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O custo econômico da violência, por Bráulio Borges

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Bráulio Borges, doutorando em economia da FGV EESP, mestre em economia na FEA-USP, é diretor da LCA Consultores e pesquisador-associado do FGV Ibre. Folha de São Paulo, 31/10/2025 A megaoperação policial que deixou mais de 120 mortos no Rio de Janeiro reacende um debate crucial para o Brasil: qual é o custo real da violência e da criminalidade para nosso desenvolvimento econômico e social? Esse episódio ilustra de forma bastante dramática um problema que deve estar custando ao Brasil pontos preciosos de crescimento econômico, entre outros impactos deletérios. Há diversas métricas para medir o grau de violência e a criminalidade. Um dos mais acompanhados é o número de homicídios cometidos a cada 100 mil habitantes. No caso do Brasil, esse indicador vinha em tendência de alta desde o começo dos anos 1990, atingindo um pico em 2017, com cerca de 31 homicídios por 100 mil habitantes. Desde então, houve um recuo expressivo desse indicador, inclusive em 2023 e 2024, chegando a cerca de 20 no ano passado (e continua caindo em 2025). Trata-se de uma queda expressiva, de quase 40% ante 2017. Não obstante, o patamar da violência em nosso país ainda é muito elevado: a média mundial desse indicador é de cerca de 5 homicídios. Qual o custo econômico desse desvio tão elevado da taxa de homicídios brasileira ante a média mundial? Um estudo publicado pelo Fundo Monetário Internacional no final de 2023 dá uma ideia disso: reduzir as taxas de homicídio na América Latina ao nível da média mundial poderia elevar o crescimento econômico anual da região em 0,5 ponto percentual. Para países com alto grau de violência, como é o caso brasileiro, fechar completamente essa lacuna poderia elevar o crescimento do PIB em cerca de 0,8 ponto percentual. O estudo identificou os canais de transmissão: a violência prejudica a acumulação de capital ao afastar investidores que temem roubos e violência, além de reduzir a produtividade ao desviar recursos para investimentos menos produtivos (como segurança patrimonial). Nesse contexto, muitos vêm advogando pela replicação da experiência recente de El Salvador. A taxa de homicídios no país despencou de 108 por 100 mil habitantes em 2015 para cerca de 2,0 em 2024, refletindo a política linha-dura do presidente Nayib Bukele. Contudo, esse aparente sucesso veio acompanhado de um custo elevado: cerca de 2% da população do país foi detida, com registro de prisões arbitrárias, desaparecimentos, mortes sob custódia e tortura. A Freedom House rebaixou El Salvador de um país “livre” para “parcialmente livre”, com sua pontuação caindo de 67 em 2019 para 47 em 2025 (o Brasil recebeu nota 72 em 2025, classificado como “livre”). O crescimento econômico salvadorenho, ao menos até agora, não se acelerou, tendo-se mantido em torno de 2,5% a.a, indicando que reduzir a violência através da erosão democrática pode neutralizar ou mesmo reverter os ganhos associados à redução da taxa de homicídios. Não muito longe do Brasil, temos o caso do Chile: embora tenha passado de cerca de 3 para 6 por 100 mil ao longo da última década, a taxa de homicídio no país ainda é relativamente baixa em ampla comparação internacional (é semelhante àquela dos EUA). E o país tem sustentado isso sem sacrificar o Estado de Direito (pontuação de 95 no indicador da Freedom House). Certamente esse é um dos fatores por trás do sucesso deles em termos de desenvolvimento: o PIB per capita chileno praticamente triplicou entre 1990 (último ano da ditadura iniciada em 1973) e 2024, ao passo que o brasileiro cresceu menos de 60% nesse mesmo período. No caso do Brasil, não há uma “bala de prata” para gerar uma redução adicional expressiva da violência. É preciso investir em uma abordagem multifacetada, combinando gestão estratégica, articulação entre União, estados e municípios, inteligência, controle de armas, gestão de dados e políticas baseadas em evidências.  

Massacre do Rio: o dedo da Faria Lima, por Ricardo Queiroz Pinheiro

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O “ajuste fiscal” prepara o terreno: corta futuro, elimina alternativas, cria inimigos. Polícia executa. Círculo perfeito: quem perde tudo vira ameaça e é morto como exemplo. A mão que nutre as fintechs aperta o gatilho e derruba o moleque-avião Ricardo Queiroz Pinheiro – Outras Palavras – 30/10/2025 Foi ontem. O Rio de Janeiro, mais uma vez, serviu de palco habitual das mazelas da República. Helicópteros rasgaram o céu da favela; rajadas, correria, corpos rolando no chão. Mães se agarraram às portas, celulares trêmulos tentando registrar o que restava de luz. Horas depois, o governador miliciano Cláudio Castro surgiu em cadeia nacional para converter o sangue em manchete: “operação concluída, a inteligência atuou”. Estava inaugurada a campanha de 2026. O sociologo Loïc Wacquant em uma frase deu o quadro há décadas: quando o Estado social se retrai, o Estado penal se impõe. No Rio (não só), essa retração é programada. A austeridade corta horizontes, desmonta escolas, precariza vidas; em seguida, o aparelho punitivo toma seu lugar, disciplinando corpos sem futuro. A violência é a ferramenta de regulação. A política econômica e a política da bala são faces do mesmo projeto. É oportuno olhar o Atlas da Violência 2025, produzido pelo IPEA. Ali, se formaliza o que a rua já conhece: enquanto o país vê uma pequena queda nas taxas gerais, o Rio caminhou na direção oposta, com aumento de 13,6% nos homicídios. Esses números têm endereço: são jovens negros sem empregos, sem escola, sem perspectiva. Onde faltam políticas públicas, cresce a justificativa punitiva — e com ela, o aplauso de uma parte significativa do eleitorado que aprendeu a ver ordem na bala. A juventude é o alvo. As estatísticas mostram aumento nas mortes entre 15 e 29 anos; entre adolescentes, a explosão é ainda mais brutal. E quando a contabilidade alcança crianças — 50% de aumento nas mortes entre 5 e 14 anos —, fica claro que não se trata de “efeitos colaterais”: é desenho político. A execução aparece como resposta ao vazio social que a própria política de austeridade ajudou a produzir. A pesquisadora Alba Zaluar vem insistindo numa leitura que hoje é central: a violência do Rio é um ecossistema, sustentado por circulação de armas, cumplicidade institucional e abandono social. O que era economia ilegal encontrou tradução na gestão pública — e o Estado passou a operar como parceiro e restaurador de uma “ordem” que sacrifica vidas. No governo atual, essa simbiose se institucionalizou: as operações são mensagens, as mortes, métricas; o aparelho repressivo se consolida, bloco por bloco. Houve um momento de interrupção possível. A ADPF 635 mostrou que limitar procedimentos letais produz efeitos reais: mortes por intervenção policial caíram drasticamente — de 1.814 em 2019 para 699 em 2024 — e, com isso, também diminuíram homicídios dolosos e roubos. Mas a contenção foi interpretada pelo governo como perda simbólica, não como ganho civilizatório. Assim, a estratégia foi reverter limites e reafirmar a estética do choque: liberar helicópteros, permitir operações perto de escolas, normalizar a artilharia urbana. Esse movimento é um processo — a construção deliberada do nosso aparelho repressivo. É um projeto com roteiro eleitoral, pois parte da população legitima como única solução possível. A violência funciona como espetáculo para uma plateia que, empobrecida e esmagada pela Bíblia neoliberal da eficiência, recebe no massacre a sensação imediata de “ordem”. O bordão — “bandido bom é bandido morto” — é pedagogia política que convence porque promete simplicidade onde faltam políticas públicas complexas. O austericídio transformou a privação econômica em argumento moral. A austeridade prepara o terreno: corta futuro, elimina alternativas, cria inimigos; depois o aparelho punitivo executa a lição. O resultado é um círculo perfeito: quem perde tudo passa a ser identificado como ameaça; quem cruza esse limiar é punido com morte e exposto como exemplo. O Estado, assim, não só permite a violência — ele a modela, a racionaliza e a capitaliza politicamente. A mesma mão que afaga as fintechs — vitrines reluzentes da austeridade — é a que customiza a lavagem de dinheiro das grandes redes do tráfico, arma a polícia e derruba o moleque-avião. O garoto que largou a escola para virar vapor, buscando uma grana pra sobreviver, é abatido pela mesma máquina que financia o seu patrão invisível. O circuito é perfeito: o capital se legitima no alto, a bala fecha a conta embaixo. Ainda assim, a engrenagem encontra resistência — ruidosa e concreta. A mãe que não permite o silêncio, moradores que filmam e denunciam, defensores públicos que acumulam processos, jornalistas que persistem em nomear o que se tenta apagar. Esses gestos não são românticos: são a última barreira contra a normalização completa do extermínio. Na medida em que o aparelho repressivo se organiza, cada denúncia retém um pouco da liquidação moral que o poder busca. O massacre de ontem funciona como demonstração de continuidade e recado. Ele disse o que o capital, vocalizado pela extrema direita, quer que o país saiba: que a ordem se restabelece com medo, que a pobreza é punida com letalidade, que o ódio rende voto e garante o abismo social. Reconhecer isso é o primeiro passo para desmontar o aparelho que transforma a política em matança

