Maternidade em baixa traz desafios para o país, por FSP.

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Taxa de fecundidade brasileira cai ao menor nível desde 1940; impactos exigirão mais do Estado em políticas de seguridade

Editorial – Folha de São Paulo, 01/07/2025

A redução na taxa de fecundidade (o número médio de filhos que uma mulher teria ao longo de sua vida reprodutiva) está relacionada ao progresso do estrato feminino. O fenômeno indica que mulheres têm mais acesso a informação, a métodos contraceptivos, aos estudos e ao mercado de trabalho.

Tal aspecto positivo, no entanto, vem acompanhado de desafios não triviais, como o impacto nas contas previdenciárias. Trata-se de tendência global, e dados do Censo 2022 divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que o Brasil não é exceção.

Em 2022, a taxa foi de 1,55 filho por mulher. Esse patamar é o menor da série histórica, iniciada em 1940, e está abaixo do chamado nível de reposição (2,1 filhos por mulher) —a média necessária para que o tamanho da população se mantenha estável. A taxa começou a cair a partir de 1960, quando era de 6,28.

Também verificou-se elevação na idade média na qual mulheres tornam-se mães, de 26,3 anos para 26,8 anos entre 2000 e 2010, até chegar a 28,1 anos em 2022.

Ademais, aumentou a porcentagem de pessoas do sexo feminino na faixa entre 50 e 59 anos que não têm filhos: 16,1% em 2022, ante 11,8% em 2010 e 10% em 2000.

A taxa de fecundidade no Brasil (1,55) é igual à da média da OCDE. Mas, diferentemente das nações mais ricas da entidade, o país não aproveitou a janela de oportunidade do bônus demográfico para se desenvolver. Essa janela, agora, está se fechando.

Segundo estudo da organização, 2064 marcará o ano na história moderna em que pela primeira vez o índice global de mortalidade superará o de natalidade.

O resultado é a queda da parcela economicamente ativa da população, o que tende a implicar encarecimento inflacionário da mão de obra, acompanhada por alta de despesas com aposentadorias, pensões e saúde, sobrecarregando as contas públicas.

No Brasil, os pagamentos do INSS, que até caíram após a reforma de 2019, alcançaram 8% em 2024 e a projeção oficial é de alta até 10% por volta de 2050, evidenciado a necessidade de novos ajustes no sistema, nos regimes de servidores civis e militares e de novas formas de contribuição alinhadas a variadas modalidades de trabalho.

Será necessário ainda fortalecer o SUS, em particular nas políticas voltadas para a população mais idosa, repensar normas de imigração e mitigar o encolhimento da força de trabalho. Todas essas deixaram de ser questões a serem tratadas apenas em um futuro distante.

 

Como se formam os golpistas? por Eugênio Bucci

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Eugênio Bucci – A Terra é Redonda – 27/06/2025

Fora o acerto da lei, o que vemos hoje na corte não é bom. Algo na voz dos réus, na sua maneira de olhar ou de desviar o olhar, deixa ver que, para eles, o golpismo é um ato de bravura

1.

Pela primeira vez na história do Brasil, militares de alta patente, acompanhados de um ex-presidente da República, tomam assento no banco dos réus. Eles são acusados de organização criminosa armada e tentativa de abolição violenta do Estado democrático de direito, entre outros crimes. A notícia é tão inusitada que parece boa, mas, na verdade, é apenas um começo.

Por certo, o processo que corre no Supremo Tribunal Federal reluz pelo ineditismo. Diferentemente do que se via no passado, o Brasil não deixa mais por isso mesmo. Agora, há um esforço para responsabilizar os que atentaram contra a normalidade democrática. As coisas avançam semana a semana. Os integrantes do “núcleo crucial” da trama, conforme o nomeou a Procuradoria Geral da República, tiveram de comparecer aos interrogatórios. Agora, houve uma acareação momentosa entre o tenente-coronel Mauro Cid e o general Walter Braga Netto.

O andamento, contudo, é difícil. Para atrapalhar os ritos, surgiram lances de clamoroso cinismo. O réu Jair Bolsonaro, enquanto era interrogado, deu de convidar o ministro Alexandre de Moraes, que conduzia a sessão, para figurar como vice em sua chapa para a Presidência da República em 2026. O tom foi jocoso: piada à queima-roupa. O magistrado apenas sorriu, num clima de quase descontração judicial, e, no seu linguajar característico, declinou. Pilhéria indeferida.

O que nos aguarda? O processo vai transcorrer em risadas? Vai transitar em julgado amaciado? Vai dar cadeia? Virá uma anistia? Uma pizza? Não há como saber. O enredo que nos trouxe até aqui, misturando degradação institucional, escárnio escrachado e realismo fantástico, tem se mostrado imprevisível.

Primeiro, tentou-se derrubar a República numa tramoia que incluiu acampamentos à frente de quartéis, fake news torrenciais sobre as urnas eletrônicas, depredação dos palácios dos três poderes e um plano para assassinar o chefe de Estado, seu vice e um ministro do Supremo. Depois, no julgamento, veio o espetáculo acintoso. Os acusados não se envergonham do que é vergonhoso. Desdenham da autoridade judiciária. Agem como se estivessem acima das leis dos comuns.

2.

O historiador Carlos Fico estuda há décadas “o desprezo dos militares pela política, seu autoentendimento como superiores aos civis”. O retrato que ele nos entrega dessa história, no livro Utopia autoritária brasileira: Como os militares ameaçam a democracia brasileira desde o nascimento da República até hoje (Editora Planeta do Brasil), é desalentador. A virada de mesa tem sido uma constante das Forças Armadas. Trata-se de um vício que se reproduz impunemente.

“Todas as crises políticas brasileiras caracterizadas por ruptura da legalidade constitucional (vou denominá-las ‘crises institucionais’) foram causadas por militares”, afirma Carlos Fico. “As Forças Armadas violaram todas as constituições da República. (…) Indisciplina e subversão marcam a trajetória dos militares no Brasil. Eles foram responsáveis por todas as crises institucionais do país desde a Proclamação da República e jamais foram efetivamente punidos”.

O livro demonstra que, neste país, o golpe compensa – mesmo quando fracassa. Com a palavra, o historiador: “Quando afirmo que nunca houve, no Brasil, a efetiva punição de militares golpistas, me refiro às anistias que foram aprovadas pelo Congresso Nacional beneficiando os oficiais envolvidos nas tentativas fracassadas de 1904, 1922, 1924, 1956, 1959 e 1961. É claro que não cabe falar em punição no caso dos golpes bem-sucedidos (1889, 1930, 1937, 1945, 1954, 1955 e 1964)”.

Por que “não cabe falar em punição no caso dos golpes bem-sucedidos”? Muito simples: quando o golpe dá certo, o ordenamento jurídico que poderia puni-lo não fica de pé para aplicar a lei. Passa a valer o inverso. Por exemplo: com a tomada do poder pelas tropas em 1964, quem fixou residência na prisão não foram os golpistas, mas os que se opunham à quartelada. Eis por que a legislação atual, com acerto, estabelece como crime a tentativa de golpe, não o golpe consumado. A tentativa basta para configurar o tipo penal.

Fora o acerto da lei, o que vemos hoje na corte não é bom. Algo na voz dos réus, na sua maneira de olhar ou de desviar o olhar, deixa ver que, para eles, o golpismo é um ato de bravura. A fixação maníaca na ideia de assalto ao poder constitui um traço cultural que se mantém intacto no ideário das tropas. O que explica essa permanência? De onde vem isso?

A resposta lógica aponta para as escolas em que se formam os oficiais. Se a formação fosse outra, a mentalidade da farda já seria diferente. Será razoável que o currículo das academias das Forças Armadas e das Polícias Militares fique inteiramente a cargo da caserna? Ou será que isso deveria ser da competência da sociedade e do Estado Democrático de Direito?

De forma respeitosa, dialogada e serena, é preciso enfrentar a questão. Ou o Brasil encara essa agenda espinhosa ou talvez não tenhamos como sair dessa espiral em que o populismo de coturnos, quando vai ao banco dos réus, vai em trajes de galhofa.

Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica).

 

Quem paga a conta? por Ederson Duda

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Ederson Duda – A Terra é Redonda – 28/06/2025

Enquanto a justiça tributária permanecer refém de privilégios, a democracia brasileira seguirá manca, incapaz de romper o ciclo perverso que transforma desigualdade em destino. É preciso coragem política para confrontar os mitos meritocráticos que blindam a riqueza e estrangulam o futuro coletivo

1.

A sociedade brasileira é marcada historicamente por desigualdades estruturais, profundamente arraigadas no processo de formação econômica e social do país. No centro da reprodução dessas desigualdades encontra-se o conflito distributivo, entendido não apenas como disputa por parcelas da renda nacional, mas como expressão material das lutas de classe em torno da apropriação da riqueza socialmente produzida.

A forma como o sistema tributário brasileiro está estruturado aprofunda ainda mais as desigualdades sociais. A carga tributária regressiva, incidindo fortemente sobre o consumo, penaliza proporcionalmente mais os mais pobres, enquanto os estratos superiores da distribuição de renda são beneficiados por isenções, deduções e pela baixa tributação sobre lucros, dividendos e grandes patrimônios.

Em outras palavras, quem tem menos paga mais, e quem concentra renda e riqueza encontra formas legais de minimizar sua contribuição ao financiamento das políticas públicas (Gobetti; Odair, 2022; Medeiros, 2016; Souza, 2018).

O imposto sobre grandes fortunas, previsto desde a Constituição de 1988, jamais foi regulamentado, enquanto isenções como a de lucros e dividendos (vigente desde 1996) persistem mesmo diante de evidências de sua iniquidade. O resultado é a consolidação de um modelo tributário que penaliza os mais pobres e protege os mais ricos.

Segundo estudo do Ipea com base em dados da Receita Federal, 800 mil contribuintes que ganham em média R$ 449 mil por ano pagam uma alíquota do Imposto de Renda (IR) de no máximo 14,2% – valor equivalente ao que paga um trabalhador assalariado ganhando R$ 6 mil mensais. [I]

De maneira desproporcional, conforme a renda aumenta, a alíquota cai e, com isso, quem ganha R$ 1 milhão paga 13,6%, quem ganha R$ 5 milhões paga 13,2%, e quem recebe R$ 26 milhões paga apenas 12,9%. Trata-se, portanto, de uma clara regressividade, na qual a renda do capital é tributada muito menos que a do trabalho.

A Emenda Constitucional nº 132/2023, que institui uma ampla Reforma Tributária sobre o consumo, representa um avanço institucional relevante ao simplificar tributos e unificar regras entre União, estados e municípios. No entanto, ela mantém inalterado o núcleo regressivo da tributação brasileira: não altera significativamente a estrutura de impostos sobre renda, patrimônio e riqueza.

A não inclusão da tributação sobre lucros e dividendos, assim como a falta de medidas robustas sobre heranças e grandes fortunas, revela os limites políticos da reforma diante da correlação de forças no Congresso Nacional – cuja maioria se articula em frentes conservadoras contra o aumento do imposto sobre quem recebe mais.

Essa configuração faz com que os mais pobres e as classes médias acabem financiando proporcionalmente mais o Estado, em contraste com os muito ricos – que, além de concentrarem a renda, usufruem de mecanismos legais para escapar da tributação direta.

Segundo dados do Ipea, os tributos indiretos – como ICMS, IPI, PIS/Cofins – representam uma carga significativamente maior para os 40% mais pobres, consumindo cerca de 30% de sua renda, enquanto representam apenas cerca de 10% da renda dos 10% mais ricos, evidenciando o caráter regressivo da tributação sobre consumo (Soares; Zockun; Mendonça, 2022).

Além disso, os tributos sobre bens e serviços respondem por 40,2% da arrecadação tributária nacional, comprometendo cerca de 21,2% da renda dos mais pobres, ao passo que os 10% mais ricos destinam apenas 7,8% de sua renda a esse tipo de tributação. [II]

Nesse sentido, a proposta de reforma do Imposto de Renda apresentada pelo governo federal em 2025, que amplia a isenção até R$ 5.000 mensais e institui uma alíquota mínima para rendas superiores a R$ 50 mil, [III] ainda que tímida diante das distorções estruturais do sistema, representa um avanço por contrariar a hegemonia fiscal orientada pela defesa dos interesses do capital financeiro e das elites patrimoniais.

A proposta institui uma alíquota mínima para os super-ricos – menos de 0,2% dos contribuintes –, atuando diretamente sobre o núcleo do conflito distributivo no Brasil, ao corrigir um sistema historicamente regressivo que afeta principalmente os trabalhadores pobres e as classes médias. Enquanto os mais pobres se beneficiam indiretamente, via maior capacidade de consumo e da ampliação das políticas públicas, para as classes médias a medida representa uma ampliação da faixa de isenção, a correção de distorções da tabela e um ganho real de renda. A proposta, assim, contribui para reequilibrar um sistema que há décadas favorece a concentração de renda no Brasil.

2.

Esse desequilíbrio tributário não é apenas técnico, mas profundamente político. A resistência à reforma tributária progressiva, historicamente liderada por setores empresariais e respaldada por parcelas expressivas da classe média, revela um campo de disputa central do conflito distributivo no Brasil. Ainda que as classes médias não estejam no topo da pirâmide, sua rejeição à tributação progressiva expressa um alinhamento ideológico com as frações superiores da elite econômica – seja pelos valores meritocráticos, seja pela defesa do patrimônio herdado ou acumulado.

