Europa Ocidental à deriva, por Luiz Carlos Bresser-Pereira.

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Semiestagnação e ameaça do nacional populismo avançam onde a forma de capitalismo é a mais avançada

Por Luiz Carlos Bresser-Pereira Valor, 28/06/2024

Nas eleições recentes para o Parlamento Europeu, a direita radical fez novos avanços. Ao contrário do que se previa, não foi uma grande vitória, mas fez estragos nos dois países centrais da zona do euro, a França e a Alemanha. Já nos Estados Unidos, essa direita já esteve no poder e poderá voltar a ele no final deste ano. Não quero, porém, discutir esse país, mas sim a Europa Ocidental. Meu argumento é que o capitalismo do mundo rico está em crise – uma crise mais política do que econômica – e esta crise se vê mais claramente no Europa Ocidental.

Minha impressão é que esta região está à deriva. Seus dirigentes não sabem que rumo tomar. No pós-guerra, os europeus ocidentais construíram o capitalismo mais avançado de que temos notícia. Um capitalismo social-democrático. Em 1990 seu PIB per capita era quase igual ao dos Estados Unidos, enquanto a distribuição de renda era (e continua a ser) substancialmente melhor, o mesmo valendo para a qualidade de vida. Mas, desde então, a Europa Ocidental vem crescendo 50% menos do que os Estados Unidos. Entre 1990 e 2023 o PIB per capita cresceu 66% nos Estados Unidos contra apenas 48% na Europa Ocidental. Se considerarmos um período mais recente, de 2010 e 2023, as taxas médias de crescimento do PIB foram de 2,1% nos Estados Unidos contra 1,4% na Europa Ocidental.

No plano político interno, a Europa Ocidental parece melhor do que os Estados Unidos. A crise política se expressa em uma polarização sem precedentes nos Estados Unidos, onde o Partido Republicano deixou de ser uma legenda simplesmente conservadora para ser um partido da direita radical – um partido nacional-populista. Eu prefiro não falar em extrema direita, porque o nacional-populismo de Trump, ainda que antidemocrático, não pretende acabar com a democracia porque é dela que o populismo vive.

Há duas causas para a polarização e para a confusão que dela deriva: a imigração e a importação de bens dos países em desenvolvimento. Elas implicam redução dos salários, senão desemprego ou piora da qualidade do emprego nos países ricos A polarização é uma doença social, já que uma boa sociedade é uma sociedade coesa, na qual existem conflitos de classe e de grupos, mas em um quadro social no qual existem objetivos comuns e os contendores se respeitam. Há duas causas diretas para essa polarização e para a confusão que dela deriva: uma é a imigração, a outra é a importação de bens dos países em desenvolvimento, principalmente da China. As duas implicam redução dos salários, senão desemprego ou piora da qualidade do emprego para os trabalhadores dos países ricos. Uma questão para a qual os neoliberais não têm resposta, porque defendem a imigração e rejeitam o uso de tarifas para proteger a produção nacional, nem tem a esquerda que, por uma questão de direitos humanos, não se dispõe a restringir duramente a imigração.

Temos também duas causas indiretas. Nos Estados Unidos, a forte concentração de renda que marcou a era neoliberal (1980-2020), na Europa Ocidental, o baixo crescimento. E uma terceira, a China, cujo PIB, em termos de paridade do poder de compra, já é 25% maior dos que os Estados Unidos, e cujo PIB per capita no período 1990 a 2023 foi de 6,7%! Ou seja, uma China que cresce três vezes mais rápido que os Estados Unidos, e quase cinco vezes mais rápido do que a Europa Ocidental, não obstante sua taxa de crescimento tenha caído desde a pandemia.

Para a concentração de renda, que foi o principal responsável por esse aumento da desigualdade, a centro-esquerda tem soluções na linha da social-democracia, enquanto o neoliberalismo de centro-direita não as tem. Já para o baixo crescimento da Europa Ocidental não vejo soluções à vista.

Não posso deixar de comparar a Europa Ocidental com a América Latina, apesar da grande diferença de PIB per capita. Desde 2010, o crescimento médio nessa região foi de 0,8%. Por isso há tempos eu afirmo que a região está semiestagnada. Podemos dizer a mesma coisa da Europa Ocidental, com seus 1,4% de crescimento? Creio que sim.

Europa Ocidental e América Latina têm um ponto em comum. Ambas as regiões se subordinaram aos Estados Unidos – a Europa Ocidental, um pouco depois deste país e o Reino Unido terem feito a sua virada neoliberal em 1980, com Ronald Reagan e Margaret Thatcher; a América Latina, em torno de 1990, quando os países abriram suas economias. Ora, quando duas regiões se subordinam a um país mais poderoso, pagarão os custos dessa dependência.

As duas regiões adotaram o neoliberalismo, mas de maneira diferente. A Europa, com seus PhDs em economia, funcionários da Comissão Europeia, a América Latina, também com economistas PhDs; todos obtidos em universidades onde se ensina a Teoria Econômica Neoclássica e a ortodoxia neoliberal. Em consequência, a política econômica, nos países dessas duas regiões, é 100% neoliberal e o crescimento resultante é precário.

Já os Estados Unidos não se deixam dominar pela ortodoxia neoliberal, ainda que lá esteja a maioria dos departamentos ortodoxos de economia. O controle continua com os políticos, que são mais pragmáticos, e veem sempre como necessário um certo grau de intervenção do Estado na economia. São políticos quase desenvolvimentistas, senão estritamente desenvolvimentistas conservadores, como é o caso de Trump e Biden. Repete-se, assim, a velho princípio: “Faça o que eu digo, não o que eu faço”.

Voltando à Europa Ocidental, ela está pateticamente subordinada aos Estados Unidos. Dominique de Villepin, o notável ministro das Relações Exteriores da França durante a Guerra do Iraque, em artigo no último número de Le Monde Diplomatique (maio 2024), escreve sobre uma Europa ameaçada que não consegue afirmar sua soberania territorial, sua soberania tecnológica e “sua soberania econômica ameaçada pelo impulso do protecionismo e do planejamento industrial que os Estados Unidos estão pragmaticamente perseguindo com Trump e agora Biden”.

Sim, a Europa está aliada aos Estados Unidos, mas vale a pena uma aliança com um sócio maior?

Luiz Carlos Bresser-Pereira, ex-ministro da Fazenda, é professor emérito da FGV.

Oriente Médio está à beira de uma guerra aberta regional, por Hussein Kalout.

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Israel e seus adversários romperam os limites que regulavam até então a rivalidade

Hussein Kalout, Cientista político, professor de relações internacionais e pesquisador na Universidade Harvard; ex-secretário especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2017-2018, governo Temer).

 Folha de São Paulo, 06/10/2024

[RESUMO] Recente escalada do conflito iniciado há um ano entre Israel e Hamas, com Irã lançando ataque maciço com mísseis contra o primeiro, expõe mudanças profundas nas relações de força no Oriente Médio e gera apreensão sobre os próximos passos na região. Estratégia do governo Netanyahu levou a um isolamento diplomático de seu país sem precedentes, assim como arranhou a imagem de potência bélica inconteste sobre seus vizinhos. Por sua vez, Irã e o Eixo da Resistência já não temem mais um conflito aberto e direto com Israel.

Benjamin Netanyahu apostou na conflagração de uma guerra regional no Oriente Médio como principal rota de atuação estratégica de seu governo. O objetivo é redimensionar a arquitetura de segurança coletiva da região e prolongar a sua vida política como chefe de governo do Estado de Israel.

A conjuntura atual do Oriente Médio expõe mudanças profundas. Do ponto de vista político, militar ou estratégico, Israel e o Eixo da Resistência romperam os limites que regulavam até então essa rivalidade.

Apesar de haver visões distintas sobre o conceito do que seria uma “vitória” ou uma “derrota”, o embate entre ambos os lados ganhará contorno cada vez mais intrincado.  O confronto decisivo entre Irã e Israel começou. Ainda que ambos não assumem, os preparativos para a guerra regional já estão engatilhados.

Israel emprega ao máximo o seu poder de letalidade —contra alvos militares ou civis, indistintamente— e busca traduzir essa destruição em grande triunfo político com definitivas vitórias para preservar a sua imagem e para manter sob o seu domínio o controle dos acontecimentos.

Conquistas estratégicas importantes como, por exemplo, a possibilidade de paz com palestinos, libaneses e sírios não compõem o arcabouço desse repertório.

Por outro lado, o Eixo da Resistência interpreta o conceito de vitória sob prisma distinto. Para Teerã, são considerados triunfos claros a proteção de seu arsenal estratégico, o imobilismo da economia israelense, a permanente instabilidade securitária de Tel Aviv, o isolamento diplomático de Israel no mundo e a danificação da base industrial de defesa israelense.

A estratégia de Israel de eliminar a cadeia de comando e controle do Hezbollah, associada ao assassinato de lideranças políticas que compõem o topo da cadeia decisória do grupo e a demolição da infraestrutura humana e física do Líbano, em nada gera, na visão do Eixo da Resistência, transformações tangíveis na equação de força.

Portanto, essa estratégia é interpretada como ineficaz e categorizada no bojo de ações paliativas e contornáveis, já que não indicam ser suficientes para desagregar a força e a coesão do Eixo da Resistência como um todo.

Quando o Estado de Israel recorre a esse tipo de expediente não fica apenas revelada a sua vulnerabilidade, mas também a sua necessidade de autoafirmação como potência militar inconteste na região. Contudo, na visão do Irã e de seus aliados, o emprego desses meios não tende a restaurar o poder dissuasório dos israelenses.

Os últimos ataques de Irã à Israel, em retaliação às mortes de líderes do Hamas e do Hezbollah, demonstraram que Tel Aviv perdeu o domínio de como traçar novas regras de engajamento com seus inimigos. As retaliações iranianas mudaram a correlação de forças. A aposta na autocontenção iraniana e na reticência do emprego dissuasório de armas bélicas contra Israel revela que Netanyahu errou o cálculo da equação.

O Irã, que vinha evitando a deflagração de um confronto armado aberto, respondeu com dureza e impingiu danos reais ao complexo militar e securitário israelense. No fundo, os iranianos demonstram estar cada vez mais dispostos a enfrentar Israel —não importando a dimensão dos custos, pois sabem que a Rússia não deixará de subsidiá-los em armas.

Por sua vez, a invasão militar do Líbano por terra pode se provar uma péssima escolha por parte dos decisores políticos de Israel. A estratégia de empurrar as forças do Hezbollah ao norte do rio Litani vai por hora esbarrando na agressividade e na capacidade de resistência dos combatentes do grupo libanês.

O uso brutal da força por parte de Israel contra o Líbano também não provou ser o meio adequado para viabilizar o retorno dos deslocados israelenses para as suas casas ao norte do país.

Derrotado em todos os tabuleiros diplomáticos, Netanyahu e seu governo fazem Israel experimentar um isolamento internacional sem precedente. As iniciativas propostas por americanos, egípcios e cataris para a libertação dos reféns israelenses sequestrados pelo Hamas foram torpedeadas pelo próprio Netanyahu e o seu arco extremista de alianças políticas.

A proposta franco-americana de um cessar-fogo entre Israel e o Líbano, lançada às vésperas da última Assembleia Geral da ONU, em Nova York, também sofreu o mesmo destino.

No fundo, ao que parece, a palavra “diplomacia”, na gramática política do atual governo de Tel Aviv, nada mais é que sinônimo de guerra e destruição. É essa, pois, a imagem que o mundo possui hoje do país. O aniquilamento de Gaza e de sua população civil e o franco conflito contra o Líbano podem ter afastado todos os países árabes propensos a selar a paz definitiva com Israel.

O último ataque iraniano contra o território israelense revela a força, a ousadia e a disposição sem limites de Teerã. O discurso do líder suprema do Irã, o aiatolá Ali Khamenei, nesta sexta (4/10) não escamoteia mais o objetivo de Teerã de buscar o confronto aberto e direto com Israel.

O tom da fala não deixa dúvidas de que o que está porvir lançará uma sombra de insegurança sobre Israel que pode perdurar por um longo período. O tempo das humilhações políticas ou militares ao Irã e aos seus aliados já não se acomoda no âmbito da flexibilidade pragmática de Teerã.

Contudo, tanto o Irã como o Hezbollah parecem ainda não ter plena clareza do grau e da dimensão real do poder tecnológico e de inteligência de Israel. Ambos subestimaram a capacidade cibernética do país e a disposição de Tel Aviv de empregá-la a qualquer custo.

Na visão deles, sem apoio absoluto e dedicado engajamento dos EUA, Israel não possui os recursos necessários para vencer militarmente o Irã e seus aliados do Eixo da Resistência. A superioridade militar de Israel já não é mais absoluta —para seus inimigos, atualmente é segmentada e se dá essencialmente em três campos: cibernético, tecnológico e aéreo.

O cenário do momento sugere que, até o resultado da eleição presidencial nos EUA, o governo israelense irá tirar o máximo proveito do vácuo de poder em Washington para alcançar os seus pretendidos objetivos: segurança e estabilidade.

Sem o pesado apoio bélico dos americanos, Netanyahu não teria ido tão longe no tabuleiro regional médio-oriental.

Resta saber, por fim, quais são os próximos movimentos estratégicos do governo israelense: se irá amortizar a virulência dos ataques do Irã ou se a resposta será reciprocada. Na visão do Eixo da Resistência, a guerra regional já foi declarada.

 

O mal cotidiano, por Andréa Pimenta Sizenando Matos

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Andréa Pimenta Sizenando Matos – A Terra é Redonda – 06/12/2023

Padecemos do mal-estar da civilização, há esperança, mas não para nós, pois, do ponto de vista da psicanálise, não somos programados para a felicidade

O fenômeno do mal pode ser abordado sob diferentes perspectivas; através do senso comum, dos mitos, da religião, das várias ciências, etc. Interessa-me aborda-lo à luz da psicanálise para que se revele o surgimento de novas formas de apresentação do mal-estar na cultura e, como cultura, ontem e hoje.

Em O mal estar na civilização, Freud diz: “Eis que, em meu entender, a questão decisiva para o destino da espécie humana: se o seu desenvolvimento cultural conseguirá, e em caso afirmativo até que ponto, dominar a perturbação da convivência que provem da pulsão humana de agressão e de auto-aniquilamento. A nossa época merece talvez um interesse particular justamente neste assunto. Hoje, os seres humanos levaram tão longe o seu domínio sobre as forças da natureza que com o seu auxílio lhe será fácil exterminar-se uns aos outros, até o ultimo homem. Eles sabem-no, daí boa parte da inquietação contemporânea, da sua felicidade, do seu espirito angustiado. E agora podemos esperar que o outro dos dois poderes celestiais, o Eros eterno, faça um esforço para se consolidar na luta contra seu inimigo igualmente mortal.

Mas quem pode prever o desfecho?”

Será que a noção de banalidade do mal, forjada por Hannah Arendt na década de 1960, é suficiente para compreendermos as contradições da nossa sociedade? Freud nos auxilia no desenvolvimento desta noção para o conceito de sociopatologia da vida cotidiana, no texto citado.

O que esta em jogo no mal estar freudiano? Como Freud interpreta o processo civilizatório? A concepção de que o homem não é um ser pacificado portanto, encontra-se em constante conflito. Ele outorga a gênese do conflito à oposição entre as pulsões; Eros, pulsão de vida e Tánatos, pulsão de morte; luta ininterrupta no nosso mundo interno.

A agressividade humana, como disposição, como representante do mal, não é algo que se apresenta, somente, de forma espetacular mas, cotidianamente, banalmente. Não é somente dirigida ao mundo externo, mas, a si mesmo, como atos auto destrutivos e, não provem somente das pulsões mas, também, de processos sociais (inquisição, escravidão, terrorismo).

A concepção de que estarmos inseridos em um ambiente hostil, inóspito, que traduz-se por uma luta continua entre a nossa natureza e a cultura, a civilização. A concepção de que a sociedade é criada às custas do recalcamento das pulsões ou outra direção possível e aceitável à suas satisfações.

Chegamos a um paradigma da psicanálise: somos indivíduos desabrigados, vivemos no mal-estar e carregamos dentro de nós um estranho. Aqui levanta-se o problema crucial da relação do ser humano com a lei, lei primordial, que marca a passagem, o salto, da natureza para a cultura.

Este é o modelo edípico, onde as relações da criança e seus pais representam a derradeira etapa de um progressivo e doloroso processo de alienação e separação. O Édipo nos conduz a superar a infância, isto é, nossa dependência à mãe e ao seu desejo, e à introjeção da lei, lei da cultura, representada pelo pai.

O Édipo é pedra angular da estrutura intrapsíquica e do processo civilizatório. As vicissitudes edípicas, quais sejam, alguma renúncia às pulsões, à onipotência do desejo, ao princípio do prazer em prol do princípio de realidade, faz-se sob a égide de um pacto de mão dupla, pacto edípico, pacto social.

Perdemos e ganhamos. Em troca da renúncia exigida temos o direito de receber um nome, uma filiação, um lugar na estrutura de parentesco, acesso à ordem simbólica, além de tudo o mais que nos permita desenvolver e viver. Assim, identificamo-nos com os valores da cultura, entramos no círculo de intercâmbio social e nos tornamos, de fato e de direito, sócios da sociedade humana.

O pacto primordial prepara e sustenta o segundo pacto e vice-versa. A má integração de um ou de outro pode gerar problemas, confirma ou infirma, um e outro, até a um ponto de ruptura.

É esta a chave psicanalítica para a compreensão da violência que dilacera o tecido social. O mal-estar apresenta-se pela violência, pela guerra civil crônica: violência urbana, doméstica, a luta individual de cada um. Apresenta-se pela guerra militar armada: Rússia versus Ucrânia, Israel versus Palestina, para citar apenas as que estão em pauta na atualidade.

Aqui, vale uma digressão. Esta lei é também entronizada pela sociedade. As sociedades modernas são baseadas em estruturas de poder. Todo poder é violento. Percebe-se, justamente, o elemento mítico que há na estrutura legal, jurídica. A instância jurídica é um pilar desta violência. O poder jurídico deve ter um braço forte para a execução das leis, inevitável e infelizmente. Vê-se a ambiguidade da lei: há os que estão acima da lei, são justamente os que determinam o que é a lei e, a esta posição, corresponde-se uma outra, oposta, os que são banidos da lei, não cobertos por ela, passíveis de serem mortos: indígenas, negros, pobres. Estes estão, definitivamente, desabrigados.

O que podemos diante do mal-estar? Apropriarmo-nos dele, dominá-lo, deslocá-lo é fundamental. Transformar o mal-estar pela via de um dispositivo que nos permita refletir criticamente sobre ele; alcançar um olhar irônico e crítico para que se revele a nossa posição sobre o nosso estar no mundo, na pós-modernidade.

Transformá-lo através de uma nova criação, sublime: o trabalho, a literatura, as artes, uma solução subjetiva, particular de cada um.

Trata-se de reunir um sistema de fragmentos em uma boa obra.

Este é um modo de resistência à violência que nos ronda no século XXI, e em todos os séculos passados.

Finalizo com uma “profecia” do escritor tcheco Franz Kafka: “Há esperança suficiente, para Deus, esperança infinita, mas não para nós; sentencia o escritor. Se o universo traz a agonia das situações que nos oprimem e não controlamos; traz o embate inútil com leis e acasos que nos escapam, absolutamente.”

Padecemos do mal-estar da civilização, há esperança, mas não para nós, pois, do ponto de vista da psicanálise, não somos programados para a felicidade. Há pouquíssimos momentos de felicidade, quando mudamos de um estado ruim para um melhor. Nosso estado normal é o de estar jogado no mal-estar. Mas vivemos de projetar esperanças, ela é a última que morre.

*Andréa Pimenta Sizenando Matos é psicanalista.

Proibição de celulares nas escolas, por Fernando Lionel Quiroga.

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Fernando Lionel Quiroga

A Terra é Redonda – 05/10/2024

 O que deve orientar a decisão não são tanto argumentos em favor ou contra as tecnologias, mas sobre os efeitos nocivos que elas têm produzido, cuja base científica é bastante expressiva a respeito

Políticas públicas sérias apoiam-se em fatos sociais, não em experiências locais, sejam elas exitosas ou não. O êxito e o fracasso, aliás, são sempre questões localizadas dentro de um contexto específico. Demandam reflexão e exercício de crítica, algo que se distancia da “febre histórica” e do entusiasmo que costuma acompanhar o fetiche da novidade.

