Democracia em disputa, por Lara Mesquita

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Certificação de Trump, posse de Maduro e atos do 8 de janeiro remetem a ameaças de forças retrógradas

Folha de São Paulo, 13/01/2025

Lara Mesquita, É professora na Escola de Economia de São Paulo e pesquisadora do FGV CEPESP. Doutora em ciência política pelo IESP-UERJ

Adam Przeworski, em artigo intitulado “Quem decide o que é democrático?”, discute o conceito de democracia. Em resumo, existem dois grupos: os minimalistas, com abordagem mais procedimental, definem a democracia como um regime em que os cidadãos são livres para escolher e remover governos livremente; e os maximalistas, que a veem como um método para realizar certos valores extrínsecos que consideram desejáveis.

A questão colocada pelo autor é que, enquanto a definição minimalista possa parecer insuficiente para muitos, permite a convivência com forças retrógradas e que até defendam o fim da democracia, os maximalistas não conseguem chegar a um consenso sobre quais são os valores essenciais da vida democrática. Não existe uma vontade geral que contemple a todos, não podemos ser reduzidos a um interesse singular: somos muitos e diversos, com valores e prioridades diferentes.

Em uma vida política democrática, aceitamos as derrotas ou que os valores dos grupos que estão nos governando sejam diferentes dos nossos porque os governos são passageiros. Como destaca Przeworski, “as derrotas são sempre temporárias”, apenas até a próxima eleição.

As oposições aos governos retrógrados e antidemocráticos precisam se unir para serem bem-sucedidas. Isso só é possível na medida em que considerem o método democrático eficiente para processar os conflitos sobre os valores que a democracia deve perseguir.

Apenas quando os brasileiros entenderam a magnitude da ameaça representada pela reeleição de Jair Bolsonaro e se uniram em torno da candidatura de Lula foi possível superar o retrocesso. A chapa Lula-Alckimin e os apoios de Tebet e Marina no segundo turno exemplificam essa aliança pragmática. Já na Polônia, em 2023, forças políticas diversas deixaram de lado temas polêmicos, como a descriminalização do aborto, para formar uma coalizão capaz de enfrentar o PiS.

O debate sobre a democracia e a importância de defendê-la frente às ameaças de forças retrógradas e antidemocráticas parecem especialmente relevantes neste início de 2025. Três eventos significativos remetem a esse tema.

A certificação da vitória eleitoral de Donald Trump ocorreu pacificamente e sem intercorrências, um contraste marcante com o que aconteceu quatro anos antes. Kamala Harris, adversária de Trump na disputa de 2024 e atual vice-presidente, presidiu a sessão do Congresso que formalizou a certificação de seu adversário.

Os atos que marcaram os dois anos dos atentados de 8 de janeiro, quando Congresso, STF e Palácio do Planalto foram invadidos e vandalizados por simpatizantes de Jair Bolsonaro inconformados com sua derrota eleitoral, foram marcados por um esvaziamento político preocupante. Os presidentes da Câmara, do Senado e do STF não estiveram presentes, o que arrisca reduzir uma celebração que deveria ser de todas as forças democráticas do país a um marco apenas da esquerda.

Por fim, a posse de Nicolás Maduro na Venezuela ocorreu após um processo eleitoral marcado por irregularidades e pela ausência das atas que comprovassem a autenticidade da apuração.

Esses eventos reforçam a relevância do debate sobre o que é democrático e sobre o papel das alianças políticas para salvaguardar a democracia em tempos de incertezas.

 

Os riscos da ditadura da liberdade, por Carol Tilkian.

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Decisão da Meta atravessa nossos votos de amor e paz para 2025

Carol Tilkian, É psicanalista, pesquisadora de relacionamentos e escritora. Fundadora do podcast e do canal Amores Possíveis e colunista da CBN

Folha de São Paulo, 13/01/2025

Mal tivemos tempo de digerir os votos de amor e paz para 2025 e já somos atravessados por mudanças coletivas que nos presenteiam com um cavalo de Troia. Sob a justificativa de priorizar a liberdade de expressão, Zuckerberg anunciou que a Meta encerrará programas de checagem de fatos e reduzirá filtros para conteúdos sobre identidade de gênero, xenofobia e misoginia. Embora a decisão tenha sido tomada nos EUA, ela reverbera globalmente entre os mais de 6 bilhões de usuários de Instagram e Facebook. O resultado? Uma liberdade que embala discurso de ódio e polarização.