Fato peculiar na sociedade brasileira é que, desde pelo menos os anos de 1970, o conflito distributivo tem ocorrido principalmente entre as classes médias e as classes populares (Morgan, 2018). Nesse período, o sucesso no aumento da participação da riqueza social por parte de uma classe tem dependido do insucesso da outra. Enquanto isso, os mais ricos têm conseguido manter sua parte na riqueza social praticamente inalterada ao longo do tempo (Souza, 2018).

Essa dinâmica se evidenciou durante os governos petistas (2003-2016), quando o conflito distributivo assumiu uma nova configuração. A ampliação do acesso a bens de consumo, serviços públicos e políticas sociais e afirmativas – como a valorização do salário mínimo, a expansão do crédito, os programas de transferência de renda, as cotas raciais das universidades e a inclusão educacional – proporcionou mobilidade social ascendente às classes populares.

No entanto, à medida que a base da pirâmide social passou a acessar bens e serviços antes exclusivos das classes dominantes, as classes médias vivenciaram um processo de estagnação relativa, tanto em termos de renda como de prestígio social. Já os mais ricos mantiveram sua apropriação da renda praticamente intocável – chegando ao patamar de 30% entre 2014-2016 (Morgan, 2018; Souza, 2018).

As classes médias, ao perceberem que o seu lugar na hierarquia social estava sendo tensionado, reagiram politicamente. Imbuídas de valores meritórios, passaram a atribuir às políticas sociais e afirmativas a responsabilidade pelos obstáculos à sua reprodução social. A narrativa que sustentou essa reação baseava-se na ideia de que os mais pobres, ao serem favorecidos pelas políticas de governo, estavam “furando a fila” da mobilidade social. Ou seja, teriam ascendido não por mérito próprio, mas pela intervenção do Estado no ordenamento social.

A reação às políticas sociais e afirmativas dos governos petistas encontrou sua expressão mais visível nas manifestações de 2015 e 2016 pelo impedimento de Dilma Rousseff. A formação de uma coalizão conservadora teve como objetivo reverter os ganhos das classes populares em defesa de um padrão de acumulação capitalista altamente excludente.

A luta contra a corrupção, nesse contexto, operou como um expediente tático das classes médias, historicamente utilizado de forma seletiva (Martucelli, 2016). As políticas de austeridade aplicadas pelos governos Temer e Bolsonaro – como a reforma trabalhista, a reforma da previdência e a PEC do teto dos gastos – aprofundaram o enfraquecimento do poder de barganha dos trabalhadores, sem, no entanto, eliminar a corrupção (Rugitsky, 2016; Krein; Oliveira; Figueiras, 2019).

Nesse cenário de regressão institucional e fortalecimento de agendas regressivas, a disputa em torno da tributação das grandes fortunas se apresenta como um importante campo de disputa sobre os rumos da sociedade.

3.

A atual proposta de taxação de grandes fortunas, reintroduzida com força no debate político desde a pandemia e reanimada com o governo Lula III, reacende o conflito distributivo em sua forma mais explícita. A resistência dos setores dominantes e segmentos das classes médias à criação de um sistema fiscal mais progressivo revela os limites da solidariedade de classe no Brasil.

Embora o discurso público seja, em parte, favorável à justiça social, verifica-se forte adesão a ideias como “taxar grandes fortunas pode inviabilizar investimentos”, “incentivar a fuga de capitais” ou “punir o sucesso individual”.

O paradoxo aqui é que a própria preservação do modelo regressivo de tributação alimenta a crise fiscal do Estado e o colapso da capacidade de provisão pública, o que, por sua vez, reforça a insatisfação social e legitima agendas privatistas. Temos, assim, um círculo fechado: a desigualdade produzida pela estrutura tributária gera descontentamento nas classes médias, que respondem apoiando projetos regressivos, os quais, por sua vez, reforçam o problema original.

O dilema social que se impõe às classes médias está no confronto entre a defesa da ordem democrática baseada em direitos e a manutenção dos seus privilégios de classe, baseada em seus valores meritocráticos. De um lado, sustentar os valores democráticos requer enfrentar os interesses imediatos dos mais-ricos e aceitar transformações estruturais que afetem seu modo de vida.

De outro, insistir na ideologia meritocrática e na seletividade moral do discurso anticorrupção significa legitimar a superexploração e o privilégio de alguns em detrimento de muitos. Em última instância, o rumo do conflito distributivo dependerá da capacidade das classes populares de se organizarem politicamente e alterarem a correlação de forças, de modo a construir uma nova lógica de apropriação da riqueza social.

Diante desse cenário, iniciativas como o Plebiscito Popular por Justiça Tributária, organizadas por movimentos sociais em 2025, representam uma grande oportunidade de romper com a naturalização da desigualdade tributária e avançar no debate sobre a taxação de grandes fortunas e a ampliação da isenção do Imposto de Renda.

A pressão de baixo para cima, combinada à articulação entre movimentos sociais e outros atores políticos, é uma via concreta para disputar os sentidos da solidariedade no Brasil e transformar um sistema tributário historicamente injusto.

Ederson Duda é doutorando em ciências sociais na Unifesp.

Referências

COSTA, Gilberto. Estudo do Ipea aponta injustiça tributária no Brasil. Agência Brasil, 29/10/2024.

GOBETTI, Sérgio Wulff; ORAIR, Rodrigo Octávio Orair. Tributar lucros e dividendos: efeitos potenciais sobre a progressividade e a arrecadação do IRPF no Brasil. Texto para Discussão, n. 2554. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea, 2020.

KREIN, José Darin; OLIVEIRA, Roberto Véras; FILGUEIRAS, Vitor Araújo. Reforma trabalhista no Brasil: promessas e realidade. Campinas: Editora Curt Nimuendajú, 2019.

MARTUSCELLI, Danilo. As lutas contra a corrupção nas crises políticas brasileiras recentes. Crítica e Sociedade: revista de cultura política, Uberlândia, v. 6, n. 2, 2016.

MÁXIMO, Wellton. Entenda a reforma do Imposto de Renda enviada ao Congresso. Agência Brasil, 19/03/2025.

MEDEIROS, Marcelo. Meio século de desigualdades no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 31, nº 90, 2016.

NASCIMENTO, Houldine. Tributos sobre o consumo dominam arrecadação no Brasil. Poder 360, 06/03/2024.

SOARES, Sergio Gobetti; ZOCKUN, Carlos; MENDONÇA, Marcos. Estimativas de alíquotas efetivas da tributação indireta no Brasil: evidências de regressividade e implicações para o debate distributivo. Texto para Discussão, n. 2823. Brasília: Ipea, 2022.

SOUZA, Pedro H. G. Ferreira de. Uma história da desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil, 1926-2013. São Paulo: Hucitec: Anpocs, 2018.

RUGITSKY, Fernando. Milagre, miragem, antimilagre: a economia política do governo Lula e as raízes da crise atual. Revista Fevereiro, n°. 9, págs. 40-50 2016.

O drama do Brasil de hoje, por Luis Felipe Miguel

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Luis Felipe Miguel – A Terra é Redonda – 27/06/2025

Congresso corrupto cresce diante de governo apático

1.

A derrota de ontem confirmou, de maneira cabal, o que já sabíamos. O eixo do poder mudou no Brasil. A presidência da República está enfraquecida e mergulhamos em um parlamentarismo sui generis, em que o Congresso manda, mas não assume responsabilidades. É o pior dos mundos.

Lula e o PT sempre atuaram partindo da premissa de que a presidência era tudo o que importava. A política brasileira era como o quadribol, o jogo dos livros de Harry Potter, em que as equipes podem fazer pontos à vontade, mas ganha quem captura o pomo de ouro.

Câmara, Senado, governos estaduais, nada disso tinha peso diante da presidência. Por isso, os petistas se coligavam com qualquer partido, dando votos para ampliar suas bancadas, e cediam governos para os Sérgios Cabrais da vida, desde que garantissem a eleição do presidente.

Isto mudou, está claro que mudou, não é de hoje – vem do segundo mandato de Dilma Rousseff, aprofundou-se com Jair Bolsonaro. Mas Lula e o PT continuam desnorteados.

Os gângsteres que comandaram a derrota dos três decretos sobre o IOF, Hugo Motta e Davi Alcolumbre, chegaram aos seus cargos com apoio do governo. No entanto, estão prontos a inviabilizar este mesmo governo, sem ligar para as consequências para o país.

Davi Alcolumbre depois deu entrevista dizendo que os parlamentares “estão há dois anos e meio” ajudando Lula. E que o problema foi que o decreto do IOF “começou mal” e “foi rapidamente rechaçado pela sociedade brasileira”. Uma aula de cinismo.

O rentismo não é “a sociedade brasileira”. Os incentivos fiscais de R$ 197 bilhões, que os consumidores pagarão na energia elétrica, estes certamente são rechaçados pela sociedade brasileira, o que não impediu o Congresso de derrubar os vetos presidenciais (incluindo os votos da ampla maioria do PT). Uma medida com as implicações do aumento do IOF não é descartada sem discussão e sem negociação, como ocorreu agora. O Congresso não ajuda o governo, muito menos ajuda a sociedade: ele achaca o governo e vira as costas para o povo.

2.

Não é “polarização política”, que ocorre quando a oposição tenta bloquear as ações do presidente a fim de desgastá-lo, como os republicanos tentaram fazer com Joe Biden, por exemplo. Aqui, o caso é outro. O Congresso, quer dizer, o Centrão, que é sua espinha dorsal, quer simplesmente garantir seu domínio. Quer controlar o dinheiro e não sofrer as consequências de suas próprias decisões.

É claro que cortar um aumento de imposto que atingiria o topo da pirâmide satisfaz os patrocinadores dos nossos egrégios representantes. A possibilidade de usar o “desequilíbrio fiscal” para mexer no piso constitucional de Educação e Saúde é outro bônus. Mas a retaliação veio mesmo porque o governo Lula teve a ousadia de responsabilizar os parlamentares pela decisão que eles mesmos tomaram, relativa à conta de luz.

Como o governo vai reagir? Pelo que se lê na imprensa, nem vai reagir.

Embora a decisão seja provavelmente inconstitucional, já que o decreto era relativo a uma atribuição clara do Executivo, o Planalto reluta em levar a questão ao Supremo. Não quer “piorar a relação com o Legislativo”, não quer melindrar Hugo Motta e Davi Alcolumbre.

É um governo que apanha e não reage, que está sempre esperando a boa-fé, a compreensão, o cumprimento de acordos, quem sabe o sentido cívico do Centrão.

Demitir os ministros dos partidos de direita que votaram de forma praticamente unânime contra o governo? Certamente não.

Na Câmara, o PP, do ministério dos Esportes votou unanimemente pela derrubada dos decretos. No União Brasil, do ministério do Turismo, foram 97% – dois deputados não registraram voto. Mesma coisa nos Republicanos, do ministério dos Portos, em que o índice chegou a 95%; no MDB, dos ministérios das Cidades, dos Transportes e do Planejamento, foram 93%.

No PSD, que controla Minas e Energia, Agricultura e também Pesca, o percentual contra o governo foi menor, de 60% (ainda assim majoritário). Mesmo escore do PSB, que tem a vice-presidência e os ministérios da Indústria e Comércio e do Empreendedorismo. No PDT, que controla os ministérios do Desenvolvimento Regional e da Previdência, mantendo este último mesmo depois do escândalo que desgastou o governo, 94% dos deputados votaram pela derrubada dos decretos (um único deixou de votar).

Os ministros podem ficar tranquilos. O cargo é deles, não importa que não entreguem ao governo nada, nem em apoio político, nem em capacidade de gestão.

Lula insiste em cortejar a elite – ou talvez o termo correto seja escória – parlamentar, embora já esteja mais do que claro de que não receberá em troca nenhum tipo de compromisso ou de lealdade. Abriu as torneiras para liberar emendas parlamentares nos últimos dias e o resultado foi o que vimos.

Seria, talvez, o caso de partir para uma estratégia de maior confronto. Exigir algo em troca do que dá. Demitir ocupantes de cargos públicos, cortar a liberação de verbas. Fazer com que exista algum ônus em trair os acordos com o governo.

3.

Por que Lula não convoca uma cadeia de rádio e televisão para explicar ao povo brasileiro o que está acontecendo, para explicar o sentido político da tributação sobre os mais ricos e para responsabilizar o Congresso pela parte que lhe cabe na sua paralisia?

Mas é claro que não vai fazer isso. Tudo que ele faz é ceder mais, mesmo sem nenhum resultado. E cada vez que cede se enfraquece mais e mais.

Lula 3 é a Dilma 2. Desvaloriza seus recursos aos entregá-los a troco de nada.

O governo não tem rumo. Não conseguiu realizar quase nada do pouco que se propunha, nas condições particularmente desafiadoras em que assumiu. E, como dizia Sêneca, “não há vento favorável para quem não sabe para onde vai”.

Lula tem medo de quê? De sofrer um impeachment? Os senhores do Congresso não parecem muito interessados nesta saída. Para eles, é mais interessante ter um governo nas cordas, assumindo o desgaste e entregando tudo para eles.

E Lula quer se arrastar por mais um ano e meio, como um presidente que não preside, que nem sequer luta com os recursos que o cargo ainda lhe dá, para depois, com sorte, se reeleger e termos mais quatro anos deste martírio? Este é o projeto?

