Os desafios da segurança pública, por Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

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Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo – A Terra é Redonda – 28/04/2025

Benedito Mariano trata de uma questão central para o país no seu livro “Segurança Pública: o calcanhar de aquiles da esquerda e do campo democrático”

1.

No dia 25 de abril, não por acaso no aniversário da Revolução dos Cravos, o Instituto Novos Paradigmas promoveu em Porto Alegre o lançamento do livro Segurança Pública: o calcanhar de aquiles da esquerda e do campo democrático, de Benedito Mariano.

Benedito Mariano construiu uma trajetória rara, que combina militância democrática, experiência institucional e formulação crítica. Fundador do Movimento Nacional dos Direitos Humanos (MNDH), nos anos 1990 foi nomeado o primeiro ouvidor das polícias do Estado de São Paulo, no governo de Mário Covas, e desde então tem se dedicado a fortalecer os mecanismos de controle externo e promover uma visão cidadã da segurança pública.

Ao longo dos anos, atuou em diversas gestões municipais – São Paulo, Osasco, Diadema, São Bernardo do Campo – implementando políticas orientadas pela prevenção da violência, pelo policiamento comunitário, pela valorização das guardas municipais e, sobretudo, pela ideia de que segurança se faz com diálogo, legalidade e políticas sociais, mas também com políticas públicas de segurança.

O livro agora publicado sintetiza esse percurso. Mas vai além. Ele lança um olhar honesto e necessário sobre a incapacidade da esquerda em consolidar um programa para a segurança pública. Na visão de Benedito Mariano, apesar da esquerda ter produzido as melhores propostas para o setor, com base nos direitos humanos e na democracia, essas propostas raramente se traduziram em políticas efetivas quando essa mesma esquerda chegou ao poder. Essa contradição – entre discurso e prática – é o eixo em torno do qual o livro se estrutura.

A partir desse ponto, gostaria de compartilhar algumas reflexões, provocadas pela leitura da obra de Benedito Mariano e por acompanhar esse debate ao longo dos últimos 30 anos.

2.

A meu ver, as dificuldades da esquerda para consolidar uma agenda transformadora na área da segurança pública, que vá além dos chavões e da crítica à violência estatal, decorrem de dois fatores principais. O primeiro é a fragilidade da base teórica que fundamenta o pensamento da esquerda brasileira de maneira geral, e que tem consequências diretas sobre o tema segurança pública.

Daí decorre o fato de que o tema foi sempre tratado como periférico, ou como um epifenômeno social, o que resultou na ausência de um programa coerente sobre como transformar, de fato, as instituições policiais, o sistema penal e as formas de enfrentamento da criminalidade. A cada eleição, novas propostas são formuladas, mas não chegam a constituir uma base comum em torno da qual a militância política se articule, no Congresso e nos diferentes espaços sociais, por apresentar-se muitas vezes como um discurso de ocasião, sem enraizamento nas premissas teóricas que fundamentam uma perspectiva de esquerda que ainda não superou velhos chavões.

O segundo fator é o peso dos setores sindicais e corporativos na definição das prioridades políticas, o que muitas vezes dificultou o avanço de reformas institucionais mais necessárias e produziu frequentemente um alinhamento acrítico com a permanência de mecanismos institucionais que resistem à transparência, à responsabilização e à modernização das corporações policiais.

Em que pese tenha havido governos petistas que, em determinados contextos, alcançaram algum sucesso na gestão da segurança, fato é que não se construiu um acúmulo coletivo sólido para todo o campo da esquerda. O conhecimento e as propostas mais avançadas foram, muitas vezes, desenvolvidos no campo acadêmico, especificamente no campo da Sociologia da Violência, da Segurança Pública e da Administração da Justiça Penal, e não politicamente apropriados ou traduzidos em ação governamental consistente.

Um exemplo desse fenômeno foi a publicação, em 2018, do livro Agenda de segurança cidadã: por um novo paradigma, pela Comissão de Assuntos Estratégicos da Câmara dos Deputados, sob encomenda do deputado Paulo Teixeira. O livro, fruto do trabalho de um grupo de pesquisadores, consolidou uma compreensão ampla, contemporânea e avançada sobre o campo da segurança pública e da justiça penal, oferecendo propostas concretas para a transformação do setor.

Muitas dessas propostas foram encaminhadas à equipe de transição do terceiro governo Lula. No entanto, diante das urgências do setor e da não implementação do Ministério da Segurança Pública, acabaram sendo em grande medida deixadas de lado, mais uma vez adiando a construção de uma política de segurança pública consistente a partir do governo federal.

Ainda assim, seria injusto dizer que a esquerda não acumulou boas experiências no campo da segurança pública. Nas últimas duas décadas, houve iniciativas importantes que precisam ser reconhecidas e valorizadas. O Pronasci, implementado pelo então ministro da Justiça Tarso Genro durante o segundo governo Lula, foi uma tentativa corajosa e inovadora de articular repressão qualificada e políticas sociais de prevenção da violência, colocando a União no papel de indutora de políticas estaduais e municipais.

É preciso lembrar também da experiência pioneira do governo Olívio Dutra no Rio Grande do Sul, com José Paulo Bisol à frente da Secretaria da Justiça e da Segurança. Bisol foi um dos primeiros intelectuais brasileiros a formular, dentro de um governo estadual, uma concepção de segurança pública baseada na dignidade da pessoa humana, no respeito aos direitos fundamentais e no combate à seletividade penal.

Sua atuação deixou um legado que ainda inspira aqueles que acreditam que é possível conjugar autoridade e legitimidade policial. Entre outras coisas, foi na gestão de Bisol que primeiro se ousou propor uma política de controle da utilização da força pelas polícias, assim como foi implementado um amplo processo de formação qualificada e integrada das forças policiais. Além disso, foi conferida à Brigada Militar a possibilidade de lavratura do Termo Circunstanciado para os delitos de menor potencial ofensivo, iniciativa depois acompanhada por quase todos os estados brasileiros.

3.

Fora do eixo dos governos petistas, encontramos experiências bem-sucedidas de gestão democrática da segurança. Em Pernambuco, o Pacto pela vida, no governo de Eduardo Campos, mostrou que é possível combinar metas, inteligência policial, monitoramento rigoroso e ação social com resultados consistentes na redução dos homicídios. O Espírito Santo, sob o governo de Renato Casagrande, tem seguido uma linha semelhante, valorizando a coordenação federativa e a profissionalização das polícias, assim como a gestão por resultados.

E, mais recentemente, o governo Eduardo Leite, no Rio Grande do Sul, vem demonstrando que é possível enfrentar o crime organizado, a violência letal e a criminalidade urbana com eficiência, com iniciativas baseadas em evidências, mas dentro dos marcos da legalidade e do controle institucional. Todas estas experiências demonstram que é possível reduzir a violência e a criminalidade apostando na qualificação das polícias, na gestão integrada e no monitoramento permanente dos resultados, e sem recorrer ao populismo punitivo.

Entretanto, a esquerda, e especialmente o PT, ainda enfrenta dificuldades para reconhecer a importância dessas experiências, muitas vezes por razões eleitoreiras, mas também por uma resistência histórica a absorver elementos da tradição liberal na gestão pública – como a cultura da responsabilização, da transparência e da eficiência democrática nas instituições de segurança, a ideia de interdição de comportamentos por meio do direito penal e de responsabilização criminal dentro da lei e do devido processo, agregando a estas ferramentas institucionais as políticas de prevenção ao delito.

Superar essas resistências é hoje um desafio fundamental para a consolidação de uma agenda democrática na segurança pública, pois é esse um dos vetores do crescimento da extrema-direita e do populismo penal. Não se trata apenas de disputar narrativas, mas de construir um programa realista, factível e transformador, capaz de combinar repressão qualificada, prevenção social e reconstrução da confiança entre o Estado e a sociedade.

Não se trata, portanto, de mimetizar o punitivismo irracional dos candidatos a autocrata, mas de buscar, por meio de uma ampla coalizão, o enfrentamento ao medo e à insegurança.

Esse caminho não será trilhado por um partido isoladamente. Ele exige uma nova coalizão política, que inclua a esquerda, o centro democrático e os setores comprometidos com o Estado de Direito. Uma Frente Ampla Democrática pela Segurança, incorporando as experiências exitosas como uma plataforma de gestão, é a única via capaz de sustentar as reformas que o país precisa – e que a população demanda com urgência.

A proposta da PEC da Segurança Pública, construída pelo Ministro Ricardo Lewandowski, aponta nessa direção. Trata-se de uma iniciativa que visa consolidar a arquitetura institucional do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), fortalecendo a coordenação entre União, estados e municípios, e dando maior clareza às competências e responsabilidades de cada ente.

A PEC da Segurança Pública estabelece diretrizes nacionais, mas respeita o pacto federativo. E, ao propor a consolidação de um sistema nacional, abre espaço para políticas baseadas em evidências, com metas, controle externo e avaliação permanente. Seus méritos estão justamente na busca por institucionalidade, estabilidade e compromisso com os fundamentos do Estado democrático de direito.

Neste cenário, o livro de Benedito Mariano se apresenta como uma leitura essencial. Não apenas porque denuncia a omissão histórica da esquerda no tema, mas porque oferece um ponto de partida para superá-la. É uma obra que nos provoca, nos compromete e, mais importante, nos convoca a agir com coragem e responsabilidade.

Em sociedades complexas e atravessadas por fortes desigualdades, a consolidação democrática, se ainda for possível como horizonte a ser alcançado, passa pelo reconhecimento de que a interdição de comportamentos lesivos é uma função legítima da ordem jurídica, devendo ser realizada por meio da aplicação de sanções que garantam não apenas a contenção e a retribuição proporcionada ao delito, mas também a construção de condições para o enfrentamento das vulnerabilidades sociais que afetam a trajetória de grande parte dos apenados.

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedosociólogo, é professor titular da Escola de Direito da PUC-RS.

Referência

Benedito Mariano. Segurança pública: o calcanhar de aquiles da esquerda e do campo democrático. São Paulo, Editora Contracorrente, 2025, 312 págs.

A religião ficou obsoleta? por Hélio Schwartsman

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Livro mostra redução de indicadores de fé nos EUA e oferece explicações para o fenômeno

Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”

Folha de São Paulo, 27/04/2025

Por um tempo, pareceu que os EUA não seguiriam o caminho da Europa Ocidental e permaneceriam uma nação firmemente religiosa. Não dá mais para acreditar nisso.

Os números não são mais favoráveis às igrejas. Em 1991, 6,3% dos adultos americanos diziam não ter nenhuma filiação religiosa. Em 2021, eram 29,3%. E as coisas ficam muito piores se deixarmos de olhar para a população como um todo e nos concentrarmos nos jovens. No recorte dos 18 aos 29 anos, os sem religião passaram de 7,9% para 43,4%. Algo parecido ocorre com vários outros indicadores de fé religiosa. Dados impressionantes de fechamento de igrejas, seminários e escolas religiosas reforçam essa percepção.

Christian Smith, autor de “Why Religion Went Obsolete” (por que a religião ficou obsoleta), traz esses e muitos outros números. A tese de Smith, como reza o título, é a de que, para os mais jovens, religiões tradicionais se tornaram algo obsoleto. E ele não se limita a constatar isso. Tenta entender as razões que levaram a esse movimento.

Explicações incluem desde o fim da Guerra Fria, que sepultou a ideia do “inimigo ateu”, até os ataques do 11 de Setembro, que tornaram mais difícil identificar a religião como uma fonte de moralidade. Mudanças no estilo de vida, que reduziu o tempo disponível para atividades comunitárias, também entram.

Há ainda danos autoinfligidos, como os vários escândalos sexuais envolvendo clérigos. Smith é bem extensivo em suas análises.

Uma conclusão surpreendente é que os jovens americanos, embora estejam se afastando das religiões tradicionais, não estão necessariamente se secularizando, como teriam desejado os iluministas. Ao contrário, os dados do autor permitem vislumbrar um movimento de reencantamento do mundo, visível no grande número dos que fazem questão de se dizer “espiritualizados” ou que abraçam crenças esotéricas: 16% dos millennials acreditam firmemente em tarô e 21% acreditam, mas sem certeza absoluta.

Meu comentário: pulamos da frigideira para o fogo.

 

Nem progressista nem identitário, papa Francisco foi defensor radical da tradição cristã, por Francisco Razzo

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Pontífice se empenhou na preservação das instituições evangélicas, sem qualquer pretensão de ruptura

Francisco Razzo, Professor de filosofia e autor dos livros “Contra o Aborto” e “A Imaginação Totalitária” (Record), entre outros.

Folha de São Paulo, 27/04/2025

[RESUMO] O papa Francisco, que morreu aos 88 anos, era por muitos erroneamente considerado um progressista inimigo da tradição, sobretudo quando comparado a seu antecessor, Bento 16. Na verdade, sustenta o texto a seguir, não há oposição entre os dois papas, e o pontífice argentino foi o intérprete mais radical da lógica de continuidade do Concílio Vaticano 2º. Ao optar por gestos simples, linguagem direta e defesa dos excluídos, Francisco retomava princípios básicos cristãos, como a compaixão, e seguia a linguagem do Evangelho.

Em fevereiro de 2013, Bento 16 tomou a decisão mais teologicamente radical de um papa: renunciou ao comando da Igreja Católica. O gesto pode ter sido discreto e quase litúrgico, mas seu alcance foi sísmico. A figura do pontífice, ligada ao imaginário de soberana firmeza, subitamente se esvaziava de si mesma.

Como ficaram o conservadorismo doutrinário e a resistência do catolicismo triunfante? Bento 16 não fugiu da cruz, como disseram alguns. Carregou-a até o limite da obediência e, ao depor a tiara, apontou para outro modo de exercer a autoridade cristã: não o poder que permanece em força, mas o serviço que se retira em silêncio e humildade.

A renúncia, nesse sentido, deve ser compreendida como um ato escatológico muito mais que político, pois é justamente aí que a lógica do poder fracassa.

Quando Jorge Mario Bergoglio surgiu na sacada da Basílica de São Pedro, com nome de Francisco e sotaque portenho, a Igreja já havia atravessado um limiar irreversível. Visivelmente, Francisco não sucedeu a Bento no estilo, na linguagem ou, se quiserem forçar ainda mais a barra, na teologia sistemática.

Francisco, porém, herdou o peso da cruz institucional e todos os dramas de uma Igreja presente no mundo. Seu modo de carregar esse fardo seria outro. Uns diriam que menos doutrinal e mais pastoral. Talvez não tão romano e mais católico.

O fato é que sua força estava no gesto, no corpo e na proximidade. Francisco deve ser lido a partir desta chave: a missão da Igreja continua salvífica, isto é, anunciar o Evangelho de Cristo.

A pandemia escancarou tudo isso ao mundo. Em 27 de março de 2020, sozinho sob a chuva, Papa Francisco proclamou: “Viemos perceber que estávamos todos no mesmo barco.” A imagem da barca em meio à tempestade tornou-se o retrato da condição eclesial e espiritual do nosso tempo: medo, dispersão e impotência. Francisco não comandava. Apontava para o Crucificado. E fazia isso com os gestos lentos e a respiração pesada —como quem carrega, em oração, o peso de um mundo sem fôlego.

Naquela noite escura, o papa assumiu a intercessão silenciosa da Igreja. Tornou-se figura daquele que vela enquanto os outros dormem. Ali, a solidão evocava a aflição de Getsêmani: a vigília de quem permanece firme na fé. Mais do que mero cenário, aquela noite chuvosa impunha um juízo e um clamor por confiança.

Obviamente, Francisco não ofereceu as típicas respostas prontas dos especialistas do vírus e do poder. Ao contrário, ofereceu companhia, como quem sabe que Deus pode parecer ausente, mas nunca abandona.

A morte de Francisco deve impor reflexão —para católicos e não católicos— sobre o que significa crer, governar, esperar e servir a um mundo adoecido pelas patologias da razão e da fé.

Portanto, para entender Francisco, precisamos considerar a seguinte perspectiva: ele não pode ser compreendido fora da lógica  da continuidade do Concílio Vaticano 2®, o encontro de bispos, realizado entre 1962 e 1965, que visava renovar a presença e a missão da Igreja diante dos desafios do mundo moderno. Além de herdeiro, ele foi o intérprete mais radical de suas intuições evangélicas.

Ao contrário do que muitos podem supor, não desmontou a tradição. Francisco a recolocou por completo no horizonte “conciliar”. Noutras palavras, é preciso pensar Francisco a partir da hermenêutica da continuidade radical, isto é, de uma continuidade levada até as últimas consequências e sem qualquer pretensão de ruptura.

