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A Economia de Francisco, por Luiz Gonzaga Belluzzo

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Nossos olhares perderam de vista a ideia de comunidade cristã, expressão repetida no texto do papa e incrustrada nas origens do cristianismo. por Luiz Gonzaga Belluzzo – Jornal GGN – 22/04/2025 O Editorial das “Notícias do Vaticano” relembra: na noite de 13 de março de 2013, Jorge Mario Bergoglio apareceu pela primeira vez na varanda central da Basílica de São Pedro vestido de branco. A sua saudação inicial já continha alguns traços salientes do pontificado: a oração por «uma grande fraternidade» no mundo dilacerado pela injustiça, violência e guerras. Meses após a consagração papal, Francisco ofereceu aos católicos e cristãos a Primeira Exortação Apostólica “Evangelii Gaudium”. Assim como as encíclicas Rerum Novarum de Leão XIII, Mater et Magistra e Pacem in Terris de João XXIII, a exortação apostólica de Francisco, um texto cuidadosamente construído, aborda as vicissitudes e alegrias da vida cristã no mundo contemporâneo. Os olhares do nosso tempo perderam de vista a ideia de comunidade cristã, expressão tantas vezes repetida no texto do papa e incrustrada nas origens do cristianismo. Jacques Le Goff diz com razão que no cristianismo primitivo e no judaísmo a eternidade não irrompia no tempo (abstrato) para “vencê-lo”. A eternidade não é a “ausência do tempo”, mas a dilatação do tempo ao infinito. Depois da encarnação, a escatologia judaico-cristã sofre uma transmutação: o tempo adquire uma dimensão histórica. Cristo trouxe a certeza da eventualidade da salvação, mas cabe à história coletiva e individual realizar essa possibilidade oferecida aos homens pelo sacrifício da cruz e pela ressurreição. “Não nos é pedido que sejamos imaculados, mas que não cessamos de melhorar, vivamos o desejo profundo de progredir no caminho do Evangelho, e não deixemos cair os braços”. O cristianismo – o mistério libertador da Encarnação – foi um divisor de águas na história da humanidade, um movimento revolucionário, nascido das crueldades e das sabedorias do mundo grego-romano. Em uma entrevista sobre seu filme Satyricon, Fellini desvelou a alma que se escondia no rosto de seus personagens no crepúsculo do império romano. As máscaras se debatiam entre o tédio das concupiscências e as angústias da desesperança. Para o grande Federico, o filme escancarava “a nostalgia do Cristo que ainda não havia chegado” Tal como nos personagens do Satyricon, percebo nos católicos de hoje a nostalgia do Cristo que não voltou. Mas, creia-me o leitor, ele já esteve entre nós encarnado na simplicidade e na sabedoria camponesa de João XXIII e parece ter retornado nos exemplos de Francisco. João XXIII escreveu na Mater et Magistra: a Santa Igreja, apesar de ter como principal missão a de santificar as almas e de fazê-las participar dos bens da ordem sobrenatural, não deixa de preocupar-se ao mesmo tempo com as exigências da vida cotidiana dos homens, não só no que diz respeito ao sustento e às condições de vida, mas também no que se refere à prosperidade e à civilização em seus múltiplos aspectos, dentro do condicionalismo das várias épocas. Francisco rejeita as formas de religiosidade que fazem recuar o espírito para os recônditos do individualismo, uma espécie de “consumismo do sagrado” que ignora os fundamentos comunitários do cristianismo. “Mais do que o ateísmo, o desafio que hoje se nos apresenta é responder adequadamente à sede de Deus de muitas pessoas, para que não tenham de ir apagá-la com propostas alienantes ou com um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro. Se não encontram na Igreja uma espiritualidade que os cure, liberte, encha de vida e de paz, ao mesmo tempo que os chame à comunhão solidária e à fecundidade missionária, acabarão enganados por propostas que não humanizam nem dão glória a Deus”. Um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro é a negação do cristianismo. Na Encíclica Fratelli Tutti, Franscisco aborda as vicissitudes da vida moderna: “A mera soma de interesses individuais não é capaz de gerar um mundo melhor para a humanidade. Sequer pode nos preservar de tantos males que se tornam cada vez mais globais. Mas o individualismo radical é o vírus mais difícil de ser vencido. Engana. Nos faz crer que tudo consiste em dar rédea solta às próprias ambições, como se a acumulação de ambições e seguranças individuais pudessem garantir a construção do bem comum”. Na Encíclica, Francisco reivindica uma política econômica ativa “… que promova a diversidade produtiva e a criatividade empresarial” para que seja possível aumentar os empregos em vez de reduzi-los. A especulação financeira com lucro fácil como um fim fundamental continua a causar estragos. Além disso, sem formas internas de solidariedade e confiança falhou”. Já em 2015, durante outra audiência no Vaticano, o Papa disse que “o dinheiro é esterco do diabo”, acrescentando que, quando o capital se torna um ídolo, ele “comanda as escolhas do homem”. Aprisionado nas engrenagens impessoais da economia sem alma, o Homem sem Escolhas entrega seu destino ao diabo e seus estercos. Na edição de 17/5/2018, o Osservatore Romano registra a divulgação do documento Oeconomicae et pecuniariae quaestiones elaborado pela Congregação para a Doutrina da Fé. O texto de 16 páginas contém “considerações para um discernimento ético acerca de alguns aspectos do atual sistema econômico-financeiro”. O documento foi apresentado na Sala de Imprensa pelo arcebispo Luis Francisco Ladaria Ferrer e pelo cardeal Peter Kodwo Appiah Turkson. Já na introdução o texto revela seu propósito de avaliar a supremacia dos mercados financeiros – os estercos do Diabo – e suas consequências sobre a vida de homens e mulheres que habitam o mundo dos vivos. “A recente crise financeira poderia ter sido uma ocasião para desenvolver uma nova economia mais atenta aos princípios éticos e para uma nova regulamentação da atividade financeira, neutralizando os aspectos predatórios e especulativos, e valorizando o serviço à economia real”. Em carta aos jovens economistas do mundo, Papa Francisco sugeriu que se reunissem na cidade de Assis, Itália, entre 26 e 28 de março de 2020 para repensar uma nova doutrina econômica para o mundo. Uma doutrina que vá além das “diferenças de credo e nacionalidade”, inspirada “na fraternidade, sobretudo para os pobres e excluídos”. Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia (IE) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (1985-1987) e de Ciência e Tecnologia de São Paulo (1988-1990). Belluzzo é formado em Direito e Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), pós-graduado em Desenvolvimento Econômico pela Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) e doutor em economia pela Unicamp. Fundador da Facamp e conselheiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), é autor dos livros “Os Antecedentes da Tormenta”, “Ensaios sobre o Capitalismo no Século XX”, e coautor de “Depois da Queda, Luta Pela Sobrevivência da Moeda Nacional”, entre outros. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists. Em 2005, recebeu o Prêmio Intelectual do Ano (Prêmio Juca Pato).    