Vivemos a era da “ditadura da liberdade”. Percebo na clínica e na sociedade um aumento de pessoas angustiadas, solitárias e perdidas. Somos, segundo a OMS, a população mais ansiosa do mundo e a mais deprimida da América Latina. Nesse contexto, a vivência do desamparo estrutural apontado por Freud se dá de forma aguda. Mas, em vez de encararmos nossas faltas, buscamos o colo das “grandes mães digitais” —grupos que pensam como nós, oferecem soluções simplistas e apontam o outro como causa de todo mal. Direcionamos nosso mal-estar à civilização, achando que estamos nos defendendo, mas estamos definhando coletivamente.

No radicalismo e nas fake news – compartilhadas 70% mais que as verdadeiras – encontramos validação imediata, que nos protege da angústia e incerteza. Essa lógica reforça um mundo dividido entre o absolutamente bom e o absolutamente mau, como descreveu Melanie Klein na posição esquizoparanoide. Julgamos, punimos e banalizamos diagnósticos, sustentados pela crença de que “o inferno são os outros”, como dizia Sartre. Nunca falamos tanto em mães narcisistas, parceiros tóxicos e chefes obsessivos. Livres para emitir opiniões ao mundo, eliminamos ambivalências e criamos guerras pessoais que parecem nossa única defesa. Será?

“Faça amor, não faça guerra”, lema dos anos 60, soa utópico hoje. Mas talvez lutar por uma “democracia do afeto” seja revolucionário. Antes de vilanizar o namorado, a amiga ou a mãe, se dê o tempo para um diálogo construtivo. Em vez de julgar e punir pelo “eu não faria assim”, já tentou compartilhar como se sente, o que é importante para você, e ouvir o outro com abertura genuína? Se discursos de ódio nascem do desejo de pertencimento, o amor precisa despertar em nós o desejo de compreender.

A alteridade é parte constitutiva da experiência humana assim como a falta. Precisamos voltar a desenvolver formas mais saudáveis de lidar com elas. Como diz Winnicott, é no espaço potencial —entre o eu e o outro— que florescem a criatividade e a verdadeira liberdade. Esse é o lugar do diálogo, onde menos certezas e mais dúvidas, menos ódio e mais curiosidade podem abrir caminho para uma convivência mais humana.

 

Judiciário

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O Judiciário brasileiro é fundamental para a construção da democracia nacional, seu poder é imprescindível para melhorar as relações sociais, econômicas e políticas no mundo contemporâneo.

No caso brasileiro, o Judiciário tem um papel fundamental numa sociedade como a nossa, marcada por grandes injustiças sociais, uma nação construída diretamente na exploração, na escravização e na degradação dos trabalhadores mais precarizados, diante disso, faz-se necessário algumas reflexões para compreendermos a sociedade nacional.

O Judiciário brasileiro é oriundo, na grande maioria, de setores mais aquinhoados na sociedade brasileira, indivíduos que detém recursos materiais para garantir acesso as melhores escolas, os mais caros e consistentes cursos preparatórios, as mais disputadas faculdades ou universidades, etc… garantindo aprovação nos concursos mais disputados para a carreira jurídica, perpetuando pouca diversidade na carreira, que, na sua maioria é marcada por pessoas de classe média, média alta ou de alta renda, pessoas ou famílias que possuem condições monetárias e financeiras para um investimento em seus filhos ou seus descendentes, garantindo um espaço interessante, com grandes privilégios e a manutenção do status quo.

Observando e refletindo sobre o judiciário nacional e, com alguma experiência como professor de sociologia nos cursos de Direito, percebo que muitos dos alunos que entram nas faculdades e vislumbram, futuramente, uma carreira na magistratura ou no Ministério Público, são indivíduos dotados de grande poder monetário, pessoas oriundas de famílias mais enriquecidas da sociedade local e regional.