No parágrafo de abertura da “Lumen Gentium”, a constituição dogmática elaborada no Concílio Vaticano 2º, define-se a missão da Igreja como sacramento universal de salvação de todo o gênero humano. Isso significa que sua estrutura visível existe para tornar presente, no tempo, o mistério invisível da graça.

Para a autocompreensão católica, a Igreja não é fim em si. É sinal. E o sinal precisa apontar para além de si. O papado de Francisco brota desta raiz messiânica: a pastoral, a sinodalidade, a atenção às periferias, a denúncia do clericalismo vazio —tudo isso nasce de uma compreensão sacramental e servidora da Igreja no mundo atual.

Ao optar por gestos simples, linguagem direta e presença entre os excluídos, Francisco não abandonou a tradição de ensino oficial da Igreja. Fez o que era preciso: reconfigurar essa mesma autoridade à luz da própria instrução de “Gaudium et Spes”, outra constituição do concílio, onde se lê: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração”.

A escolha de estar com os excluídos, sem interpor filtros ou abstrações ideológicas, não tem nada a ver com populismo, comunismo ou progressismo Sua marca pastoral é da fidelidade a essa forma paradoxal da presença cristã no mundo: a do servo sofredor.

Isso não significa dizer que seu papado tenha sido fraco. Ele foi, na verdade, estruturado menos na lógica do decreto e mais na escuta e no anúncio. Se Bento 16 serviu com a inteligência luminosa da fé, oferecendo-lhe solidez teológica e profundidade espiritual, Francisco a serviu com a ternura dos gestos e o realismo pastoral do cuidado.

Não há oposição entre eles. Há continuidade. Francisco não nega Bento. Ele o completa —como o coração completa a razão, como a presença concreta confirma o ensinamento. Ambos compreenderam, cada um à sua maneira, que o serviço petrino não se define por estilos administrativos. A fidelidade ao Evangelho ensina que governar é servir —e governar assim exige a opção por uma existência sacramental completa.

Francisco nunca foi o papa desta ou daquela ideologia. Ainda que tenha sido rotulado por alguns como progressista, populista ou até mesmo comunista, suas palavras sempre se nutriram da gramática do Evangelho. Quando denunciava a exclusão social, falava como discípulo do Cristo cuja realeza se manifesta na manjedoura e na cruz —tronos de um Deus que reina na simplicidade e na entrega.

A imprensa secular moderna o leu com os instrumentos disponíveis de uma mentalidade mundana. Viu nele um reformista, um progressista, um antagonista da tradição. Não se pode esperar mais do que isso, pois essa leitura nasce da conveniência caricata e limitada capacidade de interpretar o mundo apenas como jogo de forças e interesses políticos.

Francisco, ao criticar os efeitos desumanizantes do sistema econômico, retomava a tradição da Doutrina Social da Igreja, sem alinhamento partidário. Esperar liberalismo ou socialismo da Igreja é desconhecer a própria Igreja. Ao pedir acolhimento aos migrantes, papa Francisco só evocava a compaixão cristã, e não um programa de assistencialismo.

Sua linguagem é a do Evangelho, não a do identitarismo, tampouco a do progressismo ou a do conservadorismo. Seu vocabulário é pastoral, enraizado na escuta, na compaixão e na experiência concreta do cuidado. Por isso mesmo, sua palavra é facilmente distorcida —ora celebrada de modo apressado por entusiasmos sentimentalistas, ora rejeitada com dureza por quem confunde fidelidade com triunfalismo.

A acusação de que teria substituído a doutrina por ideologia se desfaz diante de seus próprios textos doutrinários e pastorais. As encíclicas “Laudato Si'” e “Fratelli Tutti” não oferecem uma plataforma política. Propõem um juízo espiritual sobre o mundo contemporâneo.

Ambas nascem da tradição teológica que reconhece na criação um dom e uma responsabilidade. Francisco escreve como herdeiro de São Francisco de Assis, mas também como sucessor direto de Bento 16 —celebrado como o “papa verde”.

Foi Bento quem insistiu que a crise ecológica é inseparável da crise moral, e que a ordem da criação exige respeito integral à vida, ao ambiente e ao homem. Como reconhece Francisco: “O papa Bento 16 propôs-nos reconhecer que o ambiente natural está cheio de chagas causadas pelo nosso comportamento irresponsável o próprio ambiente social tem as suas chagas”.

Em “Laudato Si”, a ecologia surge como desdobramento da fé no Deus criador. O universo jamais poderia ser concebido como objeto neutro de exploração. É dom recebido, lugar de comunhão e de queda. A crise ecológica, nesse horizonte, se impõe como expressão de uma crise espiritual mais funda: o homem perdeu o sentido da medida, rompeu vínculos, destruiu o que não sabe amar. A conversão exigida é a da penitência.

Já “Fratelli Tutti”, por sua vez, fala de fraternidade, mas não de forma secular abstrata humanista ou identitária. O texto se ancora na filiação comum a Deus e na experiência cristã da reconciliação. A amizade social que propõe nasce do perdão, do acolhimento e da superação do medo.

Ambas as encíclicas revelam o mesmo princípio: a fé que não toca o sofrimento do mundo torna-se conceito vazio. Francisco não quis blindar a Igreja da tragédia. Quis que ela a habitasse —com lucidez, com compaixão e com a esperança que nasce do Crucificado.

Papa Francisco morreu deixando uma Igreja em agonia —e este talvez tenha sido o maior sinal de sua fidelidade. Não buscou apaziguar disputas com decretos, nem agradar facções com joguinhos políticos. Tocou feridas. E permitiu que a Igreja sentisse suas dores.

O próximo papa herdará uma Igreja Católica ferida por carregar o peso do mundo e as marcas da cruz. É uma Igreja peregrina, cuja vocação de unidade nunca foi tranquila. Barca em tempestade, vigília no deserto, ela avança sem garantias humanas.

E mais uma vez, quem for chamado a conduzi-la terá de fazer uma escolha decisiva: governar com as categorias do mundo ou permanecer fiel ao Evangelho.

 

O Papa Francisco – entre os pobres e o Vaticano, por Guilherme Defina

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Guilherme Defina – A Terra é Redonda – 23/04/2025

Francisco encarnou uma contradição viva: a de um papa jesuíta, latino-americano, comprometido com os pobres – mas dentro das muralhas de uma Igreja milenar, hesitante entre o altar e a praça

A morte de Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, sela com solenidade ambígua uma das experiências mais inquietantes do catolicismo contemporâneo. Para uns, um pontífice populista e quase herege; para outros, o último respiro evangélico antes da burocratização definitiva da fé. Entre a denúncia profética e a suspeita doutrinal, Francisco encarnou uma contradição viva: a de um papa jesuíta, latino-americano, comprometido com os pobres – mas dentro das muralhas de uma Igreja milenar, hesitante entre o altar e a praça.

Não foi o primeiro a despertar fantasmas – tampouco será o último a deixar feridas abertas. Mas foi talvez o único a arrastar, com autoridade pontifícia, os dilemas teológicos da América Latina para o coração de Roma. Sob sua batina branca pulsava, ainda que domesticada, a centelha da Teologia da Libertação. E com ela, a memória do Cristo pobre, da Igreja dos oprimidos e da esperança em tempo presente.

Neste ensaio, nos propomos a pensar a morte do Papa Francisco não como um epílogo, mas como sintoma. Sintoma de um catolicismo que, ao tentar responder aos apelos do mundo, tropeça nas sombras de sua própria tradição. À luz da crítica conservadora católica – especialmente aquela desenvolvida por Gustavo Corção –, interrogamos os sentidos e os limites de uma Igreja “em saída”. O que resta da mística quando o dogma se abre à política? É possível conjugar a opção preferencial pelos pobres sem dissolver a fidelidade à ortodoxia?

Contra o entusiasmo dos progressistas e o desprezo dos reacionários, talvez caiba aqui uma terceira via – não a do centro conciliador, mas a da leitura crítica, situada e contextual. A figura do Papa Francisco não será compreendida nem em slogans pastorais nem em anátemas doutrinários. Ela exige um retorno às raízes das disputas que marcam o catolicismo latino-americano desde o século XX, especialmente àquelas que opuseram tradição e profecia, mística e práxis, o Cristo Rei e o Cristo subversivo.

O Papa Francisco entre os pobres e o Vaticano – da Teologia da Libertação ao “marxismo eclesiástico”

No princípio, havia a suspeita. Quando o cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio foi alçado à cátedra de Pedro em 2013, não foram poucos os que, à direita e à esquerda, estranharam o gesto. Os primeiros viam com inquietação o sotaque portenho do novo papa, sua liturgia austera e sua recusa ostensiva aos protocolos do poder. Os segundos temiam, com igual intensidade, que a promessa de renovação não passasse de encenação. Afinal, o que poderia fazer um jesuíta de hábitos silenciosos, saído de uma das províncias mais conservadoras da Companhia de Jesus, num Vaticano ainda traumatizado pelo curto e rígido papado de Bento XVI?

O que se viu, porém, foi o progressivo desdobramento de um pontificado que não se deixaria definir por categorias fáceis. O Papa Francisco não foi – como tantos desejaram ou temeram – um “papa da Teologia da Libertação”. Mas tampouco a renegou. Incorporou-lhe os gestos, o vocabulário, os interlocutores. Canonizou mártires, visitou favelas, promoveu sínodos regionais. Acima de tudo, reafirmou com insistência quase incômoda a “opção preferencial pelos pobres”, não como um adereço pastoral, mas como chave hermenêutica da própria fé cristã. Com isso, recolocou no centro da doutrina aquilo que há décadas fora relegado às margens da diplomacia eclesiástica.

Se os documentos do Vaticano II haviam insinuado uma abertura, foram os teólogos latino-americanos – Gustavo Gutierrez, Leonardo Boff, Ignacio Ellacuría – que a levaram às últimas consequências, resgatando a figura de um Cristo encarnado na luta dos povos. Contra essa tradição se insurgiu o conservadorismo católico, tanto europeu quanto latino-americano, que viu na Teologia da Libertação uma contaminação da fé por um marxismo travestido de pastoral. Gustavo Corção foi um de seus críticos mais enfáticos. Para ele, toda tentativa de politizar o Evangelho era uma forma de corrupção espiritual – uma entrega da mística ao mundo, do mistério ao método.

O Papa Francisco, nesse cenário, é uma figura desconcertante. Ele não abraçou o marxismo, tampouco silenciou diante das injustiças sociais. Sua crítica ao capitalismo global – sistemática e reiterada – não partia do materialismo histórico, mas de uma leitura evangélica radical. Seu engajamento com os pobres não era revolucionário nos moldes da luta de classes, mas restaurador de uma eclesiologia esquecida. E, ainda assim, foi acusado por setores conservadores de ser o “papa comunista”. Jorge Mario Bergoglio pagou o preço de não caber nos rótulos: foi visto como herético por uns e tímido por outros, exatamente por tentar reabilitar, a partir do centro, aquilo que fora rejeitado pela periferia do poder.

O que está em jogo, no fundo, é a tensão irresoluta entre o mistério e a missão. Para Corção, o mistério é anterior e superior à práxis – é aquilo que nos retira da história para nos lançar ao sagrado. Para o Papa Francisco, a missão não dilui o mistério, mas o manifesta: Deus não está fora do mundo, mas encarnado nele – especialmente onde há dor, miséria e abandono. O desacordo, portanto, não é apenas político ou pastoral. É ontológico. Trata-se de duas formas de conceber a fé: uma como guarda do sagrado, outra como fermento no mundo. Uma como muralha, outra como caminho.

Com sua morte, o Papa Francisco talvez tenha encerrado a última tentativa de resgatar, a partir do trono, a memória subversiva do Evangelho. Resta saber se a Igreja – essa instituição tão afeita a enterrar vivos e canonizar cadáveres – encontrará coragem para continuar o que ele, em sua ambiguidade e ousadia, apenas começou.

Gustavo Corção e o catolicismo do mistério – crítica ao mundo moderno e à Igreja em mutação

Se há algo que Gustavo Corção jamais tolerou foi a diluição do sagrado na política. Ao longo de sua trajetória como pensador católico, a modernidade aparecia não como palco da redenção possível, mas como laboratório da perdição. A secularização, o racionalismo, o progressismo – tudo isso era, para ele, sintoma de uma civilização doente, que havia trocado o mistério pela máquina, a liturgia pelo discurso, a alma pelo sistema. Ao contrário dos teólogos da libertação, Gustavo Corção via na política não um caminho para o Reino, mas um atalho para o pecado – e talvez, em última instância, para a perdição da própria Igreja.

A fé, para ele, não precisava ser útil, aplicável, performática. Ela era um ato interior, um salto no invisível, uma adesão radical ao mistério. O cristianismo que pregava não procurava transformar estruturas sociais, mas salvar almas. Em suas palavras, era necessário “resgatar a infância espiritual”, recuperar a capacidade de maravilhar-se diante do mundo – aquilo que ele chamava de “saúde do espírito”. E foi justamente essa “infância espiritual” que ele não enxergava nos teólogos da libertação, a quem acusava de instrumentalizar a fé em nome de projetos ideológicos.

Se comparado ao Papa Francisco, Gustavo Corção parece pertencer a outra Igreja – mais antiga, mais cerrada, mais desconfiada do mundo. E de fato, em certa medida, pertence. Mas essa comparação revela algo mais profundo: a batalha nunca pacificada entre dois modos de ser católico. Um que desconfia do tempo presente, outro que aposta na sua redenção. Um que enxerga na tradição o último refúgio contra o caos; outro que a vê como instrumento vivo, passível de conversão contínua.

A morte do papa como alegoria: fim de um ciclo ou início de outro?

A morte de um papa nunca é apenas biológica – é litúrgica, política, simbólica. Com o Papa Francisco, não se sepulta apenas um homem de carne e ossos, mas uma tentativa, uma gramática, um gesto. Enterra-se o último grande representante de um catolicismo pastoral que ousou articular justiça social e ortodoxia, sem que uma engolisse a outra. E, ao mesmo tempo, abre-se espaço para a rearticulação das forças que sempre buscaram, em nome da pureza doutrinal, silenciar a dimensão terrena do Evangelho.

Mas talvez o que morra com o Papa Francisco não seja apenas um modo de governar a Igreja, e sim uma figura teológica: o papa como ponte. Ponte entre doutrina e mundo, entre liturgia e rua, entre Trento e Medellín. E como toda ponte, sustentada pela tensão. Sua morte reabre a fissura: quem será agora o mediador entre o mistério e a história?

A resposta, talvez, não venha da cúpula, mas das margens. Nas periferias do mundo católico – aquelas mesmas que o Papa Francisco visitou, abraçou e fez escutar –, o cristianismo segue vivo, não como ideologia ou aparato, mas como presença.

Em última instância, a morte do Papa Francisco é um espelho. Reflete uma Igreja dilacerada entre dois impulsos: o de conservar a fé e o de encarná-la. O de guardar o fogo e o de espalhá-lo. E nesse dilema, tão antigo quanto a própria tradição apostólica, talvez esteja o segredo da Igreja: não escolher um lado, mas suportar o peso de ser ambos.

Gustavo Corção, com sua mística do recolhimento, e o Papa Francisco, com sua teologia da saída, são menos antagonistas do que parecem. Ambos denunciaram, à sua maneira, os ídolos do tempo presente – o mercado, o Estado, o ego. Ambos sabiam que não há Igreja viva sem tensão. E ambos, por vias diferentes, apontaram para o mesmo horizonte: um Deus que não cabe em nenhum sistema.

Guilherme Defina é mestrando em ciência política na Unicamp.

 

Mario Vargas Llosa e as ficções do liberalismo, por Khoury Oliveira & Kaysel

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Por Mariana El Khoury Oliveira & André Kaysel

A Terra é Redonda – 22/04/2025

A dualidade entre o legado literário e político-intelectual de Vargas Llosa – a interseção entre suas obras e suas escolhas políticas

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O falecimento do escritor peruano Mario Vargas Llosa (1936-2025) no último dia 13 de abril o trouxe novamente à cena em dois personagens, um literário e outro político. Acompanhando as repercussões no debate público, fica-se com a impressão de que quando um se apresenta, o outro está na coxia, como um gêmeo oculto. Aqui nos dedicaremos, justamente, a unificar os personagens que o laureado com o Nobel de Literatura de 2010, seus apologetas e mesmo alguns de seus críticos buscaram incessantemente separar.