A paralisia governativa é, em parte, fruto da captura do orçamento pelo poder legislativo. Em parte, fruto da heterogeneidade da coalizão que o presidente tenta pilotar. Em parte, fruto do despreparo de muitos gestores, colocados nos cargos para satisfazer pressões de grupos ou para simbolizar visibilidades identitárias.

Mas a paralisia política, esta é inequivocamente de responsabilidade de Lula e da cúpula de seu governo.

Que me desculpem os incondicionais do lulismo: o presidente que elegemos em 2022 (e que, tudo indica, teremos que lutar para reeleger ano que vem) não está à altura do momento histórico.

A situação que vivemos é descrita pelo vocabulário científico com a expressão “no mato sem cachorro”.

Uma parte da Ciência política brasileira insiste em dizer que está tudo indo bem, muito bem. O mandato de Jair Bolsonaro, dizem alguns, foi a prova da “resiliência” de nossas instituições. Mesmo um pesquisador sério como Fernando Limongi vem a público reclamar que “há uma tendência de desrespeitar o Legislativo como uma expressão da sociedade”. Segundo ele, “nosso sistema permite, pelo Congresso, que a sociedade seja ouvida”.

É o formalismo que equivale voto a representação. Sim, todo mundo que está no parlamento foi eleito. Mas isto não impede que eleitos se distanciem de eleitores, que expressem pouquíssimo os interesses da base, que os manipulem, que sirvam apenas aos lobbies poderosos e a seus próprios apetites.

O sistema está funcionando, sim, mas para garantir a continuidade desse estado de coisas – uma sociedade desigual e atrasada, uma população desprovida de poder, uma democracia de fachada em que as vontades das maiorias podem ser desprezadas impunemente. A destruição do presidencialismo foi a pá de cal na esperança de uma mudança por dentro.

Como escreveu elegantemente Wanderley Guilherme dos Santos, logo depois que o golpe de 2016 acelerou este processo, o projeto é edificar uma “ordem de dominação nua de propósitos conciliatórios com os segmentos dominados”.

E o povo brasileiro assiste bestializado (para usar a expressão imortal de Aristides Loboa mais um capítulo da derrocada de seu país, narcotizado por fake news, bets, rede sociais, igrejas, empreendedorismo, o diabo a quatro.

Um Executivo débil, um Legislativo corrupto, um Judiciário negocista, umas Forças Armadas golpistas, uma classe dominante predatória. Uma grande parte da pequena esquerda envolvida em quizílias secundárias, incapaz de definir prioridades, ou então empolgada com as migalhas de poder, com os cargos que sobram para ela. É difícil vislumbrar qualquer solução dentro das instituições. É difícil ver alguma saída que não passe por uma revolução.

Claro que, da mesma maneira como os golpes de hoje podem prescindir de protagonistas fardados e de tanques na rua, a revolução de que estou falando não precisa passar por alguma tomada do Palácio de Inverno. Mas é necessária uma transformação “revolucionária” do padrão histórico de relacionamento do Estado brasileiro com as elites e com as classes populares. Uma transformação que é implausível no contexto atual, em que os sistemas de freios e contrapesos servem, na prática, para frear qualquer contestação ao açambarcamento do poder pela minoria que o detém.

Precisamos de uma revolução, mas não há quem a faça. Este, em poucas palavras, é o drama do Brasil de hoje.

Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil (Autêntica)

Conjunturas

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Vivemos momentos de grandes conflagrações na sociedade internacional, com repercussões em todas as nações, gerando confrontos, violências generalizadas, crescimento dos movimentos migratórios, conflitos políticos, impasses econômicos, guerras comerciais e tarifárias, aumento substancial dos gastos militares, violências verbais e muitas inverdades travestidas em narrativas que aumentam as incertezas, os medos e a desesperança.

Neste cenário, percebemos que as instituições internacionais, criadas no pós segunda guerra mundial, vem sendo destruídas sistematicamente todos os dias, agressões ás leis internacionais em prol dos interesses das nações mais desenvolvidas, conflitos militares crescem diuturnamente, gerando mais instabilidades e o crescimento constante daquilo que chamamos de individualismo e a diminuição da solidariedade humana entre os povos, onde cada nação busca seus interesses imediatos, seus ganhos monetários ou políticos, olhando apenas para seus interesses, deixando de lado outros países, outros povos, outras culturas e seus interesses imediatos, desta forma, não é difícil percebermos o aumento dos conflitos militares, o incremento dos dispêndios militares e o incremento da cultura da destruição, da violência e da devastação da natureza como forma de garantir ganhos imediatos e se esquecendo dos efeitos devastadores do longo prazo.

Neste cenário de incertezas e instabilidades crescentes, percebemos uma escalada militar entre nações, países que sempre se caracterizaram pelo pacifismo estão canalizando grandes recursos orçamentários para alavancar a defesa interna. A Europa é um exemplo cabal da insanidade militar, inicialmente criam uma ameaça externa para justificar seus gastos militares e, ao mesmo tempo, reduzir seus dispêndios nas políticas públicas exitosas que sempre garantiram na sociedade uma qualidade de vida maior para seu povo, estas políticas públicas exitosas estão na mira dos governantes e, usam a ameaça externa para legitimar a redução dos gastos sociais e, em contrapartida, defender os elevados gastos militares que beneficiam poucos grupos privilegiados.

A conjuntura mundial está envolta em grandes volatilidades e incertezas crescentes que trazem benefícios para os grupos detentores do capital financeiro internacional, são eles que constroem a agenda econômica das nações, elegem os congressistas, conseguem passar matérias que geram grandes privilégios e isenções fiscais e tributárias, usam seu lobby para evitar a tributação dos grupos mais abastados, exigem redução dos repasses monetários para as políticas públicas e, ao mesmo tempo, exigem somas altíssimas para rolar a dívida das nações, como percebemos no caso brasileiro que, com uma taxa de juros estratosférica, Selic 15%, exigem uma transferência de quase 1 trilhão de reais da sociedade para o bolso dos rentistas, dos herdeiros e dos financistas, defensores da falácia da meritocracia.

No caso brasileiro, percebemos uma conjuntura interessante e muito atípica, de um lado percebemos uma gritaria geral falando do descontrole inflacionário, que atingiu 4,73% ao ano nos últimos dois anos, mesmo sabendo que nos últimos quatro anos a inflação ficou na casa do 6,17% e abaixo da média dos últimos trinta anos (6,5% ao ano). O desemprego está na casa dos 6,6% no primeiro semestre, a informalidade caiu para 37,9%, menor na série histórica iniciada em 2015. A desigualdade de renda medida no índice de Gini foi a mais baixa no ano passado e o crescimento econômico gira em torno de 3% ao ano e, mesmo assim, percebemos que para os donos do dinheiro a conjuntura econômica é sempre desastrosa e usam seus poderes para degradar as condições econômicas e eleger seus apaniguados.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Univ

Os bastardos de Hayek, por Amaro Fleck

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Amaro Fleck – A Terra é Redonda – 10/06/2025

Comentário sobre o livro, recém-lançado, de Quinn Slobodian

“Este livro mostra que muitas das manifestações contemporâneas da Extrema Direita surgiram dentro do neoliberalismo, e não em oposição a ele. Elas não propuseram uma rejeição total do globalismo, mas sim uma variedade dele — uma que aceita a divisão internacional do trabalho, com fluxos transfronteiriços robustos de mercadorias e até acordos comerciais multilaterais, ao mesmo tempo em que endurece os controles sobre certos tipos de migração. Por mais repulsiva que sua política possa parecer, esses pensadores radicais não são bárbaros às portas do globalismo neoliberal, mas sim filhos bastardos dessa própria linha de pensamento. O suposto choque de opostos é, na verdade, uma briga de família.” (Quinn Slobodian, p. 24)

A tese central do novo livro do historiador canadense Quinn Slobodian afirma não haver uma ruptura entre o neoliberalismo da Sociedade Mont Pèlerin e a extrema direita contemporânea. Tampouco se trata de uma mera continuidade. Como o próprio título indica, essa extrema direita seria uma espécie de filha bastarda dos neoliberais clássicos. Em outras palavras, uma descendência, mas não uma descendência querida ou deliberada.

 

Quinn Slobodian, professor de história internacional da Boston University, foca sobretudo na “nova fusão” [new fusionism] ocorrida no começo da década de 1990 entre os paleolibertários e os paleoconservadores. Essa aliança forma a matriz do pensamento de extrema direita contemporâneo e se cristaliza numa organização, o John Randolph Club.

Trata-se de uma “nova” fusão pois ela remete a outra: a original é aquela ocorrida na década de 1950 por meio de uma aliança entre libertários e tradicionalistas promovida sobretudo pela National Review sob direção de William F. Buckley Jr, fusão essa responsável pela criação do tripé do conservadorismo norte-americano tal como o conhecemos: tradicionalismo moral, liberdade econômica e forte defesa nacional.

A aliança paleo

Os paleolibertários são, basicamente, os anarcocapitalistas com posturas tradicionalistas em questões de costumes e de gosto, ou, em outras palavras: eles sonham com mercados livres em sociedades opressivas, marcadas pela coação nos mínimos detalhes das vidas de seus indivíduos, nas quais os defensores da ordem e dos bons costumes podem decidir com quem eles podem se deitar, no que podem acreditar ou quais substâncias podem consumir (seus principais expoentes são Murray Rothbard, Lew Rockwell e Hans-Hermann Hoppe).

Os paleolibertários nada tem de antigos, eles são resultado de uma cisão tardia no movimento libertário americano, uma contraposição à sua versão clássica minarquista com sua defesa da menor intervenção possível do Estado tanto nos costumes quanto na economia (pense-se, sobretudo, em Robert Nozick). Além disso, os paleolibertários são antiigualitários: para eles as diferenças entre raças e entre sexos (eles recusam a própria concepção de gênero) estão inscritas na própria natureza humana, e não podem e nem devem ser mitigadas.

Já os paleoconservadores, por sua vez, são tradicionalistas que se opõem ao intervencionismo militar (seus protagonistas são Pat Buchanan, Thomas Fleming e Paul Gottfried). Eles defendem um isolacionismo nacionalista. Eles também são resultado de uma cisão tardia no movimento conservador americano, uma contraposição ao neoconservadorismo e sua promoção militarista da democracia mundo afora, assim como uma reação contra a adoção, por parte dos neocons, de políticas com intenções de promoção da igualdade racial.

Contra isso, os paleoconservadores querem resgatar um velho conservadorismo, cético em relação às intervenções externas, simpático a tarifas e outras formas de protecionismo econômico e radicalmente contrário a todas as políticas mitigatórias ou redistributivas, pouco importa se elas busquem reduzir disparidades de classe, raça ou sexo.

O argumento dos três “hards”

Pois bem, o cerne dessa nova fusão é o argumento dos três hards: a defesa de uma natureza humana rígida [hard nature], baseada na tese de que as diferenças humanas são biológicas e imutáveis; de fronteiras rígidas [hard borders], a apregoar livre circulação de capital, mas forte restrição à imigração, sobretudo de seres humanos “inferiores”, com baixo capital humano; e de moeda rígida[hard money], de preferência com um retorno ao padrão-ouro ou diretamente ao uso do próprio metal como moeda, e logo, também, com o fim da mera possibilidade de qualquer flexibilização monetária.

Natureza humana rígida

Esse argumento tem sua gênese em uma guinada biologicista e racializante ocorrida no começo dos anos 1990 no interior do movimento neoliberal, sobretudo por parte de sua vertente mais radical, os agora intitulados paleolibertários. Eles passam a argumentar que políticas redistributivas ou de reparação histórica são contraproducentes e ineficientes pois as desigualdades estão bem assentadas em diferenças inatas e imutáveis entre seres humanos. Nas palavras de Murray Rothbard: “a biologia permanece como uma rocha diante das fantasias igualitárias” [“Biology stands like a rock in the face of egalitarian fantasies”].

Essa tese ecoa em um livro de grande sucesso nessa década, A curva do sino. Inteligência e estrutura de classes na vida americana (1994) [The Bell Curve], de Richard Herrnstein e Charles Murray. Para Herrnstein e Murray, a estratificação social estadunidense é cada vez mais uma estratificação cognitiva, de modo que as pessoas com maior Quociente de Inteligência (QI) desempenham profissões mais valorizadas e consequentemente auferem uma renda maior. A elite se torna assim uma “neurocasta”.

Embora o QI, de acordo com os dois autores de A curva do sino, tenha tanto fatores genéticos inatos quanto aspectos ambientais, o século vinte teria equalizado em boa medida os aspectos ambientais (ao universalizar o acesso às escolas, por exemplo), desse modo, as diferenças preponderantes indicadas na estratificação cognitiva seriam agora genéticas e inatas.

Ainda que Herrnstein e Murray evitem entrar em querelas raciais explícitas, Richard Lynn, em A curva do sino global (2008), extrapola os limites nacionais estadunidenses e aplica a mesma metodologia para discriminar a inteligência entre diferentes países e raças.

Fronteiras rígidas

Isso coaduna com a proposta de fronteiras rígidas, outro dos tópicos da aliança entre os paleos. O livro Nação Estrangeira. Uma Visão de Senso Comum sobre o Desastre da Imigração nos EUA (1995) [Alien Nation], de Peter Brimelow, é a principal referência aqui. Trata-se da ideia de uma etnoeconomia, uma mistura perversa de nativismo racial com racionalidade econômica neoliberal.