São bons alunos, estudiosos e bem-nascidos, que tem acesso a estudo de qualidade, professores mais qualificados, detentores de títulos de mestre e doutorado, recursos financeiros para livros, fluência em línguas estrangeiras, detentores de carro próprio e materiais didáticos de qualidade, que garantem a estes estudantes grande sucesso profissional no decorrer da universidade, são aqueles que não tem dificuldades para conseguir a aprovação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), além disso, são estudantes que apresentam facilidades de conseguirem os melhores estágios e contam, ainda, com uma ampla rede de contatos de seus familiares, os chamados networks, que abrem portas para as melhores formações e, posteriormente, garantem uma formação sólida e consistente.

São bons profissionais, mas conhecem pouco a realidade nacional, são pessoas que conhecem uma teoria conservadora e tradicional, não conhecem as novas realidades da sociedade e da comunidade local, desconhecem os desafios dos trabalhadores contemporâneos e não compreendem as transformações dos modelos econômicos e produtivos que passam por grandes mudanças desde o advento da chamada globalização da economia e o incremento das tecnologias da informação, que criaram uma nova realidade, trazendo novos anseios e novos desafios.

Outro ponto de destaque, que muitos dos profissionais da área jurídica, neste momento estamos nos referindo aos juízes e procuradores, servidores públicos de elite, vivem em condomínios de luxo e possuem, ao seu lado, como vizinhos, empresários ricos e poderosos, dotados de grande poder financeiro e forte influência política, essas pessoas angariaram fortunas e passam a se aproximar, a frequentar sua residência, criando vínculos afetivos e, muitas vezes, familiares. Para estes profissionais, que na verdade são servidores públicos de elite, que ganham salários elevados e somam a isso, grandes penduricalhos que garantem grandes somas salariais, mesmo assim, ao compararem com seus vizinhos, empresários, empreendedores, ricos e abastados, seus recursos salariais são modestos. Lembro-os que modestos salários quando comparamos aos rendimentos dos seus vizinhos que possuem grande soma de recursos monetários. Se compararmos a todas as categorias de servidores públicos, seus proventos são muito maiores, seus benefícios são muito melhores e atraentes, além de contar com uma estrutura maior e mais consistente, centrada nas benesses da categoria e protegida por um grande aparato de poder corporativista.

Neste ambiente, percebemos que os servidores de elite se sentem atraídos por um estilo de vida superior a seus ganhos mensais, convivendo cotidianamente com grupos sociais mais aquinhoados, mais influentes e dotados de grande poder material. Desta forma, tais servidores públicos de elite se acreditam, cotidianamente, merecedores de incremento de seus rendimentos, defendendo penduricalhos e acabam criando uma casta de privilegiados, fortemente corporativista, demandando mais benefícios, mais penduricalhos e se esquecem de que fazem parte de um seleto grupo de servidores públicos que ganham muito mais de que todas as outras categorias de servidores do Estado.

Estes profissionais preferem férias no exterior, notadamente nos Estados Unidos e atualmente em Miami, um local mais aprazível, dotado de ares de civilização mais evoluída e requintada. Décadas anteriores, as férias eram na Europa, notadamente Londres e Paris, mas na contemporaneidade, estas cidades vêm perdendo espaço para cidades norte-americanas, desenvolvidas economicamente, destacadas como um verdadeiro centro da tecnologia, do conhecimento e valorização do status social.

Ao viajar mais para o exterior e menos para o interior do Brasil, essa elite consolida um desconhecimento da realidade local, pouco compreendendo os anseios da comunidade, os desafios mais imediatos e, infelizmente, nos afasta dos sentimentos mais íntimos da coletividade.

O Brasil, na contemporaneidade, mantém, um judiciário caro, lento e ineficiente, marcado por um imenso conservadorismo, com faculdades de direito atrasadas e muitas vezes, responsável por um ensino reacionário e fascista, afastando-o da sociedade brasileira e responsável pela perpetuação de um status quo para poucos privilegiados em detrimento da comunidade nacional.

