esferas e instituições das sociedades, submetendo “corações e mentes” e, em particular, capturando a vanguarda e as direções (lideranças) de partidos de esquerda e demais representações dos trabalhadores. Estas passaram a considerar, na prática, as reformas e políticas do neoliberalismo como inevitáveis, o único caminho possível pós-derrota do “socialismo real”. No Brasil, os anos 1990 marcam a vitória do neoliberalismo (fomos o último país da América Latina a assumi-lo) e, ao mesmo tempo, o início do processo de transformismo do Partido dos Trabalhadores. Ele involuiu de um partido socialista atuando na ordem mas contra ela para um partido da ordem. Assumiu, paulatinamente, todas as características dos partidos tradicionais, abandonando os núcleos como forma de organização (substituídos pelos enclaves corporativos de comitês de parlamentares), fazendo da atuação institucional (em especial as eleições) o centro de suas preocupações e da vida partidária, estreitando laços com o capital para o financiamento das campanhas eleitorais, descartando os seus objetivos estratégicos (de mudanças estruturais) e abandonando a crítica do capitalismo (mesmo que apenas no discurso). Esta foi substituída pela ideologia desenvolvimentista (na prática um arremedo do antigo nacional-desenvolvimentismo dos anos 1930-1950 e, posteriormente, o desenvolvimentismo associado ao imperialismo). O resultado disso tudo foi a burocratização das instâncias partidárias, a mudança de composição de seus quadros, a perda de capacidade de mobilização popular e, por fim, o surgimento do “lulismo” – tão bem identificado e explicado por André Singer como uma espécie de bonapartismo que substituiu a oposição capitalversustrabalho pela oposição ricos versus pobres. Estes últimos com tendências conservadoras e sem capacidade de representação própria, a ponto de projetarem no Bonaparte a defesa de seus interesses. Penso que essa fala de Lula foi influenciada pela ameaça do retorno ao governo da extrema direita (a eleição do próximo ano) e, principalmente, pela mudança da correlação de forças iniciada há três meses. Foi então que o governo trouxe para a sociedade – tirando a exclusividade do Parlamento –, o debate sobre a questão tributária (isenção do Imposto de Renda para os que ganham até R$ 5 mil e aumento da taxação dos mais ricos e das grandes fortunas) e a questão da jornada de trabalho (a adesão e apoio à campanha pelo fim da escala 6X1) – com forte utilização das redes sociais. Posteriormente, com a agressão de Trump ao Brasil, em especial contra o Supremo Tribunal Federal (exigindo a suspensão do processo contra Bolsonaro, como condição para retirar a tarifa de 50% sobre os produtos brasileiros importados pelos EUA), a conjuntura tornou-se ainda mais favorável ao governo Lula e às esquerdas. Possibilitou-lhes assumir a linha de frente da defesa da democracia e da soberania nacional, empurrando a extrema-direita para a defensiva. Mais recentemente, as grandes mobilizações ocorridas em todo país, contra a PEC da bandidagem aprovada pela Câmara de Deputados e a proposta de anistia aos golpistas condenados pelo STF, expressaram de forma cabal a mudança da conjuntura. Ela alcançou também o parlamento, com a Comissão de Constituição de Justiça do Senado arquivando por unanimidade essa PEC e, ao mesmo tempo, evidenciando também uma correlação de forças desfavorável à aprovação de qualquer tipo de anistia aos golpistas. Fatores que, por sua vez, reforçam a necessidade de as forças políticas de esquerda e democráticas continuarem vigilantes e mobilizadas, para que se possa impor mais uma derrota à extrema direita. E culminando todo esse processo de mudança da correção de forças, a Câmara de Deputados aprovou em 1º/10, por unanimidade, a isenção do Imposto de Renda para os que ganham até 5 mil reais por mês, além de uma isenção parcial para os que ganham entre 5 e 7,35 mil reais (16 milhões de brasileiros). Como compensação pela redução da receita do governo, haverá aumento da taxação dos mais ricos, que ganham a partir de 600 mil reais por ano. Com isso, além de se dar início a uma maior justiça tributária, o famigerado “ajuste fiscal” não será feito – pela primeira vez há