Os holofotes atingem sua face especialmente na crítica literária e em seu ríspido ataque a seu compatriota, o escritor indigenista José María Arguedas (1911-1969), em sua obra La utopia arcaica: José María Arguedas y las ficciones del indigenismo (1996) que parafraseamos neste título.

Pouco mais de um quarto de século após a morte de Arguedas, Vargas Llosa publicou a análise acima citada do conjunto de sua obra, sublinhando alguns aspectos biográficos e seu comprometimento político com os povos indígenas da serra peruana que são de grande importância para seus romances, como Los Ríos Profundos (1958) e Todas Las Sangres (1965), entre outros.

Categorizando-o como um apêndice do indigenismo [I], classificação rejeitada pelo próprio José María Arguedas em seus ensaios, Vargas Llosa renega o valor estético de sua prosa, que conteriam “una visión de la literatura en la que lo social prevalecía sobre lo artístico y en cierto modo lo determinaba” [II]. Para ele, José María Arguedas teria chegado “hasta el sacrificio de su talento” en búsqueda de una “mímica revolucionaria” [III]. Podemos apreender, portanto, que Vargas Llosa via a conexão entre política e literatura não apenas como uma escolha errônea, mas como uma rejeição da dimensão artística na literatura engajada. Aqui se repõe uma questão fundamental: é possível que exista a arte sem que sejam perceptíveis algumas inflexões políticas de quem a produziu?

Nas elegias e homenagens à Vargas Llosa, essa separação aparece tão clara quanto o era para ele. Por exemplo, em um artigo publicado no diário espanhol El país [IV], no qual o autor manteve por quase três décadas uma coluna quinzenal, seis escritores peruanos dividiram suas opiniões entre o “legado literário” e o “legado político-intelectual”. A completa cisão se disseminou entre seus leitores e mesmo entre seus críticos, como se o escritor não guardasse nenhuma semelhança com seu gêmeo oculto, o político. O que estamos propondo é um ponto de vista que, reconhecendo a grandeza de seus romances, incorpore também suas escolhas em torno de seus temas, de suas polêmicas e de seus alinhamentos políticos.

2.

Quando se tratava de tomar posições públicas, Vargas Llosa nunca foi um autor vacilante. Durante a década de 1960, foi defensor das experiências socialistas, em especial da Revolução Cubana (1959), tendo visitado a ilha em 1962, em plena crise dos mísseis [V]. No Peru, deu apoio às reformas de base da ditadura da Junta Militar, representada pelo general Juan Velasco Alvarado (1968-1975), como a reforma agrária, a nacionalização das minas e de outras empresas estratégicas.

Nesse período, o autor publicou suas três primeiras e principais obras: La ciudad y los perros (1962), La casa verde (1966) e Conversaciones en la Catedral (1969). Representante do boom latino-americano, apesar de escrevê-los desde a Europa, seus romances tinham como palco a sociedade peruana. Vargas Llosa organiza através da literatura o Peru fragmentado e corrupto, utilizando-se de narrativas complexas, combinando temporalidades e personagens distintas para a elaboração de relatos que compõem seus livros.

O encantamento com o regime da ilha começou a se desfazer, em sintonia com diversos intelectuais latino-americanos, devido à invasão soviética da Tchecoslováquia em 1968 (mesmo ano em que Vargas Llosa pisou em solo soviético [VI]), e o apoio dado por Fidel Castro à intervenção que liquidou o experimento democratizante da chamada “primavera de Praga”. Para arrematar a fratura com a Revolução Cubana, deu-se a prisão do jornalista e escritor Herberto Padilla pelo regime, em 1971.

Mas, ao contrário de outros signatários dos manifestos em defesa de Herberto Padilla, como seu colega argentino Julio Cortázar, os franceses Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir ou o estadunidense Noam Chomsky, o escritor peruano levou sua divergência às últimas consequências, rompendo com o horizonte socialista e às esquerdas em geral.

Na década de 1980, passou a defender abertamente as ideias neoliberais de Friedrich von Hayeck, liderou a oposição de direita ao governo do aprista Alan García (1985-1990) e escreveu o prólogo ao livro El otro Sendero (1988), de seu compatriota Hernando de Soto, que responsabilizava o Estado pelos males que afligiam tanto o Peru, como a América Latina em seu conjunto, preconizando como saída reformas de livre-mercado que impulsionassem o empreendedorismo popular, contido nos setores ditos informais: “La opción de los ‘informales’ – la de los pobres – no es el refuerzo y la magnificación del Estado sino su radical disminuición. No es el colectivismo planificado y regimentado sino devolver al individuo, a la iniciativa y a la empresa privadas, la responsabilidad de dirigir la batalla contra el atraso y la pobreza” [VII]. Assim, a ruptura com o socialismo levou ao extremo oposto: as ficções do liberalismo, de uma “ordem social espontânea”, baseada na livre-iniciativa individual.

3.

Desse modo, o que criticou em José María Arguedas estava também presente em si mesmo. Ao criticar a “utopia arcaica” de José María Arguedas, que buscava vincular a identidade nacional peruana às populações andinas e sua cosmovisão, Vargas Llosa apresenta a sua própria utopia: a utopia da modernidade capitalista. O foco dado às narrativas que negam a mágica contida na experiência andina, que negam a coletividade e qualquer possibilidade de persistência desse ponto de vista no mundo moderno, calcado em uma racionalidade individualista, apontam para sua concepção sobre seu país, o continente e o mundo. Isso não significa, ao contrário do que o próprio Vargas Llosa pontificou em sua análise sobre José María Arguedas, uma rejeição estética e artística de sua literatura, mas adiciona um conteúdo político às suas obras.

Retornando ao problema do indigenismo, na matéria acima citada de El país, o escritor Juan Manuel Robles, em uma apreciação em geral bastante positiva, conclui afirmando que Vargas Llosa foi incapaz de compreender as populações indígenas dos Andes e de simpatizar com suas manifestações. Isso já se evidenciava em seu relatório, produzido por encomenda do governo peruano sobre os assassinatos de jornalistas na comunidade de Uchuraccay (1983), em meio ao conflito interno armado entre o Estado peruano e o grupo maoísta extremista Sendero Luminoso, em que responsabilizou os comuneros “pouco lúcidos” pelas mortes [VIII].

A linguagem de cunho colonial utilizada por Vargas Llosa em seu figurino político-intelectual para a caracterização destes camponeses – que, vale salientar, não aparecem em seus romances –, refletem ainda outro aspecto: a valorização do legado colonial ibérico, associado ao pertencimento a um “Ocidente atlântico”, resgatando a velha chave “civilização” versus “barbárie” do liberalismo latino-americano do século XIX [IX]. Desse modo, não é de se estranhar que o escritor peruano, que desde 1993 também era cidadão espanhol, tenha aceito de bom grado em 2011 o título de Marquês por parte do então monarca, Juan Carlos I de Bourbon y Bourbon. [X]

Cerca de quarenta anos mais tarde, o escritor recebeu em 2023 a condecoração da Ordem do Sol no grau de Grande Colar [XI] da Presidenta interina do Peru, Dina Boluarte, cuja ascensão em 2022, na esteira da destituição de Pedro Castillo, havia levado à morte de cerca de 50 pessoas, especialmente na região andina de Puno, que protestavam contra o novo governo. Por que o autor de La guerra del fin del mundo (1981), foi capaz de empatizar com sertanejos brasileiros do final do século XIX, mas avaliza o massacre de seus concidadãos indígenas no século XXI?

Possivelmente a resposta resida no fato de que, nas ficções liberais por ele abraçadas, não existam falas para essas personagens, salvo talvez sob a fantasia de “empreendedores” nos bairros populares de Lima, na realidade um precariado que procura arrancar a sobrevivência no dia-a-dia de uma metrópole caótica.

Enfim, no último ato, as personagens de Vargas Llosa aparecem reunificadas, demonstrando a inexistência de um gêmeo oculto nas coxias. Emancipado do figurino, o ator é o mesmo. Perceber a carga política de seus romances não significa reduzi-los a este aspecto ou subtrair sua importância, mas complexificá-los.

Mariana El Khoury Oliveira é doutoranda em Ciência Política na Unicamp.

André Kaysel é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Autor, entre outros livros, de Entre a nação e a revolução (Alameda).

Notas

[I] Corrente literária e política peruana do século XX calcada na valorização da cultura indígena-andina. Além do próprio Arguedas, entre seus principais representantes estão a escritora feminista Clorinda Matto de Turner (1852-1909), o poeta e ensaísta anarquista Manuel González Prada (1844-1918), o etnólogo Luís E. Valcarcel (1891-1987), o jornalista e militante socialista José Carlos Mariátegui (1894-1930), os romancistas Ciro Alegría (1909-1967) e Manuel Scorza (1928-1983). Para uma visão sintética sobre a relação entre indigenismo e cultura de esquerda no Peru, cf. RENIQUE, José Luís. A Revolução Peruana. São Paulo: Ed. UNESP, 2009.

[II] VARGAS LLOSA, Mario. La utopía arcaica: José María Arguedas y las ficciones del indigenismo. Madrid: Alfaguara, 1996, p. 17.

[III] Idem, Ibidem.

[IV] “O legado literário e político-intelectual de Vargas Llosa”, por Naiara Galarraga Gortázar e David Marcial Pérez, publicado em El País, 13 de abril de 2025.

[V] “A bizarra guinada à direita de Mario Vargas Llosa”, por Martín Ribadero, publicado na Revista Jacobin em 2024.

[VI] Idem,Ibidem.

[VII] VARGAS LLOSA, Mario. “Prólogo”. In DE SOTO, Hernando. El otro Sendero. Lima: El Barranco, 1986, p. XXVI.

[VIII] Informe sobre Uchuraccay, escrito para a Comissão da Verdade e Reconciliação.

[IX] GIMÉNEZ, María Julia. “Em La Antesala de La Iberosfera: un mapeo de la participación de la derecha española en las redes de think-tanks liberales y la actuación en clave atlantista”. E-L@tina – Revista Electrónica de Estudios Latinoamericanos. Vol. 23, No. 91, p. 251, 2025.

[X] Evidenciado no texto de Luis Felipe Miguel, “Vargas Llosa: gênio e canalha”

[XI] “Peru: Vargas Llosa critica governos que defendem Castillo”, publicado na Folha de S. Paulo em 2023.

 

Berço ou Mérito? por Arthur Menezes de Carvalho Crespo

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Arthur Menezes de Carvalho Crespo – A Terra é Redonda – 24/04/2025

Os trabalhadores pobres nascem com uma desvantagem absurda e isso se intensifica se colocarmos categorias estigmatizadas em nossa sociedade como o racismo, machismo, a homofobia

O que fazemos durante a nossa vida é efeito direto da nossa educação, seja ela oriunda de meios institucionais; como escolas, universidades, igrejas, ou pela nossa cultura e vivência. Os horizontes de possibilidades de nossa vida, está estritamente colada com a nossa classe social, entretanto, é transmitido para a população, uma ideia que, basta se esforçar para conseguir alcançar seus objetivos e, talvez, como maior resultado dessa ideia, ascender de classe.

Essa ideia que falo é a meritocracia, que produz uma percepção na qual o lugar do indivíduo não importa no cálculo social, ou seja, cobre e esconde, os problemas estruturais sociais e econômicos da sociedade. Mudando o problema que é estrutural, social e econômico para o indivíduo, responsabilizando-o pela própria condição em que vive. Importante ressaltar que a maioria das pessoas afetadas por essa ideia, são os trabalhadores pobres e de classe média.

Vamos definir um pouco o papel da escola que é fundamentais para instruir, incluir, ensinar modos de comportamentos e afins. A diferença começa a ser mais perceptível quando analisamos uma escola pública e privada. A escola pública enfrenta diversos fatores políticos e sociais que acarretam a falta de verba e profissionais; contudo a localização das escolas interfere como vão ser tratadas, pelos funcionários e da própria secretária de educação e coordenações regionais.

No entanto, a escola privada antes de qualquer coisa, produz um corte dos estudantes que irão ou não, frequentar a instituição de ensino, esse processo de segregação é feito por meio da mensalidade e de outros itens que é necessário adquirir como o uniforme, os livros didáticos, materiais escolares, a própria alimentação do aluno.

Cada escola possui uma proposta, isso vale para as escolas públicas e privadas, algumas seguem o rumo de carreira militar, preparando o estudante para fazer as provas para o ingresso da corporação, outras para o ingresso do ensino superior através do vestibular e ainda há escolas que instruem os seus alunos para entrar no mercado de trabalho oferecendo o ensino técnico mas, também não podemos esquecer das escolas que produzem somente diplomados; alunos que saem com seu certificado e estão a esmo para o mundo, podendo tornar-se trabalhadores precarizados.

O que podemos observar é quem é o público alvo dessas escolas, por entender que muitas dessas escolas são privadas e algumas poucas públicas. Devo voltar rapidamente no modo de ingresso. Nas escolas privadas, só é possível ingressar por meio de pagamento de matrícula e mensalidade, em alguns casos, poucos alunos conseguem bolsas de estudos e não pagam a mensalidade e nem matrícula, mas, ainda pagam os outros itens.

As escolas públicas são direito universal e até os 17 anos é obrigatório. Quando falamos de determinadas escolas, sejam as técnicas ou preparatórias, nem sempre serão acessíveis a todos, justamente por ter um meio classificatório de entrada na instituição já prescreve vencedores e perdedores, ou seja, merecedores e não merecedores.

Os trabalhadores pobres nascem com uma desvantagem absurda e isso se intensifica se colocarmos categorias estigmatizadas em nossa sociedade como o racismo, machismo, a homofobia. As desvantagens sociais relacionadas à raça e ao gênero são oriundas de nossa construção e organização como sociedade que nos acompanham desde nossa colonização.

A concepção de mérito se tornou muito mais moral do que realmente racional, óbvio que não afirmar que devemos ser sempre racionais e a nossa “emoção” deixada de lado, no entanto quero destacar que é importante para setores de direita, articularem a valorização moral do mérito, do esforço individual pelas conquistas.

Quero ressaltar que é importante o esforço, e parabenizamos aqueles que “venceram”, contudo, quero mostrar que é importante analisar a origem desse discurso, de onde ele vem e pra quem ele vai, e como isso impacta politicamente. Citei as escolas porque elas são de fácil interpretação e observação ao meu ver.

Numa sala de aula de escola pública localizada num subúrbio da zona norte do Rio de Janeiro, teremos diversos alunos com diferentes trajetórias de vida. Alunos que moram perto da escola se diferenciam na qualidade de vida daqueles alunos que moram alguns bairros de distância e precisam se deslocar até a escola por meio dos transportes públicos. Não há uma diferença tão gritante se ambos alunos tivessem a mesma renda familiar e acesso aos meios culturais, sendo que um grupo, que deve acordar mais cedo para ir pra escola e outro um pouco mais tarde por conta da distância do seu domicílio.

No entanto, vivemos num país onde a escravidão e o machismo, se tornaram estruturais e nos organizam como sociedade. Se descrevo o mesmo cenário, porém, o grupo que mora mais longe da escola estivesse localizada em uma comunidade, as variáveis seriam diversas, seja um dia uma operação da polícia militar tentando ocupar os espaços com truculência e violência, e pode haver pouquíssimos meios de locomoção naquela região.

Nesse cenário descrito agora, ambos os grupos, aquele que mora na comunidade e aquele outro que mora perto da escola, teriam as mesmas possibilidades de fazer uma prova, manter o foco durante a aula? Os dois grupos iriam passar pelos mesmos processos de avaliação, mesmo com trajetórias e vivências diferentes, seria justo, que em uma competição, os atletas estivessem em posições desiguais de competir? Creio que não.

Logo, podemos concluir desse modo, que nosso destino passa por diversas trajetórias individuais, e nem todos poderão ter as mesmas facilidades e ao mesmo tempo as mesmas coisas, e que o discurso que esquece de maneira desonesta, de se atentar aos fatos sociais materiais e históricos de cada pessoa, está sim contribuindo para a permanência das estruturas sociais que produzem a desigualdade social. Atentar-se a origem do discurso, é importante para não sermos pegos por nenhuma ideologia que nos mantém nessa sociedade.

Arthur Menezes de Carvalho Crespo é graduando em ciências sociais na UERJ

 

Celso Furtado – Trajetória, pensamento e método, por Freitas Barbosa & Saes

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Alexandre de Freitas Barbosa & Alexandre Macchione Saes

A Terra é Redonda – 26/04/2025

Introdução dos autores ao livro recém-lançado

Os vários Furtados

“Por que um país com tanta riqueza, tanta terra […] tem esse mundo de gente abandonada, pedindo esmola na rua. Como se explica isso? Isso não é economia. Isso daí tem a ver com a história… O debate não alcança os pontos essenciais, porque a sociedade não está preparada para levar adiante esse debate”.
Celso Furtado, 10 de julho de 2004.[i]

1.

