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O golpe impune no cerrado, por Marcelo Leite.

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Condenação é pouco para todo o mal que a boçalidade ruralista já causou Marcelo Leite, Jornalista de ciência e ambiente, autor de “A Ciência Encantada de Jurema” (ed. Fósforo). Folha de São Paulo, 15/09/2025 Sessenta e oito anos cumpridos neste domingo (14) é tempo suficiente para ver de tudo acontecer. Há 52 anos, a morte de Salvador Allende no golpe do Chile, sob as ordens de um Augusto Pinochet que matou 3.000 adversários políticos e é por isso admirado por aprendizes no Brasil. Há 24 anos, a queda das torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York. Morreram outras 3.000 pessoas, um décimo do que o inelegível defendia matar numa guerra civil brasileira. Há três dias, o sentenciamento a 27 anos de prisão do presidente que se mandou para os EUA, de onde pretendia assistir pela TV o golpe de seus kids pretos. O mesmo que sustenta lá o filho quinta-coluna conspirando contra o próprio país. Vinte e sete anos é tempo insuficiente para punir alguém cujas ações e omissões causaram 95 mil dos mais de 700 mil óbitos por Covid sob seu governo. Brasileiros mortos por falta de oxigênio, de quem o covarde fez troça imitando-lhes a asfixia. Mas justiça não é vingança, pontificam comentaristas com a razão. Cadeia serve para proteger a coletividade, impedindo o criminoso de voltar a delinquir. Sei. O 11 de setembro marca também o Dia do Cerrado, agonizante sob os golpes do agronegócio que elegeu o condenado e pagou acampamentos, caminhões e ônibus de mínions marchando para a festa da Selma em 8 de janeiro de 2023. Haverá entre eles arrependidos, mas não pelos crimes ambientais continuados. De 1985 a 2024, segundo o MapBiomas, o desmatamento do cerrado para cultivo de soja saltou de 6.200 km2 a 120 mil km2, incremento de 19 vezes. Em 2021, percorrendo essa savana mais biodiversa do planeta, chocava ver uma bandeira brasileira sequestrada em cada fazenda (patriotismo, o último refúgio dos vilões). Vilões e também néscios: destruir a cobertura vegetal que regula o ciclo hidrológico perturba o regime de chuvas de que tanto depende a agricultura. Em meio século, desde a década de 1970, a precipitação recuou 21% no cerrado, da média de 680 mm para 539 mm anuais. De acordo com relatório da Ambiental Média, desde a década de 1970 diminuiu 27% o volume de água nos rios do cerrado, manancial dos pivôs de irrigação que pontilham a paisagem. Os mesmos rios que alimentam 8 das 12 principais bacias hidrográficas do país, a tal de caixa d’água do Brasil, crucial para a geração de eletricidade. Quarenta anos foram tempo suficiente para derrubar 405 mil km2 do cerrado, mais de um quarto (28,5%) de sua vegetação nativa. Desde o período colonial, a savana brasileira acumula devastação de pelo menos metade da área, vale dizer, uma perda de cerca de 1 milhão de km2, superfície comparável à do Egito. No governo anterior, houve anos em que o cerrado teve mais desmatamento, em termos percentuais, que a amazônia, bioma que tem o dobro de seu tamanho e concentra as preocupações do mundo. Não as da bancada ruralista que lhe deu sustentação e engrossa o centrão ainda dando as cartas no Congresso, a ponto de aprovar um PL da Destruição. Vinte e sete anos, à sombra da trevosa história do Brasil, até que não é muito. É tempo suficiente para ver de tudo acontecer, inclusive o pior.  

Anistia a Bolsonaro jogaria estabilidade democrática no chão, por Leonardo Weller

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Perdão a golpistas é retrocesso que pode nos levar novamente ao chumbo da ditadura Leonardo Weller, Folha de São Paulo, 14/09/2025 [RESUMO] Conceder indultos a golpistas e conspiradores tem sido uma tradição no Brasil do pós-guerra, o que só incentiva novas tentativas de tomada armada do poder. Se a anistia de 1979 revelou-se depois indispensável para pacificar o país, afinal os militares ainda estavam no poder, repetir agora o perdão judicial a Bolsonaro e demais réus condenaria a uma instabilidade política que já parecia superada, avaliar autor. Vários políticos de direita defendem uma anistia aos réus envolvidos na trama golpista liderada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. Segundo reportagem da Folha, o grupo inclui cerca de 300 deputados, maioria na Câmara. Por detrás desta reação contra o julgamento do STF está o governador de São Paulo, Tercísio de Freitas (Republicanos), que se move com medo da família Bolsonaro e de olho nas eleições presidenciais do ano que vem. Do ponto de vista histórico, a anistia não é uma ideia completamente abilolada. O Brasil foi diversas vezes sacudido por tentativas de golpe, cujos conspiradores acabaram sendo anistiados em indultos que, por sua vez, geravam incentivos para novas conspirações. Esta corrente de instabilidade marcou o sistema político do pós-guerra, a primeira experiência democrática brasileira. Getúlio Vargas se suicidou em 1954 para evitar um golpe montado pela oposição e por setores das Forças Armadas. O vice-presidente Café Filho tomou o poder, mas se ausentou do cargo, dando lugar a Carlos Luz, o presidente da Câmara. Luz se mancomunou com militares com o objetivo de evitar a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek. O ministro da Guerra, o general Lotti, um legalista, deu um golpe preventivo em Luz para garantir que JK assumisse a Presidência. Mesmo assim, em 1959 os militares pegaram em armas contra JK, já presidente, nas frustradas quarteladas de Jacareacanga e Aragarças. Ninguém foi condenado pelas tentativas de golpe da década de 1950, e a conspiração só cresceu nas Forças Armadas, culminando em 1964. Os ditadores não mostraram benevolência enquanto estiveram no poder: o regime militar cassou, exilou, prendeu, torturou e assassinou oponentes ao longo de duas décadas. O general Geisel iniciou um longo processo de abertura ao assumir a Presidência, em 1974. A distensão, contudo, suscitava uma série de questões ao governo. Se deixassem o poder, quem garantiria que os militares não seriam julgados e condenados por seus delitos? O núcleo do regime tinha medo dos civis. Já os linha-dura, que haviam torturado e matado, tentaram armar um golpe contra Geisel. Como de praxe, os conspiradores saíram impunes, mas nem por isso pararam de explodir bombas e perseguir opositores à revelia do comando militar. A redemocratização foi viabilizada por um acordo baseado na Lei de Anistia de 1979, que livrou políticos oposicionistas e os criminosos do regime de qualquer punição, apesar de excluir os guerrilheiros condenados pelos tribunais militares. A anistia era uma garantia sobretudo aos ditadores e agentes da repressão, não à oposição que havia seguido o caminho da luta armada. O oposicionista moderado Tancredo Neves, do MDB, saiu candidato a presidente nas eleições indiretas de 1985, tendo como vice José Sarney, um homem do regime, egresso da Arena. Com apoio de diversos políticos da ditadura, a chapa Tancredo-Sarney bateu Paulo Maluf no Colégio Eleitoral. A anistia e o novo governo civil deram as garantias necessárias para que os militares voltassem aos quarteis, inclusive os linha-dura, que submergiram na política nacional, ao menos até a vitória de Bolsonaro em 2018. No livro “Democracia Negociada: Política Partidária no Brasil da Nova República”, Fernando Limongi e eu argumentamos que, sem as conciliações iniciadas na anistia de 1979, a ditadura teria durado mais, possivelmente sob o julgo da linha-dura. Apesar de ter à época revoltado vários democratas, o arranjo que se concluiu na posse de Sarney foi necessário para a construção de uma democracia sólida e duradoura. Inédito na história do país, o regime em que vivemos não mais permite tentativas impunes de golpe; vem daí a importância do julgamento de Bolsonaro no STF. Se a anistia era indispensável para pacificar o país há quatro décadas, ela terá agora efeito oposto, capaz de jogar por terra a estabilidade democrática conquistada na Nova República. Os militares estavam no poder em 1979, controlando tanto as armas quanto a caneta com a qual se aprovaria a abertura. Naquela época, ou a oposição negociava, ou seguiríamos em um regime de exceção. A situação é hoje bem diversa: os militares não estão no poder, e a maior parte da cúpula das Forças Armadas opôs-se ao golpe de Bolsonaro. Não há mais necessidade de negociar com golpistas. Se políticos de direita emplacarem a anistia, novas tentativas de golpe fatalmente virão, nos condenando ao retorno ao passado, à instabilidade da democracia do pós-guerra ou, pior, ao chumbo da ditadura militar.    

