Comoção seletiva, por Salem Nasser

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Salem Nasser – A Terra é Redonda – 18;01;2025

O que é preciso para que alguém veja, enxergue, um genocídio em curso?

À clássica pergunta, sobre se faz barulho a árvore que cai sem que haja ali alguém por testemunha, eu sempre respondi com a afirmativa, não sem um traço de irritação. Incomodava-me a presunção de que o som só se produzisse para ouvidos humanos; era, para mim, uma manifestação do nosso antropocentrismo soberbo.

Se alguém estiver por perto enquanto cai a árvore, os seus sentidos serão tocados pelo maior ou menor espetáculo, pelo som estrondoso ou delicado, pela visão da queda que começa lenta e logo acelera, pelo tremor do chão… E logo talvez emerja alguma emoção, diante da experiência de assistir, por exemplo, ao fim de um ser vivo… E, finalmente, talvez nos ocorra refletir, sobre a inevitabilidade da morte, ou sobre desertificação e mudanças climáticas… Talvez decidamos, inclusive, fazer algo a respeito.

Se, no entanto, diante da queda, concomitante ou não, de duas árvores diferentes, um mesmo observador só ouvir o ruído de uma delas, só enxergar a queda de uma delas, e só se deixar emocionar e logo refletir diante de um dos dois fenômenos, a explicação para essa “cegueira relativa” precisa ser buscada no ser humano que é esse observador, e no meio social em que ele está inserido.

Voltemos agora: o que é preciso para que alguém enxergue um genocídio em curso ou, inversamente, para que alguém deixe de enxergar um genocídio em curso?

Sei que o exemplo do genocídio é extremo e que haveria muitas coisas entre isso e a queda de uma árvore que poderiam servir à reflexão sobre a cegueira e sobre a seletividade de nossos sentidos e de nossas emoções. Ocorre, no entanto, que, no momento em que escrevo, há de fato um genocídio em curso e pouca gente parece disposta a ver! E mais, se eu puder sustentar meu argumento para o genocídio, esse fenômeno que, em princípio, deveria se impor aos sentidos e às emoções de todos, assim como a todas as consciências vivas, então sua relevância estará provada para todas as demais coisas.

É difícil conceber um observador que seja ou tenha sido testemunha direta de dois processos de sistemática destruição de povos, ainda que eles possam existir, como sendo o nosso observador típico. Para entendermos o fenômeno para o qual quero apontar, é preciso ter em mente o observador a quem chegam as notícias dos eventos, as narrativas, as imagens, os textos, os filmes, as análises.

É óbvio, por isso, que, se quisermos entender a relatividade ou a seletividade das percepções e dos julgamentos, precisamos combinar aquilo que está no próprio ser humano socialmente localizado com o que está, ou deixa de estar, nas narrativas que chegam até ele.

As narrativas podem ser diversas e podem estar em competição, mas nem a multiplicidade nem o conflito são imediatamente perceptíveis como tal para o observador médio. De algum modo, parece haver uma tendência a que algumas narrativas ganhem curso livre e sejam vistas como sendo as “naturalmente verdadeiras”, ao mesmo tempo em que as alternativas sejam percebidas como marginais, divergentes, merecedoras de menor crédito.

Em minha experiência pessoal, a existência de narrativas em competição pela prerrogativa de representar o que seria a verdade se fez constatar muito cedo e se tornou uma preocupação central e permanente. Diante de grandes acontecimentos da vida internacional, revoluções, guerras, intervenções, eu invariavelmente encontrava duas narrativas opostas que se pretendiam exclusivamente verdadeiras: uma circulava nos jornais e nos noticiários televisivos – e logo entre professores e colegas de escola, além dos clientes da loja e os transeuntes – e outra dominava o ambiente familiar e comunitário. Por vezes, não bastavam duas narrativas, já que nada impedia o vizinho e o seu grupo de terem a sua própria verdade.

Muito cedo eu percebi que era possível transformar o herói em vilão, o algoz em vítima, e vice-versa, que era possível arbitrar o começo e o fim das histórias, que se podia inverter razões e consequências. Isso tudo era problemático para quem ainda tinha alguma ilusão sobre a existência de verdades objetivas.

Mas era mais problemático ainda o efeito que têm as narrativas divergentes sobre a localização da justiça.

É assim que, gradualmente, os temas correlatos, das narrativas em competição, e daquelas naturalizadas, da cegueira seletiva e da comoção seletiva foram se tornando naquilo que eu poderia chamar de “minha grande questão”.

Alguns acidentes foram contribuindo para que as expressões se consolidassem em meu espírito e se relacionassem entre si. Primeiro, quando dos ataques ao jornal satírico francês Charlie Hebdo eu quis reagir em texto e resolvi que o título deveria ser “Comoção Seletiva”. Muitas coisas trágicas aconteciam naqueles dias, uma guerra absurda na Síria, atentados no Egito, na Tunísia, no Niger, refugiados naufragando e aparecendo mortos nas praias. Nada, no entanto, podia competir, em comoção sentida e expressada, com os ataques ao Charlie Hebdo.

Um belo dia, resolvi recolher textos escritos por mim e publicados ao longo de dois ou três anos, e resolvi que o melhor nome para a coletânea seria “Comoção Seletiva”. Entre os artigos, mais de um faziam referência a Edward Said, à sua preocupação com as narrativas e as representações do outro, um outro a quem não se permite o privilégio de contar a si mesmo, e também à sua referência à cegueira específica de grandes intelectuais e de grandes humanistas, que viam tudo, ou quase tudo, mas eram incapazes de enxergar os palestinos como um povo e a sua tragédia como uma grande injustiça histórica.

Um bom amigo, editor, leu com grande generosidade os textos e me disse que o conjunto podia muito bem se chamar “Cegueira Seletiva” e que isto seria talvez mais apropriado.

Sou, portanto, devedor, em relação aos amigos, aos acidentes e às trocas que vão sedimentando em nós as ideias que pensamos ter.

E não há dúvidas quanto à inspiração “Saidiana” das minhas reflexões. A ideia de um Ocidente que guarda para si a prerrogativa de representar o outro, o oriental ou, de modo geral, o não-ocidental, é um achado de extrema potência. Ela carrega em si a imagem das narrativas em competição, das narrativas naturalizadas, das narrativas impossíveis.

Um pequeno desvio, para referir a impossibilidade de contar, de fazer ouvir a própria voz: se eu soubesse desenhar, eu produziria um palestino que conta a sua história contra uma forte ventania; o vento empurraria as suas palavras para trás do orador e ninguém o poderia ouvir a imagem do cego que tudo vê menos a questão Palestina, apesar de parecer mais banal, emerge para mim como especialmente assustadora, por ser um caso muito particular e específico de seletividade e por acometer pensadores críticos que, em princípio, têm preocupação genuína com os temas da justiça, do poder… Basta dizer que entre os exemplos listados por Edward Said estão nomes como os de Isaiah Berlin e Michel Foucault.

Sei, é claro, que o adjetivo “seletiva” que faço acompanhar a cegueira e a comoção pode carregar o sentido de uma seletividade voluntária, proposital, consciente. Interessa mais, no entanto, a ocorrência dos pontos cegos e dos vieses, da visão e dos sentimentos, enquanto fenômeno involuntário, enquanto movimento natural, por assim dizer.

É claro que, enquanto buscamos as razões paro que vemos e para o que não vemos, e enquanto buscamos entender o processo de naturalização de narrativas dominantes, e olhamos para o observador, para a sociedade em que está inserido e para o modo como chegam até ele as narrativas, não podemos descartar a possibilidade de que os resultados, a cegueira e a naturalização, decorram de uma intenção que não está no observador. Não se pode descartar a possibilidade de um processo controlado.

Noam Chomsky, um interlocutor longevo de Edward Said, é um dos principais pensadores a tentar revelar o processo através do qual detentores de poder produzem consenso e o papel que a mídia desempenha nessa construção.

E foi justamente em Noam Chomsky que encontrei um conceito aparentado com minhas preocupações em torno da seletividade das nossas percepções e sobre o caráter dominante de alguns mecanismos produtores de narrativas. Em certa ocasião, ouvi Noam Chomsky dizer que a ideia de que havia liberdade no campo do debate político nos Estados Unidos era uma ilusão. Apesar da aparência de total liberdade, quem observasse com cuidado veria que as margens dentro das quais era possível discordar estavam claramente desenhadas. Quem quisesse desafiar essas margens não seria necessariamente calado, mas estaria condenado a falar para os muito poucos, os marginalizados, os excluídos do mercado principal de ideias.

O conceito que encontrei, relacionado a esse universo de argumentos, é o da “Janela de Overton”. Concebida por um cientista político, a janela em questão expressa a ideia de que, contrariamente ao que se poderia esperar, os atores políticos não agem como portadores de opiniões políticas próprias que submetem à consideração do eleitorado; eles, na verdade, ajustam o seu discurso ao espaço político que percebem presente no lugar e no tempo. A janela e os bordes do discurso e do debate possíveis estão dados.

A pergunta inescapável, para a qual só se pode ter respostas tentativas, é esta: em que medida é natural, espontâneo, o processo pelo qual se desenham as fronteiras e os limites, e em que medida é possível que alguém determine as margens e as ideias que podem circular entre elas?

Ao pensar nisso, sempre tive tendência a visualizar, como exemplo definitivo da verdade da tese, o fato de que é praticamente impossível defender o comunismo e ser ouvido nos Estados Unidos, quanto mais participar da vida política do país. Hoje um exemplo mais atual seria o da impossibilidade de ser uma voz dissonante em relação à defesa de Israel.

Isso tudo nos coloca diante de um conjunto de questões existenciais de difícil resposta: quanto apreendemos da realidade que nos circunda, e quanto do que percebemos é de fato realidade? É possível falar em verdade, e é possível conhecer alguma verdade?

Sei que deve haver limites para as referências que se faz à cultura popular se fizermos questão de preservar alguma respeitabilidade, mas assumo aqui um risco calculado. Tenho em mente o dilema que domina o filme Matrix: em que medida vivemos uma ilusão, ou uma mentira, construída por um arquiteto que nos é desconhecido, e que só pode ser enfrentada mediante o custo de uma vida clandestina nos subsolos sombrios, de trapos por roupas e mingau insosso por única comida?

Não se trata de uma falsa pergunta. Nesta nossa vida concreta, quais são as reais possibilidades de desafiarmos as narrativas dominantes? Com que chances de sucesso? Mediante que preço?

Ocorreu-me recentemente que, assim como não posso acreditar no que dizem ver aqueles grandes espíritos que apenas não veem a tragédia palestina, me vejo forçado a colocar em questão a história oficial dos grandes eventos do passado já que, diante dos grandes eventos da história presente, eu vejo que se está construindo hoje, sob meu olhar, as narrativas ficcionais que servirão de história oficial no futuro.

Tenho em mente, quando digo isso, dois grandes processos que ao mesmo tempo ilustram os fenômenos das narrativas naturalizadas, da cegueira seletiva e da comoção seletiva, e revelam a face verdadeira de um Ocidente que ainda pretende reservar para si o privilégio exclusivo de representar o outro e o mundo, para si e para o mundo.

Refiro-me à guerra na Ucrânia e à guerra na Palestina (este segundo é um nome genérico que engloba o genocídio em curso que vitima a população de gaza, mas também compreende as ações armadas que se estendem para além da Palestina e envolvem outros atores). A concomitância dos dois eventos é especialmente relevante porque permitiu a descoberta dos diferentes pesos e medidas mobilizados na construção das narrativas e presentes na comoção pretensamente sentida.

Assim como podemos questionar os processos de apreensão da realidade e duvidar das possibilidades de alguma verdade, cabe apontar para a seletividade da nossa comoção, do nosso ultraje, da nossa revolta, diante do que percebemos como injusto ou como desumano.

No limite, assim como nos perguntamos se estamos inseridos em toda uma vida ficcional, podemos também nos perguntar se sentimos de verdade. Se cada um de nós, enquanto indivíduo, consegue identificar as instâncias em que, por exemplo, nossas emoções e nossas capacidades empáticas são mobilizadas diante do sofrimento de uma criança, e as instâncias em que o sofrimento de uma outra criança nos deixa indiferentes.

A nossa comoção, quando acontece, é genuína, ou pelo menos pode ser – não tenho em mente os que fingem e mentem. Na medida em que se manifesta seletivamente, no entanto, podemos duvidar do que deveria ser a sua conexão com a injustiça, com o sofrimento, com um senso de humanidade. Isso tudo se impõe a nós quando nos referimos à comoção que se manifesta no indivíduo.

É importante notar, no entanto, que muitas vezes falamos de comoção seletiva ou de conceitos equivalentes, atribuindo essa seletividade de pesos e medidas, e de sentimentos, a instituições, a Estados, a organizações internacionais, a tribunais… Isso é especialmente verdadeiro em circunstâncias como as que referi acima, guerras, genocídios, crimes de guerra e contra a humanidade…

Dizemos, então, que Estados Unidos, França, este ou aquele outro Estado, a ONU, o Tribunal Penal Internacional, fazem prova de comoção seletiva. Sabemos, é claro, que esses entes são desprovidos de sentimentos, e que, em princípio, ao menos, as pessoas que falam e agem em nome dessas instituições são sim capazes de sentir. A confusão, e a imprecisão com que nos referimos ao comportamento dos Estados e de outros entes, decorrem, ao menos em parte, do fato de que quem se manifesta em nome deles, apesar de ter em mente razões exclusivamente políticas, se coloca enfatizando argumentos de natureza moral, afirmando o amor à justiça e à humanidade.

Para um observador mais atento, fica evidente a inconstância dos valores afirmados, a sua contradição com os comportamentos, a seletividade com que são aplicados. Para todos os demais, mais uma vez, o apagamento das contradições e da seletividade fica por conta de narrativas bem construídas e naturalizadas, narrativas que não revelem os seus próprios furos de enredo e que não permitam qualquer memória de mais longa duração.

Como sugeria acima, a coincidência no tempo das guerras na Ucrânia e na Palestina nos fornece uma oportunidade única na revelação da verdadeira natureza do jogo. E isso porque a parte do mundo que alguns hoje chamam de Ocidente Coletivo ou Norte Global – ou seja, Estados Unidos e seus aliados – se sentiu forçada a caminhar concomitantemente em duas direções contrárias, e mais, a ir ao extremo nas duas direções: ao mesmo tempo demonizar a Rússia e justificar as ações criminosas de Israel.

É nesse sentido que se pode dizer que neste momento histórico caíram as máscaras. E não se pode subestimar a potência desse fato. Enquanto caem as máscaras do Ocidente, não são apenas os rostos dos atores individuais que se revelam; este é antes o anúncio do possível desfazimento do sistema internacional, criado por esse Ocidente à sua imagem e semelhança, e das suas instituições.

O sistema tinha, segundo nos é dito, pretensões de universalidade, mas as várias seletividades para as quais eu vim apontando negam qualquer verdade dessa pretensão. Perceba-se, olhando para os eventos recentes no seio da ONU e de outras organizações internacionais, assim como nos tribunais internacionais, como as estruturas institucionais ameaçam ruir diante da tensão entre sua orientação principiológica pelo universalismo e a dificuldade de agir contrariamente aos interesses de seus criadores.

O caso da Palestina talvez sirva como nenhum outro a ilustrar os temas da cegueira seletiva, da comoção seletiva, das narrativas dominantes e naturalizadas e da crise do sistema internacional montado sobre um conjunto de narrativas avançadas pelo Ocidente.

Antes de ser uma instância de uma narrativa dominante, a Palestina é um lugar, geográfico, mental e simbólico de muitas e diversas narrativas, a bíblica, enquanto coração dos monoteísmos, a histórica e geográfica, enquanto parte do coração do mundo e do berço das civilizações, a bíblica ressuscitada na Europa protestante e no sionismo europeu, a colonial dos grandes impérios que dividiam entre si o mundo…

Depois de mais de cem anos de uma Questão Palestina que poderia ser narrada enquanto uma luta de resistência de um povo que quer preservar o seu território e a sua identidade, a narrativa que impera soberana é outra: havia antissemitismo na Europa e havia pogroms violentos que vitimavam os judeus europeus; isso se combinava com uma longa história de perseguições contra o grupo; por conta disso, chegou-se à conclusão de que o grupo só estaria seguro se tivesse um Estado para si; levando em conta o relato bíblico, o estabelecimento desse Estado na Palestina histórica seria como uma volta para a casa prometida por Deus; o genocídio dos judeus europeus durante a segunda guerra mundial só confirmava a tese; o território da Palestina não teria um povo e os palestinos não seriam um povo; antes de Israel, tudo era atraso, e depois, tudo progresso; todas as guerras foram culpa dos árabes e estes só perderam territórios porque não aceitaram os acordos; que hoje o justo seria uma solução de dois Estados em que a Palestina seria algo menos do que soberana…

O que não aparecia, antes desta guerra em que, como se disse, muitas máscaras caíram, na narrativa, era a realidade da ocupação do território destinado a ser a Palestina, em princípio, de acordo com o pretenso consenso, era a realidade do sistema de segregação e de apartheid, era a realidade da limpeza étnica.

Esses aspectos da realidade eram, para quem quisesse olhar, indiscutíveis. E, no entanto, ninguém queria ver; ninguém queria pagar o preço de sustentar narrativas que revelassem essa verdade; e parecia que ninguém estava disposto a se deixar comover.