O braço de ferro entre EUA e China, por Celso Ming

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Guerra comercial em curso já causa prejuízos, embora seja difícil ainda prever quais desdobramentos ela tomará com o recente recuo de Trump Celso Ming – O Estado de São Paulo – 24/04/2025 Tudo se passa como se a China estivesse pagando para ver até onde vai a capacidade do governo de Donald Trump de derrubar sua capacidade de resistência. A Imposição de uma brutal tarifa de importação de 145% pretendeu levar a China ao nocaute. O presidente Xi Jinping retrucou, impôs tarifa de 125% sobre os produtos norte-americanos, mas advertiu que tarifas superiores a 100% já não fariam sentido econômico. Agora, Trump avisa que está disposto a negociar, dando a entender que a jogada dos 145% pretendeu apenas buscar um ponto que aumentasse seu poder de barganha. Na tréplica, a China passou o recado de que não pretende negociar – o que indica que duvida da capacidade de resistência do governo Trump à política agressiva que ele próprio criou. Os Estados Unidos reconhecem que sua economia está em declínio. Se o objetivo declarado do presidente Trump é recolocar os Estados Unidos em primeiro lugar (“Make America Great Again”) é porque já não são os primeiros do mundo. O segundo desdobramento possível é o de que o governo da China resista às pressões comerciais de Trump e volte sua economia para o desenvolvimento do mercado interno. Nesse caso, não será capaz de sustentar os atuais níveis de superávit comercial, mas, também, reduzirá as importações do “made in USA”. É improvável que essa atitude leve a manufatura de volta para os Estados Unidos. Qualquer que seja o resultado, incluídos os desdobramentos que ocupem zonas intermediárias entre essas duas situações, é difícil que defina novo equilíbrio de forças. Mais cedo ou mais tarde, haverá um desfecho que hoje ninguém sabe qual será. Como ficaria o Brasil? À primeira vista, tende a se beneficiar, especialmente com uma demanda maior de commodities e de produtos eletrointensivos. No entanto, nenhum proveito terá se antes não cuidar da arrumação da casa, especialmente do desequilíbrio das contas públicas, que hoje sabota o futuro da economia do País.  

O capitalismo é um jogo de soma zero? por Bruno Farias

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Bruno Farias – A Terra é Redonda – 22/04/2025 A dinâmica histórica do capitalismo não se resume a essa operação aritmética Para responder a essa pergunta, é preciso primeiro esclarecer o que significa “soma zero”. Matematicamente, dizemos que uma soma é zero quando um número, somado ao seu oposto, anula-se – por exemplo, 7 + (–7) = 0. Se aplicarmos essa lógica à economia, a ideia seria de que o enriquecimento de um agente implicaria, necessariamente, o empobrecimento de outro, de modo que a riqueza total criada continuasse inalterada. No entanto, a história do capitalismo mostra que a questão não se resume a essa operação aritmética. Ao longo dos séculos, o capitalismo demonstrou sua capacidade de produzir riqueza – a pobreza extrema caiu, a expectativa de vida aumentou e a qualidade de vida, mesmo que de maneira desigual, melhorou em diversas partes do mundo. Mas a conquista desse progresso tem um custo que vai muito além de aspectos meramente econômicos. O sistema não é, em termos estritamente matemáticos, um jogo de soma zero, porque a riqueza global gerada pelo capitalismo, historicamente, cresceu. Contudo, essa prosperidade é distribuída de forma desigual. Quem detém o poder – sejam países, empresas ou indivíduos – garante a si mesmo as maiores fatias limitando o quanto os demais podem avançar, forçando-os a permanecer nas margens dessa divisão imperfeita. Como mostrou o economista sul-coreano Ha-Joon Chang no livro Chutando a escada, os países que hoje figuram entre os mais desenvolvidos utilizaram e utilizam medidas protecionistas e intervenções estatais para fomentar a própria industrialização – ou, como ele coloca, “chutaram a escada” que depois se fecharia para os que desejam trilhar o mesmo caminho. Essa é a dinâmica histórica do sistema capitalista, que ao distribuir a riqueza de maneira “não exata”, favorece aqueles que já acumulam poder e reforça uma estrutura de dominação, onde o enriquecimento de alguns decorre do crescimento limitado ou empobrecimento de outros. A globalização intensifica essa dinâmica. Com a integração dos mercados internacionais, os fluxos de capitais e mercadorias cresceram de forma exponencial, mas, ao mesmo tempo, as relações de poder e os termos de troca favoreceram historicamente os países industrializados. Esses países, investidos em tecnologia e cadeias produtivas sofisticadas, determinam as regras do comércio global. Já os países inseridos como exportadores de commodities enfrentam a volatilidade dos preços e uma dependência, mantendo certos agentes presos a condições de exploração e vulnerabilidade. Não apenas isso, é preciso colocar nessa análise uma crítica do ponto de vista ético e moral. Se, do ponto de vista estritamente econômico, o capitalismo gera um crescimento absoluto, ao introduzirmos a dimensão dos custos humanitários, a lógica se transforma. O acúmulo de capital foi e é construído a partir de um processo humanitário custoso, como, por exemplo, a escravidão, o genocídio de comunidades tradicionais e a expropriação de culturas e territórios. O custo humanitário dessa história – as vidas, as culturas e os saberes que foram sacrificados – impõe um preço que, quando somado à conta, faz o sistema capitalista ser um jogo de soma zero, para não dizer de resultado negativo. O geógrafo Milton Santos, ao analisar o impacto da globalização e do capitalismo contemporâneo, observava que “a globalização é o processo que materializa a concentração de poder e de riqueza, transformando espaços e subordinando culturas”. Esse olhar crítico nos mostra que o avanço econômico conquistado por meio do capitalismo não pode ser separado das consequências éticas e sociais que ele impõe. Ao mesmo tempo em que promove inovações e melhorias em certos indicadores de desenvolvimento, o sistema se sustenta sobre uma estrutura que marginaliza os mais vulneráveis e perpetua uma desigualdade estrutural. A perspectiva marxista reforça essa crítica. Para Karl Marx, o capitalismo se apoia na extração da mais-valia – a diferença entre o valor produzido pelo trabalhador e o que ele recebe –, o que possibilita a concentração de riqueza nas mãos de poucos. Essa lógica de exploração garante que o sistema funcione não como um mero gerador de riqueza, mas também como um mecanismo de dominação e exclusão. Mesmo que o “bolo” econômico cresça, a fatia que cada ator recebe pode permanecer estagnada ou, pior, diminuir em termos relativos, como se o ganho de alguns ocorresse exatamente à custa da perda de outros – nessa perspectiva de uma análise ampliada do que seria um jogo de soma zero quando os custos sociais, ambientais e culturais e etc. são devidamente computados. Se torna fácil perceber quando refletimos sobre a inserção dos países no comércio internacional. Economias que dependem da exportação de produtos primários e commodities sofrem com termos de troca desfavoráveis e uma vulnerabilidade que não acompanha os avanços tecnológicos e produtivos dos países centrais. Enquanto os centros de poder acumulam capital e dirigem as regras do mercado global, os países periféricos permanecem em situação de dependência e têm sua capacidade de desenvolvimento limitada por uma estrutura internacional desigual. Enfim, o capitalismo, sob o olhar estritamente econômico, não é um jogo de soma zero – ele cria riqueza e transforma o patrimônio global. Mas se considerarmos também os custos éticos, sociais e humanitários, bem como os mecanismos de extração da mais-valia que sustentam a acumulação de capital, percebemos que, na prática, o sistema impõe um resultado nulo ou negativo. Bruno Farias é graduado em economia e graduando em matemática.  