O conceito de “fato social”, de Émile Durkheim, diz respeito aos modos de agir, pensar e sentir localizados fora do indivíduo, já que são impostos socialmente, de modo coercitivo, sobre eles. Daí a ingenuidade de esperar respostas individuais a tais problemas. Apoiar-se nelas implica não enxergar os sentidos sociais que orientam nossas trajetórias e determinam, parafraseando a formulação irônica de Pierre Bourdieu, nossa própria “escolha do destino”.

O anúncio recém-publicado pelo Ministério da Educação acerca do projeto de  lei que prevê a proibição dos aparelhos celulares nas escolas é um sinal de que seu uso, no ambiente escolar, tem se tornado mais problemático do que exitoso. É o que apontam diversos estudos em várias regiões do planeta, que vem regulamentando ou mesmo proibindo seu uso na escola, como França, Espanha, Grécia, Dinamarca, Finlândia, Holanda, Itália, Suíça etc.

Nestes estudos, de modo genérico, não faltam exemplos dos efeitos perniciosos que estes aparelhos causam no desenvolvimento intelectual de crianças e adolescentes. Citamos alguns: o cyberbullying, a nomofobia (abreviação de no mobile phone phobia) ou medo extremo de ficar sem acesso ao celular ou a serviços digitais, como internet e redes sociais, o aumento da ansiedade, a precarização do sono, a desinformação, a dessubjetivação, a desinformação, a esmagadora predominância do uso para entretenimento, o hikomori (termo japonês usado para descrever pessoas, geralmente jovens, que se isolam socialmente por longos períodos muitas vezes vivendo reclusos em seus quartos ou casas e evitando qualquer tipo de interação presencial com a sociedade), a desintegração da memória, a fadiga cognitiva, dentre outros.

Um belo livro, rico em fontes de estudos sérios acerca de cada um destes aspectos é o do neurocientista francês Michel Desmurget – A fábrica de cretinos digitais.

Mas há outro problema, central, a meu ver, que é o mais profundo de todos eles. O que o uso intensivo do celular tem produzido (uso intensivo, aqui, é o que costuma-se chamar de “novo normal”) e que tem se apresentado como fato social, é a perda da capacidade de atenção.

O que o frenesi do uso do smartphone e ecrãs (telas) de modo geral tem produzido como efeito colateral ao entretenimento ininterrupto, é a depauperação da capacidade de atenção. Para isto é fundamental a compreensão do que é que estamos perdendo em troca do magnetismo presente das telas. Segundo o filósofo alemão Christoph Türcke, a atenção seria o ponto fulcral da constituição do próprio fundamento da humanidade, do homo sapiens tal como o conhecemos, de um processo de aproximadamente 300 mil anos de evolução.

Segundo o filósofo, “nos primórdios da humanidade (a atenção) estava entre as coisas mais difíceis. Era algo que não existia ainda em parte alguma na natureza. Apenas coletivamente podia entrar em andamento: quando a repetição compulsiva (termo cunhado por Freud em Além do princípio de prazer), ritualizada do horror vivido se direcionava a algo mais elevado – a um destinatário comum. Sua imaginação foi equivalente tanto à inauguração do espaço mental quanto à constituição da atenção humana”.

Foi por meio da reprodução do horror (os rituais de sacrifício) pela própria imaginação como “mecanismo de legítima defesa” que o homem conseguiu controlar o horror natural. Por meio da produção de uma descarga capaz de produzir um refúgio da experiência em face do horror. Foi por meio da busca pela redenção, do alívio contra tais experiências produzidas pela natureza: ameaças naturais, tempestades, catástrofes, invasões de tribos inimigas, etc. que teria se dado à hominização. “Buscava-se a redenção, encontrou-se a cultura”, escreve Christoph Türcke. A atenção, portanto, não pode ficar restrita ao conjunto de disposições sociais como civismo, solidariedade e empatia.

A atenção diz respeito ao berço de toda cultura. Trata-se do ponto decisivo que nos permitiu, após milênios de evolução, chegar até as civilizações modernas. Interessante é a ideia que Christoph Türcke recupera de Malebranche sobre a atenção. Segundo este, a atenção seria uma “oração natural”. Decorre da atenção o desenvolvimento da imaginação. A imaginação nasce do tédio profundo, do ócio, da contemplação desinteressada. É a partir desse aparente vazio, desse espaço intersticial e amorfo que a imaginação encontra sua verdadeira vocação.

Ora, o que ocorre na atmosfera digital é a captura total desta função. E, finalmente, chegamos à intencionalidade política desta condição, cuja principal característica é a desintegração da mentalidade. A alma é o último recurso natural a ser explorado pela selvageria capitalista. Mas essa é a mesma história desde a colonização pela Companhia de Jesus, alguém poderia observar. Sim e não. A diferença daquele para o modelo atual de colonização neoliberal movida pelas forças de um oligopólio avassalador e apocalíptico é que, ao invés de operar pelo método da inculcação, o faz através de algo que aqui chamamos de uma “descompressão cognitiva” como resultado da lógica behaviorista subjacente aos artefatos digitais.

Observados estes pontos, ainda que de modo grosseiramente resumidos, constatamos que as tecnologias digitais ultrapassam de longe o significado de “ferramentas” quando incorporadas ao ambiente escolar. Todavia, ainda que elas o sejam, e é preciso admitir seu enorme potencial em favor do ensino nas mais variadas áreas do conhecimento, deve-se olhar também para seus efeitos mais nocivos, como o cyberbullying, a depauperação da ética, a concorrência desleal de atenção entre conteúdos da escola e o maravilhoso mundo das redes sociais, etc. É preciso mudar de perspectiva para a compreensão do que quer que seja a noção de ferramentas.

Herbert Marcuse, no livro Tecnologias, guerra e fascismo, reflete sobre o uso das tecnologias, especialmente por meio da propaganda nazista e de técnicas de instauração do medo coletivo como elementos-chave para a formação de uma “nova mentalidade alemã”. Elas (as tecnologias) são, portanto, ferramentas. Mas são esmagadoramente ferramentas à serviço do capital. Daí que sua incorporação à sala de aula e à escola deve-se precaver contra a ingenuidade de tratá-las como ferramentas neutras.

Por último, é em razão da ambiguidade inerente às tecnologias que o projeto de lei que está em curso tende à polêmica. O momento exige um debate de natureza essencialmente ética. Não se trata de localizar o aspecto nuclear quanto ao uso ou não de celulares no espaço escolar, justamente porque não há núcleo: a ambiguidade é sua principal característica.

Neste sentido, a mensagem histórica que o tema nos provoca a pensar diz respeito a uma decisão digna de um dos célebres diálogos socráticos. “Deve-se ou não banir o celular no ambiente escolar?” – é uma dessas questões implicadas no enfrentamento, de um lado, da febre histórica que promove a disseminação desenfreada de tecnologias digitais em tantos espaços da vida quanto for possível e, de outro, da ideologia embutida por meio de algoritmos nas plataformas digitais.

O que deve orientar a decisão não são tanto argumentos em favor ou contra as tecnologias, mas sobre os efeitos nocivos que elas têm produzido, cuja base científica é bastante expressiva a respeito. O peso da decisão sugere uma reflexão sobre qual dos pratos da balança mais tem cedido para, a partir daí, e mesmo que para o atual momento isso signifique o afastamento total destes aparelhos no espaço escolar, tome-se a decisão balizada pela ética e pela ciência, e sobretudo orientada para a garantia do próprio futuro das novas gerações.

*Fernando Lionel Quiroga é professor de Fundamentos da Educação na Universidade Estadual de Goiás (UEG).

Combater crime organizado exige mais democracia, não menos, por Sylvia Colombo

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Solução para o problema vai na contramão das alternativas setorizadas propostas por figuras como Milei e Bukele

Sylvia Colombo, Historiadora e jornalista especializada em América Latina, foi correspondente da Folha em Londres e em Buenos Aires, onde vive.

Folha de São Paulo, 06/10/2024

Não é de hoje que a expressão “crime organizado” circula nas campanhas eleitorais nacionais e regionais, impulsionando candidatos de extrema direita e propostas cada vez mais belicosas como soluções para o problema.

Na América Latina, a situação não é diferente, e vemos diversos políticos que colocam a democracia em risco ao prometer enfrentar o problema sem se importar com as consequências para ela. Exemplos disso são Nayib Bukele, em El Salvador, Javier Milei, na Argentina, e Daniel Noboa que, em alta de popularidade, desponta como o favorito para ser reeleito presidente do Equador nas eleições que ocorrerão no início do próximo ano.

Uma possível vitória de Donald Trump nos Estados Unidos em novembro reforçaria essa tendência, dando força a mais propostas como as que hoje encantam a ex-esquerdista Xiomara Castro, de Honduras, e a ministra argentina Patricia Bullrich. Ambas querem criar em seus países prisões de segurança máxima inspiradas no modelo de El Salvador.

Entretanto, quando permitimos, como mídia e sociedade, que o crime organizado ocupe uma caixinha isolada, separada de temas tradicionais como saúde, educação e até mesmo de problemas específicos como roubo de celulares, estamos tratando o problema de forma setorizada, sem enxergá-lo pelo que realmente é: um ator central nesses processos.

Essa foi a conclusão a que cheguei após ler o ensaio “How Organized Crime Threatens Latin America” (Como o Crime Organizado Ameaça a América Latina), de Javier Corrales, professor do Amherst College (em Amherst, Massachusetts), e Will Freeman, do Council on Foreign Relations, publicado na edição mais recente do Journal of Democracy, da Johns Hopkins University Press.

Ambos os acadêmicos nos lembram que, embora estejamos muito preocupados com figuras caricatas que surgem a cada eleição e atuam tanto dentro quanto fora do sistema, há um personagem muito mais perigoso, enraizado nas teias do poder, capaz de minar a democracia em tempo recorde. Quando isso acontecer, aquelas figuras serão apenas o rosto de uma destruição que compromete valores, ameaça os direitos humanos e civis e nos fará retroceder no tempo.

Para os autores, “os cartéis de drogas e seus chefes substituíram generais sedentos de poder, guerrilheiros marxistas e elites empresariais predatórias como as forças mais inimigas da democracia”.

Além disso, algumas organizações criminosas atualmente possuem inteligência e recursos muito maiores do que os atores políticos do passado e sabem interagir de outras formas com governos, não necessariamente tirando-os do poder, mas os manipulando de maneira habilidosa.

Os acadêmicos concluem: “Se as democracias da América Latina não conseguirem desenvolver meios para conter o poder do crime organizado, elas se verão corroídas de várias maneiras: grupos criminosos com influência sobre territórios intimidarão candidatos e protegerão outros; autoridades civis frustradas sentir-se-ão tentadas a conceder poder excessivo aos militares; presidentes de caráter autoritário adotarão políticas de combate ao crime que corroem as liberdades civis e a separação constitucional dos Poderes; as instituições do Estado continuarão a funcionar mal sob a influência do crime organizado, que corrompe e distorce”, dizem.

Apontar uma solução para essa questão não é simples, mas envolve os pilares do que entendemos como democracia. Diante de suas falhas, é preciso atuar com ainda mais democracia, criando mais organismos de transparência, renovando a independência entre os Poderes e envolvendo a sociedade numa democracia contínua e participativa.

 

 

A encruzilhada do desemprego juvenil, por Erik Chiconelli Gomes

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Ele é maior do que a média nacional, a informalidade é alta e 67% não possuem qualificação. Há desajustes profundos entre o sistema educacional e o mercado de trabalho. E o “empreendedorismo” não resolverá o problema: uma política robusta de primeiro emprego é necessária

Erik Chiconelli Gomes – OUTRAS PALAVRAS – 01/10/2024

O mercado de trabalho brasileiro tem apresentado uma dinâmica complexa nos últimos anos, com tendências aparentemente contraditórias que merecem uma análise aprofundada. Por um lado, observamos uma queda na taxa geral de desemprego, que atingiu 6,6% no trimestre encerrado em agosto de 2024, o menor patamar para esse período desde o início da série histórica da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) em 2012 (IBGE, 2024a, p. 3). Por outro lado, os dados revelam uma situação preocupante para os jovens entre 18 e 24 anos, cuja taxa de desemprego permanece significativamente acima da média nacional, em torno de 14% (IBGE, 2024b, p. 7).

Esta disparidade entre a situação geral do mercado de trabalho e a realidade enfrentada pelos jovens não é um fenômeno novo, mas sua persistência e intensidade demandam uma reflexão crítica sobre as estruturas socioeconômicas e as políticas públicas vigentes no país. Como argumenta Pochmann (2023, p. 45), “o desemprego juvenil é um sintoma de desajustes profundos no sistema educacional e no mercado de trabalho, refletindo a incapacidade da sociedade em promover uma transição suave e efetiva da escola para o mundo profissional”.

Para compreender a complexidade desse cenário, é necessário analisar não apenas os números absolutos, mas também os fatores históricos e sociológicos que contribuem para a manutenção dessa disparidade. A formação do mercado de trabalho brasileiro, marcada por um processo de industrialização tardio e dependente, criou estruturas que perpetuam desigualdades e dificultam a inserção dos jovens no mercado formal (Furtado, 2022, p. 112).

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) destaca que “a taxa de desemprego entre os jovens de 18 a 24 anos é historicamente maior do que a taxa geral, refletindo dificuldades estruturais de inserção desse grupo no mercado de trabalho” (IPEA, 2024, p. 23). Essa constatação nos leva a questionar se as políticas públicas e as estratégias de desenvolvimento econômico têm sido eficazes em abordar as necessidades específicas desse segmento populacional.

Um aspecto particularmente preocupante é o alto índice de demissões a pedido entre os jovens, que chega a 40% do total de desligamentos nessa faixa etária, contra 34% na média geral (DIEESE, 2024, p. 18). Esse dado pode indicar uma insatisfação generalizada com as condições de trabalho oferecidas, bem como uma possível inadequação entre as expectativas dos jovens e as oportunidades disponíveis no mercado.

A precarização do trabalho, fenômeno que se intensificou nas últimas décadas com a flexibilização das leis trabalhistas e o avanço da chamada “gig economy”, afeta de maneira desproporcional os trabalhadores mais jovens. Como observa Antunes (2023, p. 87), “a uberização do trabalho e a proliferação de contratos temporários e intermitentes atingem com maior intensidade os jovens, que se veem forçados a aceitar condições laborais instáveis e pouco protegidas”.

O descompasso entre a formação educacional e as demandas do mercado de trabalho é outro fator crucial para entender o desemprego juvenil. Apesar do aumento no nível de escolaridade da população brasileira nas últimas décadas, persiste uma lacuna significativa entre as habilidades desenvolvidas no sistema educacional e aquelas requeridas pelo setor produtivo (Schwartzman, 2022, p. 156).

A questão da qualificação profissional emerge como um ponto nevrálgico nesse debate. O IBGE (2024c, p. 12) aponta que “entre os jovens desempregados, 67% não possuem qualificação técnica específica para as vagas disponíveis no mercado”. Essa estatística revela uma falha sistêmica na preparação dos jovens para o mundo do trabalho, demandando uma reavaliação urgente das políticas educacionais e de formação profissional.

A dimensão regional do desemprego juvenil também merece atenção. As disparidades econômicas entre as diferentes regiões do Brasil se refletem nas oportunidades de trabalho para os jovens. Segundo o IPEA (2024, p. 45), “as regiões Norte e Nordeste apresentam taxas de desemprego juvenil significativamente maiores que as regiões Sul e Sudeste, evidenciando a necessidade de políticas regionalizadas de geração de emprego e renda”.

O fenômeno dos “nem-nem” – jovens que nem estudam nem trabalham – é outro aspecto preocupante dessa realidade. O IBGE (2024d, p. 8) estima que “cerca de 23% dos jovens entre 18 e 24 anos se encontram nessa situação, o que representa um desperdício de potencial humano e um risco para a coesão social”. Essa parcela da juventude, muitas vezes invisibilizada nas estatísticas oficiais de desemprego, demanda atenção especial das políticas públicas.

A questão de gênero adiciona uma camada extra de complexidade ao problema do desemprego juvenil. As mulheres jovens enfrentam taxas de desemprego consistentemente mais altas que seus pares masculinos, além de serem mais afetadas pela informalidade e pela precarização do trabalho (DIEESE, 2024, p. 27). Essa disparidade reflete padrões históricos de discriminação e segregação ocupacional que persistem no mercado de trabalho brasileiro.

O impacto da revolução tecnológica e da automação sobre o emprego juvenil é outro fator que não pode ser ignorado. Como observa Schwab (2023, p. 134), “a Quarta Revolução Industrial está reconfigurando rapidamente o panorama do trabalho, com implicações particularmente profundas para os trabalhadores mais jovens, que precisam se adaptar a um ambiente em constante mutação”.

A pandemia de Covid-19 exacerbou muitas das tendências preexistentes no mercado de trabalho, afetando de maneira desproporcional os jovens. O IPEA (2024, p. 56) destaca que “os setores econômicos mais impactados pelas medidas de distanciamento social, como serviços e comércio, são justamente aqueles que tradicionalmente empregam mais jovens”. A recuperação pós-pandemia tem se mostrado desigual, com os jovens enfrentando maiores dificuldades para se reinserirem no mercado.

A questão da informalidade é particularmente relevante para a análise do desemprego juvenil. O IBGE (2024e, p. 15) aponta que “40% dos jovens ocupados estão na informalidade, um percentual significativamente maior que a média geral da população”. Essa alta taxa de informalidade entre os jovens não apenas reflete a precariedade de suas condições de trabalho, mas também compromete sua proteção social e perspectivas de desenvolvimento profissional a longo prazo.

A interseccionalidade entre raça e desemprego juvenil revela outra faceta das desigualdades estruturais do mercado de trabalho brasileiro. Segundo o DIEESE (2024, p. 33), “jovens negros enfrentam taxas de desemprego 30% maiores que jovens brancos na mesma faixa etária”. Essa disparidade racial no acesso ao emprego é um reflexo direto do racismo estrutural que permeia a sociedade brasileira e demanda ações afirmativas específicas.

O empreendedorismo juvenil tem sido frequentemente apontado como uma possível solução para o desemprego nessa faixa etária. Contudo, como argumenta Nogueira (2023, p. 78), “a narrativa do empreendedorismo como panaceia para o desemprego juvenil muitas vezes mascara a precarização do trabalho e transfere a responsabilidade da geração de emprego do Estado e do setor produtivo para o indivíduo”.

A questão da rotatividade no emprego entre os jovens também merece atenção. O alto índice de demissões a pedido nessa faixa etária pode ser interpretado de diversas formas. Por um lado, pode indicar uma maior disposição dos jovens em buscar melhores oportunidades e condições de trabalho. Por outro, pode refletir uma insatisfação generalizada com as opções disponíveis no mercado e uma dificuldade em encontrar posições que atendam suas expectativas e aspirações profissionais.

As políticas públicas voltadas para o emprego juvenil têm se mostrado insuficientes para enfrentar a magnitude do problema. Programas como o Jovem Aprendiz e o ProJovem, embora bem-intencionados, têm alcance limitado e nem sempre conseguem proporcionar uma inserção duradoura no mercado de trabalho formal (IPEA, 2024, p. 67). É necessário repensar essas políticas, ampliando seu escopo e efetividade.

Neste contexto, é fundamental destacar o papel do Sistema Nacional de Emprego (SINE) como uma ferramenta essencial para combater o desemprego juvenil. O SINE, presente em praticamente todas as cidades brasileiras, oferece uma gama de serviços cruciais para a inserção dos jovens no mercado de trabalho. Além da divulgação de vagas e intermediação de mão-de-obra, o SINE também proporciona qualificação profissional, orientação profissional e fomento a atividades autônomas e empreendedoras. O fortalecimento e a modernização do SINE pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) representam um passo importante para melhorar as perspectivas de emprego para os jovens brasileiros.

A questão do primeiro emprego continua sendo um desafio significativo para os jovens brasileiros. A exigência de experiência prévia por parte dos empregadores cria um ciclo vicioso, no qual os jovens não conseguem obter experiência porque não são contratados, e não são contratados porque não têm experiência. Romper esse ciclo demanda uma mudança de mentalidade por parte do setor empresarial e políticas públicas que incentivem a contratação de jovens sem experiência.

O papel da educação superior na empregabilidade dos jovens é outro ponto que merece reflexão. Embora o acesso ao ensino superior tenha se expandido nas últimas décadas, isso não se traduziu automaticamente em melhores perspectivas de emprego para os jovens graduados. Como observa Neri (2023, p. 112), “há um descompasso entre a formação oferecida pelas universidades e as demandas do mercado de trabalho, resultando em um fenômeno de subemprego de jovens graduados”.