Que mistério será esse? Eu proponho a seguinte chave, se não para desvendar definitivamente o enigma, pelo menos para iluminar um pouco o nosso caminho. Sinto que, na verdade, apesar da profusão de narrativas que tentam provar o contrário, não nos afastamos tanto assim do Século XIX.

Essencialmente, a Questão da Palestina pertence ao tempo em que o Ocidente dito civilizado se permitia a dominação e a exploração dos não-ocidentais, bárbaros. É um caso típico de colonização por assentamentos e por substituição de população. Em parte, então, é porque as vidas dos bárbaros não valem o mesmo que as dos civilizados que não são ou não precisam ser vistas, não merecem uma narrativa que as conte e que as valorize, não nos fazem sentir e muito menos agir. Mas essa é parte da razão, não é toda ela. Há certamente mais. Quem ousa contar o resto?

Salem Nasser é professor da Faculdade de Direito da FGV-SP. Autor de, entre outros livros, de Direito global: normas e suas relações (Alamedina).

 

Onde erramos?

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As mudanças na sociedade contemporânea criam sentimentos variados, de um lado, encontramos grupos eufóricos com o desenvolvimento da tecnologia, novos modelos de negócios e grandes descobertas científicas, com ganhos para os seres humanos. De outro lado, percebemos uma desesperança que nos geram grandes preocupações pelo crescimento assustador da pobreza, ascensão da desigualdade, incremento dos conflitos militares e o aumento da exclusão, afinal mais da metade da população global vive em condições indignas, sem perspectivas, sem oportunidades, sendo obrigados a se entregarem a ocupações precárias e insalubres, com isso, percebemos uma perpetuação da indignidade dos indivíduos. Neste cenário, poderíamos destacar uma questão que nos aflige: onde erramos como seres humanos?

Ao analisarmos as visões destes dois grupos, percebemos que ambos estão corretos em suas análises, vivemos num momento de grande desenvolvimento das tecnologias, com potencial para melhorarmos as condições de vida dos seres humanos, mas para que isso aconteça, a contento, precisamos encontrar um ponto de equilíbrio nestas percepções. Os avanços do conhecimento científico é um ativo fundamental da civilização e deve melhorar as condições de vida das pessoas e das comunidades, não apenas para uma pequena parte dos indivíduos, afinal, estamos vislumbrando uma situação marcada por um grande distanciamento dos grupos sociais, uns muito ricos e poderosos, dotados de grande poder material e, ao mesmo tempo, uma legião de miseráveis degradados e sem perspectivas palpáveis de melhoras, culminando, certamente, em uma verdadeira guerra civil.

Estamos caminhando a passos largos para a metade do século XXI e as discussões são primitivas, estamos questionando valores que nos definem como civilização, estamos deixando de lado o combate aos preconceitos, deixando de defender o clima, promover a inclusão social e a diversidade, assuntos prioritários estão sendo colocados em segundo plano. No lugar, estamos nos concentrando em assuntos desnecessários e desconexos, defendendo privilégios de terceiros que pouco trazem de positivo para a sociedade, estamos perdendo tempo visualizando fake News e as divulgando para acreditar que somos conscientes politicamente, defendendo brutalidades e acreditando que isso resolve o problema da segurança pública, além de defender uma falsa liberdade de expressão que serve apenas para gerar uma sociedade alienada, ignorante e facilmente dominada.

Precisamos estimular discussões mais sólidas e maduras, afinal, num mundo de constantes transformações estamos ficando, cada vez mais atrasados, sem espaços e sempre dependentes tecnologicamente, constantemente escravos das novas tecnologias, máquinas e equipamentos que compramos a preço de ouro e nos descrevemos como empreendedores e inovadores, será mesmo?

Precisamos repensar os pactos de mediocridades que cultivamos todos os anos, precisamos compreender que para nos transformarmos numa nação civilizada necessitamos incluir a nossa população, dando oportunidade e chance de ascensão social, investindo fortemente em capital humano, diversificando nossa pauta produtiva e deixando de fomentar o rentismo que perdura nos primórdios da sociedade.

Para respondermos à pergunta inicial precisamos saber o que queremos no futuro: será que queremos cultivar a desigualdade e a exclusão que caracterizam a sociedade brasileira? Muitos querem, estão satisfeitos com a situação que vivenciamos, agora, para aqueles que estão preocupados, precisamos rever as discussões desnecessárias e equivocadas que dominam a sociedade, precisamos rever prioridades, garantir direitos básicos, como água potável, saúde, educação e alimentação. Em suma, o direito a uma vida digna.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

 

 

Por que não superamos o trabalho escravo? por Raíssa Araújo Pacheco

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Raíssa Araújo Pacheco – Blog da Redação – 22/11/2024

Livro da Editora Unesp analisa como a exploração forçada e trabalhos análogos à escravidão são pilares do capitalismo brasileiro. Para o autor José de Souza Martins, tal forma é parte essencial da reprodução desse sistema econômico.

Desde o fim do século XIX, o Brasil se orgulha de ter abolido a escravidão, com a promulgação da Lei Áurea, em 1888. No entanto, já não é novidade que a abolição não significou exatamente liberdade e boas condições de vida para os ex escravizados, formas disfarçadas de escravização continuam a existir, revelando a complexidade e a persistência dessa questão histórica.

Frequentemente nos deparamos com notícias denunciando trabalhadores em situações precárias e desumanas. Em setembro de 2022, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estimou que mais de 27 milhões de pessoas no mundo ainda viviam em condições análogas à escravidão, sendo 4 milhões delas localizadas nas Américas.

O sociólogo José de Souza Martins, em sua obra Capitalismo e Escrevidão na Sociedade Pós-escravista, lançada pela Editora Unesp, examina a escravidão contemporânea não como um resquício do passado, mas como um componente estrutural do capitalismo brasileiro, cujas raízes atravessam séculos de desigualdade e exploração.

“Ao se falar em escravidão atual está se falando, necessariamente, numa anomalia resultante das contradições sociais de um modelo de sociedade que tem nome: a sociedade capitalista mutilada e insuficientemente realizada, como a brasileira, atravessada pelo primado de interesses econômicos e consequentes irracionalidades que negam o capitalismo e crucificam a sociedade.”

– trecho retirado da introdução de Capitalismo e Escravidão na Sociedade Pós-escravista.

No livro estão reunidos uma série de artigos independentes, mas conectados por uma observação sociológica e interpretativa em comum.

Com base em uma rigorosa análise sociológica, Martins reflete sobre a relação entre o capitalismo subdesenvolvido e a continuidade da escravidão. Para ele, o trabalho forçado não é um anacronismo, mas sim uma peça fundamental para a reprodução do sistema capitalista.

Ao explorar as contradições dessa estrutura econômica, o autor revela como o trabalho escravo se perpetua, sendo peça chave para maximização dos lucros, especialmente em áreas onde o Estado é ausente ou ineficaz.

Ademais, na visão de Martins, a questão fundiária é essencial para compreender a realidade brasileira. “O capitalismo brasileiro levou mais de um século para se tornar um capitalismo de capital subsumido pela renda fundiária e subsidiado pelo Estado. E constitutivamente subsidiado por formas não capitalistas de relações de trabalho, como a da ‘escravidão contemporânea’”, aponta o professor.

A obra de Martins vai além das explicações superficiais sobre o tema, oferecendo uma leitura crítica, aprofundada e embasada sobre o funcionamento das relações de trabalho no Brasil e no mundo.

Sua tese, de que a escravidão moderna é uma prática necessária ao capitalismo, desafia noções simplistas e joga luz nas condições socioeconômicas que mantêm essa tragédia viva até os dias de hoje, ressaltando a necessidade de repensarmos as estruturas que sustentam a exploração do trabalho e a distribuição de riquezas.

Raíssa Araújo Pacheco, Redatora do Outros Quinhentos, Formada em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Assessorou movimentos sociais e entidades envolvidas na pauta de moradia e direito à cidade.

 

 

Juventude agredida, por Carlos Alberto Di Franco

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A iniciação sexual precoce, o abuso sexual e a prostituição infantil são resultadas da cultura da promiscuidade que está aí

Carlos Alberto Di Franco – O Estado de São Paulo, 20/01/2025

O leitor é o melhor termômetro para medir a temperatura do cidadão comum. Tomar o seu pulso equivale a uma pesquisa qualitativa informal. Aos que há anos me honram com sua leitura neste espaço opinativo, transmito uma experiência recorrente: família, ética e valores aumentam o índice de leitura.

Sempre que tratei de temas relacionados à família, recebi muitos e-mails e mensagens. Sem dúvida uma sugestiva amostragem de opinião pública, sobretudo considerando o rico mosaico etário, profissional e social dos remetentes.

Neste Brasil sacudido por uma brutal crise ética, alimentada pelo cinismo dos homens públicos e pela mentira dos que deveriam dar exemplo de integridade, há, felizmente, uma ampla classe média sintonizada com valores e princípios que podem fazer a diferença. E nós, jornalistas, devemos escrever para a classe média. Nela reside o alicerce da estabilidade democrática. Escreva algo, sublinhavam alguns dos e-mails que recebi, a respeito da desorientação da juventude. Meu artigo de hoje, caro leitor, foi pautado por você. Tomarei como gancho um dado objetivo e preocupante.

A gravidez precoce é hoje no Brasil uma das maiores causas de evasão escolar entre garotas de 15 a 17 anos. Dados da Unesco mostraram que, das jovens dessa faixa etária que abandonaram os estudos, 25% alegaram a gravidez como motivo. Outros estudos revelam que complicações decorrentes da gestação e do parto são a terceira causa de morte entre as adolescentes, atrás apenas de acidentes de trânsito e homicídios. A gravidez afeta até quem mal saiu da infância.

A gravidez precoce realmente está se tornando um grande problema na educação. Se 25% das meninas de 15 a 17 anos grávidas deixam a escola, isso significa dizer que mais de 200 mil param anualmente de estudar. Futuro triste. Cenário complicado. Mas dramaticamente coerente com um país em que o ministro mais importante não é o da Educação ou o da Saúde, mas o da Fazenda.

É um absurdo acreditar que uma criança vá ter maturidade para ter um filho com essa idade. Pregar a abstinência sexual de meninas de 11 a 14 anos não significa ser moralista ou careta, mas responsável. Não se trata de histeria conservadora, mas de bom senso.

A culpa não é só do entretenimento permissivo ou da TV, que, frequentemente, apresenta bons programas. É de todos nós – governantes, formadores de opinião e pais de família –, que, num exercício de anticidadania, aceitamos que o País fosse definido mundo afora como o paraíso do sexo fácil, barato, descartável. É triste, para não dizer trágico, ver o Brasil ser citado como um oásis excitante para os turistas que querem satisfazer suas taras e fantasias sexuais com crianças e adolescentes. Reportagens denunciando redes de prostituição infantil, algumas promovidas com o conhecimento ou até mesmo com a participação de autoridades públicas, crescem à sombra da impunidade.

O governo, assustado com o crescimento da gravidez precoce e com o crescente descaso dos usuários da camisinha, investe pesadamente nas campanhas em defesa do preservativo. A estratégia não funciona. Afinal, milhões de reais já foram gastos num inglório combate aos efeitos. A raiz do problema, independentemente da irritação que eu possa despertar em certas falanges politicamente corretas, está na onda de baixaria e vulgaridade que tomou conta do ambiente nacional. Hoje, diariamente, na televisão, nos outdoors, nas mensagens publicitárias, o sexo foi guindado à condição de produto de primeira necessidade.

Atualmente, graças ao impacto da TV e da internet, qualquer criança sabe mais sobre sexo, violência e aberrações do que qualquer adulto de um passado não tão remoto. Não é preciso ser psicólogo para que se possam prever as distorções afetivas, psíquicas e emocionais dessa perversa iniciação precoce. A inocência infantil está sendo impiedosamente banida. Por isso, a multiplicação de descobertas de redes de pedofilia não deve surpreender ninguém. Trata-se, na verdade, das consequências criminosas da escalada de erotização infantil promovida por alguns setores do negócio do entretenimento.

Se quisermos um entretenimento de qualidade precisamos separar o exercício da liberdade de expressão da prática do entretenimento mundo cão. Há uma liberdade de mercado que produz um mercado da liberdade. De resto, mesmo que exista uma demanda de vulgaridade e perversão, deve-se aceder a ela? Suponhamos que exista um público interessado em abuso sexual de crianças, assassinatos ao vivo, violência desse tipo. Nem por isso a TV deveria ter programas especializados em pedofilia e assassinatos. O mercado não é um juiz inapelável. Não se deve atuar à margem dele, mas não se pode sobrevalorizá-lo.

A iniciação sexual precoce, o abuso sexual e a prostituição infantil são, de fato, o resultado da cultura da promiscuidade que está aí. Sem nenhum moralismo, creio que chegou a hora de dar nome aos bois, de repensar o setor de entretenimento, e de investir em programação de qualidade.

A juventude merece atenção e prioridade nas nossas coberturas.

Carlos Alberto Di Franco, Jornalista.

 

Os migrantes do clima estão entre nós, por Giovanna Madalosso

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Conheci gente que migrou para Curitiba em busca de uns graus Celsius a menos

Giovanna Madalosso, Escritora, roteirista e uma das idealizadoras do movimento Um Grande Dia para as Escritoras.

Folha de São Paulo, 20/01/2025

Como muitos leitores sabem, tenho vivido entre São Paulo e Curitiba. E, nesta segunda cidade, venho assistindo a uma onda migratória peculiar, diferente de qualquer outra que acompanhei até então.

A primeira vez que vislumbrei a onda foi num jantar. Curitiba não é como São Paulo ou Rio, em que as mesas reúnem comensais egressos dos quatro cantos. É raro se ouvir um sotaque diferente entre as araucárias e, de repente, o de um casal chamou a minha atenção. Eram dois artistas manauaras que tinham acabado de se mudar para a capital paranaense. Perguntei por que tinham feito isso. Para fugir do calor, o manauara respondeu, argumentando que a capital do Amazonas nunca esteve tão quente.

Nos meses seguintes, descobri que aquele não era um caso único. Ao lado de imigrantes venezuelanos, cubanos e haitianos, que costumam optar por Curitiba por motivos de natureza política ou econômica, os brasileiros chegam buscando mais qualidade de vida e —aí vem a novidade— às vezes uns graus Celsius a menos, como outra família que conheci, vinda do Espírito Santo.

Isso sem falar nos gaúchos que, traumatizados com a catástrofe climática que destruiu Porto Alegre e com a inépcia do governo em preparar a cidade para um possível novo episódio, escolheram mudar de vez para esta outra capital do sul.

Faço ioga com uma paulistana recém-chegada que não mencionou a crise climática como motivo para ter saído de São Paulo. No entanto, entre um movimento de braço e outro, ela disse que migrou por conta do caos, dando como exemplo a fumaça das queimadas que rebaixaram o ar da pauliceia ao pior do mundo (olha a crise climática aí) e as quedas prolongadas de luz que lhe fizeram perder trabalho e dinheiro (olha a crise climática aí de novo, somada à inépcia de Enel).

E o que dizer de Santa Catarina aos últimos dias? E de Los Angeles? Quantas pessoas, neste exato momento, não cogitam deixar suas cidades? Os habitantes das ilhas Tuvalu não podem nem se dar ao luxo de cogitar. A chance de as ilhas desaparecerem é tão concreta que a Austrália já estuda um acordo para receber esses imigrantes.

Tirando casos agudos, a escolha de migrar ou não migrar acaba por ser um privilégio de classe. Nos próximos anos, assistiremos ao triste espetáculo dos ricos migrando para áreas mais seguras e amenas. Ou instagramando fotos de seus bunkers.

Para a maioria dos cidadãos, e logo mais para todos, restará a aventura de viver em um planeta colapsado pela emissão de carbono, onde não existe mais lugar seguro e, em breve, não haverá mais tantos lugares segurados —algumas empresas já cancelaram apólices em áreas passíveis de incêndios e outros desastres climáticos.

O que fazer com a nossa trouxinha de roupa? Se possível, manter onde está e lutar para que o município que habitamos, onde estão as pessoas que amamos, seja preparado para as condições extremas.

É muito mais caro criar novos povoamentos do que preparar as cidades que já existem para o enfrentamento climático. Mas é preciso cobrar os prefeitos, que, em sua grande maioria, seguem cimentando as cidades sem nenhum critério ambiental, enquanto o Brasil e outros países abrem novos poços de petróleo, garantia de que dias piores, infelizmente, virão.

 

Trump atraiu eleitores frustrados imitando táticas da esquerda, diz Naomi Klein

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Pesquisadora argumenta que a ascensão de extremistas criou ‘mundo invertido’ sinistro nas lacunas do progressismo

Folha de São Paulo, 20/01/2025

Naomi Klein começou a ser sugada por uma crise de identidade. De início parecia só um incômodo chato, mas de repente ela se sentia sumindo no meio de um redemoinho, sem saber onde se segurar. Não se engane, estamos falando mais de política que de psicanálise.

Uma das intelectuais mais celebradas da América do Norte, a canadense era às vezes confundida com outra escritora de sucesso, Naomi Wolf. Até aí, nada anormal —as duas eram quase contemporâneas, tinham alguma semelhança física e defendiam ideias de esquerda.