Num mundo de múltiplas crises, precisamos de um Estado forte e inteligente, por Eliane Conceição

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Eliane Barbosa da Conceição, Professora da Unilab-CE e pesquisadora do FGV-CEAPG; doutora em administração de empresas (FGV-SP), mestra em administração geral (Ibmec-RJ) e parceira da Plataforma Justa; Folha de São Paulo, 13/09/2025. A Primeira Turma do STF deve concluir nesta semana o julgamento do primeiro núcleo da trama golpista, formado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e sete de seus aliados. Tudo indica que serão condenados a mais de 30 anos de prisão. A inelegibilidade decretada pelo Tribunal Superior Eleitoral em 2023 já havia praticamente excluído Bolsonaro do pleito de 2026, salvo uma improvável reversão da pena —hipótese ainda acalentada por seus seguidores no Congresso. A condenação iminente no STF, contudo, se confirmada, agrava a situação, afastando de vez qualquer possibilidade de retorno relevante ao cenário político. Nesse vácuo, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, surge como potencial herdeiro do espólio do, talvez, duplamente inelegível. Em 5 de setembro, celebrou a concessão em São Paulo e exaltou a iniciativa privada, reafirmando a centralidade da agenda de privatizações em sua gestão. Esse discurso remete aos anos 1980, quando teve início a primeira onda de reformas administrativas, no bojo da crise do capitalismo após os “anos gloriosos” do pós-guerra. Reino Unido e Estados Unidos, sob Thatcher (1979-1990) e Reagan (1981-1989), foram pioneiros em experiências de redução do papel estatal, que logo seriam replicadas em outros países desenvolvidos. Nos anos 1990, o receituário alcançou a América Latina, impulsionado pelos Estados Unidos e organismos internacionais. O Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 1997, intitulado “O Estado num mundo em transformação”, recomendava que as reformas administrativas na região se dedicassem a privatizações, descentralização, enxugamento dos quadros e flexibilização na contratação de servidores. Esse documento ecoava os princípios mais amplos do Consenso de Washington, que também defendia austeridade fiscal e redução do gasto público. Mantendo o núcleo duro inicial e se reorganizando em torno elementos ou narrativas periféricas, as reformas administrativas e fiscais proliferaram nas décadas seguintes, deixando legados bem diferente dos previstos. Interessante perceber que o relatório de 1997, ao recomendar uma completa alteração do papel assumido pelo Estado no pós-guerra, ressaltava a dificuldade dessa redefinição, uma vez que o “terreno em que se assenta está sempre mudando”. Hoje resta evidente que o terreno mudou —para pior. As reformas legaram desigualdades, concentração de renda e poder, precarização e enfraquecimento da ação pública. Enquanto a Europa, aprendendo com os erros, reestatiza serviços essenciais, o Brasil ainda insiste no mantra da privatização. Num mundo de múltiplas crises, precisamos de um Estado forte e inteligente. Isso exige, sim, revisar privilégios imorais de segmentos do alto funcionalismo do Judiciário, Executivo e Legislativo. Mas, sobretudo, requer valorizar o servidor que está na ponta —professores, médicos, enfermeiros, policiais, assistentes sociais, atendentes— os chamados “burocratas de nível de rua”, na expressão de Michael Lipsky (1980). São eles que garantem a efetividade da ação governamental. É deles que precisamos falar ao pensar uma reforma administrativa à altura dos desafios do século 21.

“Imortalidades” do Giannetti

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Costumamos dizer que, no parto, a mãe “dá à luz” ao filho, mais exato seria dizer que ela “dá o tempo”, seu primeiro minuto: a luz conquistamos ao longo da vida — sempre em busca de não morrer cedo e de transcender à morte Correio Braziliense – 25/06/2025 A história do pensamento mostra que os intelectuais brasileiros se dedicam aos problemas do Brasil, enquanto os europeus abordam grandes temas da humanidade. De tempos em tempos, surgem exceções, como Eduardo Giannetti, que eleva nossa contribuição ao debate universal. Em suas obras, já ofereceu reflexões sobre felicidade, ética e racionalidade. Agora, com o livro Imortalidades, Giannetti une beleza literária à sólida base da história do pensamento e da reflexão filosófica, para tratar de assunto essencial à condição humana: a ideia de que a vida possa transcender sua curta duração biológica. Giannetti adota o estilo de ensaios curtos — 235 ao todo — cada um podendo ser lido independentemente ou em sequência, como um grande romance de ideias em torno da ânsia por imortalidade que caracteriza a única espécie com consciência da própria morte e que não se conforma com esse destino. Retoma anotações acumuladas ao longo de sua vida de leituras, desde muito jovem. Investiga as diversas formas de imortalidade que o ser humano busca incessantemente. Mergulha em mais de 150 obras de 116 autores, incluindo ele próprio, para pensar, especular, compreender e descrever como o desejo de permanência atravessa a história do pensamento, especialmente ocidental, ao longo de milênios. O autor passa por obras orientais e antigas, como o Épico, de Gilgamesh, de 1.800 anos antes de Cristo, e textos de filósofos gregos de 2.500 anos atrás. Todos com a mesma inquietação: o que havia antes de nós e o que virá depois. A ideia de continuidade após a morte foi, talvez, o gesto de maior arrogância do homo sapiens: atribuir a cada um deles o privilégio que, antes, era reservado apenas aos deuses da mitologia clássica. Mesmo os mais materialistas encontram uma forma de sobrevida nos átomos do corpo que, depois da morte, se dispersam no universo. Não há, talvez, expressão mais materialista do que a ideia bíblica de que “viemos do pó e ao pó voltaremos”. Costumamos dizer que, no parto, a mãe “dá à luz” o filho, mais exato seria dizer que ela “dá o tempo”, seu primeiro minuto: a luz conquistamos ao longo da vida — sempre em busca de não morrer cedo e de transcender à morte. A arrogância foi punida pelo medo da morte e do pós-morte. Personagens literários que tentaram ultrapassar a fronteira entre a mortalidade dos homens e a imortalidade dos deuses foram punidos com vidas vazias e trabalho insano. Usam a capacidade intelectual para não morrer — seja ampliando os dias de vida do corpo, seja apostando numa outra existência, seja deixando obras para ser lembrado, ainda que por poucas gerações — e se esquecem de viver. Ele ainda reconstrói a história do surgimento desse desejo de imortalidade e das múltiplas formas de buscá-la, e ainda explica como esse conceito foi gradualmente apropriado e transformado pelas religiões que adotaram a ideia de alma individual e imortal, que se desprende do corpo morto e vai para outra dimensão ou reencarna depois em outros corpos. O livro Imortalidades é um belo e rigoroso estudo sobre a arrogância de querer ser imortal e a consequente tragédia de morrer pelo vazio existencial, inclusive decorrente da ilusão de uma alma eterna. O homo sapiens talvez seja resultado de um erro da evolução natural, ao criar um animal com racionalidade ilimitada, mas incapaz de controlar moralmente seu destino e, inclusive, de aceitar o destino de sua morte definitiva, tratada como fato natural e irreversível. Confundindo viver com produzir e consumir, acaba provocando entropia ecológica e civilizatória e, no limite, o suicídio da espécie. De certo modo, é isso que ocorre com o ser humano moderno que, ao buscar a imortalidade de cada indivíduo, ameaça a própria espécie com suicídio coletivo. A ânsia neurótica de transformar, cada vez mais rapidamente, pedras, plantas e animais em produtos para serem consumidos, define o homem moderno. O cartão de crédito como a chave da imortalidade. Em um trabalho de Sísifo, desperdiçando a curta vida com a ilusão de permanência por meio da riqueza material a ser consumida. Ao ponto de, na era do Antropoceno, destruir o equilíbrio ecológico e ameaçar a própria sobrevivência da espécie. Felizmente, graças, especialmente, aos filósofos existencialistas é possível vislumbrar imortalidade em cada minuto de vida vivido plenamente: “Cada minuto eterno enquanto dura”. Entre essas imortalidades transitórias está a leitura de livros que nos inspiram e deslumbram, fazendo-nos imortais enquanto os lemos: sentimento despertado pela leitura de Imortalidades, de Eduardo Giannetti.

