A Economia de Francisco, por Luiz Gonzaga Belluzzo

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Nossos olhares perderam de vista a ideia de comunidade cristã, expressão repetida no texto do papa e incrustrada nas origens do cristianismo.

por Luiz Gonzaga Belluzzo – Jornal GGN – 22/04/2025

O Editorial das “Notícias do Vaticano” relembra: na noite de 13 de março de 2013, Jorge Mario Bergoglio apareceu pela primeira vez na varanda central da Basílica de São Pedro vestido de branco. A sua saudação inicial já continha alguns traços salientes do pontificado: a oração por «uma grande fraternidade» no mundo dilacerado pela injustiça, violência e guerras.

Meses após a consagração papal, Francisco ofereceu aos católicos e cristãos a Primeira Exortação Apostólica “Evangelii Gaudium”. Assim como as encíclicas Rerum Novarum de Leão XIII, Mater et Magistra e Pacem in Terris de João XXIII, a exortação apostólica de Francisco, um texto cuidadosamente construído, aborda as vicissitudes e alegrias da vida cristã no mundo contemporâneo.

Os olhares do nosso tempo perderam de vista a ideia de comunidade cristã, expressão tantas vezes repetida no texto do papa e incrustrada nas origens do cristianismo. Jacques Le Goff diz com razão que no cristianismo primitivo e no judaísmo a eternidade não irrompia no tempo (abstrato) para “vencê-lo”. A eternidade não é a “ausência do tempo”, mas a dilatação do tempo ao infinito.

Depois da encarnação, a escatologia judaico-cristã sofre uma transmutação: o tempo adquire uma dimensão histórica. Cristo trouxe a certeza da eventualidade da salvação, mas cabe à história coletiva e individual realizar essa possibilidade oferecida aos homens pelo sacrifício da cruz e pela ressurreição. “Não nos é pedido que sejamos imaculados, mas que não cessamos de melhorar, vivamos o desejo profundo de progredir no caminho do Evangelho, e não deixemos cair os braços”.

O cristianismo – o mistério libertador da Encarnação – foi um divisor de águas na história da humanidade, um movimento revolucionário, nascido das crueldades e das sabedorias do mundo grego-romano.

Em uma entrevista sobre seu filme Satyricon, Fellini desvelou a alma que se escondia no rosto de seus personagens no crepúsculo do império romano. As máscaras se debatiam entre o tédio das concupiscências e as angústias da desesperança. Para o grande Federico, o filme escancarava “a nostalgia do Cristo que ainda não havia chegado”

Tal como nos personagens do Satyricon, percebo nos católicos de hoje a nostalgia do Cristo que não voltou. Mas, creia-me o leitor, ele já esteve entre nós encarnado na simplicidade e na sabedoria camponesa de João XXIII e parece ter retornado nos exemplos de Francisco.

João XXIII escreveu na Mater et Magistra: a Santa Igreja, apesar de ter como principal missão a de santificar as almas e de fazê-las participar dos bens da ordem sobrenatural, não deixa de preocupar-se ao mesmo tempo com as exigências da vida cotidiana dos homens, não só no que diz respeito ao sustento e às condições de vida, mas também no que se refere à prosperidade e à civilização em seus múltiplos aspectos, dentro do condicionalismo das várias épocas.

Francisco rejeita as formas de religiosidade que fazem recuar o espírito para os recônditos do individualismo, uma espécie de “consumismo do sagrado” que ignora os fundamentos comunitários do cristianismo. “Mais do que o ateísmo, o desafio que hoje se nos apresenta é responder adequadamente à sede de Deus de muitas pessoas, para que não tenham de ir apagá-la com propostas alienantes ou com um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro. Se não encontram na Igreja uma espiritualidade que os cure, liberte, encha de vida e de paz, ao mesmo tempo que os chame à comunhão solidária e à fecundidade missionária, acabarão enganados por propostas que não humanizam nem dão glória a Deus”. Um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro é a negação do cristianismo.

Na Encíclica Fratelli Tutti, Franscisco aborda as vicissitudes da vida moderna:

“A mera soma de interesses individuais não é capaz de gerar um mundo melhor para a humanidade. Sequer pode nos preservar de tantos males que se tornam cada vez mais globais. Mas o individualismo radical é o vírus mais difícil de ser vencido. Engana. Nos faz crer que tudo consiste em dar rédea solta às próprias ambições, como se a acumulação de ambições e seguranças individuais pudessem garantir a construção do bem comum”.

Na Encíclica, Francisco reivindica uma política econômica ativa “… que promova a diversidade produtiva e a criatividade empresarial” para que seja possível aumentar os empregos em vez de reduzi-los. A especulação financeira com lucro fácil como um fim fundamental continua a causar estragos. Além disso, sem formas internas de solidariedade e confiança falhou”.

Já em 2015, durante outra audiência no Vaticano, o Papa disse que “o dinheiro é esterco do diabo”, acrescentando que, quando o capital se torna um ídolo, ele “comanda as escolhas do homem”. Aprisionado nas engrenagens impessoais da economia sem alma, o Homem sem Escolhas entrega seu destino ao diabo e seus estercos.

Na edição de 17/5/2018, o Osservatore Romano registra a divulgação do documento Oeconomicae et pecuniariae quaestiones elaborado pela Congregação para a Doutrina da Fé. O texto de 16 páginas contém “considerações para um discernimento ético acerca de alguns aspectos do atual sistema econômico-financeiro”.

O documento foi apresentado na Sala de Imprensa pelo arcebispo Luis Francisco Ladaria Ferrer e pelo cardeal Peter Kodwo Appiah Turkson. Já na introdução o texto revela seu propósito de avaliar a supremacia dos mercados financeiros – os estercos do Diabo – e suas consequências sobre a vida de homens e mulheres que habitam o mundo dos vivos. “A recente crise financeira poderia ter sido uma ocasião para desenvolver uma nova economia mais atenta aos princípios éticos e para uma nova regulamentação da atividade financeira, neutralizando os aspectos predatórios e especulativos, e valorizando o serviço à economia real”.

Em carta aos jovens economistas do mundo, Papa Francisco sugeriu que se reunissem na cidade de Assis, Itália, entre 26 e 28 de março de 2020 para repensar uma nova doutrina econômica para o mundo. Uma doutrina que vá além das “diferenças de credo e nacionalidade”, inspirada “na fraternidade, sobretudo para os pobres e excluídos”.

Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia (IE) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (1985-1987) e de Ciência e Tecnologia de São Paulo (1988-1990). Belluzzo é formado em Direito e Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), pós-graduado em Desenvolvimento Econômico pela Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) e doutor em economia pela Unicamp. Fundador da Facamp e conselheiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), é autor dos livros “Os Antecedentes da Tormenta”, “Ensaios sobre o Capitalismo no Século XX”, e coautor de “Depois da Queda, Luta Pela Sobrevivência da Moeda Nacional”, entre outros. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists. Em 2005, recebeu o Prêmio Intelectual do Ano (Prêmio Juca Pato).

 

 

O braço de ferro entre EUA e China, por Celso Ming

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Guerra comercial em curso já causa prejuízos, embora seja difícil ainda prever quais desdobramentos ela tomará com o recente recuo de Trump

Celso Ming – O Estado de São Paulo – 24/04/2025

Tudo se passa como se a China estivesse pagando para ver até onde vai a capacidade do governo de Donald Trump de derrubar sua capacidade de resistência.

A Imposição de uma brutal tarifa de importação de 145% pretendeu levar a China ao nocaute. O presidente Xi Jinping retrucou, impôs tarifa de 125% sobre os produtos norte-americanos, mas advertiu que tarifas superiores a 100% já não fariam sentido econômico.

Agora, Trump avisa que está disposto a negociar, dando a entender que a jogada dos 145% pretendeu apenas buscar um ponto que aumentasse seu poder de barganha. Na tréplica, a China passou o recado de que não pretende negociar – o que indica que duvida da capacidade de resistência do governo Trump à política agressiva que ele próprio criou.

Os Estados Unidos reconhecem que sua economia está em declínio. Se o objetivo declarado do presidente Trump é recolocar os Estados Unidos em primeiro lugar (“Make America Great Again”) é porque já não são os primeiros do mundo.

O segundo desdobramento possível é o de que o governo da China resista às pressões comerciais de Trump e volte sua economia para o desenvolvimento do mercado interno. Nesse caso, não será capaz de sustentar os atuais níveis de superávit comercial, mas, também, reduzirá as importações do “made in USA”. É improvável que essa atitude leve a manufatura de volta para os Estados Unidos.

Qualquer que seja o resultado, incluídos os desdobramentos que ocupem zonas intermediárias entre essas duas situações, é difícil que defina novo equilíbrio de forças. Mais cedo ou mais tarde, haverá um desfecho que hoje ninguém sabe qual será.

Como ficaria o Brasil? À primeira vista, tende a se beneficiar, especialmente com uma demanda maior de commodities e de produtos eletrointensivos. No entanto, nenhum proveito terá se antes não cuidar da arrumação da casa, especialmente do desequilíbrio das contas públicas, que hoje sabota o futuro da economia do País.

 

O capitalismo é um jogo de soma zero? por Bruno Farias

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Bruno Farias – A Terra é Redonda – 22/04/2025

A dinâmica histórica do capitalismo não se resume a essa operação aritmética

Para responder a essa pergunta, é preciso primeiro esclarecer o que significa “soma zero”. Matematicamente, dizemos que uma soma é zero quando um número, somado ao seu oposto, anula-se – por exemplo, 7 + (–7) = 0. Se aplicarmos essa lógica à economia, a ideia seria de que o enriquecimento de um agente implicaria, necessariamente, o empobrecimento de outro, de modo que a riqueza total criada continuasse inalterada. No entanto, a história do capitalismo mostra que a questão não se resume a essa operação aritmética.

Ao longo dos séculos, o capitalismo demonstrou sua capacidade de produzir riqueza – a pobreza extrema caiu, a expectativa de vida aumentou e a qualidade de vida, mesmo que de maneira desigual, melhorou em diversas partes do mundo. Mas a conquista desse progresso tem um custo que vai muito além de aspectos meramente econômicos.

O sistema não é, em termos estritamente matemáticos, um jogo de soma zero, porque a riqueza global gerada pelo capitalismo, historicamente, cresceu. Contudo, essa prosperidade é distribuída de forma desigual. Quem detém o poder – sejam países, empresas ou indivíduos – garante a si mesmo as maiores fatias limitando o quanto os demais podem avançar, forçando-os a permanecer nas margens dessa divisão imperfeita.

Como mostrou o economista sul-coreano Ha-Joon Chang no livro Chutando a escada, os países que hoje figuram entre os mais desenvolvidos utilizaram e utilizam medidas protecionistas e intervenções estatais para fomentar a própria industrialização – ou, como ele coloca, “chutaram a escada” que depois se fecharia para os que desejam trilhar o mesmo caminho.

Essa é a dinâmica histórica do sistema capitalista, que ao distribuir a riqueza de maneira “não exata”, favorece aqueles que já acumulam poder e reforça uma estrutura de dominação, onde o enriquecimento de alguns decorre do crescimento limitado ou empobrecimento de outros.

A globalização intensifica essa dinâmica. Com a integração dos mercados internacionais, os fluxos de capitais e mercadorias cresceram de forma exponencial, mas, ao mesmo tempo, as relações de poder e os termos de troca favoreceram historicamente os países industrializados. Esses países, investidos em tecnologia e cadeias produtivas sofisticadas, determinam as regras do comércio global. Já os países inseridos como exportadores de commodities enfrentam a volatilidade dos preços e uma dependência, mantendo certos agentes presos a condições de exploração e vulnerabilidade.

Não apenas isso, é preciso colocar nessa análise uma crítica do ponto de vista ético e moral. Se, do ponto de vista estritamente econômico, o capitalismo gera um crescimento absoluto, ao introduzirmos a dimensão dos custos humanitários, a lógica se transforma.

O acúmulo de capital foi e é construído a partir de um processo humanitário custoso, como, por exemplo, a escravidão, o genocídio de comunidades tradicionais e a expropriação de culturas e territórios. O custo humanitário dessa história – as vidas, as culturas e os saberes que foram sacrificados – impõe um preço que, quando somado à conta, faz o sistema capitalista ser um jogo de soma zero, para não dizer de resultado negativo.

O geógrafo Milton Santos, ao analisar o impacto da globalização e do capitalismo contemporâneo, observava que “a globalização é o processo que materializa a concentração de poder e de riqueza, transformando espaços e subordinando culturas”. Esse olhar crítico nos mostra que o avanço econômico conquistado por meio do capitalismo não pode ser separado das consequências éticas e sociais que ele impõe. Ao mesmo tempo em que promove inovações e melhorias em certos indicadores de desenvolvimento, o sistema se sustenta sobre uma estrutura que marginaliza os mais vulneráveis e perpetua uma desigualdade estrutural.

A perspectiva marxista reforça essa crítica. Para Karl Marx, o capitalismo se apoia na extração da mais-valia – a diferença entre o valor produzido pelo trabalhador e o que ele recebe –, o que possibilita a concentração de riqueza nas mãos de poucos. Essa lógica de exploração garante que o sistema funcione não como um mero gerador de riqueza, mas também como um mecanismo de dominação e exclusão.