Klein ficou conhecida por críticas sistêmicas ao neoliberalismo em obras como “Sem Logo” e “A Doutrina do Choque”. Wolf se celebrizou por “O Mito da Beleza”, um protesto contundente contra as imposições sociais ao corpo feminino.

Tudo passou a ficar bem mais estranho quando Wolf, a “outra Naomi”, começou a ser rejeitada pelo campo progressista ao embasar cada vez menos suas ideias em fatos históricos e científicos, entrando numa espiral de teorias conspiratórias.

Ao ser cobrada nas redes sociais como se fosse sua homônima, Klein testemunhou de perto a metamorfose de Wolf em um estandarte do negacionismo do clima e da pandemia. Sua contraparte virou convidada de honra no podcast “The War Room”, de Steve Bannon, o estrategista-mor de Donald Trump.

Às vésperas da posse do republicano para um segundo mandato, o livro que Klein escreveu sobre sua experiência, “Doppelgänger”, ilumina os métodos pelos quais o trumpismo atraiu eleitores imitando táticas da esquerda, criando um submundo de “fatos alternativos”, se apresentando como mais tolerante a erros e estendendo tapete vermelho a ex-progressistas frustrados.

A autora entendeu que seu mergulho no “mundo invertido” da outra Naomi ensinava algo sobre as mudanças por que passam tantas democracias hoje, na “parte mais assustadora” de sua “jornada doppelganger” —expressão alemã que define duas pessoas que se parecem muito.

“Não é apenas um indivíduo que pode ter um duplo sinistro; nações e culturas também os têm.” O Estado incorporado pela extrema direita, segundo ela, é o “irmão gêmeo ubíquo das democracias liberais ocidentais”, “versões sombrias de nosso eu coletivo”.

O livro lançado há pouco no Brasil fala da sensação geral de não saber mais discernir o que é real do que não é —um sentimento difuso de desorientação, de “jet lag coletivo”. Foi buscando retomar o esteio que Klein elaborou seu longo ensaio e deu essa entrevista à Folha por videoconferência.

Seu livro antecipou falhas do campo progressista que ficaram mais visíveis após a eleição de Trump. A sra. retrata a postura de Bannon e outros líderes da direita como mais acolhedoras a novos eleitores que estavam distantes do seu campo político. Por que a direita foi eficiente em fazer isso e a esquerda não?

A direita que surgiu das cinzas do neoliberalismo não tem um projeto econômico transparente. É um discurso muito incoerente —não em termos do que faz quando chega ao poder, mas do que diz para chegar lá.

Há muita contradição, por exemplo, entre a fala sobre enfrentar as elites e a defesa de cortar impostos para as elites. É um discurso familiar à esquerda na crítica aos grandes poderes corporativos, mas sua política é neoliberalismo com esteroides. O que Elon Musk vai fazer no governo é superausteridade  —por isso ele tem tanto interesse em Javier Milei, da Argentina.

E é precisamente por causa dessa incoerência que eles conseguem montar uma coalizão a partir das falhas e dos abandonos da esquerda. Bannon estuda a esquerda bem de perto, fala abertamente que lê Joam Chomsky e Lênin. Ele presta atenção aos assuntos e às pessoas que a esquerda está deixando de lado.

Nós, da esquerda, temos um discurso de inclusão, de diversidade, mas na prática essa cultura é, com frequência, intolerante e doutrinária. Você sente às vezes que precisa fazer um teste para entrar na esquerda e depois continuar fazendo testes para ficar lá [risos]. É o oposto da tenda ampla e acolhedora necessária para uma coalizão vencer.

E não acho que a direita seja tão acolhedora quanto parece —são bem menos ao falar de deportações em massa e fronteiras militarizadas. Mas isso não significa que não podem se apresentar como uma cultura que deixa as pessoas à vontade para cometer erros e discordar.

Diria então que os partidos de esquerda julgam mais seus eleitores, enquanto a direita não demanda nada deles?

É complicado, primeiro porque o Partido Democrata não é a esquerda. É um partido comandado por uma elite de alto nível educacional, muito interconectada —são pessoas aterrorizadas pelo populismo de esquerda, como de Bernie Sanders [em cuja campanha Klein trabalhou], porque o status quo funciona bem para elas.

E eu tenho menos interesse no Partido Democrata que na esquerda, porque esta é a força que pode enfrentar o fascismo. Ele [o fascismo] surge em momentos de falha sistêmica, quando o centro se despedaça, então é necessária uma esquerda robusta para diagnosticar essas falhas pelo seu lado.

Se não houver ninguém nesse campo para entender que formas de organização e solidariedade podem ser criadas em contraposição à extrema direita, então a raiva justificada que as pessoas sentem por não conseguir pagar por comida e aluguel será direcionada a algum tipo de conspiração.

Por isso digo que a nova direita é uma “doppelgänger” da esquerda. O fascismo sempre tem uma estranha similaridade com a esquerda real, é um pseudo-nacional-socialismo, o que não quer dizer que são a mesma coisa. Não são.

É por isso que importa se a esquerda for hipócrita, se trair seus princípios e não conseguir criar uma cultura da qual uma pessoa normal gostaria de participar.

Como a esquerda pode atrair eleitores de direita sem ceder demais em sua agenda em temas essenciais, como a crise climática?

Não devemos pensar nessas pessoas como eleitores de direita, mas como pessoas que votaram à direita nessa eleição e podem ter votado na esquerda em outras. Estamos em um momento de muito fluxo, nada estático.

De uma maneira esquisita, estamos meio entorpecidos por uma sequência de choques, porque eles têm vindo em “stacatto”. São crises econômicas, climáticas, pandemias, revoltas políticas. Isso virou nossa realidade, e é perigoso se acostumar com políticas de abandono em massa da vida humana.

Então a política tem, mesmo, que voltar para o básico. As perguntas são: nós valorizamos a vida? Acreditamos que todas as pessoas têm o mesmo valor no mundo?

Há uma crise espiritual, eu diria. Às vezes penso que o papa [Francisco] é o único que consegue falar nessa língua hoje. Precisamos de líderes que sejam vozes algo proféticas no meio dessa intersecção de crises, de mortes tão massificadas, que na academia chamamos de “necropolítica”. Também acho que devemos parar de usar palavras como “necropolítica” [risos]. Mantenha as coisas simples.

Mas você falou de clima. Políticas para o clima hoje são associadas, na mente dos eleitores, com a classe média e a elite intelectual, como preocupações de luxo, que vão deixar sua vida mais cara.

O ecopopulismo conecta o debate sobre o clima a questões como mobilidade, moradia, alimentação. O movimento pelo clima deve encontrar os eleitores aí no meio, não forçar uma falsa escolha entre suas preocupações climáticas e suas necessidades imediatas.

Ao final do livro, a sra. urge as pessoas a serem menos individualistas e defende que a “destruição do eu” pela qual passou foi, na verdade, positiva. Isso envolve a redução do tempo nas redes sociais?

Sim, essa é fácil. Eu sou grata a Elon Musk por arruinar o Twitter. As melhores alternativas de mídia social, agora, vão ser as que engajam menos. Eu entrei no Bluesky, e não é um ambiente tão dramático e furioso. É até meio tedioso, e tudo bem!

Não é que precisamos aniquilar o ego, mas nós nos tornamos grandes demais para o nosso próprio bem. Ficamos obcecados com a otimização da nossa personalidade e da nossa marca particular. Não porque somos todos narcisistas, mas porque temos medo.

Não estamos vendo qualquer segurança econômica para além de nós mesmos e viramos nossa única boia de salvação. Quando nos juntamos em organizações, sejam sindicatos, coalizões políticas ou grupos de arte, dá uma sensação real de reforço de poder, de possibilidades.

Devemos voltar a pensar nas redes como ferramentas para levar pessoas a ambientes offline —como um grande quadro de avisos, não como uma rede de sociabilidade.

Em ‘Doppelgänger’, a sra. divide a sociedade entre um ‘mundo real’ e um ‘mundo espelho’. Quanto esse conceito de polarização ajuda a entender a política de hoje e quanto ele mascara as diferenças que existem dentro desses grupos?

Ou as similaridades entre os dois grupos, não? Sim, mascara muito. Por isso eu concluo no livro que estamos todos em um “mundo espelho”, cada grupo de um lado do vidro. A ideia de que nós, pessoas de esquerda virtuosas que se baseiam na ciência, somos a realidade verdadeira —isso é um tipo de fantasia.

A separação mais importante é entre o mundo em que todos vivemos e o que chamo de “terra das sombras”, aquilo para o que ninguém suporta olhar. Estamos entendendo melhor o quanto nós nos amarramos a sistemas de aniquilação e morte, algo que nunca enfrentamos.

Eu me refiro, por exemplo, ao tamanho da crise climática, ou o que significa investir mais e mais na inteligência artificial, que cria “doppelgängers” virtuais de todo mundo enquanto suga toda a energia do mundo material. É incrivelmente distópico e só piorou desde que escrevi.

São coisas quase impossíveis de encarar, então nos distraímos freneticamente acusando os outros e purificando a nós mesmos. E ninguém está acertando as contas consigo mesmo, seja na esquerda ou na direita.

A crise climática, por exemplo, nem estava nas cédulas de votação em 2024. Não conseguimos lidar com isso porque significa encarar os limites do que nós conseguimos fazer como indivíduos. As implicações são esmagadoras, porque o trabalho que precisa ser feito é profundamente coletivo.

Ao mergulhar no mundo da extrema direita como uma pesquisadora de esquerda, como a sra. se equilibrou entre a discordância profunda e a atenção honesta àquele discurso?

Você tem que levar a sério. Estamos num momento de crise narrativa na esquerda, então é importante entender por que essas histórias têm tanta ressonância.

Algo em que toquei apenas superficialmente no livro é o papel das narrativas judaico-cristãs apocalípticas, que apontam para o fim dos tempos. No Brasil, não dá para entender a ascensão da ultradireita sem as narrativas religiosas, e elas estão profundamente codificadas no nosso imaginário coletivo. Somos incrivelmente obtusos, no mundo secular, em entender o poder dessas narrativas.

Nós achamos que vamos conseguir martelar fatos na cabeça das pessoas, mas você está indo contra uma cosmologia transcendente, oposta ao mundo material —com qual história você se contrapõe a isso? É por isso que o papa me interessa tanto [risos].

Doppelgänger: Uma Viagem Através do Mundo-Espelho

Autoria Naomi Klein/ Editora Carambaia

 

RAIO-X | NAOMI KLEIN, 54

Canadense nascida em Montreal, ficou conhecida por livros como “Sem Logo” (2000, Record), uma crítica à cultura do consumismo massificado, e “A Doutrina do Choque” (2007, Nova Fronteira), que argumenta que governos e empresas exploram momentos de comoção para agir contra os interesses da população. Nos últimos anos, tem se dedicado à pauta do clima, por exemplo na obra “Como Mudar Tudo” (2021, Rocco). Hoje é codiretora do Centro de Justiça Climática da Universidade da Colúmbia Britânica, professora da Universidade Rutgers, nos Estados Unidos, e colunista do jornal britânico The Guardian.

 

 

 

América do Sul – um continente partido e tutelado, por José Luís Fiori

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José Luís Fiori – A Terra é Redonda – 15/01/2025

No início do século XXI os Estados Unidos reduziram seu grau de envolvimento político com os assuntos sul-americanos. Esse “déficit de atenção” durou até o “desembarque” econômico dos chineses na América do Sul, e até o início do conflito na Ucrânia.

A história sul-americana foi sempre condicionada por uma geografia extremamente difícil, por uma economia fragmentada e voltada para fora, e por uma submissão, uma geografia extremamente difícil, por uma economia quase permanente à tutela militar da Inglaterra, no século XIX, e dos Estados Unidos, no século XX. E é possível afirmar, de alguma forma, que até hoje o continente se debate com esses constrangimentos originários e estruturais.

 

Uma geografia partida

 

O continente sul-americano está situada entre o Mar do Caribe, ao norte; o Oceano Atlântico, ao leste, nordeste e sudeste; e o Oceano Pacífico, a oeste. Sua superfície, de 17.819.100 km2, ocupa 12% da Terra e possui 6% da população mundial. Está separado da América Central pelo Istmo do Panamá; e da Antártida, pelo Estreito de Drake, e tem uma extensão de 7.500 km desde o Mar do Caribe até o Cabo Horn, no extremo sul. Cerca de quatro quintos do continente ficam abaixo da Linha do Equador, que corta Peru, Colômbia, Brasil e o país que leva o nome de Equador.

A América do Sul possui três grandes bacias hidrográficas: do Rio Orinoco, do Rio Amazonas e do Rio da Prata, e seus rios interiores possuem enorme potencial para navegação e aproveitamento de energia hidráulica. Os três sistemas drenam em conjunto uma área de 9.583.000 km2.

No entanto, o mais importante, do ponto de vista geopolítico, é que se trata de um espaço geográfico inteiramente segmentado por grandes barreiras naturais que dificultam enormemente sua integração física, como é o caso da Amazônia e da Cordilheira dos Andes, que tem 8 mil Km de extensão e atinge 6.700m de altitude, oferecendo apenas alguns pontos de passagem naturais. Na região da Floresta Amazônica, predominam as terras úmidas; na região central do continente, áreas alagadas, como o Pantanal brasileiro e o Chaco boliviano; mais ao sul, há planícies e cerrados; e na costa leste, a floresta original cedeu lugar a agricultura, urbanização e indústria.

O litoral atlântico é baixo e possui uma larga plataforma marítima, ao contrário do litoral do Pacífico, que possui grandes profundidades e onde não existem plataformas continentais. Nos Pampas de Argentina, Uruguai, Paraguai e sul do Brasil, encontram-se as terras mais férteis do continente e algumas das melhores do mundo. Existem, ainda, algumas pequenas áreas com bons solos nos vales andinos e na zona central do Chile, na planície equatoriana de Guayas e no vale colombiano de Cauca, além das terras roxas, no lado brasileiro da bacia do Paraná.

Por outro lado, as terras da bacia Amazônica e a maior parte das planícies tropicais são muito pobres e de baixa fertilidade, o que explica o fato de que a população das terras tropicais da Venezuela, Guiana e Suriname viva quase toda a poucos quilômetros da costa. A combinação de montanhas e florestas tropicais também limita enormemente as possibilidades de integração econômica dentro do arco de países que se estende da Guiana Francesa até a Bolívia.

No caso do Peru, por exemplo, existe uma clara divisão econômica e social em seu território, entre as zonas costeiras, onde se concentra a atividade extrativa e de exportação, e um interior extremamente isolado e atrasado economicamente. O Chile, por sua vez, possui um clima temperado e terras produtivas, mas é um dos países mais isolados do mundo, o que dificulta sua integração econômica com os demais países do “cone sul” – Argentina, Uruguai e Brasil – e o transforma obrigatoriamente numa economia aberta a exportadores, voltada quase exclusivamente para os EUA e os países asiáticos do Pacífico.

O mesmo se pode dizer dos demais países sul-americanos. Sua inserção na divisão internacional do trabalho, na condição de exportadores de commodities, reforçou sua ocupação econômica e demográfica inicial, dispersa e voltada para o litoral, sempre em busca dos mercados centrais, e com escasso interesse nos mercados regionais. Até o final do século XX, o Atlântico foi mais importante do que o Pacífico para o comércio de largo curso da América do Sul, e a presença de importantes bacias hidrográficas articuladas ao litoral atlântico, além da maior proximidade da Europa e dos EUA, desfavoreceu o lado pacífico do continente nos dois primeiros séculos de sua história independente.

Este panorama econômico vem mudando no século XXI, com o aumento da importância da bacia do Pacífico, graças ao deslocamento do centro mais dinâmico da economia mundial para o Leste e Sudeste Asiático, e à transformação da China no novo dínamo da economia sul-americana. A “virada” ao Pacífico, entretanto, representa ao mesmo tempo um desafio e uma ameaça. Desafio pela dimensão financeira do projeto de integração bioceânica, e ameaça porque o desenvolvimento deste projeto só se viabilizará com a participação da China, que está sendo definida pelos Estados Unidos, neste momento geopolítico do mundo, como seu grande competidor estratégico que deve ser cercado e bloqueado em todos os pontos do sistema econômico mundial.

 

Uma história tutelada

 

Do ponto de vista geopolítico, entretanto, a América do Sul viveu quase toda a sua história independente sob a tutela anglosaxônica: primeiro da Grã-Bretanha, até o fim do século XIX, e depois dos Estados Unidos, até o início do século XXI. Além disso, durante o século XIX, foi uma zona de experimentação do “imperialismo de livre comércio” da Grã-Bretanha, e no século XX em particular, depois da 2ª Guerra Mundial, transformou-se num aliado incondicional da política externa norte-americana, que promoveu ativamente a redemocratização e o desenvolvimento do continente na década de 1950.

Nos anos 1960, entretanto, depois da vitória da Revolução Cubana, os Estados Unidos apoiaram os golpes de Estado e a formação de governos militares em quase todo o continente sul-americano. E após o golpe que derrubou o presidente Salvador Allende no Chile, em 1973, incentivaram a mudança da política econômica dos governos sul-americanos, que abandonaram – em sua maioria – seu “desenvolvimentismo” do pós-guerra.