Piketty: As reformas tributárias de que precisamos

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Premiado relatório de Gabriel Zucman aponta, de forma corajosa, a dimensão crítica das evasões fiscais. Propõe taxar bilionários e exportações de multinacionais – só assim a economia pode reencontrar sua essência histórica, política e social Thomas Piketty – OUTRAS MÍDIAS – 17/05/2023 Alegrem-se: a American Economic Association (AEA), principal organização profissional para economistas nos Estados Unidos, acaba de conceder a Medalha Clark a Gabriel Zucman por seu trabalho sobre concentração de riqueza e evasão fiscal. Concedido anualmente a um laureado com menos de 40 anos, a distinção recompensa notavelmente o trabalho inovador que demonstra a considerável importância da evasão fiscal por parte dos ricos, inclusive nos países escandinavos, que são rapidamente considerados modelos de virtude. Dotado de uma imensa capacidade de trabalho, uma rara atenção aos detalhes e um talento inigualável para desenterrar novos dados e fazê-los falar, Gabriel Zucman também revelou a dimensão insuspeita da evasão do imposto de renda de empresas por multinacionais de todos os países. Hoje diretor do Observatório Fiscal da União Europeia, ele dedica a mesma energia para encontrar soluções para os males que documenta. Num dos seus primeiros relatórios,[1] o Observatório demonstrou que os Estados-membros da União Europeia podiam optar por ir mais longe do que a taxa mínima de 15% fixada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) (demasiado baixa e amplamente contornada), sem esperar pela unanimidade. Ao impor a cada multinacional que pretenda exportar bens e serviços uma taxa de 25% sobre os seus lucros – a mesma que pagam os produtores estabelecidos em território nacional – a França obteria uma receita adicional de 26 bilhões de euros e encorajaria outros países a fazer o mesmo. O fato da American Economic Association optar por premiar esse trabalho é importante, porque mostra que o coração da profissão começa a se dar conta da insustentabilidade do atual modelo social e fiscal. Não exageremos: os economistas sempre foram menos monolíticos do que às vezes se imagina, inclusive nos Estados Unidos. Em 1919, o presidente da American Economic Association, Irving Fisher, optou por dedicar seu “discurso presidencial” à questão das desigualdades. Ele explica sem rodeios aos colegas que a crescente concentração da riqueza caminha para se tornar o principal problema econômico da América, que corre o risco, se não tomarmos cuidado, de se tornar tão desigual quanto a velha Europa (então percebida como oligárquica e contrária ao espírito norte-americano). Irving Fisher mostra-se perplexo com as estimativas publicadas em 1915 por Willford King de que “2% da população possuem mais de 50% da riqueza” e que “dois terços da população possuem quase nada”, o que lhe sugere “uma distribuição não democrática da riqueza” ameaçando os próprios alicerces da sociedade norte-americana. Victory tax É nesse contexto que os Estados Unidos aplicaram de 1918-1920 (sob o mandato do presidente democrata Wilson) taxas superiores a 70% no topo da hierarquia de renda, antes de todos os outros países. Quando Franklin D. Roosevelt foi eleito em 1932, o terreno intelectual já estava preparado há muito para a implementação da progressividade tributária em larga escala, com o famoso Victory tax (Imposto da Vitória) de 88% em 1942 e 94% em 1944. Os Estados Unidos aplicarão taxas semelhantes na Alemanha e Japão: no espírito da época, essas instituições tributárias foram vistas como um complemento indispensável das instituições democráticas, caso contrário estas corriam o risco de cair em uma deriva plutocrática. Essas lições infelizmente foram esquecidas, e os Estados Unidos e grande parte do mundo entraram, desde as décadas de 1980 e 1990, em uma nova espiral oligárquica. Certamente seria um exagero jogar toda a responsabilidade sobre os economistas. Se a contra-ofensiva lançada nos anos 1960 e 1970 por Milton Friedman ou Friedrich Hayek conseguiu dar frutos, é também pela falta de apropriação coletiva das instituições do New Deal por parte dos cidadãos e do movimento social e trabalhista. A batalha intelectual também foi travada nos departamentos de filosofia: quando John Rawls publicou sua Teoria da Justiça em 1971, lançou as bases conceituais de um ambicioso programa igualitário, mas permaneceu relativamente abstrato em suas saídas práticas. Ao mesmo tempo, Milton Friedman e Friedrich Hayek são perfeitamente específicos sobre seu objetivo de demolição da progressividade tributária. Desregulamentação e liberalização O fato é que os economistas têm uma responsabilidade particular no movimento de desregulamentação e liberalização das últimas décadas. Há, claro, os efeitos ligados à busca por financiamento privado, que vira os comentários à direita. Em 2016, quando os democratas Bernie Sanders e Elizabeth Warren endossaram propostas ousadas de imposto sobre a riqueza (com taxas subindo de 6% a 8% ao ano acima de US$ 1 bilhão), o ex-secretário do Tesouro de Bill Clinton e presidente de Harvard, Larry Summers – grande defensor da liberalização absoluta dos fluxos de capital – quase se estrangula e não hesita em atacar violentamente pesquisadores como Gabriel Zucman que defendem essas propostas (que, no entanto, são simples senso comum, dadas as alíquotas quase zero do imposto de renda pago pelos bilionários) . Existem também razões estritamente intelectuais ligadas à evolução da disciplina de economia. Para dar a si mesma um fascínio científico autônomo, a economia tendeu a se isolar da história e da sociologia e a naturalizar as instituições estudadas (mercado, propriedade, competição), esquecendo no processo seu enquadramento social e político em sociedades particulares. Os modelos matemáticos podem ser úteis se forem usados com sabedoria e não como um fim em si mesmos. A técnica estatística pode ser utilizada desde que não se perca de vista o olhar crítico sobre as fontes e categorias. Ainda há um longo caminho a percorrer para que a economia política e histórica recupere seu lugar de direito no interior das ciências sociais. Thomas Piketty é diretor de pesquisas na École des Hautes Études en Sciences Sociales e professor na Paris School of Economics. Autor, entre outros livros, de O capital no século XXI (Intrinseca). Tradução: Aluisio Schumacher para o portal Fórum 21. Publicado pelo jornal Le Monde. Nota [1] Collecting the tax deficit of multinational companies: simulations for the European Union, Mona Barake, Theresa Neef, Paul-Emmanuel Chouc, Gabriel Zucman, June 2021.  