muitos anos – por meio da redução dos gastos sociais e nem onerando os segmentos sociais de menor renda. Em suma, o governo saiu das cordas e passou à ofensiva. O discurso de Lula não alterará, no fundamental, o caráter do PT no curto prazo, nem resolverá as contradições do terceiro governo do presidente. Mas o importante é que ele rema a favor da conjuntura mais favorável e sinaliza que há uma compreensão, que tende a disseminar-se, de que as esquerdas e o governo têm que voltar a defender as suas pautas/bandeiras estruturais e a organizar e mobilizar suas bases sociais, como condição de sobrevivência. A renúncia à crítica do capitalismo e o enclausuramento da disputa política exclusivamente no Parlamento e no Judiciário não são caminhos para derrotar o neofascismo neoliberal (ou o neoliberalismo neofascista). Foi preciso “o nível da água chegar ao pescoço” para essa obviedade ficar evidente. Por fim, está cada vez mais claro que a prioridade do combate à extrema direita não pode se descolar do combate ao neoliberalismo, pois estão ambos cada vez mais unidos contra a democracia, a destruição dos direitos sociais-trabalhistas e a subordinação ao imperialismo. A natureza autoritária do neoliberalismo, já anunciada em 1944 por Hayek em seu livro O caminho da servidão (ao defender a prioridade da “liberdade” do capital em relação à democracia) e no seu apoio, na década de 1970, ao regime fascista e à ditadura de Pinochet no Chile, escancarou-se de vez na nova fase do capitalismo e do imperialismo: um regime de acumulação mundial sob a dominância financeira. A democracia tornou-se, definitivamente, um estorvo para o capitalismo financeirizado. A sua defesa e permanência, com um caráter cada vez mais favorável às classes trabalhadoras e à maioria da população, passou a ser responsabilidade, essencialmente, das forças de esquerda e democráticas.

O agro não é pop: é blindado para pagar menos imposto, por Adriana Fernandes

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Adriana Fernandes, Jornalista em Brasília, onde acompanha os principais acontecimentos econômicos e políticos há mais de 25 anos. Folha de São Paulo, 04/10/2025 O agro não é pop. É blindado à custa do contribuinte brasileiro. A blindagem só tem aumentado graças à poderosa bancada do agronegócio no Congresso, que se agiganta num círculo vicioso em prejuízo a outros setores da economia. Quanto mais forte fica, mais consegue benesses e menos paga impostos. O último bote ocorreu na votação na Câmara do projeto que isenta totalmente do Imposto de Renda quem ganha até R$ 5.000 mensais e cria um imposto mínimo de 10% para as altas rendas. O texto aprovado garante que os grandes produtores rurais, que hoje já têm a renda isenta do pagamento do IR da pessoa física, também não serão alcançados pelo imposto dos milionários. Uma emenda ao projeto de lei excluiu a parcela isenta relativa à atividade rural do valor que será tributado. O privilégio foi garantido pelo relator do projeto, o alagoano e pecuarista Arthur Lima (PP). Nunca é demais lembrar que produtores rurais já têm R$ 110 bilhões da renda isenta por ano. Metade desse dinheiro fica nas mãos de produtores que ganham mais de R$ 1 milhão por ano. Ou seja, não é pequeno produtor, pobrezinho, mas gente de alta renda mesmo. O relator da MP do IOF (1303), o petista Carlos Zarattini (SP), também vai dar uma ajuda extra para manter a isenção do IRPF para as LCAs (Letras do Crédito do Agronegócio), títulos de renda fixa que se transformaram numa farra fiscal com o efeito colateral de distorcer as condições do mercado de outras aplicações. Com esses novos privilégios, a blindagem está perfeita: juros subsidiados; seguro contra quebra de safra; subsídios tributários gigantescos; isenção do IBS e CBS na reforma tributária; imposto mínimo zero, que é usado para comprar LCA com zero de tributação. Se ainda assim o produtor quebrar, a indústria da recuperação judicial também está aí para ajudar. Em tempos de Plano Brasil Soberano, temos a blindagem soberana do agro. Quando o Estado desonera um setor, outros acabam pagando mais. O que os demais setores da economia estão esperando para reagir? É uma farsa o slogan de que o agro é pop.  