No início dos anos 1980, a política do “dólar forte” do governo americano provocou um forte desequilíbrio dos balanços de pagamento na América Latina e deu origem à “crise da dívida externa” que atingiu toda a região, liquidando definitivamente o modelo desenvolvimentista brasileiro que havia sido o mais bem-sucedido da região.

A crise se prolongou por toda a década, mas ao mesmo tempo conviveu com o fim das ditaduras militares e com o início dos movimentos de redemocratização de quase todos os países do continente. Mais uma vez, entretanto, os novos governos democráticos sul-americanos aderiram em conjunto ao projeto da “globalização liberal” liderado pelos Estados Unidos, e às políticas neoliberais do chamado “Consenso de Washington”, que produziram sucessivas crises cambiais – no México, em 1994; na Argentina, em 1999; e no Brasil, em 2001 –, antes de serem abandonados e substituídos por governos que tentaram levar à frente, durante uma década, uma agenda experimental antineoliberal, sem deixar de alinhar-se à estratégia geopolítica global de combate ao terrorismo comandada pelos norte-americanos.

Relembrando a história: depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, em Washington e New York, a política externa norte-americana mudou de rumo, relegando ao segundo plano as questões econômicas e priorizando o combate global ao terrorismo. Nesse novo contexto, o governo republicano de George W. Bush manteve seu apoio ao projeto da ALCA de integração econômica da América do Sul, proposto na década de 90 pela administração Clinton, mas já sem o entusiasmo das administrações democratas. Até porque a resistência sul-americana e, em particular, a oposição do Brasil e da Argentina após 2002, esvaziaram e logo engavetaram a proposta norte-americana em 2005.

Os EUA mudaram, então, seu projeto inicial e passaram a negociar tratados comerciais bilaterais com alguns países do continente. Assim, depois do fracasso das políticas neoliberais do Consenso de Washington, do abandono do projeto da ALCA e da desastrosa intervenção norte-americana a favor do golpe militar da Venezuela, em 2003, os Estados Unidos mudaram sua posição no que se referia aos assuntos continentais, atraídos cada vez mais pelos novos desafios que vinham da Ásia e do Oriente Médio, e do avanço da OTAN na direção da Europa do Leste.

Essa tendência se fortaleceu na segunda década do século XXI, quando o esfacelamento da “ordem mundial” estabelecida depois da Guerra Fria e a mudança do foco geopolítico mundial reduziram a quase nada a atenção americana em relação à América do Sul, o que não impediu que eles apoiassem os golpes de Estado de Honduras, Paraguai e Brasil durante o governo democrata de Barack Obama.

Na terceira década do século, entretanto, depois da catástrofe da pandemia de Covid-19 e frente ao desafio das guerras da Ucrânia e de Gaza, e mais ainda, face ao deslocamento do eixo dinâmico da economia mundial na direção da Ásia e da China, em particular, a América do Sul reduziu ainda mais sua importância geopolítica e geoeconômica no sistema internacional, dividindo-se de cima abaixo frente ao conflito entre Estados Unidos e Venezuela, e desintegrando-se como um ator geopolítico global.

As vezes de forma mais lenta, às vezes mais acelerada, algumas mudanças vêm acontecendo no panorama geopolítico e geoeconômico da América do Sul. Em algumas mudanças vêm acontecendo no panorama alguns casos, reforçando velhos caminhos e “vocações” do continente; em outros, abrindo novas perspectivas e oportunidades que poderão ou não ser aproveitadas pelos 12 países que convivem lado a lado dentro desse território recortado por tantas barreiras geográficas, e tão próximo dos Estados Unidos. Destacamos em seguida quatro mudanças que deverão pesar decisivamente sobre o futuro continental.

 

O aumento da assimetria sul-americana

 

Em 1950, os dois países mais ricos da América do Sul – Brasil e Argentina – tinham mais ou menos o mesmo PIB, apesar de que os argentinos tivessem uma renda per capita, homogeneidade social, nível educacional e qualidade de vida extraordinariamente superiores em relação aos brasileiros. Hoje, setenta anos depois, a situação mudou radicalmente: se o PIB dos dois países girava em torno de US$ 80 bilhões em 1950, 70 anos depois, o PIB brasileiro multiplicou 23 vezes e é hoje de cerca de US$ 2,17 trilhões, enquanto o argentino multiplicou-se apenas oito vezes no mesmo período, sendo hoje de 640 bilhões de dólares.

Uma assimetria entre os dois países que tende a aumentar exponencialmente nos próximos anos, e muito mais ainda entre o Brasil e os demais países sul-americanos. Hoje, o Brasil já possui metade da população e do produto sul-americano, e é o único país da região que tem alguma presença no tabuleiro geopolítico internacional.

Depois do Golpe de Estado de 2016, entretanto, e até 2022, dois sucessivos governos de direita alteraram radicalmente a política externa, afastando o Brasil de todas as iniciativas integracionistas na América do Sul, ao mesmo tempo que se alinhava aos Estados Unidos e à OTAN, frente aos conflitos internacionais fora do continente. Em 2023, entretanto, o país retomou o rumo anterior de sua política externa e vem assumindo posições cada vez mais ativas no campo internacional, no grupo do BRICS, na presidência rotativa do G20 e na liderança mundial da luta pela sustentabilidade e controle das mudanças climáticas.

No seu próprio continente, entretanto, o Brasil vem encontrando grandes resistências, que muito têm a ver com o aumento da assimetria regional, em que o Brasil aparece hoje como uma espécie de “elefante no meio da sala”.

 

A expansão da presença chinesa

 

A segunda grande transformação da América do Sul, nas primeiras décadas do século XXI, foram o surgimento e a expansão acelerada do papel da China no desenvolvimento econômico do continente. Em apenas três décadas, o fluxo comercial entre América do Sul e China cresceu de US$ 15 bilhões em 2001, para cerca de US$ 300 bilhões em 2019. E o fluxo dos investimentos diretos chineses na região cresceu e se manteve em torno de US$ 10 bilhões anuais, em média, entre 2011 e 2018. Brasil, Peru e Argentina receberam a maior parcela desses investimentos até 2022, ficando o Brasil com 22% deste total, incluindo a fabricação de veículos elétricos, aquisição de ativos de lítio, expansão da Huawei e de outras empresas chinesas de data centers, computação em nuvem e tecnologia 5G, e em grande quantidade de infraestrutura elétrica.

Nas duas primeiras décadas do século XXI, a China também dobrou sua participação nas importações realizadas pelos países sul-americanos, cujo valor bruto cresceu mais de 700%, enquanto as exportações brasileiras para a América do Sul, por exemplo, no mesmo período, cresceram menos de 40% do crescimento chinês. Mesmo durante a crise econômica de 2008, a participação brasileira no mercado argentino recuou de 42% para 31,5%, enquanto a participação chinesa subiu de 21,5% para 30,5%. E o mesmo aconteceu na Venezuela, onde a participação chinesa subiu de 4,4% em 2008, para 11,5% nos quatro primeiros meses de 2009.

Hoje, a China é o maior parceiro comercial do Brasil, do Chile e do Peru no continente sul-americano, e está entre os três maiores parceiros comerciais de todos os países do continente. Só no caso brasileiro, 30,6% de suas exportações em 2023 foram para a China, que foi ao mesmo tempo o maior fornecedor de bens importados pelo Brasil. E oito países sul-americanos já fazem parte da iniciativa da Belt and Road chinesa: Argentina, Peru, Bolívia, Chile, Guiana, Suriname, Uruguai e Venezuela.

Na linguagem estruturalista clássica, pode-se afirmar que nesse período a China se transformou no novo “centro cíclico principal” da economia sul-americana. E hoje, como no passado, o principal interesse dos chineses na América do Sul segue sendo seus recursos naturais e minerais, apesar de também estarem participando das grandes licitações governamentais da região. E o cenário para os próximos anos promete uma oferta excedente de produtos e capitais chineses, que deve derrubar barreiras e constituir um imenso desafio competitivo para os capitais norte-americanos e brasileiros.

 

A nova estratégia norte-americana de “polarização mundial”

 

A terceira grande mudança aconteceu no campo das relações da América do Sul com os Estados Unidos, que nunca abandonaram sua Doutrina Monroe, formulada em 1823 com o objetivo de combater e expulsar a influência europeia do continente sul-americano. A diferença é que, no século XIX, esse discurso era contrário aos interesses das potências coloniais europeias, e favorável à independência de suas colônias sul-americanas.

Na primeira metade do século XX, entretanto, a mesma doutrina legitimou a intervenção norte-americana na América Central e Caribe, para mudar governos e regimes que eles consideravam contrários aos seus interesses. E na segunda metade do século, ela voltou a ser utilizada para “proteger” os países da América do Sul, só que agora contra a “ameaça comunista”, que justificou o apoio norte-americano a uma sucessão de golpes e regimes militares que liquidaram a democracia no continente, destruindo ao mesmo tempo sua soberania e seus projetos autônomos de futuro.

No início do século XXI, durante a sua “guerra global ao terrorismo”, os Estados Unidos reduziram seu grau de envolvimento político com os assuntos sul-americanos. Um “déficit de atenção” que durou até o “desembarque” econômico dos chineses na América do Sul na segunda década do século, e até o início do conflito entre os Estados Unidos e a Rússia, na Ucrânia, após o golpe de Estado de 2014.

Desde então, os Estados Unidos vêm se propondo “repolarizar o mundo” no estilo da Guerra Fria do século XX, de maneira que os demais países do sistema internacional, e também da América do Sul, teriam que se posicionar de um lado ou de outro da “linha vermelha” estabelecida por eles e seus aliado europeus.

 

O declínio do projeto de integração sul-americano

 

A maioria dos países sul-americanos superou o impacto da crise de 2008 mais rapidamente do que no resto do mundo, graças à grande demanda de seus produtos de exportação por parte das economias asiáticas, da China em particular, que sustentaram as quantidades e os preços das commodities sul-americanas num nível extremamente elevado.

Mas este sucesso de curto prazo provocou um efeito inesperado em toda a América do Sul, ao aprofundar, de forma paradoxal, as velhas dificuldades enfrentadas desde sempre pelo projeto de integração econômica da América do Sul. Basta dizer que, na América do Norte, o comércio intrarregional é da ordem de 40% do seu comércio global; na Ásia, de 58%; e na Europa, de 68%; enquanto na América do Sul, mal chega aos 18%.

 

Os caminhos do futuro

 

Dividida em blocos, e com a maior parte dos países separados ou distantes do Brasil, por conta do contencioso venezuelano, a América do Sul deverá se manter na sua condição tradicional de periferia econômica do sistema internacional, mesmo diversificando e ampliando seus mercados na direção da Ásia. Para não ser assim, o Brasil terá que assumir a “liderança material” do continente, construindo uma estrutura produtiva que combine indústrias de alto valor agregado e tecnologias de ponta, com a produção de alimentos e commodities de alta produtividade, mantendo sua condição de grande produtor de energia tradicional e “energia limpa”.

Neste caso, o Brasil poderá mudar o rumo da região, transformando-se na sua “locomotiva econômica”, por cima das divergências políticas e ideológicas que hoje dividem e imobilizam um continente que – sem o Brasil – não tem a menor relevância geopolítica dentro do Sistema Mundial.

Neste ponto, entretanto, não há como enganar-se: o Brasil enfrentará nos próximos anos uma concorrência acirrada e um boicote explicito do governo de Donald Trump que considera que a única relevância da América do Sul é pertencer ao “quintal dos Estados Unidos”.

*José Luís Fiori é professor emérito da UFRJ. Autor, entre outros livros, de Uma teoria do poder global (Vozes)

 

A nova onda de falta de controle nas redes sociais, por Ana Fontes

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Em que momento da nossa história combater preconceitos passou a ser secundário?

Ana Fontes, É empreendedora social e fundadora da RME (Rede Mulher Empreendedora). Vice-presidente do Conselho do Pacto Global da ONU Brasil e membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável da Presidência da República

Folha de São Paulo, 18/01/2025

Onde foi que nos perdemos? Quando pautas de direitos humanos se tornaram pautas político-partidárias? Em que momento da nossa história combater preconceitos, defender o clima, promover inclusão e diversidade passaram a ser secundários? Essas questões deveriam ser universais, abraçadas por todos que acreditam em um mundo melhor, onde cada pessoa tem acesso a direitos básicos como água potável, saúde, educação e alimentação. Em suma, o direito a uma vida digna.

Como chegamos a esse ponto de retrocesso? Um movimento preocupante nas grandes empresas já era visível desde o final de 2024, quando muitas encerraram áreas dedicadas à sustentabilidade e diversidade. Para quem já considerava isso um retrocesso grave, o cenário ganhou contornos ainda mais sombrios em janeiro deste ano, com o anúncio de Mark Zuckemberg.

O criador da Meta declarou que irá seguir os passos de Elon Musk, dono da plataforma X (antigo Twitter), em uma política que privilegia a “liberdade de expressão” —um alinhamento direto com o discurso do governo Trump, que reassume a presidência dos Estados Unidos neste mês. Este movimento que eu defino como meninos mimados liderando o mundo, é perigoso de infinitas formas.

Entre as medidas anunciadas, Zuckerberg decidiu encerrar os programas profissionais de checagem de fatos em suas plataformas, substituindo-os por um sistema de “colaboração da comunidade”, o mesmo modelo usado por Musk. Segundo ele, a ideia é garantir a liberdade de expressão dos usuários.

Contudo, as consequências dessa decisão são previsíveis. Em suas próprias palavras, as instituições foram “castradas” e precisam de uma “energia mais masculina”. Essa narrativa reflete o poder de homens que, embora privilegiados, ignoram responsabilidades sociais.

Os efeitos desse posicionamento são claros: meninas/mulheres e outros grupos minorizados que são alvos recorrentes de ataques online serão ainda mais vulneráveis. Com a falta de regulação e a permissão para conteúdo prejudicial, essas populações enfrentarão riscos crescentes para sua saúde física e mental. É um reflexo direto do aumento do efeito backlash —uma resposta coordenada e negativa contra avanços sociais, ou seja um retrocesso.

Em contraste, o governo brasileiro já se posicionou afirmando que tais mudanças violam a Constituição. Ainda assim, resta o desafio de pressionar grandes empresas para que reintegrem pautas sociais em suas estratégias corporativas. Essas questões são cruciais para garantir o bem-estar de meninas e mulheres no Brasil e no mundo.

O que precisamos é de um esforço coletivo para resistir a esse retrocesso e reafirmar a importância dos direitos básicos e da dignidade humana como pilares fundamentais da sociedade.

 

O ameaçador mundo novo, por Fernando Gabeira,

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Fernando Gabeira, O Estado de São Paulo, 17/01/2025

O anúncio da Meta indicando que vai alterar seu sistema de trabalho trouxe um grande debate ao Brasil. A empresa decidiu acabar com a estrutura de mediação dos posts e aceitar alguns comportamentos retrógradas, como associar orientação sexual a doença.

Nem todas as decisões da Meta coincidem com a legislação brasileira, bastante clara sobre racismo e homofobia. Certamente não coincide com a legislação escocesa, que recentemente lançou um ato sobretudo para proteger as pessoas trans.

É mais ou menos consenso que as empresas têm o direito de definir suas normas, mas precisam respeitar as legislações nacionais. É uma questão de soberania.

No entanto, por mais acalorado que seja, esse debate não atinge ainda a dimensão das mudanças que estamos experimentando. Formou-se uma coalizão de bilionários em torno do governo Donald Trump, alguns deles como Elon Musk e Mark Zuckerberg, donos das big techs que controlam a infra do debate mundial nas redes.

Esse é um desafio histórico, sem precedentes e muito imediato para que possamos ter alternativas acabadas para ele.

Uma linha de raciocínio e também de estudo é compreender que a ideia de soberania nacional não pode se limitar a um debate sobre como aplicar a lei nas redes, mas precisa avançar desse plano simbólico para o plano econômico.

As redes sociais têm hoje uma importância enorme no comércio assim como são a chance de renda para milhares de trabalhadores autônomos. Sem elas, viveríamos um baque sem precedentes.

Lula da Silva fez uma reunião para ver como tratariam as normas da Meta, que na verdade tornaram-se idênticas às do X. Ao invés de estruturas de moderação, existem notas da comunidade. Portanto a Meta vai argumentar que atua no mesmo nível de legalidade do X. O argumento de que atinge um número maior de usuários não tem fundamento, na medida em que a lei não diferencia o tratamento das redes pelo número de usuários.

Uma das reuniões necessárias poderia, por exemplo, avaliar possibilidade de reduzirmos a dependência das big techs. Esse tipo de reunião tem de contar com gente que conheça bem e consiga mapear o longo e áspero caminho pela frente.

Não sou especialista nesses temas. Mas tenho uma intuição na qual pretendo trabalhar. Essa coalizão que se formou em torno de Trump e tende a favorecer a extrema direita mundial, além de superpoderosa, nega as mudanças climáticas.

Alguns dos caminhos de adaptação às mudanças climáticas coincidem com a possibilidade de reduzirmos o poder das big techs sobre as estruturas nacionais.

Um deles é a transição energética no sentido da produção de energia barata, abundante e renovável. Esse tópico é essencial nos dois aspectos: redução das emissões e possibilidade de fornecer a matéria-prima para um mundo em que a inteligência artificial (IA) tem papel dominante.