Celso Furtado é um dos intelectuais mais conhecidos e estudados no Brasil e na América Latina. Sua trajetória se mistura à do Brasil República, especialmente a partir dos anos 1950, a tal ponto que não se pode contar a história do país na segunda metade do século XX sem fazer a menção a esse homem público que refletiu e atuou sobre a cena nordestina, brasileira, latino-americana e mundial.

Nascido em 1920, na cidade de Pombal, Paraíba, sua trajetória compreende vários Furtados que se sucedem e se superpõem: o funcionário público do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), o estudante de doutorado na Sorbonne, o economista da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), o gestor da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e do Ministério do Planejamento.

Há ainda os anos de exílio como professor em universidades do exterior e o regresso ao Brasil, quando participa da transição democrática e da estruturação do Ministério da Cultura e desafia as promessas do “capitalismo global”. As diversas atividades exercidas por Furtado nutrem-se de suas utopias e projetos de transformação do Brasil, sempre presentes em suas obras, mesmo naquelas em que sobressai a verve analítica.

O presente livro fornece uma abordagem panorâmica de Celso Furtado, costurando sua trajetória e seu pensamento em constante transformação, repleto de nuances, ajustes e até rupturas, assim como a sociedade brasileira que ele procurou destrinchar por meio de uma perspectiva que parte da economia para transcendê-la.

Nesse sentido, é importante acompanhar como se dá o movimento de fusão de Celso Furtado com a história brasileira. Se a história avança por desvios, atalhos e cortes bruscos, também são vários os Furtados que a partir dela se expressam.

Isso pode ser percebido na leitura de seus Diários intermitentes. Há o jovem existencialista em busca de seu ser no mundo; o economista responsável por uma das mais originais contribuições brasileiras para a história do pensamento econômico; o intelectual público no front de batalha na Cepal, na Sudene e no Ministério do Planejamento; o professor exilado repensando o país com distanciamento histórico; e, finalmente, o intelectual renomado atuando nos bastidores da transição democrática inconclusa e procurando lapidar seu legado para as novas gerações.

Ao longo de aproximadamente cinquenta anos de produção intelectual e atividades públicas, Celso Furtado publicou quase quarenta livros. Ao percorrermos a vasta bibliografia produzida por Celso Furtado, nos deparamos com uma diversificada produção, com textos ora mais voltados para uma análise sobre os processos históricos, ora mais preocupados com o debate no campo da teoria econômica; mas sempre movido pelo anseio de estilhaçar as fronteiras estabelecidas entre as ciências sociais. Encontramos também a elaboração de manifestos de intervenção política em momentos decisivos de nossa história, assim como reflexões de cunho biográfico.

Em Celso Furtado, não há intervenção política sem teoria e história e tampouco interpretação sem propostas de ação. Teoria e práxis interagem mutuamente na trajetória de Celso Furtado, compondo um olhar muito próprio sobre a realidade brasileira e as possibilidades de transformação da sociedade.

2.

O livro procura apresentar, em linhas gerais, o pensamento de Celso Furtado a partir do contexto histórico em que produziu suas principais obras, sempre sob uma chave interdisciplinar, tornando-o palatável não apenas a economistas e cientistas sociais, mas também a leitores e leitoras provenientes do direito, história, geografia, relações internacionais, arquitetura, literatura e das artes e ciências em geral.

Se o contexto histórico permite acompanhar suas reflexões em constante mutação, é importante ressaltar que cada obra de sua autoria procura atuar de volta sobre a história, numa espécie de bumerangue incessante. Por isso, Francisco de Oliveira qualificou Celso Furtado como o mais “ideológico” de nossos intérpretes [1], no sentido de que suas sínteses sempre são projetadas no horizonte de possibilidades de cada momento.

Nesse sentido, nosso intuito é abarcar as múltiplas dimensões de sua obra em constante elaboração, numa chave panorâmica e pedagógica, apresentando nosso olhar sobre o intelectual – sua trajetória, seu pensamento e seu método – em diálogo com a ampla literatura existente.

Se a porta de entrada para conhecer a obra de Celso Furtado costuma ser Formação econômica do Brasil, sua obra-prima, este livro busca descortinar os “vários Furtados”.

Para além de uma das mais influentes interpretações da história econômica do Brasil, publicada em 1959, a obra de Celso Furtado navega pela teoria econômica, pela dinâmica história latino-americana, pela questão regional, pela economia da cultura e pela análise do capitalismo internacional. O que salta aos olhos é sua capacidade de fornecer uma perspectiva totalizante ao integrar essas temáticas. Isso se torna possível ao ampliar a concepção do sistema centro-periferia a partir da interpretação do subdesenvolvimento e da dependência.

3.

O variado espectro de temas é atualizado pelo confronto de três planos de análise: “o fenômeno da expansão da economia capitalista, o da especialidade do subdesenvolvimento e o da formação histórica do Brasil vista do ângulo econômico” [III]. Portanto, uma interpretação que produz releituras sobre as conjunturas – do desenvolvimento nacional dos anos 1950 e da reestruturação do capitalismo global dos anos 1970 –, avaliando as oportunidades de transformação da sociedade e redesenhando os projetos de intervenção.

O método constantemente lapidado é o eixo a partir do qual procuramos encontrar a coerência de sua trajetória e seu pensamento, compreendidos a partir das rupturas da história brasileira e de como ele se posiciona frente a elas. Não se trata de uma coerência definida a priori, pois resultante do processo que altera a sua forma de vinculação à vida nacional em diferentes momentos: luta pela superação do subdesenvolvimento nos anos 1950 e 1960, exílio e crítica ao “modelo brasileiro” de desenvolvimento do pós-1964 e volta ao centro da cena durante a redemocratização dos anos 1980.

Celso Furtado se debruça ao longo de sua obra sobre o Nordeste, o Brasil, a América Latina e o sistema capitalista mundial estruturado por meio das relações entre centro e periferia. Essas dimensões de seu pensamento serão abordadas em seu devido lugar, mas não podemos esquecer que elas se referem a diversos níveis de análise sobre o mesmo problema – a tensa, complexa e por vezes dialética interação entre desenvolvimento e subdesenvolvimento – que muda conforme as escalas e temporalidades, e sempre de maneira encadeada.

Não podemos deixar de mencionar nessa introdução que o livro foi escrito com uma mirada para as próximas gerações, para os jovens que ingressam na universidade e na vida política, tal como fazia Celso Furtado em seus primeiros livros, dirigindo-se aos estudantes e à juventude.

Para os leitores que travaram algum conhecimento com a obra do intelectual na universidade ou nas batalhas políticas, procuramos recuperar os vários Furtados, como se fossem heterônimos de uma mesma persona. Poderão, assim, redescobrir esse pensador multifacetado a partir de novos olhares e perspectivas. Se os mais velhos possuem cada um “o Furtado para chamar de seu”, o convite que fazemos é para que ampliem seu repertório furtadiano.

Nós, os autores, nos damos por satisfeitos se o leitor e a leitora, ao chegarem ao final do livro, forem correndo ler este ou aquele livro do mestre. Nosso objetivo não é cultuar Furtado, mas praticar Furtado, aplicando seu método para entender as novas configurações assumidas pela economia nordestina, brasileira, latino-americana e mundial, sempre interagindo – por vezes de maneira contraditória – com as dimensões sociais, políticas e culturais.

4.

Com 22 anos incompletos, o estudante de Direito no Rio de Janeiro, e aficionado por música, publica na Revista da Semana, um artigo intitulado “Os inimigos de Chopin”.[iv] O jovem Furtado realiza então uma bela síntese em que o artista e seu país de origem aparecem fundidos.

Eis o trecho: “Chopin e Polônia estiveram por tanto tempo juntos e tanto se assemelham em suas trajetórias que se nos afiguram dois lados de uma mesma coisa. E teria sido possível um Chopin se não existisse uma Polônia? Certamente não. Como a Polônia não seria o que é sem este capítulo de sua existência: Frederico Francisco Chopin”.[v]

Parodiando o jovem, podemos dizer que o Brasil, país do sertanejo paraibano, tampouco seria o que foi, ainda é e pode ser, se não existisse o capítulo Celso Monteiro Furtado.

O intelectual Celso Furtado perscrutou analiticamente o potencial de desenvolvimento da nação, apesar da sordidez de suas elites e classes dominantes. Como se isso não bastasse, construiu possibilidades utópicas, entranhadas em sua metodologia inovadora, transformando-se numa “matriz de referência que não desiste nunca”, conforme a expressão de Maria da Conceição Tavares. [VI]

O capítulo Celso Furtado da história do Brasil não se encerrou com a partida do economista em 2004. Seu reconhecimento foi materializado, em 2004, com a criação do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, proposta encabeçada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. E justificado pela crescente quantidade de trabalhos dedicados a refletir sobre a trajetória e a vasta obra de Celso Furtado. Uma obra que vem sendo debatida e valorizada, cada vez mais, para além das fronteiras da ciência econômica. Uma obra interdisciplinar necessária para enfrentar os novos desafios do Brasil.

Tal como Chopin revive toda vez que é tocado ao piano, alçando consigo sua Polônia natal, a sinfonia furtadiana encontra-se presente em sua obra. Toda vez que ela é lida, reinterpretada ou aplicada por alguém, o Brasil se reveste de possibilidades inauditas.

Foi assim durante as caravanas virtuais de 2020, quando o centenário de Celso Furtado despertou intelectuais, professores, estudantes e militantes dos quatro cantos do país, reivindicando seu legado durante a pandemia real e metafórica. Foram inúmeras lives, webinários, cursos, eventos, além dos dossiês publicados em revistas acadêmicas e livros lançados para rememorar esse capítulo da história do Brasil.

Se Chopin parece distante, vamos de Emicida: “eu não sinto que vim, eu sinto que voltei” [VII]. Furtado está sempre voltando, para levar adiante o necessário debate com ousadia crítica e imaginação transformadora. Não desanimemos.

5.

Celso Furtado: trajetória, pensamento e método foi escrito para dar conta do seguinte desafio: fornecer os instrumentos para acessar o seu método de análise e a sua produção intelectual por meio de uma abordagem panorâmica que tornasse possível acompanhar o pensamento e a trajetória de Celso Furtado ao longo da segunda metade do século XX.

O livro percorre a vida e obra de Celso Furtado descortinando os “vários Furtados” – teórico do subdesenvolvimento, intérprete do Brasil e do capitalismo, formulador de políticas de desenvolvimento, pensador da cultura e intelectual atuante –, situando a publicação de suas obras com os contextos históricos e os desafios vividos.

Para além de sua interpretação presente em Formação econômica do Brasil ou de seu papel como o representante brasileiro do estruturalismo latino-americano, procuramos situar a trajetória de Celso Furtado de uma maneira pedagógica, compondo um amplo quadro em que autor, obra e contexto histórico se conectam por meio de nossa leitura do projeto furtadiano de construção de um país soberano, justo e democrático.

A estrutura do livro é cronológica, pois sua biografia serve de ponto de partida para a compreensão de sua produção bibliográfica, mas sem projetar uma trajetória linear, cujo sentido esteja dado de antemão. Se o tratamos como “mestre”, é porque, com ele, aprendemos a pensar o Brasil. Não se trata, pois, de heroicizar o personagem. Ele viveu seu tempo e deixou seu legado. Cabe a nós recuperá-lo. Simples assim.

O capítulo inicial, “O jovem Furtado e os eixos de sua formação (1920-1948)”, apresenta suas primeiras reflexões, saindo da realidade nordestina para o Rio de Janeiro e, depois, da capital brasileira para a Europa. Uma formação jurídica na Universidade do Brasil, mas, acima de tudo, navegando pelas leituras das ciências sociais e pelos desafios de constituição do moderno Estado brasileiro nas décadas de 1930 e 1940. No doutoramento em Paris, por sua vez, sedimenta-se em sua formação a história como instrumento de análise, uma história problema, como presente na tradição da escola dos Annales.

O encontro com a ciência econômica, por outro lado, somente ocorreria a partir de 1949, quando se transfere para Santiago do Chile para trabalhar na Cepal. Este é o objeto do Capítulo 2, “A aventura da Cepal (1949-1958)”, fase da fantasia organizada, quando o economista se equipa com as ferramentas de planejamento para atuar no sentido da superação do subdesenvolvimento nos países latino-americanos. Essa fase se encerra com sua ida para a Universidade de Cambridge, contexto de redação de sua obra-prima, que figura como síntese de sua trajetória – por conjugar método analítico e interpretação histórica da economia brasileira –, objeto do Capítulo 3, “Formação econômica: o método histórico-estrutural e uma ideia de Brasil”.

“O intelectual estadista (1958-1964)”, Capítulo 4, situa Celso Furtado no auge de sua atuação política, pois num curto espaço de tempo o economista da Cepal transforma-se no formulador de um dos mais ousados planos de desenvolvimento regional do país, com a criação da Sudene no governo de Juscelino Kubitschek. Mais tarde, em meio à crise econômica e política do governo de João Goulart, Celso Furtado é o responsável pela formulação do Plano Trienal, como ministro extraordinário do Planejamento. A fantasia (é) desfeita com o golpe militar e seu longo exílio de quase vinte anos.

Os dois capítulos seguintes tratam do período em que Celso Furtado, tendo seus direitos políticos cassados pelo Ato Institucional n.º 1, precisa produzir distante do palco político. O Capítulo 5, “O intelectual no exílio 1: repensando o Brasil (1964-1974)”, percorre a primeira década do exílio, quando sua prioridade é compreender os dilemas da economia brasileira, as razões do golpe e os significados do novo modelo de subdesenvolvimento.

“O intelectual no exílio 2: repensando o capitalismo (1974-1980)”, por sua vez, destaca sua produção no contexto em que o economista se distancia dos problemas da conjuntura econômica brasileira e produz textos voltados para compreender os impasses da civilização industrial e do capitalismo contemporâneo, oferecendo uma reflexão inovadora no campo da ciência social.

6.

Os capítulos finais do livro se voltam para as duas últimas décadas de vida de Celso Furtado. Com seu retorno definitivo para o Brasil, durante o processo de redemocratização, o economista reaparece em plena forma, atualizando sua leitura do “modelo brasileiro” e esclarecendo aos cidadãos a origem e a dinâmica da dívida externa e da inflação. Assume, no governo Sarney, o Ministério da Cultura, área em que fornece contribuições valiosas desde os anos 1970, agora transformadas em política pública.

O Capítulo 7, “De volta à cena nacional: economia, redemocratização e cultura (1980-1988)”, procura explicar como e porque Celso Furtado foi escanteado pelos economistas do poder, ao passo que se sobressai como um intelectual para além da economia. Sua atuação na cena política lhe permite compreender os impasses da democracia brasileira por meio de uma perspectiva histórica.

O Capítulo 8, “Na linha do horizonte: dialogando com as novas gerações (1988-2004)”, apresenta uma fase de balanços e sínteses de Celso Furtado. Uma década em que o reconhecimento do economista se concretiza por meio de prêmios e indicações, como o recebimento de diversos títulos honoris causa, a nomeação para a Academia Brasileira de Letras e a indicação para o prêmio Nobel de Economia.

Por meio de seus livros, Celso Furtado estabelece um diálogo com as novas gerações, com ênfase nos novos desafios para o enfrentamento do subdesenvolvimento, a partir de um resgate de sua contribuição teórica e de sua trajetória pública, e de suas reflexões sobre a transformação da economia mundial.

A título de conclusão, apresentamos um ensaio-síntese que percorre meio século de produção intelectual de Celso Furtado com o objetivo de reter os instrumentos metodológicos de sua análise econômica e social. Uma perspectiva analítica burilada por décadas, que a despeito de completarmos vinte anos de seu falecimento em 2024, ainda nos auxilia a captar a essência da realidade – condição para o enfrentamento da pobreza e da desigualdade nas suas variadas formas, sempre levando em conta as transformações do cenário internacional, as quais constrangem e abrem possibilidades para novas propostas de desenvolvimento nacional.

*Alexandre de Freitas Barbosa é professor de economia no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). Autor, entre outros livros, de O Brasil desenvolvimentista e a trajetória de Rômulo Almeida (Alameda).

*Alexandre Macchione Saes é professor no Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Conflitos do capital (EDUSC).