Escolha sua Distopia, propõe Luiz Eduardo Soares

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Novo livro do antropólogo é, a um só tempo, intervenção no debate da Segurança Pública e reflexão de fôlego sobre patrimonialismo, máfias e milícias no coração da República. E a respeito de como o negacionismo histórico nos arrasta para a irracionalidade… Leandro Saraiva – OUTRAS PALAVRAS – 12/09/2025 Os animais, como se sabe, dividem-se em embalsamados, sereias, desenhados com um finíssimo pincel de pelo de camelo, que de longe parecem moscas, e mais alguns tipos. Acredito que as complexidades dessas investigações se estendam aos animais políticos, entre os quais há alguns que muito dificultam os diligentes esforços taxionômicos e taxidérmicos de quem se dedica à estabilização do mundo em catálogos capazes de anestesiar a inquietação da pólis. Luiz Eduardo Soares é um desses seres inemapalháveis. Quem o conhece pelo aspecto frontal de militante da segurança pública, vê apenas a projeção em nível pragmático do estudioso que chegou à secretaria de segurança carioca pelo empenho de pesquisa do contexto social registrado em Violência e política no Rio de Janeiro (1996). Mas quem observa o cruzamento do eixo da ação e do estudo talvez perca de vista uma dimensão filosófica de fundo, que, ao mesmo tempo que desenha equações capazes de dar forma aos problemas, interroga cada termo posto em tela, chamando a atenção para a instabilidade existencial – de poderes, palavras e afetos – dos fenômenos humanos. Um bom nome para o horizonte dessa reflexão seria – como diz o título de outro antigo livro seu, ainda tão atual –, O rigor da indisciplina (1994). E talvez uma outra forma de ver toda a complexidade de vida e morte que Luiz Eduardo, a cada vez, volta a encarar, seja a da narrativa como condição básica da existência. Como são convocados e apresentados os personagens? Como se enredam em tramas que variam entre confrontos e suspenses e mergulhos subjetivos dos quais nem eles próprios conhecem o fundo que lhes contorna a figura? Que vozes comentam e conduzem a jornada? Como os eixos agônicos amarram esses seres em desenlaces ansiados e temidos? Quem acompanha o exercício de alternância entre obras analíticas – como Justiça (2011), Desmilitalizar (2019), O Brasil e seu duplo (2019) ou Dentro da noite feroz (2020) – e as de variadas matizes ficcionalizantes – de O experimento de Avelar (1997), ao recém-lançado O Crânio de Vidro do Selvagem Digital (2025), entremeados por sucessos como Cabeça de Porco (2005) e Elite da Tropa (2006)–, sabe que a origem teatral do autor, no mítico Asdrúbal trouxe o trombone, pulsa na tensão de contrários presentes em tudo que escreve, entre a capacidade de pôr em cena a intensidade de fragmentos dramáticos precisos e o distanciamento reflexivo que revela os andaimes, luzes, sombras, bastidores e espelhos que fazem do encenado uma das infinitas possibilidades da montagem da trama social e existencial. Escolha sua distopia (ou pense pelo avesso) é assim. Dizer que o livro é multidisciplinar, já que mobiliza sociologia, ciência política, filosofia, antropologia, direito, psicanálise, seria um tipo de miopia reversa, que vê mal por excessiva clareza de definição das bordas da constelação de fenômenos em pauta. O eixo de assuntos que encadeia suas quatro seções – a anatomia do poder miliciano, a história da corrosão das polícias, a sombra de Junho de 2013 e, por fim, o plot twist do potencial pragmático-utópico dos Direitos Humanos – é enganoso em sua linearidade sequencial, já que a cada conjunto de ensaios reunidos em cada seção, ou a cada movimento reflexivo de cada ensaio ou até mesmo a cada peça invocada para o quebra-cabeça de nossa violência histórica, vibram dialeticamente alternativas de entendimento e de forças que sugerem que há sempre uma direção contrária ao que se diz. Nessa escrita dramático-ensaísta, até o fundamento relativista da antropologia é virado pelo avesso, por uma reflexão filosófica acerca da constituição simétrica e dialógica do sujeito moral, que não pode se furtar de projetar no outro o valor transcendente da dignidade humana universalizada, sob pena de perder a sua própria. Uma hipótese crucial, que vê a sempre repetida irracionalidade das políticas de segurança como denegação do trauma das raízes históricas de nossa violência criminal, nos ajuda a compreender o medo paranóico como um afeto coletivo de fundamento. A análise da trama social inclui uma dimensão agonística e de pathos, iluminando o movimento que liga o passado colonial, escravista e patriarcal, e a força atual do fascismo, mas também indica reversibilidades potenciais, tanto em afirmações vitais da diferença, como as invenções contemporâneas das identidades de gênero, como na afirmação radical dos Direitos Humanos. A vida e o pensamento pelo avesso. Há por toda parte uma sensibilidade psicanalítica, acompanhada de afinidades eletivas com a boa dramaturgia. Vale o destaque para o explícito contraponto entre a necessidade da regulação jurídica, operada pelo Direito – que por definição estabiliza identidades e causalidades, para emitir juízos de culpa ou inocência – e o uso desconstrutivo da palavra por parte da psicanálise, para quem o sujeito, ser de linguagem, é sempre um campo de virtualidades exploráveis. Os exemplos sugerem que, ao contrário do que pretendia Freud, a psicanálise pode, sim, ser uma visão de mundo, um weltanschauung, com grande rendimento para entendimento da sociedade como algo mais que um código classificatório, ou mesmo uma dinâmica de confrontos – uma rede de ambivalências, não só de conteúdos proposicionais (ideologias expressando lógicas de interesses contraditórios), mas também de afetos e sentidos que tem sempre seus avessos e complementos, que, uma vez explorados, mesmo que de forma especulativa e imaginativa, redefinem a própria identidade dos sujeitos e de suas relações. Talvez se possa chamar de multidimensional esse movimento ensaístico que, por exemplo, para passar em revista empírica e teórica as vicissitudes dos Direitos Humanos, começa por um mergulho em Hamlet como paradigma de hesitação e do caráter abismal da consciência e inconsciência dessa invenção histórica chamada de indivíduo. Há algo de balanço nesse livro a um só tempo de intervenção do militante da segurança pública e dos Direitos Humanos – pauta crucial no cenário político, nacional e global, encoberto pela sombra do fascismo – e de um trabalho intelectual de longa maturação. São imprescindíveis as sínteses de fôlego sobre a história de patrimonialismos, de renovados coronelismos, novas enxadas e velhos votos, que permitiram a emergência das máfias milicianas, infiltradas até o núcleo da (dita) república. Não menos importante é a complementar dissecação das formas institucionais do funcionamento das polícias e o contraponto das propostas de reforma, das quais o autor tem sido protagonista. E se os mergulhos reflexivos se tornam mais explícitos e densos nos textos das duas seções finais, trata-se apenas de um movimento de concentração, já estão presentes desde o início. Estudo histórico e estrutural, cruzamento de horizontes antropológicos, interrogação filosófica e narração dos dramas sociais e existenciais dão esqueleto, corpo e espírito para uma escrita dialógica e interpelativa que se põe e nos põe na pólis conflagrada. O ensaio “Visão de túnel: segurança pública, ética e justiça no Brasil”, no qual é exposta a tese do negacionismo histórico como causa da irracionalidade das políticas de segurança, é um exemplo máximo dessa lapidação do pensamento, em clareza multifacetada e iluminadora de ângulos, história, tensões internas e potencialidades negadas e ao mesmo tempo presentes. Luiz Eduardo parte da experiência, tida como iniciática para os policiais cariocas, da “visão de túnel”: a ultra concentração inerente ao combate armado, que abole percepção e juízo para dispor à ação pura, imediata e inevitavelmente letal. Aí, num salto da narração antropológica da experiência do outro para a filosofia, o autor contrapõe o túnel ao universalismo contratualista na versão de Hannah Arendt que afirma ser condição para a civilização a postulação de “uma região além e acima da linha de combate”. O parafuso crítico dá outra volta, e o universalismo implícito, de sabor especulativo kantiano, de Arendt, é posto em questão, convocando como necessidade – pragmática, e não transcendental – a intencionalidade horizontal de ações políticas concretas, como perspectiva de superação do impasse. O modo de colocar o jogo de ponto de vistas em outra região é pôr para jogo a régua da violência de grau zero e a da racionalidade abstrata, interpeladas por outras possibilidades, experiências dialógicas de cidadania e invenções práticas de segurança pública. A partir dessa conexão inesperada, entre a iniciação “caveira”, filosofia e política dos direitos humanos, a visão se multiplica, se exponencia. Primeiro, por uma caracterização do fetichismo da mercadoria como indissociavelmente amalgamado ao monopólio estatal da violência, reunindo dois vetores fundamentais do pensamento ocidental. E, logo, com a especificação da reflexão para o caso brasileiro, com a projeção da visão de túnel na história do nosso capitalismo autoritário. A violência intransitiva e compulsória ganha contexto e função, revelando-se um operador crucial da nossa sociedade, tanto na naturalizada repressão e recorrente eliminação dos setores rebeldes ao arranjo de poder, como na denegação desse trauma brutal constantemente reencenado, expresso em discursos moralizantes obsessivamente repetidos, vazios e mortais, sobre segurança pública – espécie de aleph, ou segredo sujo da nação que nunca supera seu fundamento traumático. A não ser que tenhamos a coragem de olhar o trauma no fundo de nossa noite feroz, deslocando a energia da violência como sintoma para uma energia de construção inaugural da república sempre adiada. Escolha sua distopia. Ou pense pelo avesso.