A quantidade de energia que os centros de dados demandam é brutal e já tem um peso no consumo norte-americano. Alguns especialistas costumam dizer que a IA, para ter as mesmas possibilidades da mente humana, precisa da energia de toda uma hidroelétrica. Pode ser uma força de expressão, mas serve para ilustrar o problema.

Em termos de defesa diante das big techs, a descentralização que é demandada num mundo mais sustentável precisa se dar também na infraestrutura de comunicação. Quantos satélites temos, quantos precisamos, quem nos ajudará a lançá-los no espaço? Como estão as redes de fibra ótica, como construir novas e descentralizadas?

Da mesma forma, talvez seja preciso desenvolver tecnologias de comunicação offline, como servidores locais e intranet.

Assim como nas mudanças climáticas, é necessário incentivar a produção local para reduzir a dependência de cadeias globais.

Na pandemia, vimos nossas lacunas em material médico, abundante na Índia e China. Na guerra da Ucrânia, sentimos a falta de fertilizantes.

Além disso, precisaríamos avançar na formação de mão de obra qualificada em setores críticos: cibersegurança, engenharia de redes e gestão de crise.

Ideal também seria criar sistemas redundantes para várias rotas de cabos submarinos para comunicação global.

Enfim, será preciso investimento numa economia diversificada em inovação e tecnologia, e ainda assim estaríamos dependentes das redes pela sua importância decisiva para nossa sobrevivência.

As ideias que estou apresentando são apenas as que nascem da própria luta contra o aquecimento global, e também de sugestões da própria IA confrontada com a pergunta: o que um país pode fazer para se tornar menos dependente das redes?

Hoje estamos diante de uma realidade sem precedentes. O mundo caminha para ultrapassar os limites planejados para o aquecimento global e, ao mesmo tempo, está diante de uma forte coalizão de big techs em torno de um governo que nega o fenômeno, duvida das vacinas e não reconhece a necessidade de proteção de setores vulneráveis.

As tarefas para enfrentar esse novo momento são gigantescas. Diante delas as pequenas divergências são insignificantes, assim como a necessidade do diálogo é urgente, mesmo que a gente reconheça que nossas propostas são ainda embrionárias e só o tempo e a troca coletiva poderão amadurecê-las.

JORNALISTA

 

Varoufakis: Trump topará na muralha da China

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Planos do futuro presidente são contraditórios e escondem um provável desafio a Pequim. Mas os chineses resistirão. A dúvida é: estarão também dispostos a dar um grande salto e criar, em torno dos BRICS, uma ordem alternativa à do dólar?

Yanis Varoufakis – OUTRAS PALAVRAS – 16/01/2025

Donald Trump quer impulsionar as exportações de seu país, trazer empregos de volta para os Estados Unidos e reduzir o déficit comercial norte-americano. Para isso, ele precisa de um dólar mais fraco. Mas, ao mesmo tempo, ele quer um dólar forte, e não tolerará qualquer discussão sobre o fim do privilégio exorbitante da supremacia do dólar americano nas transações internacionais.

Trump pode ter ambos? Seu primeiro problema é que introduzir tarifas sobre produtos importados, projeto que anunciou com alarde, e no qual investiu muito capital político, provavelmente aumentará o valor do dólar.

Por quê? Principalmente porque toda vez que há incerteza global, devido a um problema que emana dos Estados Unidos — seja a crise de 2008 ou qualquer outra –, há, paradoxalmente, uma corrida de dinheiro estrangeiro para os Estados Unidos, elevando o valor do dólar.

Se as tarifas de Trump criarem incerteza global, o resultado provável será um aumento no valor do dólar. E esse é o seu primeiro problema. O resultado será que, mesmo que as importações inicialmente diminuam como resultado das tarifas elevadas, a entrada de capital nos Estados Unidos impulsionará o valor do dólar. Isso anulará quaisquer efeitos que as tarifas tenham tido, na limitação das importações e no aumento das exportações americanas.

O segundo problema de Donald Trump é que, se ele levar adiante suas propostas de grandes cortes de impostos, especialmente para corporações e oligarcas extremamente ricos dos Estados Unidos, isso também atrairá capital estrangeiro para seu país. E o que este movimento fará? Aumentará o valor do dólar e, assim, ampliará o abismo entre a poupança e o investimento norte-americanos — o investimento é muito maior do que a poupança – o que é uma das causas fundamentais do déficit comercial dos EUA.

O terceiro problema de Trump é o privilégio exorbitante do dólar. É a razão pela qual, sempre que há uma crise (especialmente quando se origina nos Estados Unidos), o dólar sobe e o déficit comercial dos EUA piora, especialmente durante períodos de redução da demanda e empregos nos Estados Unidos.

Portanto, se Donald Trump realmente quisesse reduzir o déficit comercial norte-americano, ele teria que acabar com o privilégio exorbitante do dólar. Mas, é claro, ele nunca permitirá isso, porque seus melhores amigos, sua tribo, são os rentistas e os financistas – que ficariam horrorizados se os Estados Unidos perdessem o privilégio exorbitante do dólar. É altamente improvável que Donald Trump queira ser o primeiro presidente norte-americano, desde a Segunda Guerra Mundial, a perder o poder hegemônico dos Estados Unidos, ao abrir mão do privilégio exorbitante do dólar.

Alguns argumentam – e acredito que têm razão, ao menos em parte – que talvez o que ele esteja tentando fazer é ameaçar o mundo, a China e a União Europeia em particular, com tarifas muito altas. O objetivo real seria chegar a um acordo que os leve a aceitar uma desvalorização do yuan, do euro e de outras moedas concorrentes, para que os Estados Unidos possam ver suas exportações aumentarem e as importações diminuírem.

Em outras palavras, fazer um acordo. Algo semelhante ao que Ronald Reagan fez em 1985. Os infames Acordos da Plaza supostamente foram uma reunião multilateral entre europeus, norte-americanos, canadenses, australianos. Na realidade, representaram um ultimato de Washington a Tóquio. Apreciem fortemente o iene! Caso contrário, vamos impor grandes tarifas sobre as exportações japonesas. Os japoneses cederam. Aceitar os Acordos de Plaza foi razão pela qual as enormes taxas de crescimento econômico vividas pelo Japão entre 1950 e 1985 despencaram, e porque o país perdeu seu vigor e dinamismo.

É provável que a China aceite um novo Acordo da Plaza? Eu atribuo probabilidade zero a essa hipótese. A China não é o Japão.

O Japão era um país ocupado pelos Estados Unidos. Os Estados Unidos escreveram sua Constituição. Ainda há dezenas de milhares de soldados norte-americanos ocupando Okinawa. A China, volto a repetir, não é o Japão. É altamente improvável que aceitem isso, especialmente em um momento em que a conta de capital do país, do ponto de vista econômico, recomendaria uma desvalorização do yuan.

Os chineses nunca aceitarão uma grande valorização de sua moeda, que faça a diferença para o déficit comercial dos Estados Unidos, da maneira que Donald Trump gostaria. Contar com isso é atirar pedras à Lua.

Não há novos Acordos da Plaza entre os Estados Unidos e Pequim no horizonte, agora. Nesse sentido, parece muito improvável que Donald Trump consiga alcançar seus dois objetivos ao mesmo tempo: reduzir o déficit comercial dos EUA e manter o privilégio exorbitante do dólar.

A grande questão, no entanto, para 2025 e além, diz respeito ao dilema da China. Pequim decidirá manter-se estática, ganhando tempo até que as contradições internas dos Estados Unidos – o dilema de Trump – se desenrolem?

Ou Pequim fará a escolha, que ainda não fez? O governo chinês ainda não tomou uma decisão, e penso que fará isso em algum momento: tomar a decisão de converter a área dos BRICS em uma nova versão de Bretton Woods.

Assim como Bretton Woods tinha em seu centro o dólar norte-americano, a área dos BRICS teria o yuan como moeda central, com taxas de câmbio mais ou menos fixas entre o a moeda chinesa, a rúpia indiana e outras, e com o objetivo de reciclar os superávits da China dentro da área dos BRICS. Este seria o maior e mais letal perigo para o privilégio exorbitante do dólar.

Essa ainda não é uma decisão tomada. Em 2025 ou nos anos seguintes, penso que saberemos a resposta. Até lá, fiquem bem.

 

O que fazer para estabilizar a economia? Por Paulo Nogueira Batista Júnior

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Paulo Nogueira Batista Júnior

É preciso vencer a resistência da plutocracia nacional, que controla o Congresso e a mídia corporativa

A Terra é Redonda, 17/01/2025

Desde o final de novembro de 2024, a economia brasileira passou por intensa instabilidade financeira e cambial. Foi o pior momento da economia no governo Lula. Os mercados ficaram mais calmos neste início de ano, mas o câmbio permanece acima de 6 reis por dólar, com impacto adverso sobre a taxa de inflação e os juros.

O que fazer? Vou passar em revista algumas alternativas, sem a pretensão de esgotar o assunto ou sequer de fazer justiça às possibilidades que serão aventadas.

Há dois tipos de medidas: as mais convencionais e as menos rotineiras. O mais natural seria começar pelas convencionais. O governo já está tomando ou programando algumas medidas desse tipo.

No que diz respeito à política fiscal, é recomendável, em primeiro lugar, tomar providências adicionais de ajustamento para dissipar percepções ainda predominantemente negativas sobre as contas públicas. Medidas adicionais reduziriam as necessidades de financiamento do governo e a sua dependência em relação ao mercado financeiro. Em paralelo, caberia confirmar que o aumento da faixa de isenção do imposto de renda será compensado integralmente pelo aumento das alíquotas efetivas sobre os contribuintes de alta renda, especificando de que maneiras eles seriam chamados a contribuir mais.

Outro ponto importante seria reforçar a posição do ministro Fernando Haddad dentro do governo. Nos últimos meses, disseminou-se a suspeita de que ele estaria enfraquecido, o que contribuiu para o tumulto financeiro e a depreciação do real. Se o Presidente Lula atuar para desfazer essa suspeita, ficará mais fácil acalmar o mercado e formar expectativas positivas em relação à política fiscal.

Não se deve esquecer, leitor ou leitora, que dentro de qualquer governo todos os ministros querem gastar, menos um, o da Fazenda, que quer economizar. Por isso, ele é o único que nunca pode ser “fritado”. Mas, pensando melhor, essa observação deve ser supérflua, uma vez que o Presidente da República, no seu terceiro mandato, é um líder político super tarimbado.

Seja como for, o governo deve ter em mente que o ajuste fiscal envolve, sempre e em qualquer parte, um conflito distributivo. Ou seja: implica escolher quem será onerado por cortes de despesas ou aumentos da carga tributária. Como o Brasil apresenta elevado grau de concentração da renda e da riqueza, o ajuste deve ser progressivo ou, no mínimo, neutro em termos distributivos. Isso significa que não só o imposto de renda, mas também os cortes de gastos, inclusive de isenções e incentivos, devem mirar sobretudo os setores de renda alta. Em suma, o ajuste deve ser compatível com o mote que foi usado por Lula na campanha eleitoral – “colocar o pobre no orçamento; e o rico no imposto de renda”.

Isso é mais fácil de dizer do que fazer, como se sabe. Mas promessa é promessa. Tanto mais, ressalte-se, que os juros continuarão elevados em 2025, contribuindo para concentrar a renda nacional. Se a política fiscal também for injusta, o governo Lula promoverá concentração da renda por duas vias, pela política fiscal e pela política monetária, em flagrante conflito com a sua base social e o discurso de campanha.

De novo, é muito improvável que o presidente Lula se disponha a fazer tal estelionato eleitoral. Experiente como é, sabe certamente que estelionato eleitoral costuma ser severamente punido no Brasil – Fernando Henrique Cardoso, para mencionar apenas um exemplo, nunca se recuperou politicamente do estelionato de 1998.

Evidentemente, admitir que os juros continuarão altos durante 2025 não significa supor que eles não possam diminuir em algum momento, digamos, do segundo trimestre em diante. Se a política fiscal seguir o caminho antes mencionado e a posição do Ministro da Fazenda for reforçada, o Banco Central terá a oportunidade, que não deveria perder, de baixar a taxa de juro gradualmente.

E não é só a política fiscal que pode contribuir para juros menores. O Banco Central nem sempre usa, como poderia, todos os instrumentos de que dispõe para induzir uma queda do dólar e baixar os juros. Alguns são tradicionais, como vender swaps cambiais ou lançar mão das reservas internacionais para intervenções pontuais no mercado de câmbio à vista.

Apesar da perda de cerca de US$ 30 bilhões no final do ano passado, as reservas continuam elevadas e podem ser acionadas para sufocar turbulências cambiais. E a venda de swaps é uma forma de oferecer hedge cambial e defender o real sem gastar reservas, assumindo obrigações denominadas em moeda nacional.

Outros instrumentos são mais inovadores se comparados à experiência brasileira das décadas recentes. Menciono três deles, em apertada síntese. Todos eles têm seus riscos, mas podem ser recomendáveis, especialmente se houver novos episódios de turbulência.

Primeiro instrumento: autorizar o Banco Central a operar, quando oportuno, ao longo da curva de juros, influenciando as taxas longas, como fazem alguns dos principais bancos centrais, inclusive o dos EUA.

Segundo: reintroduzir controles de capital, modernizados para incidir sobre derivativos, que correspondem hoje à maior parte das operações de mercado. O Banco Central e Receita Federal passariam a atuar em conjunto para regular e fiscalizar as remessas de capital dos ricos e super ricos ao exterior. Para esse e outros fins, a Receita deveria recriar uma unidade dedicada os grandes contribuintes.

Terceiro: o Banco Central e o Tesouro podem explorar a possibilidade de captar recursos externos de fontes governamentais, em montante apreciável e em condições de prazo e custo mais favoráveis do que as do mercado interno. Esses recursos teriam que ser usados exclusivamente para substituir uma parte da dívida interna por dívida externa, e não para financiar um aumento do déficit fiscal ou a acumulação de reservas internacionais. Com isso, melhoraria o perfil da dívida pública, aumentaria a sua estabilidade e o governo ficaria menos dependente do financiamento doméstico.

Em suma, se a política fiscal for reforçada, se o Banco Central contribuir, por seu lado, para a valorização do real e a queda dos juros, e se for possível, além disso, negociar financiamento externo junto a novas fontes, o governo teria condições de estabilizar os mercados financeiros e cambiais e retomar a trajetória econômica bem-sucedida de 2023 e 2024.

Uma ressalva final. Algumas das medidas acima, especialmente as não convencionais, esbarrariam na resistência da plutocracia nacional, que controla o Congresso e a mídia corporativa. Para adotá-las, o governo teria que estar bem preparado do ponto de vista técnico e disposto a contrariar interesses poderosos.

Difícil, sem dúvida. Mas não é sempre difícil governar de forma justa, com o interesse do povo em mente? E não foi exatamente para isso que Lula se elegeu?

*Paulo Nogueira Batista Jr. é economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS. Autor, entre outros livros, de Estilhaços (Contracorrente)

 

As mutações do capital e a tragédia do rentismo, por Antonio Martins

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Mariana Mazzucato alerta: Estado comandou os avanços tecnológicos das últimas décadas – porém, os rentistas capturaram os resultados, e agora bloqueiam soluções para os grandes dilemas da crise civilizatória. A China tirou as lições corretas, mas é preciso ir além

OUTRAS PALAVRAS – 15/01/2025

Por Antonio Martins

Algumas falas iluminam. Autora de livros celebrados, como O Estado empreendedor, Missão Economia e O Valor de tudoa italiana Mariana Mazzucato integra um grupo de economistas que conseguiu aos poucos, nos últimos anos, cavar a crosta dos velhos dogmas e tornar visível a infâmia das relações sociais contemporâneas. Assessorou governos como os da Colômbia, México e Brasil. Tornou-se conhecida principalmente por sua ideia de políticas orientadas por missões. Mas uma entrevista que concedeu a Martin Wolf, principal analista econômico do Financial Times, no apagar das luzes de 2024, permite vislumbrar amplamente suas ideias e abre as portas para um exame mais profundo de sua obra.

No diálogo, Mariana oferece visões não convencionais, mas muito consistentes e provocadoras, sobre alguns dos principais fenômenos que marcaram as economias do Ocidente nas últimas décadas. Polemiza sobre a origem dos impulsos que permitiram a notável transformação tecnológica que levou à internet e todos os seus desdobramentos, ou a drogas e tratamentos revolucionários contra doenças como o câncer. Sustenta, contra o pensamento hegemônicoque o motor essencial foi a ação dos Estados.

Descreve, a seguir, a captura dos benefícios destas transformações, o que terminou gerando o caos desinformativo global patrocinado pelas Big Techs, ao apartheid vacinal. Frisa que este sequestro bloqueia agora o esforço que seria necessário – e perfeitamente possível – para fazer frente a desafios ainda mais urgentes: o empobrecimento das maiorias, as catástrofes climáticas, a falta de assistência digna à Saúde, o esgotamento das fontes de água. Mas ressalta: ainda é possível reverter o tempo perdido, se surgirem novas condições políticas. E vê como exemplo a China – onde o Estado não perdeu a capacidade de coordenar a inovação socialmente relevante, e ao promovê-la não favorece as megacorporações.