Peter Brimelow praticamente já antecipa a tese conspiracionista da “grande substituição” (a saber: estaria em curso uma substituição das populações autóctones por imigrantes e seus descendentes, causada tanto pelos incentivos à imigração quanto pelas maiores taxas de fecundidade dos imigrantes em relação a dos nativos).

De acordo com Peter Brimelow, isso ocorreria tanto por um masoquismo branco (uma espécie de impulso irracional por parte dos brancos, algo como um desejo de se submeter aos grupos que eles antes oprimiram), quanto por um interesse de uma nova classe formada por burocratas, intelectuais, e pelas elites empresariais e das mídias, pois essa nova classe prefere um Estado multinacional fragmentado, carente de patriotismo e prestígio.

As políticas de reconhecimento, notadamente as ações afirmativas, seriam responsáveis pelo surgimento de um “socialismo de pigmentação”, o qual serviria tão somente para a perpetuação do poder das elites. Contra a ideia da imigração como um direito humano (para não falar da muito mais idílica noção de um mundo sem fronteiras), os neoliberais passam assim a defender uma política de imigração como importação de capital humano, vantajosa tão somente, portanto, quando consegue atrair capitais de alta qualidade.

Dinheiro rígido

Por fim, com a proposta do dinheiro rígido os paleos se afastam da ortodoxia neoliberal, oriunda do monetarismo de Milton Friedman, ao defenderem um retorno ao padrão ouro. De acordo com eles, há uma ladeira escorregadia a conduzir do fim do padrão ouro, em 1971, quando o dólar americano deixou de ser conversível no metal, para a completa e absoluta degradação moral. Desde então a ganância estatal não teria mais limites, aumentando os programas sociais, mas também a inflação.

Os goldbugs, entusiastas do ouro, preveem um colapso monetário num futuro próximo, causa de hiperinflação e crise financeira. Esse colapso, no entanto, é também uma oportunidade, pois os “libertários do desastre” disseminam sua ideologia por meio de newsletters de conselhos financeiros (o mais conhecido é o Ron Paul Survival Report), nas quais indicam a compra de ouro como único meio de garantir a segurança patrimonial (mas também toda uma estratégia sobrevivencialista, com o armazenamento de armas, alimentos e com a obtenção de cidadanias alternativas).

Em sua conclusão, Quinn Slobodian comenta como essa nova fusão foi capaz de combinar cultura, economia e política para justificar as hierarquias sociais e se contrapor a qualquer projeto de transformação ou questionamento delas. Por meio de uma mescla entre sociobiologia, psicologia evolutiva e genética eles promoveram uma ideologia baseada num vínculo entre livre-mercado, nacionalismo étnico e determinismo biológico. Essa ideologia foi propagada com sucesso por meio de empreendedores ideológicos interessados em fazer fortuna por meio da venda de pacotes de alarmismo grosseiro com soluções simplistas para tempos incertos.

Uma fuga para a segurança por meio da oferta de estabilidade simbólica e material diante do caos. O presidente argentino Javier Milei é o exemplo emblemático dessa ideologia, e não à toa batiza seus cães mastins com nomes de economistas dessa tradição: Milton [Friedman], Murray [Rothbard], Robert e Lucas [em homenagem a Robert Lucas Jr.].

Mas, afinal, qual a relação entre os neoliberais e os paleos?

O livro de Quinn Slobodian é bem-sucedido em iluminar aspectos teóricos muitas vezes negligenciados da extrema direita contemporânea, em especial ao jogar luz sobre essa aliança entre paleolibertários e paleoconservadores e ao mostrar como ali é gestado parte do terror que nos assalta. Mas deixa a desejar justamente em seu objetivo maior, isto é, especificar qual exatamente é o laço a vincular os neoliberais clássicos aos seus “filhos bastardos”.

Quinn Slobodian oscila entre duas explicações. A primeira, proeminente, busca mostrar como há uma continuidade teórica entre os pensamentos de Mises, Hayek e James Buchanan e as ideias de Rothbard, Murray e Brimelow. É como se os neoliberais clássicos já fossem criptorracistas, entusiastas comedidos de uma volta ao ouro ou defensores envergonhados de uma concepção robusta de natureza humana.

Os filhos bastardos, aqui, apenas revelariam de forma mais explícita traços já presentes, mas ao mesmo tempo ocultos, em seus genitores. Mas isso é, no melhor dos casos, algo bastante forçado. É difícil encontrar algo de bom nas teorias de Mises, Hayek ou James Buchanan, mas nem tudo o que há de mal está lá.

Notem bem: o argumento neoliberal de atrair imigrantes com alto capital humano, ao mesmo tempo em que se repele a migração de trabalhadores pouco qualificados é sem dúvida repugnante, mas é muito diferente da defesa paleolibertária da criação de enclaves brancos ou da tentativa, algo desesperada e com um leve atraso de três ou quatro séculos, de tornar os EUA um território etnicamente homogêneo.

A segunda estratégia, mais interessante, consiste em identificar vínculos institucionais: indicar a participação desses autores na Sociedade Mont Pèlerin (é o caso dos três: Rothbard, Brimelow e Murray), mostrar a reunião dos paleolibertários no Instituto Mises, chamar a atenção para o fato de líderes da extrema direita europeia, sobretudo da maldita AfD, baterem ponto na Hayek Society.

Aqui, na periferia sul do mundo (“como se chegando atrasado, andasse mais adiante”) isso tudo é evidente: afinal um Chicagoboy foi ministro da economia do governo da versão canarinho da alt-right e algo como um sósia disso é agora presidente dos nossos pobres y combalidos hermanos. Enfim, é óbvio que há conexões entre os neoliberais e a extrema direita contemporânea, mas ainda é preciso elaborar teoricamente e interpretar essas conexões.

Amaro Fleck é professor do Departamento de Filosofia da UFMG.

 

Por que o Congresso não gosta de pobres? por Thiago Amparo

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Porque eles próprios não são pobres e medidas antirricos os afetam pessoalmente

Thiago Amparo, Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

Folha de São Paulo, 25/06/2025

Deveria chocar toda a população, porque obscena, a ofensiva do Congresso contra qualquer discussão séria sobre tributar os mais ricos, ao mesmo tempo em que se lambuza com a liberação das emendas, que dobrou em apenas um dia  —chegou a R$ 1,72 bilhão na terça-feira (24).

Faz sentido olhar como parlamentares antipobres têm buscado reverter a narrativa: fala-se em aumento da tributação, apelando para o senso comum de que se tributa muito no país.

Na prática, a teoria é outra: tributa-se muito os mais pobres, pelo consumo, e a classe média, pelo Imposto de Renda, mas quase nada se tributa dos mais ricos. Ao propor elevar o IOF e tributar investimentos imobiliários e de agronegócio, hoje isentos, o que o governo quer é tributar quem hoje não paga, mas deveria. Isso vale para discutir supersalários da elite do funcionalismo, inclusive do Judiciário, bem como rediscutir renúncias fiscais, temas tabu no Parlamento.

Faria bem ao Congresso, que deveria representar a população, que paga seus salários, e não os lobbies, que o controla, escutar o que pensam os brasileiros.

Pesquisa do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) revela que o eleitorado brasileiro é a favor de tributar mais os ricos e menos os pobres, na contramão do que o Congresso tem feito, inclusive ao pautar de surpresa o PDL sobre o IOF nesta quarta (25). O debate não é sobre diminuir impostos, mas sim diminuir impostos para quem?

O Congresso no Brasil —e em outras democracias desiguais— tende a proteger os mais ricos porque eles próprios e seus amigos não são pobres, porque medidas antirricos os afetam pessoalmente ou por conta de suas redes de influência. São justamente essas hipóteses que um consórcio internacional, do qual a FGV faz parte, tenta verificar empiricamente desde 2024, num projeto sobre reprodução política da riqueza.

Seja qual for a resposta, já sabemos qual pergunta deveria ser feita: por que o Congresso está mantendo os seus amigos na elite brasileira livres de pagar o que os mais pobres já pagam e chamam isso de justiça?

 

A guerra Irã-Israel mostra que o rei (das moedas) está nu, por Marcos de Vasconcellos

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Ouro, franco suíço e até mesmo a Bolsa brasileira tiveram um desempenho melhor do que o dólar no primeiro choque do conflito, entre os dias 12 e 16 deste mês

Marcos de Vasconcellos, Jornalista, assessor de investimentos e fundador do Monitor do Mercado.

Folha de São Paulo, 23/06/2025

Além de evidenciarem a perda da humanidade em inúmeros aspectos, os recentes ataques entre Israel e Irã evidenciaram que o rei (das moedas) está nu.

O dólar serviu como porto-seguro nas escaladas de conflitos geopolíticos pelo menos desde o acordo de Bretton Woods, que estabeleceu a moeda em referência global, em 1944, justamente logo após o pico de conflitos da Segunda Guerra Mundial, que viria a acabar quase um ano depois do acordo.

Agora, sob Donald Trump, as perspectivas para a estabilidade e o crescimento dos Estados Unidos são tão incertas que, quando os mísseis cruzaram os céus no Oriente Médio, os grandes investidores preferiram espalhar suas economias em vez de recorrer à estratégia clássica de comprar dólares e concentrar-se nos EUA.

Até então, enviar grana para os EUA era o chamado de “flight to quality” (voo para ativos de qualidade), onde a segurança e a liquidez eram claras. Não mais. Ouro, francos suíços e até mesmo a Bolsa brasileira tiveram um desempenho melhor do que o dólar no primeiro choque, entre os dias 12 e 16 deste mês.

Não é que o mundo tenha encontrado um novo porto seguro. Simplesmente perdeu a fé no que usava até então. Como me disse outro dia o Felipe Miranda, da Empiricus, o substituto para o dólar, até agora, tem sido “tudo que não é dólar”.

Nessa brecha, o Brasil apareceu como um destino para o dinheiro global. O Ibovespa, principal indicador da Bolsa, manteve-se acima dos 135 mil pontos. Não por mérito, mas por conveniência. Com uma Selic agora em 15% ao ano, o país entrou no radar de quem quer retorno. O real se valorizou, os fluxos estrangeiros aumentaram.

Mas é bom manter os pés no chão. O dinheiro que vem por especulação pode sair em um clique.

O risco do apagão da máquina pública segue, como falei no último texto aqui publicado na coluna. O jornalista Fernando Canzian trouxe um novo dado para a discussão: os gastos aumentaram em ritmo que é o dobro da arrecadação desde o início do governo Lula 3. E a Anatel já foi a público dizer que a pane seca começou, avisando que não tem dinheiro para cortar os sites de bets (casa de aposta) ilegais.

Operando na dobradinha emergência e improviso, o governo Lula liberou mais de R$ 600 milhões em emendas parlamentares em uma semana, tentando ganhar fôlego político para aprovar suas novas taxações no Congresso.

É o retrato de um Estado que gasta o que não tem para manter alianças, mas não arranjou uma equação para ajustar as contas e atrair o dinheiro a longo prazo. Para o investidor, vale aproveitar o momento, sem baixar a guarda.

O real valorizado, infelizmente, ainda não é sinal de robustez, é reflexo de um fluxo volátil que pode se inverter a qualquer sinal de queda dos juros nos EUA. É um movimento tático, não estrutural.

Diversificar seus investimentos também de maneira geográfica, apostando em ativos internacionais, segue uma boa ideia, ainda que o dólar tenha caído nos últimos meses. A pior armadilha nesse cenário é acreditar que o Brasil mudou porque o dólar fraquejou.

O Brasil não virou destino —virou escala. A guerra no Oriente Médio mostrou que o dólar perdeu o monopólio do medo, mas o real não é seu herdeiro.

 

O mapa religioso do Brasil e o avanço do fanatismo por Dora Incontri

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Dora Incontri – GGN – 18/06/2025

Corre nas redes um vídeo assustador. 1.500 jovens na Universidade Federal de Minas Gerais, uma das melhores do país, reunidos num culto evangélico, dentro do espaço universitário. Hinos, batismos, conversões, “milagres”, centenas de alunos de joelhos, “pedindo perdão pelos pecados da universidade brasileira”. A cena me lembrou um livro que uso em minhas aulas sobre a história do cristianismo: Cristianismo e paganismo, 350-750 – A conversão da Europa ocidental.  Ou ainda o filme Alexandria (2009), dirigido por Alejandro Amenábar, que conta a história da filósofa e astrônoma Hipátia, que costumo passar ou indicar para meus alunos. As duas fontes mostram como o cristianismo – leia-se o catolicismo – foi imposto a ferro e fogo, muitas vezes numa histeria coletiva, depois que o Imperador romano Constantino o adotou como religião (e mais especificamente o catolicismo, porque havia inúmeras denominações cristãs na época, por exemplo o arianismo, o pelagianismo, o montanismo, o marcionismo e dezenas de outras, todas declaradas heréticas pela Igreja Romana e que passaram a ser perseguidas, tanto quanto os cultos do paganismo).

Desde então, o cristianismo, na versão católica, foi avançando mundo afora. O livro conta como multidões se entregavam ao batismo coletivo, penitentes dos pecados pagãos, e como templos, bibliotecas, lugares de ensino do mundo greco-romano foram sendo literalmente destruídos. Só para citar dois exemplos, a biblioteca de Alexandria foi em parte destruída por fanáticos cristãos (na mesma época em que martirizaram Hipátia) e a conversão da Alemanha ao cristianismo foi arrematada com a queda a machadas de um templo de Tor, liderada por São Bonifácio, por volta do ano 800.