Indústria do mundo

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 Nas últimas décadas a sociedade internacional vem passando por muitas reviravoltas e inúmeras transformações, o surgimento de novos modelos de negócios vem ganhando espaço, uma verdadeira revolução no mundo do trabalho, com novas tecnologias e o incremento da inteligência artificial, além do crescimento vertiginoso da economia chinesa que se transformou na indústria do mundo, responsável por uma grande parte das mercadorias comercializadas no cenário global. A ascensão chinesa deslocou setores industriais inteiros de seus países de origem para grandes investimentos produtivos nas cidades chinesas, levando regiões atrasadas e dependentes de produtos primários para se transformarem em grandes produtores de produtos industrializados, com fortes investimentos governamentais em capital humano, grandes recursos financeiros canalizados para setores de pesquisa e inovação científica. O resultado desta política foi a construção de grandes metrópoles, como Shenzhen, uma aldeia de camponeses, nos anos 1980 com apenas 120 mil habitantes que, atualmente, se transformou numa metrópole de 17 milhões de pessoas, com um setor produtivo inovador, dinâmico e dotado de grande capacidade empreendedora. Neste período, a China passou por inúmeras revoluções, marcadas por uma política industrial rigorosa e muito disciplinada, onde os setores estratégicos receberam grandes aportes financeiros, exigindo parcerias com empresas estrangeiras que tinham interesses em produzir no mercado chinês, com câmbio desvalorizado, juros baixos, créditos fartos, mão de obra barata e fortes investimentos em capital humano, além de estímulos crescentes nas áreas de pesquisa científica e cobranças sistemáticas para angariar novos mercados internacionais. Nos últimos vinte anos, a economia chinesa ganhou musculatura, eficiência e produtividade, levando os países ocidentais a sentirem receio da ascensão chinesa, atualmente o maior competidor dos Estados Unidos. Em 2006, 148 países e territórios tinham mais trocas comerciais com os EUA do que com a China, em 2024 o cenário passou por grandes alterações: 141 nações priorizam os chineses enquanto 82 fazem mais negócios com os americanos. Nestas duas décadas, os chineses ganharam novos parceiros comerciais, inicialmente começaram na Oceania, depois se aproximaram da África, espalharam seu comércio para as Américas, ganhando relevância na região e se transformaram no maior parceiro comercial da América Latina, desbancando os Estados Unidos. Atualmente, os europeus passaram a se aproximar dos chineses e a Europa ganhou relevância no comércio exterior, muitos países da região estão integrados na iniciativa Um Cinturão, Uma Rota, onde o país asiático vai despejar trilhões de dólares em setores de infraestrutura e de logística em países que são parceiros comerciais, com isso a China se transformou na maior fábrica do mundo, responsável por mais de US$ 4 trilhões em produtos industrializados, transformando a China, para muitos especialistas, no detentor do maior produto interno bruto (PIB) do mundo, superando o estadunidense. Em equipamentos e maquinaria elétrica, a China detém sozinho 32% do mercado global de exportação. Em computadores pessoais a China foi responsável por 75% do valor e volume das exportações mundiais. Na indústria fotovoltaica o gigante asiático responde por cerca de 80% da produção em toda a cadeia de valor. Neste cenário de instabilidades constantes, o incremento industrial chinês pode ser visto como inspirador da recuperação industrial brasileira, valorizando inovação, garantindo oportunidades e políticas industriais ativas, vislumbrando um país industrializado, aproveitando novas oportunidades, alavancando tecnologias e abandonando os resquícios de exportadores de produtos primários de baixo valor agregado. Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Duelos de gigantes

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A sociedade mundial vem passando por grandes abalos econômicos, sociais e políticos nestes últimos meses, que estão impactando toda a comunidade internacional. O crescimento das políticas protecionistas adotada pelos governos, onde destacamos o tarifaço adotado pelo governo estadunidense, impactando sobre países de todas as regiões do mundo, gerando fortes constrangimentos econômicos e produtivos nas nações parceiras e aliadas e países mais distantes, com visões ideológicas diferentes e sem alinhamento político com os Estados Unidos. Neste momento, o que nos chama a atenção é o confronto entre as duas maiores economias do mundo, China e Estados Unidos. Este confronto econômico e político deve nortear as discussões estratégicas nos próximos anos, quem sabe décadas, que devem estimular medidas protecionistas variadas para angariar espaço e vantagens na economia internacional. De um lado, encontramos uma nação que vem perdendo espaço no cenário global, caracterizada como a mais relevante do ambiente internacional no século passado. Nesta época, os Estados Unidas da América se caracterizaram como a maior economia do mundo, detentora do maior setor indústria e bélico, responsável pela emissão da moeda referência dos setores comercial e financeiro, responsável pelos maiores investimentos científicos e tecnológicos do mundo e dona da classe média vista como referência global. Do outro lado encontramos uma nação milenar, detentora de uma das maiores populações do globo, responsável por um feito histórico da sociedade mundial, a única nação do mundo que conseguiu retirar da pobreza extrema mais de 800 milhões de pessoas num período de quarenta anos. Uma nação que se transformou rapidamente, com fortes investimentos em ciência, pesquisa e tecnologia, se transformando na indústria do mundo e transformando toda sua estrutura produtiva, com forte planejamento estatal e empresas referências na economia mundial. Neste confronto, os estadunidenses tentaram impedir a comercialização de semicondutores, os chamados chips, para seu maior competidor, impedindo que as grandes empresas norte-americanas vendessem este produto para os produtores chineses, desta forma, sem este produto, os asiáticos não conseguiriam construir o seu setor produtivo global, fragilizando seu setor industrial e obrigando-os a aceitar as exigências do governo dos Estados Unidos. Para infelicidade dos estadunidenses, o governo chinês canalizou grandes investimentos para as áreas científica e tecnológica, fortalecendo a produção local, garantindo sua soberania política e fomentando sua autonomia econômica. Em contrapartida, recentemente, os chineses passaram a limitar as exportações das chamadas terras raras para os Estados Unidos, já que a China detém mais de 80% da produção global, gerando grandes preocupações para os setores de tecnologia e de defesa, afinal, estas terras raras são minerais estratégicos que entram na cadeia global dos setores de alta tecnologia. Neste duelo de gigantes, cada um dos lados busca arregimentar nações parceiras, ganhando musculatura para enfrentar o confronto do século e angariar novas alianças e novos espaços de comércio e integração produtiva. Neste cenário, marcado por um conflito desta envergadura, não podemos esquecer a possibilidade, ainda real, de um conflito militar entre estas potências que, com certeza, podem inviabilizar a vida humana no planeta Terra, uma guerra fratricida desta proporção, pode destruir a humanidade, o que seria um risco gigantesco e   uma possibilidade real, ainda mais sabendo que, nos últimos anos, a incivilidade e a crueldade vem dominando a sociedade global. Ary Ramos da Silva Júnior, bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.  