Na entrevista com Martin Wolf, o alvo da primeira lapada de Mazzucato é o mito da inovação comandada por jovens que se tornaram CEOs visionários, como Steve Jobs, Mark Zuckerberg ou Elon Musk. Em O Estado empreendedor, a economista descreve em detalhes o conjunto de “instituições estatais decentralizadas” que esteve por trás de todas as grandes inovações contemporâneas: a internet, os celulares, o GPS, a tela sensível ao toque, os assistentes virtuais. Os garotos legendários que iniciaram em suas garagens na Califórnia empresas hoje dominantes, ironiza ela, não partiram do nada.

Nos anos 1960 e 70, em meio à Guerra Fria, os EUA empreenderam um gigantesco esforço para superar tecnologicamente a URSS. O marco simbólico maior deste movimento foi a missão que o então presidente John Kennedy anunciou pela TV, em 1961: chegar à Lua naquela mesma década, antes dos soviéticos. Era tempos keynesianos e a fala de Kennedy expressava apenas a face mais pública de um processo que envolvia a criação de uma rede de agências e laboratórios estatais (boa parte deles dirigidos pela CIA e pelo Pentágono). Em paralelo, foram criados mecanismos de financiamento de longo prazo e de amortização de riscos – pois inovação se faz, necessariamente, por meio de tentativa e erro.

Mariana mostra como, por exemplo, a necessidade de fazer os satélites e centros de lançamento nuclear comunicaram-se entre si levou à criação da internet. Ou como o GPS surgiu do esforço para localizar os navios mercantes ou de guerra. Algo muito semelhante ocorreu na área de medicamentos. Nos EUA, o Institutos Nacionais de Saúde (NIH, em inglês) assumiram a pesquisa básica que levou às grandes inovações farmacêuticas contemporâneas – inclusive as vacinas de RNA, que permitiram responder em tempo recorde à covid.

Todo este movimento, Mariana prossegue, envolveu o setor privado – porém com coordenação inequivocamente estatal. Era preciso, por exemplo, encontrar maneiras de alimentar os astronautas, de vesti-los, de resolver o problema do banheiro. A NASA encomendava soluções, de maneira inteligente e desburocratizada, trocando o critério tosco do “preço mais baixo” pelo estímulo à inovação constante.

Quando estas inovações amadureceram, o capitalismo havia assumido a brutalidade neoliberal – por isso, dá-se a captura. Seus aspectos mais evidentes são o controle da internet por um oligopólio privado e o apartheid vacinal. O Estado criou a rede capaz de estabelecer uma intercomunicação humana jamais sonhada antes. Mas permite que ela seja reduzida a “jardins murados”, onde quatro grandes corporações apropriam-se da produção intelectual e simbólica de bilhões de pessoas, e onde viceja a desinformação. No campo farmacêutico, um sistema estatal de patentes permite que megaempresas apropriem-se da tecnologia desenvolvida em laboratórios públicos, monopolizem a produção de vacinas e outros medicamentos de ponta e impeçam seu acesso pelas populações que mais necessitam. O sequestro da tecnologia é um dos elementos essenciais do rentismo.

O pior, adverte Mazzucato, é que sob a lógica neoliberal tornou-se impossível articular o mesmo tipo de esforço que levou o ser humano à Lua – agora, para enfrentar os problemas cruciais da crise civilizatória. Seria perfeitamente viável, provoca a economista, a partir de sua teoria de missões políticas. “Há 4,5 bilhões de pessoas, mais da metade da população do planeta, sem acesso a serviços adequados de saúde”, lembra ela – e provoca: por que não transformar este problema num desafio semelhante ao formulado em 1961? Por que não fazer o mesmo em relação ao aquecimento global, numa “missão zero emissões de carbono”, que exigiria mudanças na alimentação, nos transportes, na infraestrutura?

O que seria perfeitamente possível torna-se quimera não por faltarem os meios necessários, mas porque, ao menos no Ocidente, as grandes corporações apoderaram-se da política. Não são mais comandadas pelo Estado – controlam-no. A catástrofe climática mostra suas garras mas, uma após a outra, as conferências sobre o clima fracassam, porque ninguém ousa impor limites e orientações ao grande poder econômico. Os dogmas vigentes dizimaram a própria capacidade de planejamento das instituições estatais. “É otimo que o Estado trabalhe com outros agentes. Mas quando ele não tem o conhecimento, a inteligência e os instrumentos para isso (…) torna-se incapaz sequer de entender os problemas e estabelecer os termos de referência. Torna-se refém”, lamenta Mariana.

Tudo está perdido? A economista vê, em meio ao desastre que se aproxima, dois elementos de esperança. O primeiro exige uma mudança essencial de orientação política. Os Estados conservam a capacidade de mobilizar recursos – inclusive emitindo dinheiro. Fazem-no… nas guerras. “Com elas, o dinheiro é criado a partir do nada. Mesmo na Alemanha [conhecida pela rigidez fiscal], depois da Ucrânia, bilhões foram criados para o esforço bélico. Poucos meses antes, eles não sabiam se haveria recursos para o clima ou a saúde. Ao longo da história, todos os países foram capazes de emitir dinheiro, mas para nossos problemas sociais, fingimos que não temos. (…) Vamos admitir que não estamos fazendo nada diante dos impasses sociais porque preferimos não tratá-los como urgências”…

Ao contrário do que se passou no Ocidente, argumenta Mazzucato, a China desenvolveu a capacidade de colocar os desafios políticos acima do interesse das corporações. Os chineses “estão dominando os segredos do Estado empresarial dos Estados Unidos no exato instante em que estes estão desaprendendo. (…) Eles dão consequência a suas palavras. Fizeram enormes investimentos. Esta é razão para estarem muito adiante, na corrida pelas energias renováveis e pelos carros elétricos”.

Os impasses, contudo, são globais, frisa a economista ao final de sua entrevista. “Assim como não poderíamos ter um apartheid vacinal durante a pandemia, não podemos admitir um nacionalismo verde, porque o problema é global. Por isso são necessários, por exemplo, acordos de compartilhamento de conhecimento e tecnologia.

A crise civilizatória perdura e se aprofunda. No Ocidente, diante da falta de saídas reais, parcelas crescentes das sociedades são tomadas pelo ressentimento e aderem à ultradireita. As esquerdas tradicionais parecem incapazes de encontrar respostas. Conforme afirmou o sociólogo Manuel Castells num texto recente, têm dificuldades de encarar “sociedades em plena transformação ecológica, tecnológica, cultural e política”, porque “aferram-se a marcos mentais, ideologias e táticas que não se conectam à maioria das pessoas – especialmente os jovens”. Ao desfazer mitos sobre as causas desta crise e ao mostrar caminhos para superá-la, Mariana Mazzucato merece atenção.

 

O país dos não leitores, por Ruy Castro

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73% dos brasileiros não leram um livro até o fim em 2024 nem para saber se o assassino era o mordomo

Ruy Castro, Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues, é membro da Academia Brasileira de Letras.

Folha de São Paulo, 17/01/2025

São números terríveis, deprimentes, divulgados há pouco. Segundo a nova edição da pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil” do Instituto Pró-Livro, concluída em 2024, 53% das pessoas ouvidas admitiram que, nos três meses anteriores, não tinham lido um só livro, nem mesmo em parte. E isso em qualquer mídia, física ou digital, e gênero. Não apenas a frágil área de literatura, biografia, história, infantil ou ensaio fora desprezada —nem os didáticos e religiosos, incluindo a Bíblia, mereceram uma vista d’olhos. A pesquisa revelou que, pela primeira vez, desde 2007, quando ela começou, o Brasil tem mais não leitores do que leitores.

Ao perguntarem aos 47% de leitores se haviam lido o livro inteiro, o número caiu para 27%. Ou seja, em 2024, 73% dos brasileiros não leram um livro até o fim nem para saber se o assassino era o mordomo.


Comparada à pesquisa anterior, em 2019, sete milhões de pessoas tinham abandonado os livros, em todos os graus de escolaridade, classe social e faixa etária. Significa que o Brasil perdeu cerca de 1 milhão de leitores por ano. A pesquisa ouviu 5.500 pessoas em 208 municípios.

Cerca de 75% dos entrevistados admitiram que passam mais tempo diante de uma tela do que de uma página impressa. Se isso é consolo, o sujeito fica mais tempo com os olhos a 10 centímetros da tela do que fazendo qualquer outra coisa, como trabalhar, namorar, admirar a paisagem ou não fazer nada. Eu arriscaria que 90% desse tempo diante da tela também não resultam em nada de útil ou objetivo. Não se olha necessariamente para a tela em busca de um dado, uma notícia ou uma informação. Olha-se para a tela, só isso.

O desinteresse pela leitura aumenta à medida que a pessoa cresce e conclui a escola ou a deixa pelo meio. Somente 17% entre os acima de 40 anos disseram que gostam de ler. É terrível porque, quem tem hoje 40 anos, nasceu em 1985 e viveu os últimos anos de um mundo em que a leitura ainda não fora esmagada pelas mídias audiovisuais. O que aconteceu a ele para abandonar um hábito que ainda lhe foi incutido na infância?

Não sei. Só sei que fracassamos.

“Os rentistas estão promovendo a morte da economia no mundo inteiro, em especial no caso brasileiro”. Entrevista especial com Luiz Gonzaga Belluzzo

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A percepção generalizada é que o governo está refém do mercado financeiro, diz doutor em Economia

Instituto Humanitas Unisinos – 22/12/2024

As relações entre Estado e mercado estão marcadas por uma “disputa de poder”. É a partir dessa rivalidade de forças que o economista Luiz Gonzaga Belluzzo interpreta os últimos acontecimentos da conjuntura brasileira: a elevação da taxa Selic neste mês, a proposta de ajuste fiscal do governo e a alta recorde do dólar. “No fundo, trata-se de uma disputa de poder: uma hierarquia de instâncias do movimento de capitais, dos mercados futuros e a política econômica do governo. O ministro Haddad tenta apresentar avanços no processo de ajuste fiscal, aumentando impostos, prometendo cortes aqui e ali, mas isso não é suficiente porque já ultrapassou qualquer relação com a proposta do governo de convencer o mercado de que as coisas estão sob controle”, resume, na entrevista concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Na avaliação dele, “o governo está, sem dúvida, refém” do mercado financeiro. “O governo está cercado e está mostrando que não há nenhum efeito dizer [ao mercado] que vai reduzir o déficit primário progressivamente até chegarmos ao déficit zero”, sublinha. O efeito manada do mercado contra o governo, sugere, indica que “se trata de uma relação de poder que está ancorada nas concepções e visões que os agentes do mercado têm em relação ao governo Lula”.

Neste ambiente de disputa, as projeções socioeconômicas para o próximo ano não são animadoras. “Não vai ser uma caminhada tranquila, não. Na forma como estão articuladas as relações de poder, a minha impressão é que será difícil o governo ultrapassar as resistência e convicções que estão incrustadas nos mercados. Não precisa ser ‘adivinhão’, como se dizia no meu tempo, para saber que isso não vai terminar agora. Essa visão está incrustada na sociedade brasileira e na relação entre as camadas mais abastadas”, destaca.

Luiz Gonzaga Belluzzo é graduado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP, mestre em Economia Industrial pelo Instituto Latino-Americano e Caribenho de Planejamento Econômico e Social – ILPES/CEPAL e doutor em Economia pela Universidade de Campinas – Unicamp. Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. É um dos fundadores das Faculdades de Campinas – Facamp, onde leciona. É autor de Manda quem pode, obedece quem tem prejuízo (Facamp/Contracorrente, 2017), Capital e suas metamorfoses (Unesp, 2013), Os antecedentes da tormenta: origens da crise global (Facamp, 2009), Temporalidade da riqueza: teoria da dinâmica e financeirização do capitalismo (Oficinas Gráficas da Unicamp, 2000), entre outros livros.

Confira a entrevista. 

IHU – Ano passado, quando o novo marco fiscal foi sancionado pelo governo Lula, o senhor disse em entrevista ao IHU que, apesar das críticas, o governo Lula estava “tentando contornar a situação de maneira prudente” para apaziguar o mercado financeiro porque se o mercado se convence de “que está tudo errado, começam a subir a taxa de juros”. Mesmo anunciando um ajuste fiscal criticado por setores da área social, a taxa de juros foi elevada a 12,25% neste mês e a expectativa é de que suba para 14,25% até março do próximo ano. O governo não conseguiu apaziguar o mercado com a proposta de ajuste?

Luiz Gonzaga Belluzzo – As relações entre Estado e mercado sempre estiveram presentes na história da economia monetária financeira capitalista e agora estão adquirindo, como já adquiriu em outros momentos, uma dimensão de diferença de poder e de força na construção de um convencimento social. Estou insistindo neste ponto porque estava relendo o livro de György LukácsPara uma ontologia do ser social. O que estou dizendo é que esses movimentos estão presentes na sociedade e ela é constituída por seres humanos que têm aspirações, convicções, desejos e interesses. Ocultar isso sob a égide de uma questão técnica não é verdade. A economia trata das relações entre homens, entre classes sociais, entre segmentos da sociedade e isso deve prevalecer sobre a observação de que a economia trata de uma coisa aqui, outra ali, uma intervenção no câmbio etc.

Queria chamar atenção para uma questão: existe, neste momento, uma disfunção hierárquica na visão convencional, que está levando à avassaladora opinião destilada pela mídia, de risco fiscal. O que é preciso é estabelecer as hierarquias. Na economia mundial como um todo, hoje o que prevalece são as movimentações dos fluxos de capitais e dos mercados futuros, que são uma espécie de precificação do câmbio dentro da B3 [Bolsa de Valores do Brasil]. A B3 tem um volume de operações, comprados e vendidos em dólar, no mercado futuro, e isso tudo é o que controla a flutuação do câmbio, articulada com a deterioração das condições internas.

Vamos observar o desempenho da economia brasileira em termos de emprego, renda etc.: ele é muito satisfatório, melhor do que foi no período do governo Bolsonaro. No entanto, esse desempenho é entendido como uma pressão, como uma espécie de crescimento que pode levar a um aumento da inflação. A inflação está oscilando entre 4,5 e 4,80. Não é nenhum disparate, nenhum absurdo, mas isso está conduzindo o comportamento e as ações do mercado financeiro no exercício do seu poder para provocar o distúrbio da taxa de câmbio e a subida dos juros. Não sei se isso vai se extinguir em algum momento. Estou observando o cenário com muita preocupação.

Mas, no fundo, trata-se de uma disputa de poder: uma hierarquia de instâncias do movimento de capitais, dos mercados futuros e a política econômica do governo. O ministro Haddad tenta apresentar avanços no processo de ajuste fiscal, aumentando impostos, prometendo cortes aqui e ali, mas isso não é suficiente porque já ultrapassou qualquer relação com a proposta do governo de convencer o mercado de que as coisas estão sob controle.

IHU – As justificativas do Banco Central para aumentar os juros não têm sentido? Quais os efeitos desse comportamento para a sociedade e a economia brasileira?

Luiz Gonzaga Belluzzo – O que ocorre é que se toma o risco fiscal como a razão fundamental dessas flutuações do câmbio, mas isso não é verdade. Não há nenhuma razão para isso, considerando o resultado fiscal que estamos obtendo hoje. Os EUA, por exemplo, têm um déficit primário muito elevado. A França está se debatendo com essa questão, assim como a Alemanha também.

O que acontece é um fenômeno que supera a determinação interna da crise fiscal. É preciso olhar para o movimento dessas instâncias de formação de expectativas. Mas olha-se somente o risco fiscal. É quase uma forma de usar um pretexto para especular – o que é constitutivo do capitalismo – e apostar na possibilidade de obter ganhos ou evitar perdas nas suas riquezas. É isso que os mercados financeiros fazem o tempo inteiro. Esse aspecto é predominante. Dentro dessa predominância, está a instância superior, que é a constituição do sistema monetário financeiro internacional, com todas essas práticas, como essa dos mercados futuros. As pessoas ficam dando voltas em torno dessa questão, mas não vejo como o governo ou o Banco Central podem enfrentar isso de maneira convencional. Talvez isso leve a algumas consequências que nem gostaria de mencionar.

O que estou observando é que estão ocorrendo manifestações de grande agressividade contra esse comportamento do mercado financeiro. Uns dizem que é crime, crime contra a pátria e isso pode se transformar em uma bola de neve. Não sabemos exatamente quais podem ser as consequências.

Talvez seja interessante os rapazes do mercado lerem o que aconteceu na Alemanha entre a década de 1920 e a ascensão de Hitler, e como Hjalmar Schacht cuidou dessas questões. Na culminância das medidas tomadas, ele tornou crime contra o Estado alemão o envio de divisas de dólares para fora da Alemanha. Crime. Isso foi feito no estado nazista. Sobre isso, Keynes disse o seguinte: descontando o horror que foi esse regime, Schacht estava certo porque estava segurando um processo que iria, outra vez, causar muitos danos à Alemanha, que tinha saído da hiperinflação em 1923, 1924. Schacht também adotou o Plano Dawes, que era financiamento do banco Morgan para cobrir as necessidades e obrigações impostas pelas reparações e impedir a saída e fuga da moeda alemã para outras moedas, como a libra.