Entrevista – Zygmunt Bauman

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Dennis de Oliveira – Revista Cult – 2009 Zygmunt Bauman é um dos pensadores contemporâneos que mais têm produzido obras que refletem os tempos contemporâneos. Nascido na Polônia em 1925, o sociólogo tem um histórico de vida que passa pela ocupação nazista durante a Segunda Guerra Mundial, pela ativa militância em prol da construção do socialismo no seu país sob a direta influência da extinta União Soviética e pela crise e desmoronamento do regime socialista. Atualmente, vive na Inglaterra, em tempo de grande mobilidade de populações na Europa. Professor emérito de sociologia da Universidade de Leeds, Bauman propõe o conceito de “modernidade líquida” para definir o presente, em vez do já batido termo “pós-modernidade”, que, segundo ele, virou mais um qualificativo ideológico. Bauman define modernidade líquida como um momento em que a sociabilidade humana experimenta uma transformação que pode ser sintetizada nos seguintes processos: a metamorfose do cidadão, sujeito de direitos, em indivíduo em busca de afirmação no espaço social; a passagem de estruturas de solidariedade coletiva para as de disputa e competição; o enfraquecimento dos sistemas de proteção estatal às intempéries da vida, gerando um permanente ambiente de incerteza; a colocação da responsabilidade por eventuais fracassos no plano individual; o fim da perspectiva do planejamento a longo prazo; e o divórcio e a iminente apartação total entre poder e política. A seguir, a íntegra da entrevista concedida pelo sociólogo à revista CULT. CULT – Na obra Tempos líquidos, o senhor afirma que o poder está fora da esfera da política e há uma decadência da atividade do planejamento a longo prazo. Entendo isso como produto da crise das grandes narrativas, particularmente após a queda dos regimes do Leste Europeu. Diante disso, é possível pensar ainda em um resgate da utopia? Zygmunt Bauman – Para que a utopia nasça, é preciso duas condições. A primeira é a forte sensação (ainda que difusa e inarticulada) de que o mundo não está funcionando adequadamente e deve ter seus fundamentos revistos para que se reajuste. A segunda condição é a existência de uma confiança no potencial humano à altura da tarefa de reformar o mundo, a crença de que “nós, seres humanos, podemos fazê-lo”, crença esta articulada com a racionalidade capaz de perceber o que está errado com o mundo, saber o que precisa ser modificado, quais são os pontos problemáticos, e ter força e coragem para extirpá-los. Em suma, potencializar a força do mundo para o atendimento das necessidades humanas existentes ou que possam vir a existir. CULT – Por que se fala tanto hoje de “fim das utopias”? Bauman – Na era pré-moderna, a metáfora que simboliza a presença humana é a do caçador. A principal tarefa do caçador é defender os terrenos de sua ação de toda e qualquer interferência humana, a fim de defender e preservar, por assim dizer, o “equilíbrio natural”. A ação do caçador repousa sobre a crença de que as coisas estão no seu melhor estágio quando não estão com reparos; de que o mundo é um sistema divino em que cada criatura tem seu lugar legítimo e funcional; e de que mesmo os seres humanos têm habilidades mentais demasiado limitadas para compreender a sabedoria e harmonia da concepção de Deus. Já no mundo moderno, a metáfora da humanidade é a do jardineiro. O jardineiro não assume que não haveria ordem no mundo, mas que ela depende da constante atenção e esforço de cada um. Os jardineiros sabem bem que tipos de plantas devem e não devem crescer e que tudo está sob seus cuidados. Ele trabalha primeiramente com um arranjo feito em sua cabeça e depois o realiza. Ele força a sua concepção prévia, o seu enredo, incentivando o crescimento de certos tipos de plantas e destruindo aquelas que não são desejáveis, as ervas “daninhas”. É do jardineiro que tendem a sair os mais fervorosos produtores de utopias. Se ouvimos discursos que pregam o fim das utopias, é porque o jardineiro está sendo trocado, novamente, pela ideia do caçador. CULT – O que isso significa para a humanidade de hoje? Bauman – Ao contrário do momento em que um dos tipos passou a prevalecer, o caçador não podia cuidar do global equilíbrio das coisas, natural ou artificial. A única tarefa do caçador é perseguir outros caçadores, matar o suficiente para encher seu reservatório. A maioria dos caçadores não considera que seja sua responsabilidade garantir a oferta na floresta para outros, que haja reposição do que