Turma 2025 – Ciências Econômicas – Universidade Paulista (UNIP) – São José do Rio Preto

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Empregabilidade e empreendedorismo, por Ricardo Antunes

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Ricardo Antunes – A Terra é Redonda – 21/10/2025 O que se anuncia como a modernidade do trabalho por aplicativos é, na verdade, a legalização de um arcaísmo social, onde a flexibilidade significa a morte lenta de direitos e, literalmente, a morte de trabalhadores Da fraude da “empregabilidade” ao contorcionismo do “empreendedorismo”, estamos presenciando uma fase de profunda derrelição dos direitos e das condições de trabalho no Brasil. Podemos recordar o engodo da falta de “empregabilidade” como pretexto para as demissões no passado recente. Quem perdia seu emprego recebia esta justificativa: não havia empregabilidade! Nem o dicionário do mestre Aurélio conhecia esta inusitada palavra, inventada pelo ideário desprezível dos CEOs. Para eliminar trabalho, era preciso ter uma “explicação”. Esperar que as grandes corporações exibissem coágulos de sinceridade é como imaginar que no deserto do Saara se possa ter gelo o ano inteiro! É por isso que, mesmo quando trabalhadores e trabalhadoras faziam cursos de todo tipo, das especializações às pós-graduações, não tinha jeito: sem “empregabilidade”, uma hora vinha a demissão! Mas a classe trabalhadora percebeu, algum tempo depois, que seu emprego estava de fato sendo eliminado pelos novos inventos tecnológicos, que são preferencialmente programados para eliminar trabalho vivo. Era preciso, então, “culpar” a classe trabalhadora e responsabilizá-la pelo desemprego, na passagem do taylorismo-fordismo para o toyotismo e sua empresa flexível e enxuta (lean production). Adentramos, então, uma nova era de financeirização do capital (do arcabouço fiscal que tem a face de calabouço social) impondo a demolição do trabalho regulamentado. Fenômeno global, basta recordar o trabalho contingente e dos jovens que compreendem os cyber-refugiados no Japão, sem esquecer os imigrantes nos Estados Unidos, as maquiladoras no México, o “trabalho atípico” na Itália ou os recibos verdes em Portugal, só para dar alguns exemplos. No Brasil, vimos esparramarem-se as “falsas” cooperativas, depois a terceirização, inicialmente das atividades-meio e depois das atividades-fim. Todas concebidas, moldadas e calibradas pelo mundo do capital, visando à sistemática corrosão dos direitos do trabalho, que dilapidou ainda mais as condições de trabalho e de remuneração da classe trabalhadora, intensificando os níveis de exploração e de precarização da força de trabalho, da qual cerca de 40% trabalha na informalidade. Com o neoliberalismo entrelaçado à financeirização, impôs-se também a privatização dos serviços públicos, turbinada pelas novas tecnologias digitais. Os objetivos e os resultados se evidenciam: quanto mais trabalho morto, com algoritmos e inteligência artificial, melhor. Mas como é impossível a eliminação completa do trabalho humano – e este é o calcanhar de Aquiles do capital – urge devastá-lo e depauperá-lo ao limite, eliminando tudo que um dia significou algum direito real. Para que tal empreitada fosse efetivada, o léxico do capital ganhou uma impulsão frenética: era preciso adulterar profundamente o sentido etimológico original das palavras pelo novo dicionário empresarial: trabalhadores(as) tornaram-se “parceiros(as)”, “colaboradores(as)”; assalariados(as) converteram-se em “empreendedores(as)”. A cada nova onda corporativa, a enxurrada de adulterações ganhava mais lustre catártico: “líder”, “times”, “metas”, “gestão de pessoas”, “inovação”, “sinergia”, “resiliência”. Assim, proliferou-se o “novo” palavrório obrigatório da desmedida empresarial. Tudo cuidadosamente concebido para obliterar o assalariamento, como se vê na pejotização e no trabalho uberizado, de modo a recuperar modalidades de trabalhos vigentes nos séculos XVIII e XIX, agora recheadas com sabor algorítmico e digital e, “coincidentemente”, cada vez mais com menos direitos do trabalho. O resultado é explosivo: mais informalidade, precarização, subemprego, desemprego, trabalho intermitente etc. A terceirização – que no fordismo se restringia à setores como limpeza, segurança, transporte, alimentação –, de exceção, vem se tornando regra (até mesmo no trabalho público) e se amplificando na era da inteligência artificial, “abrindo a porteira” para formas de contratação como PJ, MEI, microtrabalhos, crowdwork, à margem da legislação protetora do trabalho. Suas consequências são profundas: como as “metas” são interiorizadas cotidianamente na subjetividade da classe trabalhadora (em substituição ao também nefasto cronômetro taylorista), aflora um resultado assustador: aproximadamente 30% da força de trabalho ocupada no Brasil sofre de burnout, doença que se caracteriza “pelo esgotamento físico e mental relacionado ao trabalho” (conforme dados da Associação Nacional de Medicina do Trabalho – ANAMT), o que nos coloca em segundo lugar no ranking mundial desta doença, que tristemente singulariza nosso tempo. Adoecimentos mentais, assédios, depressões, suicídios, então, não podem ser efetivamente compreendidos se não se considera a realidade do trabalho precarizado no Brasil atual. O exemplo do trabalho em plataformas é também desolador: na cidade de São Paulo, em média, mais de um entregador por aplicativo morre por dia por acidente de trabalho. E a pesquisa recém-divulgada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em 17 de outubro de 2025, mostra que a jornada de trabalho realizada pelos trabalhadores de plataformas vem se ampliando: em 2024 ela foi, em média, 5,5 h mais extensa que a dos demais trabalhadores. É essa a dura realidade do trabalho “moderno” no Brasil. É nesse cipoal que o STF terá que refletir e decidir, seja ao tratar do Tema 1389, sobre a pejotização, seja ao julgar as demandas do IFood e da Uber que pretendem legitimar essa modalidade de trabalho uberizado e sem direitos no Brasil, desconsiderando tanto as decisões do TST, como o princípio protetor do trabalho que consta do artigo 7º da Constituição de 1988. [1] Como procederá o Supremo? Será seu nome escrito em maiúsculo, como tem feito na luta contra o golpismo em nosso país, ou será escrito em minúsculo, tornando-se diretamente responsável por uma irreversível regressão na legislação protetora do trabalho no Brasil? Ricardo Antunes é professor titular de sociologia na Unicamp. Autor, entre outros livros, de O capitalismo pandêmico (Boitempo). [1] Sobre os direitos dos trabalhadores em plataformas digitais, ver o recém-publicado Direitos de verdade: essa história também é sobre você. São Paulo: Boitempo, 2025, distribuição gratuita. Sobre as decisões de tribunais europeus e os processos de regulamentação no Brasil ver Trabalho em plataformas: regulamentação ou desregulamentação? São Paulo: Boitempo, 2024, distribuição gratuita. Ver também a campanha pública informativa do Ministério Público do Trabalho-15ª. Região, resultado de Projeto conjunto com o Grupo Mundo do Trabalho e suas Metamorfoses, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.

‘Pobreza não é fracasso pessoal’ por Ana Cristina Rosa

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Ana Cristina Rosa, Jornalista especializada em comunicação pública e vice-presidente de gestão e parcerias da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPública). Folha de São Paulo, 20/10/2025 A pobreza não é um fracasso pessoal, é uma falha sistêmica, uma negação da dignidade e dos direitos humanos. A afirmação feita pelo secretário-geral da ONU, Antônio Guterres, no Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza (17/10), diz muito sobre a realidade do povo brasileiro. Pessoas negras (pretos e pardos) representam a maioria dos que se encontram em situação de pobreza no nosso país. Para se ter uma ideia, entre 2012 e 2023, mais de 60% dos negros tinham renda de no máximo um salário-mínimo. Nesse período, a renda média nos domicílios com pretos e pardos foi menos da metade da auferida nos domicílios sem negros (Cedra). No Brasil, a expectativa de vida de mulheres e homens negros chega a ser seis anos menor do que a dos brancos em razão de fatores decorrentes da pobreza, que expõe os mais pobres a doenças ligadas à falta de saneamento básico, à alimentação inadequada e à violência urbana. Quem vive em situação de pobreza experimenta múltiplas privações que se conectam reforçando as carências e dificultando o acesso efetivo a direitos e garantias constitucionais. Um rol exemplificativo inclui o direito à moradia digna, nutrição adequada, trabalho decente, inclusão social, educação de qualidade e saúde. Verdade que o país entrou num ciclo de redução da pobreza e da desigualdade nos últimos quatro anos, o que permitiu que quase 9 milhões de pessoas deixassem a chamada linha da pobreza (IBGE). Mas é muito importante lembrar que a pobreza é dinâmica, ou seja, as famílias muitas vezes entram e saem dessa condição de maneira cíclica Nesse sentido, impedir que as pessoas voltem para a pobreza é tão importante quanto tirá-las dessa condição. E é aí que entram programas sociais de transferência de renda e políticas públicas de redução das desigualdades. O combate à pobreza abrange a promoção da equidade racial, o acesso à justiça e a inclusão racial. Afinal de contas, pobreza não é um fracasso pessoal.    