Referências

Alexandre de Freitas Barbosa & Alexandre Macchione Saes. Celso Furtado – Trajetória, pensamento e método. Belo Horizonte, Autêntica, 2025, 318 págs.

Notas

[I] Trecho do documentário O longo amanhecer: cinebiografia de Celso Furtado. Direção: Jose Mariani. Rio de Janeiro: Andaluz Produções, 2004. (73 min.)

[II] Oliveira, F. A navegação venturosa: ensaios sobre Celso Furtado. São Paulo: Boitempo, 2003, p. 18-19.

[III] Furtado, Celso. Aventuras de um economista brasileiro. In: Celso Furtado: Obra autobiográfica. Organização de Rosa Freire d’Aguiar.

Tomo II. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 21.

[IV] Furtado, Celso. Os inimigos de Chopin [Revista da Semana, 14 abr. 1942]. In: Anos de Formação: 1938-1948. Organização de Rosa Freire d’Aguiar. Rio de Janeiro: Editora Contraponto/Centro Celso Furtado, 2014b. (Arquivos Celso Furtado, v. 6).

[V] Furtado ([1942] 2014a, p. 67).

[VI] O longo amanhecer: cinebiografia de Celso Furtado. Direção: Jose Mariani. Rio de Janeiro: Andaluz Produções, 2004. (73 min.)

[VII] AmarElo: é tudo para ontem. Direção: Fred Ouro Preto. São Paulo: Netflix, 2020. (89 min.)

 

A Economia de Francisco, por Luiz Gonzaga Belluzzo

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Nossos olhares perderam de vista a ideia de comunidade cristã, expressão repetida no texto do papa e incrustrada nas origens do cristianismo.

por Luiz Gonzaga Belluzzo – Jornal GGN – 22/04/2025

O Editorial das “Notícias do Vaticano” relembra: na noite de 13 de março de 2013, Jorge Mario Bergoglio apareceu pela primeira vez na varanda central da Basílica de São Pedro vestido de branco. A sua saudação inicial já continha alguns traços salientes do pontificado: a oração por «uma grande fraternidade» no mundo dilacerado pela injustiça, violência e guerras.

Meses após a consagração papal, Francisco ofereceu aos católicos e cristãos a Primeira Exortação Apostólica “Evangelii Gaudium”. Assim como as encíclicas Rerum Novarum de Leão XIII, Mater et Magistra e Pacem in Terris de João XXIII, a exortação apostólica de Francisco, um texto cuidadosamente construído, aborda as vicissitudes e alegrias da vida cristã no mundo contemporâneo.

Os olhares do nosso tempo perderam de vista a ideia de comunidade cristã, expressão tantas vezes repetida no texto do papa e incrustrada nas origens do cristianismo. Jacques Le Goff diz com razão que no cristianismo primitivo e no judaísmo a eternidade não irrompia no tempo (abstrato) para “vencê-lo”. A eternidade não é a “ausência do tempo”, mas a dilatação do tempo ao infinito.

Depois da encarnação, a escatologia judaico-cristã sofre uma transmutação: o tempo adquire uma dimensão histórica. Cristo trouxe a certeza da eventualidade da salvação, mas cabe à história coletiva e individual realizar essa possibilidade oferecida aos homens pelo sacrifício da cruz e pela ressurreição. “Não nos é pedido que sejamos imaculados, mas que não cessamos de melhorar, vivamos o desejo profundo de progredir no caminho do Evangelho, e não deixemos cair os braços”.

O cristianismo – o mistério libertador da Encarnação – foi um divisor de águas na história da humanidade, um movimento revolucionário, nascido das crueldades e das sabedorias do mundo grego-romano.

Em uma entrevista sobre seu filme Satyricon, Fellini desvelou a alma que se escondia no rosto de seus personagens no crepúsculo do império romano. As máscaras se debatiam entre o tédio das concupiscências e as angústias da desesperança. Para o grande Federico, o filme escancarava “a nostalgia do Cristo que ainda não havia chegado”

Tal como nos personagens do Satyricon, percebo nos católicos de hoje a nostalgia do Cristo que não voltou. Mas, creia-me o leitor, ele já esteve entre nós encarnado na simplicidade e na sabedoria camponesa de João XXIII e parece ter retornado nos exemplos de Francisco.

João XXIII escreveu na Mater et Magistra: a Santa Igreja, apesar de ter como principal missão a de santificar as almas e de fazê-las participar dos bens da ordem sobrenatural, não deixa de preocupar-se ao mesmo tempo com as exigências da vida cotidiana dos homens, não só no que diz respeito ao sustento e às condições de vida, mas também no que se refere à prosperidade e à civilização em seus múltiplos aspectos, dentro do condicionalismo das várias épocas.

Francisco rejeita as formas de religiosidade que fazem recuar o espírito para os recônditos do individualismo, uma espécie de “consumismo do sagrado” que ignora os fundamentos comunitários do cristianismo. “Mais do que o ateísmo, o desafio que hoje se nos apresenta é responder adequadamente à sede de Deus de muitas pessoas, para que não tenham de ir apagá-la com propostas alienantes ou com um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro. Se não encontram na Igreja uma espiritualidade que os cure, liberte, encha de vida e de paz, ao mesmo tempo que os chame à comunhão solidária e à fecundidade missionária, acabarão enganados por propostas que não humanizam nem dão glória a Deus”. Um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro é a negação do cristianismo.

Na Encíclica Fratelli Tutti, Franscisco aborda as vicissitudes da vida moderna:

“A mera soma de interesses individuais não é capaz de gerar um mundo melhor para a humanidade. Sequer pode nos preservar de tantos males que se tornam cada vez mais globais. Mas o individualismo radical é o vírus mais difícil de ser vencido. Engana. Nos faz crer que tudo consiste em dar rédea solta às próprias ambições, como se a acumulação de ambições e seguranças individuais pudessem garantir a construção do bem comum”.

Na Encíclica, Francisco reivindica uma política econômica ativa “… que promova a diversidade produtiva e a criatividade empresarial” para que seja possível aumentar os empregos em vez de reduzi-los. A especulação financeira com lucro fácil como um fim fundamental continua a causar estragos. Além disso, sem formas internas de solidariedade e confiança falhou”.

Já em 2015, durante outra audiência no Vaticano, o Papa disse que “o dinheiro é esterco do diabo”, acrescentando que, quando o capital se torna um ídolo, ele “comanda as escolhas do homem”. Aprisionado nas engrenagens impessoais da economia sem alma, o Homem sem Escolhas entrega seu destino ao diabo e seus estercos.

Na edição de 17/5/2018, o Osservatore Romano registra a divulgação do documento Oeconomicae et pecuniariae quaestiones elaborado pela Congregação para a Doutrina da Fé. O texto de 16 páginas contém “considerações para um discernimento ético acerca de alguns aspectos do atual sistema econômico-financeiro”.

O documento foi apresentado na Sala de Imprensa pelo arcebispo Luis Francisco Ladaria Ferrer e pelo cardeal Peter Kodwo Appiah Turkson. Já na introdução o texto revela seu propósito de avaliar a supremacia dos mercados financeiros – os estercos do Diabo – e suas consequências sobre a vida de homens e mulheres que habitam o mundo dos vivos. “A recente crise financeira poderia ter sido uma ocasião para desenvolver uma nova economia mais atenta aos princípios éticos e para uma nova regulamentação da atividade financeira, neutralizando os aspectos predatórios e especulativos, e valorizando o serviço à economia real”.

Em carta aos jovens economistas do mundo, Papa Francisco sugeriu que se reunissem na cidade de Assis, Itália, entre 26 e 28 de março de 2020 para repensar uma nova doutrina econômica para o mundo. Uma doutrina que vá além das “diferenças de credo e nacionalidade”, inspirada “na fraternidade, sobretudo para os pobres e excluídos”.

Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia (IE) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (1985-1987) e de Ciência e Tecnologia de São Paulo (1988-1990). Belluzzo é formado em Direito e Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), pós-graduado em Desenvolvimento Econômico pela Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) e doutor em economia pela Unicamp. Fundador da Facamp e conselheiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), é autor dos livros “Os Antecedentes da Tormenta”, “Ensaios sobre o Capitalismo no Século XX”, e coautor de “Depois da Queda, Luta Pela Sobrevivência da Moeda Nacional”, entre outros. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists. Em 2005, recebeu o Prêmio Intelectual do Ano (Prêmio Juca Pato).

 

 

O braço de ferro entre EUA e China, por Celso Ming

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Guerra comercial em curso já causa prejuízos, embora seja difícil ainda prever quais desdobramentos ela tomará com o recente recuo de Trump

Celso Ming – O Estado de São Paulo – 24/04/2025

Tudo se passa como se a China estivesse pagando para ver até onde vai a capacidade do governo de Donald Trump de derrubar sua capacidade de resistência.

A Imposição de uma brutal tarifa de importação de 145% pretendeu levar a China ao nocaute. O presidente Xi Jinping retrucou, impôs tarifa de 125% sobre os produtos norte-americanos, mas advertiu que tarifas superiores a 100% já não fariam sentido econômico.

Agora, Trump avisa que está disposto a negociar, dando a entender que a jogada dos 145% pretendeu apenas buscar um ponto que aumentasse seu poder de barganha. Na tréplica, a China passou o recado de que não pretende negociar – o que indica que duvida da capacidade de resistência do governo Trump à política agressiva que ele próprio criou.

Os Estados Unidos reconhecem que sua economia está em declínio. Se o objetivo declarado do presidente Trump é recolocar os Estados Unidos em primeiro lugar (“Make America Great Again”) é porque já não são os primeiros do mundo.

O segundo desdobramento possível é o de que o governo da China resista às pressões comerciais de Trump e volte sua economia para o desenvolvimento do mercado interno. Nesse caso, não será capaz de sustentar os atuais níveis de superávit comercial, mas, também, reduzirá as importações do “made in USA”. É improvável que essa atitude leve a manufatura de volta para os Estados Unidos.

Qualquer que seja o resultado, incluídos os desdobramentos que ocupem zonas intermediárias entre essas duas situações, é difícil que defina novo equilíbrio de forças. Mais cedo ou mais tarde, haverá um desfecho que hoje ninguém sabe qual será.

Como ficaria o Brasil? À primeira vista, tende a se beneficiar, especialmente com uma demanda maior de commodities e de produtos eletrointensivos. No entanto, nenhum proveito terá se antes não cuidar da arrumação da casa, especialmente do desequilíbrio das contas públicas, que hoje sabota o futuro da economia do País.

 

O capitalismo é um jogo de soma zero? por Bruno Farias

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Bruno Farias – A Terra é Redonda – 22/04/2025

A dinâmica histórica do capitalismo não se resume a essa operação aritmética

Para responder a essa pergunta, é preciso primeiro esclarecer o que significa “soma zero”. Matematicamente, dizemos que uma soma é zero quando um número, somado ao seu oposto, anula-se – por exemplo, 7 + (–7) = 0. Se aplicarmos essa lógica à economia, a ideia seria de que o enriquecimento de um agente implicaria, necessariamente, o empobrecimento de outro, de modo que a riqueza total criada continuasse inalterada. No entanto, a história do capitalismo mostra que a questão não se resume a essa operação aritmética.

Ao longo dos séculos, o capitalismo demonstrou sua capacidade de produzir riqueza – a pobreza extrema caiu, a expectativa de vida aumentou e a qualidade de vida, mesmo que de maneira desigual, melhorou em diversas partes do mundo. Mas a conquista desse progresso tem um custo que vai muito além de aspectos meramente econômicos.

O sistema não é, em termos estritamente matemáticos, um jogo de soma zero, porque a riqueza global gerada pelo capitalismo, historicamente, cresceu. Contudo, essa prosperidade é distribuída de forma desigual. Quem detém o poder – sejam países, empresas ou indivíduos – garante a si mesmo as maiores fatias limitando o quanto os demais podem avançar, forçando-os a permanecer nas margens dessa divisão imperfeita.

Como mostrou o economista sul-coreano Ha-Joon Chang no livro Chutando a escada, os países que hoje figuram entre os mais desenvolvidos utilizaram e utilizam medidas protecionistas e intervenções estatais para fomentar a própria industrialização – ou, como ele coloca, “chutaram a escada” que depois se fecharia para os que desejam trilhar o mesmo caminho.

Essa é a dinâmica histórica do sistema capitalista, que ao distribuir a riqueza de maneira “não exata”, favorece aqueles que já acumulam poder e reforça uma estrutura de dominação, onde o enriquecimento de alguns decorre do crescimento limitado ou empobrecimento de outros.

A globalização intensifica essa dinâmica. Com a integração dos mercados internacionais, os fluxos de capitais e mercadorias cresceram de forma exponencial, mas, ao mesmo tempo, as relações de poder e os termos de troca favoreceram historicamente os países industrializados. Esses países, investidos em tecnologia e cadeias produtivas sofisticadas, determinam as regras do comércio global. Já os países inseridos como exportadores de commodities enfrentam a volatilidade dos preços e uma dependência, mantendo certos agentes presos a condições de exploração e vulnerabilidade.

Não apenas isso, é preciso colocar nessa análise uma crítica do ponto de vista ético e moral. Se, do ponto de vista estritamente econômico, o capitalismo gera um crescimento absoluto, ao introduzirmos a dimensão dos custos humanitários, a lógica se transforma.

O acúmulo de capital foi e é construído a partir de um processo humanitário custoso, como, por exemplo, a escravidão, o genocídio de comunidades tradicionais e a expropriação de culturas e territórios. O custo humanitário dessa história – as vidas, as culturas e os saberes que foram sacrificados – impõe um preço que, quando somado à conta, faz o sistema capitalista ser um jogo de soma zero, para não dizer de resultado negativo.

O geógrafo Milton Santos, ao analisar o impacto da globalização e do capitalismo contemporâneo, observava que “a globalização é o processo que materializa a concentração de poder e de riqueza, transformando espaços e subordinando culturas”. Esse olhar crítico nos mostra que o avanço econômico conquistado por meio do capitalismo não pode ser separado das consequências éticas e sociais que ele impõe. Ao mesmo tempo em que promove inovações e melhorias em certos indicadores de desenvolvimento, o sistema se sustenta sobre uma estrutura que marginaliza os mais vulneráveis e perpetua uma desigualdade estrutural.

A perspectiva marxista reforça essa crítica. Para Karl Marx, o capitalismo se apoia na extração da mais-valia – a diferença entre o valor produzido pelo trabalhador e o que ele recebe –, o que possibilita a concentração de riqueza nas mãos de poucos. Essa lógica de exploração garante que o sistema funcione não como um mero gerador de riqueza, mas também como um mecanismo de dominação e exclusão.

Mesmo que o “bolo” econômico cresça, a fatia que cada ator recebe pode permanecer estagnada ou, pior, diminuir em termos relativos, como se o ganho de alguns ocorresse exatamente à custa da perda de outros – nessa perspectiva de uma análise ampliada do que seria um jogo de soma zero quando os custos sociais, ambientais e culturais e etc. são devidamente computados.

Se torna fácil perceber quando refletimos sobre a inserção dos países no comércio internacional. Economias que dependem da exportação de produtos primários e commodities sofrem com termos de troca desfavoráveis e uma vulnerabilidade que não acompanha os avanços tecnológicos e produtivos dos países centrais. Enquanto os centros de poder acumulam capital e dirigem as regras do mercado global, os países periféricos permanecem em situação de dependência e têm sua capacidade de desenvolvimento limitada por uma estrutura internacional desigual.

Enfim, o capitalismo, sob o olhar estritamente econômico, não é um jogo de soma zero – ele cria riqueza e transforma o patrimônio global. Mas se considerarmos também os custos éticos, sociais e humanitários, bem como os mecanismos de extração da mais-valia que sustentam a acumulação de capital, percebemos que, na prática, o sistema impõe um resultado nulo ou negativo.

Bruno Farias é graduado em economia e graduando em matemática.

 

Piketty: As reformas tributárias de que precisamos

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Premiado relatório de Gabriel Zucman aponta, de forma corajosa, a dimensão crítica das evasões fiscais. Propõe taxar bilionários e exportações de multinacionais – só assim a economia pode reencontrar sua essência histórica, política e social

Thomas Piketty – OUTRAS MÍDIAS – 17/05/2023

Alegrem-se: a American Economic Association (AEA), principal organização profissional para economistas nos Estados Unidos, acaba de conceder a Medalha Clark a Gabriel Zucman por seu trabalho sobre concentração de riqueza e evasão fiscal. Concedido anualmente a um laureado com menos de 40 anos, a distinção recompensa notavelmente o trabalho inovador que demonstra a considerável importância da evasão fiscal por parte dos ricos, inclusive nos países escandinavos, que são rapidamente considerados modelos de virtude.