Então… sabemos para onde nos levou esse movimento de tomada de poder pela igreja, com um cristianismo que pouco tinha a ver com o mestre Nazareno, exemplo de fraternidade, serviço ao próximo e compaixão.

É a ameaça que sofremos atualmente, da civilização ocidental ser assaltada por uma histeria cristã fundamentalista, coletiva, fanática, que destrói outras religiões, que submete a massa a uma manipulação de sujeição e que arrasa com a arte, com a ciência, com a liberdade de pensamento e com a nossa esperança de um mundo igualitário, fraterno e fundante do Reino que Jesus queria implantar. Ou, dito de outra forma, de uma sociedade socialista, como tantos sonharam e pela qual lutaram até hoje. Eu prefiro refinar ainda o conceito e falar em uma sociedade anarco-socialista.

Podemos agora comentar sobre o censo do IBGE, que trouxe algumas pequenas novidades em relação ao mapa das religiões no Brasil. Não poderia deixar de fazer algumas leituras a respeito, já que essa coluna trata de espiritualidade, como um dos seus eixos temáticos.

A primeira constatação que já vem há pelo menos 5 décadas é o recuo dos católicos e o aumento dos evangélicos. E essa cena na Universidade Federal de Minas Gerais é o efeito concreto desse avanço. Diga-se, entre parênteses, que essa progressão não é majoritariamente dos setores mais tradicionais do protestantismo, mas sim dos pentecostais e neopentecostais. A novidade é que nesse censo publicado agora em 2025 e que traz os dados de 2022, os evangélicos (26,9%) cresceram com menos velocidade. Católicos (56,7%) continuam caindo, espíritas (1,8%) (sempre colocados em terceiro lugar entre as religiões no Brasil), decaíram ligeiramente. Digno de nota é o aumento percentual de adeptos de religiões afro-brasileiras (1%) e de pessoas sem religião (9,3%) (que engloba ateus, agnósticos, mas cuja predominância parece ser de pessoas – jovens – com uma espiritualidade livre, difusa, não aderente a uma religião em particular).

Algumas considerações: sabemos que há um projeto, ligado a uma “teologia de domínio”, importada dos EUA, que está em pleno vigor no governo atual do império do norte, mas que já vem sendo amarrada há décadas. É um avanço agressivo de setores hiper conservadores de evangélicos e católicos (por exemplo, o vice de Trump, J.D. Vance, é um desses católicos radicais) que pretendem resgatar valores tradicionais cristãos, como agendas patriarcais, antifeministas, contra direitos humanos, contra pautas LGBTQI+, contra lutas antirracistas e sobretudo contra tudo que é de esquerda, em completo alinhamento com um projeto neoliberal e de extrema direita.

Assim, o desaceleramento do crescimento evangélico entre nós é uma meia boa notícia, pois seus adeptos continuam crescendo de qualquer forma, mas o pior é que estão avançando os sinais para minar completamente o Estado laico, a escola pública laica e agora até as universidades públicas, onde não deveria haver qualquer movimento religioso, muito menos dessa forma invasiva e fanática.

Por outro lado – não encontrei informações estatísticas sobre isso – dentro do catolicismo (ainda em declínio), há hoje um reavivamento de setores também radicais, que oraram pela morte do Papa Francisco e fazem pregações misóginas e contra todas as pautas progressistas, marcando um território em comum com os evangélicos conservadores.

Duas boas novidades, que aponto neste novo censo: o avanço dos afro-brasileiros e os dos sem religião. O primeiro caso, me parece, se deve a um processo recente de identificação cultural e ancestral com as raízes afro, coisa que era muito reprimida anteriormente. Embora, ainda muitos adeptos dessas religiões sejam brancos e a maior contingência de negros se encontre entre os evangélicos. O segundo caso indica um desejo de espiritualidade mais livre, menos institucional por parte das novas gerações, fato que já analisei aqui em outro artigo.

Entretanto, do que tenho sido cobrada, desde que saiu o resultado do censo em relação às religiões, é que me pronuncie sobre o leve declínio dos espíritas. Tenho algumas hipóteses explicativas para esse dado. 1) a migração de espíritas para religiões afro (conheço pessoalmente vários), sobretudo para a Umbanda, por conta da maior liberdade de participação no fenômeno mediúnico (usando um termo kardecista). 2) o enrijecimento institucionalista e dogmático do movimento espírita hegemônico, liderado pela Federação Espírita Brasileira e seus seguidores, afastando jovens e pessoas de senso crítico. 3) a adoção de grande parte do movimento (esse mesmo hegemônico) a pautas de direita e extrema direita. Muita gente foi expulsa ou saiu espontaneamente dos centros espíritas, que apoiaram de maneira explícita a barbárie bolsonarista. 4) o abafamento da mediunidade, que constitui o cerne do espiritismo de Kardec, com imposições que acabam por tornar a prática espírita uma coisa sem experiências espirituais vivas, que são fonte de convicção.

Há um movimento espírita progressista, que tem avançado nos últimos anos, tecendo reflexões e lançado iniciativas para retomar o que, a nosso ver, pode ser uma revivescência do espiritismo genuíno, dinâmico e crítico como proposto por Kardec. E esse movimento, de qualquer maneira, está mais perto desses que querem uma espiritualidade livre (mas também crítica) do que os que seguem setores radicais e dogmáticos das religiões tradicionais.

Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.

O rei do ovo, por Francisco Alano

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Francisco Alano – A Terra é Redonda – 20/06/2025

Ricardo Faria: bilionário do ovo critica Bolsa Família e paga salários 20 vezes menores no Brasil

No dia 17 de junho de 2025, fomos surpreendidos com entrevista de Ricardo Faria, publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, em que afirma, entre outras coisas, “que contratar no Brasil é um desastre porque as pessoas estão viciadas no Bolsa Família”.

Segundo ele, a holding Global Egss, de sua propriedade, com sede em Luxemburgo, produz cerca de 13 bilhões de ovos por ano, através das empresas Granja Faria (Brasil), Hevo Group (Espanha) e a recém adquirida Hillandale Farms (Estados Unidos).

Declarou que compra uma empresa por mês e financia candidaturas consideradas liberais como Jair Bolsonaro (PL), Tarcísio de Freitas (Republicanos), Kim Kataguiri (União Brasil) e Martel Van Hattem (Novo-RS).

Afirmou que paga aos trabalhadores da sua empresa nos Estados Unidos, para embalar ovos, US$ 20 (R$ 110,00) por hora. Dá US$ 1.100 (R$ 6.050,00) por semana e US$ 5.000 (R$ 26.000,00) por mês. Oitenta por cento dos negócios da empresa é fora do Brasil e sua residência fiscal é no Uruguai. E por fim reclamou que a carga tributária no brasil é alta, as taxas de juros elevadas e há forte burocracia em cima das empresas.

As reações contra a entrevista de Ricardo Farias foram imediatas e contundentes.

Segundo dados publicados nas redes sociais, a Granja Faria paga para um operador de produção um salário médio de R$ 1.670,00 ou R$ 48,00 líquido por dia, para fazer o manejo de aves, coleta de ovos e limpar o local, exigindo ainda disponibilidade para morar na granja e vivência no ramo de avicultura.

O influenciador Felipe Neto comentou nas redes sociais que além de ser um salário miserável, inferior à média nacional para a mesma função, ele ainda quer que a pessoa abandone a própria família, vá viver numa granja e passe o dia todo coletando ovos e manuseando galinhas para receber em média R$ 1.670,00 mensal.

Os problemas nas empresas de Ricardo Faria não se restringem à baixa remuneração. Segundo o jornal O Globo, ele foi alvo, em 2023, de inquérito do Ministério Público do Trabalho do Piauí, por irregularidades nos contratos de trabalho, suposta ausência de pagamento de salários e benefícios. Constam ao menos outros 17 processos trabalhistas no Tribunal Regional do Trabalho do estado.

Nas ações os autores apontam irregularidades em rescisão de contrato de trabalho, pagamento de horas extras, pagamento de verbas rescisórias, remuneração e pagamento de indenizações e benefícios. Um dos autores pede indenização por danos morais e assédio moral.

Além disso Ricardo Faria é alvo de processos trabalhistas em outros estados, especialmente em Mato Grosso, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, São Paulo, Paraná e Maranhão.

Este mercenário, mais conhecido pela síndrome de vira lata, paga quase vinte vezes mais para um trabalhador americano em relação a um trabalhador brasileiro e reclama que os trabalhadores brasileiros estão viciados no Bolsa Família. Sabemos que o problema não é falta de mão de obra tampouco o Bolsa Família, mas sim o que a empresa se propõe a pagar aos trabalhadores.

Ao declarar que a sua residência fiscal é no Uruguai, a sede da sua empresa é em Luxemburgo e 80% da produção de ovos está fora do Brasil, demonstra bem o compromisso do mesmo com o nosso País. Boa parte da sua movimentação financeira e dos seus negócios parece que estão em paraísos fiscais, certamente para se beneficiar de isenção de impostos e sonegação fiscal.

O empresário estreou em 2024, na lista da Revista Forbes, na 21ª. posição, com um patrimônio de 17,45 bilhões de reais.

Esse cara é bilionário. Se ele reduzisse em alguns milhões a sua distribuição de lucro anual, poderia aumentar consideravelmente o salário de todas essas pessoas e ainda ofereceria uma vida digna para todos eles.

Somente a indignação e união de todos os brasileiros poderá mudar este quadro de exploração dos trabalhadores.

Francisco Alano é presidente da Federação dos Trabalhadores no Comércio no Estado de Santa Catarina.

 

Ambição, guerras e o caos

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A comunidade internacional caminha a passos largos para uma grande destruição global, depois de anos de convivência conflituosa, discursos belicosos, confrontos verbais e discussões improdutivas, além do avanço crescente da violência verbal, os seres humanos estão conseguindo superar sua mediocridade, as ofensas estão se transformando em guerras campais, bombas sobrevoam os céus, destruindo comunidades inteiras, devastando países, degradando famílias, espalhando rancores e ressentimentos e continuamos colhendo a devastação dos seres humanos, destruindo o planeta e nos afastando do conceito de civilização e nos aproximando dos mais terríveis animais.

Vivemos momentos de grandes instabilidades econômicas, polarização política, conflitos comerciais, violências crescentes dentro das nações, ataques sistemáticos contra a democracia, avanços de regimes autoritários, incremento de grupos fascistas, degradação das universidades e do pensamento científico, tentativa de fragilização das instituições nacionais e o estímulo de uma realidade paralela, onde tudo se transforma em narrativas, espalhando inverdades e se aproximando de um caos generalizado, com impactos para todos  os grupos mais fragilizados, beneficiando os mais endinheirados, setores que controlam o grande capital, a mídia comercial e os grupos políticos.

Neste momento percebemos o crescimento dos cenários belicosos em todas as regiões do mundo, as conversações diplomáticas são limitadas, as discussões das agências multilaterais são substituídas pelo crescimento acelerado dos gastos militares, nações que historicamente se destacavam como pacíficas e amistosas estão entrando numa verdadeira corrida armamentista destrutiva, com incremento dos gastos militares, dispêndios crescentes em armas de destruição em massa, com drones, aviões de guerra, caças, blindados e armas nucleares. Diante deste cenário do crescimento dos conflitos entre nações, alguém racionalmente poderia imaginar, que, num ambiente marcado por tantas potências nucleares, alguém conseguirá sobreviver neste cenário de caos nuclear?

Países europeus que reduziram imensamente os dispêndios militares depois da segunda guerra mundial em prol de um Estado de bem-estar social, estão aumentando os recursos monetários para alavancar os gastos militares, grandes conglomerados de defesa estão recebendo bilhões e trilhões de euros para desenvolverem tecnologias militares, com o aumento da produção de drones de alta complexidade, incremento das pesquisas militares para o desenvolvimento de novas tecnologias e o aumento dos lucros, já elevados, de poucos conglomerados que dominam esses setores. Neste cenário, percebemos que os recursos para alavancar os gastos militares europeus tendem a ser retirados dos gastos sociais, reduzindo benefícios da população mais fragilizada, diminuindo as políticas públicas que sempre garantiram melhores condições de vida da população europeia e, num futuro próximo, se este cenário se efetivar, os conflitos sociais tendem a aumentar de forma acelerada, difundindo ressentimentos generalizados, aumentando o desemprego estrutural, elevando a desesperança da população, reduzindo a solidariedade, o crescimento do individualismo e destruindo os laços de convivência social.

Nesta semana a comunidade mundial acordou chocada com mais uma guerra em curso na sociedade global, ataques militares, mortes violentas e destruições tendem a aumentar os confrontos entre nações, elevando a tensão na sociedade mundial, impactando sobre o preço do petróleo, aumentando a inflação e gerando impactos negativos para os grupos mais fragilizados. Se a degradação do meio ambiente não foi suficiente para levar as elites globais a acordarem para este cenário de destruição, quem sabe um conflito nuclear tenha mais êxito para convencer que estamos caminhando rapidamente para o caos e a destruição.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

 

O novo fordismo educacional, por Álvaro Machado Dias.

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Educação é campo privilegiado para IAs especializadas, que estão mudando o setor

Álvaro Machado Dias, Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind.