Decisões estratégicas

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Nos últimos dias a economia internacional vem passando por grandes movimentações econômicas e produtivas, inúmeros acordos comerciais foram deixados de lado, discursos agressivos e violentos ganharam relevância na sociedade global, aliados históricos e estratégicos entraram em confrontos verbais, alíquotas e tarifas comerciais foram majoradas sem respeito a contratos assinados entre nações e medidas agressivas foram impostas para todas as nações, gerando mais incertezas, preocupações crescentes e um ambiente de negócio bastante agressivo, com um aumento das rivalidades e das hostilidades. Muitos analistas internacionais acreditam que as medidas implementadas pelo governo norte-americano têm por objetivos forçar uma reindustrialização de sua economia, pressionando os agentes produtivos nacionais e internacionais a aumentarem seus investimentos internos, elevando os dispêndios da economia dos Estados Unidos, aumentando a contratação de trabalhadores locais, incrementando a renda interna, dinamizando os setores produtivos e contribuindo para a melhora da situação social dos cidadãos. A grande pergunta que a sociedade global está se fazendo é, se esta estratégia arriscada e agressiva, adotada pelo governo de Donald Trump, será exitosa para induzir a economia norte-americana para o caminho da reindustrialização? Os Estados Unidos, claramente, perderam espaço no setor industrial global, depois de construir setores industriais de ponta durante séculos, a indústria norte-americana foi um dos grandes responsáveis pelo desenvolvimento da indústria global, ator fundamental na estruturação da inovação mundial, criando setores, desenvolvendo tecnologias, revolucionando máquinas e produtos globais, mas perdeu espaço na corrida internacional para outros atores globais, principalmente para a China. O país asiático se transformou de uma sociedade rural, atrasada tecnologicamente e marcada por grande pobreza, imensa miséria e degradação material, nestes últimos quarenta anos, a sociedade chinesa passou por grandes mutações, revolucionando a educação, investindo fortemente em ciência e tecnologia e adotando decisões estratégicas, onde destacamos a atuação do Estado chinês como indutor do desenvolvimento industrial, protegendo setores produtivos, incentivando a competição externa no mercado global e cobrando o incremento da produtividade de seus atores econômicos, além de atrair empresas e corporações globais, exigindo a transferência de tecnologia e fortalecendo as compras internas para solidificar a economia nacional, gerando emprego, melhorando as condições de vida e transformando todo o ambiente de negócio. Neste momento, encontramos um conflito de grandes atores na economia internacional, a maioria dos estrategistas internacionais acreditam que as apostas do governo norte-americano não terá o êxito esperado e, ao contrário, tendem a gerar um incremento nos preços internos, desestruturação de setores externos e o aumento do desemprego dos cidadãos norte-americanos, aumentando os desequilíbrios internos e gerando pressões externas, que podem gerar conflitos militares, cujos resultados imediatos são impossíveis de serem mensurados. As medidas unilaterais adotadas pelo governo norte-americano tendem a agravar os desequilíbrios globais, aumentando as incertezas no interior das nações, amedrontando os setores produtivos e aumentando as volatilidades dos trabalhadores, impactando sobre toda a sociedade mundial. Diante dos desafios da sociedade global, o Brasil precisa estimular decisões estratégicas, compreender o cenário mundial de incertezas e de rivalidades, construir consensos internos em prol do desenvolvimento econômico, superar uma visão subserviente que domina grande parte da elite nacional e se concentrar em discussões estratégicas e deixando de lado conversas equivocadas, desnecessárias e ultrapassadas que combinam com a impunidade e a degradação moral. Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Jorge Mario Bergoglio (1936-2025), por Tales Ab´Saber