Dotado de uma imensa capacidade de trabalho, uma rara atenção aos detalhes e um talento inigualável para desenterrar novos dados e fazê-los falar, Gabriel Zucman também revelou a dimensão insuspeita da evasão do imposto de renda de empresas por multinacionais de todos os países.

Hoje diretor do Observatório Fiscal da União Europeia, ele dedica a mesma energia para encontrar soluções para os males que documenta. Num dos seus primeiros relatórios,[1] o Observatório demonstrou que os Estados-membros da União Europeia podiam optar por ir mais longe do que a taxa mínima de 15% fixada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) (demasiado baixa e amplamente contornada), sem esperar pela unanimidade. Ao impor a cada multinacional que pretenda exportar bens e serviços uma taxa de 25% sobre os seus lucros – a mesma que pagam os produtores estabelecidos em território nacional – a França obteria uma receita adicional de 26 bilhões de euros e encorajaria outros países a fazer o mesmo.

O fato da American Economic Association optar por premiar esse trabalho é importante, porque mostra que o coração da profissão começa a se dar conta da insustentabilidade do atual modelo social e fiscal. Não exageremos: os economistas sempre foram menos monolíticos do que às vezes se imagina, inclusive nos Estados Unidos. Em 1919, o presidente da American Economic Association, Irving Fisher, optou por dedicar seu “discurso presidencial” à questão das desigualdades.

Ele explica sem rodeios aos colegas que a crescente concentração da riqueza caminha para se tornar o principal problema econômico da América, que corre o risco, se não tomarmos cuidado, de se tornar tão desigual quanto a velha Europa (então percebida como oligárquica e contrária ao espírito norte-americano). Irving Fisher mostra-se perplexo com as estimativas publicadas em 1915 por Willford King de que “2% da população possuem mais de 50% da riqueza” e que “dois terços da população possuem quase nada”, o que lhe sugere “uma distribuição não democrática da riqueza” ameaçando os próprios alicerces da sociedade norte-americana.

Victory tax

É nesse contexto que os Estados Unidos aplicaram de 1918-1920 (sob o mandato do presidente democrata Wilson) taxas superiores a 70% no topo da hierarquia de renda, antes de todos os outros países. Quando Franklin D. Roosevelt foi eleito em 1932, o terreno intelectual já estava preparado há muito para a implementação da progressividade tributária em larga escala, com o famoso Victory tax (Imposto da Vitória) de 88% em 1942 e 94% em 1944. Os Estados Unidos aplicarão taxas semelhantes na Alemanha e Japão: no espírito da época, essas instituições tributárias foram vistas como um complemento indispensável das instituições democráticas, caso contrário estas corriam o risco de cair em uma deriva plutocrática.

Essas lições infelizmente foram esquecidas, e os Estados Unidos e grande parte do mundo entraram, desde as décadas de 1980 e 1990, em uma nova espiral oligárquica. Certamente seria um exagero jogar toda a responsabilidade sobre os economistas. Se a contra-ofensiva lançada nos anos 1960 e 1970 por Milton Friedman ou Friedrich Hayek conseguiu dar frutos, é também pela falta de apropriação coletiva das instituições do New Deal por parte dos cidadãos e do movimento social e trabalhista.

A batalha intelectual também foi travada nos departamentos de filosofia: quando John Rawls publicou sua Teoria da Justiça em 1971, lançou as bases conceituais de um ambicioso programa igualitário, mas permaneceu relativamente abstrato em suas saídas práticas. Ao mesmo tempo, Milton Friedman e Friedrich Hayek são perfeitamente específicos sobre seu objetivo de demolição da progressividade tributária.

Desregulamentação e liberalização

O fato é que os economistas têm uma responsabilidade particular no movimento de desregulamentação e liberalização das últimas décadas. Há, claro, os efeitos ligados à busca por financiamento privado, que vira os comentários à direita. Em 2016, quando os democratas Bernie Sanders e Elizabeth Warren endossaram propostas ousadas de imposto sobre a riqueza (com taxas subindo de 6% a 8% ao ano acima de US$ 1 bilhão), o ex-secretário do Tesouro de Bill Clinton e presidente de Harvard, Larry Summers – grande defensor da liberalização absoluta dos fluxos de capital – quase se estrangula e não hesita em atacar violentamente pesquisadores como Gabriel Zucman que defendem essas propostas (que, no entanto, são simples senso comum, dadas as alíquotas quase zero do imposto de renda pago pelos bilionários) .

Existem também razões estritamente intelectuais ligadas à evolução da disciplina de economia. Para dar a si mesma um fascínio científico autônomo, a economia tendeu a se isolar da história e da sociologia e a naturalizar as instituições estudadas (mercado, propriedade, competição), esquecendo no processo seu enquadramento social e político em sociedades particulares.

Os modelos matemáticos podem ser úteis se forem usados com sabedoria e não como um fim em si mesmos. A técnica estatística pode ser utilizada desde que não se perca de vista o olhar crítico sobre as fontes e categorias. Ainda há um longo caminho a percorrer para que a economia política e histórica recupere seu lugar de direito no interior das ciências sociais.

Thomas Piketty é diretor de pesquisas na École des Hautes Études en Sciences Sociales e professor na Paris School of Economics. Autor, entre outros livros, de O capital no século XXI (Intrinseca).

Tradução: Aluisio Schumacher para o portal Fórum 21.

Publicado pelo jornal Le Monde.

Nota

[1] Collecting the tax deficit of multinational companies: simulations for the European Union, Mona Barake, Theresa Neef, Paul-Emmanuel Chouc, Gabriel Zucman, June 2021.

 

Decisões estratégicas

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Nos últimos dias a economia internacional vem passando por grandes movimentações econômicas e produtivas, inúmeros acordos comerciais foram deixados de lado, discursos agressivos e violentos ganharam relevância na sociedade global, aliados históricos e estratégicos entraram em confrontos verbais, alíquotas e tarifas comerciais foram majoradas sem respeito a contratos assinados entre nações e medidas agressivas foram impostas para todas as nações, gerando mais incertezas, preocupações crescentes e um ambiente de negócio bastante agressivo, com um aumento das rivalidades e das hostilidades.

Muitos analistas internacionais acreditam que as medidas implementadas pelo governo norte-americano têm por objetivos forçar uma reindustrialização de sua economia, pressionando os agentes produtivos nacionais e internacionais a aumentarem seus investimentos internos, elevando os dispêndios da economia dos Estados Unidos, aumentando a contratação de trabalhadores locais, incrementando a renda interna, dinamizando os setores produtivos e contribuindo para a melhora da situação social dos cidadãos. A grande pergunta que a sociedade global está se fazendo é, se esta estratégia arriscada e agressiva, adotada pelo governo de Donald Trump, será exitosa para induzir a economia norte-americana para o caminho da reindustrialização?

Os Estados Unidos, claramente, perderam espaço no setor industrial global, depois de construir setores industriais de ponta durante séculos, a indústria norte-americana foi um dos grandes responsáveis pelo desenvolvimento da indústria global, ator fundamental na estruturação da inovação mundial, criando setores, desenvolvendo tecnologias, revolucionando máquinas e produtos globais, mas perdeu espaço na corrida internacional para outros atores globais, principalmente para a China. O país asiático se transformou de uma sociedade rural, atrasada tecnologicamente e marcada por grande pobreza, imensa miséria e degradação material, nestes últimos quarenta anos, a sociedade chinesa passou por grandes mutações, revolucionando a educação, investindo fortemente em ciência e tecnologia e adotando decisões estratégicas, onde destacamos a atuação do Estado chinês como indutor do desenvolvimento industrial, protegendo setores produtivos, incentivando a competição externa no mercado global e cobrando o incremento da produtividade de seus atores econômicos, além de atrair empresas e corporações globais, exigindo a transferência de tecnologia e fortalecendo as compras internas para solidificar a economia nacional, gerando emprego, melhorando as condições de vida e transformando todo o ambiente de negócio.

Neste momento, encontramos um conflito de grandes atores na economia internacional, a maioria dos estrategistas internacionais acreditam que as apostas do governo norte-americano não terá o êxito esperado e, ao contrário, tendem a gerar um incremento nos preços internos, desestruturação de setores externos e o aumento do desemprego dos cidadãos norte-americanos, aumentando os desequilíbrios internos e gerando pressões externas, que podem gerar conflitos militares, cujos resultados imediatos são impossíveis de serem mensurados. As medidas unilaterais adotadas pelo governo norte-americano tendem a agravar os desequilíbrios globais, aumentando as incertezas no interior das nações, amedrontando os setores produtivos e aumentando as volatilidades dos trabalhadores, impactando sobre toda a sociedade mundial.

Diante dos desafios da sociedade global, o Brasil precisa estimular decisões estratégicas, compreender o cenário mundial de incertezas e de rivalidades, construir consensos internos em prol do desenvolvimento econômico, superar uma visão subserviente que domina grande parte da elite nacional e se concentrar em discussões estratégicas e deixando de lado conversas equivocadas, desnecessárias e ultrapassadas que combinam com a impunidade e a degradação moral.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Jorge Mario Bergoglio (1936-2025), por Tales Ab´Saber

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Tales Ab´Saber – A Terra é Redonda – 21/04/2025

Breves considerações sobre o Papa Francisco, recém-falecido

O Papa Francisco entendia a igreja como tolerante, universalmente amorosa, ecumênica, aberta e receptiva ao cuidado de todas as violências e exclusões do tempo. Entendia o cristianismo católico como universalmente comprometido com o reconhecimento, voltado a todas as situações da vida contemporânea, e não culpabilizador, excludente, autoritário e estrategicamente violento.

Seu apostolado era totalmente includente pela misericórdia. Evidentemente, ele foi lançado ao inferno do ódio dos católicos de direita, que o atacaram de todos os modos possíveis e imagináveis, sempre confundindo o seu próprio partido neofascista com as redes sociais, onde vivem. Para essa gente, do Concílio Vaticano II, de João XXIII, a Francisco, a igreja católica chegou à máxima decadência imaginável.

Apostasia, “sede vacante”, heresia, usurpador e até “anti-Cristo”, eram os modos crescentemente destrutivos que a intolerância e a autodeclarada verdade moral dos católicos do terror, que se alinharam com as direitas políticas mais violentas e satisfeitamente burras do tempo – abençoando e servindo a golpes de Bolsonaros e de Trumps – tratavam o sensível ao outro Francisco.

Sobre a união do grupo no ódio, o núcleo duro de um mito de superioridade, que se nomeia como a verdade de deus, exigindo a agência do poder e o rebaixamento da diferença e dos inferiores, em um movimento que se organiza e se torna orgânico em oposição a processos democratizantes, socialmente implicados, essa grotesca e espetacular reação católica contra o seu próprio Papa nos ensina muito sobre a lógica grupal, de psicologia de massas e modulação do “eu”, das direitas de nossa época.

Contra-democráticos, humanamente insensíveis, radicalmente anti-críticos, fascistas fazem apelo a deus e religiosos fazem apelos a fascistas, tudo através da “religião e partido das redes sociais”, para aumentar o ganho privado e particular de um grupo de auto ungidos, que inventam deus, contra todos os demais. Francisco claramente concebia deus em oposição ao deus fascista e sua política.

Tales Ab’Saber é professor do Departamento de Filosofia da Unifesp. Autor, entre outros livros, de O soldado antropofágico (Hedra)

 

Brasil tem terras raras, mas não tem projeto, por Ronaldo Lemos

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País tem 23% das reservas globais, mas só 1% da demanda; tensão entre China e EUA é oportunidade

Ronaldo Lemos, Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro

Folha de São Paulo, 21/04/2025

Em um dos períodos em que estive na China, a tensão com os EUA estava acirrada. O presidente chinês fez um pronunciamento que parecia destinado a acalmar os ânimos, mas não disse uma palavra sobre a crise. O recado foi passado de outro jeito: o lugar do discurso, proferido diretamente de uma das principais minas de terras raras da China, em Ganzhou.

A mensagem era sutil, mas clara: se a tensão aumentasse, a China poderia restringir o acesso às suas terras raras, essenciais para a produção tecnológica.

A China impôs restrições à exportação para os EUA de sete terras raras que são usadas para fabricar de celulares a mísseis. Além disso, impôs restrições às exportações de antimônio, gálio, germânio, tungstênio e outros minerais que possuem aplicação militar.

A China responde por cerca de 70% da produção global de terras raras. Os Estados Unidos aparecem em sendo lugar , com cerca de 14%. As terras raras compreendem 17 elementos, dentre eles: o ítrio (usado na indústria espacial, semicondutores e equipamentos de raio-x), samário (reatores nucleares e lasers) e gadolínio (chips de memória e equipamentos de ressonância magnética).

Hoje os EUA importam 75% das terras raras consumidas no país. A China não baniu totalmente as exportações, mas restringiu justamente os elementos que os EUA não produzem internamente.

Sem acesso a eles, as consequências podem ser temerárias. A fabricação de chips, carros, TVs, celulares, equipamentos médico e militar pode ser severamente afetada. Por exemplo, caças americanos dependem diretamente de térbio e disprósio, dois dos elementos colocados na lista de restrições da China.

Nessa situação, o que fazer? O primeiro passo é ampliar compras de outros países e incentivar o desenvolvimento da mineração de terras raras fora da China. Isso pode ser benéfico para o Brasil, que possui reservas de disprósio, térbio e ítrio, dentre outras terras raras. Cidades como as goianas Minaçu e Catalão ou as mineiras Poços de Caldas e Araxá possuem reservas significativas desses elementos raros.

A outra solução é o contrabando. Da mesma forma como chips da Nvidia entraram na China mesmo com o bloqueio dos EUA, é de se esperar que algo parecido aconteça cada vez mais com terras raras.

O ponto-chave é que a dominância chinesa não é natural. É produto da visão de longo prazo do ex-presidente Deng Xiaoping, que nos anos 1980 investiu fortemente nesse setor e proferiu a famosa frase: “o Oriente Médio tem petróleo, o Império do Meio tem terras raras”, repetida à exaustão nos documentos estratégicos do país. E, de fato, até 1990 os EUA lideravam sem concorrentes a produção de terras raras.

Tudo isso para dizer: o Brasil precisa articular seu pensamento estratégico sobre terras raras de forma ousada e com visão no longo prazo, como a China fez. Temos 23% das reservas globais, mas atendemos só 1% da demanda. Nosso país também pode fazer parte desse clube. Não dependemos de ninguém para entrar nele além de nós mesmos.

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Taxar ultrarricos para distribuir aos pobres é uma medida popular, diz Nobel de Economia

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Francesa Esther Duflo diz que alguns bilionários já concordam com a taxação de 2% de sua riqueza para proteger os mais pobres das mudanças climáticas

Folha de São Paulo, 21/04/2025

A francesa Esther Duflo, uma das únicas três mulheres a receber o Nobel de Economia, diz estar em um relacionamento de longo prazo com o Brasil.

“Estou em contato bastante próximo com o ministro da Economia, Fernando Haddad, assim como com a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. E é sempre um grande prazer interagir com eles”, disse ela à Folha durante visita a São Paulo, na última semana.

Duflo esteve no Brasil para anunciar a inclusão do Insper na Adept, uma aliança internacional para formação em análise de dados, avaliações e políticas públicas sediada no J-PAL  (Laboratório de Ação contra Abdul Latif Jameel), o centro de pesquisas cofundado por ela e sediado no MIT (Massachusetts Institute of Technology), nos EUA.

A economista apoiou a proposta feita pelo Brasil na presidência rotativa do G 20 de criação de um imposto global de 2% sobre a riqueza dos bilionários do mundo para financiar adaptação e mitigação dos efeitos das mudanças climáticas sobre as populações mais pobres do planeta. “Os países pobres contribuem nada ou muito pouco para as mudanças climáticas, mas experimentam a maior parte dos seus danos”, avalia.

“Alguns ultrarricos já concordam que podem abrir mão de 2% de sua riqueza todos os anos”, afirma Duflo. “Provavelmente, eles mal sentiriam falta desses recursos em suas vidas, mas isso faria uma enorme diferença para o mundo que eles também habitam.”

Segundo a economista, taxar ultrarricos para distribuir entre os mais pobres é uma medida popular. A Nobel de Economia afirma que a implementação deste tipo de imposto parece difícil “porque as pessoas ricas têm muito poder político”. Mas, diz, “elas também precisam de um planeta habitável”.