Em conclusão, o desemprego juvenil no Brasil é um problema multifacetado que reflete e perpetua desigualdades estruturais profundas na sociedade brasileira. Sua solução demanda uma abordagem holística que envolva não apenas políticas de geração de emprego, mas também reformas educacionais, combate às discriminações de gênero e raça, incentivos à inovação e ao empreendedorismo sustentável, e uma reconstrução do pacto social em torno do trabalho digno. Somente através de um esforço coordenado e de longo prazo, que envolva governo, setor privado, academia e sociedade civil, será possível criar um ambiente no qual os jovens brasileiros possam desenvolver plenamente seu potencial e contribuir para o desenvolvimento econômico e social do país.

Referências

Antunes, R. (2023). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo.

DIEESE. (2024). A situação do trabalho no Brasil na primeira metade da década de 2020. São Paulo: DIEESE.

Furtado, C. (2022). Formação econômica do Brasil: edição comemorativa 60 anos. São Paulo: Companhia das Letras.

IBGE. (2024a). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNAD Contínua. Rio de Janeiro: IBGE.

IBGE. (2024b). Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de Janeiro: IBGE.

IBGE. (2024c). Aspectos das relações de trabalho e sindicalização. Rio de Janeiro: IBGE.

IBGE. (2024d). Educação 2023. Rio de Janeiro: IBGE.

IBGE. (2024e). Economia Informal Urbana. Rio de Janeiro: IBGE.

IPEA. (2024). Mercado de Trabalho: conjuntura e análise. Brasília: IPEA.

Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). (2024). Rede SINE: Entenda o que é e como funciona.

Neri, M. (2023). Juventude e trabalho no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: FGV Social.

Nogueira, M. A. (2023). Educação, saber, produção em Marx e Engels. São Paulo: Cortez.

Pochmann, M. (2023). Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira. São Paulo: Boitempo.

Schwab, K. (2023). A Quarta Revolução Industrial. São Paulo: Edipro.

Schwartzman, S. (2022). Educação e trabalho no Brasil do século XXI. São Paulo: Editora Unesp.

 

Medo do crescimento

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O Brasil sempre se caracterizou por uma sociedade profundamente desigual, marcada por uma grande concentração de renda e de propriedade, salários muito baixos, educação deficiente, ausência de saneamento básico e condições de indignidade para uma parte significativa da população, ao mesmo tempo percebemos um país que se destaca por uma grande riqueza natural, clima favorável e com condições naturais positivas.

Ao analisar as condições naturais e geográficas do cenário global, o Brasil deve ser visto como uma das nações mais ricas de recursos naturais do cenário internacional, sempre fomos vistos como um fornecedor global de alimentos e de minérios que auxiliaram no desenvolvimento de outras nações. Desta forma, o Brasil sempre foi inserido no ambiente produtivo internacional, desde o descobrimento estamos inseridos no cenário mundial como uma nação produtora e exportadora de produtos primários de baixo valor agregado e como importadores de produtos manufaturados, cuja relação de troca, no comércio global, sempre foi desfavorável para o Brasil.

No século XX, a sociedade brasileira ganhou relevância no cenário internacional, fomos uma das economias que mais cresceram no século anterior, modificando toda a estrutura produtiva, angariando espaços interessantes no cenário internacional, passando de uma economia de industrialização intermediária e nos tornando uma das dez maiores economias do mundo, levando nações asiáticas a buscarem compreender os passos seguidos pelo Brasil, visto que nos anos 1970 o Brasil se transformou num exemplo claro de expansão e transformação econômica e produtiva.

Depois dos anos 1980 perdemos o dinamismo econômico e produtivo, a indústria nacional perdeu espaço e passamos a perder posições relevantes no comércio internacional. Com o início da abertura econômica dos anos 1990, as privatizações e a redução do papel do Estado na economia eram vistas como novos horizontes de modernidade. Conseguimos estabilizar a economia nacional mas, infelizmente se perderam na política cambial e elevamos demais as taxas de juros, criando uma categoria muito forte, dotada de grande poder econômico e político, os chamados rentistas e financistas, que passaram a controlar os sistemas econômico e financeiro, manipulando as taxas de juros e controlando os lucros, os dividendos e seus retornos imediatos, garantindo suas isenções fiscais e tributárias, que garantem seus ganhos elevados em detrimento de uma classe média empobrecida, desesperançada e marcadas por rancores e ressentimentos.

Depois de décadas de baixo crescimento econômico e produtivo, aumento do desemprego, redução dos salários reais, a fragilização da indústria nacional, além da venda de empresas nacionais ou o repasse dos ativos mais interessantes do Estado para seus apaniguados, percebemos alguns lampejos de recuperação econômica, recuperação dos salários, inflação controlada, superávits comerciais, Bolsas em ascensão e perspectivas de melhorias econômicas. Neste cenário, percebemos ecos de elevação das taxas de juros que impactam imediatamente sob o sistema econômico e postergam a melhora dos indicadores positivos da economia nacional, reduzindo a criação de empregos e limitando o incremento da renda dos trabalhadores e, ao mesmo tempo garantindo mais ganhos financeiros para poucos grupos, perpetuando uma desigualdade em ascensão e nos deixando claro quem são os verdadeiros donos do poder na sociedade brasileira.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Era da superficialidade

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Estamos vivendo numa sociedade muito interessante, assustadora e preocupante, as pessoas sonham com o enriquecimento, com o luxo e com o glamour, buscam a fama, sonham com os chamados realitys shows, a exposição exagerada e buscam virar celebridade, mesmo que seja por um curto período de tempo, desde que esse tempo seja suficiente para acumular recursos financeiros, neste cenário, os indivíduos acreditam piamente que vão conseguir acumular fortunas sem fazer esforços sistemáticos, sem estudos e sem qualificações cotidianas.

Antigamente as pessoas buscavam uma profissão, queriam estudar, lutavam para adquirir um diploma de um curso superior, buscavam uma qualificação profissional, conversavam com pessoas inteligentes, compravam livros e queriam fazer cursos de capacitação, mas agora, na contemporaneidade o que reina é o sonho da acumulação sem esforços individuais, cultivando a violência, indivíduos malhando o corpo em excesso, se expondo nas redes sociais, cultuando a superficialidade, acreditando que ao ler a “orelha” de um livro o faz especialista em qualquer assunto, difundindo a ignorância e o negacionismo e estimulando o individualismo que se espalham na sociedade, neste cenário, as pessoas se assustam com os rumos da sociedade mundial.

Ao folhear os livros do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, percebemos a importância de refletir sobre a sociedade contemporânea, compreender os desafios dos seres humanos e perceber que estamos num momento imprescindível para analisar os hiatos que crescem nos valores da comunidade.

Educação superior pública: precisamos de um novo caminho, por Piva, Passos e Wongtswski

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Não há forma de o país crescer sem ensino superior de qualidade, e o modelo atual esgotou-se

Horácio Lafer Piva, Pedro Passos e Pedro Wongtschowski, Empresários.

Folha de São Paulo, 01/09/2024

O Brasil tem 2.574 instituições de ensino superior, das quais 313 são públicas. Dentre as públicas, 134 são estaduais e 119 são instituições federais. Das instituições federais, 69 são universidades. Das instituições privadas, 91 são universidades –as demais são faculdades isoladas ou centros universitários.

Das cerca de 9 milhões de matrículas, 7 milhões estão em instituições privadas e 2 milhões em instituições públicas. Enquanto 8% dos estudantes de entidades públicas usam ensino a distância (EAD), nas privadas 51% dos alunos o utilizam.

O ensino superior no Brasil só atende a 18% dos jovens entre 18 e 24 anos, bem abaixo da meta de 33% estabelecida para 2024 pelo Plano Nacional de Educação, e as taxas de evasão são muito altas: 56% dos alunos das instituições privadas e 39% dos alunos de instituições públicas não terminam os seus cursos.

O governo federal aplica cerca de R$ 150 bilhões por ano em educação; 27% deste valor vai para o ensino superior. Apesar disso, as inovações mais significativas são de iniciativa de instituições privadas. Exemplos são os cursos de engenharia do Insper e do Inteli, ambos em São Paulo, e os programas de graduação de duas organizações sociais, o Impa Tech, no Rio de Janeiro, e a Ilum Escola de Ciência, em Campinas.

O Brasil se sai muito mal nos rankings internacionais. A instituição mais bem colocada segundo o “Times Higher Education Ranking”, a USP (Universidade de São Paulo), está no grupo 201 a 250. A Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), entre 351 e 400. E as demais se situam no arco de 601 a 800 (ou ainda mais atrás).

As universidades brasileiras são muito grandes: a USP tem cerca de 100 mil alunos, a UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), 70 mil, e muitas outras (Unicamp, UFMG, UFF, UFRGS, UNB, UFP) têm entre 40 mil e 50 mil alunos. No ranking internacional, as cinco melhores têm uma média de 17 mil, e as 20 melhores, uma média de 20 mil alunos.

É muito difícil ser grande e excelente, a burocracia e o corporativismo sufocam as universidades brasileiras. Mas é pior do que isso: tirando as universidades estaduais paulistas (USP, Unicamp, Unesp e Univesp) que têm um sistema inteligente de alocação de recursos públicos e grande autonomia de gestão, as federais vivem à míngua, com instalações precárias, obras inconclusas e recursos discricionários (para cobrir todos os custos fora salários) recorrentemente menores do que 10% do seu orçamento. Mais ainda, todas as universidades, por exigência constitucional, devem obedecer “ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.

Como bem apontam membros da Academia Brasileira de Ciências em artigo recente, “em nenhum país a democratização do ensino superior ocorreu só pelas dispendiosas universidades de pesquisa. Diferentemente do nosso modelo quase exclusivo de universidades de pesquisa, em diversos países predomina a diversificação de instituições: universidades, faculdades, faculdades comunitárias, instituições de ensino vocacional ou técnico de nível superior, entre outras”.

A solução é clara: criar, segundo um processo meritocrático, garantida certa diversidade regional, um grupo menor de universidades de pesquisa públicas federais, que teriam forte apoio e recursos para atender aos seus objetivos constitucionais, e transformar as demais em instituições destinadas primordialmente ao ensino superior. Estas deveriam ter outra solução institucional que assegurasse, simultaneamente:

  1. alta qualidade docente;
  2. instalações físicas adequadas que atraíssem alunos e facilitassem o aprendizado;
  3. sistema de contratação que incentivasse a presença de docentes com atuação profissional fora do ensino;
  4. poder à organização para contratar e demitir docentes, assegurando dinamismo e qualidade de ensino;
  5. escolha de cursos em áreas em que haja demanda da sociedade.

Esta seria a melhor maneira de atender ao clamor dos jovens por ensino de qualidade, flexibilidade e possibilidade de migração de uma parcela dos formados para universidades de pesquisa.

Há outras questões que devem ser endereçadas neste processo, como a necessidade de atração de estudantes e docentes estrangeiros, compatibilização do ensino presencial com o EAD em um sistema híbrido, melhora da governança das instituições públicas, simplificando a sua estrutura e procedimentos e aumentando a influência e o poder da sociedade em sua gestão e, finalmente, criação de um sistema externo poderoso de avaliação de cursos e formados.

Não há forma de o país crescer sem ensino superior de qualidade. O modelo atual esgotou-se e não atingiremos as metas do Plano Nacional de Educação sem reformas profundas no ensino público. Este é um dos nossos grandes desafios, e uma das poucas formas de promover a formação de cidadãos, a mobilidade social e o aumento de produtividade, justas demandas da sociedade brasileira.

 

Fragilidade fiscal da União colocou Brasil em enrascada, por Salto e Pellegrini

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País está vulnerável e precisa construir consenso político em torno de medidas de ajuste das contas públicas

Felipe Salto, Economista-chefe da Warren Investimentos. Foi secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo (2022) e diretor-executivo da IFI (Instituição Fiscal Independente) do Senado

Josué Pellegrini, Doutor em economia pela USP e economista da Warren Investimentos. Foi diretor da IFI (Instituição Fiscal Independente) do Senado

Folha de São Paulo, 29/09/2024

A estabilização da dívida pública federal, necessária para lidar com a situação frágil das finanças da União, requer um ajuste de dois pontos percentuais do PIB, argumentam autores, que sugerem medidas como a redução de benefícios tributários e de transferências para estados e municípios, pelo lado da receita, e alteração da política do salário mínimo, reformulação de programas sociais e nova fórmula de cálculo de emendas parlamentares, pelo lado da despesa.

Após várias decisões tomadas ao longo dos anos que fragilizaram as finanças da União, o país se se meteu em uma enrascada. As iniciativas partiram tanto do Congresso Nacional quanto do Executivo federal. A debilidade deste Poder diante daquele e a polarização política agravaram o problema.

Uma parcela da população foi beneficiada por essas mudanças, mas também grupos de interesse, empresas e entes subnacionais. Em muitos casos, as decisões não seriam justificáveis, submetidas a uma análise mais detida, pelo menos não na dimensão dos custos assumidos.

Concretamente, a fragilidade da União se traduz em déficits primários sucessivos e elevados, vale dizer, despesas mais elevadas que as receitas, já descontadas as receitas e as despesas financeiras e a partilha da receita com os demais entes federados. Como os déficits precisam ser financiados, a dívida pública sobe continuamente, sem perspectiva de estabilidade em um horizonte aceitável.

A dívida pública do Brasil, medida pela dívida bruta do governo geral, chegou a 78,5% do PIB em julho e cresce rapidamente, 4,1 pontos percentuais do PIB apenas neste ano. Relativamente a países de nível similar de desenvolvimento, nossa dívida é uma das maiores. A comparação com países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), como EUA e Japão, não faz sentido, pois os “limites” e as condições são bem mais dilatados nesses casos.

De acordo com nossas projeções para o déficit primário e a taxa de juros, a dívida deverá chegar a 95% do PIB até 2033. É muito tempo com um passivo crescente. Não se pode operar testando limites, sem margem para enfrentar imprevistos, como tragédias climáticas ou de saúde pública, eventos cada vez menos raros.

Os reflexos na economia da fragilidade fiscal da União são vulnerabilidade a crises e taxas de juros elevadas, dois dos principais inimigos dos investimentos produtivos. Esse é o canal que leva ao crescimento sustentável, com aumento da capacidade produtiva e da produtividade. A parcela mais pobre da população é a mais afetada pelo desempenho aquém do esperado.

Qual o tamanho do desafio?

Em 2024, o déficit primário do governo central deverá ser de 0,5% do PIB. Em 2025, dificilmente ficará abaixo de 0,6% do PIB, conforme se depreende do PLOA (projeto de lei orçamentária anual) da União, recém-enviado ao Congresso Nacional. Mesmo que o déficit vá a zero em todo o período 2026-2033, a dívida ultrapassará os 90% do PIB em 2032.

Será preciso gerar superávits primários para estabilizar a dívida pública em proporção do PIB. Supondo-se ação imediata, com revisão do PLOA 2025, se o resultado melhorar 0,5 ponto percentual de PIB por ano, a partir do déficit de 0,5% do PIB de 2024, chegaremos ao superávit de 1,5% do PIB em 2028. Com isso, a dívida estabilizará perto do nível de 82% do PIB, permitindo alguma redução do superávit nos anos seguintes.

Se precisamos passar de déficit de 0,5% do PIB em 2024 para superávit de 1,5% do PIB em 2028, o ajuste requerido é de algo como dois pontos percentuais do PIB, ou cerca de R$ 230 bilhões, com base no PIB de 2024. Seriam quase R$ 60 bilhões por ano no período.

O ajuste necessário poderá ser maior se o chamado déficit estrutural, de 2024, estiver acima de 0,5% do PIB. Esse conceito de déficit desconta as receitas e as despesas atípicas ou afetadas pelo ciclo econômico. Se assim for, o ponto de partida seria pior, o que exigiria mais tempo para chegar ao superávit desejado, com a estabilização da dívida em um nível mais alto.

A boa notícia é que o custo do ajuste pode ser reduzido pelo efeito da melhoria progressiva do resultado primário da União sobre a taxa de juros. Isso dependeria da apresentação de um programa confiável, com detalhamento das medidas de ajuste e respectivos impactos esperados para cada ano do período coberto. A aprovação da LOA 2025 com as medidas necessárias para levar ao déficit zero, por exemplo, já produziria importante impacto nesse aspecto.

Os efeitos positivos seriam mais significativos com a inclusão do programa no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal, algo também recomendável por se tratar de um programa que envolveria mais de um mandato presidencial. Vale observar que a busca da sustentabilidade fiscal está prevista em artigos da Constituição Federal.

O que fazer pelo lado da receita?

O diagnóstico acima talvez não gere grandes controvérsias. Discordância maior reside nas medidas de aumento de receitas e de corte de despesas a serem adotadas para fortalecer as finanças da União. A distribuição dos custos parte da definição de prioridades e passa pela análise dos efeitos positivos e negativos das diferentes políticas públicas existentes.

A carga tributária do Brasil parece ter encontrado um limite máximo, já que não tem ultrapassado os 33% do PIB desde os anos 1990. Esse percentual já está bem próximo da média de 34% do PIB dos países da OCDE.

A opção mais promissora para aumentar a receita em relação ao PIB (e melhorar a progressividade) é reduzir os benefícios tributários, de modo que a carga cresce, mas apenas para os antigos beneficiários dos respectivos incentivos.

Outro modo de incrementar as receitas da União é reduzir a participação das partilhas com os entes subnacionais. Em relação ao PIB, as transferências subiram de 3,5% do PIB, em 2013, para 4% do PIB, em 2023, enquanto a receita primária total da União caiu de 22,5% do PIB para 21,5% do PIB. Como consequência, a relação entre as transferências e a receita primária total da União subiu de 15,7% para 18,6% no mesmo período. Esses percentuais correspondem à média de cinco anos.

Essa mudança na participação tende a elevar as despesas do setor público, assim como o déficit e a dívida. Os entes subnacionais não têm a sustentabilidade fiscal e a estabilidade macroeconômica entre suas atribuições, não havendo razão para gerar superávits primários. Um motivo para isso seria a necessidade de pagar a dívida junto à União, mas as sucessivas renegociações dessa dívida e o uso de meios judiciais desde 2014 reduziram significativamente os pagamentos feitos.

Nesse sentido, dois projetos complementares que tramitam no Congresso Nacional agravam o problema fiscal do país, de modo que recomendamos fortemente a não aprovação. O projeto de lei complementar número 121, de 2024 , aprovado no Senado e em tramitação sob regime de urgência na Câmara dos Deputados, alonga o prazo da dívida estadual junto à União e abre margem para a redução a zero da taxa de juros incidente sobre essa dívida.

Por sua vez, o projeto de lei complementar número 164, de 2012, já aprovado na Câmara e em tramitação no Senado, muda o artigo 19 da Lei de Responsabilidade Fiscal, com o objetivo de afrouxar os limites para a despesa de pessoal dos entes federados.

Outra mudança veio com os artigos 12 e 13 da emenda constitucional número 132, de 2023. Foram criados dois fundos que transferem mais recursos da União para os estados. Essas transferências começarão com R$ 8 bilhões em 2025, mas subirão continuamente até chegar a R$ 40 bilhões ao ano em 2033 e a R$ 60 bilhões em 2043.

Essa perda da União não foi considerada no ajuste fiscal requerido calculado acima de dois pontos percentuais do PIB. Francamente, assim, a conta não fecha. Esses artigos da emenda precisam ser revistos. Eis aqui um exemplo de como a vulnerabilidade política do Executivo federal tem permitido aprovar medidas danosas ao país.

A proposta de redução da partilha em relação à receita total da União não significa diminuição das transferências em percentual do PIB. Para tanto, seria necessário destinar exclusivamente à União os ganhos de receita com a redução dos benefícios tributários, mediante emenda constitucional. Vejamos como isso operaria.

A renúncia estimada com benefícios tributários subiu de 3,5% do PIB na média do triênio 2009-2011 para 4,7% do PIB no triênio 2022-2024. A retirada de benefícios não gera receita equivalente à estimativa de renúncia por causa da esperada reação dos contribuintes.

Mesmo assim, a revogação de benefícios de modo a reduzir a renúncia de volta para os 3,5% do PIB poderia render, digamos, algo como 1% de PIB de receitas para a União, ótima contribuição para um ajuste esperado de dois pontos percentuais do PIB.

Se o 1% do PIB fosse integralmente destinado à União, esse ente recuperaria os 22,5% do PIB de receita total observados em 2013 e as transferências permaneceriam em 4% do PIB, mantendo o aumento de meio ponto a mais que os entes subnacionais tiveram nos últimos anos. A relação entre as transferências e a receita total da União, por sua vez, cairia de 18,6% para 17,8%, ainda bem acima dos 15,7% observados em 2013.

É claro que o nosso sistema tributário precisa ser mais equânime, neutro e simples, mas para isso vemos providências que levam mais à redistribuição da carga entre diferentes contribuintes do que à elevação dessa carga, que é o relevante do ponto de vista fiscal.