O futuro do trabalho ou o trabalho sem futuro? por Marcelo Augusto Vieira Graglia

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Marcelo Augusto Vieira Graglia – Revista Cult – 03/09/2023 Billy Turnbull era um rapaz astuto, nos seus recém-completados 14 anos de vida. Naquela manhã fria de maio de 1831, caminhava pela rua principal de Bedlington em direção à mina que ficava no lado oeste da cidade, próxima à estrada que levava ao norte. Por entre a névoa, Billy já distinguia as pedras da igreja de São Authbert. Cerca de 400 metros abaixo, virou à esquerda, após a casa de Walter Daglass. Três portas acima, havia um arco que levava a um pátio com seis residências e um pomar. As casas eram decrépitas, para dizer o mínimo. O campo de batatas ficava do outro lado da parede dos fundos, seguia por ali para cortar caminho. Naquela manhã fria, quando Billy Turnbull finalmente chegou à entrada da mina, a querela já estava armada. Dezenas de homens, vestidos em seus farrapos e com seus rostos tingidos pelo pó preto do carvão, se aglomeravam em torno da máquina a vapor recém-adquirida pelo Sr. Stephens. Com suas pás e picaretas, amotinados, golpeavam o equipamento que respondia emitindo longos chiados. Em pouco tempo, a máquina parecia morta, imóvel e silenciosa. Assustado, Billy viu Brian Llewellin saindo do meio dos mineiros e vindo em sua direção. Quando o amigo se aproximou, perguntou: O que está havendo, Brian? Ao que este respondeu: Não sou Brian, meu nome é Ned Ludd. A história acima foi construída a partir de personagens fictícios, mas baseada em fatos históricos. Ned Ludd era a alcunha utilizada por muitos dos trabalhadores envolvidos em protestos e sabotagens. O ludismo foi um movimento de trabalhadores iniciado na Inglaterra no início do século 19, que utilizou a destruição de máquinas como forma de pressionar os empregadores contra as condições precárias e contra a mecanização que causava demissões e substituição de funções mais qualificadas por outras de pouca exigência técnica e mais mal remuneradas. No campo do trabalho humano, é histórico o temor pelos efeitos potencialmente destruidores da tecnologia sobre os postos de trabalho, simbolicamente representado pelo movimento ludista. Nesta segunda década do século 21, novamente a emergência de uma nova onda de inovação tecnológica reacende a polêmica com visões diametralmente opostas: de um lado, a daqueles que vislumbram um futuro brilhante, no qual a tecnologia libertaria a humanidade da obrigação do trabalho duro, repetitivo, desestimulante, ao mesmo tempo que elimina doenças, promove a longevidade, o conforto e o deleite com novas possibilidades lúdicas e sensoriais trazidas por artefatos tecnológicos e ambientes digitais; de outro, em posição antagônica, há aqueles que temem as consequências potencialmente nefastas da proliferação da tecnologia de forma intensa por tantos campos sensíveis. Soma-se ainda o risco da desumanização das relações e da interferência voraz de sistemas de inteligência artificial (IA) em campos eminentemente humanos, num cenário de pós-humanismo cibernético. O que alimenta esses temores? Embora a automação tenha sido historicamente confinada a tarefas rotineiras envolvendo atividades baseadas em regras explícitas, a IA está entrando rapidamente em domínios dependentes de reconhecimento de padrões e pode substituir os humanos em uma ampla gama de tarefas cognitivas não rotineiras, seja em relação ao trabalho industrial, de serviço ou de conhecimento. Nessa transformação, há aspectos claramente positivos e outros que inspiram maior reflexão. Parafraseando a célebre frase narrada por Tucídides, na colossal obra História da Guerra do Peloponeso, quando a delegação da cidade de Corinto se empenhava em convencer os relutantes espartanos a abandonar seu temor em declarar guerra a Atenas: não devemos temer a tecnologia (Atenas), o que devemos temer são a nossa ignorância, a nossa indiferença e a nossa inércia. A ignorância, no sentido de não entendermos ou não buscarmos entender o processo histórico que ora se movimenta; a indiferença, no sentido de não nos sensibilizarmos com os efeitos deletérios possíveis, especialmente sobre grandes parcelas menos protegidas ou desfavorecidas da nossa sociedade, de ignorarmos os riscos; ademais, a inércia, traduzida pelo não agir, enquanto indivíduos, sociedade e governos não se preparam devidamente, não estabelecem estratégias adequadas, não constroem seus diques, seus programas, projetos e políticas públicas robustas e suficientes para enfrentar um mundo em transformação. John Maynard Keynes, em Economic possibilities for our grandchildren (1930), argumentava que o aumento da eficiência técnica havia ocorrido de forma mais rápida do que seria possível para lidar com o problema da absorção da força de trabalho. A depressão mundial – consumada com a quebra da Bolsa de Nova York em 1929 e a enorme anomalia do desemprego que se estabeleceu – impedia a clareza de visão necessária para que muitos pudessem captar as tendências que se afiguravam, como a do desemprego estrutural. Para Keynes, isso significava “desemprego devido à nossa descoberta de meios de economizar o uso do trabalho ultrapassando o ritmo em que podemos encontrar novos usos para o trabalho”. O economista previa que, mantidas as taxas de crescimento da produtividade geradas pela incorporação de tecnologias nos processos produtivos, e outras condições, em 100 anos o problema econômico mundial da escassez poderia ser resolvido. Em contrapartida, esse ganho de produtividade se daria, principalmente, pela substituição do trabalho humano; portanto, não seria necessário no futuro um contingente tão grande de pessoas trabalhando. Dessa forma, o principal problema econômico seria de distribuição de riqueza, não mais de escassez. A nova onda de inovação tecnológica tem características que a diferem das anteriores, como as da eletricidade, do automóvel, do computador, da internet. Entre elas, a ruptura do padrão de crescimento dos empregos concomitante ao crescimento econômico. Isso nos leva a três questões distintas. Em primeiro lugar, a questão da distribuição de renda enquanto processo a ser revisto e adequado aos novos tempos; em segundo, a questão da transição segura de uma sociedade economicamente baseada na renda do trabalho e emprego para outra em que não haja para muitos; e, por último, mas não menos importante e desafiador, a construção e a viabilização de alternativas para a falta do trabalho enquanto fonte de significado e propósito subjetivos de vida. A chegada dos chamados modelos de IA do tipo LLM – Large Language Models –, treinados a partir de algoritmos de aprendizagem profunda, com uso de quantidades colossais de dados, permitiu o desenvolvimento de produtos surpreendentes, como o ChatGPT, o Bard e o Midjourney. Esses produtos furaram a bolha técnica onde essa tecnologia vinha sendo desenvolvida, ao possibilitar que milhões de pessoas e organizações pudessem utilizar seus recursos nas mais diferentes aplicações. Ao mesmo tempo, trouxeram a concretude das possibilidades de substituição de inúmeras tarefas e funções humanas, reacendendo antigos temores. Neste momento, há enormes diferenças entre as pesquisas e as projeções sobre o impacto dessas tecnologias. Há argumentos frágeis, e mesmo outros desonestos, tentando desqualificar as preocupações com o risco da eliminação de muitos postos de trabalho. Alguns destes apelam para uma aritmética primitiva e descabida, de que novos empregos e profissões surgirão e compensarão aqueles perdidos. Há dois equívocos nesta lógica: a de que o futuro sempre repete o passado e a de que se trata de uma conta de subtração. A realidade põe por terra esses argumentos: por um lado, milhões de pessoas desempregadas ou subempregadas, por outro, milhares de vagas não preenchidas pelas empresas por conta da sofisticação das competências exigidas. Isto sem falar do fenômeno da precarização do trabalho, bem representado pelos modelos de plataformas digitais. O pensamento de risco sugere que deveríamos considerar um cenário de intensa substituição de postos de trabalho por sistemas, robôs e máquinas e de crescimento da oferta de postos de trabalho precarizados. Não há mal algum, nessas circunstâncias, em nos prepararmos para isto. A história nos mostra o quanto é mais sábio prevenir do que remediar. E, preparados para o adverso, sabendo que a imagem do futuro não está ainda formada, poderemos esperar pela serendipidade. Marcelo Augusto Vieira Graglia é engenheiro mecânico e mestre em Engenharia pela Unesp. Doutor em Tecnologias da Inteligência e pós-doutor em Inteligência Artificial pela PUC-SP, onde é professor do Departamento de Administração e coordenador do PEPG em Tecnologias da Inteligência e Design Digital.