No Brasil, proposta enviada ao Congresso pelo ministro Haddad para a criação de um imposto mínimo de 10% para quem ganha mais de R$ 50 mil por mês tem apoio de 76% dos brasileiros, segundo pesquisa Datafolha divulgada nesta semana.

Em entrevista à Folha, Duflo explicou porque escolheu trabalhar com o combate à pobreza, como a desigualdade se relaciona às mudanças climáticas e por que há poucas mulheres laureadas com o Nobel de Economia.

Por que a pobreza não é um problema apenas dos pobres?
Em primeiro lugar, porque compartilhamos a condição humana, os valores do humanismo e a solidariedade, o que significa que precisamos nos preocupar com a situação daqueles que mais sofrem com a pobreza, com a guerra e outras coisas. Em segundo lugar, porque a pobreza é um problema para as sociedades. Aquelas que têm muitas pessoas pobres perdem muito de seu potencial e riqueza porque a pobreza impede as pessoas de se tornarem cientistas ou engenheiros ou políticos. Ela empobrece toda a sociedade. É por isso que meu trabalho de vida tem sido combater a pobreza.

Como as mudanças climáticas afetam a pobreza no mundo?
Elas já estão afetando os países pobres hoje e vão afetar ainda mais no futuro por duas razões. A primeira é que esses países tendem a estar em lugares onde já é quente. E, portanto, à medida que o planeta esquenta, eles serão mais afetados por temperaturas que não são adequadas à vida humana. O segundo problema é que as pessoas pobres nesses países estão menos protegidas porque não têm ar condicionado nem acesso imediato a atendimento em saúde e não podem parar de trabalhar, o que quer dizer que é mais provável que elas morram quando está muito quente, ou que experimentem uma renda ainda mais baixa.

Como a luta contra a desigualdade e contra as mudanças climáticas se relacionam?
Elas se relacionam por meio de uma tripla desigualdade. Uma é que as pessoas pobres não contribuem nada para as mudanças climáticas porque suas emissões são muito baixas. Outra é que elas são as mais diretamente afetadas pelos efeitos das mudanças climáticas. E outra ainda é que elas têm menos meios para se proteger. Então, se não interferirmos diretamente na capacidade das pessoas mais pobres de se protegerem dos impactos climáticos, a desigualdade só vai aumentar. E a desigualdade na maneira como as mudanças climáticas impactam as pessoas só vai piorar e piorar.

A Sra tem uma proposta para mitigar os efeitos das mudanças climáticas sobre pessoas pobres. Qual é ela?
Primeiro é preciso observar que os países pobres contribuem nada ou muito pouco para as mudanças climáticas, mas experimentam a maior parte dos seus danos. Depois, é preciso colocar um número nisso para percebermos a extensão do dano. Se você colocar um preço na vida humana, nas perdas agrícolas e nas perdas econômicas, a extensão dos danos das mudanças climáticas a um país como Níger, na África, por exemplo, é algo como US$ 35.000 por pessoa por ano. Isso é o que o mundo, coletivamente, está impondo a Níger.

Considerando-se a trajetória climática mais quente prevista pelo IPCC [Painel Internacional de Mudanças Climáticas], até 2100 haverá 6 milhões de mortes extras no mundo devido à alta de temperatura, e elas serão quase todas em países que hoje são pobres. As emissões que vêm da Europa e dos EUA causam um dano de meio bilhão de dólares todos os anos. Então, precisamos encontrar uma maneira de compensar as pessoas por pelo menos parte desses danos. E, para isso, precisamos arrecadar dinheiro.

Como? Uma das coisas que estou propondo em colaboração com a presidência brasileira no G20 é uma tributação global de 2% dos ultrarricos para um fundo de proteção aos mais pobres. Se tivermos o dinheiro, precisamos descobrir como dá-lo às pessoas. Proponho encontrarmos uma maneira de enviá-lo diretamente para as pessoas que são mais afetadas.

Pesquisas mostraram que, embora aumentar impostos seja uma medida muito impopular, tributar os ultrarricos para financiar políticas para os mais pobres é visto de forma mais favorável.
Essa é uma pesquisa de um francês chamado Adrien Fabre, que analisou uma série de pesquisas de opinião de pessoas na Europa e nos EUA sobre várias soluções para as mudanças climáticas. Ele descobriu que o imposto sobre o carbono é muito impopular, mas a ideia de tributar ultrarricos para redistribuir o dinheiro em outro lugar é muito mais popular. Algo como 80% dos europeus gostam da ideia, e mesmo os americanos não são contra: cerca de 60 ou 70% a aprovam. Então há apoio popular.

Por que então esta é uma medida tão difícil de implementar?
Talvez porque as pessoas ricas têm muito poder político e não estão muito interessadas na ideia. Mas eu gostaria de persuadi-las, e algumas delas já estão persuadidas de que isso é do seu próprio interesse. Não é tanto dinheiro, e elas também precisam de um planeta habitável, e também sofreriam se o aumento da pobreza levasse a conflitos e muita agitação no mundo. Então, alguns ultrarricos já concordam que podem abrir mão de 2% de sua riqueza todos os anos. Provavelmente, eles mal mal sentiriam falta desses recursos em suas vidas, mas isso faria uma enorme diferença para o mundo que eles também habitam.

No Brasil, um país de grande desigualdade, a proposta do atual governo de isentar pessoas mais pobres de impostos é vista favoravelmente, mas a de aumentar impostos dos ultrarricos é tratada como algo que pode inibir investimentos e gerar fuga de capitais. Esses receios são reais?
Há muita evidência mostrando que tributar pessoas mais ricas não limita investimentos. Isso porque, no final das contas,  os bilionários tem tanto dinheiro que o que importa para eles é ser mais rico do que seus amigos —e os impostos não mudam isso. Já a fuga de capitais é uma questão quando um país age sozinho porque, em muitos lugares –o Brasil entre eles–, é fácil enviar capitais para paraísos fiscais. Aí entra a importância da cooperação internacional na tributação para que haja registro sobre onde o dinheiro está de modo que um país possa ir atrás dos ativos de seus cidadãos enviados para outro lugar. Ainda melhor seria coordenar uma medida em que todos os países tributarem ultrarricos em 2% por ano. Aí, a fuga não faria sentido.

Ainda assim, há estudos em países nórdicos que apontaram que a fuga de capitais em resposta ao aumento da tributação é real, mas bem menor do que se pensava. Talvez o problema fosse pior no Brasil, onde as pessoas já estão mais conectadas ao mundo exterior. Portanto, é um problema a ser levado a sério, mas que pode ser resolvido com países trabalhando juntos, como no processo que o G20 lançou

Algumas medidas de combate à pobreza são tratadas como falsos remédios. Programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, já foram criticados sob a premissa de que não se deve dar o peixe, mas ensinar a pescar…
Este ditado em particular é um dos grandes clichês no desenvolvimento, o que é particularmente irritante, na minha opinião. Há um estudo recente de Dean Karlan e Chris Udry que revisou 130 pesquisas sobre 72 programas de transferência de dinheiro que mostram efeitos enormemente positivos em todas as dimensões da vida dos beneficiários. Então, podemos levar as pessoas a sério em sua capacidade de usar bem o dinheiro e deixarmos o paternalismo de lado. Há coisas que não podem ser fornecidas com dinheiro e que também podemos fazer, como oferecer boas escolas.

Como você avalia o Bolsa Família?
Ele foi muito avaliado e copiado em muitos países, onde também foi submetido a avaliações randomizadas rigorosas, e se mostrou muito eficaz em melhorar a educação e a saúde das pessoas. A única coisa que aprendemos desde que o programa foi iniciado é que condicionalidades estritas não são necessárias. É possível atingir os mesmos objetivos com condicionalidades mais brandas, que sinalizem que o programa é para ajudar na educação e saúde das crianças e jovens sem que necessariamente a transferência seja retirada quando as pessoas não estão cumprindo as contrapartidas. No Brasil, é bastante óbvio que o programa pode ser creditado por uma enorme queda na pobreza.

Você foi uma das três únicas mulheres laureadas com o Prêmio Nobel de Economia. Como interpreta essa presença feminina?
Quando recebi o Prêmio Nobel, em 2019 também era a única que estava viva porque Elinor Ostrom [laureada em 2009] havia falecido [em 2012]. Três não são suficientes, mas isso é um reflexo do fato de que não há muitas mulheres na economia. Mulheres são menos propensas a fazerem doutorado em economia. Estudantes de doutorado mulheres são menos propensas a se tornarem jovens professoras. Jovens professoras são menos propensas a obter estabilidade. Como economistas, tendemos a pensar que devemos deixar as coisas seguirem seu curso porque chegarão ao lugar certo. Mas acho que percebemos, nos últimos anos, que há algumas estruturas sobre a profissão que não a tornam muito amigável para mulheres, em particular por causa de uma espécie de cultura agressiva, que não é útil. Muitos departamentos estão fazendo esforço para mudar isso. O resultado deve aparecer nos próximos anos, espero.

Raio-X

Esther Duflo, 52, é Professora de Alívio da Pobreza e Economia do Desenvolvimento no Departamento de Economia do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos EUA, e cofundadora e codiretora do Laboratório de Ação contra a Pobreza Abdul Latif Jameel (J-PAL). Recebeu o Nobel em Economia “por sua abordagem experimental para aliviar a pobreza global” em 2019.

 

O lado esquecido do imperialismo dos EUA, por Lauro Mattei

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Lauro Mattei – A Terra é Redonda – 19/04/2025

Para Donald Trump e seus séquitos só existe uma nação americana: os Estados Unidos

1.

A eleição e as ações iniciais do governo de Donald Trump parecem ir mais além de uma simples “guerra comercial” como tem sido divulgado frequentemente. Com sua pose de imperador do mundo, Donald Trump e seus asseclas pretendem retomar doutrinas imperialistas de séculos passados como forma de demonstração de poder absoluto sobre todas as demais nações do planeta.

Na essência, percebe-se que a ação de Donald Trump na esfera comercial global busca encobrir um problema doméstico, especialmente em termos do fracasso das políticas sociais norte-americanas que se reproduz no comportamento de fúria e ódio da classe média, a qual se frustrou com o cenário econômico que faz com que o “sonho americano” fique cada vez mais distante. Em grande medida, decorre daí o respaldo obtido por Donald Trump em relação às políticas protecionistas que estão sendo adotadas, bem como o apoio aos ataques proferidos contra os imigrantes, especialmente da América Latina e Caribe.

Para fazer frente a este cenário político complexo, Donald Trump está procurando reavivar para o presente a “Doutrina Monroe” definida pela política externa dos Estados Unidos em 1823. Ao impedir a interferência de países europeus no Continente Americano, tal doutrina reforçou o imperialismo dos Estados Unidos no referido local e permitiu, inclusive, que esse país realizasse todos os tipos de intervenção em países da América Latina e Caribe e também em países da América Central.

2.

Apenas recordando que o tema do imperialismo foi discutido sistematicamente por John A. Hobson em 1902. Esse autor o considerou como sendo um fenômeno decorrente do processo de acumulação de capital que foi fortemente potencializado após as revoluções industriais. Esse assunto foi retomado por Vladímir Lênin em 1916 em sua obra clássica Imperialismo, fase superior do capitalismo, momento em que são analisadas as distintas características do imperialismo que movem sua existência: a luta política pela partilha do domínio no mundo.

De um modo geral, pode-se dizer que a política dos Estados Unidos para o conjunto de países que fazem parte do continente americano baseia-se no exercício do domínio por meio dos poderes econômico, político, cultural e militar, estando ela assentada nas ideias de superioridade e de submissão dos demais aos seus interesses. Tais pressupostos estão ancorados na presunção com que se autodenominam: a América. [1] Ou seja, para Donald Trump e seus séquitos só existe uma nação americana: os Estados Unidos.

Portanto, não há nenhuma novidade quando o presidente Donald Trump se refere à América do Sul e Central como “quintal dos EUA”. O senhor Pete Hegseth, secretário de defesa dos EUA, em entrevista ao canal Fox News no dia 10.04.2025, assim se manifestou: (a) criticou o avanço da China na região utilizando-se do Canal do Panamá; (b) criticou o ex-presidente Barack Obama por ter deixado a China atuar na América do Sul e Central impondo sua influência econômica e cultural, além de ter feito “acordos ruins” com governos locais; (c) ressaltou que os EUA farão tudo o que for possível para interromper a influência chinesa na região, bem como as ameaças que a China representa para o hemisfério; (d) finalmente destacou a posição do presidente Donald Trump: “não mais, nós vamos recuperar o nosso quintal”. Para Donald Trump, a China “cresceu nesse quintal” durante os últimos governos democratas.

Em visita oficial recente ao Panamá, o secretário Pete Hegseth externou novamente o desejo de Donald Trump de que os EUA voltem a comandar o canal como era até 1999. Além disso, informou que haverá aumento das forças americanas nas antigas bases militares, além de solicitar isenção das taxas aplicadas às embarcações militares dos EUA, cujo movimento é elevado.

No mesmo evento, o secretário saudou a decisão do governo do Panamá de ter declinado de sua participação no projeto chinês da “nova rota da seda”, programa que, por um lado, promove a expansão de obras de infraestrutura e, por outro, busca a cooperação no âmbito de interesses mútuos. Registre-se que o canal do Panamá continua sendo estratégico para os EUA, uma vez que por ele passam 40% de todos os conteiners dos EUA, bem como 5% de todo o comércio mundial.

3.

A China se manifestou duas vezes sobre esses assuntos acima mencionados. Na primeira delas afirmou que o governo de Donald Trump está chantageando o governo do Panamá, uma vez que acordos comerciais são decisões soberanas dos países, portanto interferências externas são inaceitáveis.

Na segunda, a China rebateu mais fortemente a visão de Donald Trump sobre a América Latina e Central: os povos latino-americanos buscam suas independências e não querem doutrinas de dominação porque buscam construir seu próprio lar sem ser quintal de ninguém.

Neste sentido, nota-se que há mais elementos centrais que fazem parte do lado esquecido do imperialismo dos EUA, além da guerra comercial que esse país vem travando globalmente, porém em particular com a China: cortes expressivos nos programas mundiais de ajuda humanitária; retirada do país dos principais organismos e agências da Organização das Nações Unidas (ONU); culpabilização dos países latino-americanos pelo avanço das drogas na sociedade Estadunidense; culpabilização dos imigrantes latinos pelos problemas estruturais do mercado de trabalho dos EUA; etc.

Por fim, acreditamos que a maioria dos latino-americanos não tem nenhum apreço pelos desejos do presidente dos EUA, uma vez que seus quintais são providos de jardins com flores que simbolizam o amor e a paz entre os povos e não pelo ódio e pela guerra que nutrem cotidianamente a mente de um psicopata.

*Lauro Mattei é professor titular do Departamento de Economia e Relações Internacionais e do programa de pós-graduação em Administração, ambos na UFSC.

Notas

[1] Nunca é tarde relembrar ao senhor Trump que o Continente Americano é composto por três regiões geográficas com os seguintes países: América Latina e Caribe (33 países); América Central (7 países) e América do Norte (3 países). Portanto, as Américas não se restringem apenas ao país que ele governa atualmente.

Lições de um jovem magistrado, por Oscar Vilhena Vieira

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Poder e autoridade judicial são fenômenos semelhantes

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023).

Folha de São Paulo, 19/04/2025

Certa vez fui despachar com um jovem magistrado, que me interrompeu no meio de uma frase: “Já entendi, o senhor está dizendo que eu errei”. Percebendo a minha perplexidade, voltou-me sua folha de anotações, onde estava escrito, em letras garrafais: “Errei!!! Corrigir”, numa clara demonstração de que sua autoridade não estava em jogo.

Poder e autoridade judicial são fenômenos semelhantes. Ambos se referem a capacidade de um juiz ou tribunal de impor conduta a outro agente. O respeito à autoridade judicial, no entanto, está intrinsecamente associado à imparcialidade, objetividade e rigor com que um juiz ou tribunal aplicam a lei. Já a submissão ao poder judicial decorre, sobretudo, do medo de sofrer alguma forma de coerção.

Os atritos entre a Justiça do Trabalho e o Suprema Tribunal Federal têm origem na forma equivocada como o Supremo vem aplicando a legislação trabalhista, assim como as normas constitucionais relativas ao direito do trabalho, nos últimos anos.