Dentre as grandes transformações demandadas pela sociedade brasileira, destacamos uma verdadeira reforma no judiciário nacional, investindo fortemente em cursos mais humanistas, introduzindo uma grade de disciplinas de áreas como a filosofia, sociologia, economia, direitos humanos, meio ambiente, metodologia, dentre outras disciplinas presenciais. Muitos dizem que estas disciplinas já existem, uma verdade, mas a grande maioria das faculdades colocam estas disciplinas em um modelo à distância (EAD), distanciando as discussões mais urgentes e criando um processo de mecanização do ensino e uma verdadeira mercantilização do ensino jurídico. A formação do profissional deve ser marcada por maior diversidade, trazendo para a magistratura e para o ministério público pessoas oriundas de grupos sociais mais empobrecidos, pessoas originárias de grupos diversos, arejando o ensino jurídico.

São muitas as mudanças que a sociedade brasileira contemporânea demandam, estas mudanças envolvem transformações de mentalidade para todos os setores da comunidade, analisando intimamente os poderes da sociedade, vislumbrando um judiciário mais inclusivo, mais diversificado, mais eficiente, menos dispendioso, mais rápido e marcado por salários dignos e decentes para todos os seus funcionários, não apenas para um pequeno grupo de iluminados que garantem seus ganhos adicionais, seus penduricalhos, seus benesses e seus benefícios exagerados.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Gestor Financeiro e de Investimento, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

 

 

 

 

 

 

 

PEC da Segurança, encampada por Lula, é projeto de extrema direita, por Paes de Souza & Feltran.

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Governo mostra não ter capacidade de controlar polícias que matam e grupos que lucram com inferno da violência

Adilson Paes de Souza, Doutor em psicologia escolar e do desenvolvimento humano e pós-doutorando em psicologia social pela USP

Gabriel Feltran, Professor titular da Sciences Po (Instituto de Estudos Políticos de Paris) e diretor de pesquisa no CNRS (Centro Nacional da Pesquisa Científica da França). Autor, entre outros livros, de “Stolen Cars: a Journey Through São Paulo’s Urban Conflict”

Folha de São Paulo, 12/01/2024

[RESUMO] Imersa em corrupção, degradação institucional e letalidade, a segurança pública do Brasil é pior que o inferno de Dante, sustentam autores. A execução de um homem no aeroporto de Guarulhos, a prisão de militares suspeitos de planejar o assassinato do presidente e a PEC da Segurança Pública, proposta pelo governo Lula (PT), expressam a falência da política de segurança do país.

Dante Alighieri, protegido pelo poeta Virgílio, visitou o inferno e nos contou seu périplo pelos nove círculos. O elevado grau de degradação da sociedade da sua época, instituições inclusas, se mostrou por inteiro. Nada de mau lhe aconteceu.

A segurança pública do Brasil é bem pior que o inferno de Dante. Nela, fazemos os mesmos périplos por círculos infernais e repetitivos há décadas, mas não temos nem a proteção do poeta nem, muito menos, a da Constituição. Estamos entregues à nossa própria sorte, assistindo a casos sequenciais de violência e de destruição rápida das instituições, governados agora por aqueles que deveriam ser objeto de investigação.

Vale relembrar aqui três episódios recentes. No primeiro, uma organização criminosa —não sabemos ainda se o PCC ou se formada por policiais— executa um homem com tiros de fuzil, à luz do dia, no desembarque do aeroporto de Guarulhos. O homem assassinado colaborava com o Estado em investigações sobre crimes bilionários da principal facção do país, que também denunciava a participação de policiais, e não tinha nenhuma escolta estatal.

Ou tinha? Não sabemos o que pensar, porque quem o escoltaria seriam policiais militares contratados por ele mesmo, a título privado. Esses seguranças privados (ou policiais?) haviam sido recrutados por outro policial da ativa, empresário de segurança privada e, ao mesmo tempo, investigado pela Corregedoria da PM.

É ainda mais difícil entender por que essa escolta não estava presente na chegada do seu protegido ao aeroporto. Pura incompetência? Não surpreenderia. Ou será que o que ele dizia em sua delação já não interessava nem à facção, nem a parte das polícias, nem mesmo aos seus seguranças? Não sabemos, dadas as tantas camadas de absurdo do caso. Tampouco sabemos por que as investigações não avançam, bloqueadas por disputas sórdidas dentro da própria instituição policial.

