Capitalismo e a “morte por desespero”, por Ricardo Queiroz Pinheiro.

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Ricardo Queiroz Pinheiro, bibliotecário, gestor público e doutorando em Ciências Humanas e Sociais (UFABC). Atua em biblioteca pública há 29 anos.

OUTRAS PALAVRAS – 01/09/2025

Na onda de overdoses, suicídios e alcoolismo, sintomas do vazio. Trabalhadores jogados à instabilidade vivem a corrosão lenta da vida cotidiana – quanto falta para virar tragédia? Richard Sennet já apontava: o desamparo vem travestido de “liberdade”

O capitalismo não cobra só no nosso bolso. Cobra na pele, na cabeça e no vazio que se abre quando o futuro deixa de ser promessa e se converte em ameaça. Ele se introjeta diariamente em nossas subjetividades. Essa dimensão, tão sentida na militância e no cotidiano, é a que mais me importa. Amigos que caem, vidas esquecidas, biografias tristes diante das quais temos quase nenhum recurso para oferecer solidariedade. Porque não se trata de estatísticas sobre desemprego ou crescimento, mas da corrosão lenta da vida cotidiana, das marcas invisíveis que se acumulam até virar tragédia.

Foi nesse terreno que Richard Sennett me ajudou a dar nome a algo que muitos já sentiam no corpo. Na obra, do fim dos anos 1990, Sennet falou em “corrosão do caráter”, não inventou uma metáfora elegante: registrou a experiência de um mundo em que a carreira com início, meio e fim desaparecia. O trabalhador passava a viver como peça descartável, sempre forçado a se adaptar, a se reinventar, a correr atrás de empregos fragmentados e instáveis. Essa flexibilidade, vendida como liberdade, deixava no lugar apenas ansiedade e desamparo.

Há alguns dias tive contato com uma resenha do livro “Deaths of Despair and the Future of Capitalism”, de Angus Deaton e Anne Case. Os dois trouxeram outro sinal dessa mesma devastação. Ao estudarem a onda de overdoses, suicídios e doenças ligadas ao álcool entre a população trabalhadora nos Estados Unidos, falaram em “mortes por desespero”. De novo, não se tratava de incompetência individual, como as bíblias liberais gostam de tratar, mas de uma resposta brutal ao colapso de perspectivas. Aquele que perde o trabalho estável, a possibilidade de sustentar a família, a confiança num amanhã melhor, muitas vezes perde também a própria vida.

Quando coloco lado a lado essas leituras, não as enxergo como teorias distantes, nem como análises restritas à classe média branca dos Estados Unidos. Vejo nelas chaves para compreender o que enfrentamos aqui também. A precarização do trabalho, a fragilidade dos serviços públicos e a dissolução dos vínculos comunitários abrem espaço para o vazio existencial e para a autodestruição. São duas faces de um mesmo processo: o capitalismo flexível mina tanto a identidade quanto o corpo, arranca o sentido da vida e o substitui pela insegurança permanente, pelo medo que submete e aprisiona. Trata-se de um fenômeno estrutural, que atravessa fronteiras, se inscreve no cotidiano de milhões e pode ser afirmado como um fenômeno interclasses.

É por isso que insistir nesse debate não é luxo, tampouco ornamento acadêmico. É questão de sobrevivência, núcleo da luta de classes. Uma sociedade que toma o crescimento econômico como sinônimo de progresso aceita, de antemão, a normalização da ansiedade, da doença e da morte evitável. O verdadeiro padrão de vida se mede naquilo que garante dignidade, pertencimento, consciência e horizonte para quem trabalha e resiste.

Esse é o chamado que nos interessa nas análises de Sennett e Deaton/Case: recolocar o preço humano no centro da política. Sem isso, a vida se desfaz em corrosão e desespero. Com isso, há chance de reconstruir um mundo em que o trabalho não seja uma sentença inapelável e em que o futuro não seja motivo de medo, desesperança e morte violenta.

“Corrosão do Caráter” de Richard Sennett (sobre o qual já falei antes), você consegue facilmente em sebos e livrarias. Já o outro título, “Deaths of Despair and the Future of Capitalism” de Angus Deaton e Ane Case, ainda não foi traduzido aqui.

A privatização da previdência; por José Menezes Gomes

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José Menezes Gomes – A Terra é Redonda – 19/08/2025

A privatização da previdência, longe de ser uma solução, revela-se um mecanismo perverso que submete o futuro dos trabalhadores à volatilidade do capital financeiro, aprofunda a exploração de classe e destrói a solidariedade intergeracional, escancarando a transformação do Estado em um mero gestor da barbárie social

1.

A privatização da seguridade social (saúde, previdência e assistência) ocorreu justamente no momento de aprofundamento da crise capitalista (crise mexicana 1995, crise asiática 1997, crise russa 1998, crise argentina 2001, crise da economia.com (2000), crise de 2008 e suas várias etapas. Essa crise resulta da queda da taxa de lucro nos setores industriais desde os anos 1980.

Tal fato, deslocou capital para áreas que até então estavam ocupadas pelo Estado, onde existiu o Estado de bem-estar social. A privatização de serviços públicos e as reformas do Estado visavam criar uma nova institucionalidade que permitisse o capital privado atuar de forma mais rentável vendendo novos produtos (saúde privada, educação privada, previdência privada, segurança privada, etc.).

A privatização da previdência teve sua primeira experiência no continente com o golpe militar no Chile em 1973, que permitiu aos Chicagos boys aplicarem suas políticas neoliberais. Entretanto, esse processo teve seu grande impulso nos anos 1980, justamente nos países que vivenciaram o Estado de bem-estar e tiveram apoio de setores ligados a esquerda com a ideia de que os trabalhadores ao aplicarem seus recursos num fundo de pensão significaria a constituição de um capitalismo em que teriam capital de longo prazo, onde poderiam ter participação nos conselhos de administração das empresas, onde esses teriam participação nos destinos das empresas, o que poderia representar uma nova forma de organizar a sociedade.

Todavia, o que a realidade mostrou é que este processo de privatização da previdência foi acompanhado pela restauração capitalista nos países do bloco soviético, desde 1991 que adotaram políticas neoliberais. Neste mesmo ano a crise capitalista deu sinal com a recessão americana. Depois desta crise se manifestar na periferia do capitalismo ela se descola para o epicentro capitalista.

Com isso a isso ela ocorre em 2000 e seguida de 2008, quado os fundos de pensão se tornam cada vez mais arriscados. Somente em 2008, os fundos de pensão, nos EUA, perderam U$ 4 trilhões nas suas aplicações nas bolsas. Vale lembrar que os fundos de pensão estadunidense foram grandemente beneficiados quando a taxa de juros do Banco Central dos EUA (FED) subiu de 5% para 20% em 1979.

2.

No Brasil, a realidade acabou mostrando que esses fundos acabaram deslocando grande parte dos seus recursos para os títulos da dívida pública em função da política de juros altos praticada pelo Banco Central. Desta forma os recursos dos fundos de pensão passaram a ser aplicados cada vez mais em títulos públicos, devido os ganhos vindos dos juros altos para rolagem da dívida pública. Com isso maior seriam os rendimentos destes títulos e maior possibilidade para o pagamento das aposentadorias e pensões no futuro.

Aqui se estabeleceu um dilema entre o futuro para previdência privada e o presente para os servidores públicos, já que quanto mais se elevava os juros maior era o endividamento do Estado nas várias esferas e maior a necessidade de se fazer o ajuste fiscal para que sobrasse dinheiro para o pagamento da dívida pública.

Para se fazer esse ajuste fiscal, para pagar essa dívida que crescia foram criados desde 1994, o Fundo de estabilização fiscal, a Lei de responsabilidade fiscal (LRF), a Desvinculação de Recursos da União (DRU), a Lei de teto de gastos e agora o arcabouço fiscal. Essas transformações ocorridas permitiram o que chamo de “Estado gestor da barbárie”, já que este dá continuidade a uma política tributária regressiva, faz renúncia fiscal de R$ 500 bilhões, privatiza quase todas as estatais usando dinheiro estatal subsidiado do BNDES, abre nova etapa de endividamento interno e externos dos estados e tenta impor uma reforma administrativa onde a precarização do trabalho, OSs e PPPs se aprofundam.

Em outras palavras, um Estado submetido ao sistema da dívida que pratica políticas de austeridade que aprofunda a barbárie social. Dentro disso resta a pergunta: Para que serve o Estado nacional?

A privatização da seguridade social, em especial da previdência, acabou submetendo os trabalhadores a outra dimensão de rentismo e ao mesmo tempo significou uma nova dimensão de colaboração de classes, já que esses fundos a medida que possuem volumes gigantescos de recursos aplicados em ações passam a compor os conselhos de administração das grandes empresas.

Desta forma essas empresas geridas pelos capitalistas clássicos e os representantes dos fundos continuam a ter como objetivo obter o máximo de mais valia. Ou seja, aplicam a precarização do trabalho para assegurar mais dividendos para que no futuro possam pagar as pensões e aposentadorias. Com isso os trabalhadores do Banco do Brasil, via Previ, passaram a controlar a Vale, via Valepar e com isso passaram indiretamente a ser cúmplices do aumento da exploração dos trabalhadores da Vale.

Por outro lado, os trabalhadores da Vale, via seu Fundo de Pensão, passaram a ter ações do Banco do Brasil e com isso ser cúmplices da precarização do trabalho dos trabalhadores do Banco do Brasil. Isso implicou no fim da solidariedade dentro da classe trabalhadora. Tudo isso só foi possível quando se destruiu o regime de repartição simples, onde uma geração financiava a outra, não tendo necessidade de se constituir um fundo para ser aplicado seja em ações ou em títulos públicos, acabando com a solidariedade entre as gerações.

3.

Tudo isso, porém, resultou da desorganização política da esquerda mundial que passou pela perda da identidade de classe e incorporação do ideário neoliberal e abandono das bandeiras históricas da classe trabalhadora.

O momento atual, em que se tenta mais uma nova contrarreforma da previdência temos uma crise da previdência privada, já que depende cada vez mais do mercado financeiro, que amplifica seus riscos quanto mais se aprofunda a crise capitalista. Enquanto isso, os planos de saúde vivem um momento em que grande parte dos médicos credenciados abandonam esses planos, que cobram cada vez mais caro e reduz ainda mais os serviços.

Os servidores públicos novos, nas três esferas, exceto militares, estão submetidos aos regimes próprios, que no caso dos estados e municípios, se submeteram ao regime de capitalização, que dependem cada vez mais do mercado e estão submetidos a suas incertezas.

A crise do Banco Máster revela como a busca por aplicação de maior retorno pelos regimes próprios pode levar a investimento de maior risco como aconteceu recentemente, acarretando perdas para vários regimes próprios.

Essas perdas nos regimes próprios podem ameaçar o pagamento futuro das aposentadorias. Já as perdas ocorridas nos grandes fundos de pensão como PREVI, PETROS e correios podem levar aos participantes a ter que aumentar a contribuição para recomposição dos valores perdidos. O caso mais grave ocorreu com o PETROS, dos Funcionários e aposentados da Petrobras que vão pagar por 18 anos uma conta de R$ 14 bilhões por perdas registradas.

O dilema dos regimes próprios dos estados fica mais claro pelos desvios e perdas reveladas pela CPI do RIOPREVIDENCIA. O regime próprio de Alagoas, o AL Previdência acabou criando um fundo garantidor a partir das 304 escolas públicas do Estado, significando a privatização dos prédios das escolas públicas, além do envolvimento da empresa estatal não dependente Alagoas ativos S/A em esquema de securitização.

4.

Como estou orientando uma tese de uma aluna que investiga esses dois regimes próprios estou acompanhando as atas de reuniões do conselho consultivo do Al Previdência. Nestas atas posso observar que as reuniões deste Conselho sempre começam com a leitura do boletim Focus, que é elaborado pelos rentistas e as decisões de investimento deste regime sempre depende deste economista contratado e do que indica esse boletim. Em outras palavras, a independência do Banco Central e a elevação da taxa de juros, alegando combater a inflação, mas que na verdade permite que numa taxa básica de 15% e inflação de 5% permitem que o comprador de títulos tenha um ganho real de aproximadamente 10%.

Com essa política monetária temos um crescente aumento dívida pública que em seguida vai exigir um novo ajuste fiscal e um novo ataque aos servidores públicos como a proposta de reforma administrativa e da previdência. Neste processo os servidores públicos estão colocados como responsáveis pelo aumento das despesas públicas, encobrindo o verdadeiro responsável pelo aumento desses gastos: a dívida pública, a política de juros altos, a renúncia fiscal crescente.

O grande desafio que temos no momento é o crescimento da bancada BBBB (Bancos, Bíblia, Boi e Bíblica) que usa a pauta moral para se eleger e que em seguida produzem a retirada dos direitos sociais e reafirma a austeridade fiscal e a política de juros altos. Curiosamente dentro desta bancada temos uma aliança invisível entre os mais ricos, que querem privatizar tudo e os mais pobres que fazem base das igrejas neopentecostais, impulsionados pela teologia da prosperidade e teologia do domínio.

Aqui os mais pobres e que necessitam de políticas sociais são os que dão votos naqueles que são os mais ricos e também os que mais recebem recursos do Estado via BNDES, renuncias fiscais, perdão de dívidas e apoio dos órgãos estatais aos seus empreendimentos privados.

Para darmos continuidade a luta contra a reforma administrativa e da previdência temos que construir a unidade entre os trabalhadores do setor privado e do setor público destacando que o principal determinante dos gastos públicos é a dívida pública. Nesta direção precisamos esclarecer junto à população que grande parte da dívida federal é dívida dos estados e que na sua maioria é dívida resultante da conversão das dívidas privadas das burguesias regionais junto aos bancos estaduais.

Sendo assim, temos que denunciar que entre os deputados e senadores que estão votando as contrarreformas temos uma grande parte que se beneficiou dos bancos estaduais no seu enriquecimento privado. Auditar as dívidas estaduais é parte fundamental para o diálogo com a maior parte da população que tanto precisa da ampliação dos direitos sociais.

José Menezes Gomes é professor de economia na Universidade Federal de Alagoas (UFAL).

Economia e democracia num mundo em crise, por Leda Paulani

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Leda Paulani – A Terra é Redonda – 23/08/2025

A perspectiva para a democracia é sombria, pois ela continua a gerar seu próprio oposto: um sistema econômico baseado na desigualdade estrutural mina seus alicerces e alimenta anseios por autoritarismo, como mostram as feridas do passado que ressurgem

1.

Quero, em primeiro lugar, agradecer o convite que me foi feito para estar, em tão honrosa companhia, [1] na mesa de encerramento deste evento.

Seus organizadores, que, com justa razão comemoram os cinco anos de existência do Made – este Centro de Pesquisas em Macroeconomia das Desigualdades que tão milagrosamente nasce e sobrevive numa escola tão conservadora como esta – me pedem que fale sobre as “perspectivas da economia e da democracia num mundo em crise”.

Mas, neste mundo em crise, acossado por ameaças e flagelos de natureza vária, do imponderável da inteligência artificial à anomia social, do imperialismo explícito ao inaceitável genocídio, da catástrofe climática ao perigo nuclear, não é possível falar em democracia sem falar simultaneamente em seu antípoda, o fascismo, ou neofascismo, e seu cortejo de crenças e práticas autoritárias que hoje nos assombra.

E que, no entanto, como mostra o filósofo alemão Theodor Adorno, não é uma deformação que possa ser depurada de um organismo saudável; é um traço latente e profundo da modernidade burguesa, e isso tem tudo a ver com economia, e com desigualdade.

Em seus escritos e intervenções dos anos 1960 do século passado, o conhecido filósofo ponderou que a democracia, enquanto continuasse a trair suas promessas, permaneceria gerando ressentimentos e despertando anseios por soluções extrassistêmicas. Em palestra de 1967, Theodor Adorno fala, em Viena, a convite de estudantes austríacos, preocupados que estavam então com o crescimento e fortalecimento, na Alemanha, no seio de uma democracia aparentemente consolidada, de um novo partido neonazista, e isso em pleno capitalismo pacificado dos “anos dourados”.

Ele afirma então que os movimentos fascistas são “como feridas, são cicatrizes de uma democracia que ainda não faz justiça a seu próprio conceito”. E pouco depois acrescenta que a relação desses movimentos com a economia é uma “relação estrutural”, pois o processo irrefreável de concentração de capital aumenta permanentemente a desigualdade e a pauperização, degradando camadas sociais antes mais ou menos bem postadas na hierarquia social capitalista e produzindo assim uma sociedade continuadamente melindrada e repressiva.

Theodor Adorno não podia prever o levante neoliberal iniciado nos anos 1980, tampouco quão gritantemente verdadeiras se tornariam suas palavras. Ao potencial demolidor dos anseios democráticos inerente à acumulação de capital enfatizado pelo pensador alemão, o levante das elites, com o totalitarismo da razão e dos princípios liberais que daí resultou, agregou-lhe elemento ainda mais pernicioso, pois normalizou a iniquidade social, destronando os valores que sustentam a luta pela democracia.

Depois de quase meio século de políticas que só fizeram aumentar a desigualdade mundo afora, com a democracia reiteradamente traindo suas promessas, o resultado é o que vemos: as cicatrizes tornaram-se feridas abertas, com a ascensão indiscriminada, no centro e nas periferias do sistema, de grupos, movimentos e governos de perfil e vocação fascistas.

E é assim que assistimos hoje, abatidos e inertes, ao retorno de doutrinas e teses que pensávamos pertencerem ao passado, como o supremacismo branco, a crítica ao fato de as mulheres votarem, a defesa da homofobia e os ataques reiterados à cultura, para não falar do negacionismo climático e do negacionismo científico em geral.

2.

Ora, se o que coloca em xeque a democracia é a reiterada produção sistêmica de desigualdades, é preciso, em primeiro lugar, averiguar qual é o estatuto que a igualdade ocupa no capitalismo. Para começar, deveríamos indagar se a preocupação com a desigualdade faz sentido em outras formações históricas.

As perguntas sobre ela (sua dimensão, suas causas, seus desdobramentos) fariam sentido no mundo feudal, desigual por definição, ou na antiguidade clássica, movida pelo trabalho escravo, ou no comunismo primitivo, onde giraria em falso qualquer colocação do tipo igualdade x desigualdade?