Em que pese a frágil situação fiscal da União, pululam propostas de desoneração tributária. Evidentemente, elas precisam ser rechaçadas. Uma proposta que pode gerar perdas significativas é a que estende a faixa de isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física para R$ 5.000, de iniciativa do próprio Executivo federal.

Se for aprovada, terá que ser juntamente com uma fonte certeira que compense as perdas, como determina o artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal. Esperamos que não reproduza o interminável embate pela compensação da desoneração da folha de pagamento das empresas e municípios.

Aliás, a história da desoneração da folha, iniciada em 2011 (terminará em 2027?), é um verdadeiro estudo de caso sobre como é difícil retirar um tratamento favorecido, uma vez que entra no ordenamento e no Orçamento.

O que fazer pelo lado da despesa?

Se houver a preferência dos governantes ou da própria sociedade por distribuir igualmente os custos do ajuste entre receitas e despesas, então, o ponto percentual do PIB de ajuste restante recairia sobre as despesas. Aqui, a missão é mais árdua, pois é preciso também conter aumentos em curso de componentes da despesa obrigatória. Sem isso, não há regra fiscal que sobreviva.

Em um primeiro momento, a compressão das despesas discricionárias leva à flexibilização da regra (vide o subsídio à compra do gás de cozinha, ainda em tramitação no Congresso). Em um estágio posterior, a ameaça de interrupção do funcionamento da administração pública culmina na revogação, sob a alegação de que a regra seria muito severa.

Entre as despesas obrigatórias, destaque para a despesa previdenciária, que representa 40% da despesa total, excluindo-se precatórios e sentenças judiciais. Tal despesa subiu de 6,6% do PIB, na média de 2012-2014, para 7,8% do PIB, em 2023, mesmo sob os efeitos da reforma aprovada no fim de 2019.

Essa despesa subirá ainda mais devido ao envelhecimento da população e da nova fórmula de correção do salário mínimo. Será preciso uma nova reforma, em breve, bem como a revisão da política do mínimo ou a desvinculação entre o mínimo e o menor benefício. Entretanto, ainda que se adotem essas providências, não se pode esperar mais delas que a estabilidade da despesa previdenciária em relação ao PIB.

As despesas assistenciais respondem por outros 15,5% da despesa total. Incluem-se aí o abono salarial, o seguro-desemprego, o Benefício de Prestação Continuada e o Bolsa Família. Houve aumento desse conjunto de gastos, de 1,9% do PIB na média de 2012-2014 para 3% do PIB em 2023, especialmente em razão dos saltos do Bolsa Família em 2022 e 2023 (incluindo o extinto Auxílio Brasil).

Aqui, também se aplica a necessidade de alterar a política do salário mínimo ou desvincula-lo dos benefícios. Mas cabe ainda uma reformulação geral que integre os programas assistenciais, de modo a evitar o pagamento duplicado e a levar a resultados mais efetivos, especialmente quanto ao enfrentamento da pobreza. Além da contenção da despesa em relação ao PIB, seria possível obter uma economia equivalente ao orçamento do abono salarial, que chegou a 0,23% do PIB em 2023.

Precatórios e sentenças judiciais, complementação do Fundeb (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), gastos com saúde e educação e emendas parlamentares também vêm crescendo. Nesses casos, entendemos que as providências poderiam visar à redução, em relação ao PIB, frente ao patamar atual.

Os precatórios e sentenças judiciais subiram de 0,32% do PIB na média de 2012-2014 para 0,86% do PIB na média de 2022-2024. Quando essa despesa entra no Orçamento, só resta pagar. O foco de ação deve ser nas fases anteriores, evitando a judicialização e a perda das ações. É um trabalho contínuo e persistente, a exemplo da revisão de gastos. Alguns entendem que um estoque de decisões judiciais está sendo desovado, mas não há certeza do que teremos pela frente.

As regras da complementação da União ao Fundeb também poderiam ser ajustadas, pois a aplicação da emenda constitucional nº 108, de 2020, elevará progressivamente essa despesa de 0,2% para 0,48% do PIB entre 2020 e 2026.

Trata-se de aumento muito brusco, não compatível com a atual situação fiscal da União. A reversão gradual do atual percentual de complementação, de 19%, para 15% em 2028, levaria essa despesa para 0,31% do PIB. O espaço fiscal iria de 0,06% do PIB em 2025 para 0,17% do PIB em 2028, mas manteria a complementação em valor bem superior ao observado em 2020.

Na sequência, temos os gastos com saúde e educação e as emendas parlamentares, todos vinculados à evolução da receita da União. Trata-se de procedimento impróprio, pois o gasto não é dado pela necessidade, mas pelo simples fato de a receita ter mudado. Ademais, somam-se às despesas obrigatórias para “espremer” ainda mais rapidamente as discricionárias, não protegidas.

O desejável seria não haver vinculação de qualquer tipo de despesa à receita, mas, na impossibilidade, alguma fórmula alternativa poderia ser tentada para a saúde. A correção pelo mesmo fator aplicado para calcular o limite de despesa a partir de 2025 traria espaço fiscal, mas apenas se tomasse como base o gasto de 2023. O ganho seria de 0,12% do PIB, no primeiro ano, crescendo para 0,15% do PIB em 2028. Ainda assim, o mínimo da saúde ficaria em 1,6% do PIB, mesmo percentual gasto em 2023.

Essa mesma proposta não é apropriada no caso das emendas parlamentares. São duas as questões envolvidas. A primeira é do uso adequado dos recursos. A discussão que começou por iniciativa do STF deverá trazer avanços importantes. Quanto à segunda questão, diz respeito à fragilidade fiscal da União.

As emendas simplesmente chegaram a um montante inviável, próximo de R$ 50 bilhões, na LOA de 2024. O artigo 166 da Constituição teria que ser revisto para retirar a vinculação à receita e, eventualmente, definir alguma fórmula que chegasse a um montante razoável.

Uma opção seria um percentual das despesas discricionárias. Em caso de contingenciamento, haveria partilha proporcional automática do corte entre as emendas e as demais discricionárias. No biênio 2018-2019, as emendas totais correspondiam, na média, a cerca de 8% das despesas discricionárias. Considerando-se as discricionárias atuais, esse percentual equivaleria a R$ 16 bilhões, bastante expressivo. Se tal comando vigorasse em 2024, criaria um espaço fiscal de 0,27% do PIB.

As quatro propostas acima levam a um ajuste da despesa de 0,82 ponto percentual de PIB (0,23 + 0,17 + 0,15 + 0,27). O restante 0,18 ponto percentual do PIB poderia vir da chamada revisão do gasto, com base no emprego da avaliação de políticas públicas, além do combate à fraude, análise mais criteriosa dos pedidos de benefícios e providências para enfrentar a judicialização. A revisão de 0,18 ponto representaria um corte de menos de 1% do total das despesas da União, atualmente acima de 19% do PIB, sem perda de bem-estar.

Conclusões

O país está vulnerável, sujeito a crises e baixo crescimento, o que dificulta o enfrentamento da questão social, devido a decisões que fragilizaram a situação fiscal da União.

O ajuste requerido para estabilizar a dívida pública em relação ao PIB é de dois pontos percentuais do PIB. Sugerimos providências que levam a um ponto percentual de receita extra para a União e um ponto percentual de corte de despesa.

Todas as medidas requerem amplo consenso político, algo difícil de alcançar. O fato é que o país não poderia ter chegado a essa situação. Fomos sinceros ao dizer que estamos em uma enrascada. Não será a primeira em nossa história. Outros países passaram ou passam pela mesma situação. Temos que superar.

 

Subordinação (mal) camuflada, por Ricardo Antunes.

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Ricardo Antunes – A Terra é Redonda – 08/08/2024

Prefácio do livro recém-lançado de Vanessa Patriota

Conheci a procuradora do trabalho Vanessa Patriota há alguns anos, durante um Seminário sobre Trabalho em Plataformas, realizado em Fortaleza, do qual foi uma das organizadoras. Pude constatar, durante sua apresentação, que clareza, lucidez e contundência se mesclavam em sua reflexão. Traços que agora se repetem neste livro, resultado de sua tese de doutorado defendida na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), na linha de pesquisa direito do trabalho e teoria social crítica, rica e originalmente desenvolvida ao longo de décadas, sob a liderança do Professor Everaldo Lopes Gaspar de Andrade.

Autônomos ou subordinados? Este é o dilema central deste livro, que é devidamente esmiuçado e desvendado. Para realizar tal empreitada, foram pesquisadas várias modalidades de trabalho em plataformas digitais, especialmente aquelas realizadas por motoristas e entregadores/as, definidas como crowdwork offline (mas contemplando também um paralelo com uma gama ampliada de outras plataformas caracterizadas como crowdwork online), evidenciando a predominância efetiva da subordinação real e jurídica, ao contrário da proposição central das grandes plataformas que se utilizam de todos os mecanismos e armadilhas possíveis para apresentar o trabalho como “autônomos”, de modo a desconsiderar a legislação protetora do trabalho vigente nos países onde atuam.

Sabemos que essa processualidade destrutiva em relação ao trabalho somente foi possível por uma conjugação complexa e simultânea de várias causalidades: (i) a eclosão de uma crise estrutural desde 1973, que se agudizou a partir de 2008/9, posteriormente, com a Covid-19 e mais recentemente com o grave contexto belicista internacional; (ii) um sistemático e ininterrupto processo de reestruturação produtiva permanente e global do capital e das corporações.

(iii) Uma rigorosa hegemonia financeira moldada em clara sintonia com o ideário neoliberal; (iv) a ampliação do desemprego em amplitude global, ainda que mais acentuado no Sul Global; (v) com a explosão das tecnologias de informatização e comunicação, da robotização, inicialmente no ramo industrial e depois na agroindústria e especialmente nos serviços privatizados, que se tornaram laboratórios de expansão célere dos algoritmos, Indústria 4.0, Inteligência Artificial, ChatGPT, etc.

A principal consequência desse complexo movimento, no universo laborativo, foi o advento e expansão exponencial de um mosaico diferenciado de atividades laborativas, sendo seu mais recente exemplo o denominado trabalho “plataformizado” ou “uberizado”. Utilizando-se dos artefatos digitais e da abundância de força de trabalho desempregada, bem como das “flexibilizações” da legislação do trabalho que geraram a terceirização, o aumento da informalidade e “invenção” dos trabalhos intermitentes, foi assim que as grandes plataformas digitais puderam gestar as atuais modalidades de trabalhos cujo traço distintivo central se encontra na recusa em cumprir a legislação do trabalho que existe nos diversos países e que regulamenta as relações entre capital e trabalho.

Não é por outro motivo que as grandes plataformas se apresentam como “prestadoras de serviços”, “fornecedoras de tecnologia”, de modo a obliterar a real condição de assalariamento e subordinação que configura a realidade dos trabalhos que lá se desenvolvem, além de lhes possibilitar a exclusão do pagamento de tributos que regulam o universo empresarial.

Foi esse o desafio que Vanessa Patriota se propôs a desvendar. Em suas próprias palavras: “Esta tese centra-se no estudo de plataformas digitais de trabalho com o objetivo de: (a) identificar a vertente da subordinação jurídica presente crowdwork offline de motoristas e entregadores/as.

(b) Analisar as características do crowdwork online, a fim de verificar se os trabalhadores e as trabalhadoras nele inseridos podem ser albergados/as pelo Direito do Trabalho e se, para tanto, é necessário reconfigurar o conceito de subordinação na relação empregatícia”. Através desse percurso sua investigação demonstra que as grandes plataformas, em suas diversas modalidades de trabalho, utilizam-se de todos os meios e formas, com o objetivo “inegociável” de manter empregados/as sempre excluídos dos direitos do trabalho no Brasil.

Para obter suas principais respostas analíticas, a autora perseguiu as seguintes indagações: as novas modalidades de organização e do processo de trabalho, desenvolvidas a partir da expansão das tecnologias informacionais e digitais, podem comportar um “manto protetor” no âmbito do Direito do Trabalho? a regulamentação existente no Brasil oferece e contempla os elementos necessários para reconhecer a subordinação presente nos trabalhos plataformizados? ou, ao contrário, é preciso “ampliar o espectro de proteção trabalhista” de modo que a subordinação possa ser amparada pelo Direito do Trabalho?

Para realizar esse desafio, Vanessa Patriota, ao longo de nove sólidos capítulos, abarcou um amplo espectro de evidências empíricas e percorreu densos caminhos analíticos, dialogando amplamente, tanto com a bibliografia presente nos estudos jurídicos do trabalho como também realizou um diálogo fértil com a crítica da economia política e também com a sociologia do trabalho, o que conferiu ainda mais força e contundência ao seu estudo. Por conta deste movimento, seu livro poderá ser lido e utilizado tanto na esfera jurídica, no âmbito do direito do trabalho, quanto por aqueles/as que buscam melhor compreender a materialidade econômica, social, política e ideológica que plasma o mundo jurídico que versa sobre o trabalho.

Um olhar no amplo sumário de Subordinação (mal) camuflada demonstra a riqueza do estudo realizado.

Na Primeira Parte, analisa os sentidos do trabalho e o papel do direito no capitalismo, com suas transformações na esfera produtiva e no âmbito das classes sociais em seus embates. Uma adequada análise da subordinação jurídica, da parassubordinação e da autonomia encontra-se respaldada em uma cuidadosa compreensão de conceitos como trabalho humano, tecnologia, relações de trabalho, mercadoria, individualismo contratualista, classe e consciência de classe, taylorismo, fordismo, welfare state, crise, acumulação flexível, sempre procurando relacionar a realidade do Brasil com a contextualidade internacional, o que lhe permite demonstrar como se desenvolvem as fraudes trabalhistas.

Na Segunda Parte, a autora enfrenta o difícil e decisivo debate acerca do trabalho produtivo e improdutivo, bem como a importância dessa reflexão para uma melhor intelecção dos significados essenciais do trabalho plataformizado no capitalismo atual, fortemente financeirizado e celeremente digitalizado. Analisa as principais características presentes nas pesquisas que se debruçaram sobre o trabalho nas plataformas de transportes de pessoas e entregas. Faz um sólido diagnóstico dessa realidade, utilizando o material empírico presente nas provas obtidas em inquéritos do Ministério Público do Trabalho, envolvendo as plataformas Rappi, iFood, Cabify, 99 e Uber, o que lhe permite indicar os traços que configuram a subordinação clássica que permeia esta modalidade de trabalho.

Expõe ainda os principais artifícios utilizados pelas plataformas de modo a negar o vínculo empregatício, artifícios estes que se encontram em aguda contradição frente às condições de trabalho vivenciadas pelos/as trabalhadores/as. Assim procedendo, demonstra como as plataformas reiteram o caráter subordinativo presente na efetividade e no direito do trabalho, acentuando as contradições existentes entre as diversas legislações existentes nos distintos países e a forma assumida pelo trabalho em plataformas, que têm amplitude e abrangência transnacional, aspecto este que é decisivo para se enfrentar a dilemática da regulamentação.

Conclui seu estudo com a necessidade imperiosa de equacionar o dilema central do direito do trabalho no Brasil (e no mundo hoje), ao se pensar no trabalho em plataformas: trata-se de lutar pelo trabalho regulamentado e protegido ou preservar e ampliar o enorme retrocesso e devastação social presentes nestas atividades? O que leva a autora a reafirmar a importância das lutas emancipatórias para dar concretude à regulação do trabalho, bem como para enfrentar a questão nodal do controle social dos algoritmos, utilizados pelas grandes plataformas digitais, que são de uso secreto, restrito e absoluto das plataformas, visando tanto à intensificação da exploração do trabalho quanto de seu ocultamento.

E, para rechaçar a mistificação de que o mundo algorítmico é expressão distinta de “uma nova realidade” no mundo do trabalho, Vanessa Patriota acrescenta uma argumentação central, de modo cristalino: mesmo “que se possa falar em controle algorítmico e em gerenciamento digital ou cibernético, não se afastam a intensidade de ordens e as práticas disciplinares típicas da subordinação clássica. Tal conclusão é de extrema importância na medida em que o conceito de subordinação clássica ainda é adotado de forma prevalente tanto na jurisprudência e doutrina nacionais quanto nas estrangeiras”.

O que acentua a importância em “despir a subordinação de suas vestes atuais, para revelar o que ela realmente apresenta: ordens intensas, constantes e vinculantes, que ensejam punições disciplinares em caso de descumprimento e que são emitidas diretamente pelas empresas, mas através da programação algorítmica”.

Ao refutar, com fortes evidências empíricas e riqueza argumentativa, a falácia do “empreendedorismo”, este livro nos oferece um retrato da realidade na qual uma enorme massa de trabalhadores/as labora durante longas e intensas jornadas de trabalho, encontrando-se, entretanto, completamente desguarnecidos/as e desprovidos/as dos direitos presentes na legislação protetora do trabalho no Brasil.

Suas conclusões são precisas: “As plataformas digitais de trabalho analisadas foram criadas em um contexto em que o trabalho ocupa todos os espaços da vida […]; em que as entidades sindicais estão extremamente fragilizadas, dificultando suas lutas; em que os Estados-nações são capturados pelas grandes corporações, e são elas que se encontram por trás da plataformização dos serviços; em que a precarização do trabalho é altíssima e as empresas detentoras de plataformas digitais vão intensificá-la ainda mais; enfim, em um contexto em que a racionalidade neoliberal faz crer que não há alternativas ao proletariado, senão aceitar os postos precários de trabalho que lhes são ofertados por benevolência”.

É por isso que o livro de Vanessa Patriota não poderia ser publicado em melhor e tão crucial momento, exatamente quando no Congresso Nacional tramitam diversos nefastos projetos de lei que, uma vez aprovados, estarão dando um passo desastroso em direção à devastação dos direitos do trabalho no Brasil, conquistados pelo conjunto da classe trabalhadora em muitas lutas, travadas durante incontáveis décadas.

*Ricardo Antunes é professor titular de sociologia na Unicamp. Autor, entre outros livros, de O capitalismo pandêmico (Boitempo).

Referência

Vanessa Patriota. Subordinação (mal) camuflada: a dominação capitalista no trabalho em plataformas digitais. Belo Horizonte, RTM educacional, 2024

 

Considerações a partir do livro clássico de Eduardo Galeano, por Claudio Katz

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Claudio Katz – A Terra é Redonda – 13/11/2021

As Veias Abertas da América Latina começa com uma frase que resume a essência da Teoria da Dependência. “A divisão internacional do trabalho consiste em que alguns países se especializam em ganhar e outros em perder. Nossa comarca no mundo, que hoje chamamos de América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os tempos remotos”. Esta breve oração oferece uma imagem concentrada e altamente ilustrativa da dinâmica da dependência. Por essa razão, foi citada em inúmeras ocasiões para retratar o status histórico de nossa região.

O livro de Galeano é um texto chave no pensamento social latino-americano, que convergiu com a formação da Teoria da Dependência e contribuiu para popularizar essa concepção. A primeira edição desse trabalho coincidiu com o auge da abordagem dependentista. Mas, em todas as suas páginas, demonstrou uma afinidade especial com a vertente marxista dessa teoria, que foi desenvolvida por Ruy Mauro Marini, Theotonio Dos Santos e Vania Bambirra. Essa visão postulou que o subdesenvolvimento latino-americano corresponde à perda de recursos gerada pela inserção internacional subordinada da região.

Galeano difundiu precocemente essa abordagem no Uruguai, e seu livro repassa a história latino-americana em chave dependentista. Ele ilustra de forma muito acabada como “o modo de produção e a estrutura de classes foram sucessivamente determinados de fora… através de uma cadeia infinita de dependências sucessivas… que nos levaram a perder até mesmo o direito de nos chamarmos americanos”. Ele lembra que “como parte do vasto universo do capitalismo periférico”, a região “foi submetida à pilhagem e aos mecanismos de espoliação”[ii].

Essa caracterização do desenvolvimento frustrado da América Latina ligava os anos 70 a uma ampla produção historiográfica de mesmo signo. Esses estudos relacionavam os impedimentos impostos pela dependência com a repetição da expansão alcançada pela economia estadunidense. Galeano retomou uma ótica muito semelhante àquela exposta pelas pesquisas de Agustín Cueva e Luis Vitale[iii].

O pensador uruguaio desenvolveu uma história sintética da região, centrada nos quatro componentes do marxismo latino-americano da época. Denunciou a espoliação dos recursos naturais, criticou a exploração da força de trabalho, enfatizou a resistência dos povos e aderiu a um projeto socialista de emancipação.