A República dos bacharéis, por Luis Fernando Vitagliano

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Luis Fernando Vitagliano – A Terra é Redonda – 11/09/2025 O Parlamento não é uma república de bacharéis, mas um espaço de garantias para todos. Se protege apenas os que detêm o poder, já não é democracia – é seu simulacro 1. O Brasil elegeu em 2022 pelo menos 131 deputados cuja formação é em Direito (103 advogados e 16 bacharéis, 13 delegados). Talvez haja outros formados na área que não foram contabilizados pela profissão. Mesmo assim, este número equivale a ¼ dos deputados em exercício hoje na Câmara. Ainda que entender dos processos, conhecer as leis e atuar dentro das regras jurídicas e dos estatutos é fundamental para o exercício dos mandatos, parece haver uma preocupante relação acrítica limitante da área do Direito. Isso tem consequências para o modo com que se apropria dos fatos. Optar pelo Direito enquanto perspectiva da política pode gerar distorção para o olhar da democracia. Obviamente entre os bacharéis, os barões do centrão e os golpistas autoritários há diferenças, mas se não nos preocuparmos com o padrão das instituições democráticas, essas diferenças acabam por dar indícios de deturpação do exercício da democracia e aproxima oportunistas de golpistas, cafajestes de sabichões, ingênuos de maldosos. Sem a sociedade saber exatamente o que é, como se manifesta e o que sustenta a democracia, fica difícil defender seus princípios elementares e mais fáceis de atingi-la. O que podemos perceber rapidamente, com um olhar para a opinião pública, é que dificilmente encontramos definições coerentes do que seja democracia. E como cada um usa a noção de democracia do modo que convêm, corremos agora o risco de interromper o período mais longevo da democracia brasileira – que começou com a promulgação da Constituição de 1988. São 37 anos de altos e baixos das instituições democráticas, que hoje estão sob a ameaça real de sucumbirem às pressões de uma maioria que acredita estar coberta pela iluminação, mas que abusa do precedente não democrático da decisão de maioria. Defendi uma tese para o doutoramento exatamente sobre democracia. Desde suas definições até suas disfunções. É um exaustivo trabalho de leitura, pesquisa e reflexão. A análise histórica, factual e comparada é muito importante para formar uma robustez conceitual que dá contornos a definição. Longe de ser um conceito em que há uma definição única e precisa é preciso olhar para a história e suas múltiplas manifestações práticas. Defendi que a democracia tem dois pilares que a sustentam: de um lado a deliberação coletiva através de consultas públicas. Eleições, Leis, deliberações públicas, impessoais e transparentes formam um governo que toma decisões com base no jogo de representação pública; de outro lado há a garantia de direitos individuais e coletivos de minorias. Ou seja, para defender a democracia é preciso reconhecer que os derrotados tenham seus direitos garantidos mesmo quando são minorias. Ao contrário então do que comumente se supõe: democracia não é o direito constituído pela deliberação da maioria; democracia é o exercício da deliberação que garante o direito da minoria. Preservar quem perdeu é tão importante para a democracia quanto é o exercício da deliberação pelos vitoriosos. Eu diria, até mais importante; porque se quem ganhou ou teve o mandato concedido pela maioria propõe algo que atinja os derrotados diretamente deve haver mecanismos que impeçam essa ação de acontecer. 2. Tratemos de um exemplo concreto, pergunto: ao ganhar uma eleição, conseguir apoio legislativo, com maioria no Congresso, pode um partido da maioria propor o fim da cultura cigana, por exemplo? E que aqueles que insistirem em manifestar através dessa prática serão presos e punidos com a morte? A resposta é não. Mesmo vencendo, mesmo cumprindo todos os trâmites legais e os ritos da deliberação, o princípio da maioria não se impõe ao direito de existência e de livre expressão das minorias. De modo que um ideal de democracia é a composição de minorias sem a existência de uma maioria consolidada. Portanto, não há direito que sustente a extinção da oposição. Democracia como pode ser entendida historicamente é o regime que permite a coexistência pacífica de diferentes concepções sociais, políticas e culturais nas instituições políticas, de modo que as garantias dos direitos individuais e coletivos se harmonizam com as deliberações de governo, garantindo oportunidades sociais, econômicas e políticas a todos os grupos e indivíduos. Assim, quando comecei a desenvolver o trabalho acadêmico, me fiz a seguinte pergunta: a democracia tem por princípio, entre outros, a garantia do direito a livre manifestação política e que minorias tenham assegurada sua liberdade de defender quaisquer que sejam seus princípios políticos. Democracia pressupõe tolerância e diversidade de opiniões e para provar a efetividade desse direito, me propus a discutir o argumento em suas últimas consequências. Perguntei se, por exemplo, uma constituição pode banir ou proibir um partido nazista (como se faz na Alemanha)? Esta postura afasta ou aproxima a Nação da democracia? Minha resposta naquele momento era ainda inconsistente: embora reconhecesse que há razões históricas para sustentar o banimento de partidos nazistas, e que mesmo isso não sendo o ideal era coerente com a história e isso não torna o país menos democrático, reconhecia que com essa postura o conceito de democracia poderia se enfraquecer dado que não se supunha a tolerância mesmo que em se tratando de um movimento totalitário. Em linhas gerais, o que eu me perguntava é a respeito do dilema mais complexo enfrentado sobre o tema e que pode ser resumido na seguinte pergunta: podem os democráticos tolerar os antidemocráticos? O dilema me permitia definir algumas características a respeito de democracia. Em primeiro lugar, de que há um ideal puro de democracia que concretamente não se pode atingir. Democracia plena em todos os seus aspectos é uma utopia importante para que as decisões a respeito das condições democráticas nos permitam agir. Em segundo lugar, é preciso entender que a resposta a respeito da presença ou ausência de democracia num país não é binaria: existe e/ou não existe. Assim como não é efeito de um cálculo racional: com essas condições temos uma democracia, sem elas, não. Há uma seria de, digamos, tonalidades e/ou possibilidades de exercício de democracias dentro de um leque de deliberações que permitem a ação das maiorias e/ou não permitem determinados limites de defesa política e ideológica. 3. Quando terminei minha tese, porém, tinha compreendido algumas ideias e questões históricas que mudaram minhas conclusões. Não em relação ao conceito geral de democracia. Mas, no que diz respeito aos seus dilemas. Entendi que há um princípio balizar da democracia que apresenta seus limites: sua própria sobrevivência enquanto sistema de garantias de direitos as minorias. Se este princípio estiver ameaçado por um grupo e/ou movimento, é preciso reagir a ele com todas as forças das instituições. A democracia não apenas pode, como deve, reagir contra movimentos políticos antidemocráticos. Então, não só é legitimo proibir a organização de um partido nazista como é dever da democracia – baseada no argumento de que não pode este regime permitir a institucionalização de um aparelho que propõe destruir um dos seus pilares básicos: o direito da minoria. Então, qualquer ação que tenha por objetivo a supressão através da força de movimentos de minoria, deve ser condenada pelas instituições democráticas e punida de modo que não possa existir ou ter condições para manifestar esses ideais. Portanto, só há uma lei que obriga a democracia restringir direitos: quando está diante de movimentos políticos totalitários. Cito os bacharéis do parlamento brasileiro porque eles entendem muito bem do primeiro pilar da construção democrática (os direitos e garantias a respeito das deliberações), mas pouco do segundo (a defesa e a garantia dos direitos fundamentais coletivos) que obriga a democracia reagir em relação aos antidemocráticos. Para os juristas que tem se manifestado na opinião pública brasileira da atualidade, democracia não é muito mais que o respeito ao devido processo legal. Não poderia ser diferente ao que diz uma especificidade da ciência jurídica. Mas, o rito processual é algo específico que não determina os elementos centrais da história política de um país. 4. Veja o que está em questão no Brasil hoje: não é apenas o julgamento de um golpe contra um governo. Mas, a concepção por detrás desse grupo que não reconhece o direito do outro de existência e de manifestação política. Que a maioria parlamentar define tudo. Para os bolsonaristas, o direito da maioria é a democracia. Vence, tem maioria, se permite suprimir a minoria. O bolsonarismo não é apenas um regime autoritário, é uma proposta de hegemonia política baseada na opressão das forças que a fazem oposição. Destruir o contraditório como propõem é destitui a democracia. Hoje isso se aplica a política. Num futuro próximo pode se aplicar a religião também… e assim pode seguir de esfera em esfera de valor. Portanto, quando falamos do bolsonarismo, (que agem contra as instituições e se valem do direito da maioria para oprimir a minoria), ou as instituições democráticas agem com rigor, ou a democracia está acabada. Nenhum regime autoritário, ditatorial, opressor começa com uma defesa fundada nos valores da ditadura. Todos defendem alguma ideia de democracia. Ou sua própria ideia de democracia. Mas, na prática, exercitam a ditadura da maioria ou constroem subterfúgios dentro das instituições para tornar suas decisões majoritárias e oprimir grupos menores. Para ser tornar uma ditadura é preciso parecer ser democrático. Pode ser que as ditaduras tenham, em algum momento a maioria dos votos. Pode ser que em outros momentos, excluam parte dos eleitores para ter a maioria dos votos. Em um ou em outro caso, são ditaduras da mesma forma. Nascem da defesa de valores consagrados. O fato da oposição no Brasil hoje ter a maioria dos votos no Parlamento para aprovar a anistia, não quer dizer que esta seja uma deliberação legal e de acordo com as regras da democracia. É apenas um disfarce de legalidade. Sabemos que isso pode confrontar o Legislativo com o Judiciário em uma grande crise institucional. Nesses casos, o judiciário (que não tem votos nem base popular) costuma retroceder. Finalmente, que fique claro: não haverá democracia se aprovada a anistia. Não é uma ação democrática ou sequer legal. Aprovar a anistia é um ato contrário a própria sobrevivência da democracia. Essa anistia é um salvo-conduto ao aprisionamento da democracia pelas forças autoritárias. Em primeiro lugar, parece que está na esfera da legalidade é um indicio da sua maledicência. Porque parece seguir os trâmites legais, mas os segue no sentido de aprisionar as instituições, não defendê-las. Aprovar uma emenda de anistia é o mesmo que permitir que os setores antidemocráticos sejam alimentados para que, em seguida, tomem as rédeas do governo para reivindicarem como majoritários para conduzam a maioria à ditadura. É a asfixia do regime: impedindo-o de reagir contra aqueles que querem sua morte. É a ingenuidade de supor que a proposta destrutiva de autocratas possa limitar-se a respeitar algum princípio. Condenar os golpistas não é apenas uma defesa de uma concepção de mundo ou uma defesa de ideais. É a democracia se manifestando e atuando segundo a lei da autopreservação. Luís Fernando Vitagliano é doutor em “Mudança social e participação política” pela EACH-USP. Autor, com Marcio Pochmann, do livro O atraso do futuro e o “homem cordial” (Hucitec).