É evidente que as citadas questões só fazem sentido na e para a sociedade moderna, porque é nela que a igualdade está pressuposta. Basta lembrarmos aqui, para não ter que ir muito longe, do grito de guerra da Revolução Francesa. Mas, quando dizemos que no capitalismo a igualdade está pressuposta, este termo deve ser entendido de modo rigoroso. Dialeticamente, o que está pressuposto é exatamente aquilo “que não está posto” e esse “não estar posto” pode se dar em dois sentidos diferentes, ou por duas razões diferentes: pode se tratar de algo ainda não posto, ou de algo que está posto como negado.

No caso da igualdade, poderíamos dizer que ela está pressuposta nos dois sentidos. No sentido de algo que é posto como negado, a igualdade está pressuposta porque, ainda que fenomenicamente, no âmbito do mercado, ela exista (uma das leis da circulação simples diz que valor se troca por valor igual, ou não poderíamos colocar os sinais de igual nas equações de troca: 1 litro de leite = 2 pãezinhos, ou 1 litro de leite = R$ 5,00), ainda que a igualdade exista, portanto, fenomenicamente, Marx nos mostra que ela se interverte em desigualdade, ou seja, se nega, quando a força de trabalho assume, ela própria, a forma de mercadoria e entra no lado esquerdo da equação.

Essa igualdade presente no plano da circulação e, pois, no plano dos valores/preços das mercadorias implica uma igualdade também presente, e da mesma maneira negada, no plano dos agentes da troca: temos, em ambos os lados de uma transação, iguais proprietários de mercadorias, que trocam obedecendo tão somente seu livre arbítrio, mas, para alguns deles, a força de trabalho é sua única mercadoria, o que vai introduzir de partida, nessa relação de iguais, uma desigualdade imanente.

Já no sentido de algo ainda não posto, a igualdade está pressuposta porque ela pode ser tomada como um vir-a-ser, como algo cuja posição se deve buscar, e/ou como algo que a Modernidade prometeu à humanidade, ainda não entregou, mas poderá – ou nós devemos lutar para – ser entregue. Claro está que, para Karl Marx, a pressuposição da igualdade por conta de sua posição como algo negado é o que prevalece, sendo que a luta que deve ser feita para acabar com o caráter contraditório da igualdade dentro dos limites desse sistema pode ser uma luta inglória.

A percepção do caráter pressuposto da igualdade na sociedade capitalista, ou seja, de seu caráter contraditório de existir não existindo, ou de se colocar como um eterno vir-a-ser, deriva da compreensão da ordem do capital como algo sistêmico, e que, portanto, só pode ser corretamente entendido se o enxergarmos em sua totalidade.

Pensar a questão da desigualdade como mero “problema”, e que, enquanto tal, pode ser resolvido com a aplicação dos remédios corretos, é entendê-la como um acidente, como algo que pode ou não ocorrer, e não como algo que resulta necessariamente da essência desigual do sistema.

3.

E voltamos com isso às preleções de Theodor Adorno e à sua afirmação de que a democracia ainda não fez jus a seu próprio conceito. É verdade que ele denunciou tal violação há quase 60 anos, mas, de lá para cá, o mundo não andou na direção de contradizê-la, antes o inverso. Isto posto, dado este quadro tão pouco alvissareiro, chegamos às perspectivas que se podem traçar, neste momento, para a economia e para a democracia.

A crise enfrentada hoje pelo sistema capitalista, que se tornou pela primeira vez de fato mundial, é resultado da tendência à sobreacumulação que lhe é inerente, a qual despontou com força nos anos 70 do século passado e permanece ainda hoje irresolvida. Foram a financeirização do processo de acumulação, a ascensão da China e o próprio levante neoliberal que possibilitaram sua sobrevida até aqui.

A primeira porque, graças à profusão na emissão de capital fictício, vai permitindo deslocar no tempo, e, nesse sentido, ajudando a “resolver”, a questão das alternativas à valorização do capital (por mais, é claro, que faça isso alavancando o potencial de contradições do sistema).

A segunda porque o gigante asiático representava, até o terceiro quartel do século passado, um continente inteiro à margem do moinho capitalista, configurando desde então uma colossal fonte de demanda efetiva adicional a serviço da acumulação. Por fim, o advento do neoliberalismo, com sua homília cotidiana em torno das benesses das privatizações e dos cortes de gastos públicos, age no mesmo sentido, produzindo uma fonte quase permanente de novos ativos capazes de sustentar o processo.

Mas tudo isso está hoje em xeque. O processo de financeirização levou um golpe severo com a grande crise internacional de 2008. É verdade que, depois de três ou quatro anos de moderação, o processo de emissão de capital fictício retomou com força. De acordo com os últimos dados disponíveis, a relação estoque mundial de ativos financeiros/PIB mundial passou de 2,9 em 2008 para 5,4 em 2021.

De toda forma, como tal processo, por conta da atividade especulativa que a ele se vincula, está inerentemente associado a estouro de bolhas e crises abruptas, ele parece estar mais para problema do que para solução. Por exemplo, algumas cassandras, encontradas, pasmem, no Deutsche Bank, perguntaram recentemente (isso saiu no jornal Financial Times em julho último) se o crescente aumento de empréstimos para financiar a compra de ações não seria um sinal de “intensa euforia”, não perceptível desde 1999 e 2007. [2]

A China, de seu lado, perdeu um pouco do fôlego inicial, ainda que com um desempenho robusto e de modo nenhum próximo a qualquer performance em curso no assim chamado mundo desenvolvido. O gigante asiático, contudo, permanece um enigma: com seu capitalismo potente e exuberante, que empurra a acumulação e serve aos capitais de todo o globo, coordenado e dirigido, porém, pelo partido comunista, fascina e ao mesmo tempo apavora as cabeças pensantes do mundo ocidental.

Por fim, o neoliberalismo. Há um debate intenso sobre o que aconteceu e está acontecendo com o dito-cujo. Morreu, se transformou, está em transição? Essas perguntas, diga-se, fizeram-se à larga quando da crise de 2008, sobretudo por conta das soluções que então apareceram: forte intervenção do Estado, estatização de instituições financeiras, quantitative easing. [3] O neoliberalismo ficou keynesiano?

Mas a verdade é que, depois da crise, mesmo com todos os desdobramentos, a pregação em torno dos princípios e das prescrições liberais redobrou e continuou a espalhar desigualdade – com as exceções de praxe, claro, sob os auspícios de políticas sociais de forte impacto, como aconteceu em alguns períodos no Brasil. Só que, hoje, o neoliberalismo é muito mais reacionário, pois deixou de lado as veleidades progressistas que usou como ornamento durante um bom tempo.

Seja como for, mesmo se os três expedientes estivessem em sua melhor forma, ainda haveria que enfrentar aquele que é talvez o principal problema para um sistema que requer produção sem limites: a questão ambiental. O último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), da ONU, o qual se tornou referência mundial sobre o tema, assevera que o aquecimento global está se acelerando numa velocidade nunca antes vista, ao ponto de podermos atingir, já em 2030, a elevação da temperatura média do globo em 2oC relativamente ao nível pré-industrial, marca essa, não custa lembrar, que o Acordo de Paris, firmado em 2015, tinha por objetivo justamente impedir de atingir em… 2100!

4.

Isto posto, não dá para dizer que podem ser boas as perspectivas da economia. A economia brasileira, por sinal, até que não anda se saindo tão mal, com taxa de juros de 15% e tudo. Mas o contexto geral é muito pouco promissor.

E a democracia? Bem, quanto à democracia, não fosse por todo o obstáculo que representa a própria disseminação e aprofundamento da desigualdade, temos agora, no comando do ainda maior PIB do mundo, uma mistura tóxica de reacionarismo, xenofobia, supremacismo, misoginia, homofobia, ódio à cultura, censura, prepotência e mandonismo imperial, de modo que hoje, sobre os Estados Unidos da América, pode-se dizer qualquer coisa, menos que continue a ser uma democracia.

Mas este não é, como pode parecer, um elemento que simplesmente se adiciona a uma situação já muito complicada. Ele é o resultado mesmo dessa falência sistêmica geral, que arrasta consigo a hegemonia americana.

O sociólogo alemão Wolfgang Streeck afirma que, a despeito da sempre presente exaltação dos valores democráticos pela sociedade de hoje, o mundo moderno só experimentou uma única vez aquilo que se poderia chamar de “capitalismo democrático”, ou seja, um arranjo capaz de conciliar o feitio naturalmente antidemocrático da acumulação capitalista com os anseios de igualdade e respeito pelo ser humano.

O santo responsável pelo milagre teria sido justamente o cenário auspicioso, marcado pelo crescimento econômico forte e persistente, que caracterizou os trinta anos gloriosos iniciados no pós-Segunda Guerra e que precederam a etapa atual, de gestão neoliberal do sistema.

Repetir tal façanha parece, todavia, cada vez mais improvável, e não só porque a roda da história não gira para trás. É sobretudo porque temos um único planeta, finito e limitado, incapaz de acomodar, em suas estreitas balizas, um sistema econômico de vocação infinita, vocação, porém que não age em prol da emancipação humana, mas tão somente em benefício da acumulação infindável de riqueza abstrata.

Qualquer mudança efetiva no sentido de tornar o planeta e o mundo ambiental e socialmente mais habitáveis depende cada vez mais e mais da luta política e do auxílio que a ciência pode prover.

Daí a imensa importância de monitorar as mazelas cotidianamente produzidas, zelar pelas feridas que vão se abrindo. Uma macroeconomia da desigualdade, como propõe o Made, é uma macroeconomia que enobrece a ciência econômica, que a torna digna do nome de ciência, e, mais importante ainda, que joga no time da democracia, tão precisado, como vimos, de craques verdadeiros.

Parece ainda muito longe o dia em que a democracia venha a fazer jus a seu conceito, como reclama Theodor Adorno, mas o Made faz a sua parte. Parabéns, Made, pelos cinco anos! Que muitos mais venham pela frente. Muito obrigada.

Leda Paulani é professora titular sênior da FEA-USP. Autora, entre outros livros, de Modernidade e discurso econômico (Boitempo)

Notas

[1] Fala em evento na FEA-USP, em 22 de agosto, para celebrar cinco anos do Made (Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades). Participavam também da mesa Corina Enrique Rodriguez (Universidade de Buenos Aires), Ramaa Vasudevan (Colorado State University) e Marcos Nobre (IFCH/Unicamp e Cebrap).

[2] Me beneficio aqui de informação encontrada em artigo de Luiz Gonzaga Belluzo e Manfred Back, publicado no site A Terra é Redonda, em 15 de agosto de 2025.

[3]. Política de monetização de ativos financeiros visando injetar liquidez na economia, adotada nos EUA pelo Federal Reserve para enfrentar a crise de 2008.

 

 

Dívida dos EUA: Como Trump aprofunda o caos, por José Álvaro de Lima Cardoso

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Eixo do sistema financeiro global, títulos do Tesouro norte-americano oscilam como nunca, com política errática do presidente. China retira parte de seu dinheiro. Trajetória dos juros é incerta. Descontrole pode afetar inclusive o gigantesco orçamento de guerra

José Álvaro de Lima Cardoso – OUTRAS PALAVRAS – 28/08//2025

A dívida pública dos Estados Unidos pode ser considerada o eixo do sistema financeiro global contemporâneo. Os títulos do Tesouro dos EUA (US Treasuries) funcionam simultaneamente como o principal ativo global, a referência de preços para praticamente tudo que tem fluxo de caixa. Além de ser, ainda, a reserva internacional preferida pelos bancos centrais. Esse fenômeno, coloca a dívida norte americana no centro da engrenagem que move liquidez, preços e risco nas finanças, no mundo.

Esses títulos são considerados o ativo livre de risco em dólares por excelência: tem alta liquidez, padrão jurídico claro e baixíssimo risco de crédito soberano. Nas crises, a maioria dos investidores correm para esses títulos, que exercem o papel de “porto seguro” para aversão ao risco. Em mercados de financiamento de curtíssimo prazo, os títulos do tesouro americano são o ativo fornecido em garantia, para assegurar obrigações financeiras, de maior aceitação no mundo. Os títulos do Tesouro norte americano servem também para a ancoragem, para referência, de taxas em dólares. A taxa de juros dos títulos do Tesouro dos EUA com prazo de 10 anos é a principal referência que o mundo usa para calcular quanto valem hoje os fluxos de caixa futuros em dólares. Quando essa taxa sobe ou desce, muda o “desconto” aplicado aos fluxos de caixa — e, por consequência, altera o preço de quase tudo.

Uma parcela enorme de fluxos de caixa globais é avaliada direta ou indiretamente em dólares. O que fornece aos EUA, um grande poder, inclusive de retaliação. A Venezuela, por exemplo, sofre mais de mil sanções contra sua economia, o que leva a um profundo impacto no seu desenvolvimento nacional. As sanções de caráter financeiro estão entre as que mais prejudicam o país. Por exemplo, as proibições impostas ao governo da Venezuela e à PDVSA (Petróleos de Venezuela, S.A., empresa estatal de petróleo e gás), de emitir novos títulos de dívida, realizar certas reestruturações, distribuir dividendos etc. Com essas restrições o país fica sem condições de rolar a dívida soberana e sem acesso a mercados de crédito, com perda total da capacidade de se financiar externamente. O setor privado também é impactado, porque os chamados riscos soberanos (probabilidade de um país não cumprir seus compromissos financeiros), encarecem o crédito para as empresas privadas locais, que também perdem o acesso a linhas comerciais.

Os títulos do Tesouro Norte Americano também são os preferidos pelos bancos centrais para acumular reservas, em função de liquidez e facilidade de custódia e liquidação. Ou seja, no processo de compra e venda, esses títulos são de fácil manuseio, pois a demanda oficial pelo ativo estabiliza o mercado. Ademais, nenhum outro mercado no mundo tem a escala e a infraestrutura oferecida por esses papéis. O mercado do Euro é grande, mas com risco soberano elevado, além do “Bund”, – títulos públicos alemães, considerados de baixíssimo risco dentro da zona do euro – não ter a mesma escala dos papeis americanos. Os países da união monetária não emitem a moeda que usam. Um governo da zona do euro não controla isoladamente a sua política monetária nem “imprime” euros. Isso torna o risco de insolvência e liquidez uma preocupação real em momentos de crise financeira. Especialmente neste momento de grande crise econômica da Europa.

Apesar da economia japonesa ser a quarta do mundo, o Iene/JGBs (títulos do governo do Japão), não tem a profundidade e a estabilidade do equivalente americano. O ouro, por sua vez, funciona como reserva de valor, porém tem rendimento baixo ou nulo. Além disso, não tem elasticidade de oferta, e possui logística/custódia mais onerosa e complexa. O RMB (Renminbi, nome oficial da moeda da China), por outro lado tem menor convertibilidade e infraestrutura jurídica/financeira mais limitada, sem alcance global, por enquanto. Em suma, a combinação de escala + liquidez + convertibilidade + infraestrutura institucional ainda mantém os títulos do Tesouro dos EUA no topo da preferência.

A dívida – tida como impagável – e o déficit orçamentário dos EUA leva o Tesouro a emitir títulos, que são absorvidos pelo mundo todo. Esse cassino financia a dívida americana e garante um ativo ainda considerado seguro. Obviamente a instabilidade financeira mundial, e o crescimento avassalador da dívida americana, torna esse jogo arriscado. Por essa razão (e outras, de caráter geopolítico), a China vem diminuindo gradativamente sua exposição a títulos do Tesouro dos EUA: a posição da China nesses papéis, recuou de um máximo de US$ 1 trilhão em 2013–2014, para cerca de US$ 756,3 bilhões em agosto de 2025. O objetivo dessa política é diversificação das reservas e a redução da dependência do dólar, com a realocação parcial para ouro, outras moedas, e, em menor grau, ativos não americanos. O objetivo da diversificação é reduzir a vulnerabilidade à sanções e não depender de infraestrutura financeira estadunidense.

A China, ao descartar títulos do Tesouro norte-americano procura controlar também o risco geopolítico, existente na dependência exagerada a esse tipo de reservas. Especialmente, se for de um país que vem elevando o tom das hostilidades há anos. A China também presta atenção ao que ocorre com outros países catalogados pelo imperialismo como inimigos. A partir do início da guerra na Ucrânia, os países ocidentais congelaram uma grande quantidade de ativos russos, incluindo reservas do Banco Central e títulos soberanos sob custódia ocidental (calculados em US$ 300 bilhões). Ademais, imobilizaram ativos de bancos, empresas estatais e indivíduos, russos, passando inclusive a usar rendimentos associados a esses ativos. A diversificação reduz a fragilidade da economia chinesa a medidas inesperadas e agressivas, no campo comercial e tecnológico, que já vêm sendo colocadas em marcha, pelo menos desde o governo de Barack Obama. A China também tem usado a conversão de parte das reservas em liquidez, visando melhorar ainda mais o desempenho da sua economia.

A redução chinesa em títulos do Tesouro dos EUA, que é parte de uma estratégia de diversificação e gestão de riscos, está sendo operada gradualmente, o que torna o processo administrável, na medida em que outros compradores adquirem os papéis disponibilizados. O risco de uma venda súbita e coincidente com outros choques (como um déficit do governo dos EUA mais alto que o previsto), não interessa ao próprio governo chinês, que é grande detentor desses papéis.

A base de detentores dos papeis da dívida dos EUA é ampla: investidores domésticos (bancos, gestoras, fundos de pensão, seguradoras), o Federal Reserve e investidores estrangeiros.

O estoque atual da dívida, de US$ 36 trilhões e os cerca de US$ 3,3 bilhões/dia em juros, implica, como no Brasil, na redução da capacidade do Estado sustentar outras despesas, como infraestrutura, ciência e saúde. A financeirização do orçamento, afeta diretamente, inclusive, a estratégia imperialista dos EUA, que é muito assentada em sua capacidade bélica. Em 2024, os juros se aproximaram muito dos gastos com defesa. Projeções oficiais apontam que, a partir de 2025, os juros tendem a superar de forma mais evidente os gastos com defesa.

A aproximação ou ultrapassagem dos gastos com a dívida, em relação aos gastos com a guerra, mostra a magnitude do fenômeno da financeirização nas economias de todo o mundo. Os EUA são o país que promovem e patrocinam a guerra no mundo todo, seja por objetivos econômicos imediatos, seja em função de necessidades geopolíticas e militares. Mesmo assim, nos últimos anos, a aceleração dos juros e os gastos com a dívida cresceram mais rapidamente do que os gastos militares.

O efeito da dívida pública sobre o governo norte-americano tem similaridades com o que acontece nos países atrasados, apesar do poderio político, econômico e militar dos EUA. Gastos maiores com juros reduzem a margem para o exercício de despesas discricionárias, incluindo gastos com defesa e investimentos em geral, sem elevar impostos ou aumentar o déficit.