Christian Laval: “Para que educar?”

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Sociólogo francês aponta: reduzida à eficiência, competição e performance, finalidade educativa perdeu o sentido. Leva jovens a frustração e alimenta a anomia – onde a lógica empresarial ocupa o vácuo. Como transformar a resistência em ofensiva? Christian Laval – OUTRAS MÍDIAS – 16/10/2025 Por que aprendemos o que aprendemos? E de que forma o discurso comum sobre a educação, ainda que de maneira instintiva, ecoa políticas econômicas dominantes, instaurando a lógica da competição de mercado até mesmo dentro do setor público? Esse é um roteiro bem conhecido e frequentemente questionado por educadores.  Aos poucos, a escola vai sendo colocada sob pressão por metas de desempenho e exigências de rentabilidade. Com isso, o clima escolar, ou seja, a forma como professores e demais profissionais da educação vivenciam o cotidiano da comunidade escolar, acaba sendo diretamente afetado. “A escola deveria ser o lugar onde se formam cidadãos capazes de pensar e participar da vida coletiva — não apenas indivíduos treinados para o mercado.” A afirmação é do sociólogo francês Christian Laval, professor emérito da Universidade Paris-Nanterre, e sintetiza uma de suas principais críticas ao avanço do neoliberalismo na educação. Reconhecido internacionalmente por seus estudos sobre o tema, Laval é autor de obras fundamentais como A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal e A escola não é uma empresa. Nessas publicações, ele analisa como a lógica da concorrência, da performance e da rentabilidade passou a moldar não apenas as políticas públicas, mas também a cultura escolar e a subjetividade dos indivíduos. Em entrevista ao Porvir em São Paulo (SP), antes de participar do Seminário Educação Insurgente, promovido pela Escola da Árvore, em Brasília (DF), Laval reflete sobre os efeitos dessa racionalidade neoliberal na vida cotidiana de escolas e universidades, nas relações entre professores e alunos, e no próprio sentido de educar. Para ele, o desafio contemporâneo está em recuperar o ideal de uma educação comum e democrática, capaz de promover a reflexão crítica e fortalecer a vida coletiva. “Quando a escola se torna uma empresa, perdemos de vista sua verdadeira missão: formar sujeitos livres e solidários.” Leia abaixo destaques da conversa. Como o neoliberalismo transcende a economia para impactar políticas educacionais e o cotidiano de escolas e universidades? Para entender isso, é preciso começar dizendo que o que entendemos por neoliberalismo não é simplesmente uma política econômica particular, uma política monetária ou uma política de oferta. O neoliberalismo é, na verdade, muito mais uma lógica geral de governo da sociedade e dos indivíduos. Creio que este é o ponto fundamental. Não se trata apenas de gerir as finanças, as contas públicas de outra forma, ou de favorecer apenas as empresas. É mais complicado. O neoliberalismo é a ideia de que toda a sociedade deve ser submetida a uma lógica de concorrência, a uma forma empresarial. É a ideia de que o mercado e a empresa são formas universais que devem ser aplicadas a todas as atividades e esferas institucionais. Uma vez que compreendemos isso, podemos nos perguntar como essa lógica se aplica a diferentes setores como a saúde, a justiça e, claro, a educação. Concretamente, políticas neoliberais na educação promovem a concorrência entre os setores público e privado, e até mesmo dentro do setor público. A doutrina neoliberal supõe que a concorrência é um fator de eficiência e um estímulo que pressiona os profissionais a darem o melhor de si. Poderia exemplificar? Isso significa entrar em uma lógica de mercado, onde cada instituição de ensino deve se ver como uma unidade em um mercado educacional. Essa ideia tem efeitos diretos na organização interna: o diretor da escola se torna um “manager”, um chefe de empresa, e os professores são vistos como funcionários que devem seguir uma lógica de rentabilidade e performance. Cria-se, então, uma lógica bizarra, especialmente no setor público. O serviço educacional, que a priori não é um serviço comercial, passa a ser tratado como se fosse. Introduzem-se critérios e ferramentas de avaliação que transformam a educação em uma “quase-mercadoria”. Ela não tem necessariamente um preço, como no setor privado, mas é tratada como uma mercadoria fictícia. Isso altera todas as relações… Sim. Altera as relações entre professores e alunos, e entre professores e famílias, que passam a se ver como “consumidores” de escola ou “investidores” em educação. A própria linguagem da educação muda. Não se formam mais cidadãos ou seres humanos adultos; formam-se consumidores e investidores. A grande mudança é na mentalidade, na subjetividade. O que se desenvolveu foi um utilitarismo profundo e generalizado, que afeta a relação dos alunos com o saber. Por que se aprende? Para obter um diploma. Por que obter um diploma? Para ter uma boa profissão e ganhar dinheiro. O saber se torna uma ferramenta econômica para alcançar uma posição social e renda, perdendo seu valor intrínseco e passando a ter apenas um valor instrumental. Em diferentes contextos, o foco em métricas de eficiência e desempenho não está apenas gerando insegurança. Ele não estaria também esvaziando o debate sobre a própria finalidade democrática da escola? Sim, você toca no ponto importante: para que educar? Qual é a finalidade da educação? Essa questão foi amplamente deixada de lado em favor de considerações sobre meios, eficiência e performance, o que é típico de uma lógica empresarial. A discussão se resume à relação entre “input” (investimento) e “output” (resultados), despolitizando a educação como se ela fosse apenas uma questão econômica. Esquecemos pelo caminho que a finalidade educativa poderia ser a de construir uma sociedade democrática, com igualdade real e cidadãos capazes de participar da vida coletiva, deliberar e decidir. Esse ideal iluminista, republicano, de formar cidadãos com capacidade de reflexão e crítica, foi descartado para formar o que chamo de “homem econômico”, alguém feito essencialmente para a economia. O que o “homem econômico” representa na educação? Essa ideia gera uma profunda perda de sentido na educação. Para aqueles com vantagens sociais, o sistema funciona. Mas para as classes populares, a promessa de que a escola lhes trará uma posição melhor não se cumpre, devido à reprodução social. Isso cria uma frustração enorme e uma visão da democracia como algo sem sentido. Esse cenário favorece o que os sociólogos chamam de anomia (a perda de normas), gerando insegurança e delinquência. A ideia de que a economia poderia dar sentido à educação é um fracasso. Em resposta a essa anomia, os setores mais autoritários, a extrema-direita, propõem o reforço da autoridade. Eles acreditam que, se a economia não é suficiente para dar sentido e integrar a todos, a solução é mais repressão e mais autoridade. É compreensível que, à economização da vida, se responda com uma politização autoritária, uma resposta que eu qualificaria como neofascista, tendência que vemos em todo o mundo. Professor, seu livro sobre educação democrática fala em passar da crítica para uma “ofensiva da democracia”. Como podemos transformar a resistência em construção, criando alternativas concretas na educação e na sociedade? O sentimento de ter que resistir a essa lógica mundial é algo universal entre os professores. Muitos resistem, seja de forma passiva, limitando os efeitos negativos das políticas neoliberais, ou de forma ativa, com mobilizações sociais e sindicais. No entanto, a resistência por si só é insuficiente. Todos que resistem se perguntam: “O que podemos fazer? O que podemos propor?”