Inocentes foram baleados durante o atentado, e um deles, motorista de aplicativo, morreu no dia seguinte. Muito mais que um “acerto de contas” entre bandidos, a ação dá um recado para todos nós: a racionalidade que define quem deve viver ou morrer não emana, no Brasil, da lei. O que interessa são as cifras, os números, o dinheiro. A força do regime de acumulação criminal, atuando em relação direta com agentes do Estado, supera de longe a força republicana das instituições.

Como poderia ser diferente se a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo é dirigida por um policial expulso da Rota por matar demais, que construiu carreira política demonstrando seu orgulho por ter matado demais e agora frequenta festas em hotéis de luxo na Europa?

Mal termina o primeiro episódio e, no segundo, temos quatro oficiais de alta patente do Exército e um policial federal presos suspeitos de planejar o assassinato do presidente da República, do vice-presidente e de um ministro do STF. Apenas isso, no bojo de um plano de golpe militar.

Essa trama, que envolve a alta patente do Exército, comprova a falta de controle republicano sobre as Forças Armadas e sobre as polícias, especialmente as militares. Se as cinco pessoas presas arquitetaram o plano, agiam em nome de quem e de que projeto de poder? Quem seriam os executores? Os nomes dessas pessoas precisam ser revelados e todas devem ser julgadas. Se condenadas, devem ser expulsas das Forças Armadas sem direito aos salários vitalícios garantidos pela aberração do instituto da “morte fictícia”.

Vale notar que essas prisões aconteceram alguns dias depois de um novo atentado terrorista em plena praça dos Três Poderes, em Brasília.  Não foi o primeiro nem o segundo dos últimos tempos, mas tudo se passa como se fosse mais um caso isolado. Haveria uma ideologia unificando esses atentados às instituições? Seria ela a normalizada ideologia de extrema direita que prega “assassinar bandido”, que chama opositores políticos de bandidos e que embala o secretário de Segurança Pública de Tarcísio de Freitas (Republicanos), cuja gestão dobrou a letalidade policial em São Paulo?

Tampouco sabemos, infelizmente, por que não há investigações oficiais que relacionem esses casos e suas motivações ideológicas, econômicas e político-institucionais.

O terceiro episódio dantesco está consubstanciado na tramitação da chamada PEC (proposta de emenda à Constituição) da Segurança Pública.  Engana-se muito quem acredita na medida, divulgada com alarde e pompa, como uma boa iniciativa do governo federal para garantir melhor governança da segurança pública no Brasil.

De cara, vejamos que a PEC não toca em nenhum dos quatro pontos centrais que estão na origem do nosso desastre securitário, segundo o consenso entre especialistas: mercados ilegais em expansão; polícias corrompidas, politizadas e autônomas frente a qualquer controle; sistema prisional dominado por facções e, assim como elas, em expansão; incapacidade de garantir soberania estatal sobre territórios e de esclarecer crimes letais.

Além disso, a PEC mantém a mesma estrutura falida de duas polícias existente nos estados e no Distrito Federal. Corporações que não apenas não conversam e cooperam entre si como disputam recursos públicos e privados, em uma espiral de militarização. A PEC também silencia sobre o papel das Forças Armadas nas atividades de segurança pública. Há receio em tocar nesse tema?

A PEC ainda acirra a desconfiança e a competição entre os órgãos, agora em nível federal, atacando indiretamente a PF (Polícia Federal), o único órgão que se destaca por ações contra corrupção policial, ao propor a transformação da PRF (Polícia Rodoviária Federal) a mais politizada à extrema direita das polícias, em polícia ostensiva federal. O recado é que a ênfase na investigação não bastaria, seria preciso militarizar.

Espera-se mesmo que, com isso, a proposta republicana do Susp (Sistema Único de Segurança Pública) será fortalecida? Ou será mais provável a indução federal da autonomia definitiva das polícias?