O que vejo neste momento é uma coisa muito parecida, com a agressividade que está surgindo de muitos lados, inclusive dos movimentos sociais. Isso pode deflagrar uma ação um pouco mais dolorosa em relação aos mercados. Francamente, não é uma coisa que desejo porque, às vezes, as consequências não são muito agradáveis.

IHU – Do ponto de vista político, há outros arranjos possíveis ou o governo está refém do mercado e, ao mesmo tempo, não consegue apaziguá-lo?

Luiz Gonzaga Belluzzo – O governo está, sem dúvida, refém. Claramente. Essa percepção é generalizada: está refém. Agora, o encaminhamento da solução que estou observando é que como o mercado é movido por seres humanos que têm convicções; eu diria que há um enorme efeito manada. Ou seja, uma concatenação de opiniões determinada pela existência de um cartel que tem mais poder – alguns bancos, no Brasil, claramente têm mais poder. As declarações dos bancos internacionais falando do Brasil – à exceção de Mohamed A. El-Erian, que escreveu um artigo dizendo que é um exagero o que está acontecendo – forma essa convicção e ela vai se manifestando. Então o governo está cercado e está mostrando que não há nenhum efeito dizer [ao mercado] que vai reduzir o déficit primário progressivamente até chegarmos ao déficit zero.

Quem já assistiu vários episódios de ajuste fiscal, como aqueles de 2015 e 2016, sabe que isso não vai ser feito de maneira indolor para a sociedade, para os trabalhadores, para o desempenho das empresas etc. O que quero dizer é que estamos vivendo um momento muito preocupante e crucial, que é muito difícil. Como trata-se de uma relação de poder, uma disputa de forças, fico na dúvida se isso poderá ser resolvido de uma maneira pacífica.

IHU – Que efeitos esse cenário poderá gerar nas próximas eleições presidenciais?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Este é um ponto importantíssimo. Em última instância, estamos falando de relações de poder. Uma pesquisa recente, que tomou a opinião de muitos operadores do mercado, mostrou que 90% deles manifestaram inconformidade com o governo Lula. Essa dimensão está por trás das relações de poder. O mercado não admite e não pode admitir um governo como o de Lula, que declara sua intenção de melhorar a vida dos menos favorecidos. Isso é uma tradição da chamada “elite” brasileira. Os interesses da “elite” estão muito arraigados e voltam sempre, como vimos na sucessão de episódios no tempo de Getúlio, de Juscelino. O que quero dizer é que é essencial entendermos que se trata de uma relação de poder que está ancorada nas concepções e visões que os agentes do mercado têm em relação ao governo Lula. Isso é fundamental.

Há uma conexão entre a extrema-direita e o extremo liberalismo econômico, o ataque ao liberalismo político e a defesa do liberalismo econômico. Paulo Guedes tentou fazer isto: privatizações à vontade, abertura comercial, possibilidade de abrir contas em dólar no país. Não tenho nenhuma dúvida de que o mercado apoia o bolsonarismo. Aliás, o bolsonarismo constitui a opinião do mercado. O bolsonarismo não é causado por Bolsonaro; Bolsonaro é que é produzido pelo bolsonarismo que está na sociedade.

IHU – Em vez de cortes nos gastos primários, alguns auditores fiscais e economistas têm defendido que o ajuste no gasto público poderia ser feito a partir de ajustes na área tributária e nos juros da dívida pública. Essas propostas são viáveis e operacionais? Seriam uma alternativa ao ajuste fiscal?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Isso é discutível. Em primeiro lugar, a receita fiscal, sim, depende da estrutura tributária que é imposta à economia: como se definem os impostos de renda, impostos sobre mercadorias, as tarifas alfandegárias etc. Mas isso é uma espécie de receptáculo porque o dinheiro não está lá. O dinheiro depende da circulação monetária financeira. Essa é uma questão ontológica que tem a ver com a definição de uma economia capitalista de mercado, cujo funcionamento depende da circulação monetária. O trabalhador recebe o salário da empresa, que tem uma renda derivada do gasto de outra pessoa e assim sucessivamente. As empresas pagam salários aos trabalhadores porque imaginam vender as mercadorias delas. Os trabalhadores, por sua vez, recebem o salário e gastam. Só existe este circuito da renda, que acaba redundando na coleta de impostos. É o circuito da renda que gera isso não só através da cobrança sobre mercadorias, mas também sobre o imposto de renda. Ou seja, ninguém paga imposto de renda se não tem renda. Em geral, neste ponto, o imposto de renda é muito desigual.

Precisamos olhar a determinação. Como ela é? É da estrutura fiscal para a circulação da renda ou da circulação da renda para a estrutura fiscal? Estou de acordo que é preciso cuidar da dívida pública, mas a dívida pública é riqueza privada. Conversando com vários amigos do mercado, eles dizem que 70% das carteiras das instituições financeiras, sobretudo aquelas que não são propriamente bancárias, que são fintech e outras instituições, são compostas de LFTs (Letra Financeira do Tesouro), porque este é o título que tem maior liquidez e sobre o qual se tem maior facilidade de negociar, comprar e vender. Aliás, o Banco Central não faz o que deveria fazer, que é operar na curva de compra e venda para estabilizar os juros mais longos que afetam o crédito. Isso é feito em quase todos os países, mas aqui o Banco Central está bloqueado e não pode fazer essa operação de regulação da liquidez dos mercados.

Sempre se mexe nas relações mais aparentes e superficiais da vida econômica, mas temos que olhar para o fundamento desses movimentos. Tenho respeito pela Receita Federal, que tem essa visão, mas diria que não é a que corresponde à constituição desses movimentos. Como será possível reduzir os juros sendo que o consenso é que tem que aumentar os juros para segurar a inflação? Essas soluções binárias não ajudam a compreensão. Do jeito que as coisas estão, a solução é muito difícil.

IHU – O ajuste fiscal é criticado em três pontos principais: os critérios para o reajuste do salário mínimo, as condições de acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) e a redução do abono salarial. Considerando os gastos primários, este foi o melhor arranjo? Como avalia esses pontos do ajuste?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Não vejo nenhuma inconveniência em fazer uma investigação e apuração do BPC, mas isso é lateral. Em relação às outras duas propostas, estamos percebendo que o ajuste proposto é sempre para reduzir a capacidade de atendimento dos elementos que formam a renda dos mais pobres. Para mim, isso é muito claro e revela outra dimensão dessa “superforça” da qual estava ministrando. É possível fazer uma investigação para saber das irregularidades que acontecem no Bolsa Família, por exemplo, mas isso não é o fundamental.

Nos anos 1930, Keynes escreveu um livro chamado Teoria Geral do emprego, do juro e da moeda. Ele falou de algumas coisas que ainda são atuais. A primeira delas é uma estrutura tributária que seja redistributiva para preservar a capacidade de gasto das pessoas que estão empregadas. A segunda era uma medida agressiva: diminuir o poder do rentista – a eutanásia do rentista. Sobre a política fiscal, ele pedia a separação entre duas instâncias orçamentárias: os gastos correntes e os de investimento. Hoje, os gastos de investimentos são apresentados como os gastos discricionários. O que ele quer dizer é que se deve, sim, buscar o equilíbrio nos gastos correntes, mas usar a capacidade de regular os gastos de investimento para impedir que a economia ou fique superaquecida ou tenha um desgaste deflacionário. Keynes tinha toda razão; falou das três dimensões importantes: quem paga imposto e recebe, quem se beneficia de uma situação como esta que estamos observando de superioridade da opinião rentista, e o Estado, que teria que se mover nessa direção que estou apontando.

Ele, analisando, a partir da concepção dele de como o capitalismo funciona, dizia que era preciso tratar dessas três questões. Só que o que está acontecendo, em vez da eutanásia do rentista, é que os rentistas estão promovendo a morte da economia no mundo inteiro, em especial no caso brasileiro. E o rentismo não é só juros; ele tem outras dimensões importantes, inclusive a fuga de moeda estrangeira. Tudo isso faz parte da acumulação de riqueza puramente monetária, sem movimentar a economia.

IHU – Como avalia o anúncio da conclusão das negociações do Acordo de Parceria entre o Mercosul e a União Europeia, que tem recebido muitas críticas? Para o Brasil, ele significará o reforço da política agroexportadora ou possibilitará novas alternativas de desenvolvimento?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Também tenho várias restrições ao acordo, ademais há muitos países europeus que não vão assiná-lo. Ocorreu uma reunião com a [Ursula Gertrud] von der Leven, porém, Itália e França manifestaram restrições ao acordo. Sobretudo porque o veem como uma ameaça à agricultura desses países. Dificilmente esse acordo será encaminhado da maneira que foi formulado inicialmente e será discutido em um momento em que haverá recrudescimento do protecionismo, particularmente nos EUA, mas também na Europa. A própria von der Leyen, que celebrou o acordo, disse que não poderia admitir o ingresso dos carros elétricos chineses na Europa a um preço tão baixo. Então, talvez o acordo não avance por causa das circunstâncias globais.

O acordo com a China, por outro lado, pode ter coisas interessantes porque os chineses estão em uma fase de expansão muito peculiar, com um avanço na África impressionante, com construção de redes ferroviárias etc. Não posso fazer nenhuma afirmação a priori sobre o acordo com o Brasil, porque precisa desdobrar os pontos, mas, provavelmente, os chineses vão caminhar dando um pontapé inicial com uma iniciativa monetária financeira.

IHU – Quais são as perspectivas socioeconômicas para o país no próximo ano?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Não vai ser uma caminhada tranquila, não. Na forma como estão articuladas as relações de poder, a minha impressão é que será difícil o governo ultrapassar as resistência e convicções que estão incrustadas nos mercados. Não precisa ser “adivinhão”, como se dizia no meu tempo, para saber que isso não vai terminar agora. Essa visão está incrustada na sociedade brasileira e na relação entre as camadas mais abastadas. Também tem uma rejeição muito grande ao governo Lula por parte dos mercados, como mencionei. Uma avaliação do futuro está muito sujeita a trepidações.

 

Desafios cotidianos

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Todos sabemos que vivemos numa sociedade marcada por grandes transformações estruturais, que impactam fortemente sobre todos os grupos sociais, exigindo dos seres humanos uma constante atualização, levando empresas e sistemas produtivos a se reinventarem cotidianamente como forma de manter seus espaços e ampliar sua atuação no mercado.

Vivemos numa sociedade marcada pela intensa competição e pela concorrência, onde os Estados Nacionais estão buscando proteger seus setores produtivos, aumentando seus subsídios fiscais e financeiros, criando barreiras comerciais para proteger as suas empresas nacionais, garantindo e mantendo o emprego de seus trabalhadores, incrementando a renda da população, movimentando as vendas internas, dinamizando a arrecadação e consolidando bons indicadores econômicos e sociais.

Vivemos numa sociedade marcada por grandes transformações no mundo do trabalho, o crescimento da tecnologia alterou fortemente as relações entre capital e trabalho, o surgimento do mundo digital gerou novos espaços de competição e trouxe novos desafios para os agentes econômicos, exigindo das empresas uma atualização constante, investimentos crescentes e a busca acelerada por profissionais altamente qualificados.

Vivemos numa sociedade onde as transformações tecnológicas estão em crescimento acelerado, gerando desemprego crescente, aumentando a informalidade, destruindo postos de trabalho e um incremento da desesperança da população, neste cenário, percebemos o aumento dos desequilíbrios afetivos e emocionais, onde o trabalho se transformou num ambiente de angústias, lamúrias e sofrimentos, além de percebermos o aumento, em escala global, de transtornos ligados ao mundo do trabalho, da ansiedade, da depressão e do suicídio.

Vivemos num momento de grandes transformações no meio ambiente, neste cenário, precisamos buscar novas fontes de energias alternativas e novas formas de organização produtiva, sabemos que o modelo econômico dominante e fortemente baseado no petróleo, no extrativismo e no gás natural estão com dias contados, neste momento, as nações estão se movimentando internacionalmente para rever estruturas produtivas, consolidar parcerias estratégicas e construir uma nova governança global, mais inclusiva, mais solidária, mais autônoma e mais soberana.

Vivemos numa sociedade marcada pela informação, pelo conhecimento e pelas grandes transformações tecnológicas, neste cenário, algumas nações ganharam espaço neste novo ambiente de concorrência global, nações que nos anos 1970 eram pobres e miseráveis e que, politicamente, conseguiram construir um consenso interno em prol do desenvolvimento econômico, estimulando fortes investimentos em capital humano, política industrial ativa, exigência de transferência de tecnologia, com cobranças constantes de desempenho exportador para a conquista de novos mercados. O exemplo claro são as nações asiáticas, que atualmente colhem frutos positivos, com melhoras substanciais em suas estruturas econômicas, estimulando seus setores produtivos para a competição global, além de maciços investimentos em pesquisa científica, educação e tecnologia.

O mundo está passando por grandes transformações em todas as áreas e setores, nestas mudanças e reviravoltas, estamos percebendo o surgimento de novos atores econômicos e produtivos, além de novas hegemonias geopolíticas, diante disso, faz-se necessário, que países com o potencial do Brasil, deveriam aprender com exemplos exitosos e valorosos, industrializando suas estruturas produtivas, agregando valor as exportações nacionais, investindo em capital humano, evitando polarizações políticas degradantes, gerenciando seu amplo potencial de energias alternativas, eliminando subsídios desnecessários, focando na melhoria das condições de vida da população e reduzindo os benefícios de poucos em detrimento da maioria da população.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

 

Por que o empregado agora é colaborador, por Sérgio Rodrigues

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Grande eufemismo corporativo do nosso tempo é aliado do desmonte de direitos

Sérgio Rodrigues, Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

Folha de São Paulo, 16/01/2025

A estreia da segunda temporada da magnífica série “Ruptura” (Apple TV), nesta sexta (17), nos dá a oportunidade de refletir sobre o mais bem-sucedido eufemismo corporativo do nosso tempo: “colaborador”.

Na comédia distópica dirigida por Ben Stiller, a poderosa Lumon, empresa-polvo de estética fascista, mantém um departamento em que empregados se submetem voluntariamente a um experimento radical de alienação do trabalho.

Por meio do implante de um chip cerebral, têm suas memórias bifurcadas: fora da empresa, nada sabem do que fazem lá dentro; quando estão dentro, ignoram a vida que levam fora. São os colaboradores perfeitos.

No mundo em que o chip da Lumon ainda não existe (que se saiba), cabe à linguagem o mesmo trabalho. Em sites uníssonos, a velha turma do RH —também renomeado para “gestão de pessoas”— explica que a palavra empregado tornou-se arcaica. Empresas modernas contratam colaboradores.

Um parêntese: a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) continua a chamar de empregado quem, não detendo meios de produção, trabalha em troca de salário. Claro que para os gurus do colaboracionismo, interessados em sucatear a CLT, isso só atesta a beleza de sua novilíngua.

Cito um desses manuais: “Enquanto o empregado, em dias atuais, chega na empresa, faz o seu trabalho e vai embora, o colaborador tem a consciência da sua importância na organização, possui uma visão sistêmica do seu setor ou da empresa como um todo, incluindo suas metas, objetivos e não mede esforços para ‘colaborar’ com isso”.

Ênfase em “não mede esforços”! Não se chegou de um dia para o outro a esse nível de cinismo no mascaramento da natureza dos contratos de trabalho firmados entre partes desiguais —patrões de um lado, empregados do outro.

O percurso linguístico rumo ao colaborador incluiu um estágio em que se favoreceu a palavra funcionário (por tradição mais usada para o empregado do setor público) e até desvios burlescos como o de chamar empregadas domésticas  de secretárias.

Também é parte desse fenômeno a onda de eufemização que varreu o mundo de meio século para cá — puxada, nesse caso, por setores progressistas da sociedade.

Hoje em dia, a menos que você seja um ogro de extrema direita, é bem difícil contestar a ideia de que acolchoar os atritos da realidade com palavras bonitas —substituindo “mendigo” por “pessoa em situação de rua”, por exemplo— melhora a vida das pessoas. Mesmo que elas continuem sem ter onde morar.

O eufemismo pode ser um aliado do processo civilizatório, como prova a sacada brilhante do primeiro hominídeo que anunciou que iria “dar um pulo ali na moita”. Pode também —o que talvez seja mais frequente— ser pura embromação. É preciso examinar caso a caso.

O da atual consagração de colaborador como sinônimo preferível de empregado está claramente a serviço do desmonte de um aparato histórico de proteção dos direitos dos trabalhadores.

Ainda melhor do que ser colaborador, claro, é dar dinheiro para um coach e virar “empreendedor individual”. Mas esse chip os laboratórios da Lumon ainda estão aperfeiçoando. Deve ficar para a terceira temporada.

 

O que virá com Donald Trump, por Maria Hermínia Tavares.

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A volta ao governo do populista de extrema direita marca o início de um novo e longo ciclo político

Maria Hermínia Tavares, Professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, é pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Folha de São Paulo, 16/01/2025

Os professores estrangeiros contratados por Harvard receberam carta da administração sugerindo que, se tivessem passado os feriados de fim do ano no exterior, tratassem de voltar antes de 20 de janeiro. A influente universidade, considerada a melhor do mundo, teme as medidas anti-imigração prometidas por Donald Trump que, nessa data, assumirá a Casa Branca.