Folha de São Paulo, 15/06/2025

Quando a vida é encarada como competição, a adaptabilidade torna-se o valor mais elevado. Surge assim a intuição de que os comportamentos improdutivos devem ser diligentemente eliminados, justificando a cinta e a velha palmatória para além do prazer de ferir e humilhar.

Porém, evidências acumuladas mostram que o reforçamento é bem mais eficiente do que a punição. Este princípio levou à abolição dos castigos físicos na escola —o que na prática marcou o surgimento da educação contemporânea— e também à explosão da inteligência artificial, que é programada para perseguir recompensas (matemáticas) como um bandeirante.

A convergência metodológica faz da educação um campo privilegiado para IAs especializadas, que estão mudando o setor com promessas de turbinar o aprendizado e substituir o uso desonesto dos chatbots nas lições de casa por aplicações curriculares. Nos Estados Unidos, já há escolas alegando possuir tecnologias que ensinam em duas horas o que antes tomava um dia inteiro.

Esta é a teoria; a prática revela uma divergência nada trivial de incentivos. Bons professores catalisam o desenvolvimento de modelos de entendimento e sociabilidade, assinalando o valor intrínseco destas dimensões existenciais e dando ênfase à necessidade de se esforçar para aprender. Já bons assistentes pedagógicos reforçam seu próprio uso, que é condição necessária para que sigam instruindo a turma e cobrando mensalidade.

A prerrogativa para reforçar o próprio uso é nunca frustrar o aluno, o que na prática significa jamais pôr em xeque seu papel de cliente, que deve receber elogios a cada ação e, sobretudo, pode se angustiar se a resposta à tarefa não for logo regurgitada. O caso é idêntico ao das IAs terapêuticas, reforçadas para evitar o contraditório, que é simultaneamente o grande vetor da transformação e a grande ameaça à continuidade do plano contratado.

O aprendizado formal envolve a aquisição de novas formas de pensar, o que muitas vezes obriga o aluno a lidar com fatores extrínsecos à noção em foco (como no caso em que precisa imaginar a figura impressa girando no espaço). Assistentes de ensino com IA facilitam este processo pela personalização da demanda conceitual e redução do peso dos fatores extrínsecos, já que usam animações e outros recursos que mitigam a necessidade de malabarismos mentais capazes de dificultar a incorporação do conceito-alvo.

A promessa é de que criariam um papel ainda mais valioso do que o tradicional para o professor, que poderia focar menos a repetição e mais a promoção de convergências interdisciplinares e experiências críticas. Porém, a realidade até aqui tem sido outra. Nela, os alunos que não enxergam um propósito maior na educação se aproveitam da IA; a lição em forma de jogo desvaloriza a leitura; e a evitação do contraditório, inerente à noção do aluno como cliente, reduz o contato com a sua própria fragilidade, reforçando o seu egocentrismo.

Aos poucos, estas ideias vão circulando entre os educadores. O resultado é o surgimento de uma nova dicotomia programática no ensino privado, não mais entre as escolas que cruzaram ou não a fronteira da IA, mas entre as que concebem seu papel de forma criteriosa e as que enxergam na tecnologia a oportunidade para uma nova era de ouro do fordismo educacional.

 

O ‘rei do ovo’ e as Odetes Roitmans da vida real, por Flávia Boggio

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Não é preciso ser sociólogo para entender por que tantos ricos detestam o Bolsa Família

Flávia Boggio, Roteirista. Escreve para programas e séries da Rede Globo.

Folha de São Paulo, 19/06/2025

Interpretada em 1988 por Beatriz Segall e, na nova versão, pela também brilhante Débora Bloch, Odete fez sucesso, entre outras coisas, por representar com fidelidade o rico brasileiro que odeia o país e tem nojo de pobre.

Em entrevista publicada nesta Folha, o “rei do ovo”, como é conhecido o empresário Ricardo Faria, completou o bingo Odete Roitman das lamentações do rico nacional. Reclamou da burocracia, da carga tributária, das leis trabalhistas, da política e, como de praxe, dos programas sociais.

Dono da empresa Global Eggs e uma das pessoas mais ricas do Brasil —com uma fortuna de mais de R$ 17 bilhões—, Faria não pisou em ovos, com o perdão do trocadilho, e desabafou: disse que os brasileiros mais pobres estariam “viciados em Bolsa Família” e que não querem trabalhar.

A dúvida é: como um empresário com um discurso tão 2002, sem apresentar nenhuma evidência, tem uma empresa de sucesso? Provavelmente, o mérito é das galinhas.

Ao contrário do que ele e parte da elite pensam, há inúmeros estudos que descartam a teoria de que o programa social “deixa o trabalhador preguiçoso”. Pelo contrário: quanto mais pessoas beneficiadas pelo Bolsa Família, mais cresce o emprego com carteira assinada. O que elas rejeitam é o trabalho desumano.

Mas não é preciso ser sociólogo para entender por que tantos ricos brasileiros detestam o Bolsa Família. Não é porque acham que ele torna o trabalhador preguiçoso. É porque, com mais pobres desempregados, podem contratá-los pagando menos.

É assim que funciona na Granja Faria, principal empresa do “rei do ovo” no país. Os operadores de produção ganham cerca de R$ 1.670 por mês —14% abaixo da média nacional.

Esse tipo de crítica é comum entre as Odetes Roitmans modernas, que cultivam como hobby —além do golfe e do beach tennis— o hábito de falar mal do Brasil. O que elas não querem que as pessoas percebam é que o maior problema do país são elas mesmas.

Na mesma entrevista, Ricardo Faria se declara um homem que “trabalha duro” e que não herdou nada. É filho de um médico e uma engenheira, fez intercâmbio nos Estados Unidos aos 15 anos e estudou em Harvard. Mais uma vez, com o perdão do trocadilho: “meritocracia, meu ovo”.

 

 

O impacto do Bolsa Família na saúde dos brasileiros, por Drauzio Varela

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Vivemos num país com uma das mais perversas distribuições de renda do mundo

Dráuzio Varela, Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

Folha de São Paulo, 19/06/2025

Se a justificativa que você encontra para condenar o Bolsa Família é a de uma platitude do tipo “está errado distribuir o peixe, o certo é ensinar a pescar”, preste atenção. O Foreign, Commonwealth & Development Office e o Medical Research Council, órgãos do governo britânico, e a instituição filantrópica Wellcome Trust, organizações da maior respeitabilidade, patrocinaram um estudo que acaba de ser publicado na prestigiosa revista médica The Lancet.

Nele, foi avaliado o impacto do Bolsa Família na saúde dos brasileiros nos 20 anos que se passaram desde a sua criação, em 2004.

Atualmente, o programa atinge mais de 20 milhões de famílias e cerca de 55 milhões de pessoas

Estudos anteriores tinham demonstrado que o programa reduzira em 18% a mortalidade total das mulheres, além de diminuir a mortalidade infantil, a materna e os óbitos por causas específicas como HIV, Aids e tuberculose, especificamente entre as pessoas mais vulneráveis.

Não havia, porém, avaliação de sua relação com o número de internações hospitalares e com a mortalidade geral por faixa etária. A publicação da Lancet mostra, pela primeira vez, um estudo com abrangência analítica adequada para avaliar o impacto do Bolsa Família na mortalidade e nas hospitalizações em três grupos etários: abaixo de cinco anos, de cinco a 69 anos e com 70 anos ou mais.

Os principais achados foram:

1) Nos 20 anos analisados, a mortalidade geral dos beneficiários caiu 18%, queda que ocorreu em todas as faixas etárias.

2) Nesse período, o programa evitou 8,2 milhões de internações hospitalares e 713 mil mortes, em números arredondados.

3) A mortalidade infantil diminuiu 33%. Ou seja, de cada três mortes de crianças com menos de cinco anos que ocorreriam sem o Bolsa Família, uma foi evitada.

4) A hospitalização de mulheres e homens com 70 anos ou mais caiu pela metade.

O Bolsa Família é considerado pelas organizações internacionais um programa de transferência de renda condicional, uma vez que impõe a observância de contrapartidas para ter acesso a ele: frequência das crianças na escola, manter em dia a caderneta de vacinações e as consultas do pré-natal.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) caracterizou com três “C” os principais desafios socioeconômicos impostos a diversos países nos últimos anos: Covid, clima e conflitos. A conjunção desses fatores adversos provocou aumento da pobreza e piora dos indicadores educacionais na maior parte do mundo.

O aumento da dívida pública consequente a esses agravos levou à adoção de medidas de austeridade fiscal, com cortes de orçamento que reduziram investimentos em medidas de proteção social e de acesso aos cuidados com a saúde pelo mundo inteiro.

Em 2024, o investimento no Bolsa Família foi de R$ 218,5 bilhões. Cada beneficiário custa, em média, aos cofres do governo federal, aproximadamente R$ 684.

Convenhamos que não é um custo proibitivo: ao todo, representa apenas 0,4% do PIB brasileiro. Por outro lado, cada R$ 1 investido faz girar R$ 2,40 no consumo dessas famílias.

É difícil calcular quanto o SUS economizou com as internações evitadas no decorrer desses 20 anos. Além da inflação no período, os valores médios pagos por internação são muito variáveis. As diárias hospitalares vão de R$ 300 a R$ 800, no caso dos problemas clínicos mais simples, e de R$ 5.000 a mais de R$ 15 mil nos casos de alta complexidade.

De qualquer forma, o dinheiro economizado com internações e os ganhos de produtividade dos que não precisaram ir para o hospital e dos que não perderam a vida têm de ser descontados do investimento anual do programa.

Existem os que se queixam de que o programa gera acomodação dos beneficiários, que deixam de trabalhar para viver das benesses do governo. É provável que seja verdade, mas vamos atacar essa questão somente quando soubermos quantificá-los.

Quantos são? Onde vivem? Quais são as características socioeconômicas desse grupo específico?

Enquanto não formos capazes de obter dados confiáveis, ficaremos discutindo opiniões sem base em evidências, conversas de redes sociais e palpites de botequim que não ajudam em nada.

Vivemos num país com recursos naturais invejáveis para o resto do mundo, grande número de profissionais bem treinados, alguns dos quais com pós-graduação nas melhores universidades do Brasil e do mundo, mas ao mesmo tempo com uma das mais perversas distribuições de renda do mundo.

Um país em que o 1% mais rico da população ganha 39,2 vezes o que ganham os 40% mais pobres, segundo o IBGE, nunca estará entre os mais desenvolvidos nem terá paz nas ruas.

 

Criança não trabalha, por Bianca Santana

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Quantos dos presentes trocados no Dia dos Namorados foram produzidos por trabalho infantil?

Bianca Santana, Doutora em ciência da informação, mestra em educação e jornalista. Autora de “Quando me Descobri Negra”.

Folha de São Paulo, 16/06/2025

O 12 de junho, Dia dos Namorados no Brasil, é também Dia Mundial de Erradicação do Trabalho Infantil. Segundo a Organização Internacional do Trabalho e a Unicef, 138 milhões de crianças trabalharam em 2024.

O ouro, a prata e a pedra da joia presenteada podem ser frutos de mineração ilegal, que degrada territórios e explora crianças na África. A roupa, a pelúcia, o enfeite podem ter sido fabricados por mãos infantis na Ásia.

Mesmo que a responsabilidade pela erradicação do trabalho infantil seja dos Estados, não podemos seguir fingindo que as escolhas individuais não têm conexão com o todo.

Recentemente, participei de um “Sempre um Papo” no Sesc Pinheiros, em São Paulo, com Ricardo Abramovay e Semayat Oliveira, sobre consumo consciente e o futuro das cidades. Ali, ficou evidente a necessidade de políticas públicas de estruturação de um sistema econômico mais ético. A conversa está disponível online para quem se interessar por ela.

Responsabilizar indivíduos não é a resposta para o tamanho do desafio de colocar pessoas e a natureza no centro das escolhas políticas. E, mesmo que pareça, não há contradição com a perspectiva feminista de que no nosso cotidiano é preciso considerar as condições de produção daquilo que usamos, vestimos e comemos.

Cito Silvia Federici na publicação da SOF (Sempreviva Organização Feminista) “Feminismo, economia e política: debates para a construção da igualdade e autonomia das Mulheres”, organizado por Renata Moreno: “(…) precisamos superar o estado de negação constante e de irresponsabilidade em relação às consequências de nossas ações, resultado das estruturas destrutivas sobre as quais se organiza a divisão social do trabalho dentro do capitalismo. Sem isto, a produção da nossa vida se transforma, inevitavelmente, na produção da morte para outros.”

Se o consumo consciente é importante para atender nossas necessidades básicas do cotidiano, quando nem sempre é a opção mais barata ou mais fácil comprar comida orgânica do pequeno produtor, ele se torna imperativo ao presentear. A escolha por agradar alguém pode vir acompanhada da premissa de fazer o dinheiro circular na economia local, entre quem se dedica a produzir comida, cosméticos, biojoias, artesanato que respeita as pessoas e a natureza.

O relatório “Trabalho Infantil: Estimativas Globais 2024, tendências e o caminho a seguir”, lançado no último 11 de junho pela OIT e a Unicef, traz recomendações para os Estados erradicarem o trabalho infantil: investimento em proteção social para famílias vulneráveis, fortalecimento dos sistemas de proteção infantil para identificar, prevenir e responder às crianças em risco, acesso universal à educação da qualidade, garantia de trabalho decente para adultos e jovens, leis e responsabilidade empresarial para acabar com a exploração e proteger as crianças em todas as cadeias de suprimentos.