A burla como resistência e como sintoma na educação paulista, por Fernando Cássio

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‘Ataque hacker’ de alunos às plataformas digitais deve ser analisado sem moralismo ou contemporizações; criou-se o ‘ensino a distância presencial’ Fernando Cássio, Professor da Faculdade de Educação da USP, integra a Rede Escola Pública e Universidade (Repu) e o comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação Folha de São Paulo, 10/09/2025 O  editorial “Tecnologia no ensino de SP exige cuidados” (4/9) sugeriu que os alunos da rede estadual de São Paulo teriam desferido um “ataque hacker” contra as plataformas digitais que hoje centralizam toda a sua vida escolar. A terminologia usada é imprópria, pois ataques organizados a computadores almejam o cometimento de crimes. Já o emprego de scripts para cumprir tarefas em plataformas, após login dos próprios alunos, é uma forma orgânica de resistência ao tecnossolucionismo que transformou a educação pública paulista em um paradoxal “ensino a distância presencial”. Quando apenas o tempo de uso das plataformas era monitorado pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, os estudantes simplesmente colavam ou respondiam às tarefas com caracteres aleatórios. Agora, com o cumprimento das tarefas sendo monitorado com base nos “acertos” (ignorando o erro, ponto de partida para o aprendizado), os scripts são chamados para o trabalho. Os alunos mais habilidosos nos aplicativos usam o conhecimento a seu favor, vendendo aos colegas um “serviço” de preenchimento de plataformas. Isso deve orgulhar o governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), que esvaziou o currículo científico do ensino médio para enxertar aulas de empreendedorismo juvenil. Se uma ferramenta pedagógica se afasta dos processos de ensino e aprendizagem e torna-se um fim em si mesma, os alunos a tratarão de forma burocrática e acharão formas de abreviar o tédio e as pressões. Reconhecer que o uso de tecnologias na escola é inevitável (uma obviedade!) não pode levar à afirmação condescendente, feita pelo editorial, de que as “novas políticas nesse campo decerto precisam de algum tempo para mostrar resultados”. Na educação, processo e resultado são inseparáveis. Ademais, a dicotomia insinuada entre entusiastas “do uso de ferramentas digitais em variados campos do ecossistema pedagógico” (é este o rótulo dado pela Folha ao secretário Renato Feder) e os que defenderiam simplesmente abolir as ferramentas digitais das escolas distrai o debate público e alivia para o governo Tarcísio. Não se pode esquecer que o entusiasmo de Feder com as plataformas deriva de seu próprio papel como agente econômico interessado na digitalização do ensino público. Nem que a ideia de “ecossistema pedagógico” pressupõe o reconhecimento das relações objetivas das pessoas com o mundo e também intersubjetivas; logo, não admite uma rotina escolar restrita ao uso de apps, que —como mostrou um estudo recente para o caso paulista— não melhorou a aprendizagem. Sem um compromisso real do Estado com uma formação sólida para as juventudes, toda plataforma digital é quinquilharia pedagógica fadada à obsolescência. Sintoma do fracasso de uma política que precisa mudar, a burla generalizada às plataformas não pode ser encarada com moralismo. Cientes de que a “EaD presencial” está piorando a sua aprendizagem, os alunos estão ensinando à cúpula da secretaria que a tecnologia educacional não existe em abstrato, sem escolas e sem sujeitos. Pedir paciência àqueles que testemunham a obliteração da escola pública que os está formando soa como ofensa.