O governo brasileiro sofre duras críticas quando apresenta um déficit orçamentário (primário, ou seja, sem os gastos com juros) de 0,36% do PIB, como em 2024. No entanto, o déficit primário dos EUA no ano fiscal de 2024 foi de aproximadamente US$ 700 bilhões, 2,4% do PIB. Ou seja, quase 7 vezes superior ao do Brasil (imaginem o Brasil com um déficit primário naquele nível). Nos EUA, como acontece no Brasil, entra governo, sai governo, e, independentemente da posição política, ninguém resolve o problema da dívida pública. Com a diferença que, no caso dos EUA, como se trata do país mais imperialista do mundo e dono da máquina de imprimir dólares, ninguém cobra superávits primários nas contas públicas.

O deus mercado profanou a CLT, por Jorge Luiz Souto Maior

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Jorge Luiz Souto Maior – A Terra é Redonda – 30/08/2025

A retórica da flexibilização é a profanação contemporânea dos direitos, um ritual que sacraliza o lucro ao custo de vidas. A resistência necessária não é nostálgica, mas sim a recusa firme de que a dignidade humana seja imolada no altar do mercado

Um grupo de autodenominados “líderes empresariais” está realizando um encontro que, segundo expõe a propaganda do evento, se destina a promover, com as falas de especialistas e empresários, um “debate sobre a conjuntura atual e o cenário econômico global”.

Mas o propósito não é propriamente avaliar os limites, potencialidade e debilidades de uma economia baseada na produção de mercadorias sem-fim, em um universo de matéria-prima finita e para um mercado de consumo cada vez mais restrito.

Os “especialistas” e empresários, que não estão ali reunidos por acaso, já têm a fala pronta (mais antiga que a roda) que gira em torno da redução dos custos do trabalho como a fórmula necessária e infalível para aumentar a produção e o lucro das empresas.

Este é um discurso que se apresenta como novidade, embora seja “novo” e “moderno” desde o final do século XIX, quando iniciava, no Brasil, o período de transição do trabalho escravizado para o trabalho livre, ou seja, muito antes do advento da tal CLT.

Os temas dos painéis do evento não deixam a menor dúvida a respeito do alvo projetado das falas: “Os desafios contemporâneos da tercerização” (Painel 1); “As eventuais mudanças na legislação e os impactos na perspectiva do trabalho” (Painel 2).

Trata-se, pois, de um evento em que se realiza a reunião de pessoas (as mesmas de longa data – quase tão antigas quanto à própria CLT) ideologicamente comprometidas com os interesses imediatos do capital, sobretudo, o capital estrangeiro, para promoverem mais um ataque à já tão baleada legislação trabalhista no Brasil e tudo isto para, explicitamente, ofertar mão de obra barata para a exploração do grande capital internacional.

E, de fato, é bem mais que isto: trata-se, em verdade, da reprodução das lógicas do escravismo colonial, renovando a oferta dos corpos de pessoas racializadas, subalternizadas e desconsideradas quanto à sua condição humana.

São estes “especialistas”, não por mera coincidência, homens e brancos, autênticos “líderes” do comércio de gente, da venda despudorada de carne negra barata para o consumo imediato do processo produtivo, em nome do “desenvolvimento econômico do país”, como, aliás, já fizeram os seus antepassados.

Dizem que vão formular uma “análise aprofundada das transformações no mundo do trabalho e nos modelos regulatórios”, mas o que, de fato, manifestam é a velha, antiquada e surrada retórica de que a legislação trabalhista no Brasil é retrógrada e rígida, mesmo que a CLT de 1943, em concreto, não mais exista há muitas décadas, dadas a inúmeras alterações que lhe foram introduzidas e mesmo que a CLT, durante longo período, tenha servido à exclusão de pessoas negras e de mulheres do mercado de trabalho, além de reprimir a luta coletiva de trabalhadores(as) por melhores condições de trabalho, tendo sido, por isso mesmo, apoiada expressamente pela nova classe industrial em ascensão, a partir dos anos 1930.

É importante destacar, inclusive, que desde a década de 1960, vários instrumentos de “flexibilização”, precarização e retração de direitos foram integrados à CLT, tais como: a redução salarial imposta pela Justiça do Trabalho (1965); a representação comercial (1965); o FGTS (1967); o trabalho temporário (1974); a intermediação do trabalho do vigilante (1982); o esvaziamento hermenêutico dos arts. 7º, 8º e 9º da Constituição Federal de 1988 (de 1988 até hoje, aniquilando a garantia contra a dispensa arbitrária, naturalizando as horas extras, monetizando a saúde, discriminando as trabalhadoras domésticas, aniquilando o direito de greve, aprisionando a liberdade sindical); a terceirização da atividade-meio (1993): a cooperativa de trabalho (1994); o banco de horas (1998); o contrato provisório (1998); a suspensão temporária do contrato de trabalho – “lay off” (2001); a recuperação judicial (2003); a jornada 12×36; a terceirização da atividade-fim (2017); o contrato individual superando o negociado (2017); o negociado sobre o legislado (2017); o trabalho intermitente (2017); o obstáculo ao acesso à justiça (2017) etc.

E mesmo com tudo isso, estas pessoas, cinicamente, continuam dizendo que a CLT de 1943, com sua rigidez (que, de fato, nem nunca existiu), continua regulando as relações de trabalho no Brasil, gerando alto custo de produção (embora, de fato, o custo de produção no Brasil seja um dos mais baixos do mundo), desestimulando investimentos e impedindo o desenvolvimento econômico (ainda que o Brasil seja o espaço privilegiado da especulação estrangeira e onde as empresas multinacionais experimentam seus maiores lucros e os trabalhadores(as), os mais baixos salários do mundo e um número de horas trabalhadas dentre os mais elevados nos diversos países.

Pois o negócio é se reunir, fazer festa, formular elogios recíprocos, rir da desgraça alheia, tripudiar sobre a vida da classe trabalhadora e zombar de todo mundo dizendo que os(as) trabalhadores(as) no Brasil são privilegiados(as) e que os empresários brasileiros são vítimas desemparadas.

Mas, concretamente, não são tão desamparados assim, né?! Afinal, têm Ministros do STF e do TST que os defendem abertamente!!! E, de fato, as instituições estatais estão há décadas realizando esta defesa do capital e promovendo ataques aos(às) trabalhadores(as).

Estas “iluminadas” mentes só conseguem pensar uma forma de estimular o desenvolvimento econômico, qual seja, retirando direitos dos que chamam de privilegiados, para permitir a quem não tem direito algum se igualar aos que até então eram os tais privilegiados.

Uma estranha forma de igualdade que, no fundo, se deparando com as sucessivas crises do capital, visa, de forma reiterada, progressiva e sempre renovada, rebaixar a rede de proteção social, para manter a riqueza dos poucos que a detém ou mesmo lhes permitir aumentá-la ainda mais.

Cabe não olvidar que esta “fórmula” para o desenvolvimento do país tem sido experimentada desde a década de 1960 (com maior vigor) e só produziu os efeitos (os verdadeiramente almejados) da acumulação da riqueza (em mãos estrangeiras), da dependência política, econômica e tecnológica do país (que sequer tem soberania a defender), da precarização das relações de trabalho, do sofrimento físico e psíquico nas relações de trabalho e da disseminação da miséria e da fome.

Neste cenário, o mais novo “especialista” em Direito do Trabalho, Luís Roberto Barroso, vem sustentando por aí que a “reforma” trabalhista aumentou a empregabilidade, não se dignando, por certo, de explicitar que são, em verdade, subempregos, mal remunerados, carregados de precarização e efêmeros, isto é, de pouca duração, o que retroalimenta o rebaixamento, tanto que, baseados na própria retração de direitos, os representantes do capital e até mesmo as empresas diretamente têm tentado disseminar uma aversão ao trabalho com carteira assinada, estimulando a “pejotização”, uma nova faceta do “empreendedorismo”, que representaria uma situação mais vantajosa para os(as) trabalhadores(as).

Não tendo mais como rebaixar direitos, chegou a hora de eliminar de vez o Direito do Trabalho e, por consequência, a Justiça do Trabalho, mas com o argumento – apoiado na precarização – de que isto é bom para a classe trabalhadora. Desconsiderando-se, por óbvio, a existência da ordem constitucional, na qual os direitos trabalhistas e sociais se situam como Direitos Fundamentais e o fato de que este ordenamento garante uma condição mínima existencial aos(às) trabalhadores(as) e o direito de lutar, coletivamente, por melhores condições de vida e de trabalho.

Aliás, vale o registro de que a bola da vez, na linha do rebaixamento, tende a ser os benefícios previdenciários, pois, sem as fórmulas jurídicas de imposição da solidariedade social, as bases de sustentação da Seguridade Social vão à bancarrota.

E, agora, o momento mais angustiante deste texto (se já não o fosse bastante) que é o de reproduzir as violências explicitadas pelo Ministro Gilmar Mendes, com relação aos direitos dos(as) trabalhadores(as) e a própria dignidade dos seres ainda humanos que habitam neste território.

Pois não é que o Ministro, afoito para oferecer um algo mais ao setor econômico, subiu vários pontos na escala das ofensas e irracionalidades e chamou a CLT de “vaca sagrada”.

É difícil encontrar palavras que possam integrar um texto jurídico, para reagir a isto, pois o Ministro, a um só tempo, agrediu a dignidade de milhões de brasileiros e brasileiras que ao longo da nossa história lutaram para conquistar direitos e o que, posteriormente, tem se dedicado a fazer valer esses direitos.

O Ministro expressa, com todas as letras, que quem defende direitos trabalhistas só o faz porque tem adoração a um símbolo religioso, a tal CLT, sem contar que, ao mesmo tempo, com esta “analogia”, ofendeu igualmente os Indus e suas crenças.

Mas, curiosamente, ele se posta como um deus, que tudo pode! Na verdade, como o filho de deus, (do deus mercado), a quem deve obediência e devoção!

Buscando agradar ao seu deus, teceu loas à “reforma” trabalhista e profanou a CLT, pouco importando se, de fato, a Lei 13.467/17 foi apenas mais uma (embora de forma muito mais profunda) dentre tantas outras leis que promoveram inúmeras alterações na CLT. Desse modo, todos os artigos da “reforma” estão inscritos na tal “vaca sagrada” que, portanto, já não seria tão sagrada assim.

Mas uma coerência mínima pouco importa, o que gera aplausos naquele ambiente é defender retração de direitos e, mais ainda, atacar a Justiça do Trabalho, afirmando que esta só teria, em algumas decisões, resistido à aplicação de preceitos da “reforma” porque se mantém apegada aos dogmas da CLT – sem dizer quais, por certo.

Ocorre que fazer este enfrentamento não lhe pareceu suficiente. Considerou necessário entregar mais e para assim agir voltou ao plano do misticismo.

Com uma autoridade digna de uma divindade, criou uma versão própria da Constituição Federal e a sacralizou, de modo que resta a todos apenas o ato de seguir as suas palavras, ou, mais propriamente, os seus próprios dogmas.

Expressou, por conseguinte, que a Constituição “não determina padrão específico de produção”, querendo dizer com isto que a produção, no sentido de exploração do trabalho, pode se desenvolver sem quaisquer limitações jurídicas, não havendo, pois “justificativa para preservar as amarras de um modelo hierarquizado e fordista”, que estaria “na contramão de um movimento mundial de descentralização”.

Então, se o mundo (leia-se, empresas multinacionais) determina um padrão de exploração do trabalho, o Brasil deve se curvar ao que for demandado pelo poder econômico dessas empresas, mesmo que a Constituição Federal vá em outro sentido. E ainda há quem aposte todas as suas fichas na defesa da soberania nacional.

Mas Gilmar Mendes não opera no plano da realidade normativa. Assim, na “CMGM”, isto é, na “Carta Magna do Gilmar Mendes”, estas restrições político-jurídicas não existem, vez que foram simplesmente abolidos todos os artigos (da Constituição Federal de 1988) em que os direitos trabalhistas, incluindo a relação de emprego, a organização sindical e a greve, aparecem como Direitos Fundamentais e em que se explicitou o pacto social firmado em torno da dignidade humana; dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; da prevalência dos Direitos Humanos; da construção de uma sociedade livre, justa e solidária; da erradicação da pobreza e da marginalização; da redução das desigualdades sociais; da promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; da função social da propriedade; da ordem social baseada no primado do trabalho, tendo como objetivo o bem-estar e a justiça sociais; da ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.

Para o Ministro o que vale é o credo do mercado livre de todas as amarras, diga-se, sem a obrigação de cumprir direitos trabalhistas, para o delírio de alguns supostos “empreendedores” nacionais. A que nível de “debate” chegamos!!!

Mas quem sabe daqui a alguns dias as associações e movimentos de defesa dos trabalhadores e trabalhadoras e da Justiça do Trabalho façam uma “nota” respeitosa contra isso, até porque, como se diz, não é hora de se contrapor ao Supremo.

E desse modo, sem uma efetiva e contunde reação, e até mesmo por sucessivas assimilações do discurso empresarial no próprio seio da Justiça do Trabalho (videm as estratégias de gestão pautadas pela produtividade e, mais recentemente, a adoção do mecanismo – inconstitucional – dos precedentes, que reproduzem, ambos, a tática de assédio sobre magistratura trabalhista, buscando criar a figura do juiz-gestor ou, mais propriamente, o não-juiz), que favorecem à naturalização e “legitimação” jurisprudencial da precarização, é que as violências contra os direitos fundamentais da classe trabalhadora (atingindo, sobretudo, a corpos determinados) proliferaram impunemente e continuarão crescendo, de uma forma cada vez mais perversa.

A esperança que resta é que a classe trabalhadora como um todo perceba este processo, se reorganize e ofereça resistência aqui e agora, não se deixando levar pelos discursos falseados da “liberdade” individual, do “empreendedorismo” e da oportunidade política que imporiam a necessidade da formação de alianças com as forças que lhe oprimem, que lhe exploram, que zombam das suas necessidades e que, no fundo, desconsideram a sua condição humana.

Jorge Luiz Souto Maior é professor de direito trabalhista na Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros livros, de Dano moral nas relações de emprego (Estúdio editores).

Belluzzo: Faria Lima, PCC e a sociedade do dinheiro

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No rescaldo da operação no coração financista do país, reflexões sobre o “demônio monetário”. Ele dilui a fronteira entre o lícito e o ilícito. O Estado é submetido. E o impulso doentio por acumulação vira uma “virtude” dos homens de bem

Luiz Gonzaga Belluzzo – Carta Capital – 29/08/2025

A Operação Carbono Oculto sugere considerações a respeito das façanhas do Demônio Monetário. Entre tais façanhas há que observar o apagamento dos limites que separam o lícito e o ilícito. No Brasil do PCC, a dissolução dessas fronteiras permitiu a adesão de instituições financeiras às práticas do crime organizado

Fausto vendeu-se ao demônio. Para adquirir poder e dinheiro entre os mortais, hipotecou a alma pela eternidade. Tamanha era a força da sua cupidez que a fome da riqueza monetária fez a eternidade durar apenas um segundo.

Vai pela casa da tonelada a quantidade de tinta gasta para deplorar o poder do dinheiro, a sua força para corromper as consciências, desfigurar as almas e os sentimentos. Contra esse poder e essa força, lançaram-se poetas, filósofos, teólogos e até os moralistas de folhetim.

George Simmel, em seu livro A Filosofia do Dinheiro, mostra que o sujeito atacado pelo amor “doentio” ao dinheiro não é uma aberração moral, mas o representante autêntico do indivíduo criado pela sociedade argentária. As qualidades dos bens e o gozo de suas utilidades tornam-se absolutamente indiferentes para ele. Suas preferências, sentimentos, desejos, são totalmente absorvidos pelo impulso de acumular riqueza monetária.

É curioso observar como a sociedade argentária, ao transformar violentamente os indivíduos e suas subjetividades em simples coágulos monetários, pretenda ao mesmo tempo colocar barreiras, ensinando-lhes as virtudes da moderação, da frugalidade, da solidariedade. Então, como podemos falar de sentimentos como honradez, dignidade, autorrespeito numa sociedade em que todos os critérios de sucesso ou insucesso são determinados pela quantidade de riqueza monetária que cada um consegue acumular?

É difícil escapar da sensação de que a contenção desse impulso é impossível sem a coação e a intimidação crescentes. As leis devem se tornar cada vez mais duras e especializadas na tentativa de coibir o enriquecimento “sem causa” e a qualquer custo. Verdade? A experiência contemporânea parece demonstrar que os circuitos de enriquecimento ilícito – apesar do grande número de prisões e condenações – não fazem outra coisa senão aumentar, multiplicando-se mundo afora. As drogas e seus sistemas de produção e comercialização, a espionagem industrial e tecnológica, a corrupção política, a compra e a venda de informações e de “desinformação” da opinião pública formam uma rede formidável e em rápido crescimento de circulação de dinheiro “sujo”.

Esse dinheiro transita e é “esquentado” e “esfriado” nos mercados financeiros liberalizados. Negócios legais são muitas vezes fachadas para “branquear” dinheiro de origem ilícita. Os sistemas fiscais – diante dos circuitos financeiros que permitem a livre movimentação de capitais – perdem o seu caráter progressivo e passam a depender cada vez mais dos impostos indiretos e da taxação dos assalariados.

Daí o enfraquecimento sem precedentes da esfera pública, a desmoralização dos poderes do Estado, a crescente onda de moralismo que revela, aliás, mais impotência do que indignação. Os perdedores desse jogo entregam-se a lamentações e ondas de protesto que se esgotam rapidamente entre o escândalo do momento e o próximo. Sem tempo para raciocinar, entregam-se ao consumo de fatos sensacionais e escabrosos.

Nessas situações crescem os clamores por medidas “salvacionistas”, apoiadas na invocação da própria santidade, honestidade ou bons propósitos. Em geral, esses movimentos de opinião voltam-se contra o “formalismo” dos procedimentos legais. Os grandes pensadores da modernidade encaravam com horror a possibilidade de vitória dos grupos que veem no direito e na formalidade do processo judicial obstáculos ao exercício da moral. Para eles, tais protestos não são apenas errôneos, mas revelam apego malsão à sua própria particularidade, desfrutada narcisisticamente sob o disfarce da moralidade.

No capitalismo realmente existente são os negócios que invadem a esfera estatal. A concorrência entre as grandes empresas impõe a presença do Estado nos negócios e envolve a disputa por sua capacidade reguladora e por recursos fiscais. Isso significou abrir as portas para a invasão do privatismo nos negócios do Estado.