Mesmo que o “bolo” econômico cresça, a fatia que cada ator recebe pode permanecer estagnada ou, pior, diminuir em termos relativos, como se o ganho de alguns ocorresse exatamente à custa da perda de outros – nessa perspectiva de uma análise ampliada do que seria um jogo de soma zero quando os custos sociais, ambientais e culturais e etc. são devidamente computados.

Se torna fácil perceber quando refletimos sobre a inserção dos países no comércio internacional. Economias que dependem da exportação de produtos primários e commodities sofrem com termos de troca desfavoráveis e uma vulnerabilidade que não acompanha os avanços tecnológicos e produtivos dos países centrais. Enquanto os centros de poder acumulam capital e dirigem as regras do mercado global, os países periféricos permanecem em situação de dependência e têm sua capacidade de desenvolvimento limitada por uma estrutura internacional desigual.

Enfim, o capitalismo, sob o olhar estritamente econômico, não é um jogo de soma zero – ele cria riqueza e transforma o patrimônio global. Mas se considerarmos também os custos éticos, sociais e humanitários, bem como os mecanismos de extração da mais-valia que sustentam a acumulação de capital, percebemos que, na prática, o sistema impõe um resultado nulo ou negativo.

Bruno Farias é graduado em economia e graduando em matemática.

 

Piketty: As reformas tributárias de que precisamos

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Premiado relatório de Gabriel Zucman aponta, de forma corajosa, a dimensão crítica das evasões fiscais. Propõe taxar bilionários e exportações de multinacionais – só assim a economia pode reencontrar sua essência histórica, política e social

Thomas Piketty – OUTRAS MÍDIAS – 17/05/2023

Alegrem-se: a American Economic Association (AEA), principal organização profissional para economistas nos Estados Unidos, acaba de conceder a Medalha Clark a Gabriel Zucman por seu trabalho sobre concentração de riqueza e evasão fiscal. Concedido anualmente a um laureado com menos de 40 anos, a distinção recompensa notavelmente o trabalho inovador que demonstra a considerável importância da evasão fiscal por parte dos ricos, inclusive nos países escandinavos, que são rapidamente considerados modelos de virtude.

Dotado de uma imensa capacidade de trabalho, uma rara atenção aos detalhes e um talento inigualável para desenterrar novos dados e fazê-los falar, Gabriel Zucman também revelou a dimensão insuspeita da evasão do imposto de renda de empresas por multinacionais de todos os países.

Hoje diretor do Observatório Fiscal da União Europeia, ele dedica a mesma energia para encontrar soluções para os males que documenta. Num dos seus primeiros relatórios,[1] o Observatório demonstrou que os Estados-membros da União Europeia podiam optar por ir mais longe do que a taxa mínima de 15% fixada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) (demasiado baixa e amplamente contornada), sem esperar pela unanimidade. Ao impor a cada multinacional que pretenda exportar bens e serviços uma taxa de 25% sobre os seus lucros – a mesma que pagam os produtores estabelecidos em território nacional – a França obteria uma receita adicional de 26 bilhões de euros e encorajaria outros países a fazer o mesmo.

O fato da American Economic Association optar por premiar esse trabalho é importante, porque mostra que o coração da profissão começa a se dar conta da insustentabilidade do atual modelo social e fiscal. Não exageremos: os economistas sempre foram menos monolíticos do que às vezes se imagina, inclusive nos Estados Unidos. Em 1919, o presidente da American Economic Association, Irving Fisher, optou por dedicar seu “discurso presidencial” à questão das desigualdades.

Ele explica sem rodeios aos colegas que a crescente concentração da riqueza caminha para se tornar o principal problema econômico da América, que corre o risco, se não tomarmos cuidado, de se tornar tão desigual quanto a velha Europa (então percebida como oligárquica e contrária ao espírito norte-americano). Irving Fisher mostra-se perplexo com as estimativas publicadas em 1915 por Willford King de que “2% da população possuem mais de 50% da riqueza” e que “dois terços da população possuem quase nada”, o que lhe sugere “uma distribuição não democrática da riqueza” ameaçando os próprios alicerces da sociedade norte-americana.

Victory tax

É nesse contexto que os Estados Unidos aplicaram de 1918-1920 (sob o mandato do presidente democrata Wilson) taxas superiores a 70% no topo da hierarquia de renda, antes de todos os outros países. Quando Franklin D. Roosevelt foi eleito em 1932, o terreno intelectual já estava preparado há muito para a implementação da progressividade tributária em larga escala, com o famoso Victory tax (Imposto da Vitória) de 88% em 1942 e 94% em 1944. Os Estados Unidos aplicarão taxas semelhantes na Alemanha e Japão: no espírito da época, essas instituições tributárias foram vistas como um complemento indispensável das instituições democráticas, caso contrário estas corriam o risco de cair em uma deriva plutocrática.

Essas lições infelizmente foram esquecidas, e os Estados Unidos e grande parte do mundo entraram, desde as décadas de 1980 e 1990, em uma nova espiral oligárquica. Certamente seria um exagero jogar toda a responsabilidade sobre os economistas. Se a contra-ofensiva lançada nos anos 1960 e 1970 por Milton Friedman ou Friedrich Hayek conseguiu dar frutos, é também pela falta de apropriação coletiva das instituições do New Deal por parte dos cidadãos e do movimento social e trabalhista.

A batalha intelectual também foi travada nos departamentos de filosofia: quando John Rawls publicou sua Teoria da Justiça em 1971, lançou as bases conceituais de um ambicioso programa igualitário, mas permaneceu relativamente abstrato em suas saídas práticas. Ao mesmo tempo, Milton Friedman e Friedrich Hayek são perfeitamente específicos sobre seu objetivo de demolição da progressividade tributária.

Desregulamentação e liberalização

O fato é que os economistas têm uma responsabilidade particular no movimento de desregulamentação e liberalização das últimas décadas. Há, claro, os efeitos ligados à busca por financiamento privado, que vira os comentários à direita. Em 2016, quando os democratas Bernie Sanders e Elizabeth Warren endossaram propostas ousadas de imposto sobre a riqueza (com taxas subindo de 6% a 8% ao ano acima de US$ 1 bilhão), o ex-secretário do Tesouro de Bill Clinton e presidente de Harvard, Larry Summers – grande defensor da liberalização absoluta dos fluxos de capital – quase se estrangula e não hesita em atacar violentamente pesquisadores como Gabriel Zucman que defendem essas propostas (que, no entanto, são simples senso comum, dadas as alíquotas quase zero do imposto de renda pago pelos bilionários) .

Existem também razões estritamente intelectuais ligadas à evolução da disciplina de economia. Para dar a si mesma um fascínio científico autônomo, a economia tendeu a se isolar da história e da sociologia e a naturalizar as instituições estudadas (mercado, propriedade, competição), esquecendo no processo seu enquadramento social e político em sociedades particulares.

Os modelos matemáticos podem ser úteis se forem usados com sabedoria e não como um fim em si mesmos. A técnica estatística pode ser utilizada desde que não se perca de vista o olhar crítico sobre as fontes e categorias. Ainda há um longo caminho a percorrer para que a economia política e histórica recupere seu lugar de direito no interior das ciências sociais.

Thomas Piketty é diretor de pesquisas na École des Hautes Études en Sciences Sociales e professor na Paris School of Economics. Autor, entre outros livros, de O capital no século XXI (Intrinseca).

Tradução: Aluisio Schumacher para o portal Fórum 21.

Publicado pelo jornal Le Monde.

Nota

[1] Collecting the tax deficit of multinational companies: simulations for the European Union, Mona Barake, Theresa Neef, Paul-Emmanuel Chouc, Gabriel Zucman, June 2021.

 

Decisões estratégicas

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Nos últimos dias a economia internacional vem passando por grandes movimentações econômicas e produtivas, inúmeros acordos comerciais foram deixados de lado, discursos agressivos e violentos ganharam relevância na sociedade global, aliados históricos e estratégicos entraram em confrontos verbais, alíquotas e tarifas comerciais foram majoradas sem respeito a contratos assinados entre nações e medidas agressivas foram impostas para todas as nações, gerando mais incertezas, preocupações crescentes e um ambiente de negócio bastante agressivo, com um aumento das rivalidades e das hostilidades.

Muitos analistas internacionais acreditam que as medidas implementadas pelo governo norte-americano têm por objetivos forçar uma reindustrialização de sua economia, pressionando os agentes produtivos nacionais e internacionais a aumentarem seus investimentos internos, elevando os dispêndios da economia dos Estados Unidos, aumentando a contratação de trabalhadores locais, incrementando a renda interna, dinamizando os setores produtivos e contribuindo para a melhora da situação social dos cidadãos. A grande pergunta que a sociedade global está se fazendo é, se esta estratégia arriscada e agressiva, adotada pelo governo de Donald Trump, será exitosa para induzir a economia norte-americana para o caminho da reindustrialização?

Os Estados Unidos, claramente, perderam espaço no setor industrial global, depois de construir setores industriais de ponta durante séculos, a indústria norte-americana foi um dos grandes responsáveis pelo desenvolvimento da indústria global, ator fundamental na estruturação da inovação mundial, criando setores, desenvolvendo tecnologias, revolucionando máquinas e produtos globais, mas perdeu espaço na corrida internacional para outros atores globais, principalmente para a China. O país asiático se transformou de uma sociedade rural, atrasada tecnologicamente e marcada por grande pobreza, imensa miséria e degradação material, nestes últimos quarenta anos, a sociedade chinesa passou por grandes mutações, revolucionando a educação, investindo fortemente em ciência e tecnologia e adotando decisões estratégicas, onde destacamos a atuação do Estado chinês como indutor do desenvolvimento industrial, protegendo setores produtivos, incentivando a competição externa no mercado global e cobrando o incremento da produtividade de seus atores econômicos, além de atrair empresas e corporações globais, exigindo a transferência de tecnologia e fortalecendo as compras internas para solidificar a economia nacional, gerando emprego, melhorando as condições de vida e transformando todo o ambiente de negócio.

Neste momento, encontramos um conflito de grandes atores na economia internacional, a maioria dos estrategistas internacionais acreditam que as apostas do governo norte-americano não terá o êxito esperado e, ao contrário, tendem a gerar um incremento nos preços internos, desestruturação de setores externos e o aumento do desemprego dos cidadãos norte-americanos, aumentando os desequilíbrios internos e gerando pressões externas, que podem gerar conflitos militares, cujos resultados imediatos são impossíveis de serem mensurados. As medidas unilaterais adotadas pelo governo norte-americano tendem a agravar os desequilíbrios globais, aumentando as incertezas no interior das nações, amedrontando os setores produtivos e aumentando as volatilidades dos trabalhadores, impactando sobre toda a sociedade mundial.

Diante dos desafios da sociedade global, o Brasil precisa estimular decisões estratégicas, compreender o cenário mundial de incertezas e de rivalidades, construir consensos internos em prol do desenvolvimento econômico, superar uma visão subserviente que domina grande parte da elite nacional e se concentrar em discussões estratégicas e deixando de lado conversas equivocadas, desnecessárias e ultrapassadas que combinam com a impunidade e a degradação moral.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Jorge Mario Bergoglio (1936-2025), por Tales Ab´Saber

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Tales Ab´Saber – A Terra é Redonda – 21/04/2025

Breves considerações sobre o Papa Francisco, recém-falecido

O Papa Francisco entendia a igreja como tolerante, universalmente amorosa, ecumênica, aberta e receptiva ao cuidado de todas as violências e exclusões do tempo. Entendia o cristianismo católico como universalmente comprometido com o reconhecimento, voltado a todas as situações da vida contemporânea, e não culpabilizador, excludente, autoritário e estrategicamente violento.

Seu apostolado era totalmente includente pela misericórdia. Evidentemente, ele foi lançado ao inferno do ódio dos católicos de direita, que o atacaram de todos os modos possíveis e imagináveis, sempre confundindo o seu próprio partido neofascista com as redes sociais, onde vivem. Para essa gente, do Concílio Vaticano II, de João XXIII, a Francisco, a igreja católica chegou à máxima decadência imaginável.

Apostasia, “sede vacante”, heresia, usurpador e até “anti-Cristo”, eram os modos crescentemente destrutivos que a intolerância e a autodeclarada verdade moral dos católicos do terror, que se alinharam com as direitas políticas mais violentas e satisfeitamente burras do tempo – abençoando e servindo a golpes de Bolsonaros e de Trumps – tratavam o sensível ao outro Francisco.

Sobre a união do grupo no ódio, o núcleo duro de um mito de superioridade, que se nomeia como a verdade de deus, exigindo a agência do poder e o rebaixamento da diferença e dos inferiores, em um movimento que se organiza e se torna orgânico em oposição a processos democratizantes, socialmente implicados, essa grotesca e espetacular reação católica contra o seu próprio Papa nos ensina muito sobre a lógica grupal, de psicologia de massas e modulação do “eu”, das direitas de nossa época.