É preciso denunciar, cobrar, votar pela erradicação do trabalho infantil. Mas não faz mal considerar, individualmente, a cadeia produtiva do que consumimos. Para que o presente a quem amamos esteja carregado de vida, não de violência e morte.

 

 

O PL da Devastação e a miopia climática, por Oscar Vilhena Vieira

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Se aprovado, projeto deveria ser vetado pelo presidente

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023).

Folha de São Paulo, 14/06/2025

Na contramão dos esforços para conter e mitigar a crise climática, o Congresso Nacional está prestes a aprovar o PL 2159/21, que implodirá importantes mecanismos de proteção socioambiental estabelecidos pela Constituição de 1988 que vêm sendo implementados ao longo das últimas décadas.

Para atender aos interesses imediatos e à ganância de alguns setores da economia, o Parlamento comprometerá os interesses gerais de toda a comunidade, assim como o próprio desenvolvimento sustentável da economia brasileira, que tem na preservação ambiental e na biodiversidade a sua maior vantagem competitiva.

Como há muito alertou David Hume, os homens comumente se deixam seduzir por tentações presentes, ainda que irrelevantes, em detrimento daqueles interesses que lhe são verdadeiramente importantes, mas mais longínquos, sendo essa uma fraqueza “incurável na natureza humana”.

Com a aproximação da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 30), que se realizará em Belém, setores predatórios da economia brasileira têm mobilizado suas bancadas no Congresso Nacional para promover um verdadeiro atentado contra o bem-estar das futuras gerações. O festival de agressões ao meio ambiente, à biodiversidade e aos direitos fundamentais dos povos tradicionais tem como peça central o chamado PL da Devastação.

Conforme nota técnica emitida pelo Observatório do Clima, o objetivo central do projeto, em vias de aprovação na Câmara dos Deputados, é ampliar as hipóteses de isenção de licenças ambientais, priorizando o autolicenciamento, inclusive para projetos com potencial poluidor. Isso reduzirá a capacidade de prevenir desastres ambientais, devastação florestal e degradação ambiental, além de fragilizar os mecanismos de fiscalização e punição daqueles que agridem o meio ambiente.

O projeto, se aprovado, também violará os direitos indígenas, quilombolas e das populações tradicionais, na medida em que restringiu a participação de diversas agências e autoridades responsáveis pela proteção dessas populações no processo de licenciamento, além de deixar desprotegidas as áreas ainda não demarcadas. Preocupação esta que foi expressa pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos em mensagem endereçada ao Congresso.

Mesmo aqueles que defendem reformas no processo de licenciamento ambiental, como o presidente do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), Raul Jungmann, alertam para os riscos de “arrebentar os mecanismos de controle e fiscalização do meio ambiente”.

Além dos impactos sobre o meio ambiente e as populações que protegem nossas florestas, o PL 2159 também ameaça o regime de chuvas e a segurança hídrica, indispensáveis para o sucesso do agronegócio e da própria estabilidade da vida em grandes conglomerados urbanos. Se aprovado, promoverá ainda uma enorme insegurança jurídica, provocando uma explosão de litigiosidade. Pior, esse litígio ocorrerá depois que o estrago já tiver ocorrido.

Trata-se de um projeto de lei eivado de inconstitucionalidades e que não trará nenhum benefício à sociedade brasileira. Como as pérfidas agressões à ministra Marina Silva por parte de alguns senadores, esse projeto é uma expressão da irresponsabilidade e do descaso de muitos parlamentares com as futuras gerações.

Por todos esses motivos, o PL 2159 não deveria ser aprovado. Se for aprovado, deveria ser vetado pelo presidente. Se sancionado, deveria ser declarado, em seu cerne, inconstitucional.

 

O eterno espírito das universidades, por Muniz Sodré

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Aos trancos e barrancos, as instituições de ensino erguem-se como bastiões de defesa contra o avanço do neofascismo

Muniz Sodré, Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”.

Folha de São Paulo, 15/06/2025

O ataque de Trump às universidades americanas, maioria no rol das melhores do mundo, é sintoma forte do neofascismo transnacional. Não foi adiante no período de Bolsonaro, mas exerce controle total na Hungria de Orban. Pode ser característica de toda autocracia, porém tem mais a ver com fascismo do que com nazismo ou stalinismo, apesar do sinistro parentesco entre os três.

Suscita-se uma hipótese de vingança pessoal de Trump contra as altas instituições de ensino, de onde provém a elite dirigente dos EUA. Não só oito presidentes foram formados na Ivy League, núcleo de excelência universitária, assim como professores, economistas e cientistas, sempre nas pautas do Prêmio Nobel. Obama graduou-se em Harvard. Trump, embora proveniente da Ivy League (onde nunca foi benquisto), é produto de show televisivo. Respira e transpira banalidades, mas soube navegar no vácuo de credibilidade do elitismo: desde Truman, o povo americano descobriu que seus líderes eram grandes mentirosos. A verdade sobre as guerras inúteis do Vietnã e do Iraque não foi revelada aos jovens por governos, mas pela imprensa e pelas universidades.

O neofascismo trumpista constrói-se na mentira aberta, sem descambar no neonazismo. É que o nazismo como programa político “tinha uma teoria do racismo e do arianismo, uma noção precisa da entartete Kunst, a ‘arte degenerada’, uma filosofia da vontade de potência e do Übermensch. O nazismo era decididamente anticristão e neopagão” (Umberto Eco, “Fascismo Eterno”). O fascismo, ao contrário, sem bases filosóficas nem controle ideológico real, articulava-se emocionalmente em torno de arquétipos tradicionais. Houve só um nazismo, mas vários os fascismos.

Duas características do velho fascismo permitem identificar o novo: oposição ao avanço do conhecimento e ação irracional do chefe. Em Trump, o açodamento da guerra comercial e ameaças de conquistas territoriais. Depois, universidades como alvos de alegações infundadas, dentre as quais o antissemitismo. Ele finge desconhecer participação de judeus nas manifestações contra o massacre em Gaza e agora a própria revolta interna em Israel.

Na realidade, o ambiente universitário no mundo todo é conservador. Não exatamente de direita, mas de valores universalistas derivados de um sistema de ideias. Isso comporta uma diferenciação estrutural, processo pelo qual a estrutura de ensino se abre ao surgimento de institutos e laboratórios. Para tanto é imprescindível o avanço do saber, logo, liberdade de pesquisa e opiniões. Manifestações estudantis e docentes são o epifenômeno desse espírito libertário, sujeito ao debate.

Nenhuma comunidade de saber é possível num sistema educativo à distância nem em universidades-empresas. Isso não significa que o conhecimento esteja restrito às universidades. Mas, entre nós, as instituições públicas são fontes de ensino aliadas à produção de conhecimento. Vivem na corda bamba de orçamentos mesquinhos e cortes drásticos, em meio à farra de emendas parlamentares sem prestação pública de contas. Ainda assim, ascendem, como acaba de acontecer com a UFRJ no ranking das melhores. Aos trancos e barrancos, aqui e no mundo, a universidade ergue-se como bastião de defesa contra a metástase progressiva do neofascismo.

Insistindo no atraso

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A sociedade internacional vem passando por momentos nebulosos marcados por guerras fratricidas, conflitos políticos, degradação de regimes democráticos, devastação do meio ambiente, pobreza generalizada, fortalecimento em excesso do capital financeiro, devastação do mundo do trabalho, crescimento exagerado do poder político das grandes empresas de tecnologias, aumento do negacionismo e aversão ao pensamento científico, neste cenário, encontramos o incremento da desesperança, do crescimento da ansiedade dos indivíduos, depressão e a degradação da saúde mental dos trabalhadores, estamos num momento difícil da humanidade que exige lideranças conscientes dos desafios da sociedade contemporânea.

A sociedade contemporânea traz grandes desafios para todas as nações, as transformações tecnológicas exigem das empresas grande flexibilidade para compreenderem os anseios dos consumidores e se atualizar constantemente, evitando que outros atores econômicos e produtivos ganhem espaço neste ambiente, cada vez mais competitivo, instável e volátil. Aos indivíduos, os desafios não são menores, as mutações no mundo do trabalho exigem novas habilidades comportamentais que não são ensinadas nos modelos educacionais dominantes, gerando preocupações crescentes, medos e ressentimentos que culminam em fortes desgastes emocionais e afetivos, gerando ansiedades, depressões crescentes e degradação da saúde mental, esse último vem ganhando espaço no noticiário das mídias tradicionais e nas empresas com discursos superficiais, cheio de pompa e marcados pela superficialidade.

Neste cenário, as grandes nações estão aumentando seus investimentos em pesquisa e tecnologia, reestruturando seus modelos educacionais, aumentando os dispêndios em infraestrutura, investindo na melhora do capital humano e atraindo recursos para alavancar o desenvolvimento nacional, assim como foi feito nas nações asiáticas, tais como a Coréia do Sul, Taiwan, Indonésia, Singapura, Vietnã, China, Malásia, Japão, Índia, dentre outros. E, no Brasil, uma nação dotada de grande capacidade produtiva, empreendedorismo natural, recursos naturais pouco vistos na sociedade global, fonte inestimável de energia, mas, infelizmente, estimula-se cotidianamente, discussões secundárias, brigas entre poderes, uns querendo mostrar mais força política e capacidade de influência, deixando de lado as demandas da comunidade e fomentando agenda de grupos endinheirados com seus interesses particulares, vivemos numa sociedade marcada por conversas baseadas em futricas e intrigas, desconversando sobre os desafios nacionais, tais como a degradação da educação, aumento da pobreza urbana e o aumento da vulnerabilidade social, da insegurança e o incremento da malversação dos recursos públicos.

Enquanto as nações que crescem rapidamente no cenário internacional e se destacaram no cenário global entram na competição mundial com fortes investimentos nos seres humanos, defendendo as riquezas naturais, investindo no aumento do valor agregado dos produtos exportados, canalizando grandes recursos para desenvolver uma ciência sólida e consistente, construindo regulações modernas e se esforçando para desenvolver um aparato jurídico e institucional que preservem as riquezas nacionais, fortalecendo o meio ambiente, mas, infelizmente, percebemos grupos econômicos nacionais atrelados a interesses de conglomerados estrangeiros e políticos entreguistas que degradam o patrimônio nacional, entregando empresas estatais a preços irrisórios, mantendo taxas de juros escorchantes e penhorando a sociedade nacional e condenando as futuras gerações a exclusão e a pobreza generalizada.

Neste momento de incertezas globais, choque de tarifas comerciais e concorrências econômicas crescentes, percebemos a ausência de lideranças nacionais capazes de compreenderem os desafios contemporâneos e, ao mesmo tempo, uma grande quantidade de entreguistas e falsos nacionalistas que degradam o Estado e sobrevivem através de subsídios e isenções tributárias.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

 

Influencers e a sedução do vazio, por Sampaio & Maia

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Há inversão preocupante: muitos seguem quem apenas aparece ou viraliza mais, nem sempre se permitindo fazer do olhar crítico um companheiro

André Sampaio, Pesquisador e professor colaborador da Universidade Federal do Oeste da Bahia; pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP

Dayanne Maia, Cofundadora do escritório Maia Advogados Associados (Fortaleza)

Folha de São Paulo, 15/06/2025

Em “O Segredo do Bonzo”, conto de Machado de Assis, viajantes, em um reino do século 16, observam aglomerações em torno de figuras cujos discursos e ideias se mostravam absurdos e até burlescos; pessoas as seguiam com fé cega, enxergando nelas uma aura especial, em cenários em que mais valia o parecer (e seus holofotes) do que o ser. Em sua costura irônica, a narrativa escancara como o imaginário coletivo pode se curvar perante aparências de referenciais, mesmo que vazios.

Hoje, realidade similar é vista no mundo digital, uma não novidade em que cenas como as da CPI das Bets, no Senado Federal, têm posto em evidência. Como na ficção, multidões seguem figuras públicas, não raras vezes, sem suficiente filtro crítico.

O fenômeno encontra solo fértil na sociedade contemporânea, marcada pelo que o sociólogo Zygmunt Bauman chamou de “modernidade líquida”. Vivemos tempos em que relações e valores, em geral, se tornam voláteis. Nada parece sólido: tudo pode vir a escorrer por entre os dedos, numa imagética que bem poderia ser representada junto aos relógios derretidos de Salvadro Dalí. Nessa conjuntura, referências também se diluem: já não dependem de consistência, mas de visibilidade. O influencer de hoje, frequentemente, é filho do algoritmo, não de substância.

A internet, ao democratizar a comunicação, trouxe ganhos inegáveis, mas também deu à luz essa nova figura social. Para o bem e para o mal, trigo e joio: há criadores de conteúdos que se pautam por ética, com produções de qualidade, nos mais plurais campos de interesses; mas o contrário também é fato. Infelizmente, número elevado de seguidores, likes ou visualizações, por si sós, têm se convertido em quase sinônimo de pertinência, numa inversão preocupante. Muitos seguem quem apenas aparece mais, quem viraliza mais, nem sempre se permitindo fazer do olhar crítico um companheiro —o que retoma, sob novo molde, a lição machadiana às voltas da sedução do vazio.

As consequências desse contexto, cara leitora, caro leitor, não poderiam deixar de ser nocivas. Muitas publicações banalizam conhecimentos, relativizam preocupações éticas, alimentam desinformação e até mesmo promovem discursos de ódio mascarados de liberdade de expressão.