O neoliberalismo também pode ser entendido como um projeto de retorno a uma ordem jurídica alicerçada exclusivamente em fundamentos econômicos. Para tanto, é obrigado a atropelar e estropiar, entre outras conquistas da dita civilização, as exigências de universalidade da norma jurídica. No mundo da nova concorrência e da utilização do Estado pelos poderes privados, a exceção é a regra. Tal estado de excepcionalidade corresponde à codificação da razão do mais forte, encoberta pelo véu da legalidade.

Seria uma insanidade, no mundo moderno e complexo, tentar substituir os preceitos e a força da lei pela presunção de virtude autoalegada por qualquer grupo social ou, pior ainda, por aqueles que ocupam circunstancialmente o poder.

Jorge Miglioli, por Zahluth Bastos & Gonzaga Belluzzo

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A Terra é Redonda – 27/08/2025

Pedro Paulo Zahluth Bastos & Luiz Gonzaga Belluzzo

Homenagem ao professor da Unicamp, recém-falecido

No dia 24 de agosto de 2025, o professor Jorge Miglioli nos deixou. Seu principal livro, Acumulação de capital e demanda efetiva, resultou da tese de livre-docência que defendeu no Departamento de Economia da Unicamp em 1979, levando a um ponto alto a reflexão teórica sobre a dinâmicas das economias capitalistas no Brasil e no mundo. O livro preserva uma grande atualidade. Infelizmente, não foi traduzido, o que limitou sua repercussão internacional. Qual é sua mensagem e seu contexto?

Nas décadas de 1960 e 1970, um tema comum nas esquerdas era afirmar que o capitalismo brasileiro era não só selvagem e desigual, como também economicamente inviável porque excluía a maioria da população dos mercados de bens de consumo. Implicitamente, a suposição era que, nos países centrais e desenvolvidos, o capitalismo era dinâmico por se orientar para atender às necessidades de consumo das populações. De Celso Furtado a Ruy Mauro Marini, uma certa mistificação do capitalismo nos centros desenvolvidos era o outro lado de propostas reformistas ou revolucionárias que, na periferia, superassem a inviabilidade de um capitalismo que jogava camadas populares na pobreza.

O chamado “Milagre” econômico (1968-1973) mostrou que altas taxas de crescimento econômico eram viáveis mesmo com a duplicação da proporção da população em situação de insegurança alimentar para cerca de 2/3 do povo brasileiro. A partir da década de 1980, o avanço do neoliberalismo pode ser entendido como uma brasilianização dos centros desenvolvidos que não deixaram de crescer apesar da desigualdade crescente.

Desde a criação em 1968, o projeto intelectual do Instituto de Economia da Unicamp envolveu entender a dinâmica e as tendências do capitalismo a partir de Marx, Keynes, Schumpeter, Kalecki e seus discípulos, dialogando com a tradição crítica latino-americana para capturar a particularidade histórica e estrutural do capitalismo no Brasil.

Sua função social seria entender a origem, a estrutura e a dinâmica do capitalismo para sugerir reformas que nos levassem a uma civilização digna do nome. Na década de 1970, a reflexão teórica iniciada nas teses de Luiz Gonzaga Belluzzo e Maria da Conceição Tavares encontrou grande síntese, no que tange à dinâmica do capitalismo, na obra de Jorge Miglioli defendida em 1979 e publicada em 1981.

Em Acumulação de capital e demanda efetiva, Jorge Miglioli faz uma brilhante história do pensamento econômico. Ele parte do desmonte da Lei de Say que está na base do edifício da escola neoclássica: a noção de que a renda determina o gasto. Como tudo que é recebido é gasto, as economias de mercados tenderiam naturalmente ao pleno emprego. Ao contrário, o princípio da demanda efetiva é que o gasto determina a renda em uma economia capitalista. Logo, a flutuação da renda pode ocorrer persistentemente aquém do pleno emprego a depender dos determinantes dos gastos e de sua flutuação cíclica ou brusca (“estocástica”).

Navegando dos clássicos do século XVIII até economistas contemporâneos, a inspiração última de Jorge Miglioli é o economista polonês Michal Kalecki, com quem Miglioli estudou e o qual contribuiu para popularizar no Brasil. Michal Kalecki chegou ao princípio da demanda efetiva em um desconhecido artigo publicado em polonês em 1933 antes da formulação popularizada por John Maynard Keynes na Teoria geral do emprego, do juro e da moeda de 1936.

Ao contrário de originar-se da tradição neoclássica (na vertente de Alfred Marshall) como Keynes, Michal Kalecki partiu de Karl Marx e Rosa Luxemburgo, que certamente já mobilizavam o princípio da demanda efetiva. Por isso, Michal Kalecki desagrega o gasto macroeconômico no consumo das classes fundamentais (capitalistas e trabalhadores), no investimento dos capitalistas, no gasto do Estado e no comércio exterior, investigando os determinantes e as interrelações entre os tipos de gasto.

Ele também mostra mais claramente que Keynes que os gastos são condicionados e interagem com a distribuição da renda e como esta é determinada pelo poder de mercado de capitalistas e trabalhadores, mediados por estruturas de mercado e instituições estatais e sindicais. [1]

Jorge Miglioli demonstra com didatismo ímpar como o montante do lucro dos capitalistas depende de seu próprio nível de gasto em investimento e bens de consumo, assim como do gasto público e das exportações líquidas. Se os trabalhadores gastam o que ganham, os capitalistas ganham o que gastam. Se o Estado tiver déficit, os capitalistas ganham bem mais do que pagam em impostos. Mesmo que a produção de alimentos para a população seja insuficiente, o gasto militar ou em construção civil em bairros ricos, por exemplo, assegura o dinamismo do capitalismo e a lucratividade dos capitalistas.

O problema do capitalismo, portanto, não é que às vezes “falhe” na missão de gerar o consumo dos trabalhadores de que depende, e sim que, a rigor, não depende deste tipo de consumo: sua “missão” nunca foi atendê-lo nem nos centros nem nas periferias. Se o fizer, será em condições excepcionais de relação de forças favoráveis aos trabalhadores.

Estudioso do planejamento econômico nas economias capitalistas e socialistas, Jorge Miglioli mostra em outro livro que a distribuição consciente de investimentos e decisões de produção para atender necessidades sociais pode ser o objetivo de uma outra civilização, mas que não é uma tarefa tecnicamente simples mesmo que as dificuldades políticas sejam superadas.

Jorge Miglioli é professor de um tempo em que grandes esperanças e grandes questões estavam no centro da reflexão universitária. Seu exemplo não pode ser esquecido. Sua obra não deve ser apenas lembrada, mas republicada e relida.

Pedro Paulo Zahluth Bastos é professor titular Instituto de Economia da UNICAMPAutor, entre outros livros, de A era Vargas: Desenvolvimentismo, economia e sociedade (Editora da Unicamp).

Luiz Gonzaga Belluzzo, economista, é Professor Emérito da Unicamp. Autor entre outros livros, de O tempo de Keynes nos tempos do capitalismo (Contracorrente).

Globalização Financeira e Soberania Nacional: Lições para o Brasil, por José Luis Oreiro

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José Luis Oreiro -GGN – 29/08/2025

A decisão tomada pelo Ministro do STF Flavio Dino sobre a não aplicabilidade e validade de leis e ordens estrangeiras em território nacional detonou um forte movimento de queda dos preços das ações de instituições financeiras no último dia 19 de agosto de 2025. Segunda a imprensa especializada, os principais bancos brasileiros teriam perdido R$ 38,4 bilhões em capitalização de mercado. A queda do valor das ações dos bancos brasileiros foi seguida por um aumento dos juros futuros e uma desvalorização de 1,11% do Real frente ao Dólar.

À primeira vista esses eventos parecem ser um puro non sense. Não é necessário ter formação avançada em direito internacional para saber que países soberanos são soberanos e que, portanto, decisões tomadas em outros países, por mais poderosos que sejam (ou acham que sejam) não pode ter aplicação automática na jurisdição de um Estado Soberano. Quando um Estado Soberano quer impor a sua vontade a outro Estado Soberano se recorre invariavelmente a agressão militar, tal como temos visto nos últimos três anos no conflito entre Rússia e Ucrânia.

Então qual a racionalidade, se alguma, do comportamento dos mercados financeiros? Aqui é importante fazermos uma distinção, muito comum na teoria do desenvolvimento econômico, entre causas próximas e causas últimas. As causas próximas são aquelas que são diretamente responsáveis por um determinado resultado; ao passo que as causas últimas são as causas das causas.

No caso em questão o comportamento dos mercados financeiros refletiu a percepção de que o ministro Flavio Dino estava, de forma indireta, impedindo a aplicação da lei Magnitsky contra os interesses de cidadãos brasileiros – no caso específico o Ministro Alexandre de Moraes do STF – no território nacional. A percepção dos mercados financeiros é que os bancos brasileiros poderão sofrer sanções em suas operações no exterior – particularmente nos Estados Unidos – se não cumprirem as determinações da lei Magnitsky sobre as transações feitas pelo Ministro Moraes em território nacional. Dada a possibilidade de punições sobre as operações dos bancos e empresas brasileiras no exterior; então o preço de mercado das suas ações, que reflete o valor presente dos dividendos esperados futuros, se reduziu de forma acentuada.

Essa explicação é totalmente correta, mas não vai a essência do problema em questão. Os efeitos decorrentes da decisão do Ministro Flavio Dino só puderam ocorrer porque o Brasil, desde o final dos anos 1980, abraçou de forma entusiasta os preceitos do Consenso de Washington, em particular a tese de que a retomada do desenvolvimento econômico após a década perdida só seria possível por intermédio da adoção de um modelo de crescimento baseado na poupança externa, ou seja, na captação de “investimentos” (na verdade aplicações financeiras) estrangeiros (tanto em renda fixa como em renda variável) o que demandaria a abertura da conta de capitais do balanço de pagamentos. Essa abertura implicava, por um lado, a possibilidade de investidores estrangeiros comprarem diretamente ativos brasileiros na bolsa de valores ou títulos da dívida pública.  Por outro lado, a abertura da conta de capitais permitiu que instituições financeiras brasileiras pudessem fazer operações no exterior, comprando ativos denominados em moeda estrangeira tais como ações, títulos de dívida pública e privada, entre outros.

Subjacente ao modelo de crescimento com poupança externa está a tese de que países em desenvolvimento como o Brasil não possuem poupança doméstica suficiente para “financiar” o investimento necessário para o crescimento econômico a taxas robustas e precisam complementar essa poupança com captações no exterior. Essa lógica foi extensamente adotada no primeiro governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, quando a poupança externa – que nada mais é do que o nome glamourizado do déficit em conta corrente do balanço de pagamentos – atingiu quase 4,5% do PIB em 1998. O resultado foi uma crescente fragilidade externa e a necessidade de se recorrer aos empréstimos dos Fundo Monetário Internacional para manter a combinação juros altos-câmbio valorizado decorrentes da lógica de funcionamento do modelo de crescimento com poupança externa. Em 1999, Fernando Henrique Cardoso teve que se render aos fatos e demitiu o Presidente do Banco Central da época, Gustavo Franco, para empreender uma reorientação da política monetária e cambial na direção do regime de câmbio flutuante. A forte desvalorização cambial que se seguiu a essa mudança na direção do Banco Central permitiria, nos anos seguintes, uma reversão do saldo em conta corrente do balanço de pagamentos de deficitário, durante FHC II, para superavitário, em Lula I. Desde então o Brasil nunca mais voltou a pedir empréstimos ao FMI, mesmo num ambiente internacional conturbado pela Crise Financeira Internacional de 2008, a Crise do Euro em 2012 e a crise da Covid-19 em 2020. O Brasil aparentemente havia recuperado a sua soberania, sendo novamente senhor do seu destino.

Durante o governo Bolsonaro, contudo, foram adotadas mudanças na legislação cambial que aprofundaram a abertura da conta de capitais no Brasil. Pessoas físicas, por intermédio de fintechs e plataformas de investimento, puderam fazer investimentos em renda fixa no exterior a partir da comodidade de seus telefones celulares. Pessoas que não tinham a menor noção de finanças e macroeconomia (noise traders) agora podiam tirar para fora do país quantidades enormes de recursos com base em rumores fantasiosos sobre a economia do Brasil, devidamente fabricados por investidores profissionais com o intuito de criar movimentos histéricos nos mercados financeiros e assim obter ganhos de arbitragem com eles. Entre outubro e dezembro de 2024 observamos apáticos o dólar atingir o patamar de R$ 6,30 sem que nada de extraordinário tivesse acontecido com a economia brasileira. E tanto que esse movimento era desprovido de fundamento que nos meses seguintes a taxa de câmbio recuou para menos de R$ 5,50, sem que ocorresse nenhuma mudança digna de monta no cenário fiscal. Mas, para debelar o movimento especulativo, o Banco Central foi, por assim dizer, obrigado a fazer aumentos sucessivos na taxa Selic até ela atingir o patamar atual de 15%, gerando algumas centenas de bilhões de reais de gasto adicional para os cofres públicos. Atualmente quase 100% do déficit fiscal é de origem puramente financeira.

A experiência histórica do Brasil e da América Latina com o modelo de crescimento com poupança externa já deveria ter levado nossa classe política a perceber que o desenvolvimento econômico é resultado do esforço de um país que pensa com a sua própria cabeça e cria seu próprio capital. Se o Brasil não tivesse se rendido a globalização financeira, não estaríamos discutindo as repercussões da lei Magnitsky sobre a soberania nacional.

José Luis Oreiro, Professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília.

Balanço ético global, por Leonardo Boff

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Leonardo Boff – A Terra é Redonda – 27/08/2025

A humanidade enfrenta uma encruzilhada existencial, obrigada a escolher entre a perpetuação de um paradigma de acumulação anti-vida, que nos conduz à tragédia, e a adoção urgente de uma ética global baseada no cuidado, na fraternidade universal e no respeito por toda a comunidade terrestre

A Presidência da COP30 e o Círculo do Balanço Ético Global, junto com o Movimento Global da Carta da Terra fizeram um convite aberto a todos os interessados para contribuírem para o Balanço Ético Global (BEG).

Portanto, como membro da Carta da Terra Internacional, me proponho responder às questões formuladas pela Presidência da COP30. Vejo na Carta da Terra e na encíclica do Papa Francisco, Como cuidar da casa comum fontes inspiradoras para uma Ética Global face ao o nosso conturbado tempo.

Perguntas / Respostas

Por que tantas vezes negamos ou ignoramos o que a ciência e os saberes tradicionais dizem sobre a crise climática, e compartilhamos ou compactuamos com a desinformação, mesmo sabendo que vidas estão em risco?

A desinformação é voluntária. Muitos chefes de estados ricos e CEOS de grandes corporações sabem dos riscos, pois, elas estão presentes e são inegáveis como o aquecimento global, as enchentes destrutivas de cidades inteiras, as fogueiras imensas na Califórnia, no Amazonas, na Espanha e ainda a presença de vários vírus em particular do Coronavírus que atingiu a humanidade inteira.

Negam estes dados claros porque são anti-sistêmicos. O sistema do capital hoje mundializado mais e mais se concentra (1% contra 99%). Tomar a sério estes dados, obrigaria este capital a mudar de lógica, cuidar da natureza em vez de super-explorá-la, cultivar uma justiça social e uma justiça ecológica. Não basta descarbonizar e mantendo a voracidade de acumulação. Como diz a Carta da Terra: “Adotar padrões de produção e consumo que protejam as capacidades regenerativas da Terra, os direitos humanos e o bem-estar comunitário”(§II,7).

Este sistema inumano e sem qualquer solidariedade jamais vai renunciar a suas vantagens e privilégios. A seguir a lógica do capital iremos ao encontro, cedo ou tarde, a uma grande tragédia ecológico-social que poderá afetar a biosfera, e no limite, a sobrevivência dos seres humanos sobre este planeta, que, limitado, não suporta um projeto de crescimento/desenvolvimento ilimitado.

Por que continuamos com modelos de produção e consumo que prejudicam os mais vulneráveis e não estão alinhados à Missão 1.5°C?

Não é do interesse do sistema dominante de produção que super-explora a natureza e os trabalhadores, pois, isso implicaria mudar de paradigma de acumulação para um paradigma de sustentação de toda a vida, humana e da natureza (CT§ I.). Os representantes deste sistema colocam o lucro acima da vida, a violência contra a natureza e os seres humanos e a competição acima da paz e da colaboração de todos com todos.

Não conhecem o fato cientificamente comprovado do “espírito de parentesco com toda a vida” (CT § Preâmulo c). Esse sistema impede “a justiça social e econômica e de erradicar a pobreza como um imperativo ético, social e ambiental” (CT III§9). Nega o seu lugar no conjunto dos seres, pois todos são importantes para compor o Todo. O sistema de acumulação seja capitalista ou de outra denominação, é contra a lógica da natureza e do processo de cosmogênese, pois “deve-se tratar todos os seres com respeito e consideração” (CT § III,15), coisa que ele não faz. Aqui reside seu vazio ético.

O que podemos fazer para garantir que os países ricos, grandes produtores e consumidores de combustíveis fósseis, acelerem suas transições e contribuam com o financiamento dessas medidas nos países mais vulneráveis?

Devemos alimentar indignação contra esse sistema que tantas vítimas faz. Devemos ter a coragem de fazer todo tipo de pressão contra este sistema que mata e propor-nos a modificá-lo. Usar os movimentos que “cuidam da comunidade de vida com compreensão, compaixão e amor” (CT § I,2) e pressionar os Estados e as corporações. Saber usar as legislações existentes que protegem o meio ambiente e limitam a concentração de riqueza.

Tudo isso se conseguiu graças à pressão vinda de baixo. Mas não basta a indignação e a pressão. Devemos começar com algo novo e alternativo. O caminho mais direto e com bons resultados é viver e fomentar o “bioregionalismo”. Dar valor à região e ao território. Não aquele estabelecido com limites feitos arbitrariamente pelos Estados.

Deve-se assumir a região como a natureza a desenhou, com suas florestas, seus rios, suas montanhas, enfim, sua natureza com a população que lá vive. Ela possui sua cultura singular, suas festas, suas personalidades notáveis que aí existiram: “trata-se proteger e restaurar os sistemas ecológicos da Terra com especial preocupação pela diversidade biológica e pelos processos que sustentam a vida” (CT § II,5). Pode-se realizar um modo de produção com os bens e serviços naturais locais, sem precisar grandes fábricas, nem fazer grandes transportes. Tirar da natureza o que se precisa e respeitar os ritmos dela e dar-lhe tempo para se recuperar (§ todo o número II: Integridade ecológica).