Contra-democráticos, humanamente insensíveis, radicalmente anti-críticos, fascistas fazem apelo a deus e religiosos fazem apelos a fascistas, tudo através da “religião e partido das redes sociais”, para aumentar o ganho privado e particular de um grupo de auto ungidos, que inventam deus, contra todos os demais. Francisco claramente concebia deus em oposição ao deus fascista e sua política.

Tales Ab’Saber é professor do Departamento de Filosofia da Unifesp. Autor, entre outros livros, de O soldado antropofágico (Hedra)

 

Brasil tem terras raras, mas não tem projeto, por Ronaldo Lemos

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País tem 23% das reservas globais, mas só 1% da demanda; tensão entre China e EUA é oportunidade

Ronaldo Lemos, Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro

Folha de São Paulo, 21/04/2025

Em um dos períodos em que estive na China, a tensão com os EUA estava acirrada. O presidente chinês fez um pronunciamento que parecia destinado a acalmar os ânimos, mas não disse uma palavra sobre a crise. O recado foi passado de outro jeito: o lugar do discurso, proferido diretamente de uma das principais minas de terras raras da China, em Ganzhou.

A mensagem era sutil, mas clara: se a tensão aumentasse, a China poderia restringir o acesso às suas terras raras, essenciais para a produção tecnológica.

A China impôs restrições à exportação para os EUA de sete terras raras que são usadas para fabricar de celulares a mísseis. Além disso, impôs restrições às exportações de antimônio, gálio, germânio, tungstênio e outros minerais que possuem aplicação militar.

A China responde por cerca de 70% da produção global de terras raras. Os Estados Unidos aparecem em sendo lugar , com cerca de 14%. As terras raras compreendem 17 elementos, dentre eles: o ítrio (usado na indústria espacial, semicondutores e equipamentos de raio-x), samário (reatores nucleares e lasers) e gadolínio (chips de memória e equipamentos de ressonância magnética).

Hoje os EUA importam 75% das terras raras consumidas no país. A China não baniu totalmente as exportações, mas restringiu justamente os elementos que os EUA não produzem internamente.

Sem acesso a eles, as consequências podem ser temerárias. A fabricação de chips, carros, TVs, celulares, equipamentos médico e militar pode ser severamente afetada. Por exemplo, caças americanos dependem diretamente de térbio e disprósio, dois dos elementos colocados na lista de restrições da China.

Nessa situação, o que fazer? O primeiro passo é ampliar compras de outros países e incentivar o desenvolvimento da mineração de terras raras fora da China. Isso pode ser benéfico para o Brasil, que possui reservas de disprósio, térbio e ítrio, dentre outras terras raras. Cidades como as goianas Minaçu e Catalão ou as mineiras Poços de Caldas e Araxá possuem reservas significativas desses elementos raros.

A outra solução é o contrabando. Da mesma forma como chips da Nvidia entraram na China mesmo com o bloqueio dos EUA, é de se esperar que algo parecido aconteça cada vez mais com terras raras.

O ponto-chave é que a dominância chinesa não é natural. É produto da visão de longo prazo do ex-presidente Deng Xiaoping, que nos anos 1980 investiu fortemente nesse setor e proferiu a famosa frase: “o Oriente Médio tem petróleo, o Império do Meio tem terras raras”, repetida à exaustão nos documentos estratégicos do país. E, de fato, até 1990 os EUA lideravam sem concorrentes a produção de terras raras.

Tudo isso para dizer: o Brasil precisa articular seu pensamento estratégico sobre terras raras de forma ousada e com visão no longo prazo, como a China fez. Temos 23% das reservas globais, mas atendemos só 1% da demanda. Nosso país também pode fazer parte desse clube. Não dependemos de ninguém para entrar nele além de nós mesmos.

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Taxar ultrarricos para distribuir aos pobres é uma medida popular, diz Nobel de Economia

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Francesa Esther Duflo diz que alguns bilionários já concordam com a taxação de 2% de sua riqueza para proteger os mais pobres das mudanças climáticas

Folha de São Paulo, 21/04/2025

A francesa Esther Duflo, uma das únicas três mulheres a receber o Nobel de Economia, diz estar em um relacionamento de longo prazo com o Brasil.

“Estou em contato bastante próximo com o ministro da Economia, Fernando Haddad, assim como com a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. E é sempre um grande prazer interagir com eles”, disse ela à Folha durante visita a São Paulo, na última semana.

Duflo esteve no Brasil para anunciar a inclusão do Insper na Adept, uma aliança internacional para formação em análise de dados, avaliações e políticas públicas sediada no J-PAL  (Laboratório de Ação contra Abdul Latif Jameel), o centro de pesquisas cofundado por ela e sediado no MIT (Massachusetts Institute of Technology), nos EUA.

A economista apoiou a proposta feita pelo Brasil na presidência rotativa do G 20 de criação de um imposto global de 2% sobre a riqueza dos bilionários do mundo para financiar adaptação e mitigação dos efeitos das mudanças climáticas sobre as populações mais pobres do planeta. “Os países pobres contribuem nada ou muito pouco para as mudanças climáticas, mas experimentam a maior parte dos seus danos”, avalia.

“Alguns ultrarricos já concordam que podem abrir mão de 2% de sua riqueza todos os anos”, afirma Duflo. “Provavelmente, eles mal sentiriam falta desses recursos em suas vidas, mas isso faria uma enorme diferença para o mundo que eles também habitam.”

Segundo a economista, taxar ultrarricos para distribuir entre os mais pobres é uma medida popular. A Nobel de Economia afirma que a implementação deste tipo de imposto parece difícil “porque as pessoas ricas têm muito poder político”. Mas, diz, “elas também precisam de um planeta habitável”.

No Brasil, proposta enviada ao Congresso pelo ministro Haddad para a criação de um imposto mínimo de 10% para quem ganha mais de R$ 50 mil por mês tem apoio de 76% dos brasileiros, segundo pesquisa Datafolha divulgada nesta semana.

Em entrevista à Folha, Duflo explicou porque escolheu trabalhar com o combate à pobreza, como a desigualdade se relaciona às mudanças climáticas e por que há poucas mulheres laureadas com o Nobel de Economia.

Por que a pobreza não é um problema apenas dos pobres?
Em primeiro lugar, porque compartilhamos a condição humana, os valores do humanismo e a solidariedade, o que significa que precisamos nos preocupar com a situação daqueles que mais sofrem com a pobreza, com a guerra e outras coisas. Em segundo lugar, porque a pobreza é um problema para as sociedades. Aquelas que têm muitas pessoas pobres perdem muito de seu potencial e riqueza porque a pobreza impede as pessoas de se tornarem cientistas ou engenheiros ou políticos. Ela empobrece toda a sociedade. É por isso que meu trabalho de vida tem sido combater a pobreza.

Como as mudanças climáticas afetam a pobreza no mundo?
Elas já estão afetando os países pobres hoje e vão afetar ainda mais no futuro por duas razões. A primeira é que esses países tendem a estar em lugares onde já é quente. E, portanto, à medida que o planeta esquenta, eles serão mais afetados por temperaturas que não são adequadas à vida humana. O segundo problema é que as pessoas pobres nesses países estão menos protegidas porque não têm ar condicionado nem acesso imediato a atendimento em saúde e não podem parar de trabalhar, o que quer dizer que é mais provável que elas morram quando está muito quente, ou que experimentem uma renda ainda mais baixa.

Como a luta contra a desigualdade e contra as mudanças climáticas se relacionam?
Elas se relacionam por meio de uma tripla desigualdade. Uma é que as pessoas pobres não contribuem nada para as mudanças climáticas porque suas emissões são muito baixas. Outra é que elas são as mais diretamente afetadas pelos efeitos das mudanças climáticas. E outra ainda é que elas têm menos meios para se proteger. Então, se não interferirmos diretamente na capacidade das pessoas mais pobres de se protegerem dos impactos climáticos, a desigualdade só vai aumentar. E a desigualdade na maneira como as mudanças climáticas impactam as pessoas só vai piorar e piorar.

A Sra tem uma proposta para mitigar os efeitos das mudanças climáticas sobre pessoas pobres. Qual é ela?
Primeiro é preciso observar que os países pobres contribuem nada ou muito pouco para as mudanças climáticas, mas experimentam a maior parte dos seus danos. Depois, é preciso colocar um número nisso para percebermos a extensão do dano. Se você colocar um preço na vida humana, nas perdas agrícolas e nas perdas econômicas, a extensão dos danos das mudanças climáticas a um país como Níger, na África, por exemplo, é algo como US$ 35.000 por pessoa por ano. Isso é o que o mundo, coletivamente, está impondo a Níger.

Considerando-se a trajetória climática mais quente prevista pelo IPCC [Painel Internacional de Mudanças Climáticas], até 2100 haverá 6 milhões de mortes extras no mundo devido à alta de temperatura, e elas serão quase todas em países que hoje são pobres. As emissões que vêm da Europa e dos EUA causam um dano de meio bilhão de dólares todos os anos. Então, precisamos encontrar uma maneira de compensar as pessoas por pelo menos parte desses danos. E, para isso, precisamos arrecadar dinheiro.

Como? Uma das coisas que estou propondo em colaboração com a presidência brasileira no G20 é uma tributação global de 2% dos ultrarricos para um fundo de proteção aos mais pobres. Se tivermos o dinheiro, precisamos descobrir como dá-lo às pessoas. Proponho encontrarmos uma maneira de enviá-lo diretamente para as pessoas que são mais afetadas.

Pesquisas mostraram que, embora aumentar impostos seja uma medida muito impopular, tributar os ultrarricos para financiar políticas para os mais pobres é visto de forma mais favorável.
Essa é uma pesquisa de um francês chamado Adrien Fabre, que analisou uma série de pesquisas de opinião de pessoas na Europa e nos EUA sobre várias soluções para as mudanças climáticas. Ele descobriu que o imposto sobre o carbono é muito impopular, mas a ideia de tributar ultrarricos para redistribuir o dinheiro em outro lugar é muito mais popular. Algo como 80% dos europeus gostam da ideia, e mesmo os americanos não são contra: cerca de 60 ou 70% a aprovam. Então há apoio popular.

Por que então esta é uma medida tão difícil de implementar?
Talvez porque as pessoas ricas têm muito poder político e não estão muito interessadas na ideia. Mas eu gostaria de persuadi-las, e algumas delas já estão persuadidas de que isso é do seu próprio interesse. Não é tanto dinheiro, e elas também precisam de um planeta habitável, e também sofreriam se o aumento da pobreza levasse a conflitos e muita agitação no mundo. Então, alguns ultrarricos já concordam que podem abrir mão de 2% de sua riqueza todos os anos. Provavelmente, eles mal mal sentiriam falta desses recursos em suas vidas, mas isso faria uma enorme diferença para o mundo que eles também habitam.

No Brasil, um país de grande desigualdade, a proposta do atual governo de isentar pessoas mais pobres de impostos é vista favoravelmente, mas a de aumentar impostos dos ultrarricos é tratada como algo que pode inibir investimentos e gerar fuga de capitais. Esses receios são reais?
Há muita evidência mostrando que tributar pessoas mais ricas não limita investimentos. Isso porque, no final das contas,  os bilionários tem tanto dinheiro que o que importa para eles é ser mais rico do que seus amigos —e os impostos não mudam isso. Já a fuga de capitais é uma questão quando um país age sozinho porque, em muitos lugares –o Brasil entre eles–, é fácil enviar capitais para paraísos fiscais. Aí entra a importância da cooperação internacional na tributação para que haja registro sobre onde o dinheiro está de modo que um país possa ir atrás dos ativos de seus cidadãos enviados para outro lugar. Ainda melhor seria coordenar uma medida em que todos os países tributarem ultrarricos em 2% por ano. Aí, a fuga não faria sentido.

Ainda assim, há estudos em países nórdicos que apontaram que a fuga de capitais em resposta ao aumento da tributação é real, mas bem menor do que se pensava. Talvez o problema fosse pior no Brasil, onde as pessoas já estão mais conectadas ao mundo exterior. Portanto, é um problema a ser levado a sério, mas que pode ser resolvido com países trabalhando juntos, como no processo que o G20 lançou

Algumas medidas de combate à pobreza são tratadas como falsos remédios. Programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, já foram criticados sob a premissa de que não se deve dar o peixe, mas ensinar a pescar…
Este ditado em particular é um dos grandes clichês no desenvolvimento, o que é particularmente irritante, na minha opinião. Há um estudo recente de Dean Karlan e Chris Udry que revisou 130 pesquisas sobre 72 programas de transferência de dinheiro que mostram efeitos enormemente positivos em todas as dimensões da vida dos beneficiários. Então, podemos levar as pessoas a sério em sua capacidade de usar bem o dinheiro e deixarmos o paternalismo de lado. Há coisas que não podem ser fornecidas com dinheiro e que também podemos fazer, como oferecer boas escolas.

Como você avalia o Bolsa Família?
Ele foi muito avaliado e copiado em muitos países, onde também foi submetido a avaliações randomizadas rigorosas, e se mostrou muito eficaz em melhorar a educação e a saúde das pessoas. A única coisa que aprendemos desde que o programa foi iniciado é que condicionalidades estritas não são necessárias. É possível atingir os mesmos objetivos com condicionalidades mais brandas, que sinalizem que o programa é para ajudar na educação e saúde das crianças e jovens sem que necessariamente a transferência seja retirada quando as pessoas não estão cumprindo as contrapartidas. No Brasil, é bastante óbvio que o programa pode ser creditado por uma enorme queda na pobreza.