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Tales Ab´Saber – A Terra é Redonda – 21/04/2025 Breves considerações sobre o Papa Francisco, recém-falecido O Papa Francisco entendia a igreja como tolerante, universalmente amorosa, ecumênica, aberta e receptiva ao cuidado de todas as violências e exclusões do tempo. Entendia o cristianismo católico como universalmente comprometido com o reconhecimento, voltado a todas as situações da vida contemporânea, e não culpabilizador, excludente, autoritário e estrategicamente violento. Seu apostolado era totalmente includente pela misericórdia. Evidentemente, ele foi lançado ao inferno do ódio dos católicos de direita, que o atacaram de todos os modos possíveis e imagináveis, sempre confundindo o seu próprio partido neofascista com as redes sociais, onde vivem. Para essa gente, do Concílio Vaticano II, de João XXIII, a Francisco, a igreja católica chegou à máxima decadência imaginável. Apostasia, “sede vacante”, heresia, usurpador e até “anti-Cristo”, eram os modos crescentemente destrutivos que a intolerância e a autodeclarada verdade moral dos católicos do terror, que se alinharam com as direitas políticas mais violentas e satisfeitamente burras do tempo – abençoando e servindo a golpes de Bolsonaros e de Trumps – tratavam o sensível ao outro Francisco. Sobre a união do grupo no ódio, o núcleo duro de um mito de superioridade, que se nomeia como a verdade de deus, exigindo a agência do poder e o rebaixamento da diferença e dos inferiores, em um movimento que se organiza e se torna orgânico em oposição a processos democratizantes, socialmente implicados, essa grotesca e espetacular reação católica contra o seu próprio Papa nos ensina muito sobre a lógica grupal, de psicologia de massas e modulação do “eu”, das direitas de nossa época. Contra-democráticos, humanamente insensíveis, radicalmente anti-críticos, fascistas fazem apelo a deus e religiosos fazem apelos a fascistas, tudo através da “religião e partido das redes sociais”, para aumentar o ganho privado e particular de um grupo de auto ungidos, que inventam deus, contra todos os demais. Francisco claramente concebia deus em oposição ao deus fascista e sua política. Tales Ab’Saber é professor do Departamento de Filosofia da Unifesp. Autor, entre outros livros, de O soldado antropofágico (Hedra)  

Brasil tem terras raras, mas não tem projeto, por Ronaldo Lemos

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País tem 23% das reservas globais, mas só 1% da demanda; tensão entre China e EUA é oportunidade Ronaldo Lemos, Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro Folha de São Paulo, 21/04/2025 Em um dos períodos em que estive na China, a tensão com os EUA estava acirrada. O presidente chinês fez um pronunciamento que parecia destinado a acalmar os ânimos, mas não disse uma palavra sobre a crise. O recado foi passado de outro jeito: o lugar do discurso, proferido diretamente de uma das principais minas de terras raras da China, em Ganzhou. A mensagem era sutil, mas clara: se a tensão aumentasse, a China poderia restringir o acesso às suas terras raras, essenciais para a produção tecnológica. A China impôs restrições à exportação para os EUA de sete terras raras que são usadas para fabricar de celulares a mísseis. Além disso, impôs restrições às exportações de antimônio, gálio, germânio, tungstênio e outros minerais que possuem aplicação militar. A China responde por cerca de 70% da produção global de terras raras. Os Estados Unidos aparecem em sendo lugar , com cerca de 14%. As terras raras compreendem 17 elementos, dentre eles: o ítrio (usado na indústria espacial, semicondutores e equipamentos de raio-x), samário (reatores nucleares e lasers) e gadolínio (chips de memória e equipamentos de ressonância magnética). Hoje os EUA importam 75% das terras raras consumidas no país. A China não baniu totalmente as exportações, mas restringiu justamente os elementos que os EUA não produzem internamente. Sem acesso a eles, as consequências podem ser temerárias. A fabricação de chips, carros, TVs, celulares, equipamentos médico e militar pode ser severamente afetada. Por exemplo, caças americanos dependem diretamente de térbio e disprósio, dois dos elementos colocados na lista de restrições da China. Nessa situação, o que fazer? O primeiro passo é ampliar compras de outros países e incentivar o desenvolvimento da mineração de terras raras fora da China. Isso pode ser benéfico para o Brasil, que possui reservas de disprósio, térbio e ítrio, dentre outras terras raras. Cidades como as goianas Minaçu e Catalão ou as mineiras Poços de Caldas e Araxá possuem reservas significativas desses elementos raros. A outra solução é o contrabando. Da mesma forma como chips da Nvidia entraram na China mesmo com o bloqueio dos EUA, é de se esperar que algo parecido aconteça cada vez mais com terras raras. O ponto-chave é que a dominância chinesa não é natural. É produto da visão de longo prazo do ex-presidente Deng Xiaoping, que nos anos 1980 investiu fortemente nesse setor e proferiu a famosa frase: “o Oriente Médio tem petróleo, o Império do Meio tem terras raras”, repetida à exaustão nos documentos estratégicos do país. E, de fato, até 1990 os EUA lideravam sem concorrentes a produção de terras raras. Tudo isso para dizer: o Brasil precisa articular seu pensamento estratégico sobre terras raras de forma ousada e com visão no longo prazo, como a China fez. Temos 23% das reservas globais, mas atendemos só 1% da demanda. Nosso país também pode fazer parte desse clube. Não dependemos de ninguém para entrar nele além de nós mesmos. Já era: fazer novela só na TV em formato horizontal Já é: fazer novela para o streaming e celular em formato horizontal Já vem: fazer novela para o celular em formato vertical  

Taxar ultrarricos para distribuir aos pobres é uma medida popular, diz Nobel de Economia