. Não basta recusar; é preciso afirmar uma nova finalidade, uma nova organização para o ensino. É preciso uma refundação do ensino. Quais os entraves para a refundação do ensino? O que nos enfraquece e nos leva ao desespero é a falta de um objetivo claro. Perdemos o sentido do projeto: que educação construir? Como refundar a escola e a universidade? É isso que busquei abordar com meu colega Francis Vergne no livro Educação democrática – A revolução escolar iminente (Editora Vozes, 272 páginas). Usamos a expressão do filósofo Jacques Derrida sobre fazer “propostas ofensivas”. É o que tentamos fazer neste livro. Diante deste cenário, o senhor defende uma abordagem baseada em princípios como a liberdade de pensamento, produção da igualdade, cultura comum, pedagogia da cooperação e autogestão. Como podemos colocá-los em prática? Tudo é e será muito difícil. Para compreendê-la, é preciso entender que nosso objetivo é tornar visível um sistema educacional coerente, fundamentado em uma abordagem sistêmica. Não se trata de melhorias pontuais, mas de conceber uma nova estrutura para a educação, alinhada a um propósito genuinamente democrático. Primeiramente, é necessário ter clareza sobre qual modelo de sociedade buscamos. O que define uma sociedade democrática? Christian Laval – Em linhas gerais, uma sociedade democrática é aquela em que todos os indivíduos, em condições de igualdade, podem deliberar e participar das decisões que os afetam diretamente. O princípio fundamental da democracia é o autogoverno. A questão que se impõe é: como seria uma sociedade com um autogoverno mais desenvolvido? Abraham Lincoln definiu a democracia como “o governo do povo, pelo povo e para o povo”. Essa é a base de tudo. Ao considerarmos essa premissa, percebemos que não vivemos, de fato, em uma sociedade plenamente democrática, pois estamos submetidos a decisões das quais não participamos. Portanto, o desafio central é construir uma sociedade democrática efetivamente fundada no autogoverno. A partir dessa definição, podemos, então, desenhar um sistema educacional correspondente. Não nos iludamos: a revolução escolar que idealizamos só ocorrerá em conjunto com uma reorganização mais ampla da sociedade, baseada em finalidades verdadeiramente democráticas. Com a pressão por uma formação que prioriza o mercado de trabalho, que cultura escolar é possível construir para garantir o desenvolvimento integral dos estudantes? Uma cultura para a democracia. Uma cultura que vá além das competências exigidas pelas empresas. Embora seja evidente que o sistema educativo deva formar trabalhadores qualificados, isso não é suficiente para a formação de um adulto responsável. Nós pertencemos a uma coletividade com interesses comuns. Uma educação hiperespecializada cria o perigo de que as pessoas não tenham mais como se comunicar umas com as outras. A questão sobre o que constitui uma cultura comum existe desde o século 18. Hoje, essa cultura deve incluir conhecimentos essenciais para o exercício democrático. Isso significa conhecimentos de sociologia, política e, fundamentalmente, ecologia. É um dever de todo educador oferecer aos alunos com o mínimo saber sobre a crise climática, por exemplo. Além disso, a cultura comum supõe uma reorganização dos saberes. A separação estrita entre as ciências sociais e as ciências naturais é um grande problema, pois as questões atuais, como a ecológica, exigem uma compreensão da interação entre as atividades humanas e a natureza. Precisamos pensar em um saber mais integrador. Com a chegada da inteligência artificial, como a educação pode desenvolver uma abordagem crítica para integrar essa tecnologia, sem cair na armadilha do tecnocentrismo? Esse é um perigo iminente. O que está acontecendo é uma transferência do conhecimento humano para a máquina, como a inteligência artificial generativa. Isso se assemelha ao que Marx analisou no século 19 sobre a maquinaria industrial: um processo que transfere o saber-fazer humano para um sistema maquínico e, ao mesmo tempo, individualiza a relação de cada um com a máquina. O que está em risco é a aprendizagem coletiva. Embora cada um aprenda de forma singular, há uma dimensão coletiva e cooperativa no aprendizado: aprendemos juntos, conversando, trabalhando juntos. Para compensar a individualização tecnológica, a escola deve desenvolver ao máximo todas as práticas de cooperação possíveis: trabalhos em grupo, trocas entre alunos, etc. Isso é fundamental, pois é na escola que se aprende a “colocar em comum” nossos saberes e desejos, que é a chave da democracia. Fomos muito influenciados por pedagogos como John Dewey, que dizia que a democracia se aprende através da experiência democrática na própria escola. Não se trata de despejar um saber sobre os alunos, mas de colocá-los para trabalhar juntos para que adquiram conhecimento coletivamente. O debate educacional no Brasil tem buscado valorizar a diversidade do país. O que é necessário para construir uma educação que reconheça os saberes locais e respeite as raízes indígenas e afro-brasileiras, em vez de se limitar a testes padronizados e a um currículo homogêneo? O projeto de se libertar da uniformização ocidental é um desafio enorme, especialmente quando modelos como o capitalismo e o Estado-nação já foram importados. A questão é: como, a partir dessa imposição, podemos traçar um caminho original? Em meu trabalho com Pierre Dardot (“A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal?, Boitempo Editorial, 416 páginas), argumentamos pela necessidade de uma pluralidade de mundos. A mudança não virá de cima. Acredito que são as dinâmicas sociais, as lutas e os movimentos de base, como os movimentos indígenas, que podem reinventar a sociedade a partir de traços originais. Esses movimentos, ao lutarem por sua autonomia, necessariamente pensarão no tipo de educação de que precisam. A dificuldade está em como mesclar esses traços originais com uma cultura comum democrática. O interessante é que os movimentos indígenas, por exemplo, não buscam apenas o isolamento. Eles se dirigem ao mundo dizendo: “Temos algo a lhes oferecer”, como uma nova relação com a natureza que pode servir a todos. A luta deles contra o agronegócio e o desmatamento, por exemplo, pode inspirar e renovar a cultura crítica global. O que esses movimentos podem trazer para a educação de todos é precisamente uma consciência ecológica e uma nova relação com a natureza. Isso me parece absolutamente urgente e indispensável. Que saberes e competências são essenciais ao educador que atuará na linha de frente para construir a sociedade democrática, cooperativa e autônoma que o senhor propõe? Esta é uma questão central, uma questão decisiva: como educar os educadores? O maior problema está na reprodução dos mesmos modelos. Quem foi formado em uma escola tradicional, marcada por métodos autoritários e centrados na exposição oral do professor, tende a reproduzir os únicos modelos que conheceu. Foi moldado dessa forma. Então, como esse educador poderia se transformar? Minha resposta é simples: pela experiência democrática. Somente vivenciando a democracia os educadores podem transformar-se de fato. E o que isso significa? Que a escola, a meu ver, deve formar pessoas capazes de se autogovernar. Por onde começar? Dentro da própria escola, que também precisa incorporar formas de autogestão. Se o educador está preso a relações hierárquicas rígidas, subordinado a um diretor ou inserido em uma burocracia local, ele vive uma experiência de obediência e controle. E como esperar que alguém que apenas cumpre ordens forme sujeitos autônomos? Ele acaba reproduzindo o que vivencia. A única saída possível é que o próprio educador seja autônomo. Mas não estamos falando de uma autonomia individualista, e sim de uma autonomia coletiva. Os professores precisam assumir responsabilidades em suas escolas e enxergar-se como agentes do autogoverno educacional. Isso significa criar espaços e práticas de autogestão nos ambientes escolares. Claro, isso não quer dizer que cada um faça o que quiser. É necessário estabelecer um marco legal e institucional, com regras claras. Mas, dentro desse marco, deve-se cultivar o sentido de responsabilidade coletiva. E qual caminho evitar?  O pior cenário é o do autoritarismo local, ou seja, a dependência de um chefe que centraliza o poder. Nesse modelo, o professor apenas repete o que sofre. Educar os educadores significa dar a eles condições para autogovernar suas escolas. Isso vale também para o trabalho pedagógico. Professores, por exemplo, poderiam reunir-se por área para discutir o currículo, propor mudanças e refletir coletivamente sobre os métodos de ensino. Em todos os níveis, os educadores devem atuar como adultos responsáveis. Afinal, são eles que detêm o conhecimento, são os responsáveis por ensinar e também devem ter voz nas decisões sobre como ensinar. Hoje, na França, isso faz muita falta. A formação de educadores é um desafio grave: há pouca ou nenhuma formação continuada. E, quando há, ela raramente se baseia na auto-organização docente. Acredito profundamente na ideia de que os professores devem poder se organizar por escola e por disciplina, para decidir juntos, em diálogo com universidades, pesquisadores e outros atores, o que é mais relevante ensinar. Para mim, essa é a essência de uma escola democrática: educadores democráticos, com autonomia e responsabilidade coletivas.