Galeano desenvolveu seu texto combinando várias disciplinas e deu luz a um relato que impacta por sua beleza literária. Seu entusiasmo comove o leitor e gera um efeito explicitamente pretendido pelo livro.

O escritor uruguaio decidiu difundir um “manual de divulgação que fale de economia política no estilo de um romance de amor”. E alcançou um sucesso avassalador para este empreendimento surpreendente. Galeano comentou que seguiu o caminho de “um autor não especializado”, que embarcou na aventura de desvendar os “fatos que a história oficial esconde”[iv].Abordou este objetivo com uma linguagem afastada das “frases feitas” e distante das “fórmulas declamatórias”. Conseguiu consumar esse ambicioso propósito num trabalho impactante.

Galeano deixou para trás o enrijecimento, o academicismo e o discurso frio. Usou uma linguagem que sacudiu milhões de leitores e inaugurou um novo código para visibilizar a dramática realidade latino-americana. Veias abertas inspirou uma legião de escritores que adotaram, desenvolveram e enriqueceram essa forma de retratar a espoliação e a opressão sofridas por nossa região.

 

Afinidades conceituais e políticas

Galeano alinhou-se com a corrente radical da dependência liderada por Marini e Dos Santos, em franca contraposição com a vertente eclética e descritiva liderada por Fernando Henrique Cardoso. A afinidade de Veias Abertas com a primeira concepção é verificada em todos os enunciados do livro.

Neste trabalho, não se limitou a descrever o atraso econômico resultante de modelos políticos equivocados, nem observou a dependência como um traço ocasional ou meramente negativo. Também não endossou as associações com o capital estrangeiro que Cardoso promovia como solução para o atraso da região. Quando esse intelectual assumiu a presidência do Brasil, desdisse seus textos antigos, repudiou seu passado e objetou seus próprios escritos. Mas a semente de sua involução neoliberal estava presente na abordagem da dependência que postulou polemizando com Marini e Dos Santos.

A visão de Galeano também estava distante da CEPAL. Em nenhuma parte do livro esboçam-se ilusões heterodoxas sobre a superação do subdesenvolvimento regional através de uma industrialização capitalista liderada pela burguesia nacional. O protecionismo e a regulação estatal não são considerados como os caminhos a seguir para erradicar os males econômicos da América Latina.

A oposição a esse percurso verifica-se também nas inúmeras críticas à impotência das classes dominantes locais para colocar em marcha alguma modalidade efetiva de desenvolvimento regional. Destaca-se essa incapacidade para comandar um crescimento industrial semelhante ao alcançado pelas poderosas economias centrais.

Tal questionamento era o eixo do programa político inaugurado pela Revolução Cubana e conceitualizado pela teoria marxista da dependência. Esta abordagem propiciava uma transição direta e sem interrupções para o socialismo, afastando qualquer etapa intermediária de capitalismo nacional.

Veias Abertas inscreve-se nessa corrente de pensamento e compartilha o entusiasmo gerado pelo sucesso inicial da Revolução Cubana. Em numerosos parágrafos, irrompe o espírito de Che, o tom romântico e a esperança no triunfo dos projetos radicalizados. Também enfatiza as raízes históricas das lutas populares em toda a região.

Em nenhum momento Galeano esquece a base econômica estrutural da dependência que os estudos da Gunder Frank enfatizavam. Mas, ao contrário desses estudos, enfatiza a centralidade das resistências populares. Não fala apenas de estanho, mineração, latifúndio e plantações. Destaca as façanhas de Louverture no Haiti, a rebelião de Tupac Amaru no Peru e a ação de Hidalgo no México.

O livro resgata essas tradições de luta popular, destacando como a história oficial dilui a visibilidade destas resistências. Lembra que essa operação de ocultação muitas vezes leva o próprio oprimido a assumir como sua “uma memória fabricada pelo opressor”.

Galeano não apenas detalha como a América Latina foi estruturada durante séculos pela exploração dos índios e a escravidão dos negros. Ressalta também que os sujeitos afetados por esta espoliação reagiram com revoluções e revoltas. Essas sublevações abriram um horizonte alternativo de libertação.

Veias Abertas recorda também o nexo entre essas rebeliões e o assunto pendente da integração regional, legado pelo projeto inacabado de Bolívar. Essa ênfase no papel insurgente dos povos ilustra a afinidade de Galeano com o projeto político revolucionário da Teoria da Dependência.

 

Primarização e extrativismo

A sintonia de um livro escrito há cinquenta anos com uma concepção marxista em voga naquela época não constitui nenhuma surpresa. Mais problemático, contudo, é desvendar a atualidade de ambas as visões. Em que terrenos se verifica a vigência de Veias Abertas e do dependentismo?

Há muitos fragmentos de um livro escrito em 1971 que parecem aludir a situações de 2021. Estes aspectos duradouros do texto (e da teoria que o inspirou) correspondem à condição dependente da América Latina e são corroborados sobretudo pelo extrativismo.

A especialização exportadora da região em produtos primários – que bloqueou seu desenvolvimento no passado – continua obstruindo a decolagem da região. Esse impedimento combina-se, ademais, com um agravamento inédito da deterioração do meio ambiente. A mineração a céu aberto concentra grande parte dessas calamidades e tornou-se o epicentro de numerosos conflitos em todos os países.

Primarização e extrativismo são os dois termos usados atualmente para denunciar a obstrução ao crescimento produtivo e inclusivo, que Galeano destacava há cinco décadas. Veias Abertas descreve como a submissão da região ao mandato externo dos preços das commodities gera essa asfixia.

Mas essa vulnerabilidade já não é mais vista como um simples efeito de processos inexoráveis de desvalorização das exportações de produtos primários. Muitos economistas desvendaram a dinâmica cíclica desses preços no mercado mundial e estudaram o complexo processo de sucessivos encarecimentos e barateamentos das matérias-primas. O grande problema é que essas flutuações sempre obstruem o desenvolvimento devido à condição dependente de toda a região.

A América Latina nunca aproveita os momentos de valorização das exportações e sofre invariavelmente nos períodos opostos de depreciação. Na conjuntura atual de preços altos, essas adversidades são verificadas, por exemplo, no encarecimento dos alimentos. A exportação de trigo e carne tornou-se uma desgraça para a aquisição cotidiana de pão e o consumo de proteínas.

Galeano descreveu uma desventura econômica resultante do manejo adverso da renda agrária, mineira e energética em toda a região. A centralidade dessa remuneração à propriedade dos recursos naturais acentuou-se nas últimas décadas. As grandes potências disputam – com a mesma intensidade que no passado – o precioso espólio das riquezas latino-americanas. A região continua sofrendo o confisco sistemático desse excedente, numa dinâmica que combina a erosão da renda com sua expropriação.

Atualmente os Estados Unidos disputam com a China (e em menor medida com a Europa) a apropriação dos recursos naturais da região. Os gigantes mundiais já não obtêm apenas excedentes de grão ou carne. Capturam também minerais estratégicos como o lítio e depredam sem nenhuma restrição a fauna marinha.

Ao contrário de outras economias não metropolitanas (como a Austrália ou a Noruega), que se aproveitam da renda para seu desenvolvimento, a América Latina sofre a drenagem desse excedente. É incapaz de transformá-lo em investimento produtivo devido à sua posição subordinada na divisão global do trabalho. Essa sujeição também explica o comércio desfavorável com os grandes compradores das exportações da região.

A América Latina não negocia em bloco suas trocas com a China, e os resultados das negociações país por país são invariavelmente adversos. As desventuras retratadas por Galeano há cinquenta anos são recicladas novamente na atualidade.

 

Retrações da indústria

Veias Abertas descreve como os processos históricos de industrialização foram obstruídos na América Latina pelas políticas livre-cambistas. Esse “industricídio” aniquilou a produção interna na Argentina e destruiu o desenvolvimento incipiente do Paraguai, que procurava lançar as bases para uma estrutura fabril independente. Posteriormente, as redes ferroviárias construídas em torno dos funis portuários garantiram o estrangulamento industrial. A mão visível do estado não interveio – como nos Estados Unidos – para assegurar o surgimento de um poderoso tecido industrial.

Este estrangulamento industrial foi parcialmente modificado na segunda metade do século XX pelos processos de substituição de importações. Esse modelo deu origem ao surgimento de estruturas industriais frágeis, mas ilustrativas do potencial expansão manufatureira. Galeano escreveu seu livro no ocaso desse esquema, e, cinquenta anos depois, o panorama industrial é novamente desolador na maior parte da América Latina.

A atividade industrial recuou na América do Sul e tende a especializar-se, na América Central, nos elos básicos da cadeia global de valor. Este cenário adverso é frequentemente descrito com retratos de uma “desindustrialização precoce” da região, que é diferente, por sua maior nocividade, das deslocalizações prevalecentes nas economias avançadas. Em todos os cantos da América Latina, aprofundou-se o distanciamento em relação à indústria asiática e muitos empreendimentos fabris desaparecem antes de atingirem a maturidade.

Nos países medianos, essa deterioração afeta o modelo criado para abastecer o mercado local. No Brasil, o aparato industrial perdeu a dimensão dos anos 80, a produtividade estancou, o déficit externo expande-se e os custos aumentam no compasso de uma obsolescência crescente da infraestrutura. Na Argentina, o declínio é muito maior.

O modelo das empresas maquiladoras mexicanas também enfrenta graves problemas. Continua montando peças para as grandes fábricas estadunidenses, mas perdeu centralidade diante dos concorrentes asiáticos. A renegociação do tratado de livre-comércio com os Estados Unidos simplesmente deu lugar a outro acordo (T-MEC), que renova a adaptação das fábricas fronteiriças às necessidades das empresas do Norte.

A maioria dos países da região continua negociando (e aprovando) acordos de livre-comércio que corroem o tecido econômico local. Em todos os casos, garante-se a desproteção interna contra a invasão incontrolável das importações. Essa adversidade não impediu as negociações do Mercosul para assinar um tratado de livre-comércio com a União Europeia, nem as negociações para acordos unilaterais com a China.

A regressão industrial que afeta a região atualiza todos os desequilíbrios do ciclo dependente estudado pelos teóricos da dependência. Nos anos 70, destacavam a drenagem sistemática de recursos que afetava o setor manufatureiro, através da remessa de lucros. A maior predominância do capital estrangeiro acentuou nas últimas décadas essa obstrução ao processo local de acumulação.

Mas, ao contrário dos anos 70, o retrocesso atual da indústria latino-americana coexiste com a grande ascensão de suas congêneres asiáticas. Basta observar o aumento da distância entre a Coréia do Sul e o Brasil ou a Argentina para notar a magnitude dessa mudança. Enquanto a América Latina era funcional ao velho modelo de mercados internos do capitalismo do pós-guerra, o Sudeste Asiático tende a otimizar o salto registrado na internacionalização da produção.

Muitos autores heterodoxos supõem que a divergência entre as duas regiões se deve apenas à implementação de políticas econômicas opostas. Acreditam que os asiáticos optaram pelo caminho adequado, que foi rejeitado por seus pares da América Latina. Mas essa visão ignora todas os condicionamentos estruturais impostos pela maximização do lucro na divisão mundial do trabalho.

As teses dependentistas destacam esse condicionamento, que o livro de Galeano também detalha. Ali são explicadas as adversidades históricas estruturais que a região enfrenta.

 

Despossessão e exploração

Veias Abertas denuncia o sofrimento da população explorada em todos os cantos da América Latina. Não fala apenas da escravidão e do servilismo do passado. Descreve as condições desumanas de trabalho que prevaleciam há cinco décadas. A atualidade dessas observações é particularmente impactante no contexto dramático de deterioração social do presente.

O neoliberalismo não só agravou o desemprego e a informalidade laboral. Além disso, consolidou uma terrível ampliação das diferenças de renda, na região mais desigual do planeta. Essa polarização explica a escala aterradora da violência que impera nas grandes cidades. Das 50 cidades mais perigosas do mundo, 43 localizam-se na América Latina.

A degradação social que afeta a região deve-se, em grande medida, à renovada expulsão de camponeses imposta pela transformação capitalista do agro. Essa mutação potencializou a expansão descontrolada de uma massa de excluídos que chega às cidades para ampliar o exército de desempregados. A falta de trabalho nas grandes cidades e a baixíssima remuneração dos empregos existentes explicam o enorme aumento da informalidade. Neste contexto, a narco economia generalizou-se como um refúgio para a sobrevivência.

A especialização latino-americana em exportações de produtos primários é complementada, em algumas economias da América Central, pelo crescimento desarticulado do turismo. É a única atividade criadora de empregos em muitas localidades dessa região. Em todos os casos, a ausência de postos de trabalho multiplica a emigração e a consequente dependência familiar das remessas. Enormes contingentes de jovens desempregados são simultaneamente impedidos de criar raízes e de emigrar. Não encontram trabalho em suas localidades de origem e são perseguidos ao ingressar nos Estados Unidos.

As médias regionais de pobreza continuam transbordando na América Latina para o segmento precarizado e afetam uma enorme parcela dos trabalhadores estáveis. Estes dados não mudaram desde o aparecimento do livro de Galeano.

A fragilidade da classe média também persiste, numa região com uma presença reduzida desse estrato. Em comparação com os países avançados, os setores médios proporcionam um colchão muito exíguo ao abismo que separa os abastados dos empobrecidos. Esse segmento é formado principalmente por pequenos comerciantes (ou autônomos) em vez de profissionais ou técnicos qualificados.

Este cenário adverso piorou de forma dramática durante a pandemia do último biênio. Em termos percentuais, a América Latina foi a região com o maior número de contágios e mortes do planeta e também sofreu o maior impacto econômico e social da doença.

A queda do PIB na região foi o dobro das médias internacionais e essa deterioração aprofundou a desigualdade. Metade da força de trabalho (que sobrevive na informalidade) foi severamente afetada pela retração econômica imposta pelo coronavírus. Estes setores tiveram que aumentar suas dívidas familiares para compensar a queda brutal da renda.

A desigualdade digital também aumentou em toda a região e impactou severamente as crianças empobrecidas que perderam um ano de escolaridade. Essa deterioração na educação tem efeitos explosivos em virtude de seu entrelaçamento com a crescente precarização do trabalho. As grandes empresas aproveitam o novo cenário para reduzir os custos laborais, com novas formas de teletrabalho que multiplicam a exploração dos assalariados.

Nas últimas cinco décadas, os capitalistas recorreram a inúmeros mecanismos para compensar sua debilidade internacional, explorando ainda mais a força de trabalho. Por essa razão, a diferença salarial entre a região e as economias centrais aumentou significativamente. A tendência mundial de segmentação do trabalho – entre um setor formal-estável e um informal-precarizado – apresenta uma escala assustadora na América Latina.

Essa disparidade ratifica a vigência do diagnóstico dependentista e confirma a continuidade dos mesmos problemas que Galeano observou no mundo do trabalho. Cinquenta anos depois, todas as suas observações são corroboradas em outra escala.

 

O velho pesadelo do endividamento

Em Veias Abertas, denunciava-se a triplicação da dívida externa entre 1969 e 1975 e a consequente consolidação de um círculo vicioso que asfixia a economia da região. Esse encadeamento obriga a América Latina a seguir um roteiro de aumento das exportações, estrangeirização industrial e auditoria dos banqueiros imposta pelo FMI. Galeano destacava que essas exigências consolidam, por sua vez, a ação dos capitalistas estadunidenses, que controlam grande parte da região através da gestão das finanças.

Nos últimos cinquenta anos, esse pesadelo foi mantido sem mudanças estruturais, e acentuou os desequilíbrios fiscais e os déficits externos, que aumentam os passivos e precipitam novas crises.

Durante a era neoliberal, houve períodos de gravidade variável dessa vassalagem financeira. Na última década, a apreciação das matérias-primas e o ingresso de dólares permitiram certo alívio, mas quando o fôlego comercial desapareceu, o endividamento ressurgiu com grande intensidade. Atualmente, o FMI e os fundos de investimento intervêm novamente de modo protagonista na administração de uma dívida impraticável.

Nos momentos mais dramáticos da pandemia, o FMI emitiu mensagens hipócritas de colaboração. Mas, na prática, limitou-se a convalidar um alívio irrisório do passivo entre um pequeno grupo de nações ultra empobrecidas. Repetiu a atitude assumida em relação à crise de 2008-2009, quando combinou apelos formais para a regulamentação internacional das finanças com exigências crescentes de ajuste para todos os devedores.

A tradição dependentista tem evitado a análise do endividamento em termos de simples especulação financeira. Destaca que o crescente peso dos passivos expressa a fragilidade produtiva e comercial do capitalismo dependente. A vulnerabilidade financeira da América Latina só complementa essas inconsistências.

Há uma sobrecarga com o pagamento de juros, com refinanciamentos compulsivos e com inadimplência sem razão do perfil subdesenvolvido das economias primárias, marcadas pela fraqueza industrial e pela alta especialização em serviços básicos. O endividamento não é desencadeado apenas pela “pilhagem dos financistas”. Reflete a crescente debilidade estrutural dos processos de acumulação.

A região não está isenta do processo de financeirização que caracteriza todas as classes dominantes do planeta. Mas a mutação central que se verificou na América Latina foi a transformação das antigas burguesias nacionais em novas burguesias locais.

O texto de Galeano ainda estava inscrito no primeiro período. Desde então, os grupos capitalistas que priorizam a expansão da demanda com uma produção orientada para o mercado interno perderam sua centralidade. Ganharam peso os setores que priorizam as exportações e preferem reduzir os custos em vez de ampliar o consumo.

 Esse giro também confirmou todos os diagnósticos dependentistas do entrelaçamento do grande capital latino-americano com seus pares do exterior. A localização de grandes fortunas locais em paraísos fiscais e a estreita associação criada pelas principais companhias da região com empresas transnacionais ilustram esta simbiose. O endividamento denunciado por Galeano sustentou essa mutação das classes dominantes.

 

Crises tempestuosas

O livro do escritor uruguaio comove pelo retrato desolador que apresenta da realidade cotidiana da América Latina. Este cenário é condicionado pela irrupção sistemática de crises sufocantes que o capitalismo dependente impõe. Estas convulsões derivam, por sua vez, do estrangulamento externo e da periódica redução interna do poder aquisitivo.

A era neoliberal que sucedeu a publicação de Veias Abertas foi marcada por crises econômicas mais frequentes e intensas, que precipitaram recessões mais profundas e induziram socorros gigantescos dos bancos. Essas turbulências foram invariavelmente desencadeadas pelos estrangulamentos do setor externo, levando a desequilíbrios comerciais e perda de recursos financeiros.

Como as economias latino-americanas dependem da flutuação dos preços das matérias-primas, nos períodos de valorização das exportações, as divisas afluem,  apreciam-se as moedas e os gastos expandem-se. Nas fases opostas, os capitais migram, o consumo decresce e as contas fiscais deterioram-se. No auge dessa adversidade, irrompem as crises.

Essas flutuações, por sua vez, aumentam o endividamento. Nos momentos de valorização financeira, os capitais ingressam para lucrar com operações de alto rendimento, e nos períodos opostos, a saída de capitais generaliza-se. Tais operações são consumadas pelo aumento do passivo dos setores público e privado.

Outro fator determinante das crises regionais são as reduções periódicos do poder aquisitivo. Essas amputações agravam a ausência estrutural de uma norma de consumo de massa. A debilidade do mercado interno e o baixo nível de renda da população explicam essa carência. A expansão da informalidade laboral, os baixos salários e a estreiteza da classe média acentuam a fragilidade do poder de compra.

As duas modalidades de crise – pelo desequilíbrio externo e pela retração do consumo – foram verificadas em todos os modelos das últimas décadas. Despontaram inicialmente durante a substituição de importações (1935-1970) e reapareceram com maior virulência na “década perdida” de estagnação e inflação (anos 80). Tornaram-se mais intensos no início posterior do neoliberalismo, como consequência da desregulamentação financeira, da abertura comercial e da flexibilidade laboral.

A teoria da dependência sempre estudou essas tensões com critérios multicausais e sublinhou a ausência de um único determinante da crise. As convulsões na região são desencadeadas por forças diversas, que combinam os desequilíbrios externos com as restrições do poder de compra.

Essa combinação de determinantes externos e internos teve um impacto devastador nos últimos dois anos da pandemia. A América Latina sofreu a maior contração planetária de horas de trabalho, em consonância com declínios semelhantes na renda popular. Após cinco anos de estagnação, a Covid acentuou uma enorme deterioração da estrutura produtiva. Para piorar a situação, os sinais de recuperação são tênues e as previsões de crescimento são inferiores à média mundial. Outro capítulo de Veias Abertas ocorreu na região durante o “Grande Confinamento” do último biênio.