Você foi uma das três únicas mulheres laureadas com o Prêmio Nobel de Economia. Como interpreta essa presença feminina?
Quando recebi o Prêmio Nobel, em 2019 também era a única que estava viva porque Elinor Ostrom [laureada em 2009] havia falecido [em 2012]. Três não são suficientes, mas isso é um reflexo do fato de que não há muitas mulheres na economia. Mulheres são menos propensas a fazerem doutorado em economia. Estudantes de doutorado mulheres são menos propensas a se tornarem jovens professoras. Jovens professoras são menos propensas a obter estabilidade. Como economistas, tendemos a pensar que devemos deixar as coisas seguirem seu curso porque chegarão ao lugar certo. Mas acho que percebemos, nos últimos anos, que há algumas estruturas sobre a profissão que não a tornam muito amigável para mulheres, em particular por causa de uma espécie de cultura agressiva, que não é útil. Muitos departamentos estão fazendo esforço para mudar isso. O resultado deve aparecer nos próximos anos, espero.

Raio-X

Esther Duflo, 52, é Professora de Alívio da Pobreza e Economia do Desenvolvimento no Departamento de Economia do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos EUA, e cofundadora e codiretora do Laboratório de Ação contra a Pobreza Abdul Latif Jameel (J-PAL). Recebeu o Nobel em Economia “por sua abordagem experimental para aliviar a pobreza global” em 2019.

 

O lado esquecido do imperialismo dos EUA, por Lauro Mattei

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Lauro Mattei – A Terra é Redonda – 19/04/2025

Para Donald Trump e seus séquitos só existe uma nação americana: os Estados Unidos

1.

A eleição e as ações iniciais do governo de Donald Trump parecem ir mais além de uma simples “guerra comercial” como tem sido divulgado frequentemente. Com sua pose de imperador do mundo, Donald Trump e seus asseclas pretendem retomar doutrinas imperialistas de séculos passados como forma de demonstração de poder absoluto sobre todas as demais nações do planeta.

Na essência, percebe-se que a ação de Donald Trump na esfera comercial global busca encobrir um problema doméstico, especialmente em termos do fracasso das políticas sociais norte-americanas que se reproduz no comportamento de fúria e ódio da classe média, a qual se frustrou com o cenário econômico que faz com que o “sonho americano” fique cada vez mais distante. Em grande medida, decorre daí o respaldo obtido por Donald Trump em relação às políticas protecionistas que estão sendo adotadas, bem como o apoio aos ataques proferidos contra os imigrantes, especialmente da América Latina e Caribe.

Para fazer frente a este cenário político complexo, Donald Trump está procurando reavivar para o presente a “Doutrina Monroe” definida pela política externa dos Estados Unidos em 1823. Ao impedir a interferência de países europeus no Continente Americano, tal doutrina reforçou o imperialismo dos Estados Unidos no referido local e permitiu, inclusive, que esse país realizasse todos os tipos de intervenção em países da América Latina e Caribe e também em países da América Central.

2.

Apenas recordando que o tema do imperialismo foi discutido sistematicamente por John A. Hobson em 1902. Esse autor o considerou como sendo um fenômeno decorrente do processo de acumulação de capital que foi fortemente potencializado após as revoluções industriais. Esse assunto foi retomado por Vladímir Lênin em 1916 em sua obra clássica Imperialismo, fase superior do capitalismo, momento em que são analisadas as distintas características do imperialismo que movem sua existência: a luta política pela partilha do domínio no mundo.

De um modo geral, pode-se dizer que a política dos Estados Unidos para o conjunto de países que fazem parte do continente americano baseia-se no exercício do domínio por meio dos poderes econômico, político, cultural e militar, estando ela assentada nas ideias de superioridade e de submissão dos demais aos seus interesses. Tais pressupostos estão ancorados na presunção com que se autodenominam: a América. [1] Ou seja, para Donald Trump e seus séquitos só existe uma nação americana: os Estados Unidos.

Portanto, não há nenhuma novidade quando o presidente Donald Trump se refere à América do Sul e Central como “quintal dos EUA”. O senhor Pete Hegseth, secretário de defesa dos EUA, em entrevista ao canal Fox News no dia 10.04.2025, assim se manifestou: (a) criticou o avanço da China na região utilizando-se do Canal do Panamá; (b) criticou o ex-presidente Barack Obama por ter deixado a China atuar na América do Sul e Central impondo sua influência econômica e cultural, além de ter feito “acordos ruins” com governos locais; (c) ressaltou que os EUA farão tudo o que for possível para interromper a influência chinesa na região, bem como as ameaças que a China representa para o hemisfério; (d) finalmente destacou a posição do presidente Donald Trump: “não mais, nós vamos recuperar o nosso quintal”. Para Donald Trump, a China “cresceu nesse quintal” durante os últimos governos democratas.

Em visita oficial recente ao Panamá, o secretário Pete Hegseth externou novamente o desejo de Donald Trump de que os EUA voltem a comandar o canal como era até 1999. Além disso, informou que haverá aumento das forças americanas nas antigas bases militares, além de solicitar isenção das taxas aplicadas às embarcações militares dos EUA, cujo movimento é elevado.

No mesmo evento, o secretário saudou a decisão do governo do Panamá de ter declinado de sua participação no projeto chinês da “nova rota da seda”, programa que, por um lado, promove a expansão de obras de infraestrutura e, por outro, busca a cooperação no âmbito de interesses mútuos. Registre-se que o canal do Panamá continua sendo estratégico para os EUA, uma vez que por ele passam 40% de todos os conteiners dos EUA, bem como 5% de todo o comércio mundial.

3.

A China se manifestou duas vezes sobre esses assuntos acima mencionados. Na primeira delas afirmou que o governo de Donald Trump está chantageando o governo do Panamá, uma vez que acordos comerciais são decisões soberanas dos países, portanto interferências externas são inaceitáveis.

Na segunda, a China rebateu mais fortemente a visão de Donald Trump sobre a América Latina e Central: os povos latino-americanos buscam suas independências e não querem doutrinas de dominação porque buscam construir seu próprio lar sem ser quintal de ninguém.

Neste sentido, nota-se que há mais elementos centrais que fazem parte do lado esquecido do imperialismo dos EUA, além da guerra comercial que esse país vem travando globalmente, porém em particular com a China: cortes expressivos nos programas mundiais de ajuda humanitária; retirada do país dos principais organismos e agências da Organização das Nações Unidas (ONU); culpabilização dos países latino-americanos pelo avanço das drogas na sociedade Estadunidense; culpabilização dos imigrantes latinos pelos problemas estruturais do mercado de trabalho dos EUA; etc.

Por fim, acreditamos que a maioria dos latino-americanos não tem nenhum apreço pelos desejos do presidente dos EUA, uma vez que seus quintais são providos de jardins com flores que simbolizam o amor e a paz entre os povos e não pelo ódio e pela guerra que nutrem cotidianamente a mente de um psicopata.

*Lauro Mattei é professor titular do Departamento de Economia e Relações Internacionais e do programa de pós-graduação em Administração, ambos na UFSC.

Notas

[1] Nunca é tarde relembrar ao senhor Trump que o Continente Americano é composto por três regiões geográficas com os seguintes países: América Latina e Caribe (33 países); América Central (7 países) e América do Norte (3 países). Portanto, as Américas não se restringem apenas ao país que ele governa atualmente.

Lições de um jovem magistrado, por Oscar Vilhena Vieira

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Poder e autoridade judicial são fenômenos semelhantes

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023).

Folha de São Paulo, 19/04/2025

Certa vez fui despachar com um jovem magistrado, que me interrompeu no meio de uma frase: “Já entendi, o senhor está dizendo que eu errei”. Percebendo a minha perplexidade, voltou-me sua folha de anotações, onde estava escrito, em letras garrafais: “Errei!!! Corrigir”, numa clara demonstração de que sua autoridade não estava em jogo.

Poder e autoridade judicial são fenômenos semelhantes. Ambos se referem a capacidade de um juiz ou tribunal de impor conduta a outro agente. O respeito à autoridade judicial, no entanto, está intrinsecamente associado à imparcialidade, objetividade e rigor com que um juiz ou tribunal aplicam a lei. Já a submissão ao poder judicial decorre, sobretudo, do medo de sofrer alguma forma de coerção.

Os atritos entre a Justiça do Trabalho e o Suprema Tribunal Federal têm origem na forma equivocada como o Supremo vem aplicando a legislação trabalhista, assim como as normas constitucionais relativas ao direito do trabalho, nos últimos anos.

Sob o pretexto de que a Justiça do Trabalho estaria confrontando a jurisprudência do Supremo, diversos de seus ministros têm cassado decisões proferidas por juízes e tribunais do trabalho que, no exercício de suas competências constitucionais, detectaram a existência de fraude na contratação de trabalhadores, por meio de pessoas jurídicas.

A pejotização é um neologismo cunhado para designar um tipo de fraude contratual, voltada a suprimir o acesso do trabalhador aos seus direitos previstos na Constituição e na legislação trabalhista, além de promover a evasão fiscal e previdenciária.

Não importa se por preconceitos contra os trabalhadores CLT, viés ideológico, ou por simples desconhecimento da legislação trabalhista, inúmeras decisões do Supremo vêm incentivando a substituição de contratos de trabalho por contratos civis ou comerciais com pessoas jurídicas (MPE e MEI), compostas na grande maioria dos casos apenas pelos seus sócios proprietários. Esses “empreendedores”, no entanto, continuam mantendo relação de trabalho marcada pela pessoalidade e subordinação.

Sob a justificativa de valorizar a livre iniciativa e formas mais flexíveis de relações de trabalho, a postura do Supremo tem permitido que um número cada vez maior de empregadores deixe de recolher devidamente encargos sociais, como INSS, FGTS ou PIS, ampliando a crise da previdência e sobrecarregando os setores que contratam de acordo com a CLT e cumprem com as suas obrigações patronais.

Paralelamente, esse esquema também favorece a evasão do imposto de renda, por parte de trabalhadores contratados através de pessoas jurídicas, contribuindo para ampliar ainda mais a já perversa regressividade de nosso sistema tributário. Estima-se uma redução de cerca de 88% no valor de imposto de renda a ser recolhido com esse esquema. Desnecessário lembrar que, no país dos privilégios, essa redução de imposto de renda favorecerá, sobretudo, os trabalhadores mais ricos.

A postura do Supremo, por fim, tem contribuído para a precarização das relações de trabalho, impedindo o acesso do trabalhador a direitos básicos estabelecidos pela Constituição, como descanso semanal remunerado, limitação da jornada de trabalho ou décimo terceiro salário, além de não ser discriminado em face de sua raça ou gênero.

Torço para que o Supremo não use o seu poder para ganhar o braço de ferro com a Justiça do Trabalho. Ao julgar a tese de repercussão geral 1389, o tribunal terá a oportunidade de corrigir a confusão por ele criada e, como fez o jovem magistrado, restabelecer sua autoridade.

 

O privilégio dos EUA está em xeque? Solange Srour

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Se perder posto de principal fornecedor de ativos seguros, seus mercados sofrerão com choques fiscais

Solange Srour, Diretora de macroeconomia para o Brasil no UBS Global Wealth Management.

Folha de São Paulo, 17/04/2025

A recente disparada nos juros dos títulos do Tesouro americano (Treasuries) tem sido atribuída por muitos à liquidação de posições alavancadas baseadas nesses ativos. Embora esse fator técnico tenha contribuído, a raiz do movimento parece ser bem mais profunda: a erosão do privilégio exorbitante dos Estados Unidos no sistema financeiro internacional.

Desde a Segunda Guerra Mundial, os EUA desfrutam do status de principal fornecedor global de ativos seguros. Essa posição lhes permite financiar déficits fiscais recorrentes, com o apoio de investidores estrangeiros dispostos a aceitar rendimentos menores em troca da segurança e liquidez dos Treasuries.

Historicamente, em momentos de crise —como na crise financeira global de 2008— esses investidores atuaram como estabilizadores. No último trimestre daquele ano, por exemplo, absorveram US$ 270 bilhões em Treasuries, mais da metade das emissões do período, mesmo com os EUA apresentando déficits nominais acima de 9% do PIB. O resultado foi a manutenção dos juros em patamares baixos, ancorados pela confiança na segurança dos ativos americanos.

Esse quadro, porém, vem se transformando. Desde a pandemia, surgiram sinais de ruptura. Em março de 2020, em vez da clássica “fuga para a qualidade”, o mundo vendeu US$ 400 bilhões em Treasuries, especialmente de longo prazo, o que forçou o Federal Reserve a intervir, comprando mais de US$ 1 trilhão. Outro momento crítico ocorreu com a eclosão da guerra na Ucrânia, quando as Bolsas caíram fortemente e os títulos americanos perderam valor na sequência.

Tudo indica que demanda estrangeira se tornou mais sensível ao preço. Paralelamente, os bancos centrais —que por anos acumularam esses títulos em seus balanços— passaram a se retrair. O fim do afrouxamento quantitativo e o retorno da inflação forçaram o Fed (e outros bancos centrais) a interromper a expansão de seus balanços, reduzindo a absorção de risco e pressionando os juros.