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Francesa Esther Duflo diz que alguns bilionários já concordam com a taxação de 2% de sua riqueza para proteger os mais pobres das mudanças climáticas Folha de São Paulo, 21/04/2025 A francesa Esther Duflo, uma das únicas três mulheres a receber o Nobel de Economia, diz estar em um relacionamento de longo prazo com o Brasil. “Estou em contato bastante próximo com o ministro da Economia, Fernando Haddad, assim como com a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. E é sempre um grande prazer interagir com eles”, disse ela à Folha durante visita a São Paulo, na última semana. Duflo esteve no Brasil para anunciar a inclusão do Insper na Adept, uma aliança internacional para formação em análise de dados, avaliações e políticas públicas sediada no J-PAL  (Laboratório de Ação contra Abdul Latif Jameel), o centro de pesquisas cofundado por ela e sediado no MIT (Massachusetts Institute of Technology), nos EUA. A economista apoiou a proposta feita pelo Brasil na presidência rotativa do G 20 de criação de um imposto global de 2% sobre a riqueza dos bilionários do mundo para financiar adaptação e mitigação dos efeitos das mudanças climáticas sobre as populações mais pobres do planeta. “Os países pobres contribuem nada ou muito pouco para as mudanças climáticas, mas experimentam a maior parte dos seus danos”, avalia. “Alguns ultrarricos já concordam que podem abrir mão de 2% de sua riqueza todos os anos”, afirma Duflo. “Provavelmente, eles mal sentiriam falta desses recursos em suas vidas, mas isso faria uma enorme diferença para o mundo que eles também habitam.” Segundo a economista, taxar ultrarricos para distribuir entre os mais pobres é uma medida popular. A Nobel de Economia afirma que a implementação deste tipo de imposto parece difícil “porque as pessoas ricas têm muito poder político”. Mas, diz, “elas também precisam de um planeta habitável”. No Brasil, proposta enviada ao Congresso pelo ministro Haddad para a criação de um imposto mínimo de 10% para quem ganha mais de R$ 50 mil por mês tem apoio de 76% dos brasileiros, segundo pesquisa Datafolha divulgada nesta semana. Em entrevista à Folha, Duflo explicou porque escolheu trabalhar com o combate à pobreza, como a desigualdade se relaciona às mudanças climáticas e por que há poucas mulheres laureadas com o Nobel de Economia. Por que a pobreza não é um problema apenas dos pobres? Em primeiro lugar, porque compartilhamos a condição humana, os valores do humanismo e a solidariedade, o que significa que precisamos nos preocupar com a situação daqueles que mais sofrem com a pobreza, com a guerra e outras coisas. Em segundo lugar, porque a pobreza é um problema para as sociedades. Aquelas que têm muitas pessoas pobres perdem muito de seu potencial e riqueza porque a pobreza impede as pessoas de se tornarem cientistas ou engenheiros ou políticos. Ela empobrece toda a sociedade. É por isso que meu trabalho de vida tem sido combater a pobreza. Como as mudanças climáticas afetam a pobreza no mundo? Elas já estão afetando os países pobres hoje e vão afetar ainda mais no futuro por duas razões. A primeira é que esses países tendem a estar em lugares onde já é quente. E, portanto, à medida que o planeta esquenta, eles serão mais afetados por temperaturas que não são adequadas à vida humana. O segundo problema é que as pessoas pobres nesses países estão menos protegidas porque não têm ar condicionado nem acesso imediato a atendimento em saúde e não podem parar de trabalhar, o que quer dizer que é mais provável que elas morram quando está muito quente, ou que experimentem uma renda ainda mais baixa. Como a luta contra a desigualdade e contra as mudanças climáticas se relacionam? Elas se relacionam por meio de uma tripla desigualdade. Uma é que as pessoas pobres não contribuem nada para as mudanças climáticas porque suas emissões são muito baixas. Outra é que elas são as mais diretamente afetadas pelos efeitos das mudanças climáticas. E outra ainda é que elas têm menos meios para se proteger. Então, se não interferirmos diretamente na capacidade das pessoas mais pobres de se protegerem dos impactos climáticos, a desigualdade só vai aumentar. E a desigualdade na maneira como as mudanças climáticas impactam as pessoas só vai piorar e piorar. A Sra tem uma proposta para mitigar os efeitos das mudanças climáticas sobre pessoas pobres. Qual é ela? Primeiro é preciso observar que os países pobres contribuem nada ou muito pouco para as mudanças climáticas, mas experimentam a maior parte dos seus danos. Depois, é preciso colocar um número nisso para percebermos a extensão do dano. Se você colocar um preço na vida humana, nas perdas agrícolas e nas perdas econômicas, a extensão dos danos das mudanças climáticas a um país como Níger, na África, por exemplo, é algo como US$ 35.000 por pessoa por ano. Isso é o que o mundo, coletivamente, está impondo a Níger. Considerando-se a trajetória climática mais quente prevista pelo IPCC [Painel Internacional de Mudanças Climáticas], até 2100 haverá 6 milhões de mortes extras no mundo devido à alta de temperatura, e elas serão quase todas em países que hoje são pobres. As emissões que vêm da Europa e dos EUA causam um dano de meio bilhão de dólares todos os anos. Então, precisamos encontrar uma maneira de compensar as pessoas por pelo menos parte desses danos. E, para isso, precisamos arrecadar dinheiro. Como? Uma das coisas que estou propondo em colaboração com a presidência brasileira no G20 é uma tributação global de 2% dos ultrarricos para um fundo de proteção aos mais pobres. Se tivermos o dinheiro, precisamos descobrir como dá-lo às pessoas. Proponho encontrarmos uma maneira de enviá-lo diretamente para as pessoas que são mais afetadas. Pesquisas mostraram que, embora aumentar impostos seja uma medida muito impopular, tributar os ultrarricos para financiar políticas para os mais pobres é visto de forma mais favorável. Essa é uma pesquisa de um francês chamado Adrien Fabre, que analisou uma série de pesquisas de opinião de pessoas na Europa e nos EUA sobre várias soluções para as mudanças climáticas. Ele descobriu que o imposto sobre o carbono é muito impopular, mas a ideia de tributar ultrarricos para redistribuir o dinheiro em outro lugar é muito mais popular. Algo como 80% dos europeus gostam da ideia, e mesmo os americanos não são contra: cerca de 60 ou 70% a aprovam. Então há apoio popular. Por que então esta é uma medida tão difícil de implementar? Talvez porque as pessoas ricas têm muito poder político e não estão muito interessadas na ideia. Mas eu gostaria de persuadi-las, e algumas delas já estão persuadidas de que isso é do seu próprio interesse. Não é tanto dinheiro, e elas também precisam de um planeta habitável, e também sofreriam se o aumento da pobreza levasse a conflitos e muita agitação no mundo. Então, alguns ultrarricos já concordam que podem abrir mão de 2% de sua riqueza todos os anos. Provavelmente, eles mal mal sentiriam falta desses recursos em suas vidas, mas isso faria uma enorme diferença para o mundo que eles também habitam. No Brasil, um país de grande desigualdade, a proposta do atual governo de isentar pessoas mais pobres de impostos é vista favoravelmente, mas a de aumentar impostos dos ultrarricos é tratada como algo que pode inibir investimentos e gerar fuga de capitais. Esses receios são reais? Há muita evidência mostrando que tributar pessoas mais ricas não limita investimentos. Isso porque, no final das contas,  os bilionários tem tanto dinheiro que o que importa para eles é ser mais rico do que seus amigos —e os impostos não mudam isso. Já a fuga de capitais é uma questão quando um país age sozinho porque, em muitos lugares –o Brasil entre eles–, é fácil enviar capitais para paraísos fiscais. Aí entra a importância da cooperação internacional na tributação para que haja registro sobre onde o dinheiro está de modo que um país possa ir atrás dos ativos de seus cidadãos enviados para outro lugar. Ainda melhor seria coordenar uma medida em que todos os países tributarem ultrarricos em 2% por ano. Aí, a fuga não faria sentido. Ainda assim, há estudos em países nórdicos que apontaram que a fuga de capitais em resposta ao aumento da tributação é real, mas bem menor do que se pensava. Talvez o problema fosse pior no Brasil, onde as pessoas já estão mais conectadas ao mundo exterior. Portanto, é um problema a ser levado a sério, mas que pode ser resolvido com países trabalhando juntos, como no processo que o G20 lançou Algumas medidas de combate à pobreza são tratadas como falsos remédios. Programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, já foram criticados sob a premissa de que não se deve dar o peixe, mas ensinar a pescar… Este ditado em particular é um dos grandes clichês no desenvolvimento, o que é particularmente irritante, na minha opinião. Há um estudo recente de Dean Karlan e Chris Udry que revisou 130 pesquisas sobre 72 programas de transferência de dinheiro que mostram efeitos enormemente positivos em todas as dimensões da vida dos beneficiários. Então, podemos levar as pessoas a sério em sua capacidade de usar bem o dinheiro e deixarmos o paternalismo de lado. Há coisas que não podem ser fornecidas com dinheiro e que também podemos fazer, como oferecer boas escolas. Como você avalia o Bolsa Família? Ele foi muito avaliado e copiado em muitos países, onde também foi submetido a avaliações randomizadas rigorosas, e se mostrou muito eficaz em melhorar a educação e a saúde das pessoas. A única coisa que aprendemos desde que o programa foi iniciado é que condicionalidades estritas não são necessárias. É possível atingir os mesmos objetivos com condicionalidades mais brandas, que sinalizem que o programa é para ajudar na educação e saúde das crianças e jovens sem que necessariamente a transferência seja retirada quando as pessoas não estão cumprindo as contrapartidas. No Brasil, é bastante óbvio que o programa pode ser creditado por uma enorme queda na pobreza. Você foi uma das três únicas mulheres laureadas com o Prêmio Nobel de Economia. Como interpreta essa presença feminina? Quando recebi o Prêmio Nobel, em 2019 também era a única que estava viva porque Elinor Ostrom [laureada em 2009] havia falecido [em 2012]. Três não são suficientes, mas isso é um reflexo do fato de que não há muitas mulheres na economia. Mulheres são menos propensas a fazerem doutorado em economia. Estudantes de doutorado mulheres são menos propensas a se tornarem jovens professoras. Jovens professoras são menos propensas a obter estabilidade. Como economistas, tendemos a pensar que devemos deixar as coisas seguirem seu curso porque chegarão ao lugar certo. Mas acho que percebemos, nos últimos anos, que há algumas estruturas sobre a profissão que não a tornam muito amigável para mulheres, em particular por causa de uma espécie de cultura agressiva, que não é útil. Muitos departamentos estão fazendo esforço para mudar isso. O resultado deve aparecer nos próximos anos, espero. Raio-X Esther Duflo, 52, é Professora de Alívio da Pobreza e Economia do Desenvolvimento no Departamento de Economia do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos EUA, e cofundadora e codiretora do Laboratório de Ação contra a Pobreza Abdul Latif Jameel (J-PAL). Recebeu o Nobel em Economia “por sua abordagem experimental para aliviar a pobreza global” em 2019.  