 

O cenário político

A afinidade de Veias Abertas com a Teoria da Dependência não se limita ao estreito domínio da economia. Na tradição expositiva desta última concepção, o livro evita sobrecarregar o leitor com meros números e estatísticas intrincadas. Destaca com exemplos o impacto da dominação imperialista no subdesenvolvimento regional. Denuncia especialmente os golpes de estado, que sempre utilizaram as embaixadas estadunidenses para instalar governos favoráveis às grandes empresas do Norte.

Cinquenta anos depois, essa intromissão de Washington persiste com maiores disfarces, mas com o mesmo descaramento do passado. Os Estados Unidos buscam atualmente restaurar sua hegemonia mundial deteriorada, reforçando seu controle da América Latina, a fim de conter a centralidade crescente da China. A primeira potência está disposta a utilizar seu enorme poder geopolítico-militar para recuperar as posições econômicas perdidas. Por essa razão, a região é mais uma vez tratada como “quintal”, sujeita às normas de submissão estabelecidas pela Doutrina Monroe.

Os Estados Unidos procuram reduzir a margem de autonomia dos três países medianos da região. Exige que o Brasil entregue a supervisão da Amazônia, que o México reforce a infiltração da DEA e que a Argentina aceite as ordens do FMI. Como as invasões diretas (como Granada ou Panamá) já não são viáveis, o Pentágono reforça suas bases na Colômbia e patrocina inúmeras conspirações contra a Venezuela.

Trump implementou esse roteiro com brutalidade e Biden apressa-se para continuá-lo com bons modos. Ele precisa recompor a deteriorada dominação do Norte e reduz os excessos verbais de seu antecessor, a fim de reconstruir alianças com o establishment latino-americano. Mas, da mesma maneira que Trump, prioriza a diminuição da presença da China na região. Todas as iniciativas da Casa Branca desmentem a percepção ingênua “de que os Estados Unidos já não estão interessados na América Latina”. Recuperar a dominação plena do hemisfério é a prioridade principal de Washington.

É por isso que apoia os governos de direita que atuam como herdeiros das ditaduras denunciadas por Galeano. Tal como os teóricos da dependência, o pensador uruguaio indagava nos anos 70o pilar coercivo de todos os sistemas políticos latino-americanos. Retratava como as tiranias implementavam diferentes modelos de totalitarismo e destacava a primazia exercida pelas burocracias militares na gestão do estado.

No período pós-ditatorial das décadas seguintes, esse esquema foi substituído por diversas modalidades de constitucionalismo, que combinaram políticas econômicas neoliberais com a aceitação forçada das conquistas democráticas.

Mas após várias décadas, os regimes de direita tentam recuperar novamente o predomínio no compasso de uma restauração conservadora. Atuam através da continuação de governos reacionários, de novas capturas eleitorais e de golpes institucionais reiterados. No último biênio de pandemia, militarizaram suas administrações e instauraram estados de exceção, com o crescente protagonismo das forças armadas.

A direita regional opera agora de forma coordenada para estabelecer regimes autoritários. Não promove as tiranias militares explícitas dos anos 70, mas formas disfarçadas de ditadura civil. Entre seus expoentes, persiste uma divisão visível entre personagens extremistas e moderados, mas todos unem forças nos momentos decisivos.

A direita implementa uma estratégia comum de proscrição dos principais líderes do progressismo. Recorrem a mecanismos criativos para inabilitar opositores e orquestrar golpes parlamentares, judiciais e midiáticos. Aspiram a alcançar o controle brutal dos governos retratados no texto de Galeano. Recriaram, além do mais, os discursos primitivos da Guerra Fria e as campanhas delirantes contra o comunismo que propagavam quando a primeira edição de Veias Abertas foi publicada.

Mas todas as figuras da direita regional enfrentam uma grande erosão política por sua responsabilidade na gestão desastrosa do estado. Devem lidar, ademais, com o grande ressurgimento da mobilização popular.

Em três bastiões do neoliberalismo (Colômbia, Peru e Chile) verificaram-se enormes revoltas nas ruas, e, em outros casos, os protestos permitiram a reintegração do governo progressista substituído por um golpe militar (Bolívia). Em diferentes cantos do hemisfério, desponta uma tendência convergente para o reinício das rebeliões que convulsionaram a América Latina no início do milênio.

 

Um símbolo de nossas lutas

Em Veias Abertas, há um apelo repetido à construção de uma sociedade não capitalista de igualdade, justiça e democracia. Essa mensagem está presente em várias passagens do texto. Galeano compartilhava com os teóricos da dependência o objetivo de reforçar um projeto socialista para a região.

Nos anos 1960-70, esperava-se avançar em direção a esta meta ao cabo de revoluções populares vitoriosas. Essa expectativa foi confirmada pelas rebeliões anticoloniais, pelo protagonismo do Terceiro Mundo e pelos triunfos do Vietnã e de Cuba.

Posteriormente, prevaleceu uma etapa inversa de expansão do neoliberalismo, o desaparecimento do chamado “campo socialista” e a reconfiguração da dominação global. Na América Latina, contudo, ressurgiram as esperanças com as rebeliões que marcaram o início do novo século, facilitando a emergência do ciclo progressista e o aparecimento de vários governos radicais. O contexto atual é marcado por uma disputa não resolvida e pela confrontação persistente entre os despossuídos e os privilegiados.

Esse choque inclui revoltas populares e reações dos opressores. Num polo, aflora a esperança coletiva, e no outro o conservadorismo das elites. As vitórias significativas coexistem com retrocessos preocupantes, num quadro marcado pela indefinição dos resultados. Está pendente o resultado da batalha entre os desejos do povo e os privilégios das minorias.

Veias Abertas é um texto representativo dessa luta e por essa razão é periodicamente redescoberto pela juventude latino-americana. O mesmo ocorre com a Teoria Marxista da Dependência. Esse instrumento teórico recupera seu público devido à explicação que proporciona para a compreensão da dinâmica contemporânea da região. Desperta o interesse de todos aqueles interessados em mudar a realidade opressora da região.

O livro de Galeano e o dependentismo compartilham da mesma recepção entre as novas gerações que recuperam os ideais da esquerda. Veias abertas é um verdadeiro emblema dos ideais transformadores. É por isso que em abril de 2009, durante a Quinta Cúpula das Américas, o presidente Chávez presenteou publicamente Barack Obama com um exemplar do livro. Com esse gesto, destacou qual é o texto que sintetiza os sofrimentos, projetos e esperanças de toda a região.

Galeano personificava estes ideais e também gerava um fascínio inigualável no público. Transmitia entusiasmo, sinceridade e convicção. Suas palavras convocavam para a construção de um futuro de fraternidade e igualdade e a renovação desse compromisso é a melhor homenagem a sua obra.

*Claudio Katz é professor de economia na Universidad Buenos Aires. Autor, entre outros livros, de Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo (Expressão Popular).

Como combater a sociedade dos escravos digitais? Entrevista com Ricardo Antunes

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Poucas vezes, na história do capitalismo, a exploração foi tão crua, diz Ricardo Antunes. Ele sustenta: governo Lula resiste a enfrentar o problema; mas os precarizados, constrangidos por tantos obstáculos, estão apenas começando a lutar

OUTRAS PALAVRAS – 13/09/2024

Entrevista a Maria Carolina Santos, no Marco Zero

Desde os anos 1970 o sociólogo Ricardo Antunes, professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisa as relações de trabalho. Acompanhou a ascensão dos movimentos sindicais do ABC Paulista e do trabalho feito em computadores, as mudanças provocadas pela pandemia e o home office. Autor de mais de uma dúzia de livros, nos últimos anos ele vem investigando as plataformas digitais como uber e ifood. E está consternado com o que está acontecendo.

Para o experiente pesquisador, a precariedade do trabalho nas plataformas digitais só encontra paralelo lá na Revolução Industrial, há mais de 200 anos. “O capitalismo de plataforma tem algo em comum com a protoforma do capitalismo: a exploração ilimitada do trabalho”, avalia.

Nas entrevistas que faz com esses trabalhadores para suas pesquisas, o comum é escutar que eles cumprem jornadas de 10, 12 horas. “Eu entrevistei um trabalhador que me falou que trabalhou por 20 horas seguidas. Eu quase caí da cadeira. Perguntei então o que ele fez no dia seguinte e ele respondeu: “A mesma coisa, dormi 2 horas e comecei de novo”, contou Ricardo Antunes, para uma plateia que lotou a sala Aloísio Magalhães, no campus do Derby da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), durante a abertura do I Seminário Mundos do Trabalho: da precarização laboral ao adoecimento mental, promovido na semana passada pela Fundaj e os grupos de pesquisa Labor (UFRPE) e Gesto (UFPE) .

Para Antunes, estamos ingressando em uma nova era de subordinação do trabalho ao capital. Agora, sob o comando de ferramentas informacionais que tende a acentuar ainda mais o processo de desantropomorfização – retirando ao máximo o fator humano do trabalho. “No capítulo de O capital em que Karl Marx trata da grande indústria, ele diz que na indústria da revolução industrial, nos séculos XVIII e XIX, os trabalhadores e trabalhadoras se tornam autômatos e atentes da máquina. Hoje nós somos autômatos e atentes desta máquina digital (mostra o celular) que está controlando o nosso tempo. O trabalho humano que nós temos hoje, ele é ainda mais desantropomorfizador, ele perde ainda mais o seu sentido humano”, disse.

As longas jornadas do chamado “capitalismo de plataforma” trazem também formas mais sofisticadas de submissão dos trabalhadores. Há quem chame de subordinação algorítmica, mas a procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT) Vanessa Patriota da Fonseca, que dividiu a mesa de abertura com Ricardo Antunes, prefere caracterizar como subordinação clássica, por entender que não há diferença no controle.

“Há uma parte que tem o capital e outra parte que tem a força de trabalho. Esses termos muito usados pelas empresas, como colaborador, economia de compartilhamento, parceria, foram criados para intensificar o vínculo simbólico que une uma legião de pessoas exploradas às empresas que as exploram”, disse a procuradora. “As plataformas digitais de trabalho foram criadas em um contexto em que o trabalho ocupa todos os espaços da vida e suga um tempo cada vez maior dos trabalhadores e das trabalhadoras. Isso em um mundo onde as entidades sindicais estão extremamente fragilizadas, dificultando suas lutas, e onde os Estados são capturados pelas grandes corporações”, completou.

Ricardo Antunes usou por algumas vezes a palavra “devastação” para falar do momento atual do mundo: devastação ambiental e devastação no trabalho.

“No século XX, a grande Rosa Luxemburgo nos disse certa vez que o dilema do seu tempo era socialismo ou barbárie. Acertou. Só que se Rosa Luxemburgo estivesse viva hoje, ela diria que não é mais esse, pois na barbárie nós já estamos. E o trabalho é a nossa autocracia dessa barbárie”, disse o professor.

A frase, atribuída aos filósofos Fredric Jameson e Slavoj Zizek, de que “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que imaginar o fim do capitalismo” foi citada algumas vezes durante os dois dias de seminário. Mas Ricardo Antunes lembra que a história é imprevisível. E que a luta de classes é o que vai mudar a realidade de precarização de trabalhadores e trabalhadoras.

“Nós vamos ter que lutar. Porque se a gente não fizer isso, os nossos filhos e os nossos netos, se tiver mundo para eles viverem, serão escravos digitais. Então, nós, se não quisermos lutar por nós mesmos, é bom que comecemos a lutar por eles”, alertou.

Ricardo Antunes tem uma fala cativante: é direto e sem papas na língua, arrancando, aqui e ali, risadas da plateia. É também extremamente gentil. No evento da Fundaj não se furtou a nenhum pedido de autógrafos, fotos, selfies ou conversas rápidas com as dezenas e dezenas de leitoras e leitores que o abordaram.

Ao final da palestra, uma longa fila se formou para fotos. Logo em seguida, sem intervalo, ele participou do lançamento do livro Subordinação (mal) Camuflada: a dominação capitalista no trabalho em plataformas digitais, da procuradora Vanessa Patriota da Fonseca, do qual escreveu o prefácio.

Enquanto a autora autografava os exemplares do livro, Ricardo Antunes arranjou uma brechinha para esta rápida entrevista abaixo.

Nela, afirma que a política de conciliação do governo Lula não vai fazer as mudanças que os trabalhadores e trabalhadoras precisam. “Tem que combater o capitalismo. E lutar por políticas públicas, sociais etc. Mas não pode ter ilusão. Porque o capitalismo não aceita mais nem regulamentação, nem políticas sociais. Ele quer a neoliberalização geral. O capitalismo que está fazendo sucesso hoje é o que combina fascismo com neoliberalismo”, alerta.

Confira a entrevista

Como a precarização e a falta de direitos atinge a saúde do trabalhador?

Quanto mais informalidade, melhor para as empresas. Ou seja, trabalha, ganha; não trabalha, não ganha. O mundo das empresas que ainda têm alguma regulação, como bancos e metalúrgicas, só têm regulação porque os sindicatos lutam. Explorar até o limite só tem um resultado: no caso dos motoqueiros, há a morte de mais de um por dia na cidade de São Paulo. Sem falar dos acidentes: esses motoqueiros quebram braço, perna, bacia, cabeça. É um vilipêndio. É uma morte a céu aberto.

A resiliência é trabalhar todo o possível para a empresa. Qual é o resultado da resiliência? É o burnout, é a depressão, é o assédio, é o sofrimento. E muitas vezes o suicídio.

Um bom exemplo do que é o capitalismo é o Japão. A sociedade japonesa é uma das que tem mais suicídios no mundo. Porque até os gerentes de cada um dos intermediários acham que se a empresa faliu ou está indo mal, a culpa é deles. Ficam trabalhando na empresa até morrer. Quando a Telefrance, na França, foi privatizada, aconteceram mais de 50 suicídios lá dentro. Porque a privatização hoje avança para quebrar direitos da classe trabalhadora. Uma classe trabalhadora sem direitos é uma classe trabalhadora empurrada para o sofrimento, para a depressão, para o burnout, para o assédio, para o suicídio e para a morte.

E como é que você muda isso? Tem que combater o capitalismo. E lutar por políticas públicas, sociais, etc. Mas não pode ter ilusão. Porque o capitalismo não aceita mais nem regulamentação, nem políticas sociais. Ele quer a neoliberalização geral. No capitalismo, hoje o que está fazendo sucesso é a combinação de fascismo com neoliberalismo. O exemplo mais evidente é a boçalidade indigente e inqualificável do Javier Milei na Argentina. Este é o boçal do nosso tempo: um burguês ilimitado que está destruindo a classe trabalhadora argentina dizendo-se neoliberal e libertário.

Como é que o senhor avalia o que o terceiro governo Lula tem feito para os trabalhadores?

A primeira coisa importante para avaliar o governo Lula é entender que ele pegou um país de terra arrasada. Fundamentalmente, Michel Temer deu legalidade à aberração do arcabouço fiscal, ou seja, não se amplia recursos para saúde, educação e previdência pública. Um país que não amplia recursos para saúde, educação e previdência pública é o país que comete um crime contra a sua população.

E por que não amplia recursos? Porque os bancos querem dominar o capital financeiro. A primeira coisa que teria que fazer é cortar o domínio e a hegemonia dos bancos e do capital financeiro na política econômica do país. E isso o governo Lula não conseguirá porque é um governo politicamente débil e frágil. Mas, por exemplo, o governo Lula está tentando, ao seu modo, lutar por uma coisa importante, que é retirar a autonomia do Banco Central.

O segundo fator é que, politicamente, para derrotar o Bolsonaro, que foi a expressão do neofascismo do Brasil, evidenciou-se que era preciso eleitoralmente ampliar uma frente. No segundo turno, a diferença de Lula para Bolsonaro foi de menos de 2 milhões de votos. O que o Bolsonaro fez nos últimos seis meses do seu governo foi a devastação total para comprar votos dos eleitores pobres. Lula tomou posse e viveu um golpe oito dias depois da eleição, seria então um milagre que nós tivéssemos no paraíso

Outro ponto é que Lula foi eleito com um programa moderado de conciliação de classes. É sempre bom lembrar que Geraldo Alckmin era o homem do neoliberalismo do Brasil até ontem e continua sendo. É que o Alckmin não é fascista e o Bolsonaro é. E, claro, que Alckmin também estava muito fragilizado no PSDB, que praticamente tinha desaparecido.

Dito isto, o Lula que ganhou a eleição está muito aquém do que ele poderia fazer, mas reconheço ações importantes.

Quais? Na área do trabalho?

Não na área de trabalho. A área de trabalho até agora é lamentável. Reconheço, por exemplo, a tentativa de combater o crime organizado na Amazônia e tentar minimizar as condições de sofrimento e adoecimento do povo indígena. Não é fácil você fechar a Amazônia para o crime porque é uma fronteira aberta imensa, o crime entra por todos os lados. Uma parte da polícia estadual muitas vezes é vinculada ao crime, basta pensar que os milicianos que nascem dentro da polícia e se tornam criminosos e outras tantas dificuldades.

Agora, no que diz respeito à questão do trabalho, o governo Lula não fez nada do que poderia. Claro, não estou falando aqui da política econômica, é evidente que tem havido já uma redução do desemprego razoável. Acabamos de ver agora que houve o crescimento do PIB, então há uma tentativa de retomada do crescimento econômico, mas, por exemplo, o que o Lula disse em campanha? Que ia debater com seriedade a “contra-reforma” trabalhista de Michel Temer. Não só não debateu e não fez a revisão, como o PL 12/2024 (o projeto de lei 12/2024 cria a categoria “trabalhador autônomo por plataforma” e atualmente está fora de pauta no congresso) do seu governo é a continuidade do projeto Temer de destruição do trabalho.

O senhor está se referindo ao projeto de lei que estabelece 12 horas de trabalho diário por aplicativo?

Isso, 12 horas para cada aplicativo. Não fala das mulheres – não há uma nota sobre as trabalhadoras! – e não fala da questão crucial. A questão crucial é que quando você avalia o trabalho em plataformas é se é um trabalho que é verdadeiramente autônomo, ou seja, o trabalhador faz o que quer e não faz o que não quer, ou se ele é um assalariado sem direitos.

No artigo terceiro deste PL do Lula, se diz que esses trabalhadores são “autônomos”, que trabalhadores de plataformas de automóveis são autônomos. É criminoso, porque não é verdadeiro, é falso. Você acha que quem trabalha 12, 14, 16, 18 horas por dia é autônomo?

Autonomia é outra coisa. Se eu sou um eletricista autônomo, eu faço o serviço da sua casa, e eu quem vou dizer quanto eu cobro, quando eu posso fazer, quantos dias eu vou levar e como eu quero receber. Você fala que só vou pagar quando terminar, eu falo que não, eu preciso que você me pague antes uma parte para eu comprar material. Isso é que é ser autônomo, é elementar.

No que diz respeito à questão trabalhista, dos direitos do trabalho, o Lula tem algumas questões cruciais e urgentes a enfrentar: extinguir o trabalho uberizadoda “contra-reforma” de Temer; recuperar o mínimo de força sindical que a “contra-reforma” de Temer também arrebentou, tentando minar economicamente os sindicatos; acabar com as tantas formas de precarização, inclusive, do trabalho feminino na “contra-reforma” trabalhista, porque você desobrigou as empresas de uma série de obrigações que ela tinha, até do transporte de levar trabalhadores e trabalhadoras; e quarto elemento, que diz respeito ao trabalho em plataforma, é inaceitável que um ex-operário que durante décadas trabalhou em fábrica, faça um projeto de lei do seu governo que atende a Uber e iFood, que estão contentes e felizes na vida.

Os entregadores não aceitaram essa proposta do PL?

Felizmente, há luta de classes e há resistência. E, neste caso, além de toda a denúncia que muitos fizeram – eu também fiz, porque era inaceitável – os jovens entregadores e entregadoras de motos e bicicletas repudiaram essa proposta e a Aliança Nacional dos Entregadores de Aplicativos, chamada de Aliança, disse: “não aceitamos”. E saiu da negociação, deixando o Lula levando o pau do bolsonarismo, que é de extrema direita e é fascista, mas levando críticas também dos setores de esquerda que lutam em defesa dos direitos da classe trabalhadora.

Os motoristas aceitaram, não foi?

Os motoristas aceitaram em parte. Não é que eles aceitaram, mas os que estavam lá aceitaram. Mas se você for fazer uma enquete entre eles, a maioria não aceita. E não é por bons motivos que eles não aceitaram, né? Mas quem é o motorista nos aplicativos hoje? Um era veterinário, outro era engenheiro, outro era motorista de caminhão, outro era operário metalúrgico, outro era trabalhador da construção civil, outro era estudante, outro era gestor de pequena empresa, é um compósito heterogêneo de categorias sociais que, de repente, tem um carro ou aluga, tem uma moto ou aluga, tem uma bicicleta e aluga e vai trabalhar.