Entre 2007 e 2022, o Tesouro emitiu quase US$ 19 trilhões em títulos. O Fed absorveu US$ 5,15 trilhões e o restante do mundo, US$ 5,36 trilhões. Essa base de compradores inelásticos sustentou a demanda mesmo com déficits crescentes. Mas essa realidade pode estar mudando —e antes mesmo de o governo Trump trazer como prioridade a eliminação do seu déficit em conta-corrente. Caso os EUA precisem equilibrar sua conta-corrente, o investidor estrangeiro deixará de ser financiador líquido, exigindo a sua substituição pela poupança doméstica.

Essa mudança de comportamento do mercado é especialmente preocupante diante do quadro fiscal atual. A renovação dos cortes de impostos, que Trump pretende aprovar no Congresso, pode adicionar US$ 37 trilhões aos déficits nas próximas três décadas, elevando a dívida pública para mais de 200% do PIB.

Esse cenário lembra a trajetória do Reino Unido no século 20. No século 19, Londres era o centro financeiro global. Mas, entre as duas guerras, perdia esse status à medida que seus fundamentos fiscais se deterioravam. Com o fim da hegemonia britânica e o nascimento de Bretton Woods, o dólar assumiu a liderança como reserva de valor.

O episódio britânico de 2022 é emblemático sobre como, sem o status de reserva global, os mercados punem rapidamente países com fundamentos frágeis. O anúncio de cortes de impostos sem compensações levou a uma reação agressiva dos mercados: os juros dos títulos de dez anos subiram mais de cem pontos-base em um curto período, e a libra caiu para mínimas históricas.

Se os EUA perderem sua posição como principal fornecedor de ativos seguros, seus mercados podem passar a se comportar como os das demais economias —altamente sensíveis a choques fiscais. O privilégio exorbitante não desaparece de forma abrupta, mas os sinais de fratura são cada vez mais evidentes.

Sem o amparo irrestrito de investidores estrangeiros e bancos centrais, a disciplina fiscal volta a ser inegociável.

 

O editorial do Estadão, por Carlos Eduardo Martin

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Carlos Eduardo Martins – A Terra é Redonda – 16/04/2025

A grande razão do atoleiro ideológico em que vivemos não é a presença de uma direita brasileira reativa a mudanças nem a ascensão do fascismo, mas a decisão da socialdemocracia petista de se acomodar às estruturas de poder

O editorial do jornal O Estado de S. Paulo de 12 de abril, contrário à anistia para Jair Bolsonaro e aos demais criminosos do 8 de janeiro, e crítico à posição assumida por Tarcísio de Freitas em favor do PL da anistia, revela o drama da velha oligarquia burguesa no Brasil. Não confia em Jair Bolsonaro, mas sem liderança política própria, é obrigada a fazer um pacto com o Partido dos Trabalhadores, que se presta ao papel de salvar uma burguesia parasitária, rentista, colonial e subdesenvolvida.

Estamos no meio de uma brutal crise orgânica da reprodução do capitalismo no Brasil. O PIB per capita brasileiro não cresce em dólares constantes desde 2013, oscilando entre soluços que não reverteram a tendência à baixa (ver Cepalstat), mas somos incapazes de oferecer uma alternativa ideológica ao nosso povo.

A grande razão do atoleiro ideológico em que vivemos não é a presença de uma direita brasileira reativa a mudanças nem a ascensão do fascismo, mas a decisão da socialdemocracia petista de se acomodar às estruturas de poder prevalecentes ao invés de lutar pelas grandes causas populares. Prefere a garantia de cargos, salários e remunerações no Estado – que alimentam a sua máquina partidária –, a enfrentar as grandes questões sociais, nacionais e democráticas – que podem ameaçar a sua estabilidade política imediata.

É falsa a tese de que as esquerdas não têm força porque existe o “pobre de direita”, produto da sua conversão à classe média baixa e da ofensiva fascista. A classe média brasileira é muito mais restrita e mais de 70% das famílias recebem remuneração abaixo do salário-mínimo necessário estipulado pelo DIEESE. A onda fascista existe, mas não possui toda essa força e encontra-se em crise de liderança e organização. A raiz da crise ideológica é a capitulação de classes do petismo, que desistiu de realizar transformações sociais no país para realizar a sua: converter-se em parte da elite burguesa brasileira.

Em 2006 a socialdemocracia petista teve mais votos que Jair Bolsonaro em 2018 e 2022, 12 ou 16 anos depois, sem o apoio dos dois maiores partidos do centrão de então (PSDB e PFL), da rede Globo e da grande burguesia liberal. A conversão de classes que desarmou a ideologicamente o povo brasileiro é a da elite petista e parte de seus militantes orgânicos a frações da burguesia, em particular, as médias e pequenas. Não foi a suposta ascensão dos extremamente pobres à classe média baixa.

A descoberta pontual e tardia petista de que no Brasil há uma direita refratária a mudanças sociais e políticas, usada para justificar a composição com as estruturas de poder e a capitulação, tampouco é aceitável, e revela grave manipulação oportunista. O que esperar de uma direita que levou ao suicídio de Getúlio Vargas? Que tentou o golpe de Estado em 1961? Que o conquistou em 1964? Que deixou impune o terrorismo de Estado em uma anistia que contraria o Tratado Interamericano de Direitos Humanos? Que estabeleceu outro golpe em 2016, impondo ainda o teto de gastos por emenda constitucional?

Houvesse no Brasil uma direita sensível às questões sociais, a urgência de uma esquerda de fato não seria tão grande. Sua absoluta necessidade vem de que as mudanças sociais e políticas dependem de uma vanguarda disposta a se arriscar na luta política, social e ideológica para promover o avanço da consciência de classe de um povo que dedica o seu cotidiano à sobrevivência.

No Brasil de hoje, a luta de classes se dá principalmente o plano interburguês entre os seguintes segmentos do grande capital:

(i) De um lado, o rentismo e a burguesia ilustrada, representados pelos grandes bancos brasileiros e o grande monopólio midiático da Globo, associados à liderança política da socialdemocracia petista e a sua capacidade de cooptar movimentos sociais, personalidades da cultura e da ciência e neutralizar o fascismo. Essa aliança se vincula contraditoriamente ao imperialismo liberal, representado pelo Partido Democrata e as forças multipolares impulsionadas pelo BRICS.

(ii) Do outro lado, estão o agronegócio, o extrativismo, as igrejas neopentecostais e as milícias. Em resumo, a grande burguesia do baixo clero, mas emergente em razão da desindustrialização brasileira, que se associa ao neofascismo.

O primeiro grupo impulsiona as taxas de juros reais mais elevadas para fortalecer os bancos nacionais, e não é casual que a Selic deflacionada tenha sido bem mais alta nos governos petistas que nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. O segundo grupo pretende promover a internacionalização financeira e a dolarização do país, pratica um arrocho fiscal brutal – com cortes nos gastos sociais e no custeio para atingir o conjunto dos trabalhadores e servidores públicos da educação e da saúde, organizadores das greves mais importantes do país nos últimos 15 anos –, e pretende expandir a fronteira agrícola e extrativista ampliando a superexploração da natureza e dos trabalhadores.

Essas forças representam as duas vias da tragédia brasileira. Encarnam formas distintas de modernização da dependência, do subdesenvolvimento e do legado colonial que mantêm o Brasil como uma nação de excluídos e um Estado muito abaixo das potencialidades que se abrem, num mundo multipolar e de transição energética, aos países continentais, anfíbios, dotados de recursos estratégicos e de uma população mestiça com imensa riqueza cultural e possibilidades de criação.

Nesse contexto, não surpreende o isolamento da minoria do PSol e de líderes como Glauber Braga, que se dedicam a combater intransigentemente o neoliberalismo e o fascismo, desvelando suas vinculações ou proximidades. A articulação de sua cassação na Comissão de Ética da Câmara de Deputados enquanto Arthur Lira – que a lidera, já sem o comando da casa – partia em viagem na comitiva presidencial de Lula para o Japão, e o silêncio no Palácio da Alvorada, são reveladores da extensão do incômodo que uma esquerda combativa pode causar.

Entretanto mesmo quando vencida ou derrotada, sua razão de existir permanece como necessidade histórica. Ganhando ou perdendo, Glauber Braga fica na história sufocada do Brasil profundo, que mais cedo ou mais tarde poderá se levantar, esgotadas as ilusões com forças decadentes e mantidas acesas as chamas e as centelhas da renovação da luta popular e democrática.

Carlos Eduardo Martins é professor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID) da UFRJ. Autor, entre outros livros, de Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina (Boitempo).

 

Momentos preocupantes

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O mês de abril está trazendo grandes movimentações nos cenários nacional e internacional, os agentes econômicos e produtivos estão passando por instantes de grandes preocupações, medos e pouca previsibilidade, desta forma, os investimentos produtivos se reduzem, as incertezas crescem, a insegurança dos trabalhadores aumenta e as organizações passam a repensar suas estratégias e seu planejamento econômico, buscando se adaptarem ao momento de volatilidades e grandes mutações no mundo dos negócios.

Vivemos um momento de conflitos comerciais e geopolíticos entre atores econômicos gigantescos, com impactos generalizados para toda a comunidade internacional, embora percebamos os momentos preocupantes que permeiam a sociedade mundial, sabemos também que nenhum dos grandes estrategistas de mercado, de acadêmicos renomados e de intelectuais que estudam a sociedade global, sabem o que vai acontecer com a sociedade global nos próximos meses, na verdade, atualmente, as modificações estão acontecendo não mais nos próximos meses, mas percebemos que as transformações estão acontecendo diariamente, discursos inflamados, além de publicações nas redes sociais e comentários agressivos e pouco educados, deixando de lado os tradicionais discursos diplomáticos.

Neste momento de crescimento da instabilidade e da volatilidade, percebemos o crescimento de um verdadeiro vale tudo global, onde as regras internacionais foram alteradas, leis criadas e assinadas por inúmeras nações, para fomentar o comércio e as trocas internacionais, estas regras estão sendo deixadas de lado, cada nação busca aumentar seus ganhos imediatos, deixando claro o incremento do individualismo e a sua busca frenética por mais  vantagens comerciais e financeiras, além de ganhos políticos e um melhor posicionamento na nova configuração de poder global.

Vivemos uma verdadeira guerra comercial, onde encontramos uma nação que vem perdendo espaço na estrutura industrial global e busca, de forma agressiva e violenta, retomar sua força e reencontrar seus instrumentos para retomar a liderança global, mesmo que para isso, sejam necessárias uma reestruturação de todo o comércio internacional e as instituições multilaterais. Neste momento, os Estados Unidos da América, grande ganhador das estruturas comercial e industrial do pós-segunda-guerra mundial, tenta alterar as regras e as convenções que eles mesmos foram patrocinadores, desta forma, percebemos que quando as regras não mais garantem sua liderança e sua hegemonia, as regras devem ser reescritas em prol de seus interesses imediatos e seus ganhos materiais.

Neste embate contemporâneo, encontramos resistências crescentes, governos nacionais adotam represálias no comércio internacional, países buscam novos parceiros no mundo das trocas produtivas, atraindo novos fornecedores e, desta forma, criam novos espaços de integração, novos interesses econômicos e produtivos e, neste cenário, ressurgindo novos nacionalismos e novas políticas protecionistas que, no começo do século anterior levou as nações a grandes conflitos militares, guerras fratricidas, além da matança de milhões de pessoas e patrocinaram devastações materiais.

As crises globais, em curso na sociedade contemporânea, as destruições ambientais, o incremento das guerras comerciais, o ressurgimento de nacionalismos exacerbados, a aversão aos imigrantes e a escalada militar que crescem no íntimos dos indivíduos, podem ser vistos como o primórdio de grandes conflitos bélicos e militares ou, o momento crucial para compreendermos que os desafios são gigantescos e a união entre povos e culturas são o começo da resolução da encalacrada que estamos vivendo na contemporaneidade, fruto do crescimento do egoísmo, da ganância, do individualismo e da busca frenética por acumulação material e os prazeres imediatos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

O consenso neoliberal, por Gilberto Maringoni

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Gilberto Maringoni – A Terra é Redonda – 15/04/2025

Há chances mínimas do governo Lula assumir bandeiras claramente de esquerda no que lhe resta de mandato, depois de quase 30 meses de opção neoliberal na economia

No início de março, em evento na sede do BTG Pactual, Edinho Silva, ex-prefeito de Araraquara e candidato a presidente do Partido dos Trabalhadores, debateu a situação do país e do governo Lula com representantes do sistema financeiro. Em meio à defesa de maior aproximação da administração federal com o mercado, o petista enfatizou: “Com a polarização não há racionalidade, com a polarização não se concebe (…) uma agenda de unidade para o país, independentemente de divergências partidárias”.

A “polarização”, tida como grande mal da vida política, tem aparecido em editoriais, artigos de opinião e declarações de líderes políticos e intelectuais brasileiros com ênfase crescente. O que significa acabar com a polarização num dos países mais desiguais do mundo?