O lado esquecido do imperialismo dos EUA, por Lauro Mattei

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Lauro Mattei – A Terra é Redonda – 19/04/2025 Para Donald Trump e seus séquitos só existe uma nação americana: os Estados Unidos 1. A eleição e as ações iniciais do governo de Donald Trump parecem ir mais além de uma simples “guerra comercial” como tem sido divulgado frequentemente. Com sua pose de imperador do mundo, Donald Trump e seus asseclas pretendem retomar doutrinas imperialistas de séculos passados como forma de demonstração de poder absoluto sobre todas as demais nações do planeta. Na essência, percebe-se que a ação de Donald Trump na esfera comercial global busca encobrir um problema doméstico, especialmente em termos do fracasso das políticas sociais norte-americanas que se reproduz no comportamento de fúria e ódio da classe média, a qual se frustrou com o cenário econômico que faz com que o “sonho americano” fique cada vez mais distante. Em grande medida, decorre daí o respaldo obtido por Donald Trump em relação às políticas protecionistas que estão sendo adotadas, bem como o apoio aos ataques proferidos contra os imigrantes, especialmente da América Latina e Caribe. Para fazer frente a este cenário político complexo, Donald Trump está procurando reavivar para o presente a “Doutrina Monroe” definida pela política externa dos Estados Unidos em 1823. Ao impedir a interferência de países europeus no Continente Americano, tal doutrina reforçou o imperialismo dos Estados Unidos no referido local e permitiu, inclusive, que esse país realizasse todos os tipos de intervenção em países da América Latina e Caribe e também em países da América Central. 2. Apenas recordando que o tema do imperialismo foi discutido sistematicamente por John A. Hobson em 1902. Esse autor o considerou como sendo um fenômeno decorrente do processo de acumulação de capital que foi fortemente potencializado após as revoluções industriais. Esse assunto foi retomado por Vladímir Lênin em 1916 em sua obra clássica Imperialismo, fase superior do capitalismo, momento em que são analisadas as distintas características do imperialismo que movem sua existência: a luta política pela partilha do domínio no mundo. De um modo geral, pode-se dizer que a política dos Estados Unidos para o conjunto de países que fazem parte do continente americano baseia-se no exercício do domínio por meio dos poderes econômico, político, cultural e militar, estando ela assentada nas ideias de superioridade e de submissão dos demais aos seus interesses. Tais pressupostos estão ancorados na presunção com que se autodenominam: a América. [1] Ou seja, para Donald Trump e seus séquitos só existe uma nação americana: os Estados Unidos. Portanto, não há nenhuma novidade quando o presidente Donald Trump se refere à América do Sul e Central como “quintal dos EUA”. O senhor Pete Hegseth, secretário de defesa dos EUA, em entrevista ao canal Fox News no dia 10.04.2025, assim se manifestou: (a) criticou o avanço da China na região utilizando-se do Canal do Panamá; (b) criticou o ex-presidente Barack Obama por ter deixado a China atuar na América do Sul e Central impondo sua influência econômica e cultural, além de ter feito “acordos ruins” com governos locais; (c) ressaltou que os EUA farão tudo o que for possível para interromper a influência chinesa na região, bem como as ameaças que a China representa para o hemisfério; (d) finalmente destacou a posição do presidente Donald Trump: “não mais, nós vamos recuperar o nosso quintal”. Para Donald Trump, a China “cresceu nesse quintal” durante os últimos governos democratas. Em visita oficial recente ao Panamá, o secretário Pete Hegseth externou novamente o desejo de Donald Trump de que os EUA voltem a comandar o canal como era até 1999. Além disso, informou que haverá aumento das forças americanas nas antigas bases militares, além de solicitar isenção das taxas aplicadas às embarcações militares dos EUA, cujo movimento é elevado. No mesmo evento, o secretário saudou a decisão do governo do Panamá de ter declinado de sua participação no projeto chinês da “nova rota da seda”, programa que, por um lado, promove a expansão de obras de infraestrutura e, por outro, busca a cooperação no âmbito de interesses mútuos. Registre-se que o canal do Panamá continua sendo estratégico para os EUA, uma vez que por ele passam 40% de todos os conteiners dos EUA, bem como 5% de todo o comércio mundial. 3. A China se manifestou duas vezes sobre esses assuntos acima mencionados. Na primeira delas afirmou que o governo de Donald Trump está chantageando o governo do Panamá, uma vez que acordos comerciais são decisões soberanas dos países, portanto interferências externas são inaceitáveis. Na segunda, a China rebateu mais fortemente a visão de Donald Trump sobre a América Latina e Central: os povos latino-americanos buscam suas independências e não querem doutrinas de dominação porque buscam construir seu próprio lar sem ser quintal de ninguém. Neste sentido, nota-se que há mais elementos centrais que fazem parte do lado esquecido do imperialismo dos EUA, além da guerra comercial que esse país vem travando globalmente, porém em particular com a China: cortes expressivos nos programas mundiais de ajuda humanitária; retirada do país dos principais organismos e agências da Organização das Nações Unidas (ONU); culpabilização dos países latino-americanos pelo avanço das drogas na sociedade Estadunidense; culpabilização dos imigrantes latinos pelos problemas estruturais do mercado de trabalho dos EUA; etc. Por fim, acreditamos que a maioria dos latino-americanos não tem nenhum apreço pelos desejos do presidente dos EUA, uma vez que seus quintais são providos de jardins com flores que simbolizam o amor e a paz entre os povos e não pelo ódio e pela guerra que nutrem cotidianamente a mente de um psicopata. *Lauro Mattei é professor titular do Departamento de Economia e Relações Internacionais e do programa de pós-graduação em Administração, ambos na UFSC. Notas [1] Nunca é tarde relembrar ao senhor Trump que o Continente Americano é composto por três regiões geográficas com os seguintes países: América Latina e Caribe (33 países); América Central (7 países) e América do Norte (3 países). Portanto, as Américas não se restringem apenas ao país que ele governa atualmente.