Sob o pretexto de que a Justiça do Trabalho estaria confrontando a jurisprudência do Supremo, diversos de seus ministros têm cassado decisões proferidas por juízes e tribunais do trabalho que, no exercício de suas competências constitucionais, detectaram a existência de fraude na contratação de trabalhadores, por meio de pessoas jurídicas.

A pejotização é um neologismo cunhado para designar um tipo de fraude contratual, voltada a suprimir o acesso do trabalhador aos seus direitos previstos na Constituição e na legislação trabalhista, além de promover a evasão fiscal e previdenciária.

Não importa se por preconceitos contra os trabalhadores CLT, viés ideológico, ou por simples desconhecimento da legislação trabalhista, inúmeras decisões do Supremo vêm incentivando a substituição de contratos de trabalho por contratos civis ou comerciais com pessoas jurídicas (MPE e MEI), compostas na grande maioria dos casos apenas pelos seus sócios proprietários. Esses “empreendedores”, no entanto, continuam mantendo relação de trabalho marcada pela pessoalidade e subordinação.

Sob a justificativa de valorizar a livre iniciativa e formas mais flexíveis de relações de trabalho, a postura do Supremo tem permitido que um número cada vez maior de empregadores deixe de recolher devidamente encargos sociais, como INSS, FGTS ou PIS, ampliando a crise da previdência e sobrecarregando os setores que contratam de acordo com a CLT e cumprem com as suas obrigações patronais.

Paralelamente, esse esquema também favorece a evasão do imposto de renda, por parte de trabalhadores contratados através de pessoas jurídicas, contribuindo para ampliar ainda mais a já perversa regressividade de nosso sistema tributário. Estima-se uma redução de cerca de 88% no valor de imposto de renda a ser recolhido com esse esquema. Desnecessário lembrar que, no país dos privilégios, essa redução de imposto de renda favorecerá, sobretudo, os trabalhadores mais ricos.

A postura do Supremo, por fim, tem contribuído para a precarização das relações de trabalho, impedindo o acesso do trabalhador a direitos básicos estabelecidos pela Constituição, como descanso semanal remunerado, limitação da jornada de trabalho ou décimo terceiro salário, além de não ser discriminado em face de sua raça ou gênero.

Torço para que o Supremo não use o seu poder para ganhar o braço de ferro com a Justiça do Trabalho. Ao julgar a tese de repercussão geral 1389, o tribunal terá a oportunidade de corrigir a confusão por ele criada e, como fez o jovem magistrado, restabelecer sua autoridade.

 

O privilégio dos EUA está em xeque? Solange Srour

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Se perder posto de principal fornecedor de ativos seguros, seus mercados sofrerão com choques fiscais

Solange Srour, Diretora de macroeconomia para o Brasil no UBS Global Wealth Management.

Folha de São Paulo, 17/04/2025

A recente disparada nos juros dos títulos do Tesouro americano (Treasuries) tem sido atribuída por muitos à liquidação de posições alavancadas baseadas nesses ativos. Embora esse fator técnico tenha contribuído, a raiz do movimento parece ser bem mais profunda: a erosão do privilégio exorbitante dos Estados Unidos no sistema financeiro internacional.

Desde a Segunda Guerra Mundial, os EUA desfrutam do status de principal fornecedor global de ativos seguros. Essa posição lhes permite financiar déficits fiscais recorrentes, com o apoio de investidores estrangeiros dispostos a aceitar rendimentos menores em troca da segurança e liquidez dos Treasuries.

Historicamente, em momentos de crise —como na crise financeira global de 2008— esses investidores atuaram como estabilizadores. No último trimestre daquele ano, por exemplo, absorveram US$ 270 bilhões em Treasuries, mais da metade das emissões do período, mesmo com os EUA apresentando déficits nominais acima de 9% do PIB. O resultado foi a manutenção dos juros em patamares baixos, ancorados pela confiança na segurança dos ativos americanos.

Esse quadro, porém, vem se transformando. Desde a pandemia, surgiram sinais de ruptura. Em março de 2020, em vez da clássica “fuga para a qualidade”, o mundo vendeu US$ 400 bilhões em Treasuries, especialmente de longo prazo, o que forçou o Federal Reserve a intervir, comprando mais de US$ 1 trilhão. Outro momento crítico ocorreu com a eclosão da guerra na Ucrânia, quando as Bolsas caíram fortemente e os títulos americanos perderam valor na sequência.

Tudo indica que demanda estrangeira se tornou mais sensível ao preço. Paralelamente, os bancos centrais —que por anos acumularam esses títulos em seus balanços— passaram a se retrair. O fim do afrouxamento quantitativo e o retorno da inflação forçaram o Fed (e outros bancos centrais) a interromper a expansão de seus balanços, reduzindo a absorção de risco e pressionando os juros.

Entre 2007 e 2022, o Tesouro emitiu quase US$ 19 trilhões em títulos. O Fed absorveu US$ 5,15 trilhões e o restante do mundo, US$ 5,36 trilhões. Essa base de compradores inelásticos sustentou a demanda mesmo com déficits crescentes. Mas essa realidade pode estar mudando —e antes mesmo de o governo Trump trazer como prioridade a eliminação do seu déficit em conta-corrente. Caso os EUA precisem equilibrar sua conta-corrente, o investidor estrangeiro deixará de ser financiador líquido, exigindo a sua substituição pela poupança doméstica.

Essa mudança de comportamento do mercado é especialmente preocupante diante do quadro fiscal atual. A renovação dos cortes de impostos, que Trump pretende aprovar no Congresso, pode adicionar US$ 37 trilhões aos déficits nas próximas três décadas, elevando a dívida pública para mais de 200% do PIB.

Esse cenário lembra a trajetória do Reino Unido no século 20. No século 19, Londres era o centro financeiro global. Mas, entre as duas guerras, perdia esse status à medida que seus fundamentos fiscais se deterioravam. Com o fim da hegemonia britânica e o nascimento de Bretton Woods, o dólar assumiu a liderança como reserva de valor.

O episódio britânico de 2022 é emblemático sobre como, sem o status de reserva global, os mercados punem rapidamente países com fundamentos frágeis. O anúncio de cortes de impostos sem compensações levou a uma reação agressiva dos mercados: os juros dos títulos de dez anos subiram mais de cem pontos-base em um curto período, e a libra caiu para mínimas históricas.

Se os EUA perderem sua posição como principal fornecedor de ativos seguros, seus mercados podem passar a se comportar como os das demais economias —altamente sensíveis a choques fiscais. O privilégio exorbitante não desaparece de forma abrupta, mas os sinais de fratura são cada vez mais evidentes.

Sem o amparo irrestrito de investidores estrangeiros e bancos centrais, a disciplina fiscal volta a ser inegociável.

 

O editorial do Estadão, por Carlos Eduardo Martin

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Carlos Eduardo Martins – A Terra é Redonda – 16/04/2025

A grande razão do atoleiro ideológico em que vivemos não é a presença de uma direita brasileira reativa a mudanças nem a ascensão do fascismo, mas a decisão da socialdemocracia petista de se acomodar às estruturas de poder

O editorial do jornal O Estado de S. Paulo de 12 de abril, contrário à anistia para Jair Bolsonaro e aos demais criminosos do 8 de janeiro, e crítico à posição assumida por Tarcísio de Freitas em favor do PL da anistia, revela o drama da velha oligarquia burguesa no Brasil. Não confia em Jair Bolsonaro, mas sem liderança política própria, é obrigada a fazer um pacto com o Partido dos Trabalhadores, que se presta ao papel de salvar uma burguesia parasitária, rentista, colonial e subdesenvolvida.

Estamos no meio de uma brutal crise orgânica da reprodução do capitalismo no Brasil. O PIB per capita brasileiro não cresce em dólares constantes desde 2013, oscilando entre soluços que não reverteram a tendência à baixa (ver Cepalstat), mas somos incapazes de oferecer uma alternativa ideológica ao nosso povo.

A grande razão do atoleiro ideológico em que vivemos não é a presença de uma direita brasileira reativa a mudanças nem a ascensão do fascismo, mas a decisão da socialdemocracia petista de se acomodar às estruturas de poder prevalecentes ao invés de lutar pelas grandes causas populares. Prefere a garantia de cargos, salários e remunerações no Estado – que alimentam a sua máquina partidária –, a enfrentar as grandes questões sociais, nacionais e democráticas – que podem ameaçar a sua estabilidade política imediata.

É falsa a tese de que as esquerdas não têm força porque existe o “pobre de direita”, produto da sua conversão à classe média baixa e da ofensiva fascista. A classe média brasileira é muito mais restrita e mais de 70% das famílias recebem remuneração abaixo do salário-mínimo necessário estipulado pelo DIEESE. A onda fascista existe, mas não possui toda essa força e encontra-se em crise de liderança e organização. A raiz da crise ideológica é a capitulação de classes do petismo, que desistiu de realizar transformações sociais no país para realizar a sua: converter-se em parte da elite burguesa brasileira.

Em 2006 a socialdemocracia petista teve mais votos que Jair Bolsonaro em 2018 e 2022, 12 ou 16 anos depois, sem o apoio dos dois maiores partidos do centrão de então (PSDB e PFL), da rede Globo e da grande burguesia liberal. A conversão de classes que desarmou a ideologicamente o povo brasileiro é a da elite petista e parte de seus militantes orgânicos a frações da burguesia, em particular, as médias e pequenas. Não foi a suposta ascensão dos extremamente pobres à classe média baixa.

A descoberta pontual e tardia petista de que no Brasil há uma direita refratária a mudanças sociais e políticas, usada para justificar a composição com as estruturas de poder e a capitulação, tampouco é aceitável, e revela grave manipulação oportunista. O que esperar de uma direita que levou ao suicídio de Getúlio Vargas? Que tentou o golpe de Estado em 1961? Que o conquistou em 1964? Que deixou impune o terrorismo de Estado em uma anistia que contraria o Tratado Interamericano de Direitos Humanos? Que estabeleceu outro golpe em 2016, impondo ainda o teto de gastos por emenda constitucional?

Houvesse no Brasil uma direita sensível às questões sociais, a urgência de uma esquerda de fato não seria tão grande. Sua absoluta necessidade vem de que as mudanças sociais e políticas dependem de uma vanguarda disposta a se arriscar na luta política, social e ideológica para promover o avanço da consciência de classe de um povo que dedica o seu cotidiano à sobrevivência.

No Brasil de hoje, a luta de classes se dá principalmente o plano interburguês entre os seguintes segmentos do grande capital:

(i) De um lado, o rentismo e a burguesia ilustrada, representados pelos grandes bancos brasileiros e o grande monopólio midiático da Globo, associados à liderança política da socialdemocracia petista e a sua capacidade de cooptar movimentos sociais, personalidades da cultura e da ciência e neutralizar o fascismo. Essa aliança se vincula contraditoriamente ao imperialismo liberal, representado pelo Partido Democrata e as forças multipolares impulsionadas pelo BRICS.

(ii) Do outro lado, estão o agronegócio, o extrativismo, as igrejas neopentecostais e as milícias. Em resumo, a grande burguesia do baixo clero, mas emergente em razão da desindustrialização brasileira, que se associa ao neofascismo.

O primeiro grupo impulsiona as taxas de juros reais mais elevadas para fortalecer os bancos nacionais, e não é casual que a Selic deflacionada tenha sido bem mais alta nos governos petistas que nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. O segundo grupo pretende promover a internacionalização financeira e a dolarização do país, pratica um arrocho fiscal brutal – com cortes nos gastos sociais e no custeio para atingir o conjunto dos trabalhadores e servidores públicos da educação e da saúde, organizadores das greves mais importantes do país nos últimos 15 anos –, e pretende expandir a fronteira agrícola e extrativista ampliando a superexploração da natureza e dos trabalhadores.

Essas forças representam as duas vias da tragédia brasileira. Encarnam formas distintas de modernização da dependência, do subdesenvolvimento e do legado colonial que mantêm o Brasil como uma nação de excluídos e um Estado muito abaixo das potencialidades que se abrem, num mundo multipolar e de transição energética, aos países continentais, anfíbios, dotados de recursos estratégicos e de uma população mestiça com imensa riqueza cultural e possibilidades de criação.

Nesse contexto, não surpreende o isolamento da minoria do PSol e de líderes como Glauber Braga, que se dedicam a combater intransigentemente o neoliberalismo e o fascismo, desvelando suas vinculações ou proximidades. A articulação de sua cassação na Comissão de Ética da Câmara de Deputados enquanto Arthur Lira – que a lidera, já sem o comando da casa – partia em viagem na comitiva presidencial de Lula para o Japão, e o silêncio no Palácio da Alvorada, são reveladores da extensão do incômodo que uma esquerda combativa pode causar.

Entretanto mesmo quando vencida ou derrotada, sua razão de existir permanece como necessidade histórica. Ganhando ou perdendo, Glauber Braga fica na história sufocada do Brasil profundo, que mais cedo ou mais tarde poderá se levantar, esgotadas as ilusões com forças decadentes e mantidas acesas as chamas e as centelhas da renovação da luta popular e democrática.

Carlos Eduardo Martins é professor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID) da UFRJ. Autor, entre outros livros, de Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina (Boitempo).

 

Momentos preocupantes

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O mês de abril está trazendo grandes movimentações nos cenários nacional e internacional, os agentes econômicos e produtivos estão passando por instantes de grandes preocupações, medos e pouca previsibilidade, desta forma, os investimentos produtivos se reduzem, as incertezas crescem, a insegurança dos trabalhadores aumenta e as organizações passam a repensar suas estratégias e seu planejamento econômico, buscando se adaptarem ao momento de volatilidades e grandes mutações no mundo dos negócios.

Vivemos um momento de conflitos comerciais e geopolíticos entre atores econômicos gigantescos, com impactos generalizados para toda a comunidade internacional, embora percebamos os momentos preocupantes que permeiam a sociedade mundial, sabemos também que nenhum dos grandes estrategistas de mercado, de acadêmicos renomados e de intelectuais que estudam a sociedade global, sabem o que vai acontecer com a sociedade global nos próximos meses, na verdade, atualmente, as modificações estão acontecendo não mais nos próximos meses, mas percebemos que as transformações estão acontecendo diariamente, discursos inflamados, além de publicações nas redes sociais e comentários agressivos e pouco educados, deixando de lado os tradicionais discursos diplomáticos.

Neste momento de crescimento da instabilidade e da volatilidade, percebemos o crescimento de um verdadeiro vale tudo global, onde as regras internacionais foram alteradas, leis criadas e assinadas por inúmeras nações, para fomentar o comércio e as trocas internacionais, estas regras estão sendo deixadas de lado, cada nação busca aumentar seus ganhos imediatos, deixando claro o incremento do individualismo e a sua busca frenética por mais  vantagens comerciais e financeiras, além de ganhos políticos e um melhor posicionamento na nova configuração de poder global.

Vivemos uma verdadeira guerra comercial, onde encontramos uma nação que vem perdendo espaço na estrutura industrial global e busca, de forma agressiva e violenta, retomar sua força e reencontrar seus instrumentos para retomar a liderança global, mesmo que para isso, sejam necessárias uma reestruturação de todo o comércio internacional e as instituições multilaterais. Neste momento, os Estados Unidos da América, grande ganhador das estruturas comercial e industrial do pós-segunda-guerra mundial, tenta alterar as regras e as convenções que eles mesmos foram patrocinadores, desta forma, percebemos que quando as regras não mais garantem sua liderança e sua hegemonia, as regras devem ser reescritas em prol de seus interesses imediatos e seus ganhos materiais.

Neste embate contemporâneo, encontramos resistências crescentes, governos nacionais adotam represálias no comércio internacional, países buscam novos parceiros no mundo das trocas produtivas, atraindo novos fornecedores e, desta forma, criam novos espaços de integração, novos interesses econômicos e produtivos e, neste cenário, ressurgindo novos nacionalismos e novas políticas protecionistas que, no começo do século anterior levou as nações a grandes conflitos militares, guerras fratricidas, além da matança de milhões de pessoas e patrocinaram devastações materiais.

As crises globais, em curso na sociedade contemporânea, as destruições ambientais, o incremento das guerras comerciais, o ressurgimento de nacionalismos exacerbados, a aversão aos imigrantes e a escalada militar que crescem no íntimos dos indivíduos, podem ser vistos como o primórdio de grandes conflitos bélicos e militares ou, o momento crucial para compreendermos que os desafios são gigantescos e a união entre povos e culturas são o começo da resolução da encalacrada que estamos vivendo na contemporaneidade, fruto do crescimento do egoísmo, da ganância, do individualismo e da busca frenética por acumulação material e os prazeres imediatos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.