PIX, novo pretexto para golpear o Banco Central, por Paulo Kliass

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Projeto que busca subordinar ainda mais BC aos rentistas inclui agora dispositivo que supostamente protege a gratuidade do sistema de pagamentos. Direita tenta manipular bandeira da soberania e deturpa debate: mudança deixaria PIX exposto à pressões do financismo. Paulo Kliass – OUTRAS PALAVRAS – 19/08/2025 O tema da independência do Banco Central (BC) é recorrente entre os defensores do financismo e da agenda neoliberal para o Brasil e para o mundo. Desde há muito tempo que esse pessoal da elite do sistema financeiro insiste na lengalenga de que a economia é assunto muito sério para ser deixado nas mãos dos políticos eleitos, pouco importando a legitimidade conferida a eles pela população nas urnas. Assim, o mesmo raciocínio vale para duas dentre as principais dimensões da política econômica, quais sejam a política monetária e a política cambial. E ambas são da competência do BC de acordo com nossa tradição legal e institucional. Aos olhos do povo da finança, pouco importa que o BC tenha sido criado em 1964 logo depois do golpe militar de 1de abril, por meio da Lei n® 4595. Ele foi constituído a partir de extinção da antiga Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC) do Banco do Brasil (BB) e tomou a forma jurídica de uma autarquia vinculada ao governo federal. Assim, o BC já nasce com um certo grau de autonomia, uma vez que os membros de sua diretoria deveriam ser indicados pelo Presidente da República, mas a efetivação dependia de aprovação pelo Conselho Monetário Nacional. O modelo atravessou décadas e foi mesmo incorporado pela Constituição de 1988, com a novidade de que os membros da diretoria do BC deveriam ser aprovados pelo Senado Federal antes da nomeação pelo Presidente da República. Apesar do livre trânsito que sempre foi exercido pelos representantes do financismo sobre a direção do BC, o fato é que essa turma nunca se deu por satisfeita. Queriam porque queriam aprofundar ainda mais a autonomia do órgão, buscando uma quase independência em relação à institucionalidade da dinâmica político-eleitoral que se seguiu à democratização no período posterior ao fim da ditadura militar. A oportunidade surgiu em 2021, durante o mandato de Bolsonaro e o poder exercido pelo superministro da Economia, Paulo Guedes. A partir de um projeto enviado pelo Poder Executivo, o Congresso Nacional aprovou a Lei Complementar n® 179, onde foi estabelecido o mandato fixo para os diretores do órgão. Assim, por exemplo, Lula tomou posse em janeiro de 2023 com a presença de todos os 9 integrantes do colegiado indicados ainda na gestão bolsonarista. A substituição dos mesmos foi feita de forma paulatina e apenas dois anos depois é que o Presidente da República eleito pela maioria da população conseguiu indicar o dirigente máximo do BC e compor a maioria de sua diretoria. Financismo quer independência completa do BC Ocorre que nem mesmo assim o financismo satisfez seu apetite. Em novembro de 2023, ainda com Roberto Campos Neto (RCN) exercendo a presidência do BC, foi articulada a apresentação de um projeto bastante polêmico no interior do legislativo, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n® 65. O texto protocolado de forma coletiva por 42 senadores, em um espectro que vai do PSB ao PL, terminou por unir parlamentares protagonizados pela extrema direita com apoio mesmo de alguns progressistas. A proposição recebeu logo de início o apoio entusiasmado de RCN e da diretoria do banco. No entanto, a reação da maioria do sistema político não foi lá muito favorável à proposta apresentada. Com a substituição de Gabriel Galípolo para o cargo de Presidente do BC no início de 2025, o movimento de apoio à medida sofreu um recuo estratégico. Apesar disso, o relator na medida na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) no Senado Federal não colocou nenhum freio definitivo em suas articulações. O Senador Plínio Valério (PSDB/AM) parecia ganhar tempo e aguardar uma conjuntura mais favorável para avançar com seu Relatório. Apesar da importância e sensibilidade da matéria, foi realizada apenas uma audiência pública a esse respeito, muito longe do debate necessário. Afinal as mudanças sugeridas implicam na transformação do estatuto jurídico do BC, que deixaria a condição de autarquia federal para se converter em uma empresa pública. Com isso, os valores orçamentários do órgão seriam retirados do Orçamento Geral da União e passariam a fazer parte da contabilidade de uma empresa que se rege por regras e parâmetros externos à administração direta. Os valores trilionários do Balanço do BC, por exemplo, passariam a ser operados pela direção do órgão sem nenhum controle efetivo por parte do governo ou da sociedade. Assim, por exemplo, a contabilidade do BC demonstra que seu ativo patrimonial é superior a R$ 4 trilhões em julho de 2025. No exercício de 2024, por outro lado, foi registrado um lucro contábil de R$ 270 bilhões. Como ficaria a distribuição deste valor puramente fictício caso o banco fosse atualmente uma empresa pública? PEC 65: golpe na democracia Outro detalhe malandro da proposição refere-se aos mecanismos de controle das contas e das atividades do BC no modelo proposto na PEC. O texto menciona genericamente a responsabilidade do Congresso Nacional para se ocupar de tais funções. O modelo ficaria completamente fora de qualquer controle efetivo: (…) “I – a autonomia de gestão administrativa, contábil, orçamentária, financeira, operacional e patrimonial, sob supervisão do Congresso Nacional; II – a ausência de vinculação a Ministério ou a qualquer órgão da Administração Pública e de tutela ou subordinação hierárquica.” (…) [GN] Mais recentemente, na dinâmica política mais geral entrou em cena o debate a respeito do PIX, a partir das sanções impostas pelo presidente estadunidense. Dentre as inúmeras aberrações e agressões adotadas ou ameaçadas por Trump contra o governo e a sociedade brasileiras consta a reclamação de que o modelo inovador brasileiro estaria prejudicando empresas financeiras dos Estados Unidos. A partir dos procedimentos verificados na “investigação da seção 301 sobre Práticas Comerciais Desleais no Brasil, a intenção da equipe de Trump é defender as empresas daquele País e atacar o que considera práticas desleais de nosso País: (…) “O Brasil também parece se envolver em uma série de práticas desleais com relação a serviços de pagamento eletrônico, incluindo, entre outras, a vantagem de seus serviços de pagamento eletrônico desenvolvidos pelo governo” (…) [GN] Golpe do PIX: cortina de fumaça A oportunidade do faro político falou mais alto. Assim, o Relator decidiu incluir em seu Parecer um dispositivo assegurando que o modelo do PIX não poderia ser objeto de negociação nem transferido pelo BC, além de estabelecer sua gratuidade para pessoas físicas. O texto adicionado é o seguinte: (…) “Art. 9º Compete exclusivamente ao Banco Central a regulação e operação do arranjo de pagamentos de varejo PIX e da correspondente infraestrutura do mercado financeiro, sendo vedadas sua concessão, permissão, cessão de uso, alienação ou, por qualquer título, transferência a outro ente, público ou privado, observados os seguintes princípios: I – gratuidade de seu uso por pessoas físicas; II – acesso não discriminatório aos serviços e à infraestrutura necessária ao seu funcionamento; III – eficiência, contabilidade e qualidade dos serviços; e IV -segurança em sua utilização, inclusive quanto à prevenção e combate a fraudes.” (…) [GN] O detalhe é que o argumento a ser utilizado pelos defensores da banca no Senado para recuperar o apoio à PEC 65 passará a contar, a partir de agora, com a boa receptividade que a sociedade manifesta quanto ao PIX. Sem dúvida alguma a medida propiciou a ampliação do acesso ao sistema bancário por setores e grupos sociais até então marginalizados. Além disso, a natureza gratuita do serviço destoa da grande maioria daquilo que os bancos oferecem a seus clientes. Exatamente por isso, a maioria da população apoia e é simpática ao PIX. Caberá às forças progressistas impedir que esse método de enganação progrida sem o necessário debate esclarecedor. Na verdade, a defesa da soberania nacional e a criação de obstáculos para que o PIX entre em alguma negociação com o governo estadunidense não precisa de alteração constitucional. Bastaria um compromisso explícito do governo ou uma Medida Provisória tratando do tema. A intenção do Senador Plínio Valério vai na direção oposta: ele espertamente pretende pegar carona em um jabuti popular que ele mesmo introduziu em seu Relatório para criar uma cortina de fumaça e escapar do debate dos malefícios generalizados que caracterizam a PEC 65 – a independência completa e absoluta do BC.

Morte por desespero

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Vivemos momentos de grandes inquietações na sociedade internacional, modelos econômicos perdem espaço no cenário global, transformações frenéticas no mundo do trabalho, um sólido e consistente desenvolvimento tecnológico que traz grandes ganhos de produtividade da economia mundial e, ao mesmo tempo, percebemos o incremento de guerras crescentes em todas as regiões do mundo, levando especialistas a afirmarem que estamos nos aproximando de um conflito militar, com grande potencial destrutivo da sociedade internacional. Nesta sociedade, percebemos problemas prementes de desigualdades variadas e crescentes em todas as nações do mundo, países que eram vistos pelo sólido ambiente de bem-estar social e um forte desenvolvimento econômico, baixa desigualdade e variadas oportunidades para todos os grupos sociais, estão sentindo na pele o crescimento das desigualdades, com o incremento da pobreza, da violência e da desesperança, deixando características mais evidentes da comunidade internacional. Em pleno século XXI, numa sociedade global altamente tecnológica, integrada e interdependente, percebemos novas formas de morte, onde os indivíduos estão perdendo a vida por desespero, uma situação que aparece fortemente nos Estados Unidos da América, como destacou o renomado economista e ganhador do Prêmio Nobel de Economia, Angus Deaton. Segundo o autor, estamos vivendo as mortes por desespero, motivados pelo consumo crescente de overdoses de opiáceos, depressão, suicídio, mortes associadas ao álcool… que vitimam mais de 150 mil pessoas ao ano. Segundo Deaton, no livro Mortes por desespero e o futuro do capitalismo retrata, neste sentido, a queda do sonho americano, o fracasso do capitalismo americano em proporcionar bem-estar a muitos. Percebemos, desde os anos 1980, o crescimento da desigualdade da renda na maior economia mundial. Os Estados Unidos se transformaram na maior economia do mundo depois do pós-segunda guerra mundial, seus números de crescimento econômico e a melhora substancial das condições de vida da população eram palpáveis, sua democracia era vista como um exemplo a ser seguido por todas as regiões do globo, suas empresas eram as mais pujantes e seu sistema produtivo era o mais eficiente mas, nos últimos anos, essa locomotiva perdeu sua força, a renda se concentrou de forma acelerada, o 0,1% da população concentra mais de 20% da riqueza nacional, o 1% mais alto controla mais de 40% e a metade da população estadunidense tem um ativo líquido negativo, o que significa que as dívidas superam os ativos, neste cenário, percebemos uma estagnação da renda dos trabalhadores no período neoliberal, estimulando raivas, rancores, violências e ressentimentos. De um mundo de oportunidades, riquezas e pujança econômica e produtiva estamos vislumbrando uma estagnação e o incremento da desesperança, tudo isso contribui para o crescimento das chamadas mortes de desesperos. Neste cenário, a expectativa de vida nos EUA, que vinha aumentando de forma sistemática ao longo do século XX, estagnou e, em seguida, caiu nos últimos anos, queda de 78,9 anos para 78,6 anos entre 2014 e 2016, um fenômeno descrito como uma especificidade norte-americano, uma sociedade marcada pela competição, pelo individualismo, pelo imediatismo e cujo foco fundamental está sempre no lucro, no culto das armas e do ganho monetário. Neste ambiente de grandes transformações estruturais da geopolítica global, precisamos construir as nossas aspirações, deixando de lado tutelas externas e construir nossa história, respeitando nossa trajetória e consolidando valores esquecidos da sociedade contemporânea. Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