É possível e viável “construir sociedades democráticas que sejam justas, participativas e pacíficas” (CT§ I,3), diminuindo fortemente a pobreza e até superá-la. O centro é a comunidade humana e de vida e tudo o mais a serviço deste centro. O resultado é alcançar um modo sustentável de vida como afirma a Carta da Terra (§ O caminho adiante) e com seu desenvolvimento sustentável, adequado àquela região. Hoje no mundo há inúmeras regiões que vivem este projeto com grande integração de todos. A Terra inteira poderia ser como um tapete de bioregiões que se relacionam entre si e se entre-ajudam e assim salvam a sustentabilidade de todo o planeta Terra.

Que tradições, histórias ou práticas (culturais, espirituais) da sua comunidade nos ensinam a viver em maior equilíbrio com a natureza?

Muitas cidades rearborizam as ruas e praças com plantas nativas. Outras fazem campanhas para arborizar espaço degradados, ou limpar os rios dos dejetos, especialmente plásticos e outros, assegurar a mata ciliar de todos os rios e riachos, incentivar a agricultura agroecológica no campo e o cultivo de hortaliças e outros produtos naturais nos espaços de terra entre os prédios ou nas coberturas. Ainda estabelecer uma relação amigável entre os consumidores da cidade e os produtores do campo. Visitam-se mutuamente e trocam os saberes. Então se cria uma verdadeira democracia de produção e consumo.

Considerando que precisamos garantir a diversidade no coletivo, como podemos mobilizar mais pessoas, lideranças, corporações, empresas e nações para apoiar mudanças justas e éticas no combate à crise climática? Que ideias e valores poderiam nos inspirar nessa missão?

Em primeiro lugar cabe repassar todo tipo de informação sobre o estado da Terra e das ameaças que pesam sobre ela a ponto de pôr em risco a biosfera e existência do ser humano. Aqui são importantes fornecer os dados sobre a Sobrecarga da Terra, vale dizer, quanto de solo e de mar precisamos para garantir a subsistência da humanidade. Verificou-se que a Terra entrou no cheque especial. No ano 2024, nos primeiros sete meses do ano, temos consumido todos os bens e serviços renováveis da Terra que garantem a vida.

Precisamos, no atual momento, de quase duas Terras para atender o consumo humano, especialmente, aquele suntuoso dos países ricos, em detrimento de grande parte da humanidade que não possui alimentos suficientes e padece de falta de água potável e de infraestrutura sanitária (CT § III,10). Lançamos, só no ano de 2024, 40 bilhões de toneladas de CO² na atmosfera que lá fica por cem anos acrescido de 20 bilhões de toneladas de metano que é 28 vezes mais danoso que o CO², embora fique na atmosfera por uns 10 anos.

Toda essa poluição produz um “efeito estufa” que aquece mais e mais o planeta. Agora ela ultrapassou a medida suportável de 1,5ºC. Neste ano de 2025 ele está com 1,7ºC, acima do que era postulado pelo Acordo de Paris em 2015. Este visava a chegar a este nível somente até o ano de 20230. O calor foi antecipado e teve graves consequências humanas, com temperaturas de acima de 40-45ºC nos países europeus e grande frio no Sul do mundo. A ciência chegou atrasada e não pode reter esse aquecimento nem retrocedê-lo, só advertir sua chegada e mitigar os efeitos danosos.

Quando a Terra irá estabilizar seu novo nível climático? Se for por volta de 38-40ºC muitas vidas não conseguirão adaptar-se e desaparecerão seja na natureza seja na humanidade. Sequer nos referimos a uma eventual guerra nuclear com “a destruição mútua assegurada” que poria um fim à vida humana. Ou outro tipo de guerra utilizando a Inteligência artificial geral pela qual uma potência pode imobilizar a outra de tal forma que nada mais pode funcionar, energia, carros, aviões, foguetes, meios de comunicação a ponto de colocar de joelhos a outra nação. Essa guerra não é impossível.

Não destrói nada mas subjuga toda uma nação ou toda a humanidade, um despotismo cibernético que controlaria tudo até a vida privada. A Inteligência artificial autônoma pode decidir que não lhe é mais conveniente a espécie humana e resolve exterminar a vida na Terra.

Todo esse cenário sombrio nos leva a postular um novo paradigma, sugerido pela Carta da Terra e pelas duas encíclicas do Papa Francisco: a Laudato Si: sobre o cuidado da Casa Comum (2015) e a Fratelli tutti (2020). Assim se diz claramente na Carta da Terra: “Estamos num momento crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro…A escolha nossa é: ou formar uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos outros, ou arriscar a nossa destruição e a destruição da diversidade da vida” (2003, Preâmbulo). Ou do Papa Francisco: “Estamos todos no mesmo barco: ninguém se salva sozinho, ou nos salvamos todos, ou todos pereceremos” (Fratelli n. 34).

A Carta da Terra postula respeito e cuidado por tudo que existe e vive e pela responsabilidade universal (§ I,1). O Papa aponta a passagem do dominus – o paradigma da modernidade e prevalente no mundo – o ser humano como dono e senhor da natureza sem se sentir parte dela, para o frater o ser humano irmão e irmã com todos os seres. Pois todos vieram do mesmo pó da Terra; todos possuem o mesmo código biológico de base (os 20 aminoácidos e as 4 bases nitrogenadas); o ser humano se sente parte da natureza, não seu dono e senhor, sendo sua missão cuidar e guardar do Jardim do Éden (a Terra). A fraternidade universal deve ser, principalmente, entre todos os seres humanos, formando a grande comunidade humana e terrenal” (Fratelli tutti,n. 6).

Este seria o paradigma novo. O centro seria a vida em toda a sua diversidade. A economia, a política e a cultura a serviço da vida.

Importa enfatizar que uma ética do cuidado, da responsabilidade geral e da fraternidade/sororidade universal não se garante por si mesma sem a espiritualidade natural. Esta não se deriva diretamente da religião, mesmo que possa reforçá-la, mas da própria natureza humana. Esta espiritualidade natural é parte da natureza humana como é a inteligência, a vontade e a sensibilidade. Ela se revela pelo amor incondicional, pela solidariedade, pela empatia, pela compaixão e pelo cuidado e reverência face à totalidade da natureza e do universo e ao Criador de todas as coisas. É a vivência da espiritualidade natural com seus valores que sustentam comportamentos éticos, necessários para a salvaguarda da vida na Terra.

Só este novo paradigma poderá garantir o futuro da vida em geral, da vida humana e de sua civilização. Caso contrário poderemos engrossar o cortejo daqueles que caminham na direção de sua comum sepultura. Mas como diz a Carta da Terra: “Nossos desafios ambientais, econômicos, políticos, sociais e espirituais estão interligados e juntos poderemos forjar soluções includentes” (CT§ Preâmbulo c). Por aqui passa a solução de nossa crise planetária. Por isso prevalece a esperança de que o ser humano pode mudar de rumo e inaugurar uma nova etapa da aventura humana sobre o planeta Terra.

Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Comer e beber juntos e viver em paz (Vozes).

Agitando o mundo

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Nos últimos meses estamos visualizando uma grande transformação na sociedade mundial, estes movimentos são estimulados pelo forte poder dos Estados Unidos da América, com medidas unilaterais, pressões generalizadas, adoção de tarifas comerciais, com ofensas de amigos e de parceiros tradicionais, além de ofensas internas e demissões sumárias, gerando uma grande instabilidade no cenário internacional e afetando a imagem da nação, da moeda, das tradições e das instituições, sempre vistas como um exemplo de estabilidade, credibilidade e confiabilidade.

Neste momento, vivemos um período de grandes incertezas na sociedade internacional, movimentando conflitos militares em variadas regiões, agitando o mercado de armas e tecnologias bélicas, levando as nações a investirem grandes somas monetárias para a defesa nacional, acreditando que os inimigos estão em outras regiões ou aqueles que batem as suas fronteiras nacionais, como os imigrantes, que saem de suas nações vitimadas pela miséria e pela exploração, gerando um ambiente de medo e de desesperança, não compreendendo que os maiores adversários estão dentro de nossas fronteiras nacionais, grandes grupos financeiros que se comprazem com lucros estratosféricos, com taxas de juros escorchantes e setores empresariais que pagam salários desumanos e que pregam, usando seus instrumentos de comunicação, o patriotismo nacionalista e são, verdadeiros entreguistas, que vendem seu país, defendem golpes militares ou parlamentares e se comprazem com a miséria da população nacional.

Recentemente, circulou nos meios de comunicação de massa, matérias que mostravam o aumento da desigualdade econômica na sociedade internacional, publicações que mostravam este verdadeiro escárnio mundial, onde as raízes desta situação de degradação se faz, cada vez mais evidente, onde os bilionários crescem rapidamente e dominam a sociedade global, comandando as instituições políticas e garantindo seus benefícios imediatos, controlando as estruturas econômicas e produtivas, garantindo isenções fiscais e financeiras para suas próximas gerações e difundem a ideia, bem construída, da meritocracia e o poder do empreendedorismo, falácias do mundo dominado pelo grande capital improdutivo.

As discussões mais importantes para estruturar a sociedade mundial estão sendo deixadas de lado, as conversas que prosseguem servem para estimular ódios e ressentimentos, grupos muito bem-organizados que investem grandes somas de recursos monetários para degradar a reputação dos indivíduos que pensam diferente, vídeos que fomentam a mentira e a desinformação crescem e são alavancadas por empresas de tecnologias, visando estimular inverdades, provocar violências, medos e conflitos generalizados. Neste cenário, os verdadeiros assuntos que poderiam melhorar as condições de vida da população, discussões que mostram as verdadeiras lacunas nacionais e internacionais estão sendo escondidas ou escamoteadas para perpetuar as condições de vida existentes na contemporaneidade, um verdadeiro conflito generalizado de todos contra todos, o resultado de tudo isso, todos conhecemos, uns poucos mais ricos e poderosos e uma grande massa de degradados, empobrecidos e sem perspectivas de melhorias futuras. Assim caminha a humanidade…

Vivemos um momento estratégico para a sociedade brasileira, os conflitos crescem, as violências aumentam e a pobreza cresce, neste instante, precisamos saber o que queremos do futuro, será que queremos vender nossos patrimônios e nossas riquezas, entregando nossos rumos a outra nação ou precisamos compreender que estamos num momento interessante e devemos tomar conta da nossa soberania e de nossa autonomia. Acorda Brasil…

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel de Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

A importância da educação, por Samuel Pessoa

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Maior escolaridade foi essencial para que a desigualdade no mundo não crescesse

Samuel Pessoa, Pesquisador do BTG Pactual e do FGV IBRE e doutor em economia

Folha de São Paulo, 24/08/2025

Acaba de ser publicado em uma das quatro melhores revistas acadêmicas que há —o Quarterly Journal of Economics— artigo escrito pelo pesquisador Amory Gethin. A pesquisa de Gethin mede o impacto da elevação da escolaridade da população, de 1980 até 2019, sobre o crescimento da economia mundial e o crescimento da renda da população do quinto inferior da distribuição da renda global.

O artigo calcula qual teria sido a renda em 2019 se de 1980 a 2019 a escolaridade da população mundial não tivesse se elevado.

No período, a renda média per capita cresceu 1,6% ao ano. A melhora educacional explica 0,7 ponto percentual do crescimento ou 45%. Para o quinto inferior da distribuição de renda, isto é, os 20% mais pobres, o crescimento anual da renda no período foi de 1,9%. A escolarização responde por 1,1 ponto percentual ou 58% do crescimento.

No exercício, Gethin considerou que o estoque de capital não se alterou. Mas, se no período a escolaridade não tivesse se elevado, o retorno do capital teria sido menor. E de um retorno menor do capital o investimento seria menor e, consequentemente, o crescimento econômico teria sido menor.

Quando ele adiciona ao efeito direto da educação sobre o crescimento econômico o efeito indireto fruto da elevação do investimento, a parcela do crescimento econômico mundial de 1980 a 2019 explicado pela educação cresce de 45% para 62%, e de 58% para 67% para a renda do quinto inferior da distribuição de renda.

O trabalho também apresenta o impacto da melhora educacional sobre a queda da pobreza. Se empregamos a linha de pobreza de US$ 2,15 por pessoa por dia, a melhora educacional explica 35% da queda da pobreza.

Finalmente, a melhora da escolaridade nos diversos países no período foi essencial para que a desigualdade no mundo não crescesse. O ganho educacional contribui para mitigar a elevação da desigualdade de renda que ocorreu no interior de boa parte dos países do mundo. Consequentemente, a desigualdade na economia mundial não se elevou.

O estudo consolida uma quantidade imensa de pesquisas domiciliares, para inúmeros países, cobrindo mais de 97% da população do mundo de 1980 a 2019. A especificação é muito flexível. Considera que o retorno da educação seja diferente nos diversos países para os variados níveis de escolaridade.

Apresenta evidências de que o ganho salarial associado à maior escolaridade subestima levemente o impacto da educação sobre a produtividade do trabalhador e que o efeito agregado de escolarizar uma população é bem captado pelo ganho de salário individual.

A teoria empregada para mensurar a importância da escolarização da população no crescimento é parcimoniosa. Provavelmente, o exercício de Gethin subestima a importância da educação para o crescimento econômico e para a redução da pobreza. O autor empregou o retorno de mercado da educação.

Se houver qualquer impacto positivo da educação que não seja expresso pelo ganho de salário que o mercado de trabalho paga à maior escolaridade —por exemplo, pessoas com mais educação, na média, cometem menos crimes e educam melhor seus filhos—, o efeito sobre o crescimento econômico será maior.

Após 70 anos dos primeiros trabalhos de economia da educação, com as novas bases de dados e uma capacidade computacional imensa, foi possível colocar números nas intuições iniciais dos pioneiros da década de 1950.  O conhecimento avança.

 

 

Abra os olhos, Folha! por Juca Kfouri

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Impossível não se indignar diante da nova tentativa de ruptura da democracia

Juca Kfouri, Jornalista, colunista da Folha e autor de ‘Confesso que Perdi’ (Companhia das Letras); é formado em ciências sociais pela USP.

Folha de São Paulo, 23/08/2025

Os mesmos terroristas que quase levaram aos céus, em vez dos aviões, o aeroporto de  Brasília, e continuaram suas ações no dia 8 de janeiro, estão hoje na Câmara dos Deputados, na tentativa de golpear a democracia brasileira.

Se não bastasse, têm o apoio de quem o presidente Lula chamou corretamente de “imperador do mundo”.

Desta vez quem quer dar o golpe não é o banqueiro Magalhães Pinto, o “rouba mas faz” Ademar de Barros ou o “Corvo” Carlos Lacerda, líderes civis da marcha antidemocrática que redundou na ditadura militar de 1964.

Desta vez os apoiadores de Jair Bolsonaro, aquele que quis explodir a adutora do Guandu em 1987, não são os governadores de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, embora os três atuais ocupantes dos mesmos cargos sejam cúmplices dos extremistas de direita e não têm constrangimento em revelar covardia e submissão a interesses externos.

Agora os porta-vozes da aventura são tipos inconversáveis, verdadeiros ogros do PL bolsonarista, como o violento Paulo Bilynskyj, o histérico Marcelo van Hattem, a mãe desnaturada Júlia Zanatta e o “patriota” Eduardo Bolsonaro, guiado pelo neto do derradeiro ditador, o fujão Paulo Figueiredo — entre outras figuras tão pequenas como Bia Kicis, a defensora da liberdade de imprensa que processou mais de uma dezena de jornalistas.

Nem Lyndon Jonhson, o presidente dos EUA em 1964, embora estivesse na origem do golpe, teve a coragem de assumi-lo publicamente como faz o arrogante intervencionista Trump.

Tratar com tons de normalidade o processo em curso é, de duas, uma: ou se fazer de avestruz ou colaborar para mais uma interrupção do processo democrático duramente conquistado como fez esta Folha ao apoiar o golpe seis décadas atrás —para depois se engajar corajosamente na campanha das “Diretas Já”.

“O Globo” fez o mesmo, apoiou o golpe, não a campanha por seu fim, e o “Estado de S.Paulo” também.

Não trabalho nem para um e nem para outro, seria indevido querer pautá-los, além de apostar que jamais publicariam um artigo como este, e exponho aqui meu desalento — noves fora a esperança de sensibilizar, não de pautar, para mudança de rumo na cobertura da insânia em curso.

Pouco importa estar de acordo ou não com o atual governo.

Trata-se de defender a soberania e a democracia sem concessões e outroladismo para quem solapa a democracia.

Não há isenção possível entre Winston Churchill e Adolf Hitler. Ou entre Ilan Pappe e  Binyamin Netanyahu.

Durante anos esta Folha adotou o lema “Um jornal a serviço do Brasil”.

Por menos que tenha sido fiel ao bordão antes, durante e depois do golpe, pode se orgulhar de tê-lo seguido ao se transformar no diário mais arejado, criativo, instigante do país, também o de maior circulação, graças a jornalistas como Otavio Frias Filho e seu Projeto Folha, Ricardo Kotscho, “o Repórter das Diretas, e Matinas Suzuki, o mais inquieto dos editores, para citar apenas três responsáveis pela guinada iluminista.

Então, trabalhar na Folha era motivo de orgulho mesmo quando, a FOLHA sendo FOLHA, tropeçava aqui ou ali.

Hoje não está bem assim.

Onde está a indignação, a denúncia veemente, a cobrança incessante para que o dócil e intimidado Hugo Motta tenha 10% da postura de Ulysses Guimarães na presidência da Câmara?

Por críticas que se façam ao ministro Alexandre de Moraes, e é acaciano dizer que ninguém está acima delas, deixar de enaltecer seu papel em defesa do país é, no mínimo, ingratidão, além de injusto.

Como são injustos, ingratos e oportunistas os que cobram de Lula o diálogo com quem nos ameaça e chantageia ao ignorar o ensinamento de Millôr Fernandes: “Quem se curva diante dos opressores mostra o traseiro para os oprimidos”.

Abre os olhos, Folha!

 

O “patriotismo” do Outro, por Eugênio Bucci

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Eugênio Bucci – A Terra é Redonda – 22/08/2025

A frase de Jacques Lacan – “o desejo do homem é o desejo do Outro” – ensina que um cidadão genérico, quando deseja, expressa menos um desejo original, pessoal, e mais o desejo dominante da ordem simbólica que o contém

Os “patriotas” das arruaças, do culto às armas e das camisetas amareladas ganharam votos gritando “Brasil acima de tudo” e “Deus acima de todos”. Dupla pobreza de espírito.