Convergências na economia

A defesa do “fim da polarização”, da maneira como colocada pelo dirigente petista, aparenta ter grande contraste com a extrema-direita, mas revela o seu contrário quando o debate chega à economia. A pregação de Edinho Silva tem como meta resolver um problema de médio prazo – articular uma frente eleitoral que se oponha ao neofascismo em 2026 – e não realizar mudanças profundas na estrutura institucional do país. Deveria haver uma continuidade lógica entre as duas iniciativas – eleições e mudanças –, mas não é o que ocorre.

Ao mesmo tempo, ver a polarização com o maior dos males da Terra pode embutir um misto de ilusão, oportunismo e tergiversação diante de um quadro de riscos colocados para a democracia brasileira. Se raciocinarmos que as propostas da extrema-direita são incompatíveis com a institucionalidade, a polarização torna-se necessidade vital. É algo a ser acentuado – e não lamentado – para que a população tenha clareza do que está em jogo e possa fazer escolhas com clareza. A experiência do governo Bolsonaro mostra o caráter golpista, autoritário, elitista, negacionista, excludente e submisso ao imperialismo da extrema direita. Como não polarizar com um regime desses?

A visão de que a polarização deve ser evitada coloca na mesa pelo menos três problemas.

O primeiro denota que apesar de todas as tentativas de se encontrar diferenças na condução econômica entre as principais forças políticas do país, o que se percebe é o contrário. Há grande convergência – num arco que vai do centro à extrema direita – sobre a necessidade de um ajuste fiscal permanente e redentor, que submeta a ação do Estado à alta-finança.

O segundo problema reside no fato de os contrários à polarização não deixarem claras as bases para a construção de uma hipotética unidade de forças. Da parte da grande mídia e da direita, parece haver certo saudosismo dos tempos do chamado “pensamento único”, utopia neoliberal derivada da famosa frase da ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, “Não há alternativa”.

O terceiro é que “polarização” não é algo ou alguém dotado de vontade própria, capaz de impor pontos de vista, como se fosse um ser racional. Reclamar da “polarização” é como lamentar “a briga”, “o desentendimento” ou a “falta de amor” entre as pessoas. “Polarização” é uma relação de oposição entre dois polos, dois pontos de vista, duas condutas.

Com base nesses três pontos, vale perguntar: existe essa oposição real no que interessa – nos projetos econômicos – entre a frente liderada pelo PT e as forças aglutinadas em torno de Jair Bolsonaro? Ambas têm como pedra de toque, em maior ou menor grau, políticas de austeridade.

O consenso neoliberal

A fabricação do consenso neoliberal na sociedade é condição essencial para sua aplicação. Se pensarmos friamente, não é fácil convencer o eleitorado de que cortes em verbas de Educação e Saúde, venda de empresas públicas eficientes e perdas de direitos sociais representam vantagens para as maiorias. Não se trata de uma convergência à qual se chega pelo livre curso de ideias e debates públicos, mas através de uma sólida unidade entre diversos setores do grande capital (o que inclui a mídia e as big techs).

Essa coalizão tem como tarefa principal repetir num uníssono um conjunto de meias verdades e valores duvidosos sem contrapontos. Não falta o uso desmedido da força para sua imposição. Vozes dissonantes foram desqualificadas, ridicularizadas e até eliminadas para a fabricação do grande consenso, que ganhou ares de novo valor civilizatório.

A atual hegemonia neoliberal foi alcançada através da adesão de parte significativa da esquerda. Não nos esqueçamos do papel que tiveram o Partido Trabalhista britânico, o Partido Socialista Operário Espanhol, os Partidos Socialistas francês, italiano e chileno e o peronismo nos anos 1980-90. No caso brasileiro, o modelo neoliberal foi imposto à sociedade a partir do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), tido à época como progressista, e jamais teve suas medidas contestadas na prática pelas administrações do Partido dos Trabalhadores.

O neoliberalismo foi implantado em boa parte do mundo nos anos 1980-90 e vive uma segunda e mais agressiva fase a partir de crise de 2008. Novas modalidades de golpes começaram a surgir na América Latina, através de instâncias do Judiciário e do Legislativo, com auras de legalidade incontestes, como em Honduras (2009), Paraguai (2012) e Brasil (2016). A articulação para a deflagração do impeachment contra a ex-presidenta Dilma Rousseff envolveu múltiplos atores no campo dos três Poderes e a nata do capital financeiro e do agronegócio. Foi a famosa frente “com o Supremo e com tudo”, como bem sintetizou o ex-senador Romero Jucá.

A ponte ampla

Meses antes do golpe, no final de outubro de 2015, a direita brasileira colocou na rua sua síntese programática, centrada na pauta econômica. Apesar de Dilma ter entregue quase todas as exigências do mundo financeiro, como um ajuste fiscal que elevou a taxa de desemprego de 6,6% em dezembro de 2014 para 11,3, em março de 2016 (IBGE), o topo da pirâmide social queria mais. Esse “mais” ficou conhecido sob o título de “Uma ponte para o futuro”.

Embalado num livreto de 20 páginas, seu texto resumia um agressivo programa ortodoxo, que compreendia, entre outras coisas, o seguinte: “É necessário em primeiro lugar acabar com as vinculações constitucionais estabelecidas, como no caso dos gastos com saúde e com educação. (p. 9) (…) Outro elemento para o novo orçamento tem que ser o fim de todas as indexações, seja para salários, benefícios previdenciários e tudo o mais. (p. 10) (…)

“O primeiro objetivo de uma política de equilíbrio fiscal é interromper o crescimento da dívida pública, para, em seguida, iniciar o processo de sua redução como porcentagem do PIB. O instrumento normal para isso é a obtenção de um superávit primário capaz de cobrir as despesas de juros menos o crescimento do próprio PIB. (p. 13) (…) [Será preciso] executar uma política de desenvolvimento centrada na iniciativa privada, por meio de transferências de ativos que se fizerem necessárias, concessões amplas em todas as áreas de logística e infraestrutura, parcerias para complementar a oferta de serviços públicos e retorno a regime anterior de concessões na área de petróleo, dando-se a Petrobras o direito de preferência”.

O “Ponte para o futuro” é uma formulação programática, cujos limites não deveriam ser desrespeitados por governo algum. O arrazoado apresentado pelo PMDB, elaborado por alguns dos melhores cérebros do mundo do dinheiro, funcionou como uma espécie de projeto de constituinte financeira para a reestruturação do Estado brasileiro. É uma obra em andamento, que não admite retrocessos nas medidas adotadas.

Baliza para reformas regressivas

O documento se constituiu na baliza para as reformas trabalhista e previdenciária, o teto de gastos e o arcabouço fiscal, as privatizações da Eletrobrás, da BR Distribuidora, do saneamento, das parcerias público-privadas (PPPs), dos programas de parcerias de investimento (PPIs), das concessões de infraestrutura (portos, aeroportos e estradas), da autonomia do Banco Central etc. São alterações para subordinar o poder público às dinâmicas do mercado financeiro e da agroeconomia de exportação.

A ministra Simone Tebet, do Planejamento, em entrevista à jornalista Míriam Leitão no último 12 de março, mostrou a rota do consenso pretendido para os próximos anos: “Em 2027, seja quem for o próximo presidente, ele não governa com esse arcabouço fiscal sem gerar inflação, dívida pública e detonar a economia. Então nós temos uma janela de oportunidade, que não é agora e nem às vésperas das eleições de 2026”, pois ninguém quer tratar disso às vésperas da disputa, afirma a ministra.

A janela de oportunidade, segundo ela, virá após o pleito, “seja o presidente Lula candidato, seja outro candidato, [a tarefa é] fazer o dever fiscal, cortar gastos, (…) fazer um arcabouço mais rigoroso, que não mate o paciente, mas que garanta sustentabilidade para baixar a dívida, os juros, a inflação e faça a economia crescer”.

Seja qual for o governo eleito, a condução econômica deve permanecer intocada, como se opções de investimentos e alocações de recursos públicos fossem realizadas a partir de obscuras diretrizes “técnicas”, a exemplo do que propagam operadores de mercado e membros da área econômica do governo.

Vale sempre perguntar “Técnicas em favor de quem?”, como observou o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos (1935-2019), num pequeno e profético livro intitulado Quem dará o golpe no Brasil?, lançado em 1962. Simone Tebet na prática propõe um golpe consensual entre as grandes forças políticas com representação parlamentar, para engessar a próxima administração.

Diante dessa abrangente somatória de pressões, esforços, consentimentos e concordâncias na aplicação do programa que embalou o golpe contra Dilma, como se pode falar que o traço principal da vida brasileira seja uma “polarização” que não se revela na política econômica?

Grandes interesses intocados

O consenso – e não a polarização – resulta de escolhas feitas para não se colocarem em risco interesses seculares. Em maior ou menor grau, todas elas, nos últimos 30 anos, aprofundaram medidas liberalizantes, enfraqueceram estruturas de Estado nas áreas sociais e de promoção do desenvolvimento.

Ao mesmo tempo, o consenso pela austeridade fiscal é um gerador de tensões e instabilidades, pois implica a sobreposição dos interesses de uma minoria abastada sobre os da maioria da população. Mais do que tudo, sua imposição acima de orientações partidárias geralmente leva governos eleitos com grande expectativa popular a frustrarem suas bases sociais, contribuindo para o senso comum de que “políticos são todos iguais”.

O terceiro governo Lula é resultado da constituição de uma ampla frente política entre contrários, foi essencial para se derrotar a extrema direita, numa situação delicada da vida nacional. Embora a face visível dessa coalizão seja marcada pela presença de lideranças conservadoras, a convergência real envolveu fatia considerável do PIB brasileiro, um amplo espectro partidário, da esquerda à direita tradicional, passando por golpistas de 2016 e setores desgarrados da extrema direita.

No entanto, ao longo do primeiro ano de gestão, ficou claro que a ampla frente tinha como amálgama unificador um severo programa de cortes de gastos, que se aproxima do “Ponte para o futuro”. Embora o governo seja tomado por interesses privados, em especial no Ministério da Educação, que existam compromissos de não se tocar em setores como Forças Armadas, ou em concessões na área de infraestrutura, que sua política externa seja errática e que a política de comunicação siga priorizando relações com a mídia tradicional, com destaque para a Rede Globo, entre outras iniciativas, o governo Lula tem marcadas diferenças com a gestão Bolsonaro, na esfera política. No que toca à democracia, a gestão petista busca se colocar em terreno oposto ao do ex-capitão.

O golpe como ameaça real

Não se podem minimizar as ameaças que rondam o país, desde a tentativa golpista de 8 de janeiro de 2023, até a permanente presença da extrema direita como fenômeno de massas na sociedade. A vitória de Norte a Sul do reacionarismo radical nas eleições municipais de 2024 é expressão desse enraizamento.

Se a polarização não é estrutural nas disputas, qual o motivo da disseminação do ódio e da ameaça autoritária na sociedade? Tudo indica existir uma espécie de briga de torcidas eleitorais nas redes e nas ruas, estimulada e fortalecida por cúpulas partidárias que buscam a todo custo despolitizar as eleições de 2026, tirando de cena uma real disputa de rumos. O confronto entre o que se pode chamar de neoliberalismo progressista e a extrema-direita é uma disputa para se ver quem aplica de forma mais eficiente e com menos conflito social o programa do financismo.

Diante desse dilema, vem a clássica pergunta: o que fazer? Vale destacar que o presidente Lula – como constata com grande apuro o ex-ministro José Dirceu – comanda um governo de centrodireita, sem qualquer expectativa de transformação da estrutura social brasileira. Ainda assim, para a maioria da população, o atual governo é de esquerda e seus principais oponentes estão na direita. É muito difícil que uma candidatura nucleada pelo lulismo seja ultrapassada pela esquerda, tendência de reduzida expressão na sociedade e nos partidos com representação no Congresso.

O enfrentamento eleitoral de 2026, embalado por inteligência artificial, jogo bruto das big techs e tiktoquização programática se dará no terreno da baixaria, das fake news, das pautas carolas, moralistas e repleta de ataques pessoais. É pouco provável que a política esteja no posto de comando das grandes candidaturas. Ao mesmo tempo, há chances mínimas do governo Lula assumir bandeiras claramente de esquerda no que lhe resta de mandato, depois de quase 30 meses de opção neoliberal na economia.

Apesar disso, se a desaceleração planejada pela equipe econômica não sair do controle e se for ampliado algum tipo de alívio material na base da sociedade, será possível enfrentar com chances a extrema direita. Há dois anos havia condições de mudança e o presente poderia ser diferente, mesmo com o crescimento do neofascismo pelo mundo. Antes de 2026 há que se disputar os dias que correm.

Gilberto Maringoni é jornalista e professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC).

 

‘Nunca vi um pobre’ por Ana Cristina Rosa

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Fiquei estarrecida com o relato sobre a euforia e empolgação de um jovem da elite paulistana diante da miséria

Ana Cristina Rosa, Jornalista especializada em comunicação pública e vice-presidente de gestão e parcerias da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPública).