E é muito importante entender que esta categoria, além de ser heterogênea, fragmentada, ela vem de experiências diferentes. Um operário metalúrgico, por exemplo, que virou um uberizado, ele tem a experiência das greves.

O operário, o antigo motoqueiro, tinha a experiência do sindicato dos motoqueiros. Já um engenheiro que está desempregado, ou um pequeno empresário, eles não querem saber. Os mais jovens nasceram – e a maioria é muito jovem, especialmente os entregadores – sob o signo de que o sindicato atrapalha, política é negativa e a CLT é um horror.

E isso é tudo construção ideológica das empresas para poder ter uma classe trabalhadora disponível para a exploração ilimitada. Mas muito importante uma coisa: a luta de 1º de julho de 2020 mostra que os trabalhadores, quando a porca torce o rabo, perceberam que há um problema e aí começaram a lutar.

O senhor é otimista com esse movimento Breque dos apps? Porque já faz quatro anos que aconteceu

Não estou sendo otimista, porque nenhum movimento operário, em toda a história do movimento operário, nasce no primeiro, segundo, terceiro ou quarto ano. Quantos anos o ABC Paulista levou para fazer greve depois das greves de Contagem e Osasco? (em abril de 1968, a primeira grande greve no Brasil após o golpe de 1964). Dez anos. Por quê? Por que eram bobos? Não. Porque era uma ditadura. Veja, pense o seguinte: se eu estou endividado, se eu alugo um carro ou compro um carro, se eu alugo uma moto ou compro uma moto, eu compro um celular e fico endividado, eu vou chegar nessa plataforma e vou começar a lutar contra ela? Não, a primeira coisa que eu quero é ganhar dinheiro e trabalhar que nem louco para pagar o carro, a moto ou o celular.

Quanto tempo a Uber está no Brasil? Ela chegou em 2014. Ela só ganhou corpo na pandemia. Em 2016, 2017 ela era pequenininha, mesmo na Inglaterra, mesmo em outros países. É que com a explosão do desemprego na pandemia, as plataformas se expandiram.

É por isso que a Uber, a 99, a Cabify, a Lyft, a Deliveroo, como exemplos generalizados, pagavam muito mais antes. Quando você tem 10 trabalhadores ou trabalhadoras, você paga X. Quando você tem 100, você paga X menos tanto. Quando você tem 1.000, você paga 100 menos X menos Y. Quanto mais trabalhadores e trabalhadoras disponíveis, desempregados, menor é o seu salário.

Se a economia do Brasil melhorar, o número de trabalhadores de aplicativos também pode diminuir?

Não dá para dizer isso porque os salários médios do Brasil hoje estão muito baixos. Então, por exemplo, todos os trabalhadores que eu entrevistei até hoje, todos eles dizem que preferem trabalhar 12, 13 horas e tirar R$ 5 mil, R$ 6 mil do que trabalhar numa empresa e ganhar R$ 3 mil, com descontos. O trabalhador só vai começar a perceber o problema se ele se acidenta e para de trabalhar, porque aí ele não tem um centavo para sobreviver. Aí ele começa a refletir. Eu tenho acompanhado as movimentações dos trabalhadores em aplicativos em Portugal, Inglaterra, Espanha, Itália, Argentina, Uruguai, Brasil. É uma categoria nova, tem apenas alguns anos.

 

“Nexus”, por Hélio Schwartsman

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Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”.

Folha de São Paulo, 29/09/2024.

Vale a pena ler “Nexus”, o novo livro do historiador israelense Yuval Noah Harari. A exemplo do que fez em obras anteriores, ele discute coisas relevantes e escreve maravilhosamente bem.

O tema desta vez são as redes de informação e a inteligência artificial. Mestre das generalizações, Harari discorre sobre esses tópicos encaixando-os numa narrativa totalizante. O mundo é o que é em larga medida por causa das diferentes formas como lidamos com informações e as realidades imaginárias que elas geram.

A diferença entre democracias e ditaduras é que as primeiras imprimem transparência ao fluxo de informações, permitindo que elas sejam avaliadas pelos cidadãos e eventualmente corrigidas, enquanto as últimas buscam apenas controlar os dados para controlar a sociedade.

Outro ponto alto de Harari é que ele entremeia a narrativa principal com interessantíssimas subtramas e anedotas. Em “Nexus”, ele faz ótimas observações sobre religiões, seus livros sagrados e epifenômenos como a caça às bruxas, além de contar boas histórias como a do pombo-correio Cher Ami, herói da Primeira Guerra Mundial.

As virtudes de Harari acabam escondendo alguns defeitos. A narrativa límpida dá a sensação de que tudo o que o autor diz já é dado como líquido e certo pela ciência, o que não necessariamente é o caso. Ele até diz que as coisas são mais complicadas, mas raramente dá voz a argumentos contrários. Falta ao texto um pouco daquela humildade meio forçada do discurso acadêmico, mas que ajuda a mostrar que modelos e chaves-explicativas têm limites.

Outro ponto fraco é o caráter altamente especulativo de teses apresentadas sobretudo nas partes finais do livro, que tratam da IA. Harari não esconde que especula. Mas falta alertar para os riscos. Em seus livros anteriores, ele destacava a ameaça que a IA representava para os empregos; neste ele afirma, sem maiores explicações, que as novas tecnologias que eliminam empregos acabam criando novas funções.

O mundo é mesmo complicado, mas isso não elimina o prazer que é ler Harari.

 

Ajuste Fiscal

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Vivemos num momento de grande ansiedade, todos queremos um ajuste fiscal vigoroso do governo nacional, os grupos econômicos e financeiros querem que o governo reduza seus gastos, querem ainda, a diminuição dos dispêndios dos governos municipais e estaduais e, ao mesmo tempo, ninguém quer abrir de seus subsídios, que aumentam seus ganhos monetários e também ninguém quer pagar mais impostos e, usam seus instrumentos políticos para impedir a redução das taxas de juros, que garantem seus ganhos elevados e seu entesouramento. Ajuste fiscal e controle dos gastos é para os outros… por isso, estamos nesta situação de caos generalizado.

A Justiça do Trabalho em xeque, por Erik Chiconelli Gomes

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Após a “Reforma” Trabalhista ela tornou-se muito menos acessível. Mas, da economia de plataformas ao trabalho remoto, precisará se reinventar. A sociedade se transforma – e ela não é algo “setorial”, mas determinante na redução das desigualdades no país

Erik Chiconelli Gomes – OUTRAS PALAVRAS – 27/09/2024

A relação entre capital e trabalho sempre foi palco de intensos debates e conflitos ao longo da história. No Brasil, a Justiça do Trabalho emerge como uma instituição fundamental para mediar essas tensões, buscando equilibrar os interesses de empregadores e trabalhadores. Contudo, as recentes mudanças na legislação trabalhista, em especial a reforma de 2017, trouxeram questionamentos sobre o papel e a eficácia dessa instituição no contexto contemporâneo.

A formação da Justiça do Trabalho no Brasil está intrinsecamente ligada ao processo de industrialização e urbanização do país no início do século XX. Este período foi marcado por intensas lutas sociais e pela emergência de uma classe operária que buscava melhores condições de trabalho e reconhecimento de seus direitos. Os sindicatos desempenharam um papel crucial nesse processo, atuando como representantes coletivos dos trabalhadores e sendo fundamentais para a conquista de direitos e para a criação de um ambiente de negociação mais equilibrado entre capital e trabalho.

A promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em 1943 representou um marco na história do direito trabalhista brasileiro. Este conjunto de leis buscava não apenas regular as relações de trabalho, mas também estabelecer um patamar mínimo de direitos e garantias para os trabalhadores. Com o fim do regime militar e a promulgação da Constituição de 1988, a Justiça do Trabalho ganhou novos contornos e atribuições. A carta magna reafirmou a importância dos direitos trabalhistas e fortaleceu o papel desta justiça especializada na resolução de conflitos laborais.

O advento da globalização e as transformações no mundo do trabalho trouxeram novos desafios para a Justiça do Trabalho. As pressões por flexibilização das leis trabalhistas ganharam força, sob o argumento de que era necessário modernizar as relações de trabalho para aumentar a competitividade das empresas brasileiras. É neste contexto que surge a reforma trabalhista de 2017, apresentada como uma solução para modernizar as relações de trabalho e reduzir o número de processos na Justiça do Trabalho.

A Reforma Trabalhista e seus impactos

Contrariando as expectativas iniciais, a reforma não resultou em uma redução sustentada do número de processos trabalhistas. Conforme apontado pelo presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Lelio Bentes Corrêa, houve uma queda inicial seguida de um aumento gradual nos anos subsequentes. Uma das mudanças mais controversas da reforma foi a introdução dos honorários de sucumbência, mesmo para beneficiários da justiça gratuita. Esta medida foi vista por muitos como um obstáculo ao acesso à justiça, especialmente para trabalhadores em situação de vulnerabilidade econômica.

A intervenção do Supremo Tribunal Federal, declarando inconstitucionais alguns aspectos da reforma, como o pagamento de honorários por beneficiários da justiça gratuita, demonstra as tensões e contradições presentes na nova legislação trabalhista. A reforma também impactou significativamente a atuação dos sindicatos, ao eliminar a obrigatoriedade da contribuição sindical. Esta mudança afetou a sustentabilidade financeira dessas organizações, potencialmente enfraquecendo sua capacidade de representação e negociação coletiva.

Os efeitos da reforma sobre os trabalhadores são múltiplos e complexos. Se por um lado houve uma flexibilização das relações de trabalho, por outro, muitos argumentam que isso resultou em uma precarização e redução de direitos historicamente conquistados. Instituições como o CESIT (IE/Unicamp), o Dieese e o Ipea têm desempenhado um papel crucial na análise desses impactos, fornecendo subsídios importantes para a compreensão das transformações no mundo do trabalho e na Justiça do Trabalho.

A questão da desigualdade

Historiadores que se dedicaram ao estudo da Justiça do Trabalho, como Ângela de Castro Gomes e Fernando Teixeira da Silva, têm contribuído para uma compreensão mais profunda do papel histórico desta instituição e das transformações nas relações de trabalho no Brasil. Seus estudos revelam que a atuação da Justiça do Trabalho não pode ser dissociada do contexto mais amplo de desigualdade social no país. As decisões e orientações desta instituição têm impactos diretos na distribuição de renda e nas condições de vida dos trabalhadores.

O advento das novas tecnologias e formas de trabalho, como o trabalho por aplicativos, impõe novos desafios à Justiça do Trabalho. A necessidade de adaptar-se a essas novas realidades sem perder de vista a proteção dos direitos fundamentais dos trabalhadores é um dos grandes desafios contemporâneos. Diante das transformações recentes, a Justiça do Trabalho se vê diante da necessidade de encontrar um novo equilíbrio entre a flexibilidade demandada pelo mercado e a proteção dos direitos dos trabalhadores. Este equilíbrio é fundamental para a manutenção da paz social e para o desenvolvimento econômico sustentável.

O futuro da Justiça do Trabalho

O futuro da Justiça do Trabalho no Brasil dependerá de sua capacidade de se adaptar às novas realidades do mundo do trabalho, sem abrir mão de seu papel fundamental na proteção dos direitos dos trabalhadores e na mediação dos conflitos entre capital e trabalho. A análise crítica da reforma trabalhista e seus impactos revela a complexidade e as contradições presentes nas relações de trabalho contemporâneas. É fundamental que a sociedade brasileira continue a debater e refletir sobre estas questões, buscando caminhos que promovam tanto o desenvolvimento econômico quanto a justiça social.

Os desafios que se apresentam para a Justiça do Trabalho no século XXI são múltiplos e complexos. A instituição precisa encontrar formas de lidar com as novas modalidades de trabalho, como a economia de plataforma e o trabalho remoto, que escapam muitas vezes às categorias tradicionais do direito trabalhista. Ao mesmo tempo, é necessário garantir que a busca por flexibilidade e competitividade não resulte em uma erosão dos direitos fundamentais dos trabalhadores.

A experiência histórica da Justiça do Trabalho no Brasil, desde sua criação até os dias atuais, demonstra sua capacidade de adaptação e seu papel crucial na mediação dos conflitos laborais. No entanto, o cenário atual exige uma reflexão profunda sobre seu papel e suas práticas. É essencial que a instituição mantenha sua relevância como guardiã dos direitos trabalhistas, ao mesmo tempo em que se mostra capaz de compreender e responder às mudanças no mundo do trabalho.

Em última análise, o futuro da Justiça do Trabalho no Brasil está intrinsecamente ligado ao futuro do próprio trabalho em nossa sociedade. As decisões tomadas hoje terão impactos duradouros na vida de milhões de trabalhadores e na estrutura social do país. Portanto, é imperativo que essas decisões sejam baseadas em uma compreensão profunda da história das relações de trabalho, em dados empíricos sólidos e em um compromisso inabalável com a justiça social.

A Justiça do Trabalho, ao longo de sua história, tem sido um campo de batalha onde se confrontam diferentes visões sobre o papel do trabalho na sociedade e sobre os direitos dos trabalhadores. Sua evolução reflete as mudanças sociais, econômicas e políticas do país. Agora, diante dos desafios impostos pela reforma trabalhista e pelas transformações no mundo do trabalho, ela se encontra novamente em um momento crucial. O caminho que ela seguirá terá implicações profundas não apenas para os trabalhadores e empregadores, mas para toda a sociedade brasileira.

Referências

BIAVASCHI, M. B. et al. O impacto de algumas reformas trabalhistas na regulação e nas instituições públicas do trabalho em diálogo comparado. In: KREIN, J. D.; GIMENEZ, D. M.; SANTOS, A. L. (Orgs.). Dimensões críticas da reforma trabalhista no Brasil. Campinas, 2018.

CARDOSO, A. M.; LAGE, T. As normas e os fatos: desenho e efetividade das instituições de regulação do mercado de trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.

DIEESE. A reforma trabalhista e os impactos para as relações de trabalho no Brasil. Nota Técnica nº 178. São Paulo: DIEESE, 2017.

GOMES, A. C.; SILVA, F. T. (Orgs.). A Justiça do Trabalho e sua história: os direitos dos trabalhadores no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2013.

IPEA. Mercado de Trabalho: conjuntura e análise. Brasília: IPEA, 2018.

KREIN, J. D.; OLIVEIRA, R. V.; FILGUEIRAS, V. A. (Orgs.). Reforma trabalhista no Brasil: promessas e realidade. Campinas, 2019.

O TEMPO. Presidente do TST diz que reforma não cumpriu promessa de reduzir processos. O Tempo, 13 set. 2024.

FOLHA DE S.PAULO. Presidente do TST afirma que reforma trabalhista não cumpriu promessa de reduzir processos judiciais. Folha de S.Paulo, ago. 2024.

 

Subsídios do agronegócio, por Fernando Nogueira da Costa

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Fernando Nogueira da Costa

A Terra é Redonda – 23/05/2023

Nota sobre a circulação monetário-financeira entre agronegócio e serviços urbano-industriais

A publicidade contínua na TV busca convencer à desinformada opinião pública brasileira o agronegócio ser tudo na economia brasileira. Ao buscar essa hegemonia, tenta o transformar em uma totalidade merecedora dos privilégios oferecidos pelas políticas públicas – agrícola, comercial, financeira, tributária, fundiária e tecnológica – do Estado brasileiro. Afinal, agro é pop…

O agronegócio exportador recebe incentivos fiscais no imposto de renda, não paga imposto de exportação e pouco paga de Imposto Territorial Rural (ITR). Beneficia-se da moeda nacional depreciada em favor de suas exportações e goza de subsídios no crédito rural. O Tesouro Nacional, isto é, todos os contribuintes, banca a equalização da taxa de juros: um subsídio governamental dado aos produtores rurais quando o governo cobre a diferença entre a taxa de juros praticada no mercado financeiro e a taxa efetivamente paga pelo produtor devedor.

O mito para justificar tudo isso seria a suposta transformação do comércio exterior em um completo dependente de commodities agrícolas. Por um lado, abstrai as exportações de petróleo e minerais, fora a de produtos manufaturados. Por outro, não destaca a grande responsabilidade pelo salto da exportação de US$ 48 bilhões em 1999 para US$ 334 bilhões em 2022 ter sido a demanda externa, em especial, a da China.

Aliás, vale destacar: entre 2003 e 2011, a média das variações anuais da exportação brasileira foi 18,6% aa com uma única queda em 2009; entre 2012 e 2020, essa média foi negativa (-1,7% aa), com altas apenas em 2017 e 2018. Os crescimentos dos anos de 2021 e 2022 foram excepcionais, respectivamente +34,2% e +19%, por conta da recuperação do fluxo dos negócios após a pandemia mundial.

Guilherme Delgado (Diplô, maio de 2023) conceitua o agronegócio como “um pacto de Economia Política, associando complexos agroindustriais integrados com a grande propriedade fundiária e o Estado planejador do lucro da produção e da valorização patrimonial, tendo em vista gerar resultados comerciais externos superavitários como meta primordial”.

O objetivo nacional é o superávit do balanço comercial cobrir o déficit da conta de serviços e renda enviados ao exterior. Por exemplo, em 2022, o déficit do balanço de transações correntes foi US$ 55,7 bilhões, apesar do superávit do balanço comercial em US$ 44,4 bilhões, devido ao pagamento ao exterior de US$ 40 bilhões em serviços e remessa de renda primária de US$ 64 bilhões, seja em investimento direto (US$ 42 bilhões), seja em investimento em carteira (US$ 21 bilhões). Lucros e dividendos remetidos para o exterior predominam: os de filiais para matrizes e os recebidos em carteira de ações.

É uma opção reducionista definir o agronegócio como o capitalismo agrário, assim como seria definir a “financeirização” como o capitalismo financeiro – e assim por diante. Nessa ótica, o capitalismo industrial teria perdido sua hegemonia e isso, de maneira pressuposta, seria um desastre sob o ponto de vista de geração de empregos produtivos e valor adicionado.

Deve-se compreender o funcionamento integrado do conjunto de subsistemas do sistema capitalista: agrícola, pecuário, industrial, mercantil e financeiro. Eles interagem, são interdependentes e não excludentes um do outro, seja em escala nacional, seja em nível global. Corporações multinacionais tendem a controlar o complexo de sistemas com componentes agrícola, industrial, mercantil, financeiro, tecnológico e ideológico.

O agronegócio não é apenas o complexo agroindustrial. É configurado por um complexo de redes interconectadas por governos, políticos, organizações financeiras multilaterais, redes de supermercados, bancos etc. O modelo de desenvolvimento possível para a economia brasileira não é, exclusivamente, o primário-exportador, “voltado para fora”.

A Fisiocracia à outrance é anacrônica. A etimologia do grego significa “governo da natureza”. Foi uma das primeiras teorias econômicas, desenvolvida por franceses do século XVIII na Era pré-industrial. Supunham a riqueza das nações ser derivada unicamente do valor de “terras agrícolas” ou do “desenvolvimento rural”.

Predomina ainda em muitas mentes ideológicas a ênfase fisiocrata no trabalho produtivo como a única fonte de riqueza nacional. Esse pensamento era contrastante como o Mercantilismo. Este focava na riqueza do Reino, no acúmulo de reservas em ouro através de saldo superavitário do balanço comercial.

O Mercantilismo pregava a regra de ouro do comércio: o valor dos produtos da sociedade seria criado por o vendedor vender seus produtos por mais dinheiro daquele preço pago originalmente. A força ideológica da corrente fisiocrática de pensamento econômico foi ter sido a primeira a defender o trabalho ser a única fonte de valor.

No entanto, para os fisiocratas, apenas o trabalho agrícola criava valor nos produtos com o apoio da natureza, semeando mais barato e colhendo mais caro. Todos os demais trabalhos não agrícolas seriam apêndices improdutivos. Comerciantes não produziam bens, apenas distribuíam os produzidos por proprietários agrícolas.

Pior, Karl Marx e seus discípulos adotaram a proposição do trabalho produtivo como um dogma. Na verdade, segundo o esquema marxista, o capital “produtivo” não se opõe ao “improdutivo”, mas sim ao capital no processo de circulação.

O capital produtivo organiza, diretamente, o processo de criação de bens e serviços. O capital no processo de circulação organiza a compra e a venda, ou seja, a transferência do direito de propriedade sobre os produtos. O trabalho assalariado, caso seja empregado nessa circulação, não cria valor, apesar de ser explorado?!