Aposta na vassalagem, por Thomas Palley

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Socorro financeiro de Trump e FMI tem objetivos claros: sustentar Milei e seu projeto até as eleições, fazer de Buenos Aires a fortaleza de Washington na América Latina e contrapor-se à presença chinesa. Mas e se o povo argentino disser não? Thomas Palley – OUTRAS PALAVRAS – 15/10/2025 A Argentina voltou aos noticiários com a renovada turbulência financeira impulsionada pela má reputação política do presidente Milei. Essa má reputação é fruto da indignação com o péssimo desempenho econômico da Argentina e da corrupção maciça dentro do governo Milei, e é um mau presságio para o desempenho de seu partido nas próximas eleições de outubro de 2025. Em resposta, o FMI e os EUA entraram em ação para salvar o governo de Milei. O FMI já havia fornecido um resgate de US$ 20 bilhões em abril de 2025. Agora, o governo dos EUA forneceu outros US$ 20 bilhões (na forma de uma linha de swap cambial entre bancos centrais). Além disso, os EUA expressaram disposição para fornecer crédito stand-by adicional e até mesmo comprar dívida do governo argentino. A mídia tem se concentrado na longa e problemática história financeira da Argentina, na difícil situação inflacionária que o presidente Milei herdou e na afinidade política do presidente Trump com Milei. No entanto, isso não explica por que o FMI e os EUA forneceram uma assistência tão grande à Argentina, dada a sua falta de credibilidade. O apoio a Milei deve ser entendido como uma continuação dos empréstimos passados aos presidentes Macri (2015-2019) e Menem (1989-1999). O objetivo é enraizar o neoliberalismo na Argentina e aprisioná-la com dívida em dólar. Ele é apoiado pelas elites locais porque elas são as beneficiárias do neoliberalismo e também porque conseguem saquear o Estado argentino por meio do processo de endividamento.
  1. A complicada verdade na Argentina
Chegar à verdade na Argentina é como “descascar uma cebola”. Primeiro, é preciso descobrir a real situação econômica, que é fundamentalmente diferente daquela descrita pela mídia mainstream. Em seguida, é preciso introduzir a política e trazer à tona as reais agendas que impulsionam os eventos. Depois, é preciso explicar como esses eventos funcionam e suas consequências. Uma vez descascada a cebola, a imagem que surge é a de que a assistência financeira do FMI e dos EUA é uma interferência eleitoral visando salvar o presidente Milei e seu programa neoliberal extremista; diminuir a influência econômica da China; e algemar financeiramente a Argentina por meio do endividamento em dólar. Além disso, a assistência permite o saque tácito do Estado argentino pelas elites argentinas e multinacionais americanas. Esse é um quadro muito diferente daquele apresentado pela grande mídia e pelos principais economistas.
  1. O mito do milagre econômico de Milei
O ponto de partida é o desempenho econômico da Argentina, que tem sido descrito de forma efusiva pela grande mídia como um “milagre econômico”. Por exemplo, o New York Times declarou que Milei estava “à beira de alcançar um milagre econômico” antes da recente turbulência financeira. Essa formulação é crucial porque distorce a percepção pública, dando legitimidade econômica aos empréstimos do FMI e dos EUA. A verdade é que não houve milagre. As políticas de Milei foram uma catástrofe tanto para os argentinos comuns quanto para o futuro da Argentina. Essa realidade explica a impopularidade política de Milei, que gerou temores no mercado financeiro. Milei assumiu o cargo em dezembro de 2023, e a Argentina está em profunda recessão desde então. A recessão foi causada por uma austeridade fiscal extrema que reduziu drasticamente os serviços públicos e o investimento; uma taxa de câmbio extremamente sobrevalorizada que enfraqueceu a balança comercial; e uma desregulamentação que aumentou os lucros às custas dos salários. A recessão é visível no colapso da produção industrial e do crescimento do PIB. A produção industrial permanece em queda, mas algum crescimento do PIB finalmente retornou (como sempre iria acontecer porque as economias não encolhem para sempre). No entanto, a recuperação foi fraca e a economia encolheu. Além disso, o quadro é ainda pior porque o PIB não capta miséria, fome e insegurança. A insegurança alimentar e a fome inicialmente dispararam, com o escorbuto aumentando entre os pobres. A taxa oficial de pobreza agora diminuiu novamente, mas ela subestima a situação por não reconhecer os preços massivamente mais altos da água, gás e eletricidade. As pensões dos aposentados foram dizimadas, os preços dos medicamentos prescritos dispararam, e o governo Milei também reprimiu brutalmente os protestos de aposentados. As políticas de Milei não apenas causaram uma recessão econômica, mas também sabotaram o futuro da Argentina. O colapso do investimento público e privado significa um estoque de capital menor. Os cortes nos gastos com educação e saúde significam uma população menos educada e mais doente. E o corte no apoio às universidades e às artes é um ataque às indústrias de alto valor do futuro (como tecnologia da informação, ciências médicas e produção cinematográfica), e contribuiu para uma maior fuga de cérebros da Argentina. Os empréstimos estrangeiros de Milei também significam aumento nos pagamentos de juros futuros, o que sobrecarregará o orçamento do governo, limitará as possibilidades de política econômica e ameaçará permanentemente uma crise financeira. O único resultado econômico positivo é a taxa de inflação, que caiu significativamente, mas mesmo aqui a história é complicada. A inflação inicialmente aumentou significativamente sob Milei. Embora tenha voltado a cair, ainda está em 35% ao ano. O governo anterior de Fernández perdeu o controle da inflação, mas também herdou uma taxa de inflação de 50% do governo Macri anterior. Além disso, a inflação só acelerou em 2022 quando as consequências da pandemia de Covid surgiram. A taxa de inflação da Argentina saltou cinco vezes, como também aconteceu em outros países. No entanto, dada a alta inflação inicial da Argentina e sua vulnerabilidade estrutural à inflação, o aumento absoluto foi muito maior. Em suma, não houve nenhum “milagre econômico”. O programa de Milei nunca poderia ou pretendeu produzir prosperidade compartilhada na Argentina. Em vez disso, é um programa ultra-neoliberal que visa baixar a inflação por meio de uma recessão profunda e uma taxa de câmbio sobrevalorizada; aumentar os lucros às custas dos salários por meio da desregulamentação e do enfraquecimento do trabalho; permitir que o capital explore os recursos naturais da Argentina; e usar a austeridade fiscal para destruir as instituições sociais que promovem o bem-estar e o progresso da sociedade.
  1. O FMI e os EUA: a política do saque e do endividamento
O caráter desastroso do programa econômico de Milei levanta a questão de por que o FMI e os EUA se apressaram em fornecer um resgate financeiro. Isso introduz a questão política. Para Milei, um resgate financeiro é essencial para seu futuro político. As elites argentinas também o apoiam, pois são as beneficiárias do programa. Mas e quanto ao FMI e aos EUA? 3.a O FMI como uma ferramenta útil dos EUA O FMI é o mais fácil de entender. Ele é dominado pelos EUA e há muito é um bastião do neoliberalismo, ajudando a espalhar e impor esse sistema global nos últimos 40 anos. Isso torna fácil apoiar Milei, que é submisso aos EUA e alinhado com ao ultra-neoliberalismo. O aspecto incomum do momento atual é a cumplicidade aberta do FMI, que o leva a violar seus próprios protocolos de maneiras que o colocam em risco legal no futuro. As marcas da corrupção política estão por toda parte no empréstimo de US$ 20 bilhões do FMI. Primeiro, apesar da significativa oposição ao empréstimo dentro do Conselho Executivo do FMI com base no argumento de que o empréstimo não atendia aos padrões de crédito, ele ainda foi forçado a passar pelos EUA e seus aliados. Quando somados aos empréstimos pré-existentes, mais de 40% do total de empréstimos do FMI serão para a Argentina, o que potencialmente coloca a solvência financeira do FMI em risco. Em segundo lugar, o novo empréstimo foi concedido sem rigorosas condicionalidades econômicas, que são parte integrante dos pacotes de empréstimos do FMI. Essa ausência não se deve à mudança de postura neoliberal do FMI. Trata-se, sim, de uma condição que prejudicaria a economia argentina, comprometendo assim o propósito político do empréstimo, que é ajudar Milei a vencer as eleições de outubro de 2025. O propósito abertamente político do empréstimo do FMI fica evidente nos comentários de abril de 2025 da Diretora-Geral do FMI, Kristalina Georgieva, que declarou publicamente na reunião anual de primavera do FMI: “O país terá eleições em outubro e é muito importante que elas não descarrilem a vontade de mudança. Até o momento, não vemos o risco se materializando, mas eu instaria a Argentina a manter o rumo.” Suas declarações violam os protocolos fundamentais do FMI que proíbem interferência política.