foi tirado. Se as madeiras de uma floresta forem relativamente esvaziadas pela sua ação, ele acha que pode se deslocar para outra floresta e reiniciar sua atividade. Pode ocorrer aos caçadores que um dia, em um futuro distante e indefinido, o planeta poderia esgotar suas reservas, mas isso não é a sua preocupação imediata, isso não é uma perspectiva sobre a qual um único caçador, ou uma “associação de caçadores”, se sentiria obrigado a refletir, muito menos a fazer qualquer coisa. Estamos agora, todos os caçadores, ou ditos caçadores, obrigados a agir como caçadores, sob pena de despejo da caça, se não de sermos relegados das fileiras do jogo. Não é de admirar, portanto, que, sempre que estamos a olhar a nosso redor, vemos a maioria dos outros caçadores quase sempre tão solitária quanto nós. Isso é o que chamamos de “individualização”. E precisamos sempre tentar a difícil tarefa de detectar um jardineiro que contempla a harmonia preconcebida para além da barreira do seu jardim privado. Nós certamente não encontraremos muitos encarregados da caça com interesse nisso, e sim entretidos com suas ambições. Esse é o principal motivo para as pessoas com “consciência ecológica” servirem como alerta para todos nós. Esta cada vez mais notória ausência do jardineiro é o que se chama de “desregulamentação”. CULT – Diante disso, a esquerda não tem possibilidades de ter força social? Bauman – É óbvio que, em um mundo povoado principalmente por caçadores, não há espaço para a esquerda utópica. Muitas pessoas não tratam seriamente propostas utópicas. Mesmo que saibamos como fazer o mundo melhor, o grande enigma é se há recursos e força suficientes para poder fazê-lo. Essas forças poderiam ser exercidas pelas autoridades do engenhoso sistema do Estado-nação, mas, como observou Jacques Attali em La voie humaine, “as nações perderam influência sobre o curso das coisas e delegaram às forças da globalização todos os meios de orientação do mundo, do destino e da defesa contra todas as variedades do medo”. E as forças da globalização são tudo, menos instintos ou estratégias de “jardineiros”, favorecem a caça e os caçadores da vez. O Thesaurus [dicionário da língua inglesa, de 1892] de Roget, obra aclamada por seu fiel registro das sucessivas mudanças nos usos verbais, tem todo o direito de listar o conceito de utópico como “fantasia”, “fantástico”, “fictício”, “impraticável”, “irrealista”, “pouco razoável” ou “irracional”. Testemunhando assim, talvez, o fim da utopia. Se digitarmos a palavra utopia no portal de buscas Google, encontraremos cerca de 4 milhões e 400 mil sites, um número impressionante para algo que estaria “morto”. Vamos, porém, a uma análise mais atenta desses sites. O primeiro da lista e, indiscutivelmente, o mais impressionante é o que informa aos navegantes que “Utopia é um dos maiores jogos livres interativos online do mundo, com mais de 80 mil jogadores”. Eu não fiz uma pesquisa em todos os 4 milhões de sites listados, mas a impressão que tive após uma leitura de uma amostra aleatória é que o termo utopia aparece em marcas de empresas de cosméticos, de design de interiores, de lazer para feriados, bem como de decoração de casas. Todas as empresas fornecem serviços para pessoas que procuram satisfações individuais e escapes individuais para desconfortos sofridos individualmente. CULT – Nesta sociedade líquido-moderna, como fica a ideia de progresso e de fluxos de tempo? Bauman – A ideia de progresso foi transferida da ideia de melhoria partilhada para a de sobrevivência do indivíduo. O progresso é pensado não mais a partir do contexto de um desejo de corrida para a frente, mas em conexão com o esforço desesperado para se manter na corrida. Você ouve atentamente as informações de que, neste ano, “o Brasil é o único local com sol no inverno”, neste inverno, principalmente se você quiser evitar ser comparado às pessoas que tiveram a mesma ideia que você e foram para lá no inverno passado. Ou você lê que deve jogar fora os ponchos que estiveram muito em voga no ano passado e que agora, se você os vestir, parecerá um camelo. Ou você aprende que usar coletes e camisetas deve “causar” na temporada, pois simplesmente ninguém os usa agora. O truque é manter o ritmo com as ondas. Se não quiser afundar, mantenha-se surfando – e isso significa mudar o guarda-roupa, o mobiliário, o papel de parede, o olhar, os hábitos, em suma, você mesmo, quantas vezes puder. Eu não precisaria acrescentar, uma vez que isso deva ser óbvio, que essa ênfase em eliminar as coisas – abandonando-as, livrando-se delas –, mais que sua apropriação, ajusta-se bem à lógica de uma economia orientada para o consumidor. Ter pessoas que se fixem em roupas, computadores, móveis ou cosméticos de ontem seria desastroso para a economia, cuja principal preocupação, e cuja condição sine qua non de sobrevivência, é uma rápida aceleração de produtos comprados e vendidos, em que a rápida eliminação dos resíduos se tornou a vanguarda da indústria. CULT – Neste mundo de “caçadores”, e não de jardineiros, não há então uma utopia possível? O “aqui e agora” se impõe como a única referência da existência humana? Bauman – O problema é que, uma vez tentada, a caça se transforma em compulsão, dependência e obsessão. Atingir uma lebre é um anticlímax que só se torna atraente com a perspectiva de uma nova caça, com a esperança de que essa caça será a mais deliciosa (ou a única deliciosa?). Apanhar a lebre prenuncia o fim de todas as expectativas, salvo se outra caçada for planejada e imediatamente empreendida. Será que isso é o fim da utopia? Em um aspecto, é – na medida em que as primeiras utopias modernas previam um ponto em que o tempo chegaria a uma paragem, na verdade, o fim do tempo como história. Não existe tal ponto na vida de um caçador, um momento em que se poderia dizer que o trabalho foi feito, a missão, cumprida, e, assim, poder-se-ia olhar para a frente, para o descanso e gozo do saque, a partir de agora até a eternidade. Em uma sociedade de caçadores, uma perspectiva de fim da caça não é tentadora, mas assustadora – uma vez que significa uma derrota pessoal. Os chifres anunciam o início de uma nova aventura, a doce memória e a ressurreição das aventuras do passado; não haverá fim à emoção universal… Só eu que fiquei de lado, excluído, impedido de usufruir as alegrias dos outros, apenas um espectador passivo do outro lado do muro, apenas vendo a outra parte, mas proibido de participar. Se, em uma vida contínua e continuada, a caça é uma utopia, ela é – ao contrário das outras – uma utopia sem nenhum efeito. A utopia torna-se um fato bizarro se for medida por normas ortodoxas; as utopias clássicas prometiam o fim da labuta, mas a utopia dos caçadores encapsula o sonho de uma labuta que nunca termina. Ao contrário das utopias de outrora, a utopia dos caçadores não oferece sentido nenhum à vida, verdadeira ou fraudulenta. Ela apenas ajuda a perseguir o significado da vida longe do espírito da vida. Tendo redesenhado o curso da vida em uma interminável série de perseguições autocentradas, cada episódio vivido como uma abertura para o próximo, ela (a utopia) não oferece oportunidade de reflexão sobre a direção e o sentido da sua totalidade. Quando vem finalmente uma ocasião, um momento de queda ou de proibição da vida de caça, geralmente é tarde demais para a reflexão sobre a maneira de suportar a vida, da própria vida como a vida dos outros: é demasiado tarde para se opor à forma atual da vida. CULT – Mas os sonhos persistem, não? O ser humano não pode viver sem acreditar em alguma coisa, ainda que seja algo fora do seu domínio imediato. E o desejo por um outro mundo possível persiste e mobiliza vários setores da sociedade, particularmente com a percepção cada vez mais forte das dificuldades de resolver os problemas da humanidade. Bauman – Em um notável artigo sobre a persistência da utopia intitulado “Persistent utopia” (2008), Miguel Abensour cita William Morris (A dream of John Ball, Elec Book, 2001), que escreve em 1886 que os homens lutam e perdem a batalha, e as coisas que eles lutaram para acontecer, apesar da derrota, transformam-se para não ter o mesmo significado que antes, e outros homens têm de lutar por aquilo que agora se entende por outro nome. Morris escreveu sobre os seres humanos como tais e sugere que lutam por uma “coisa que não é”; é a forma como as pessoas são, é o caráter do ser humano. O “não” (nicht) como Ernst Bloch salientou “é a falta de algo e também o fugir do que falta”; assim, é o que falta para conduzir. Se estivermos de acordo com Morris, iríamos sempre ter utopias a ser elaboradas, já que expressões sistematizadas como essa fazem parte do aspecto crucial da natureza humana. Utopias foram todas as tentativas de enunciar e descrever em detalhes a coisa para a qual a próxima luta seria dirigida. Notamos, contudo, que todas as utopias escritas por Morris, antecessores e contemporâneos foram esquemas de um mundo em que as batalhas de coisas que não são não estão longe dos cartões. Essas batalhas não eram exigidas. Então, se