Ao serem utilizados para a transferência do direito de propriedade privada, todos os trabalhadores empregados, entre outras “atividades terciárias”, no comércio (compra e venda), no governo (administração pública) e no sistema financeiro (pagamentos, financiamentos e gestão do dinheiro) seriam “improdutivos”? Evidentemente, este é um adjetivo inadequado, porque pode ser confundido como “inúteis”. Ora, eles possibilitam a alavancagem financeira geradores de maior escala de empregos e a realização das vendas com valor adicionado superior aos gastos intermediários.

Em todo o mundo, houve mudança da população das áreas rurais para as urbanas e consequente aumento da proporção de habitantes em cidades. Até 2050, cerca de 64% do mundo em desenvolvimento e 86% do mundo desenvolvido serão considerados urbanizados. O grau de urbanização do Brasil já alcançou este último patamar.

No ano de 1940, apenas 32% da população brasileira vivia em cidades. O censo demográfico de 1970 registrou a ultrapassagem da população urbana sobre a rural.

O processo de urbanização no Brasil se desenvolveu, principalmente, na segunda metade do século XX, a partir do processo de industrialização. Este foi fator de atração para o deslocamento da população da área rural em direção à área urbana. Houve também fatores de repulsão para essa migração campo-cidade, por exemplo, a concentração fundiária sem reforma agrária e a mecanização do campo.

Esse êxodo rural foi sintomático da mudança de um modelo agrário-exportador para um modelo urbano-industrial. O Sistema de Contas Nacionais do IBGE registrou já em 1947 os Serviços (55,7% do PIB) terem superado a Agropecuária (21,4%) e a Indústria (26%). Entre eles, os Financeiros foram contabilizados com 3,3%. Em 1989, a Agropecuária tinha caído para 9,8% e a Indústria Geral aumentado para 46,3% – seu auge aconteceu em 1985 com 48%. Os Serviços Financeiros, neste ano de regime de alta inflação, chegaram a 26,4%!

Em 2022, seu valor adicionado foi contabilizado em apenas 7,5%. Na verdade, o sistema financeiro não agrega, mas sim circula (e se apropria de) valor adicionado em outras atividades. Propicia o carregamento e a proteção da riqueza financeira acumulada por trabalhadores e capitalistas. Ao cumprir essa missão social de gestão do dinheiro viabiliza uma mobilidade social caso se cumpra o planejamento da vida financeira.

A urbanização costuma ser vista como negativa quando há deslocamento de moradores para subúrbios periféricos sem infraestrutura. O desenvolvimento da infraestrutura, com o planejamento estatal em lugar da autoconstrução sem presença do governo local, propicia a redução das despesas com transporte e aumenta as oportunidades de emprego, educacionais, habitacionais e de locomoção.

O crescimento econômico pode não ser regular se for baseado em pequeno número de grandes negócios e dependente de milhares de micro empreendimentos. A falta de acesso a serviços financeiros e de assessoria empresarial, a dificuldade de obtenção de crédito para abrir um negócio e a falta de habilidades empreendedoras são barreiras para novas gerações terem acesso a oportunidades profissionais e empreendedoras.

O investimento em capital humano (capacidade pessoal de ganho), para os jovens terem acesso a uma educação de qualidade, é fundamental. Em conjunto com infraestrutura, para o agronegócio e os serviços urbano-industriais, propicia superar as barreiras.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP).

 

A quarta Revolução Industrial e o futuro do trabalho, por Elisa Rosa.

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Entenda como as novas tecnologias mudam o cenário de trabalho e as competências e habilidades necessárias para o mercado.

Elisa Rosa – Sebrae – 11/09/2019

O cenário atual

Exemplos atuais: engenheiros ambientais que trabalham com a análise de desmatamento no Brasil. Antes era muito comum que as análises fossem feitas manualmente por várias pessoas. Eles tinham que delimitar a área de desmatamento manualmente ponto por ponto. Trabalho custoso, manual e que demandava muito tempo. Hoje um programa automático substituiu essa tarefa.

Outro exemplo são os caixas de supermercado na Europa. Quando fazemos compras no supermercado, metade dos caixas são automáticos e metade são operados por seres humanos.

Os carros autônomos já são uma realidade. Uber, Google e Tesla estão investindo pesadamente nessa tecnologia e esses veículos estão em fase de testes. E como ficará o emprego dos motoristas quando esses carros autônomos começarem a circular? Apenas hoje, no Brasil, temos mais de 500 mil motoristas de Uber. Imagine o número total, se somarmos os motoristas de táxis, de caminhões, particulares e de empresas.

Claro que existem várias discussões éticas acerca da legalização destes carros, mas a disrupção é intransigente. Ela tem que muitas vezes quebrar as barreiras legais, para que depois as leis se adaptem a elas.

O que esperar do futuro

E o que vai acontecer, então, quando não tivermos mais que dirigir nossos carros, quando não tivermos que operar caixas, quando não tivermos que ter que recepcionar pessoas no hotel e quando não tivermos mais que diagnosticarmos nossas doenças?

No Japão existem hotéis cujos recepcionistas são robôs. Do limpador da vidraça até o cortador de grama, as tarefas que foram automatizadas. Segundo o gerente do estabelecimento, naquele hotel, até 90% dos robôs podem substituir as tarefas desempenhadas pelos humanos.

Nós não estamos em um momento que podemos nos sentar e esperar que os eventos se desenrolem. Para estarmos preparados para o futuro, precisamos entender o que está acontecendo agora.

A quarta Revolução Industrial tem uma parte controversa: ela pode acabar com cinco milhões de vagas de trabalho nos 15 países mais industrializados do mundo, de acordo o Fórum Econômico Mundial de 2017 sobre o tema “A Quarta Revolução Industrial”. Obviamente, o processo de transformação só beneficiará quem for capaz de inovar e se adaptar.

Então quem vai sobreviver? Os que mais se adaptarem a essa nova era porque “não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas o que melhor se adapta às mudanças”, disse Darwin, o pai da Teoria da Evolução.

E não são só os empregos braçais e repetitivos que estão em risco. Em Wall Street e no Vale do Silício já acontecem enormes ganhos na qualidade da análise das tomadas de decisões por meio de inteligência artificial. Então, até mesmo pessoas mais inteligentes e bem remuneradas serão afetadas pela quarta Revolução Industrial.

Oxford fez um estudo sobre as probabilidades de automação das profissões. O site é https://willrobotstakemvjob.com. O site está em inglês, e se você não entende o idioma, tente usar o recurso de tradução automática do browser e procure por profissões como caixa, motorista e contador.

É exatamente por isso (automação dos trabalho e substituição de seres humanos por robôs e inteligência artificial) que empresários como Marck Zuckeberg e Bill Gates falam sobre a necessidade de uma renda básica universal.

Em 2017, no discurso de formatura da universidade Harvard, Mark Zuckerberg, fundador do Facebook, não falou sobre redes sociais ou empreendedorismo digital. O tema de seu discurso foi “a criação de propósito”. Ele apresentou a ideia de que os Estados garantam uma renda mínima a seus cidadãos, independente de classe socioeconômica, para que seja possível que todos tivessem o básico, para poder desenvolver ideias.

Mas nós sabemos que não dá para esperar esse projeto partir do governo para sustentarmos nosso sistema econômico. Ou seja, vamos continuar precisando de empregos para fazer a economia girar.

Então, essa resposta terá que vir de nós mesmos. Temos que reconhecer as mudanças que estão acontecendo e caminhar lado a lado.  Precisamos pensar sobre como auxiliar como os pequenos negócios do Brasil podem começar a movimentar num ritmo diferente e desenhar novos tipos de empregos que ainda serão importantes na era da robótica.

Em cinco anos, 35% das competências que são consideradas importantes na força de trabalho atualmente terá mudado, de acordo com a Reunião Anual em Davos do Fórum Econômico Mundial. Em 2020, a quarta Revolução Industrial, vai estar ligada às tecnologias disruptivas como a inteligência artificial, machine learning, robótica, nanotecnologia, dentre outras, mudando modelos de negócios e os mercados de trabalho.

Sendo assim, quais habilidades serão necessárias no futuro?

Em 2020

  1. Solução de problemas complexos
  2. Pensamento crítico
  3. Criatividade
  4. Gestão de Pessoas
  5. Empatia com os outros
  6. Inteligência Emocional
  7. Bom Senso e Tomada de Decisão
  8. Orientação para os serviços
  9. Negociação
  10. Flexibilidade Cognitiva

Em 2015

  1. Solução de problemas complexos
  2. Relacionamento com os outros
  3. Gestão de Pessoas
  4. Pensamento Crítico
  5. Negociação
  6. Controle de Qualidade
  7. Orientação para Serviços
  8. Bom Senso e Tomada de Decisão
  9. Escuta Ativa
  10. Criatividade

Fonte:  Relatório “Future of Jobs” World Economic Forum.

Alguns trabalhos vão desaparecer, outros que nem sequer existem hoje se tornarão comuns. O que é certo é que a futura força de trabalho terá de alinhar o seu conjunto de habilidades para manter o ritmo.

E não é nem possível prever quais serão esses empregos do futuro? Como há 20 anos, imaginaríamos que haveria profissões como Especialista em Redes Sociais, Youtuber, Blogger e Influenciador Digital?

O caminho para trilhar

Ao mesmo tempo em que temos essa perspectiva não muito animadora, a quarta revolução tem o potencial de melhorar a qualidade de vida de muitas pessoas, trazendo melhores diagnóstico, prevenindo pessoas de fazerem trabalhos desagradáveis e análises que podem nos ajudar a cuidar melhor do meio ambiente, por exemplo.

Se começarmos a tomar providências agora, para mudar a natureza do trabalho, podemos não criar apenas lugares em que as pessoas amem trabalhar, mas também criar a inovação que precisamos para repor os milhões de empregos que serão substituídos pela tecnologia.

Quando vemos o relatório do Fórum Econômico Mundial e as top 10 habilidades para 2020, já podemos ter uma dica do que nos aguarda. Baseado nessas habilidades, então, o que pode existir é a criação de novos empregos menos centrados nas tarefas que uma pessoa faz e mais focados nas habilidades que ela traz para o trabalho.

Robôs são ótimos em tarefas repetitivas e restritas, mas os humanos têm uma capacidade incrível de usar a criatividade quando enfrentam na resolução de problemas complexos e inéditos.

Enfim, nenhuma exploração sobre o futuro do trabalho será sempre conclusiva. Mas a realidade mostrada é cada vez mais real. Fica, assim, a reflexão sobre como podemos atuar como protagonistas nessa revolução que já está acontecendo e não vai esperar nem um segundo por nós.

Autoria: Elisa Rosa, mestra em Comunicação e analista do Sebrae Nacional

 

Dúvidas econômicas

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A economia brasileira vem apresentando bons indicadores nos últimos meses, a inflação apresenta perspectivas de estabilidade, as exportações crescem de forma acelerada, o superávit comercial cresce e garante um incremento das reservas internacionais e, ao mesmo tempo, as receitas tributárias crescem todos os meses, o emprego é o maior dos últimos dez anos, as Bolsas apresentam valores positivos, mesmo assim, encontramos grandes desafios para a economia nacional, será que estamos vivendo momentos de bonança econômica, com boas perspectivas no campo econômico e produtivo ou estamos vivendo momentos de crescimento sem lastro e, novamente, vislumbrando novas crises, com o aumento do desemprego, de descontrole dos preços relativos e nova rodada de elevação das taxas de juros?

Vivemos momentos de grandes incertezas no cenário internacional, as potências econômicas se digladiam como forma de garantir novos espaços na lógica produtiva mundial, percebemos ainda, o crescimento de políticas protecionistas em todas as nações, medidas de estímulos econômicos para garantir a internalização de produtos estratégicos para alavancar espaços no cenário produtivo global, gerando instabilidades externas, rivalidades crescentes e confrontos geopolíticos.

Depois de mais de trinta anos de baixo crescimento econômico e produtivo, marcados por uma desindustrialização precoce, a adoção de taxas de juros elevadas, com o crescimento do desemprego estrutural e o incremento da financeirização da economia, estamos vivendo momentos marcados por grandes dúvidas econômicas, que restringem os investimentos produtivos, estimulam o rentismo e criam incertezas que prejudicam o funcionamento da economia nacional.

Neste cenário, marcado por grandes incertezas externas, precisamos construir um novo consenso nacional em prol do crescimento econômico e a redução das desigualdades sociais que convivem fortemente na sociedade brasileira, precisamos de políticas públicas sólidas e consistentes que impulsionem a melhoria do ambiente econômico, estimulando os investimentos produtivos, a geração de empregos mais qualificados, melhorando as contas nacionais, reduzindo o desperdício dos gastos públicos, racionalizando os investimento públicos e atraindo conglomerados nacionais e internacionais que podem alavancar setores estratégicos da economia do século XXI, compreendendo que somos dotados de grandes recursos energéticos, além de riquezas vegetais e minerais que nos coloca em condições privilegiadas no ambiente econômico internacional.

Todas as nações que conseguiram se desenvolver economicamente com melhora de suas condições sociais, precisaram aumentar a complexidade de suas economias e de seus sistemas produtivos e, antes de mais nada, fizeram grandes investimentos em educação, priorizando o ensino, a pesquisa e construindo um verdadeiro ecossistema de inovação e empreendedorismo, garantindo oportunidades para todos os talentos nacionais e construindo empregos mais qualificados, com salários dignos e decentes, além de impulsionar o ensino superior, com professores capacitados, valorizados e conscientes de seu papel numa sociedade em constante transformação.

Os desafios são imensos para a economia nacional, para superarmos este momento de grandes dúvidas econômicas, precisamos compreender o que queremos ser no futuro imediato, se queremos continuar sendo um produtor de commodities de baixo valor agregado ou se queremos retomar nosso processo de industrialização, se não definirmos o que queremos do futuro imediato as dúvidas econômicas tendem a aumentar e as incertezas devem afugentar o crescimento, nos afastando do sonho do desenvolvimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Gestor Financeiro, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Quem sustenta a Civilização do Plástico, por Javati Ghosn.

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Símbolo do descarte e desperdício que marcam o capitalismo, ele contamina rios, mares, solos e corpos. Redução drástico de seu uso é possível e está em debate num tratado internacional. Adivinhe quem trabalha intensamente para sabotá-lo.

Javati Ghosn é professora de Economia na Universidade Jawaharlal Nehru, em Nova Délhi em Délhi, Secretaria Executiva da International Devlopment Economics Associates, e membro da Comissão Independente pela Reforma Tributária de Corporações Internacionais.

OUTRAS PALAVRAS, 26/09/2024

Não há como negar que os plásticos trouxeram benefícios imensos ao longo do último século, impulsionando a inovação tecnológica, transformando os cuidados com a saúde e alimentando o crescimento econômico global. Mas, como sabemos agora, esse progresso teve um alto custo.

As consequências adversas da nossa dependência excessiva de plásticos estão bem documentadas. Desde a extração e o transporte dos combustíveis fósseis necessários para produzi-los, passando pelo processo de fabricação, até seu uso e descarte intensos, cada etapa do ciclo de vida dos plásticos implica poluição e degradação ambiental.

A poluição plástica põe em risco a vida selvagem, danifica ecossistemas e representa sérios riscos à saúde humana. Microplásticos, junto com os produtos químicos tóxicos que contêm, são encontrados no ar que respiramos, nos alimentos que ingerimos e podem ser absorvidos pela pele. À medida que os resíduos plásticos se acumulam em oceanos, rios e lagos, produtos químicos nocivos contaminam o solo, prejudicando a vida vegetal. Embora as implicações completas dos nanoplásticos para a saúde humana ainda estejam subpesquisadas, é claro que grupos vulneráveis, como crianças, mulheres, comunidades empobrecidas e trabalhadores na produção de plásticos, gestão de resíduos e reciclagem são os mais afetados por esses perigos.

O debate atual, especialmente sobre plásticos usados uma única vez, geralmente se concentra no descarte, provocando apelos por soluções de “economia circular” como a reciclagem. Mas não existem plásticos verdadeiramente “seguros”, e os rótulos de produtos que afirmam o contrário são enganosos e obscurecem os danos causados pela extração de petróleo e gás, que respondem por 99% dos plásticos do mundo. As toxinas liberadas durante a extração de combustíveis fósseis são conhecidas por prejudicar a pele, os olhos e os sistemas respiratório, nervoso e gastrointestinal, além do fígado e do cérebro.

A produção de plástico não é apenas uma ameaça direta à saúde humana, mas também um dos principais impulsionadores das mudanças climáticas, representando cerca de 3 a 8% das emissões globais de gases de efeito estufa (GEE). No entanto, apesar dos perigos existenciais impostos pela crise climática, a produção de plástico continua a aumentar. Estimativas da OCDE sugerem que, se as tendências atuais persistirem, o uso global de plásticos, e os resíduos que eles geram, poderão quase triplicar até 2060. Espera-se que metade desses resíduos acabe em aterros sanitários, com menos de 20% sendo reciclados.

Ainda mais alarmante é a projeção de que os plásticos reciclados representem apenas 12% de todo o uso de plástico em 2060, enquanto o vazamento de plástico no meio ambiente deve dobrar, atingindo 44 milhões de toneladas anuais, com consequências devastadoras para a saúde humana e os ecossistemas naturais. Se os planos de expansão da indústria se concretizarem, a produção de plástico poderá consumir 31% do orçamento de carbono restante do planeta para limitar o aquecimento global a 1,5°C.

Esse aumento na fabricação está cada vez mais desalinhado com as projeções de demanda futura. Um estudo sugere que a produção global de plásticos como o polipropileno precisa diminuir em 18 milhões de toneladas anualmente até 2030, devido à redução da demanda da China e de outros países. Na verdade, as empresas petroquímicas já estão lidando com um excesso global de oferta, mais um exemplo de como as forças do mercado não conseguem gerar resultados eficientes ou sequer sensatos.

Com as corporações sob crescente pressão para reduzir as emissões de gases do efeito estufa, insistir na produção de plásticos à base de combustíveis fósseis parece não apenas imprudente, mas também economicamente míope. Ainda assim, um estudo recente do Instituto de Economia Energética e Análise Financeira constatou que, mesmo diante de possíveis rebaixamentos de crédito, as maiores empresas petroquímicas do mundo estão “fazendo grandes investimentos na direção errada”.

Diante das apostas envolvidas, fica claro que reduzir apenas o consumo de plástico não será suficiente para proteger a saúde humana, o meio ambiente e o planeta. À medida que o Comitê Intergovernamental de Negociação sobre a Poluição Plástica se aproxima de sua reunião final em Busan (na Coreia do Sul), ainda este ano, os esforços contínuos para concluir um tratado global para acabar com a poluição plástica devem enfrentar a necessidade urgente de conter a produção.

Infelizmente, como em muitas negociações internacionais, a resistência de interesses poderosos pode bloquear a inclusão, no acordo final, de medidas essenciais. A reunião do Comitê em abril, em Ottawa, foi um exemplo disso, revelando divisões profundas sobre estratégias fundamentais. A questão mais polêmica foi a proposta de limitar a produção global de plásticos, que enfrentou forte oposição de fabricantes, seus países de origem e produtores de petróleo e gás. Esses grupos de interesse preferiram uma abordagem mais restrita, focada na reciclagem. Alguns países petrolíferos até argumentaram que o tratado deveria cobrir apenas a gestão de resíduos.

Sem dúvida, a reciclagem é essencial. Mas ela não pode proporcionar as reduções necessárias na produção e no consumo de plástico, nem abordar os efeitos da poluição plástica na saúde humana. Mesmo no melhor cenário, sem medidas mais amplas para controlar a produção, a poluição continuará a aumentar, provocando crises graves de saúde, exacerbando a degradação ambiental e acelerando o aquecimento global.

Não surpreendentemente, os lobbies da indústria estão pressionando por um tratado internacional sobre plásticos que não seja vinculativo – ou seja, não tenha um mandato legal claro e compromissos obrigatórios. Tratados assim estão fadados a se tornarem pouco mais do que promessas vagas e a rapidamente se tornarem irrelevantes.

Reduzir o uso e a produção de plásticos é crucial para facilitar as mudanças comportamentais necessárias para que a humanidade se adapte às novas realidades ecológicas. Se os lobbies da indústria conseguirem enfraquecer o tratado sobre plásticos, excluindo limites de produção ou tornando suas disposições não vinculativas, eles sabotarão os esforços para combater as mudanças climáticas.

À medida que a crise climática se agrava, reduzir a poluição plástica nunca foi tão urgente, e é por isso que as negociações para um tratado global ganharam tanto impulso. Mas as negociações merecem muito mais atenção e engajamento público. Para garantir um futuro mais sustentável, devemos pressionar os governos a se comprometerem com um acordo internacional vinculativo que limite – e em última instância reduza – a produção e o uso de plásticos.