Folha de São Paulo, 14/04/2025

Quando penso que já vi e ouvi de tudo um pouco, a vida insiste em surpreender. Fiquei estarrecida com o relato sobre a euforia e empolgação de um jovem da elite paulistana diante da miséria. “Nunca vi um pobre”, disse o estudante de uma renomada instituição privada de ensino superior ao participar de uma ação institucional voltada a prestar serviços públicos à população carente e em situação de rua em São Paulo.

Tamanha falta de discernimento e compreensão da realidade brasileira me deixou chocada. Como pode um universitário “bem-nascido, bem-criado, de boa família” e que vive na maior cidade de um dos países mais desiguais do mundo nunca ter visto um pobre?

Não pode. Afinal, a miséria é explícita no Brasil. E, francamente, não deveria empolgar ninguém, mas causar constrangimento e desconforto generalizado (no mínimo). Em Sampa, para “ver um pobre” basta dar uma volta em qualquer quarteirão da avenida Paulista, cartão postal da cidade.

Nem a vida confortável e luxuosa numa mansão (nos Jardins, no Morumbi, na Vila Olímpia ou em qualquer outro bairro nobre) é capaz de “blindar” a elite do contato com a pobreza. Não dá para ignorar que são os pobres que trabalham como babás, empregadas domésticas, cozinheiras, motoristas, jardineiros, porteiros e toda sorte de “eiros” a serviço de quem tem dinheiro de sobra. Pobres e predominantemente negros —é bom que se diga.

Pelas ruas deste país, é impossível deixar de avistar um pobre miserável perambulando, dormindo ao relento, jogado no chão, pedindo esmola ou comida, vendendo alguma quinquilharia ou ‘chapado’ para tolerar a rudeza de um cotidiano privado de esperança.

É desalentador e vergonhoso constatar que a sociedade brasileira continua a formar futuros “líderes” incapazes de sequer enxergar a realidade nacional —que dirá promover a transformação social necessária para fazer deste um país mais justo e menos desigual.

Uma elite que sabe muito, mas entende pouco, por Michael França

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Entre cafezinhos e distinções formais, ela mal compreende seu próprio país

Michael França, Ciclista, vencedor do Prêmio Jabuti Acadêmico, economista pela USP e pesquisador do Insper. Foi visiting scholar nas universidades de Columbia e Stanford.

Folha de São Paulo, 15/04/2025

Em uma manhã qualquer, entre um brunch com avocado e uma conversa sobre alguma viagem à Europa, um membro de uma típica parcela da elite brasileira pode ser flagrado cometendo um erro antigo, mas ainda recorrente: confundir experiências internacionais com sofisticação, e credenciais com educação de excelência.

Já faz algum tempo que se sabe que o acúmulo de conhecimento formal não anda, necessariamente, de mãos dadas com o desenvolvimento integral do ser humano. Ainda assim, quando se trata das elites brasileiras, o tema raramente é considerado à altura de sua importância.

Talvez porque seus protagonistas ocupem posições confortáveis demais para serem questionados. Ou, quem sabe, porque a ala mais esclarecida prefira evitar o desconforto de confrontar seus pares que estão blindados pela própria soberba. No fim, uma parte peca pela ignorância, a outra, pela complacência.

Contudo, essa negligência não é acidental. Ela tem raízes profundas na lógica educacional brasileira, que, mesmo em suas melhores versões, funciona menos como instrumento de formação e mais como ornamento de distinção social.

Em vez de expandir horizontes, a educação das elites tende a ser um subterfúgio para um sofisticado mecanismo de hierarquização social. Um filtro de status. Um verniz técnico que, por vezes, encobre uma brutal ausência de interesse em construir uma nação, em vez de apenas se servir dela.

Nossos melhores colégios e universidades até formam especialistas competentes, mas, em muitos casos, deformam cidadãos. Produzem indivíduos altamente eficazes do ponto de vista técnico, mas com baixa sensibilidade social. O custo disso é alto, pois se cria uma elite treinada para administrar, mas não para compartilhar. Uma elite focada em vencer, mas não em conviver.

Existe no país uma pedagogia do privilégio. Uma pedagogia que ensina, desde cedo, que o mundo é um espaço a ser explorado, não construído coletivamente. Ensina-se a liderar, mas não a escutar. Ensina-se a performar, mas não a refletir. E, não raramente, ensina-se uma arrogância disfarçada de competência, juntamente com um desprezo pelas dores e experiências do país real. Aquele que começa logo após os altos muros dos apartamentos e condomínios fechados.

Mesmo nas franjas mais conscientes dessa elite, o problema não é o excesso de educação, mas a estreiteza com que ela é concebida. Ocorre uma formação instrumental, mas sem densidade moral. E, quando essa elite malformada ocupa os espaços de decisão, tende a perpetuar privilégios, naturalizar desigualdades e reforçar estruturas excludentes, muitas vezes com a convicção sincera de estar fazendo o melhor.

Curiosamente, falta-lhe formação para pensar o país como um todo. Além disso, parte significativa ainda vê o Brasil como uma plataforma de extração, não como uma nação a ser construída. A despeito de sua mobilidade internacional, seu imaginário segue provinciano.

Transformar a educação dessas elites exige muito mais do que reformar currículos, exige reformar consciências. Porque um país com elites mal-educadas está fadado a repetir os mesmos erros, porém em versões cada vez mais disfarçadas de excelência.

 

Reflexões de um neto de Keynes, por Eduardo Giannetti da Fonseca

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Eduardo Giannetti da Fonseca – Folha de São Paulo – 15/10/1998

Existem textos que volta e meia desejo revisitar. Penso neles como penso nas músicas, paisagens e cidades históricas que nos acolhem e surpreendem toda vez que a elas retornamos. São obras dotadas de fecundidade inesgotável. Tesouros de infinita sugestividade.

Ao deleite subterrâneo da repetição -o reencontro periódico com o que nos apraz e comove- junta-se o prazer da surpresa inesperada e reveladora: o arrepio da descoberta de novos ângulos de leitura e possibilidades insuspeitas de fruição. O valor está na química do encontro.

Nesses dias de sombra e apreensão globais, quando o espectro da Grande Depressão dos anos 30 parece rondar a imaginação de tantos, resolvi aproveitar o último feriado para revisitar “As Possibilidades Econômicas para os Nossos Netos” – o belo e provocador ensaio publicado, em 1930, pelo economista britânico John Maynard Keynes e por ele escolhido para encerrar a coletânea “Essays in Persuasion” do ano seguinte.

Não se trata de artigo técnico de economia, mas de uma reflexão abrangente sobre o lugar do econômico e da ambição material na existência humana. O real e o ideal.

Quem nos fala aqui não é o macroeconomista da “Teoria Geral”, mas o filósofo moral e político que sempre dedicou boa parte de seu tempo na Universidade de Cambridge ao convívio e interlocução ativa com filósofos como Bertrand Russell, G.E. Moore e Wittgenstein.

O argumento central do ensaio divide-se em três partes: presente, passado e futuro.

Na primeira, Keynes faz um apanhado do quadro depressivo da época e se insurge contra os dois tipos de pessimismo que percebia ao seu redor: o dos revolucionários (para quem só uma ruptura violenta com o sistema oferecia salvação) e o dos reacionários (para quem qualquer ação inovadora era risco de ruptura do sistema).

A crise, sustenta, não era o reumatismo senil de um mundo caduco, mas sim as dores de crescimento de uma fase de rápida mudança em que as instituições e políticas não puderam acompanhar o ritmo vertiginoso das transformações pelas quais as ações e o ambiente prático vinham passando.

O propósito do ensaio, porém, não era discutir o presente e o futuro imediato. Era imaginar o que poderia vir mais à frente – indagar prospectivamente sobre o tipo de mundo para o qual tenderia a humanidade.

Ultrapassada a tormenta e retomada a trajetória da bonança, inquiria Keynes, “quais são as possibilidades econômicas para os nossos netos?”.

A resposta parte de um retrospecto sinóptico contrastando, de um lado, a estagnação milenar da capacidade produtiva do homem no período que vai da pré-história a meados do século 18 e, de outro, a espantosa expansão verificada a partir de então.

Graças à força combinada da inovação técnica e da acumulação de capital (e apesar do forte crescimento populacional), o padrão médio de vida nos países civilizados havia quadruplicado em apenas dois séculos – um avanço material pelo menos duas vezes superior ao ocorrido em quatro milênios de labuta e evolução histórica até o advento da era moderna.

A continuidade desse avanço, antecipava Keynes, permitiria quadruplicar de novo o padrão de vida do cidadão comum no espaço de mais algumas décadas. Isso significava que “o problema econômico não é, se mirarmos o futuro, o problema permanente da espécie humana”. Tudo indicava que ele poderia ser derrotado, em definitivo, em no máximo duas ou três gerações.

Mas, supondo que isso aconteça, ele pergunta, quais seriam as consequências? Como seria uma sociedade na qual o “problema econômico” – a escassez e a luta no mercado, a ansiedade financeira e a incerteza sobre o amanhã – estivesse de fato em plano secundário, “no assento traseiro que é o seu lugar”, e não mais absorvesse o melhor de nossas energias materiais e morais?

“Quando a acumulação de riqueza já não for mais de alta importância social”, refletia Keynes, “haverá grandes mudanças no código de ética”. O ser humano estará em condições de se desfazer dos falsos princípios morais que o têm acorrentado por séculos a fio e que o levaram a enaltecer alguns dos mais repugnantes atributos, como a avareza, a cobiça e o calculismo financeiro, como se fossem grandes virtudes.

“Estaremos, então”, prosseguia, “em condições de ousar atribuir ao motivo monetário o seu verdadeiro valor: O amor possessivo pelo dinheiro será reconhecido pelo que é, uma morbidez bastante repulsiva, uma dessas propensões semicriminosas e semipatológicas que se conduz com um arrepio para os especialistas em doenças mentais”.

O centro de gravidade da vida humana deixaria de ser o “detestável amor ao dinheiro” e, em seu lugar, a arena dos corações e mentes passaria “a ser ocupada pelos nossos problemas reais – os problemas da vida e das relações humanas, da criação, da conduta e da religião”.

No mundo dos netos de Keynes, os fins valeriam mais que os meios e o bem estaria acima do útil. A busca da melhor vida não se renderia ao sacrifício no altar da prudência.

O valor econômico seria uma estrela menor na constelação dos valores humanos.

Ao terminar a releitura do texto fiquei pensando no que diria Keynes hoje em dia, à luz não só do que se passou desde sua época, mas da crise em que estamos metidos. Fiz uma conta simples: a geração dos netos de Keynes (nascido em 1883, sem filhos) chegaria à idade adulta nos anos 60 e 70.

A prosperidade dos anos dourados do pós-guerra e da globalização triunfante superou as suas mais altas expectativas. Alguns netos de Keynes nos anos 60, é verdade, bem que tentaram, mas o sonho revelou-se anêmico e naufragou.

A impressão que tenho é que estamos mais longe hoje da utopia keynesiana do que quando ela foi formulada. Continuaremos perpetuamente condenados ao túnel da necessidade? Pendurados ao “problema econômico” como preocupação obsessiva e perene da espécie humana?

O mundo clama por um novo Keynes (o economista), que mostre como domar a fera da globalização financeira. Mas o que mais nos falta, suspeito, é um outro Keynes (o filósofo moral) que elucide a natureza da compulsão econômica que a seus netos devora. Ou seria um novo Freud?

A economia para crianças de J. M. Keynes, por Leonardo Boff

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Leonardo Boff – A Terra é Redonda – 11/04/2025

Keynes não via a economia como algo absoluto em si, mas no conjunto das atividades humanas. Mostrou-se muitas vezes um radical humanista e como tal com forte carga utópica

Nos dias atuais devido à subversão feita por Donald Trump em todos os mercados mundiais, o assunto dominante é a economia e os efeitos das políticas tarifárias impostas por ele. São medidas tresloucadas, aplicadas a toda a humanidade, a 180 países, desestruturando as economias nacionais e prejudicando particularmente a população pobre. Só gente sem coração e sem qualquer senso de humanidade pode tomar medidas desta natureza.

É neste contexto que me refiro ao pai da macroeconomia John Maynard Keynes (1883-1946). Considerado um dos maiores economistas dos últimos tempos, cuja função do Estado, para ele, é o de ser promotor do desenvolvimento ajudou a tirar a Europa da devastação da Segunda Guerra Mundial e deu rumo à economia mundial. Não via a economia como algo absoluto em si, mas no conjunto das atividades humanas. Mostrou-se muitas vezes um radical humanista e como tal com forte carga utópica.

Refiro-me a um texto muito pouco citado. Numa palestra em 1926 dizia: “as divindades que presidem a vida econômica não pode ser outra coisa que gênios do mal; de um mal necessário que ao menos, daqui há um século nos obrigará a fazer crer a cada um e a nós mesmos que a lealdade é uma infâmia e que a infâmia é a lealdade, pois a infâmia nos é útil e a lealdade não”. Em outras palavras – completava –, a humanidade chegará ao consenso de considerar a avareza, a usura e a prudência como indispensáveis para nos tirar do túnel da necessidade econômica a nos levar à luz do dia”.[1]

“Só então se alcançará o bem-estar geral e será o momento em que nossas crianças e esse é o sentido do meu ensaio “Perspectivas econômicas para nossas crianças” finalmente compreenderão que o bem é sempre melhor que o útil.