Quando personalidades desse universo põem um alvo em temas como democracia e ciência, por exemplo, ou sugerem enriquecimento fácil com apostas online, disseminam ilusões e falseamentos perigosos em escala massiva. Num espaço onde se tende para a liquidez, a ausência de critérios sólidos para a “creator economy” deixa nossa sociedade à mercê de vozes, muitas vezes, inconsequentes.

O caminho a ser trilhado precisará passar pela construção da noção de efetiva responsabilidade nas ágoras digitais. Todos têm o direito de falar, mas é preciso senso crítico e regulamentação para os usuários, sobretudo para quem ocupa espaços de visibilidade. Do contrário, seguiremos cada vez mais cercados de postagens de qualidade precária ou deletéria, pagando um alto preço, em um tempo em que as redes conferem amplitude de vocalização a uma legião de pessoas que, como no atento dizer de Umberto Eco, “antes só falavam no bar, sem gerar danos à coletividade”.

 

Brutalismo, a fase mais alta do neoliberalismo , por Amador Fernandez-Savater

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Uma reflexão sobre nossa época de crise civilizatória, a partir de Achille Mbembe. Para a extração maior de valor, o sistema precisa dessensibilizar. O método: estimular o virilismo, digitalizar a vida e tornar corpos supérfluos. E se a resistência apoiar-se em culturas não-coloniais?

OUTRAS MÍDIAS, 10/03/2025

Por Amador Fernandez-Savater, no CTXT, traduzido pelo IHU.

“O que é significativo não é o que termina e consagra, mas o que começa, anuncia e prefigura” (Achille Mbembe)

Em que época vivemos? Como descrever nossos tempos? Algo decisivo está em jogo, para o pensamento crítico, nesta questão dos nomes. Os nomes da época. O mapa de nomes orienta estratégias, indica os movimentos do adversário, revela possíveis resistências.

O que estamos enfrentando hoje? Se não sabemos como se chama, como vamos combatê-lo?

O pensador camaronês Achille Mbembe propõe o termo “brutalismo”. Vindo do mundo da arquitetura, onde se refere a um estilo de construção massivo, industrial e altamente poluente, o brutalismo como imagem do mundo contemporâneo nomeia um processo de guerra total contra a matéria.

O diagnóstico de Mbembe não é simplesmente político ou econômico, cultural ou mesmo antropológico, mas civilizacional, cósmico, cosmopolítico. Designa a relação dominante com o que existe. Uma relação de força e extração, de exploração intensiva e predação.

O mundo se tornou uma gigantesca mina a céu aberto. O papel dos poderes contemporâneos, diz Mbembe, é “tornar a extração possível”. Existe uma versão de direita do brutalismo e uma versão progressista, mas ambas administram a mesma empresa de perfuração com intensidades e modalidades diferentes. Dos corpos e territórios, passando pela linguagem e pelo simbólico.

Um novo imperialismo? Sim, mas não mais instaura ou constrói uma civilização de valores, uma nova ideia de Bem ou uma cultura superior, mas sim fratura e fissura os corpos – individuais, coletivos, terrestres – para extrair deles todo tipo de energias até a exaustão, ameaçando assim a “combustão do mundo”.

Mbembe identifica tendências globais que afetam a humanidade como um todo. Mas ele pensa a partir de um lugar específico: a África, sua história, suas feridas e suas resistências. O mundo inteiro está hoje vivenciando um “tornar-se obscuro” no qual a distinção entre seres humanos, coisas e mercadorias tende a desaparecer. O escravizado negro prefigura uma tendência global. Estamos todos em perigo.

Economia libidinal brutalista

Que tipo de ser humano, subjetividades e desejos o brutalismo contemporâneo quer produzir?

De um lado, há o projeto louco de erradicação do inconsciente, “essa imensa reserva de noite com a qual a psicanálise tentava nos reconciliar”. O corpo humano não é apenas um corpo biológico, neuroquímico, mas também uma “matéria onírica” (León Rozitchner) com anseios, fantasia e utopia. O inconsciente é uma casca de banana em todos os planos de controle, inclusive sobre si mesmo. Ela desvia, distorce e complica tudo.

Precisamos erradicar essa dimensão ingovernável, capturar todas as forças e potenciais humanos em redes de dados, mapear toda a matéria até que o mapa substitua o território. O brutalismo visa a digitalização completa do mundo, dissolvendo o inconsciente (que nos torna únicos e irrepetíveis) no algoritmo, no número, no domínio do quantitativo. Abole o mistério que somos, branqueie a noite.

Mas tudo o que isso consegue é dar rédea solta aos impulsos mais obscuros e destrutivos. Por quê? A racionalização geral – digitalização, algoritmização, protocolização – bloqueia as energias afetivas e amorosas, esse poder de Eros que segundo Freud é o único contrapeso possível a Thanatos. O projeto de erradicação do inconsciente leva a uma dessensibilização geral.

O projeto de erradicação do inconsciente leva a uma dessensibilização geral

A indiferença à dor do outro, o prazer de ferir e matar, de ver o sofrimento. Crueldade e sadismo são características-chave dos poderes contemporâneos. Num capítulo particularmente arrepiante, Mbembe fala do “virilismo” contemporâneo. A economia libidinal do brutalismo não envolve mais repressão ou contenção de pulsões, mas sim desenfreamento, desinibição, dessublimação e ausência de limites. Diga tudo, faça tudo, mostre tudo e aproveite.

O virilismo cria uma zona frenética, diz Mbembe, sem nenhum vestígio dos antigos sentimentos de culpa, vergonha ou inibição. Uma figura talvez expresse isso melhor do que qualquer outra: o triunfo da imagem do pai incestuoso nas páginas pornográficas. De volta ao passado: se o assassinato do pai despótico pelas mãos dos filhos significou para Freud a passagem para a civilização, os limites e a lei, o fantasma do pai abusador volta a povoar os desejos mais obscuros da atualidade.

Ontem, o princípio de realidade (o mandato paterno) nos obrigava a renunciar ou adiar o prazer, para substituí-lo por uma compensação sublimatória. Hoje, exige exatamente o oposto: não adiar, atrasar ou substituir nada, mas acessar o prazer diretamente, literalmente e sem mediação. Consumir (objetos, corpos, experiências, relacionamentos). Da repressão à pressão. Da dessexualização, à hipersexualização. Do pai da proibição ao pai do abuso. A culpa hoje é não ter aproveitado o suficiente.

Colonizar sempre significou brutalizar. A plantação e a colônia são, segundo Mbembe, prefigurações do brutalismo. Sem contenção ou mediação simbólica, pode-se e deve-se absolutamente desfrutar dos outros, convertidos em um mero “harém de objetos” (Franz Fanon). Podemos então entender, libidinalmente, uma chave para a ascensão da nova direita? Eles se apresentam como defensores de uma “liberdade” que é apenas o direito dos fortes de usufruir dos fracos como se fossem objetos descartáveis.

No fundo, como efeito derivado do virilismo, o medo da castração, o pânico genital e o horror ao feminino se espalharam por toda parte. O brutalismo aspira até mesmo a se livrar completamente das mulheres. Onanismo generalizado, sexualidade sem contato, tecnossexualidade, com o cérebro substituindo o falo como órgão privilegiado. O virilismo não seria a última palavra do patriarcado.

Corpos de fronteira

No fim de seu livro As origens do totalitarismo, mais de seiscentas páginas dedicadas ao estudo das condições históricas e sociais que tornaram o nazismo e o stalinismo possíveis, Hannah Arendt surpreendentemente afirma que a única certeza a que chegou é que o totalitarismo nasce em um mundo onde toda a população se tornou supérflua. Os campos de concentração (e mais tarde os campos de extermínio) foram o único lugar que os poderosos encontraram para abrigar os que sobraram.

Como lemos isso hoje, quando nossa era é atravessada pelo mesmo fenômeno de massas errantes? A guerra sempre foi um possível dispositivo para regular o excesso populacional indesejado e o totalitarismo um regime de guerra permanente. O brutalismo contemporâneo, diferentemente do nazismo ou do stalinismo, herda, no entanto, a mesma função. Diante do medo de compartilhar e do pânico da “multiplicação dos outros”, a gestão brutal das migrações.

A guerra sempre foi um possível dispositivo de regulação para o excesso populacional indesejado.

Mbembe chama os seres humanos excedentes de “corpos fronteiriços”. O que é feito com eles? Isolar e confinar, trancar e deportar, deixar morrer. A biopolítica (que cuida da vida para explorá-la) se sobrepõe à necropolítica (que produz e cuida da população supérflua).

O mundo contemporâneo conhece não apenas formas suaves e sedutoras de controle (moda, design, publicidade), mas também métodos de guerra. Hoje, em todos os lugares, os controles, prisões e confinamentos estão se tornando mais rigorosos. Os espaços são divididos e é decidido com autoridade quem pode se mover e quem não pode. Não só a mobilidade dos sujeitos é promovida (de casa, do trabalho, da função), mas também é apoiada, controlada e fixada. Gaza como paradigma de governo.

Enquanto os líderes europeus celebraram recentemente oitenta anos desde a libertação de Auschwitz, os campos estão retornando à sua antiga glória. Campos de internamento, detenção, rebaixamento e separação. Para migrantes, refugiados e requerentes de asilo. Campos, em suma, para estrangeiros. SamosQuiosLesbosIdomeniLampedusaVentimigliaSicíliaSubotica. As rotas migratórias mais mortais do mundo são as europeias: 10 mil pessoas perderam a vida tentando entrar na Espanha no ano passado.

A sangria e a predação também operam na gestão das complexas circulações dos corpos fronteiriços, explica Mbembe, através do controle de conexões, mobilidades e trocas. A guerra contra os migrantes (que importam em movimento) também é um negócio lucrativo e um fator econômico.

Os impulsos imperialistas combinam-se hoje com nostalgia e melancolia. Os antigos conquistadores, envelhecidos e cansados, sentem-se invadidos pelas “raças enérgicas” cheias de vitalidade. O mundo está se tornando pequeno e ameaçado. Essa é a percepção que a extrema direita europeia explora. A pátria não deve mais ser expandida, mas defendida. O estilo afirmativo e entusiasmado de José Antonio se transforma em puro medo e vitimização em Vox.

Utopias da matéria

Como resistir ao brutalismoMbembe não se deixa levar por um exercício de catastrofismo, mas ousa utopizar. O que isto significa?

O pensador camaronês encontra inspiração em Ernst Bloch, o grande pensador da utopia e da esperança do século XX. O que é utopia para Bloch? Nada a ver com o que normalmente pensamos estar associado a esse termo: especulação sobre o futuro, projeção de cenários, modelos perfeitos. Não, a utopia é poder, latência e possibilidade já inscritos no presente.

Diferentemente da crítica convencional, a crítica utópica não apenas traça uma cartografia crítica dos poderes contemporâneos, mas também aponta potencialidades para resistência, para mudança, para outros mundos possíveis. Ela não apenas denuncia, julga ou anula, mas enuncia novas possibilidades, convidando quem escuta a fazê-las nascer, a desdobrá-las. Ela coloca em tensão o que é e o que poderia ser, sendo este último não uma possibilidade abstrata, mas uma força em processo.

Se hoje assistimos a um “devir-negro” do mundo, não poderíamos inspirar-nos na resistência que as culturas africanas sempre opuseram ao seu devir-coisa? O particular se torna universal e a utopia, como queria Walter Benjamin, não está mais no futuro, mas no “salto do tigre para o passado”.

Essas resistências passam, como eu as leio, por outra concepção e outra relação com a matéria. De acordo com as culturas africanas pré-coloniais, a matéria é um tecido de relações, é diferença, é mudança. O animismo expressaria isso em um nível espiritual: o mundo é povoado por uma multidão de seres vivos, sujeitos ativos, múltiplas divindades, ancestrais, intercessores.

Ou reparos ou funerais, diz Mbembe. O desafio não é indignar-se nem bater no peito, mas regenerar a matéria ferida. Por exemplo, no caso do debate sobre a descolonização dos museus, não se trata simplesmente de “devolver” objetos roubados aos seus lugares de origem, mas de entender que esses objetos não eram “coisas” (nem ferramentas, nem obras de arte), mas veículos e canais de energia, forças vitais e virtualidades que possibilitavam a metamorfose da matéria. Recria um relacionamento ativo com a memória.

Se a matéria não é um objeto a ser explorado, mas um ecossistema participativo, uma reserva de potenciais, um conjunto de subjetividades, que formas políticas lhe poderiam ser adequadas?

Além da democracia liberal e do nacionalismo vitalista, do solo e do sangue, Mbembe propõe uma “democracia dos vivos” que praticaria o cuidado com todos os habitantes da Terra, humanos e não humanos. Uma economia de “bens comuns” que nos forçaria a abandonar nossas obsessões com apropriação exclusiva. E uma “desfronteiração” do mundo capaz de proteger o direito de todos de sair, de se deslocar e de estar em trânsito. Ser estrangeiro, para si mesmo e para os outros.

A própria matéria se utopiza, disse Ernst Bloch. Não é uma massa passiva que aguarda sua forma vinda de fora, mas tem dentro de si seu próprio movimento, seu próprio princípio ativo e está grávida de futuro. É por isso que o brutalismo declara guerra a ela? O que ela exige de nós é que sejamos “como o fogo na fornalha” que amadurece e realiza seu potencial. Não para forçá-lo ou violá-lo, mas para ouvir e prolongar sua criação.