O primeiro slogan nunca passou de um plágio de mau gosto do bordão nazista “Deutchland über alles” (“Alemanha acima de tudo”). Quanto a “Deus acima de todos”, bem, nenhuma novidade. O Altíssimo assim é chamado por habitar supostamente píncaros celestiais insuperáveis. Quanto ao mais, o dístico nunca parou de pé: Deus deveria ser posto acima do Brasil ou seria o contrário?

Com o tempo, ficou evidente que os tais “patriotas” eram na verdade “estrangeirotas”: patriotas do estrangeiro. Um deles, em 2017, numa excursão à Flórida, chegou a bater continência para uma bandeira dos Estados Unidos estampada numa tela eletrônica. Ao microfone, o voluntário da servidão incondicional confessou: “A minha continência à bandeira americana”.

Em 2019, o mesmo personagem arriscou um “I love you” para Donald Trump, que passava por ali apressado. Em síntese, o que eles queriam dizer era “Brasil acima de tudo”, desde que não acima dos Estados Unidos, e “Deus acima de todos”, menos de Donald Trump.

Outro dos “patriotas” fugiu do Brasil e dá expediente em Washington, onde faz reuniões obscuras com autoridades obtusas de um governo tanático para articular sabotagens contra a economia brasileira e chantagens contra as autoridades daqui. A infâmia chegou a tal ponto de histeria e absurdos que o clã vem sendo classificado como traidor. Procede.

Há gente capacitada escarafunchando os regimentos do Poder Legislativo para detectar as tipificações do desvio, enquanto bons oradores vão a comícios para criticar esse “patriotismo” lesa-pátria. Têm razão. O problema é que existem aqueles que fingem não ver nada de esquisito. Como alertá-los? Incrível como não querem enxergar. O esquisito, o atípico, é o que temos hoje de mais fatídico, mais cínico, mais explícito e mais apodítico.

Num dos livros do psicanalista francês Jacques Lacan, Quatro conceitos fundamentais da psicanálise, lemos que “o desejo do homem é o desejo do Outro”. Devíamos buscar nessa chave analítica uma luz para entender o “patriotismo” que se define pelo negacionismo da Pátria e se ajoelha diante da bandeira alheia para rifar a sua própria.

A frase de Jacques Lacan – “o desejo do homem é o desejo do Outro” – ensina, entre outras coisas, que um cidadão genérico, uma pessoa como eu ou você, com todo o respeito, quando deseja, expressa menos um desejo original, pessoal, e mais o desejo dominante da ordem simbólica que o contém.

Esse Outro com “O” maiúsculo não é um outro qualquer, como um cunhado ou um colega da repartição, mas um senhor sobre-humano, capaz de ordenar o desejo dos mortais de carne e osso – sobretudo daqueles mortais que não têm nada de coluna vertebral, como é o caso.

O Outro maiúsculo não se compadece de nada nem de ninguém. Exemplos? Aqui estão: a autoridade sobre a qual se erigiu a Igreja Católica, ou a sua pedra fundamental; o capital, igualmente; o imperialismo que anima a Casa Branca. O desejo do homem é o desejo que o Outro, maiúsculo, diz ao homem, minúsculo, para fazer de conta que sente.

Você pergunta a um gerente de marketing, um dirigente sindical ou um operador da bolsa qual o ideal de beleza que ele tem e ele começa a descrever minuciosamente a Barbie. O desejo, nele, é o dedo em riste do Tio Sam, mas ele mesmo não sabe. Barbie para todos.

O “patriotismo” dos trumpatetas brasileiros reproduz a fórmula do “desejo do Outro”, mas em tintas rastaqueras. Adestrados pelos filmes de Tom Cruise, de Stallone e de Chuck Norris, os “patriotas” do Outro são tão rasteiros que nem souberam substituir a bandeira dos Estados Unidos pela do Brasil na hora de fazer seu teatrinho. Encenam uma paródia tosca: adoram uma bandeira que não é a deles, numa terra que não lhes concede um reles passaporte.

Dá pena. Tanta pena que o suposto Deus poderá perdoá-los, pois eles, ainda que premeditem com vileza o mal que querem fazer ao Brasil, não sabem o que fazem. Talvez seus pecados sejam redimidos pelo ente que paira “acima de todos”, menos de Donald Trump. Mas e quanto à nação brasileira? Poderá ela anistiá-los por antecipação? Poderá tratá-los como como semoventes inconscientes e inconsequentes – o que, de resto, eles são?

Espera-se que não. Em 1947, o Partido Comunista Brasileiro foi cassado porque seu líder, Luiz Carlos Prestes, teria dito numa entrevista que, numa guerra entre Brasil e União Soviética, ficaria do lado de Stalin. A verdade é que Prestes nunca disse isso, apenas fez um raciocínio hipotético: se o Brasil apoiasse uma guerra imperialista contra o Kremlin, ele lutaria para derrubar o governo brasileiro. Foi uma declaração de mau jeito, sem dúvida, e ela serviu de pretexto para colocarem o PCB na clandestinidade, injustamente. Agora, o caso é muito mais sério.

Os “patriotas” do Outro se associaram ativa e publicamente a uma potência estrangeira para mover covardemente uma guerra comercial, diplomática e moral contra o Brasil. E aí?

Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica).

Desacelerando a economia

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A economia brasileira apresenta uma desaceleração nos últimos meses, com impactos para toda a estrutura econômica e produtiva. Depois de uma melhora nos últimos anos, com crescimento na casa dos 3%, estamos percebendo uma perda de dinamismo econômico, ainda mais, num momento de grandes incertezas externas geradas pelo governo estadunidense, com medidas abruptas, tarifas elevadas e uma política mais pragmática.

A economia brasileira apresentou indicadores macroeconômicos positivos desde 2023. Melhora no ambiente de negócio, crescimento no produto interno bruto (PIB), aumento nos superávits comerciais, investimentos produtivos em ascensão, redução do desemprego, incremento do crédito e aumento significativo da renda dos trabalhadores, tudo isso, contribuiu para a melhora significativa da economia nacional.

Vivemos numa sociedade global marcada pela crescente instabilidade econômica e uma forte polarização política, que afugenta investimentos produtivos e levam os agentes privados a buscarem ativos mais seguros, restando aos governos nacionais aumentarem os dispêndios governamentais como forma de evitar a retração da economia nacional, cujos impactos negativos são elevados e, ao mesmo tempo, prejudicam fortemente os governos de plantão.

No caso brasileiro, percebemos o agravamento das questões fiscais que limitam o incremento dos gastos públicos, limitando os investimentos internos e canalizando grandes recursos monetários para o pagamento da dívida pública que, com uma taxa de juros estratosférica de 15%, transfere somas elevadas de recursos do orçamento público para os rentistas, aumentando a concentração de renda e incrementando as variadas desigualdades da sociedade brasileira.

Percebemos que a economia brasileira vem desacelerando, isto está acontecendo porque os motores do crescimento econômico estão sendo fragilizados, o consumo das famílias vem perdendo o dinamismo em decorrência das taxas de juros elevadas e o endividamento crescente, o setor exportador que sempre contribuiu para acelerar o crescimento vem perdendo espaço em decorrência das incertezas e das instabilidades motivadas pelas políticas altamente protecionistas adotadas pelo governo norte-americano, além das dificuldades fiscais, vistas pelo mercado como um limitador dos investimentos públicos, neste cenário, estamos vivendo um momento de inquietação e fortes incertezas, onde estamos aguardando novas medidas para impulsionarem o crescimento econômico e evitar uma maior degradação econômica.

O país acumula grandes desequilíbrios estruturais, o crescimento econômico é fundamental para reduzir os péssimos indicadores econômicos e sociais, sem fortalecer nossos setores econômicos e produtivos, sem impulsionarmos os empregos e sem uma melhora da renda agregada vamos gerar graves constrangimentos sociais, com aumento de violência urbana e uma degradação das condições de vida da população mais fragilizadas.

Neste momento, marcado por instabilidades crescentes em todas as regiões do mundo, é importante construirmos um verdadeiro projeto de país, precisamos olhar para o futuro e adotarmos, com urgência, políticas efetivas que garantam espaço de crescimento e inserção mais soberana no ambiente global, deixando modelos ultrapassados de crescimento econômico que pouco trouxeram de melhorias para a sociedade brasileira. Neste momento, precisamos construir empresas nacionais consolidadas, desenvolver tecnologias inovadoras, desenvolver setores que apresentem vantagens reconhecidas internacionais, reduzindo dependências externas e diversificando nosso comércio internacional, precisamos evitar a concentração de vendas externas em apenas poucas nações, consolidar novos parceiros comerciais e fortalecer nossa estrutura produtiva, deixando de lado um viralatismo estrutural que perpassa a elite nacional, sempre ativa e muita criativa para perpetuar nossa submissão e nossa dependência externa.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor unive

Para que servem os sindicatos no século XXI? por Clemente Ganz Lúcia

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Ainda inédita no Brasil, obra analisa o papel do sindicalismo, hoje, num mundo em crise. Como podem dar impulso à inovações, e resgatar seu papel de contrapoder? Quais os caminhos para formular uma nova regulação do trabalho, incluindo precarizados?

Clemente Ganz Lúcia – OUTRAS PALAVRAS – 18/08/2025

Há múltiplas transformações que promovem transições das realidades econômica, social, política e cultural e que impactam a vida presente e futura da classe trabalhadora e da organização sindical.

Essas transformações podem ser caracterizadas por cinco transições estruturais, a saber: a transição tecnológica e digital, com destaque para a robótica, a inteligência artificial, os novos materiais e a biotecnologia; a transição demográfica, que indica um rápido envelhecimento porque a população vive mais e tem menos filhos; a transição ambiental e climática, com a poluição do meio ambiente e o aquecimento do clima pelo efeito dos gazes estufa; a transição política, com a fragilização das democracias, o crescimento da extrema-direita, os ataques ao Estado Democráticos de Direito e a liberdade; a transição de regulação e do valor político do trabalho, moldada pela desregulamentação trabalhista, pelas iniciativas para enfraquecer os sindicatos e pelo individualismo exacerbado.

O sindicalismo é o maior movimento organizado da sociedade civil no mundo e desempenhou ao longo dos dois últimos séculos um papel essencial para a promoção dos direitos trabalhistas, da qualidade dos empregos, do crescimento dos salários e a promoção e defesa da democracia e de suas instituições. Continuamos desafiados à cumprir essa missão histórica em um novo contexto econômico, social, político e cultural.

Refletir sobre esse desafio sindical é o que realiza o jurista e assessor do movimento sindical espanhol, Antonio Baylos, no livro “¿Para qué sirve un sindicato? Instrucciones de uso1. Em um contexto de crise do trabalho assalariado, avanço do neoliberalismo, precarização e individualização das relações laborais, questionar a razão de ser do sindicato é, além de um exercício analítico, uma necessidade histórica. Este artigo apresenta cinco eixos fundamentais desenvolvidos por Baylos, que ajudam a compreender a relevância do sindicato diante das transições que ocorrem no mundo contemporâneo.

O sindicato como pilar da democracia

Os sindicatos são expressões organizativas autônomas da classe trabalhadora e cumprem um papel essencial na consolidação de regimes democráticos. A democracia se realiza nas urnas, nos parlamentos, nos governos, nos espaços de participação social. Mas a democracia também se realiza e se fortalece a partir dos locais de trabalho e nas lutas que a classe trabalhadora promove. O sindicato é o instrumento que permite aos trabalhadores exercerem sua cidadania social, lutando por condições dignas de trabalho, emprego de qualidade, melhores salários, proteção social e previdenciária, igualdade de oportunidades e participação.

Nesse sentido, para Baylos, o sindicato não é uma peça acessória da democracia, mas um de seus fundamentos. A sua existência fortalece os mecanismos de deliberação social, amplia o controle popular sobre as decisões econômicas e aprofunda a dimensão cidadã do sistema democrático. Em contextos de autoritarismo, os sindicatos são também espaços de resistência e defesa das liberdades civis e políticas.

Sindicato como contrapoder social

Outro aspecto que Baylos enfatiza é que os sindicatos têm uma função central de contrapoder frente à hegemonia do capital nas relações de trabalho. Em uma sociedade estruturalmente desigual, em que os patrões concentram poder econômico e institucional, os trabalhadores só conseguem defender seus interesses através da ação coletiva. O sindicato é o veículo desse contrapoder porque articula, mobiliza, organiza, representa e negocia.

Esse contrapoder não é apenas reativo, mas propositivo. Os sindicatos atuam na construção de alternativas, na formulação de propostas de regulação social do trabalho, na intervenção sobre a política econômica, na defesa de direitos sociais amplos e de políticas públicas universais. Baylos reafirma que o sindicato deve ser um sujeito político transformador, com projeto próprio e autonomia diante de governos e partidos.

Negociação coletiva como direito fundamental

Um dos pontos centrais do pensamento de Baylos é a afirmação da negociação coletiva como um direito fundamental dos trabalhadores. Trata-se de uma dimensão inalienável da autonomia sindical, reconhecida por convenções da OIT – Organização Internacional do Trabalho e constituições democráticas. A negociação coletiva é o meio através do qual os trabalhadores participam da regulação das condições de trabalho, dos salários, dos tempos de descanso e das formas de organização produtiva.

Sem negociação coletiva, o trabalho é regulado exclusivamente pelo poder unilateral do empregador ou pela legislação, que muitas vezes sofre pressões para ser flexibilizada. A negociação coletiva democratiza o local de trabalho, cria equilíbrio de forças, e permite adaptar normas gerais a condições setoriais e locais. Sua existência efetiva exige organização sindical forte, legislação protetiva e respeito institucional.

Representar todos os trabalhadores

A diversidade de formas de ocupação (assalariados com e sem carteira assinada; servidores estatutários; conta-própria, autônomos e trabalhadores independentes; cooperados; trabalhadores domésticos; trabalhadores de cuidados; pejotizados, microempreendedores individuais, entre outras) é um desafio estratégico a ser enfrentado pelo sindicalismo. Por isso, Baylos faz uma crítica contundente aos modelos sindicais excludentes, que representam apenas setores estáveis e com contratos protegidos. Para ele, o sindicato do século XXI precisa ampliar sua base de representação, incluindo trabalhadores precários, informais, autônomos dependentes, imigrantes e jovens.

Essa ampliação exige novas formas organizativas, linguagem acessível, escuta ativa e capacidade de intervenção nos novos espaços de trabalho (plataformas digitais, cadeias produtivas fragmentadas, cooperativas etc.). O sindicato precisa ser um instrumento de inclusão social e laboral, contribuindo para reduzir desigualdades e democratizar o acesso a direitos.

Enfrentar os desafios contemporâneos

O sindicalismo vive desafios globais: queda na densidade sindical e na sindicalização, fragmentação da classe trabalhadora e das formas de representação (categorias mais fracionadas e sindicato por empresa), ofensiva neoliberal para flexibilizar direitos trabalhistas e sociais. Baylos analisa esses desafios e, principalmente, aponta caminhos para enfrentá-los, com destaque para:

  • O combate à “uberização” e à falsa autonomia dos trabalhadores de plataforma;
  • A resistência à desregulamentação e à precarização do trabalho;
  • A necessidade de revitalizar os espaços de negociação coletiva;
  • A articulação com outros movimentos sociais e ambientais;
  • A reinvenção das práticas de base, com foco na escuta e no cuidado.

O autor propõe investir em “nova cultura sindical”, baseada na democracia interna, na participação ativa dos filiados e na construção de alianças sociais amplas. Para Baylos, o sindicato continua sendo uma ferramenta essencial da luta por justiça social, desde que saiba se renovar sem perder sua identidade de classe.

Considerações finais

“Para que serve um sindicato?” não é apenas uma pergunta retórica. Em tempos de retrocessos sociais, de mercantilização da vida e de ataque aos direitos trabalhistas e sindicais, responder a essa pergunta é um ato de resistência e de ousadia política. Antonio Baylos oferece reflexões críticas e inspiradoras. Ele mostra que o sindicato é mais do que um instrumento de defesa: é uma escola de democracia, um agente de transformação social, um contrapoder imprescindível para que a igualdade deixe de ser uma promessa e se torne uma realidade concreta.

  1. “¿Para qué sirve un sindicato? Instrucciones de uso”, Antonio Baylos, Los Libros de la Catarata Editora, 192 páginas, 2021.

Os grilhões neoliberais, por Ferreira Costa & Lima Ferreira

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Frederico Jorge Ferreira Costa & Emmanoel Lima Ferreira

A Terra é Redonda – 21/07/2025

A ideologia neoliberal, ao se consolidar como a única verdade econômica, aprofundou desigualdades sociais e econômicas, resultando em crises sociais e políticas que ameaçam a democracia e a estabilidade global

1.

Numa primeira aproximação, pode-se dizer que a ideologia neoliberal é uma espécie de tentativa de superação da crise do “velho capitalismo” por uma nova e dinâmica corrente do pensamento econômico, gestada a partir da renovação da Escola Austríaca.

Friedrich von Hayek (1889-1992), intelectual da Escola Austríaca e ganhador do Prêmio Nobel de 1974 em Ciências Econômicas, teve sua obra, O caminho da servidão (1944), transformada numa escritura sagrada para o neoliberalismo, ao lado do monetarismo moderno da Escola de Chicago e dos mitos que envolvem as teses da globalização e estabilidade.

No frigir dos ovos, a aplicação generalizada do receituário neoliberal desde a década de 1990, configurou, na dimensão teórica, os fundamentos do empobrecimento do debate econômico atual.

Essa verdade única aplicada por governos neoliberais aprofundou a concentração de renda, o aumento da criminalidade, a precarização de empregos, a desintegração familiar, a queda de qualidade na saúde e educação públicas, a falta de horizontes e de empregabilidade para jovens, a concentração e centralização crescente do capital, a marginalização de faixas inteiras da população economicamente ativa em diversos graus, além do estímulo a guerras e alternativas políticas antidemocráticas (ditadura, fascismo, golpes de Estado).

Em resumo, há uma grave crise social, cada vez mais aprofundada pelo credo neoliberal e suas políticas, e a resposta neoliberal para esta é o ajuste fiscal, privatizações, ataques às condições de vida dos trabalhadores e mais guerras. Não é à toa que Samir Amin (1931-2018), intelectual egípcio, caracterizou o imperialismo dos Estados Unidos de império do caos. É o que estamos presenciando na Líbia, Síria, na guerra da Otan e dos Estados Unidos contra a Rússia na Ucrânia, nos golpes na América Latina.