estivermos de acordo com Morris, a natureza das coisas para as quais as pessoas lutavam era o fim da guerra, o fim das necessidades e dos deveres, e o desejo e a conveniência de ir à luta. E a grande coisa que manteve proveniente a ideia de lutar não pensando na batalha perdida, mas em seu significado e em incitar outras pessoas a lutar novamente pela mesma coisa com outro nome, foi o Estado, que não usa as mãos para lutar. Temos as hostilidades que reaparecem após o armistício, que ficam muito aquém do êxtase de quem lutou e esperava pela paz. A inquietação do compulsivo, obsessivo, viciado caçador de utopias foi impelida e sustentada por um desejo de descanso. As pessoas corriam para a batalha que sempre persegue o sonho. Outra característica das utopias de William Morris, e por quase um século depois, foi o seu radicalismo. CULT – O que vem a ser “radical”? Bauman – Atos, empresas, meios e medidas podem ser chamados de “radicais” quando eles chegam até suas “raízes”, às de um problema, um desafio, uma tarefa. Note, contudo, que o substantivo latino radix, do qual se origina o adjetivo “radical”, diz respeito não só às raízes, mas também a fundações e origens. O que essas três noções – raiz, fundações e origens – têm em comum? Dois atributos. Primeiro: em circunstâncias normais, o material de todos os três são referentes escondidos da vista e impossíveis de ser analisados, muito menos tocados diretamente. Qualquer coisa que tenha crescido em um deles, como troncos ou caules, no caso das raízes, a edificação, no caso das fundações, ou as consequências, no caso das origens, foi sobreposta sobre sua parte inferior, cobriu-a e depois emergiu escondida da visão. Por isso, tem que ser, primeiro, perfurada, as partes lançadas fora do caminho ou tomadas à parte, se se deseja um dos objetos segmentados quando pensar ou agir radicalmente. Segundo: no decurso do trilhar para esses objetivos, o crescimento desse material deve ser desconstruído, ou materialmente empurrado para fora do caminho, ou desmantelado. A probabilidade de que, a partir do trabalho de desconstrução/desmontagem das metas, emerjam todas as deficiências é alta. Tomar uma atitude radical sinaliza para a intenção da destruição – ou melhor, de assumir o risco da destruição, mais frequentemente o significado de uma destruição criativa –, destruição no sentido de um lugar para limpeza, ou para lavrar o solo, preparando-o para acomodar outros tipos de raízes. A política é radical se ela aceita todas as condições e se orienta por todas essas intenções e objetivos. CULT – Uma das características dos tempos líquido-modernos é a decadência do planejamento a longo prazo. É possível um pensamento crítico e uma utopia neste contexto de queda da perspectiva do planejamento? Bauman – Russel Jacoby propõe distinguir duas tradições, aparentemente coincidentes, mas não necessariamente ligadas, tradições do moderno pensamento utópico: o modelo (o projeto utopista de traçar o futuro em polegadas e minutos) e a tradição iconoclasta (os utopistas iconoclastas sonharam com uma sociedade superior, mas recusaram-lhe dar medidas precisas). Proponho que se mantenha o nome, como sugere Jacoby para o segundo, como tradição da utopia do “não projeto”. A característica definidora dessa tradição do segundo é a intenção de desconstruir, de desmistificar e, em última instância, de desacreditar os valores da vida dominante e suas estratégias de tempo, através da demonstração de que, contrariamente às crenças atuais, em vez de assegurarem uma sociedade ou vida superior, constituem um obstáculo no caminho para ambas. Em outras palavras, o que eu proponho para descompactar o conceito de utopia iconoclasta, em primeiro lugar, é sobretudo a afirmação de uma possibilidade de uma outra realidade social – possibilidade ainda aterrada na revisão crítica dos meios e formas de apresentar a vida. Sendo este o principal interesse e a preocupação do utopista iconoclasta, não é de admirar que a alternativa ao atual permaneça incompleta; a principal causa do utopismo iconoclasta é a possibilidade de uma alternativa à realidade social, apesar de o seu desenho estar pouco desenvolvido. As utopias iconoclastas, presumo, são aberta ou tacitamente o caminho para uma sociedade superior, não se conduzem por meio de desenhos ou conselhos, mas sim por meio da reflexão crítica sobre práticas e crenças existentes de forma a – para recordar uma ideia de Bloch – explicitar que “uma coisa está faltando” e assim “inspirar a unidade para a sua criação e recuperação”.