“Então nem precisam mais se lembrar de certos princípios, os mais seguros e os menos ambíguos da religião e da virtude tradicional: que a avareza é um vício, que é maldade extorquir os benefícios da usura, que o amor ao dinheiro é execrável”.

“Os que caminham seguramente pelo caminho da virtude e da sabedoria serão aqueles que se preocupam menos com o amanhã. E uma vez mais chegaremos a valorizar mais os fins que os meios e a preferir o bem ao útil. Honraremos aqueles que nos ensinaram a acolher o momento presente de maneira virtuosa e prazerosa, pessoas excepcionais que sabem saborear as coisas imediatas, como os lírios do campo que não tecem nem fiam”.

Mesmo que a proposta do humanista do eminente economista não se tenha realizado ainda (irá se realizar?) pois vivemos sob a ditadura do vil metal e da economia especulativa que nada produz a não ser mais dinheiro ainda, deixando grande parte da humanidade na pobreza e na miséria. Perceberá e isso vai continuar valendo que a essência da vida não está no acumular ilimitadamente e no consumir desmedidamente. Mas o sentido da vida consiste em viver a vida, gozá-la, reproduzi-la, celebrá-la, compartilhá-la com outros. Isso não é dado pela economia vigente. Em uma palavra, é o inútil que conta e não o que é economicamente útil.

Seguramente o sábio humanista e economista John Maynard Keynes nos tenha revelado a verdadeira natureza da economia, compreensível mais pelas crianças do que pelos adultos.

Hoje perdemos esta perspectiva e somos todos reféns da cultura do capital que nos obriga a gastar nossas vidas e nosso tempo em trabalhar, em produzir e em consumir no contexto de uma sociedade perversa, cujo ideal é a acumulação sem limite e o consumismo, sociedade que transformou tudo em mercadoria, até as coisas mais sagradas ou vitais como órgãos humanos.

A seguir por este caminho, por mais tarifas que o ensandecido Donald Trump castigue a inteira humanidade, iremos, provavelmente, ao encontro de uma grande tragédia, eventualmente de nosso próprio fim. Merecidamente, pois, não cumprimos o fim para o qual temos sido criados: viver a vida e agradecê-la.

Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Cuidar da Casa comum: pistas para protelar o fim do mundo (Vozes)

Indústria e Progresso, por Luiz Gonzaga Belluzzo

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Luiz Gonzaga Belluzzo – A Terra é Redonda – 02/04/2025

A evolução da indústria e seu impacto nas economias contemporâneas

Paul Krugman disparou um post no Substack a respeito das políticas de Donald Trump. “Este post é sobre como as políticas de Donald Trump não poderiam ‘nos tornar uma nação manufatureira novamente’, mesmo que conseguissem reduzir muito os déficits comerciais… As pessoas devem entender que seremos uma economia de serviços, não importa o que aconteça, a fixação na manufatura como a única fonte de bons empregos está desatualizada”. Esta consideração de Paul Krugman está ancorada na concepção que privilegia as relações entre três setores: agricultura, indústria (manufatura) e serviços. Primário, secundário e terciário.

Para cuidar do tema dos três setores, seria oportuno tratar da Revolução Industrial. O historiador Carlo Cipolla escreveu: “A Revolução Industrial transformou o homem agricultor e pastor no manipulador de máquinas movidas por energia inanimada”. A ruptura radical no modo de produzir introduziu profundas alterações no sistema econômico e social.

Aí nascem, de fato, novas forma de sociabilidade, a urbe moderna e seus padrões culturais. A diferença entre a vida moderna e as anteriores decorre do surgimento do sistema industrial, que não só cria bens de consumo e os bens instrumentais para produzi-los, como suscita novos modos de convivência entre agricultura, indústria e serviços. Novas formas de “estar no mundo”.

A ocorrência da Revolução Industrial no fim do século XVIII despertou os devaneios de Alexander Hamilton, nos Estados Unidos, com seu Relatório sobre as Manufaturas ou as truculências de Otto von Bismarck, encantado com os maquinismos e a ferrovia.

A indústria não pode ser concebida como mais um setor ao lado da agricultura e dos serviços. A ideia da revolução industrial trata da constituição histórica de um sistema de produção e de relações sociais que subordinam o desempenho da economia à sua capacidade de gerar renda, empregos e criar novas atividades. O surgimento da indústria como sistema de produção apoiado na maquinaria endogeniza o progresso técnico e impulsiona a divisão social do trabalho, engendrando diferenciações na estrutura produtiva e promovendo encadeamentos intra e intersetoriais.

Em seu movimento revolucionário, o sistema industrial deflagrou mudanças na agricultura e nos serviços.

A agricultura contemporânea não é mais uma atividade “natural”, e os serviços já não correspondem ao papel que cumpriam nas sociedades pré-industriais. O avanço da produtividade geral da economia não é imaginável sem a dominância do sistema industrial no desenvolvimento transformador dos demais setores.

Os autores do século XIX anteciparam a industrialização do campo e perceberam a importância dos novos serviços gestados nas entranhas da expansão da indústria. Não há como ignorar, por exemplo, as relações umbilicais entre a Revolução Industrial, a revolução nos transportes e as transformações dos sistemas financeiros no século XIX. São reconhecidas as interações entre a expansão da ferrovia, do navio a vapor e o desenvolvimento do setor de bens de capital apoiado no avanço da indústria metalúrgica e da metalomecânica e na concentração da capacidade de mobilização de recursos líquidos nos bancos.

A introdução dos métodos “industriais” na agricultura e nos serviços vem promovendo o que convencionamos qualificar de hiperindustrialização. Em seu desenvolvimento, a indústria suscitou o avanço do tecnológico nos demais setores. As técnicas e equipamentos modernos – os métodos industriais – atenuaram a subordinação da agricultura aos caprichos da natureza.

Os serviços, apresentados por Paul Krugman como a vanguarda das economias de hoje, sofrem os benefícios do avanço tecnológico. Aí estão a internet e suas redes de comunicação que permitem o comércio eletrônico e o ensino à distância.

A introdução de métodos ‘industriais’ em serviços e na agricultura promove a “hiperindustrialização”.

Ademais, a manufatura contemporânea é conduzida pelo aumento do volume de dados, ampliação do poder computacional e conectividade, a emergência de capacidades analíticas aplicada aos negócios, novas formas de interação entre homem e máquina, e melhorias na transferência de instruções digitais para o “mundo físico”, como a robótica avançada.

É intenso o movimento de automação baseado na utilização de redes de “máquinas inteligentes”. Nanotecnologia, neurociência, biotecnologia e agora a inteligência artificial formam um bloco de inovações com enorme potencial de revolucionar as bases técnicas das economias contemporâneas.

Os avanços da estrutura técnica supõem a aplicação continuada e sistêmica da pesquisa científica. Um arguto pensador do século XIX criou a figura do General Intellect para designar a relação entre o avanço do conhecimento “socializado” nas universidades e instituições de pesquisa.

General Intellect se institui em uma forma de apropriação dos significados do conhecimento humano, em particular dos códigos da ciência. Para a consecução de seus propósitos, a nova economia toma a educação, cujos métodos e objetivos são ajustados aos requerimentos da aceleração do avanço dos ganhos de produtividade, no mesmo movimento em que impõe critérios de qualificação dos trabalhadores – cada vez mais exclusivos e “excludentes”.

Todos os métodos que nascem dessa base técnica não podem senão confirmar sua razão interna: são métodos de produção destinados a aumentar a produtividade social do trabalho em escala crescente. Isso suscitou a intensificação da introdução dos métodos “industriais” na agricultura e nos serviços, promovendo o que convencionamos qualificar de hiperindustrialização.

Essa expressão – “hiperindustrialização” – cuida de sublinhar a radical transformação das relações entre os setores mencionados acima. Voltamos a Carlo Cipolla: “A Revolução Industrial, transformou o homem agricultor e pastor no manipulador de máquinas movidas por energia inanimada”.

Luiz Gonzaga Belluzzoeconomista, é Professor Emérito da Unicamp. Autor entre outros livros, de O tempo de Keynes nos tempos do capitalismo (Contracorrente).

Cinema: A vertigem da adolescência, por José Geraldo Couto

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Adolescência faz do plano-sequência não um fetiche, mas recurso potente para mostrar atordoamentos, labirintos, embates… E, omitir a catarse (o julgamento do caso) incita a pensar sobre como o mal floresce no mundo contemporâneo, para além de um indivíduo

José Geraldo Couto – OUTRAS PALAVRAS – 10/04/25

Os leitores habituais deste blog sabem que nossa prioridade absoluta são os filmes exibidos nos cinemas, mas excepcionalmente uma obra lançada no streaming justifica, por um ou outro motivo, sua presença aqui. É o caso, agora, de Adolescência, microssérie da Netflix, escrita por Stephen Graham e Jack Thorne e dirigida por Philip Barantini.

Como se sabe, trata-se da história, narrada em quatro episódios, de um garoto inglês de 13 anos condenado pelo assassinato de uma colega de escola. O garoto em questão é Jamie Miller (Owen Cooper), filho do encanador Eddie Miller (Stephen Graham, um dos roteiristas) e estudante de um colégio público de bairro popular. Ao falar dele, alguns spoilers serão inevitáveis.

Usos do plano-sequência

O que torna Adolescência um fenômeno singular, além do apelo urgente e dramático de seu tema e da excelência da produção, é sua opção formal pela tomada contínua, sem cortes, de cada um dos episódios. É o chamado plano-sequência, usado ocasionalmente no cinema em contraposição à habitual decupagem clássica, que fragmenta cada cena em diversos cortes e pontos de vista.

Considerado uma marca do cinema moderno, o plano-sequência tem sido usado desde os anos 1930 com os mais diversos propósitos expressivos. Um caso pioneiro é a esplêndida abertura de Scarface (Howard Hawks, 1932) e a experiência mais radical e paradigmática é Festim diabólico (Alfred Hitchcock, 1948), primeiro longa-metragem que simula (mediante truques engenhosos) uma única tomada contínua. Desde então um punhado de cineastas brilhantes (Welles, Antonioni, De Palma, Altman) adotou o recurso, cada um à sua maneira e com finalidades próprias.

No caso de Adolescência, houve quem acusasse os realizadores de usar o plano-sequência como um fetiche, uma bossa exibicionista e desnecessária. Estou aqui para discordar.

Em Adolescência, a meu ver, cada episódio se serve do plano-sequência com um propósito diferente. No primeiro, que encadeia num único fôlego a invasão da casa de Jamie, sua condução à delegacia e a todos os trâmites e situações que nos apresentam um fato brutal de maneira igualmente brutal, o efeito é de atordoamento e de sufoco. Somos lançados no meio da voragem, sem tempo para respirar e espairecer.

Labirinto de perigos

O segundo episódio, que mostra a visita do inspetor policial Luke Bascombe (Ashley Walters) e sua colega (Faye Marsay) ao colégio de Jamie, retrata a escola como um labirinto fervilhante de surpresas e perigos, feito de bullying, afronta e indisciplina. Ao passar sem cerimônia de um ambiente a outro, de um grupo a outro de personagens, a câmera nos deixa sempre a sensação de que há algo acontecendo às nossas costas, um evento ou sentido que nos escapa. É ali, pressentimos, que nasce o perigo, potencializado pela internet, como indica o filho do policial Bascombe, ele próprio vítima da violência reinante.

Totalmente diversa é a utilização do plano-sequência no terceiro episódio, ocupado em sua maior parte pela entrevista entre Jamie e a psicóloga (Erin Doherty) encarregada de procurar entendê-lo. Aqui a tomada contínua serve a um adensamento quase insuportável da atmosfera de embate entre duas mentes, duas vivências, duas sensibilidades. A percepção do tempo real intensifica a tensão, o desconforto e a imprevisibilidade da cena. É, antes de tudo, um duelo entre duas atuações fabulosas. (Chocante é saber que se trata da primeira experiência cinematográfica do garoto Owen Cooper.)

O quarto e último episódio, dedicado aos efeitos da tragédia na família de Jamie (pai, mãe e irmã) e em sua relação com o entorno, é o único que talvez não perdesse muito de sua eficácia se fosse narrado mediante a montagem tradicional. Mas é possível que, nesse caso, a quebra de coesão formal incomodasse o espectador e soasse como uma rendição ou traição.

Sem catarse

Um mérito adicional de Adolescência está naquilo que ele nos omite: o julgamento do caso. As cenas de tribunal costumam ser o momento catártico em que o público se extasia porque vê a justiça sendo feita ou se indigna por vê-la desrespeitada. Um contra-exemplo como o excepcional Anatomia de uma queda (Justine Triet, 2023) é isso mesmo: excepcional.

Adolescência, ao nos negar a satisfação vicária de ver os maus serem punidos e o bem vencer, nos incita a pensar na natureza e origem do mal, no modo como ele viceja e floresce no mundo contemporâneo, sem reduzir a questão à disfunção moral ou psíquica de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos. Por um momento – ou por quatro horas – somos todos o enigma Jamie, mas também somos seu pai, a psicóloga, o inspetor policial, a menina morta, sua família… todos unidos no espanto e na consciência vertiginosa da fragilidade da