Desde 1999, após a crise cambial, o governo Fernando Henrique Cardoso substituiu a âncora cambial pelo regime de metas de inflação. As políticas neoliberais consubstanciadas no Consenso de Washington colocavam como centro das políticas macroeconômicas a estabilidade monetária substituindo o objetivo da busca do pleno emprego, nos países centrais, e a superação do subdesenvolvimento, nos países periféricos, por meio da intervenção e planejamento estatal.

A inflação se torna o grande inimigo e o combate a esta foi o abre-alas para privatizações, retirada de direitos sociais, abertura da conta de capitais, desindustrialização e financeirização da economia. Nessa perspectiva, o controle da taxa de inflação torna-se uma função da política monetária através de ajustes na taxa básica de juros.

Logo, as autoridades monetárias guiam-se por metas de inflação para tentar manter a taxa de inflação em torno destas metas. Em termos de operacionalidade, o Comitê de Política Monetária (Copom) é responsável por definir o valor da taxa básica de juros (a famosa taxa Selic) com base em uma meta para a inflação definida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) e avaliada segundo a trajetória do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

2.

A teoria monetarista afirma que a elevação da taxa de juros é um instrumento de controle inflacionário que produziria efeitos desestimulantes sobre consumo de bens duráveis, investimentos produtivos e investimento residencial, reduzindo a demanda agregada com o objetivo de diminuir a inflação e reequilibrar as contas públicas por meio das políticas de austeridade para retomar a confiança dos investidores.

A “demanda agregada” é um conceito da macroeconomia que representa a quantidade total de bens e serviços que todos os agentes econômicos (famílias, empresas, governo e setor externo) estão dispostos a adquirir a diferentes níveis de preços em um determinado período. É um indicador fundamental para avaliar a atividade econômica de um país e é frequentemente utilizado para guiar políticas públicas neoliberais que visam o crescimento econômico e o controle da inflação, que é um dogma.

Pois, para que não haja inflação todo custo social é justificável. Por isso, a estabilidade seria central para combater a inflação e gerar crescimento interno. A ideia de estabilidade monetária e austeridade fiscal está vinculada à analogia dos gastos públicos ao orçamento doméstico. O que é algo completamente estapafúrdio pois, o Estado pode se endividar em sua própria moeda, imprimir dinheiro, e cobrar impostos dos mais ricos (taxação das grandes fortunas).

Do ponto de vista, histórico, pode-se ver que o crescimento econômico de um país depende de inúmeras variáveis, não apenas da inflação. Um dos aspectos centrais do crescimento é o investimento em formação bruta de capital fixo. A China, por exemplo, investe mais de 40% do Produto Interno Bruto (PIB) na produção de bens de capital (máquinas, equipamentos etc.). Ela não caiu no conto de fadas das políticas neoliberais e nem pratica uma política de austericídio.

Segundo a teoria monetarista, a inflação é causada por excessos de demanda, então a redução da demanda agregada acompanhada de aumento de desemprego possibilitaria o controle inflacionário. Isso explica por que após a adoção de políticas neoliberais, desde o governo FHC, o crescimento do Brasil é chamado de voo de galinha. Toda vez que o Brasil começa a crescer a taxas maiores, vem a pressão para aumentar as taxas de juros brecando o crescimento em nome do combate a inflação de demanda.

3.

Mas algum setor social, ganha com os grilhões neoliberais que ainda amarram a política econômica do governo Lula?

Resposta, claro que sim. Porque uma parcela importante da dívida pública é composta de títulos indexados à taxa Selic, portanto, o gasto com pagamentos de juros é influenciado pelas alterações dessa taxa, o que mostra a conexão entre política fiscal e política monetária. Assim, a cada elevação da taxa aumentam os problemas da dimensão fiscal pelas consequências no custo da dívida pública, que favorecem frações das classes dominantes do Brasil.

Como o Brasil é um país capitalista periférico de passado escravista e colonial, há profundas desigualdades de propriedade, de riqueza e, consequentemente de renda. A fração de burguesia (capital financeiro), que detêm a Dívida Pública Federal sob a forma da propriedade de títulos de dívida pública é o setor hegemônico no bloco de poder ao lado da burguesia agrária (agronegócio).

Então, quando a taxa de juros se eleva o capital financeiro e as famílias de alta renda, milionários e bilionários ganham cada vez mais. Simultaneamente, as famílias mais pobres e endividadas enfrentam maiores dificuldades em quitar suas dívidas, elevando as taxas de inadimplência e de empobrecimento. Assim, a taxa Selic exerce um forte poder concentrador de renda por drenar recursos dos mais pobres para os mais ricos através de pagamento de juros.

Eis a função classista das políticas econômicas neoliberais e monetaristas: concentração maior de riquezas nas mãos de uma minoria cada vez menor. Além da orientação monotemática no ajuste fiscal, nas políticas de austeridade e no teto de gastos para manter o parasitismo financeiro de uma ínfima minoria.

Por isso, é necessário que o governo Lula vire à esquerda, rompa com o arcabouço fiscal que privilegia o pagamento da dívida pública em detrimento do investimento em saúde, educação, e políticas que gerem emprego e renda.

Urge a definição e mobilização de uma pauta que contemple: o fim do arcabouço fiscal e da autonomia do Banco Central; estatização do sistema financeiro para que este sirva ao desenvolvimento nacional; reforma agrária; reestatização das empresas privatizadas. Este é o único caminho para vencer a extrema direita e o imperialismo.

Isto significa um rompimento com a política de aliança com as frações hegemônicas das classes dominantes (frente ampla) e as políticas econômicas que favorecem os interesses dessa minoria. Isso exigiria o apelo às grandes maiorias e às suas reivindicações. O futuro deve ser depositado nas mãos plebeias e trabalhadoras de diversas etnias, gêneros e singularidades que constroem o Brasil.

Frederico Jorge Ferreira Costa é professor da Faculdade de Educação da Universidade Estadual do Ceará (UECE).

Emmanoel Lima Ferreira é professor de economia na Universidade Regional do Cariri (URCA).

As ameaças da economia do excesso, por Ricardo Abramovay

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Ricardo Abramovay – A Terra é Redonda – 19/07/2025

A economia do excesso está na raiz das doenças que mais matam no mundo, com ultraprocessados e uso indiscriminado de antibióticos na criação animal como principais vilões

Produzir cada vez mais para uma população cujo consumo alimentar está na raiz das doenças que mais matam no mundo, esta é a marca fundamental de um sistema que se encontra sob contestação crescente, não só na comunidade científica e nas organizações da sociedade civil, mas também junto a setores expressivos dos investidores privados.

Relatório recente da Planet Tracker, apoiado pelo Mitsubishi UFJ Financial Group, o sétimo maior banco do mundo, com US$ 2,8 trilhões de dólares em ativos, alerta para dois riscos a que se expõem atualmente os investidores no setor alimentar.

O primeiro se refere aos ultraprocessados. O estudo se apoia na metodologia NOVA, elaborada de forma pioneira pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (NUPENS/FSP/USP) e que consagrou globalmente a classificação dos alimentos não apenas por seu teor nutricional e sim por seu grau de processamento.

O que está em questão não é a industrialização dos alimentos e sim a elaboração de produtos cuja composição tem um grau de artificialidade incompatível com o funcionamento saudável do sistema digestivo. São produtos viciantes, de alto teor calórico e baixo teor nutricional.

O estudo mostra que norte-americanos e britânicos têm nos ultraprocessados 60% de seu consumo calórico diário. O resultado é uma pandemia de obesidade, que atinge nada menos que 40% da população norte-americana. A obesidade, no mundo, em crianças e adolescentes (5 a 19 anos) passa de 1,9% em 1990 a 8,2% em 2022.

No Brasil, ela atingia 3,2% das pessoas nesta faixa etária em 1990 e passa a 15,5% em 2022. Um bilhão de pessoas no mundo vivem com obesidade, que é o vetor principal de doenças não transmissíveis (diabetes 2, doenças cardiovasculares, vários tipos de câncer e outros tipos de enfermidades que a pesquisa científica vem sistematicamente revelando) responsáveis por 42 milhões de mortes anuais e por gastos que chegam a 3,3% do PIB dos países da OCDE.

O relatório da Planet Tracker mostra o caráter nefasto das campanhas publicitárias em torno de produtos ultraprocessados, sobretudo nas redes sociais. O mercado de influenciadores (cujo faturamento anual passa de US$ 1,7 bilhão em 2016 para US$ 24 bilhões em 2024) é particularmente importante: segundo a análise de 400 vídeos de influenciadores voltados ao público infantil, 65% da publicidade incorporada em suas mensagens referiam-se à alimentação, com 91% deste total promovendo ultraprocessados. Dois terços das recomendações vindas de celebridades nos Estados Unidos apoiam alimentos e bebidas não saudáveis.

Os investidores podem se proteger contra os incontornáveis impactos desta verdadeira apologia à doença em seus ativos, apoiando a taxação de produtos nocivos à saúde e a rotulagem de advertência nas embalagens, estimulando mudanças na composição dos produtos e restrições tanto ao marketing quanto à colocação de artigos prejudiciais à saúde em prateleiras ao alcance de crianças.

Um box do relatório faz um “chamado à ação para os investidores”, do qual o primeiro item é: “incentivar as empresas a reduzirem sua dependência de alimentos ultraprocessados”. Além disso o trabalho denuncia os subsídios agrícolas globais de US$ 650 bilhões, voltados fundamentalmente a grãos (cereais e óleos) e açúcar e constata que na alimentação saudável este tipo de apoio é raro.

Ao contrário das organizações que teimam em apontar as restrições preconizadas pelo estudo da Planet Tracker como obstáculos à inovação ou à livre concorrência, o relatório mostra que as empresas que se antecipam e se adaptam às mudanças regulatórias para uma alimentação saudável têm vantagem competitiva derivada da valorização de suas marcas e da confiança daí decorrente junto a seus consumidores.

O segundo problema apontado no relatório da Planet Tracker é o uso em larga escala de antibióticos na criação animal (terrestre e aquática), que está origem de uma das mais importantes preocupações da Organização Mundial da Saúde: a resistência aos antimicrobianos, que resulta na emergência das superbactérias em ambientes hospitalares diante das quais os antibióticos conhecidos mostram-se cada vez mais ineficientes.

Estes riscos são exacerbados pela estagnação na descoberta de novos antibióticos. E, assinala o estudo, 73% dos antibióticos produzidos globalmente voltam-se a animais de criação industrial.

Trabalho recente publicado pela Cátedra Josué de Castro na revista científica Redes corrobora as conclusões do estudo da Planet Tracker. Antibióticos são, com imensa frequência, usados em substituição à boa higiene e a práticas que evitariam as contaminações. Além disso, eles são empregados tanto de forma preventiva como também para estimular o crescimento dos animais (sobretudo na avicultura e na suinocultura).

São práticas inerentes a uma concentração dos animais em espaços restritos que comprometem a dignidade e impõem estresse a seres dotados de inteligência, sensibilidade, capacidade comunicativa e de brincar e que só se viabilizam com o uso de produtos que ameaçam igualmente a saúde humana.

Mas será que os limites a estas práticas não ameaçam a oferta de produtos animais, cuja demanda é crescente? As medidas restritivas ao uso de antibióticos de forma preventiva e como fatores de crescimento, adotadas na União Europeia, não provocaram crise de abastecimento, respondendo, portanto, pela negativa a esta pergunta.

Além disso, é importante levar em conta algo verdadeiramente contraintuitivo: não só nos países mais ricos do mundo, mas também nos de renda média (como Brasil e China), o consumo de produtos animais é muito superior às necessidades metabólicas dos seres humanos, mesmo entre as camadas de baixa renda, como mostra trabalho que acaba de ser publicado na Revista de Saúde Pública por pesquisadores do NUPENS e da Cátedra Josué de Castro. Entre os 20% de menor renda da população brasileira a proporção dos que apresentam déficit proteico não passa de 3%.

Estimular práticas produtivas que não se apoiem no estresse animal e evitem o uso em larga escala de antibióticos é mais eficiente para a saúde humana e para o meio ambiente que cultivar o mito de um mundo ameaçado pela carência de calorias e de proteínas. O que está em questão, como mostra o trabalho da Planet Tracker, são os riscos sociais, mas também financeiros, daquilo que, no caso dos ultraprocessados e dos produtos animais, pode e deve ser chamado de economia do excesso.

Ricardo Abramovay é professor titular da Cátedra Josué de Castro da Faculdade de Saúde Pública da USP. Autor, entre outros livros, de Infraestrutura para o Desenvolvimento Sustentável (Elefante)

A dupla alienação do professor universitário, por João dos Reis Silva Júnior

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João dos Reis Silva Júnior – A Terra é Redonda – 23/07/2025


O desafio, hoje, é reconstruir sentidos para o trabalho docente e para a linguagem universitária. É preciso recusar a naturalização do cansaço e da perda do tempo partilhado. É necessário desobedecer ao mandato da eficiência que apaga a escuta, a dúvida e a sensibilidade

1.

A crise vivida pela universidade pública brasileira transcende os números do orçamento, a precarização das estruturas ou a mera falta de reconhecimento social. O núcleo desse processo reside em uma experiência dilacerante e pouco nomeada: o professor universitário, tornado figura central de uma engrenagem contraditória, é capturado por uma dupla alienação que esvazia tanto o sentido de seu trabalho quanto a potência de sua palavra.

No plano mais visível, a alienação material do docente revela-se na sobrecarga, nos múltiplos vínculos, nas tarefas que jamais se encerram. A sala de aula invade o lar, as plataformas digitais sequestram o tempo de descanso, os relatórios substituem o exercício pleno da reflexão.

O professor se multiplica em funções: orientador, pesquisador, executor de projetos, gestor de si e dos outros – quase sempre sem tempo para ser, de fato, mestre. A cada ciclo de avaliações, novas metas são impostas. A cada edital, renova-se a promessa de reconhecimento que nunca se realiza. O resultado é o acúmulo silencioso do cansaço, da frustração, da sensação de ausência nos espaços de afeto.

O trabalho docente, antes experiência de partilha, vira travessia solitária e marcada pela culpa: quantos jantares, quantos momentos com os filhos, quantas conversas fiadas são sacrificadas para atender a demandas institucionais que se renovam ao infinito.

Ao lado desse esgotamento objetivo, há uma alienação menos visível e ainda mais corrosiva: a expropriação da linguagem do próprio professor. O docente vê-se obrigado a comunicar-se com um léxico estranho, marcado pelo idioma dos editais, das métricas e das autoavaliações compulsórias. A palavra, que deveria ser espaço de invenção e de pensamento, é domesticada pela lógica do desempenho.

Relatórios, artigos e projetos são formatados para caber nas exigências institucionais e para pontuar em rankings que pouco dialogam com a experiência real da sala de aula e da pesquisa crítica. O docente aprende, não sem sofrimento, a apagar sua voz – e a falar segundo as regras do jogo. Perde-se, aí, o sabor do inesperado, da dúvida, do tropeço criativo, da escuta autêntica.

A universidade atual demanda professores que entreguem resultados, que ajustem sua prática à gramática da eficiência e do empreendedorismo. A experiência docente, assim, é recodificada: o gesto de ensinar converte-se em performance, o tempo de leitura é substituído pela ansiedade do próximo prazo, a orientação transforma-se em gerenciamento de trajetórias.

O professor é pressionado a transformar vocação em produtividade, criatividade em produto, dúvida em plano de metas. Quando o reconhecimento chega, ele já é moeda simbólica para outra competição. Quando falha, o fracasso é vivido como defeito pessoal, nunca como sintoma de um ambiente hostil.

2.

Essa dupla alienação – do trabalho e da palavra – não é vivida de modo uniforme. Ela se intensifica nos segmentos mais vulneráveis: docentes temporários, mulheres, negros, jovens, professores das regiões periféricas ou do interior. Esses grupos sofrem ainda mais o impacto das políticas de precarização e são frequentemente responsabilizados por sua própria exclusão.

O sofrimento, em vez de mobilizar solidariedade, é internalizado como culpa. O adoecimento físico e mental é tratado como infortúnio individual, nunca como parte de um projeto institucional que sacrifica pessoas para manter a engrenagem em funcionamento.

Apesar desse quadro adverso, há resistências. Mesmo nos interstícios de um sistema que impõe a obediência e sufoca a imaginação, alguns gestos escapam à captura: a aula que desacelera, a pesquisa que se recusa a caber nos formulários, a orientação que acolhe o silêncio, a escrita que ousa errar. Pequenas insubordinações persistem – e nelas, ainda pulsa a possibilidade de uma universidade mais aberta ao humano, menos entregue ao algoritmo.

O desafio, hoje, é reconstruir sentidos para o trabalho docente e para a linguagem universitária. É preciso recusar a naturalização do cansaço e da perda do tempo partilhado. É necessário desobedecer ao mandato da eficiência que apaga a escuta, a dúvida e a sensibilidade.

Isso só será possível se o professor recuperar, no exercício de sua palavra, a coragem do inacabado, da pausa, da hesitação – elementos que não cabem nos relatórios, mas sustentam toda experiência de pensamento autêntico.

A dupla alienação, portanto, não pode ser superada apenas por reformas administrativas ou pela ampliação de recursos. Trata-se de resgatar o sentido do comum, de revalorizar a linguagem como território de invenção, de fortalecer laços de solidariedade e crítica no cotidiano universitário.

Enquanto o ofício de ensinar for visto apenas como um número a ser preenchido, um índice a ser perseguido, a universidade continuará sendo campo de sofrimento e não de formação. Somente quando a fala do professor recuperar seu poder de nomear o mundo – mesmo que tropeçando, mesmo que hesitando – será possível inaugurar outros modos de existir e pensar na universidade capturada.

João dos Reis Silva Júnior é professor titular do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Autor, entre outros livros, de Educação, sociedade de classes e reformas universitárias (Autores Associados)

Referências

BAMBIRRA, Vânia. O capitalismo dependente latino-americano. Rio de Janeiro: Graal, 1978.

DOS SANTOS, Theotonio. A teoria da dependência: balanço e perspectivas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1973.

OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.

SILVA JÚNIOR, João dos Reis. |Universidade Inacabada: Razão e Precariedade. Campinas. Editora Mercado de Letras, 2026.