“O fenômeno das ‘mortes por desespero’ parece ser uma característica específica estadunidense”. Entrevista com Noam Chomsky

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Instituto Humanitas Unisinos – 28/08/2019 A vida nos Estados Unidos – o país mais rico da história mundial – não tem motivo para ser assim. As intermináveis guerras, mortes por desespero, taxas de mortalidade em aumento e violência armada fora de controle deste país não surgiram do nada. Nesta transcrição exclusiva emitida por Alternative Radio, o intelectual público Noam Chomsky aborda as raízes da cultura das armas, o militarismo, a estagnação econômica e a crescente desigualdade nos Estados Unidos. A entrevista é de David Barsamian Truthout, publicada por El Salto, 23-08-2019. A tradução é do Cepat. Eis a entrevista. Você conecta, em algum momento, a violência exterior dos Estados Unidos com o que está ocorrendo internamente com todos os tiroteios e matanças? Os Estados Unidos são um país muito estranho. Do ponto de vista de sua infraestrutura, os Estados Unidos muitas vezes parecem um país do “Terceiro Mundo”… Não para todo mundo, claro. Há pessoas que dizem: “Bom, vale, irei em meu jato ou helicóptero particular”. Caminhe por qualquer cidade estadunidense. Estão caindo aos pedaços. A Sociedade Estadunidense de Engenheiros Civis confere aos Estados Unidos, periodicamente, um D – o ranking mais baixo – em infraestrutura. Este é o país mais rico da história mundial. Possui enormes recursos. Tem vantagens que são simplesmente incomparáveis, recursos agrícolas, recursos minerais, um território enorme, homogêneo. Você pode voar 3.000 milhas [4.800 km] e pensar que está no mesmo lugar onde começou. Não há nada parecido em todo o mundo. De fato, há êxitos, como boa parte da economia de alta tecnologia, substancialmente baseada no Governo, mas real. Por outro lado, é o único país no mundo desenvolvido em que a mortalidade, de fato, está aumentando. Isso é algo simplesmente desconhecido nas sociedades desenvolvidas. Nos últimos anos, a expectativa de vida caiu nos Estados Unidos. Há estudos de dois importantes economistas, Anne Case e Angus Deaton, que analisaram meticulosamente os números de mortalidade. Resulta que no grupo de idade aproximadamente entre 25 e 50, o grupo de idade trabalhista dos brancos, a classe trabalhadora branca, há um aumento das mortes, o que chamam de “mortes por desespero”: suicídio, overdoses por opiáceos, etc. Estima-se cerca de 150.000 mortes ao ano. Não é algo trivial. O motivo, geralmente assumido, é a estagnação econômica, desde Reagan. De fato, este é o grupo que entrou no mercado de trabalho por volta do início dos anos 1980, quando os programas neoliberais começaram a ser instituídos. Isto levou a um enfraquecimento do crescimento. O crescimento não é o que era antes. Há crescimento, mas altamente concentrado. A riqueza se tornou extremamente concentrada. Agora, segundo os últimos números, o 0,1% da população concentra 20% da riqueza nacional; o 1% mais alto controla aproximadamente 40%. A metade da população tem um ativo líquido negativo, o que significa que as dívidas superam os ativos. Em geral, houve estagnação em mão de obra durante todo o período neoliberal. Esse é o grupo do qual estamos falando. Naturalmente, isto leva à raiva, ao ressentimento e desespero. Coisas parecidas estão acontecendo na Europa sob os programas de austeridade. Esse é o contexto que falaciosamente é chamado de “populismo”. Mas, nos Estados Unidos, é bastante surpreendente. O fenômeno das “mortes por desespero” parece ser uma característica específica estadunidense, sem igual em outros países. Lembre-se, não há país no mundo que tenha algo como as vantagens dos Estados Unidos em relação à riqueza, poder e recursos. É um comentário impactante. Constantemente, se lê que a taxa de desemprego atingiu um nível maravilhoso, apenas 3% de desempregados. Mas, isso é bastante enganoso. Quando se utiliza as estatísticas do Departamento de Trabalho, resulta que a taxa de desemprego real está acima de 7%. Quando se leva em conta o grande número de pessoas que simplesmente saíram do mercado de trabalho, a participação da mão de obra está consideravelmente abaixo do que estava cerca de 20-30 anos atrás. Há bons estudos de economistas sobre isso. Tem-se aproximadamente uma taxa de desemprego de 7,5% e estagnação dos salários reais, que apenas se movimentaram. Desde o ano 2000, houve um firme descenso na riqueza familiar média. Como disse, para cerca da metade da população, agora é negativo. Em termos de armas, os Estados Unidos são um caso atípico. Temos 4% da população mundial com 40% das armas do planeta. Há uma história interessante sobre isso, muito bem estudada. Há um livro recente de Pamela Haag chamado The Gunning of America: Business and the Making of American Gun Culture [O tiroteio dos Estados Unidos: negócios e a criação da cultura das armas estadunidenses]. É uma análise muito interessante. O que mostra é que, após a Guerra Civil, os fabricantes de armas realmente não tinham muito mercado. O mercado do Governo dos Estados Unidos havia caído, é claro, e os governos estrangeiros não eram um grande mercado. Era, então, uma sociedade agrícola, de finais do século XIX. Os fazendeiros tinham armas, mas eram como ferramentas, nada especial. Possuía-se uma boa e antiquada arma. Era suficiente para espantar os lobos. Não queriam as sofisticadas armas que os fabricantes de armas estavam produzindo. Desse modo, o que ocorreu foi a primeira campanha de publicidade importante e enorme que foi uma espécie de modelo para outras posteriormente. Realizou-se uma enorme campanha para tentar criar uma cultura de armas. Inventaram um Oeste Selvagem, que nunca existiu, com o valente sheriff sacando a arma mais rápido que todo mundo e toda essa insensatez que existe nos filmes de cowboys. Tudo foi inventado. Nada disso jamais ocorreu. Os cowboys eram algo assim como a escória da sociedade, gente que não podia conseguir um trabalho em outro lugar. Eram contratados para conduzir algumas vacas. Mas, passou a existir essa imagem do Oeste Selvagem e os grandes heróis. Junto a isso, vieram os anúncios, dizendo algo como: ‘Se seu filho não tem um rifle Winchester, não é um homem de verdade. Se sua filha não tem uma pequena pistola rosa, nunca será feliz’. Foi um êxito tremendo. Suponho que foi um modelo para mais tarde, quando as empresas de tabaco desenvolveram o “homem Marlboro” e todo este tipo de negócio. Era fins do século XIX, inícios do século XX, o período em que se estava começando a desenvolver a enorme indústria de relações públicas. Foi tratado de forma brilhante por Thorstein Veblen, o grande economista político, que destacou que nessa fase da economia capitalista era necessário fabricar necessidades porque, caso contrário, não seria possível manter a economia que geraria grandes níveis de lucro. A propaganda das armas foi provavelmente o começo. Na continuidade, avançando até o período recente de 2008, a decisão Heller da Suprema Corte. O que chamavam direitos da Segunda Emenda se converteram em uma escritura sagrada. São os mais importantes direitos que existem, nosso sagrado direito de portar armas, estabelecido pela Suprema Corte, revogando um século de precedentes. Lance um olhar na Segunda Emenda. Diz: “Sendo necessária uma Milícia bem organizada para a segurança de um Estado livre, o direito do povo de possuir e portar armas não será infringido”. Até 2008, isso era interpretado basicamente da forma como se lê. O sentido de portar armas era manter uma milícia. Scalia [ex-juiz da Suprema Corte], em sua decisão de 2008, fez uma guinada. Era um acadêmico muito bom. Supõe-se que era um ‘originalista’. Prestava atenção nas intenções dos fundadores. Quando se lê a decisão, é interessante. Há todos os tipos de referências para ocultar documentos do século XVII. Surpreendentemente, não menciona nenhuma vez os motivos pelos quais os fundadores queriam que as pessoas portassem armas, que não estão ocultos. Um motivo era que os britânicos viriam. Os britânicos eram o grande inimigo, naquele momento. Eram do Estado mais poderoso do mundo. Os Estados Unidos tinham apenas um exército permanente. Se os britânicos retornassem, o que de fato fizeram, era preciso ter