Lições de um jovem magistrado, por Oscar Vilhena Vieira

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Poder e autoridade judicial são fenômenos semelhantes Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023). Folha de São Paulo, 19/04/2025 Certa vez fui despachar com um jovem magistrado, que me interrompeu no meio de uma frase: “Já entendi, o senhor está dizendo que eu errei”. Percebendo a minha perplexidade, voltou-me sua folha de anotações, onde estava escrito, em letras garrafais: “Errei!!! Corrigir”, numa clara demonstração de que sua autoridade não estava em jogo. Poder e autoridade judicial são fenômenos semelhantes. Ambos se referem a capacidade de um juiz ou tribunal de impor conduta a outro agente. O respeito à autoridade judicial, no entanto, está intrinsecamente associado à imparcialidade, objetividade e rigor com que um juiz ou tribunal aplicam a lei. Já a submissão ao poder judicial decorre, sobretudo, do medo de sofrer alguma forma de coerção. Os atritos entre a Justiça do Trabalho e o Suprema Tribunal Federal têm origem na forma equivocada como o Supremo vem aplicando a legislação trabalhista, assim como as normas constitucionais relativas ao direito do trabalho, nos últimos anos. Sob o pretexto de que a Justiça do Trabalho estaria confrontando a jurisprudência do Supremo, diversos de seus ministros têm cassado decisões proferidas por juízes e tribunais do trabalho que, no exercício de suas competências constitucionais, detectaram a existência de fraude na contratação de trabalhadores, por meio de pessoas jurídicas. A pejotização é um neologismo cunhado para designar um tipo de fraude contratual, voltada a suprimir o acesso do trabalhador aos seus direitos previstos na Constituição e na legislação trabalhista, além de promover a evasão fiscal e previdenciária. Não importa se por preconceitos contra os trabalhadores CLT, viés ideológico, ou por simples desconhecimento da legislação trabalhista, inúmeras decisões do Supremo vêm incentivando a substituição de contratos de trabalho por contratos civis ou comerciais com pessoas jurídicas (MPE e MEI), compostas na grande maioria dos casos apenas pelos seus sócios proprietários. Esses “empreendedores”, no entanto, continuam mantendo relação de trabalho marcada pela pessoalidade e subordinação. Sob a justificativa de valorizar a livre iniciativa e formas mais flexíveis de relações de trabalho, a postura do Supremo tem permitido que um número cada vez maior de empregadores deixe de recolher devidamente encargos sociais, como INSS, FGTS ou PIS, ampliando a crise da previdência e sobrecarregando os setores que contratam de acordo com a CLT e cumprem com as suas obrigações patronais. Paralelamente, esse esquema também favorece a evasão do imposto de renda, por parte de trabalhadores contratados através de pessoas jurídicas, contribuindo para ampliar ainda mais a já perversa regressividade de nosso sistema tributário. Estima-se uma redução de cerca de 88% no valor de imposto de renda a ser recolhido com esse esquema. Desnecessário lembrar que, no país dos privilégios, essa redução de imposto de renda favorecerá, sobretudo, os trabalhadores mais ricos. A postura do Supremo, por fim, tem contribuído para a precarização das relações de trabalho, impedindo o acesso do trabalhador a direitos básicos estabelecidos pela Constituição, como descanso semanal remunerado, limitação da jornada de trabalho ou décimo terceiro salário, além de não ser discriminado em face de sua raça ou gênero. Torço para que o Supremo não use o seu poder para ganhar o braço de ferro com a Justiça do Trabalho. Ao julgar a tese de repercussão geral 1389, o tribunal terá a oportunidade de corrigir a confusão por ele criada e, como fez o jovem magistrado, restabelecer sua autoridade.