Inteligência artificial (de)generativa, por Ricardo Antunes

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Ricardo Antunes – A Terra é Redonda – 14/08/2025

Sabemos que a tecnologia foi resultado da inventividade humana. Com o advento do capitalismo, a tecnologia foi se metamorfoseando e adequando ao modus operandi do capital. Toda “inovação” é para de fato valorizar mais e, assim, acumular muito mais!

1.

A era da expansão dos algoritmos e da Inteligência artificial, qualquer previsão sobre o futuro do trabalho corre o risco de ser mais um embuste. Impulsionada pela financeirização do capital, a Inteligência artificial é explícita em seu objetivo: transferir para as máquinas inteligentes tudo que hoje é realizado pelo trabalho humano.

Alguém poderia dizer: mas isso não é bom? Não teremos trabalhos mais qualificados, mais “criativos”, vivenciando um mundo laborativo mais humano e mais tempo de vida?

A resposta está nas atividades que se expandem nas sombras da Inteligência artificial, com seus microtrabalhos ultraprecarizados, especialmente (mas não só) no Sul global. Realizando jornadas ilimitadas, excluídos de todos os direitos do trabalho, recebendo níveis de remuneração indigentes, de modo a gerar informações para a Inteligência artificial. E quem encontra trabalho nas startups está experimentando uma “invenção” chinesa (o S-996): jornadas das 9 da manhã às 9 da noite, 6 dias de trabalho, totalizando 72 horas semanais. Eis os novos experimentos que se expandem neste “admirável mundo do trabalho” na era da Inteligência artificial.

A síntese é límpida: eliminação de “trabalho vivo”, em uma gama enorme de atividades, substituídos pelo “trabalho morto”, como se vê na ciberindústria. Mas, atenção, há luz no fim do túnel para os descartáveis e os supérfluos: sobreviver por meio do trabalho uberizado, que se expande globalmente nas plataformas digitais.

Plataformas que se utilizam do mito do “empreendedorismo” visando proletarizar ao limite, mas se recusando a reconhecer a condição de assalariamento; impondo, através do “comando invisível dos algorítmicos”, jornadas prolongadas, além de vedar peremptoriamente qualquer forma de proteção do trabalho. Tendência que defini, em O privilégio da servidão, como “nova era de escravidão digital” (Boitempo, 2020). E que os CEOs, esses novos predadores digitais, consideram como sendo “moderna”.

Um aparente paradoxo aflora, e um novo espectro se avizinha: com a expansão acelerada da Inteligência artificial generativa, sem controle e sem regulamentação, estamos presenciando, em plena era digital, a retomada de modalidades pretéritas de trabalho, pautadas pela trípode exploração, expropriação e espoliação, vigente no início da Revolução Industrial.

crowdsourcing, hoje, é uma variante digital e algorítmica do velho outsourcing, no qual homens, mulheres e crianças trabalhavam à margem da legislação protetora do trabalho, com jornadas ilimitadas e condições de trabalho desumanas. [1]

Estamos, então, frente à Inteligência artificial generativa? Ou adentramos perigosamente na fase da Inteligência artificial degenerativa, concebida e plasmada pelo sistema de metabolismo antissocial do capital?

Sabemos que a tecnologia foi, desde sua gênese, resultado da inventividade humana, que nasceu com o primeiro microcosmo familiar. Com o advento do capitalismo, a tecnologia foi se metamorfoseando e adequando ao modus operandi do capital. Toda “inovação” é para de fato valorizar mais e, assim, acumular muito mais!

Podemos assim vaticinar o resultado em relação ao trabalho: um novo espectro ronda o mundo do trabalho, o espectro da uberização. Mas erra quem pensa que não há resistência.

2.

Foi durante a campanha eleitoral de 2024 que nasceu o movimento VAT [Vida Além do Trabalho], contra a jornada 6X1, contemplando dimensões centrais da vida cotidiana, que resumo a seguir:

(i) a redução da jornada de trabalho se configura como uma ação central da classe trabalhadora para minimizar a lógica destrutiva do capital, uma vez que acarreta, de imediato, a redução do desemprego; (ii) constituiu-se em antídoto real à exploração, tanto absoluta como relativa do trabalho, como no início da Revolução Industrial (com o ludismo).

(iii) Opõe-se, em alguma medida, ao despotismo fabril das eras taylorista/fordista e toyotista e, hoje, ao trabalho uberizado. Vale recordar o excepcional breque dos apps, de 31 de março e 1 de abril (dia da mentira) de 2025, contra o despotismo algorítmico, mais invisível, mais interiorizado, que invade sorrateiramente nossa vida e nosso trabalho.

(iv) lutar contra o 6×1 possibilita também vislumbrar outro ponto crucial: uma vida desprovida de sentido no trabalho é incompatível com uma vida cheia de sentido fora do trabalho, [2] (v) o que nos leva a sonhar com o fim das barreiras entre tempo de trabalho e tempo livre e, ancorados em outra forma radicalmente distinta de Inteligência artificial, vislumbrar uma nova sociabilidade emancipada, autodeterminada, com indivíduos livremente associados, fora dos constrangimentos do capital.

(vi) Por fim, ao lutar pela redução da jornada, poderemos indagar: produzir o quê? E para quem?

Assim, o mundo do trabalho se entrelaça, decisivamente, com outro imperativo crucial de nosso tempo: impedir a destruição da natureza, como nossos povos originários nos ensinaram.

Ricardo Antunes é professor titular de sociologia na Unicamp. Autor, entre outros livros, de O capitalismo pandêmico (Boitempo).

Notas

[1] Ver Icebergs à Deriva: o trabalho nas plataformas digitais, (Antunes, R., Organizador, Boitempo, 2023) e Uberização, Trabalho Digital e Indústria 4.0 (Antunes, R., Organizador Boitempo).

[2] Ver Os Sentidos do Trabalho, edição especial de 25 anos (Boitempo, 2025), particularmente o capítulo X.

Dejetos do capital, por André Márcio Neves Soares

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André Márcio Neves Soares – A Terra é Redonda – 12/08/2025

A análise crítica das atrocidades contemporâneas revela um mundo onde a violência e a desigualdade são perpetuadas por interesses econômicos e políticos, destacando a necessidade urgente de uma reflexão ética e moral

“Quem sabe/o Super-homem venha nos restituir a glória/mudando como um Deus/o curso da história” (Gilberto Gil).

1.

Se eu pudesse resumir em uma frase a quadra histórica em que vivemos, com certeza seria esta: o mundo surtou! Senão vejamos:

Há quase dois anos o mundo assiste, sem interferir, a um dos maiores genocídios desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a saber, o genocídio dos palestinos pelo Estado de Israel, que, considerando as violências sofridas pelo povo judeu no século passado, deveria ser um farol ético e moral na luta contra novos holocaustos.

Mas dizer que o mundo optou por não interferir é um eufemismo bastante grosseiro, na medida em que o relatório da encarregada especial da ONU para os territórios palestinos, Sra. Francesca Albanese, denunciou publicamente que inúmeras empresas estariam se beneficiando economicamente da guerra em Gaza, conflito que classificou como um “genocídio” cometido por Israel. [1]

Neste contexto, a validação pela ONU do número de mortos no conflito, desde que uma sombria Fundação Humanitária de Gaza (GHF), ligada a Israel e aos Estados Unidos, passou a controlar a distribuição de alimentos e ajuda humanitária, é simplesmente surreal. Aterrorizante mesmo! Já são pelo menos 1.200 pessoas mortas enquanto tentavam obter algum tipo de alimento, sendo que 966 delas foram abatidas quando estavam próximas de instalações da GHF.

De fato, ao contrário do que Israel sempre alega, não são integrantes do Hamas que têm se aproximado desses poucos postos de distribuição de alimentos e ajuda, mas pessoas comuns, inclusive menores de idade. O tiro ao alvo praticado pelos soldados das Forças de Defesa de Israel (IDF) traduzem o sentimento mórbido e de impunidade de uma sociedade doente pela vingança e pelo poder.

Por outro lado, três anos e meio se passaram desde que a Rússia invadiu a Ucrânia e, até o momento, as principais potências do planeta não lograram obter um acordo para o cessar-fogo. Na verdade, a OTAN continua a abastecer a Ucrânia de armamentos, principalmente através dos Estados Unidos, como se ainda houvesse esperança de a Ucrânia passar a integrá-la.

O saldo desse conflito até agora é terrível para ambos os lados: para a Rússia, virar um estado pária para o Ocidente tem consequências ainda pouco estudadas para sua população; para a Ucrânia, as consequências são ainda mais nefastas, em razão das baixas militares, considerando mortos e feridos, da destruição da sua infraestrutura e agora do acordo lesa-pátria de transferência dos recursos naturais que Volodymyr Zelensky assinou com os Estados Unidos de Donald Trump – notadamente das “terras raras” – em troca de mais armamentos. O ultimato de Donald Trump para que a Rússia faça um acordo de cessar-fogo de 10 dias, sob pena de novas sanções, é só mais um capítulo dessa macabra festa de mortes desnecessárias que parece não ter fim.

Por falar nos Estados Unidos, em mais um capítulo da distopia do governo de Donald Trump, surgiram denúncias de uma espécie de “déja vu” da época da invasão do Iraque e do escândalo da prisão de Abu Ghraib. Com efeito, o recente relatório da ONG Human Rights Watch sobre as aberrações praticadas nos centros de imigração no sul da Flórida – especialmente em três deles, quais sejam, o Krome North Service Processing Center, o Broward Transitional Center (BTC) e o Federal Detention Center (FDC) – remetem a um momento de barbárie praticada pelos Estados Unidos e Inglaterra no Iraque invadido e destruído, sob o falso pretexto das armas químicas de Saddam Hussein.

A infâmia agora está sendo praticada em solo americano, contra imigrantes que não possuem histórico criminal ou, se possuem, não são de alta periculosidade. O grave erro deles é estar no lugar errado, num momento de guinada americana para a extrema direita.

2.

O pior de tudo isso é que Donald Trump parece estar conseguindo seus objetivos de colocar as instituições democráticas estadunidenses nas cordas, com o apoio da maioria de conservadores no legislativo e na Suprema Corte. Bem de ver, o sistema de pesos e contrapesos que vem marcando a democracia americana desde o último quartel do século XVIII parece bem disfuncional na contemporaneidade.

E nem mesmo o escândalo do caso Epstein, no qual Donald Trump parece estar bastante envolvido (para dizer o mínimo) – e que se refere ao muito espinhoso tema do tráfico de mulheres e da prostituição infantil -, parece arrefecer a sanha de um desequilibrado mental. Com efeito, em que pese durante a sua campanha de retorno à Casa Branca tenha prometido expor os detalhes desse escândalo e os envolvidos – não houve punições, porque Epstein teria “supostamente” se enforcado na cadeia -, depois de eleito, Donald Trump passou a negar tudo, inclusive a existência de uma lista dos envolvidos, após ser comunicado pelo FBI de que seu nome estaria nela.

Noutro giro, como se tudo isso fosse pouco, a notícia de que as quatro pessoas mais ricas da África detêm, juntas, 57,4 bilhões de dólares (R$ 318,4 bilhões) e são mais ricas que metade da população do continente[2] – segundo relatório divulgado no dia 10/07/2025 pela Oxfam, ONG de combate à pobreza e à desigualdade – choca pela crueldade desses números, especialmente no segundo continente mais populoso e que abriga a população mais pobre do planeta, apesar das suas quase inesgotáveis riquezas minerais.

E o show de horrores não fica só nisso, pois, ainda segundo a Oxfam, os 5% mais ricos do continente detêm quase 4 trilhões de dólares (R$ 22,2 trilhões) em riqueza, quase o dobro do PIB brasileiro em 2024 (de 2,18 trilhões de dólares, segundo o Banco Mundial). O valor também é mais do que o dobro da riqueza dos 95% restantes que vivem no continente.

Ainda sobre o continente africano, é preciso mencionar que alguns países de lá, como a Nigéria, o Sudão do Sul e a República Democrática do Congo, estão mergulhados em guerras locais intermináveis. Na Nigéria, inclusive, uma crise de fome sem precedentes se anuncia na porção norte do seu território e pode deixar, pelo menos, cinco milhões de crianças em desnutrição aguda.

Lá, grupos jihadistas como o Boko Haram têm potencializado os conflitos pelo controle de terras aráveis e, por consequência, pelo poder. No Congo, a disputa entre as forças policiais do país e os mercenários do grupo M23 –o apoiado por Ruanda e, sub-repticiamente, pelos Estados Unidos – pelas riquezas minerais já deslocou mais de 7 milhões de pessoas de seus vilarejos, e nem a proposta de paz surgida na mesa patrocinada por Angola parece amainar o conflito.

Por último, mas não menos pior, no Sudão do Sul o cenário é de guerra civil, semelhante ao dos conflitos de 2013 e 2016, que deixaram mais de 400 mil mortos. O alerta tem sido foi feito pelo secretário-geral da ONU, António Guterres. Com efeito, forças leais a dois generais rivais estão competindo pelo controle do país há vários anos e, como costuma acontecer, os civis são os mais atingidos, com dezenas de mortos e centenas de feridos.

3.

Volvendo o enfoque, a entrada em vigor das novas tarifas determinadas pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, promete colocar ainda mais lenha na fogueira, no contexto do seu desafio à ordem comercial globalizada. Resta evidente que a imposição estadunidense de tarifas sobre as exportações de quase 200 países é o início de uma nova ordem comercial que os Estados Unidos pretendem levar adiante para seu próprio benefício.

Para além da óbvia era de incerteza que essas tarifas imporão ao mundo, fica a sensação de que os Estados Unidos desejam a volta do estado da natureza hobbessiano de guerra de todos contra todos. Assim, o soberano, Estados Unidos da América, pela graça do seu novo Rei, Donald Trump, poderão estabelecer um novo contrato social onde os indivíduos (Estados) abram mão de parte de sua liberdade em troca da proteção e segurança proporcionadas pela principal potência militar do planeta.

O principal problema dessa investida final dos Estados Unidos pela manutenção da hegemonia mundial, diante dos claros sinais de obsolescência de sua economia, é que Donald Trump esqueceu de combinar com os chineses.

Deveras, com a China crescendo a 5,2% no último trimestre e sendo atualmente o chão de fábrica do mundo – com proeminência em áreas tão vitais para o progresso como telecomunicações, computação pessoal e tecnologia verde, além de deter as maiores reservas dos minerais considerados fundamentais para diversas indústrias, incluindo tecnologia, energia e defesa, os 17 elementos químicos com propriedades magnéticas, luminescentes e eletroquímicas únicas denominados de “terras raras” –, parece improvável que os Estados Unidos retomem a dianteira no processo de desenvolvimento de novas tecnologias nas próximas décadas.

Daí a corrida maluca de Donald Trump para abocanhar as riquezas minerais da Ucrânia, do Congo e até do Brasil, como notificado recentemente.

4.

Quero finalizar este texto mencionando dois dos mais profícuos pensadores do atual momento histórico, a saber, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han e o cientista político camaronês Achille Mbembe.

Byung-Chul Han cita em Capitalismo e impulso de morte,[3] o escritor e médico austríaco Arthur Schnitzler (1862 – 1931), que compara a destrutividade da humanidade com o bacilo. Uma história contagiosa mortal de crescimento e autodestruição. Também cita Freud (1856 – 1939), no seu livro O mal-estar na cultura que aponta o ser humano como uma “besta selvagem a quem é estranha a proteção da própria espécie”.

E, para completar o quadro, relembra o economista francês Bernard Maris, morto em 2015 no ataque terrorista ao Charlie Hebdo, que afirma, na sua obra Capitalisme et pulsion de mort, que o capitalismo canaliza as forças de destruição na direção do crescimento. Esses e outros citados por Byung-Chul Han em seus escritos são fundamentais para corroborar sua principal tese: a de que o crescimento é, na verdade, uma proliferação cancerígena e sem rumo.

Com efeito, baseado num sistema produtor de mercadorias (capitalismo) que tem como força motora o impulso de morte, ou seja, a violência intimamente ligada com a consciência da morte, a lógica de acumulação domina a economia da violência. Por conseguinte, a relação perversa de dominância que surge dessa lógica transformou o capitalismo em um sistema econômico que aspira a acumulação infinita.

Com sua própria negação da morte, o capitalismo entra em paradoxo, pois precisa haver morte para que a vida viva. O morto-vivo frio, brutal e indiferente aos seus semelhantes nos hospitais, na labuta diária ou mesmo nas guerras denotam a atual adaptação total da vida humana à necropolítica do neoliberalismo.

Já Achille Mbembe afirma, no seu livro Democracia como comunidade de vida,[4] que a democracia é a nossa última utopia. Realmente, ao considerar que o futuro da humanidade está intimamente atrelado ao futuro da democracia, refuta a possibilidade de um futuro humano fora do nosso planeta.

O problema foi que a democracia ocidental, tão badalada depois da Segunda Guerra Mundial, e que funcionou relativamente bem nos chamados “trinta anos dourados”, ainda estava baseada num tipo de “humanismo ideológico racialmente exclusivo no apogeu da conquista e da ocupação colonialista” (pág.17). Nessa toada, o neoliberalismo, filho bastardo do capitalismo industrial, promove a acumulação do capital, por via do progresso tecnológico desmesurado, de modo cada vez mais intenso, extrativo e predatório, sob a lógica da descartabilidade humana.

Em outras palavras, com o acesso ao trabalho cada vez mais remoto, somos caracterizados como supérfluos, desnecessários, ou pior … como dejetos. Portanto, para Achille Mbembe, o colonialismo de povoamento, como atualmente Israel tenta impor aos palestinos (em Gaza é apenas o mais midiático, mas está ocorrendo em outros lugares), é uma estrutura não um acontecimento isolado. Para eliminar o nativo é preciso um genocídio único.

Como se sabe, o herói alienígena denominado “super-homem” é uma invenção do império americano. Por muitas décadas ele representou o poderio quase inabalável da atual e única hiperpotência mundial (ainda que os sinais de decadência dela sejam hoje bem evidentes). Seja como for, a figura desse herói representou bem as virtudes estadunidenses exportadas mundo afora, apesar do lixo jogado para debaixo do tapete em relação à sua política externa de subjugação dos países que gravitavam em sua órbita de influência, consoante seus interesses mais mesquinhos.

Infelizmente, nesses tempos neofascistas de Donald Trump e cia, nem mesmo o Super-homem poderia nos restituir a glória. Se para Achille Mbembe o colonialismo é um fascismo incipiente (pág. 31), nos EUA de Donald Trump o Super-homem seria deportado para Kripton por não ser supremacista.

André Márcio Neves Soares é doutor em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica do Salvador e funcionário público federal.