milícias para o combate. Desse modo, tínhamos que ter milícias bem organizadas. O segundo motivo era que se tratava de uma sociedade escravista. Este era um período em que ocorriam rebeliões de escravos por todo o Caribe. A escravidão estava crescendo enormemente após a revolução. Havia profunda preocupação. Muitas vezes, os escravos negros superaram em número os brancos. Era preciso ter milícias bem armadas para mantê-los sob controle. Ainda havia outra razão. Os Estados Unidos são talvez um dos raros países da história que virtualmente estiveram em guerra todos os anos, desde a sua fundação. É possível se deparar apenas com um ano em que os Estados Unidos não estiveram em guerra. Quando se olha para a Revolução Estadunidense, a história dos livros de texto é “tributação, sem representação”, que não é falsa, mas está longe da história completa. Dois dos principais fatores na revolução foram que os britânicos estavam impondo uma restrição ao assentamento para além das montanhas Apalaches, que chamavam “país indiano”. Os britânicos estavam bloqueando isto. Os colonos queriam se expandir para o oeste. Não só pessoas que queriam terra, mas também grandes especuladores de terra, como George Washington, queriam ir para as zonas do oeste. “Do oeste” significava para além das montanhas. Os britânicos estavam bloqueando [essa possibilidade]. Ao final da guerra, os colonos puderam se expandir. O outro fator era a escravidão. Em 1772, houve uma sentença muito importante e famosa de um importante jurista britânico, Lord Mansfield, de que a escravidão é tão “odiosa” que não era possível tolerar na Grã-Bretanha. As colônias estadunidenses eram essencialmente parte da Grã-Bretanha. Era uma sociedade escravista. Puderam ver os dias contados. Se os Estados Unidos permanecessem dentro do sistema britânico, seria uma ameaça real à escravidão. Isto terminou com a revolução. Mas isto significava, voltando às armas, que eram necessárias para manter os britânicos na linha, que eram necessárias para controlar os escravos, para manter índios. Se você vai atacar as nações indígenas – eram nações, é claro –, vai atacar muitas nações ao oeste do país, terá que ter armas e milícias. Em última instância, se substituiu mais tarde por um exército permanente. Mas veja os motivos pelos quais, para os fundadores, era preciso ter armas. Nenhum só se aplica no século XXI. Isto está completamente ausente não só da decisão de Scalia, como também do debate legal sobre isso. Há uma literatura legal que debate a decisão Heller, mas quase tudo é sobre a questão técnica de se a Segunda Emenda é um direito de milícia ou um direito individual. A redação da emenda é um pouco ambígua, desse modo, é possível debater sobre isso, mas é completamente irrelevante. A Segunda Emenda é totalmente irrelevante para o mundo moderno: não tem nada a ver com ele. Mas se converteu em escritura sagrada. Então, existe esta enorme campanha de propaganda. Quando eu era uma criança, me atingiu. Wyatt Earp, armas, “matar índios”, tudo isso. Está estendida por todo o mundo. Na França, amam os filmes de cowboys. Um retrato do Oeste totalmente fabricado, mas teve muito êxito em criar uma cultura de armas. Sendo assim, sim, todo mundo deve ter uma arma… Fala sobre a Primeira Emenda, a liberdade de imprensa e o jornalismo, um ofício que recebeu ataques do autodenominado “gênio extremamente estável”, na Casa Branca, como “o inimigo do povo”. Fala sobre isto e também sobre o caso Assange. A Primeira Emenda é uma importante contribuição da democracia estadunidense. A Primeira Emenda, na realidade, não garante o direito à livre expressão. O que diz é que o Estado não pode tomar ação preventiva para impedir a expressão. Não diz que não possa puni-la. Sendo assim, sob a Primeira Emenda, literalmente, você pode ser punido por coisas que diz. Não impede isso. Foi, não obstante, um avanço no ambiente da época, em que os Estados Unidos avançaram de muitas maneiras. Com todos os seus defeitos, a Revolução Estadunidense foi progressista em muitos aspectos para os padrões do momento, inclusive a frase: “Nós, o povo”. Deixando de lado os defeitos na implementação, a ideia em si foi um avanço. A Primeira Emenda foi um avanço. No entanto, não foi realmente até o século XX que os temas da Primeira Emenda passaram à agenda, primeiro com as opiniões dissidentes de Oliver Wendell Holmes e Louis Brandeis [ambos juízes da Suprema Corte], em casos por volta da Primeira Guerra Mundial, um pouco depois. Vale a pena olhar como eram estreitos estes dissidentes. A primeira coisa importante, no caso Schenck de 1917, foi um caso de alguém que publicou um panfleto descrevendo a guerra como uma guerra imperialista e dizendo que não se deveria participar dela. O apoio à liberdade de expressão sob a Primeira Emenda era muito limitado, assim como a discrepância e, depois, o apoio à punição por parte de Holmes demonstrou isso. O caso foi todo um escândalo, mas inclusive Holmes aceitou. De fato, os verdadeiros passos para o estabelecimento de uma forte proteção da liberdade de expressão foram, na realidade, nos anos 1960. Um caso importante foi Times v. Sullivan. O Estado do Alabama havia reivindicado o que se chama imunidade soberana, no qual não se pode atacar o Estado com palavras. Esse é um princípio que se mantém na maioria dos países: Grã-Bretanha, Canadá, outros. Houve um anúncio publicado pelo movimento de direitos civis, que denunciava a polícia de Montgomery (Alabama) por atividades racistas, e entraram com uma ação para o impedir. A questão foi à Suprema Corte. O anúncio estava no The New York Times. Por isso, se chama Times v. Sullivan. A Suprema Corte, pela primeira vez, basicamente, derrubou a doutrina da imunidade soberana. Disse que se pode atacar o Estado com palavras. É claro, já havia ocorrido, mas, agora, tornou-se legal. Houve uma decisão mais forte alguns anos depois: Brandenburg v. Ohio, em 1969, em que a Corte determinou que a expressão deveria ser livre até a participação em uma ação criminosa iminente. Assim, por exemplo, se você e eu entramos em uma loja com a intenção de roubar, e você tem uma arma e eu digo “dispara”, isso não está resguardado. Mas, basicamente, essa é a doutrina. É uma proteção muito forte da liberdade de expressão. Não há nada parecido em lugar algum, pelo que eu sei. Na prática, os Estados Unidos não têm um histórico estelar, mas um dos melhores (talvez, inclusive, o melhor histórico) é na proteção da liberdade de expressão e a liberdade de imprensa. Isso está, com efeito, sendo atacado quando se denuncia a imprensa como a “inimiga do povo” e se organiza sua fanática base de apoio para atacar a imprensa. Essa é uma séria ameaça. E Julian Assange? A verdadeira ameaça para Assange desde o princípio, a razão pela qual se refugiou na embaixada equatoriana, era a ameaça de extradição para os Estados Unidos, agora implementada. Já foi acusado de violações da Lei de Espionagem. Teoricamente, inclusive, pode receber uma condenação à morte por isso. O crime de Assange foi expor documentos secretos que são muito embaraçosos para o poder do Estado. Um dos principais foi a exposição do vídeo de pilotos de helicópteros estadunidenses matando pessoas. Em Bagdá. Sim. Contudo, depois houve muitos outros, alguns deles muito interessantes. A imprensa informou sobre eles. Então, ele está realizando a responsabilidade jornalística de informar o público sobre coisas que o poder do Estado preferiria manter em sigilo. Parece ser a essência do que deveria estar fazendo um bom jornalista. É o que fazem os bons jornalistas. Como quando [Seymour] Hersh mostrou a história do massacre de My Lai [no Vietnã, onde o Exército dos Estados Unidos matou cerca de 400 pessoas], e quando Woodward e Bernstein mostraram os crimes de Nixon, o que se considerou muito louvável. O Times publicou fragmentos dos Papéis do Pentágono [documentos secretos sobre a participação dos Estados Unidos no Vietnã]. Sendo assim, em essência, ele está fazendo isso. Você pode questionar seu julgamento – deveria ter feito isto neste momento, deveria ter feito algo mais; pode fazer muitas críticas –, mas a história básica é que o WikiLeaks estava produzindo materiais que o poder do Estado queria suprimir, mas que o público deveria conhecer.