Nos Estados Unidos —e não só ali—, os especialistas especulam como será o segundo mandato que as urnas entregaram ao republicano. Em especial, o que se pergunta é se ele terá musculatura política suficiente para levar a cabo suas extremadas promessas de campanha depois de uma acachapante vitória eleitoral que lhe deu de uma só tacada a Presidência e o controle das duas Casas Legislativas.

Some-se a isso uma Suprema Corte de maioria reacionária para justificar os prognósticos de que muitos dos freios e contrapesos institucionais à concentração de poder no governo federal —típicos da democracia legada pelos país fundadores – bastem para limitar os impulsos autocráticos desse vocacionado manda-chuva.

A questão não interessa apenas aos yankees, nem se limita à profundidade das mudanças previsíveis nas instituições domésticas e nas políticas públicas, com a passagem do governo federal dos democratas para os republicanos convertidos ao radicalismo de direita.

O cientista político europeu Ivan Krastev entrevistado no podcast “The Good Fight” (A Boa Briga) por Yascha Mounk, seu colega igualmente respeitado, argumentou que a volta ao governo do populista de extrema direita marca um ponto de virada e o início de um novo ciclo político: a Era Trump. Trata-se de mutação nas políticas domésticas e na atuação internacional de Washington, tão profunda e notável como as que caracterizaram a Era Roosevelt ou a Era Reagan, e cujas marcas se prolongaram muito além dos mandatos do democrata (1933-1945) e do republicano (1981-1989).

No plano externo, para além das bravatas e da retórica intimidatória do futuro presidente —ao ver de muitos, bizarra estratégia a fim de extrair benefícios de aliados ou adversários—, cabe perguntar quais poderão ser os efeitos de uma postura mais agressiva e isolacionista e menos comprometida com soluções multilaterais, para a chamada ordem internacional liberal. Esta diz respeito aos arranjos formais e informais que surgiram ao final da Segunda Guerra, organizando as relações entre Estados do ponto de vista dos fluxos econômicos e da segurança, e de acordo com princípios que privilegiavam a negociação em vez da força bruta.

Seus pilares, como se sabe, foram as instituições de Bretton Woods — FMI; Banco Mundial; GATT, que mais tarde daria origem à OMC (Organização Mundial do Comércio); e a constelação de organizações e regimes que formaram o sistema ONU. Com o tempo, outros organismos a ele se juntaram.

Esse conjunto de regras, nem sempre equilibrado, nem consistentemente liberal, é produto do Ocidente democrático e teve nos Estados Unidos um fiador —embora às vezes reticente ou oportunista transgressor de suas normas. Difícil, porém, imaginar seu futuro se, na Era Trump, a América se dedicar a sabotá-lo.

 

Exploração do trabalho na era digital, por Fernando Nogueira da Costa

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 A Terra é Redonda, 12/01/2024

O trabalho digital e a automação reconfiguraram as relações capitalistas, mas o sistema, em última instância, ainda depende da exploração do trabalho humano, seja ele digital, manual ou intermediário

Karl Marx argumentava, talvez inadequadamente diante a evolução posterior do sistema capitalista, o trabalho improdutivo – contratado por capital improdutivo em atividades sem gerar mercadorias tangíveis e, em consequência, sem participar do processo de produção de mais-valia –, ao contrário do trabalho produtivo, não gerar riqueza real para a sociedade. Ele sim extrairia riqueza da “verdadeira” classe trabalhadora.

Ele via essa distinção como parte da exploração inerente ao sistema capitalista. Nele, a classe dominante se apropriaria do trabalho excedente dos trabalhadores produtivos por meio de diversas atividades consideradas improdutivas.

Naturalmente, veio à minha mente a seguinte questão: como se sustenta sua Teoria do Valor-Trabalho diante a 4ª. Revolução Tecnológica? Agora, os robôs, a automação e as plataformas não estão dando adeus ao proletariado industrial?

Para responder, Luiz Gonzaga Belluzzo, meu professor no mestrado da Unicamp, sugeriu-me reler os Grundrisse por meio do Apêndice 2, “Conhecimento, Tecnologia e o Intelecto Geral em seu Fragmento sobre Máquinas”, do livro Reading Marx in The Information Age. Explora a relevância das ideias de Marx na Era Digital.

O estudioso marxista Christian Fuchs auxilia os leitores a entenderem se a obra de Karl Marx é adequada à Era da informação. Para ele, o “Fragmento sobre Máquinas” antecipou o papel crucial do conhecimento, da ciência e da tecnologia na produção, particularmente na Era Digital, onde plataformas como Google, Facebook, YouTube etc. dependem do trabalho digital dos usuários.

O autor usa o conceito de Marx de trabalho produtivo, porque o trabalho dos usuários nessas plataformas, embora não assalariado, contribui para a acumulação de capital. Os usuários geram dados vendidos como mercadoria para anunciantes, tornando-se parte do trabalho produtivo na economia digital.

Christian Fuchs discute como os custos de transporte, incluindo o transporte de ideologias comercializadas através da mídia, são parte do processo de produção. A mídia comercial “transporta” ideologias para os consumidores, e nas mídias sociais, o trabalho dos usuários sustenta a entrega direcionada de anúncios.

Ele analisa a seção “Capital e o Desenvolvimento das Forças Produtivas da Sociedade” dos Grundrisse. Nesta seção, Marx descreve a tecnologia como capital constante fixo, representando o “intelecto geral” da sociedade. Teria, então, antecipado a importância crescente da ciência e do conhecimento na produção, mais tarde chamada de “revolução científica e tecnológica” da Era Digital.

Uma divisão internacional do trabalho digital envolve trabalhadores em diferentes partes do mundo. A produção de dispositivos digitais, a criação de conteúdo e a coleta de dados são parte dessa divisão internacional do trabalho digital.

Conclui os Grundrisse de Marx serem fundamentais para entender o trabalho digital e o capitalismo digital. Destaca o papel do trabalho do usuário na economia digital, o conceito de “intelecto geral” e a relevância da teoria do valor de Marx.

A questão de se a Teoria do valor-trabalho de Marx ainda se aplica na Era Digital, especialmente considerando o trabalho digital não remunerado por assalariamento, realizado por trabalhadores autônomos, é complexa e central para o debate sobre a obra marxista. Embora Christian Fuchs defenda a continuidade de sua relevância, a resposta não é um “sim” categórico. Há nuances nessa relação.

Esse autor argumenta o trabalho digital, mesmo não remunerado, ser produtivo no sentido marxista, pois contribui para a acumulação de capital por empresas como Facebook e Google. A criação de dados e conteúdos pelos usuários se torna uma mercadoria vendida a anunciantes, gerando valor e lucro para essas plataformas.

Isso o sugere a lógica da exploração do trabalho como fonte de valor continuar operante, mesmo em contextos digitais e com formas de trabalho não tradicionais. Apesar disso, o próprio autor reconhece a relevância do debate em torno da validade da teoria do valor-trabalho na era digital, pois autores com argumentos racionais questionam sua aplicabilidade.

Entre eles, está a dificuldade de mensuração do valor em atividades imateriais e a crescente importância do trabalho cooperativo, de natureza colaborativa, e do conhecimento social. Problematizam a centralidade do tempo de trabalho individual como medida de valor. Essa contraposição destaca a necessidade de um debate aprofundado sobre como (e se) a teoria do valor-trabalho é possível de ser adaptada ou reinterpretada para abarcar as complexidades do trabalho digital.

O conceito de trabalho imaterial tem sido alvo de críticas especialmente por adeptos da tradição marxista. Uma das principais críticas reside na acusação desse conceito incorrer em um idealismo filosófico.

Opondo-se a uma ontologia dualista de separação do mundo em substâncias material e imaterial, os críticos defendem todo trabalho, incluindo o digital, possuir uma base material ao depender de corpos, infraestruturas físicas e consumo de energia. A ênfase na imaterialidade obscureceria a materialidade do trabalho e das relações de produção.

Outra crítica aponta para o risco de determinismo tecnológico presente na noção de trabalho imaterial. Ao enfatizar a importância do intelecto geral e da tecnologia, o conceito levaria a uma visão com superestimativa do papel das forças produtivas na superação do capitalismo com uma re-evolução sistêmica e negligenciaria a importância da ação política consciente e das lutas sociais.

A crítica marxista dogmática defende a transição utópica para o comunismo não ser um resultado automático do desenvolvimento tecnológico, mas sim exigir a organização e a luta dos trabalhadores. Além disso, os marxistas criticam a noção de trabalho imaterial por se concentrar em trabalhadores privilegiados do setor de alta tecnologia e ignorar a exploração de trabalhadores em condições precárias, como trabalhadores domésticos e até mesmo trabalhadores escravizados.

Imaginam a revolução vir da superexploração ao invés da organização política. A crítica visa ampliar a compreensão do trabalho na Era Digital para além de uma perspectiva restrita aos países desenvolvidos e ao trabalho intelectualizado.

A questão inicial era se a lei do valor se torna inaplicável em face do trabalho imaterial. Os marxistas dizem a dificuldade em mensurar o valor do trabalho imaterial não implicar na sua inexistência ou irrelevância. A lógica da exploração, da extração de valor a partir do trabalho, permanece operante, mesmo quando os mecanismos de mensuração precisam ser repensados.

Christian Fuchs reconhece a importância dessas críticas. Ele defende uma concepção materialista do trabalho cultural e digital, capaz de reconhecer a necessidade de infraestruturas e de trabalho físico, a exploração presente em diferentes setores da produção digital e a importância da luta política para a superação da exploração.

A proposta de Christian Fuchs busca integrar as dimensões materiais e imateriais do trabalho na Era Digital, sem negligenciar as relações de poder e exploração por ainda permearem a produção e a circulação de informação. No entanto, não escapa da crítica de haver determinismo histórico na obra de Marx.

O determinismo aparece por um argumento de tipo negativo – no proletariado se concentra a máxima alienação, miséria e degradação. Portanto, fazer a revolução seria a única saída possível, para quem não tem nada a perder. É o caso hoje?

Mas aparece também por um argumento de tipo positivo. Apenas o proletariado era, para Marx, inteiramente ligado à organização da produção moderna. Portanto, era o único organizado para iniciar uma possível sociedade futura. Sem sindicatos?

Afinal, não houve o “adeus ao proletariado” nas complexas relações entre trabalho, tecnologia e capital no século XXI?

A ideia do “adeus ao proletariado”, popularizada por André Gorz, refere-se à tese de as transformações tecnológicas, especialmente a automação e a digitalização, reduzirem ou eliminarem o papel central da classe trabalhadora (proletariado) na produção capitalista. Contudo, no século XXI, a análise das relações entre trabalho digital, tecnologia e capital revela esse “adeus” ainda não ter ocorrido plenamente. O proletariado não desapareceu, mas passou por transformações profundas.

O trabalho digital e a automação reconfiguraram as relações capitalistas, mas o sistema, em última instância, ainda depende da exploração do trabalho humano, seja ele digital, manual ou intermediário. Quem viver verá até quando…

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP).

 

Democracia em disputa, por Lara Mesquita

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Certificação de Trump, posse de Maduro e atos do 8 de janeiro remetem a ameaças de forças retrógradas

Folha de São Paulo, 13/01/2025

Lara Mesquita, É professora na Escola de Economia de São Paulo e pesquisadora do FGV CEPESP. Doutora em ciência política pelo IESP-UERJ

Adam Przeworski, em artigo intitulado “Quem decide o que é democrático?”, discute o conceito de democracia. Em resumo, existem dois grupos: os minimalistas, com abordagem mais procedimental, definem a democracia como um regime em que os cidadãos são livres para escolher e remover governos livremente; e os maximalistas, que a veem como um método para realizar certos valores extrínsecos que consideram desejáveis.

A questão colocada pelo autor é que, enquanto a definição minimalista possa parecer insuficiente para muitos, permite a convivência com forças retrógradas e que até defendam o fim da democracia, os maximalistas não conseguem chegar a um consenso sobre quais são os valores essenciais da vida democrática. Não existe uma vontade geral que contemple a todos, não podemos ser reduzidos a um interesse singular: somos muitos e diversos, com valores e prioridades diferentes.

Em uma vida política democrática, aceitamos as derrotas ou que os valores dos grupos que estão nos governando sejam diferentes dos nossos porque os governos são passageiros. Como destaca Przeworski, “as derrotas são sempre temporárias”, apenas até a próxima eleição.

As oposições aos governos retrógrados e antidemocráticos precisam se unir para serem bem-sucedidas. Isso só é possível na medida em que considerem o método democrático eficiente para processar os conflitos sobre os valores que a democracia deve perseguir.

Apenas quando os brasileiros entenderam a magnitude da ameaça representada pela reeleição de Jair Bolsonaro e se uniram em torno da candidatura de Lula foi possível superar o retrocesso. A chapa Lula-Alckimin e os apoios de Tebet e Marina no segundo turno exemplificam essa aliança pragmática. Já na Polônia, em 2023, forças políticas diversas deixaram de lado temas polêmicos, como a descriminalização do aborto, para formar uma coalizão capaz de enfrentar o PiS.

O debate sobre a democracia e a importância de defendê-la frente às ameaças de forças retrógradas e antidemocráticas parecem especialmente relevantes neste início de 2025. Três eventos significativos remetem a esse tema.

A certificação da vitória eleitoral de Donald Trump ocorreu pacificamente e sem intercorrências, um contraste marcante com o que aconteceu quatro anos antes. Kamala Harris, adversária de Trump na disputa de 2024 e atual vice-presidente, presidiu a sessão do Congresso que formalizou a certificação de seu adversário.

Os atos que marcaram os dois anos dos atentados de 8 de janeiro, quando Congresso, STF e Palácio do Planalto foram invadidos e vandalizados por simpatizantes de Jair Bolsonaro inconformados com sua derrota eleitoral, foram marcados por um esvaziamento político preocupante. Os presidentes da Câmara, do Senado e do STF não estiveram presentes, o que arrisca reduzir uma celebração que deveria ser de todas as forças democráticas do país a um marco apenas da esquerda.

Por fim, a posse de Nicolás Maduro na Venezuela ocorreu após um processo eleitoral marcado por irregularidades e pela ausência das atas que comprovassem a autenticidade da apuração.

Esses eventos reforçam a relevância do debate sobre o que é democrático e sobre o papel das alianças políticas para salvaguardar a democracia em tempos de incertezas.

 

Os riscos da ditadura da liberdade, por Carol Tilkian.

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Decisão da Meta atravessa nossos votos de amor e paz para 2025

Carol Tilkian, É psicanalista, pesquisadora de relacionamentos e escritora. Fundadora do podcast e do canal Amores Possíveis e colunista da CBN

Folha de São Paulo, 13/01/2025

Mal tivemos tempo de digerir os votos de amor e paz para 2025 e já somos atravessados por mudanças coletivas que nos presenteiam com um cavalo de Troia. Sob a justificativa de priorizar a liberdade de expressão, Zuckerberg anunciou que a Meta encerrará programas de checagem de fatos e reduzirá filtros para conteúdos sobre identidade de gênero, xenofobia e misoginia. Embora a decisão tenha sido tomada nos EUA, ela reverbera globalmente entre os mais de 6 bilhões de usuários de Instagram e Facebook. O resultado? Uma liberdade que embala discurso de ódio e polarização.

Vivemos a era da “ditadura da liberdade”. Percebo na clínica e na sociedade um aumento de pessoas angustiadas, solitárias e perdidas. Somos, segundo a OMS, a população mais ansiosa do mundo e a mais deprimida da América Latina. Nesse contexto, a vivência do desamparo estrutural apontado por Freud se dá de forma aguda. Mas, em vez de encararmos nossas faltas, buscamos o colo das “grandes mães digitais” —grupos que pensam como nós, oferecem soluções simplistas e apontam o outro como causa de todo mal. Direcionamos nosso mal-estar à civilização, achando que estamos nos defendendo, mas estamos definhando coletivamente.

No radicalismo e nas fake news – compartilhadas 70% mais que as verdadeiras – encontramos validação imediata, que nos protege da angústia e incerteza. Essa lógica reforça um mundo dividido entre o absolutamente bom e o absolutamente mau, como descreveu Melanie Klein na posição esquizoparanoide. Julgamos, punimos e banalizamos diagnósticos, sustentados pela crença de que “o inferno são os outros”, como dizia Sartre. Nunca falamos tanto em mães narcisistas, parceiros tóxicos e chefes obsessivos. Livres para emitir opiniões ao mundo, eliminamos ambivalências e criamos guerras pessoais que parecem nossa única defesa. Será?

“Faça amor, não faça guerra”, lema dos anos 60, soa utópico hoje. Mas talvez lutar por uma “democracia do afeto” seja revolucionário. Antes de vilanizar o namorado, a amiga ou a mãe, se dê o tempo para um diálogo construtivo. Em vez de julgar e punir pelo “eu não faria assim”, já tentou compartilhar como se sente, o que é importante para você, e ouvir o outro com abertura genuína? Se discursos de ódio nascem do desejo de pertencimento, o amor precisa despertar em nós o desejo de compreender.

A alteridade é parte constitutiva da experiência humana assim como a falta. Precisamos voltar a desenvolver formas mais saudáveis de lidar com elas. Como diz Winnicott, é no espaço potencial —entre o eu e o outro— que florescem a criatividade e a verdadeira liberdade. Esse é o lugar do diálogo, onde menos certezas e mais dúvidas, menos ódio e mais curiosidade podem abrir caminho para uma convivência mais humana.