  1. Os EUA e a interferência eleitoral na Argentina
O fornecimento de assistência financeira dos EUA não passa nos testes econômicos convencionais, e seu propósito é político. O objetivo é salvar o governo Milei, excluir a China e aprisionar a Argentina com dívida em dólar. Os EUA intervieram em nome de Milei porque ele é ideologicamente pró-EUA e pró-empresas americanas, enquanto seus rivais são nacionalistas argentinos pragmáticos. Eles acreditam que as empresas (incluindo as multinacionais americanas) devem responder ao Estado argentino e estão dispostos a negociar com a China se isso for em benefício da Argentina. Isso é um anátema para Washington, D.C. Para os EUA, Milei é o “nosso cara”, que está do lado dos EUA e trata as multinacionais americanas de forma favorável. Emprestar dinheiro à Argentina é uma interferência eleitoral. A esperança é que um empréstimo maciço possa evitar uma crise financeira até depois das eleições para o Congresso em outubro, salvando assim o governo de Milei. Inicialmente, os EUA pensaram que conseguiriam levar Milei até o fim com empréstimos do FMI, do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). No entanto, isso se mostrou insuficiente, obrigando o Tesouro americano a intervir diretamente. Entre parênteses, esse processo de empréstimos do FMI (e do Banco Mundial e do BID) para fins de interferência eleitoral não é novo. As mesmas táticas foram usadas em 2019 para apoiar o presidente Macri, então o candidato favorito dos EUA. O FMI emprestou US$ 40 bilhões ao governo Macri, o maior empréstimo da história do FMI. Macri perdeu a eleição, os US$ 40 bilhões evaporaram e o governo seguinte ficou com o ônus disso. O ânimo anti-chinês que motiva a política americana é evidente na condição de que a assistência americana esteja condicionada à substituição do atual acordo de swap cambial da Argentina com a China por um acordo apoiado pelos EUA. O acordo de swap China-Argentina foi estabelecido em 2009. Ele se baseia na lógica comercial, visto que os países mantêm um comércio massivo e mutuamente benéfico envolvendo produtos manufaturados e agrícolas argentinos. Os EUA querem sabotar essa relação, protegendo a Argentina dos EUA, reduzindo assim seu poder. Por fim, há indícios de negociações privadas impróprias por parte do Secretário do Tesouro dos EUA, Bessent. Há relatos de que Bessent impulsionou tanto o empréstimo de abril do FMI quanto a proposta americana de setembro para resgatar seu sócio em Wall Street, Robert Citrone, e outros fundos de Wall Street que haviam apostado especulativamente em títulos argentinos. Essas apostas fracassaram com as crescentes dificuldades políticas de Milei. O resgate de Bessent impulsionou uma recuperação do preço dos títulos argentinos que salvou e beneficiou Wall Street.
  1. A mecânica do saque e do endividamento da Argentina
A parte óbvia dessas negociações é a interferência eleitoral e o endividamento em dólar. A parte menos óbvia é a mecânica do saque. O processo de saque centra-se na taxa de câmbio sobrevalorizada que artificialmente torna o peso mais valioso. Isso significa que aqueles com pesos excedentes (ou seja, a elite argentina) podem lucrar com a sobrevalorização comprando dólares a um preço subsidiado. A conta é paga pelo Estado argentino, que vende os dólares que tomou emprestado e se endivida em dólar. Este processo tem sido usado repetidamente por governos argentinos anteriores, pró-negócios e pró-EUA. Ele explica como o empréstimo anterior de US$ 40 bilhões do FMI em 2019 ao presidente Macri evaporou sem deixar rastro. O processo ficou evidente após o novo empréstimo do FMI. A Argentina suspendeu imediatamente a maioria de seus controles de capital, permitindo que empresas e indivíduos ricos comprassem dólares subsidiados. O processo também ficou evidente após a declaração de apoio dos EUA. A Argentina suspendeu temporariamente o imposto de exportação de grãos e soja, e houve uma onda massiva instantânea de exportações. Essas exportações saíram isentas de impostos, beneficiando grandes exportadores agrícolas que apoiam a Milei. O Estado argentino perdeu uma enorme quantidade de receita de impostos de exportação, que é essencial para as finanças públicas argentinas. Dado o enfraquecimento dos controles de capital, essas vendas de exportação abundantes puderam então ser convertidas em dólares, causando um golpe duplo. Os exportadores agrícolas sonegaram impostos e compraram dólares subsidiados. O Estado argentino perdeu receita tributária e se endividaram em dólares. O dólar sobrevalorizado também tem sido usado para saquear a classe média argentina. Essas famílias acumulam dólares como uma forma de poupança para “tempos difíceis”. A recessão econômica causada pelas políticas de Milei as compeliu a vender dólares para chegar ao final do mês. A taxa de câmbio sobrevalorizada significa que elas receberam menos, e seus dólares foram aspirados por aqueles com pesos excedentes. Isso, assim, contribuiu para uma maior redistribuição adversa de riqueza dentro da Argentina.
  1. Os empréstimos do FMI e dos EUA são “dívida odiosa”
Dívida odiosa, também conhecida como dívida ilegítima, é uma doutrina do direito internacional segundo a qual dívidas contraídas ilegitimamente não precisam ser quitadas. Normalmente, ela é vista pela ótica do caráter do mutuário, mas a fraude também pode ser cometida por credores e mutuários que colaboram. De fato, é mais fácil quando isso acontece. Para garantir o uso adequado do crédito, os credores têm uma responsabilidade e dever legal de garantir que os fundos sejam usados adequadamente e que os mutuários sejam capazes de reembolsá-los. Os empréstimos do FMI e dos EUA falham nesse teste fundamental, tornando-os dívida odiosa. Os empréstimos foram feitos explicitamente para fins políticos, e não comerciais, e não passam nos testes apropriados de credibilidade. Além disso, o empréstimo do FMI de abril de 2025 contornou uma lei argentina de 2021 que exigia aprovação congressional para empréstimos do FMI. Essa lei foi explicitamente aprovada para evitar a repetição do saque que ocorreu com o empréstimo de US$ 40 bilhões do FMI em 2019 ao presidente Macri. No entanto, Milei autorizou as negociações por decreto executivo, que só pode ser anulado por uma maioria de dois terços em ambas as casas do Congresso. O FMI e os EUA estão ambos cientes dessa manobra política, o que os incrimina ainda mais. Nesta fase, para parar o saque adicional e o endividamento em dólar da Argentina, a oposição política deve declarar que as novas dívidas com o FMI e os EUA serão tratadas como odiosas e não pagas. Mesmo que a declaração não tenha força legal imediata, ela deve desencorajar empréstimos adicionais e deslegitimar ainda mais qualquer empréstimo adicional que venha a ocorrer.
  1. Colonização pela dívida: quo vadis, Argentina?
A história de Milei é a história dos presidentes Macri e Menem, apenas mais cruel. Cada um perseguiu políticas neoliberais extremas baseadas em uma taxa de câmbio sobrevalorizada, endividamento externo, aperto da classe trabalhadora e privatização e desregulamentação. Cada um deles foi apresentado como um “milagre econômico”, mas nunca foi o caso. Em todas as ocasiões, o Estado argentino foi retratado como o problema fundamental, e em todas as ocasiões o Estado foi saqueado e ainda mais aprisionado por dívidas em dólares, enquanto sua riqueza era transferida para as elites econômicas. E em todas as ocasiões, o FMI e os EUA foram os principais facilitadores. Os presidentes Milei, Macri e Menem são todos parte de uma história comum. Essa história é o saque neoliberal e o endividamento da Argentina. A interferência eleitoral do FMI e dos EUA pode ainda garantir a vitória de Milei. Se isso acontecer, a Argentina se tornará uma colônia de dívida dos EUA. Também se tornará ainda mais desigual com um ultraneoliberalismo enraizado. A grande mídia e os economistas a descreverão como um milagre, mas será miséria para aqueles que vivenciarem o milagre.