No final de 2023, o governo federal já havia perdido uma ótima oportunidade de mexer no sistema, quando preferiu a conveniência política de se aliar à bancada da bala para aprovar a Lei Orgânica dos PMs, que já foi objeto da nossa crítica nesta Folha.

Tal medida exacerbou a militarização das forças de segurança e induziu a militarização e a privatização da ordem pública no plano municipal, notadas nas eleições do ano seguinte. A nova norma também afrouxou ainda mais o controle, com a consequente ampliação da autonomia e da ideologização das polícias, que, evidentemente, aparecem agora como força importante nos bastidores da PEC da Segurança Pública.

O governo Lula (PT) demonstra não ter nem capacidade técnica para compreender nem capacidade política para controlar a área mais relevante na garantia da soberania nacional e da nossa frágil democracia.

As ações mais relevantes do governo na segurança pública não parecem sequer partir de seus quadros, mas das bases de poder do sistema realmente existente, que emana dos matadores de rua instilados pelo ódio e sustentados por ideologias de extrema direita. Indiretamente, o governo federal acena com a legitimação desses matadores que, hoje, ocupam cargos de liderança em instituições e lutam, em cada estado, contra os atores da segurança com algum apreço pela Constituição Federal.

Sustentados ideológica, econômica e politicamente pela extrema direita, matadores reais se posicionam no aeroporto de Guarulhos, na praça dos Três Poderes e mesmo como formuladores tácitos de uma PEC. Pior, eles nem ao menos são notados. A PEC da Segurança é projeto dessa extrema direita, tocado hoje com apoio do governo Lula e travestido de reforço do Susp.

Sejamos claros: a indução nacional da política de segurança pelo Susp só é desejável se for feita substantivamente —portanto, na contramão das políticas de morte pública e lucro privado existentes hoje. Reforçar nacionalmente essas políticas não interessa nem ao país nem a qualquer força política democrática, nem mesmo a partir de um prisma pragmático.

No entanto, temos visto essas forças supostamente democráticas se juntarem, a cada dois anos, aos atores que apostam no medo e no caos para auferir lucro político do populismo penal. A pauta da segurança pública ganha mais relevo a cada eleição, à medida que a situação de insegurança piora.

Incrivelmente, em vez de os atores hoje dominantes na área serem responsabilizados por essa piora, eles têm sido premiados social, política e economicamente. Da direita à esquerda, o discurso repressivo —enviar mais recursos a polícias matadoras— é o mesmo.

Sabemos que a falência da segurança pública, como a de outras políticas públicas, é uma atividade rentável. Empresas privadas proliferam e obtêm lucros robustos com suas mais variadas atividades:  segurança de edifícios e condomínios, escolta de cargas, análise de riscos, planos municipais, segurança de executivos, blindagem de veículos, escolta de valores, vigilância eletrônica etc. A lista é tão grande quanto o potencial de crescimento dos negócios. Quanto mais insegurança pública, maior tende a ser o lucro privado.

Agentes públicos, que deveriam atuar em prol da segurança, são agora guiados por dinheiro. Quanto menos controle público sobre a segurança, maior a liberdade para lucrar. Políticos ávidos por poder e dinheiro gostam da ideia, exploram o medo e ganham votos e devotos.

Nos três episódios que abordamos, tão diferentes entre si, há agentes estatais lutando para que não se investigue, para que não se caminhe na direção substantiva e para que a opacidade institucional e a insegurança sejam aprofundadas.

Há ainda, felizmente, os que se opõem a eles, dentro e fora das instituições. Por quanto tempo eles suportarão esse inferno?

 

Responsabilidade compartilhada, por Marcos Lisboa

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Desequilíbrio fiscal é obra de muitas mãos

Marcos Lisboa, Economista, ex-presidente do Insper e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005, governo Lula).

Folha de São Paulo, 12/01/2025

Tornou-se lugar-comum criticar o governo federal pelo desequilíbrio fiscal.

O Executivo tem a sua parcela de responsabilidade, mas o problema é bem mais complexo, e distinto, do que afirma o contraponto “a direita que não quer pagar impostos, e a esquerda não quer cortar despesas”.

Existem muitas regras que tornam a despesa do Estado brasileiro mais rígida do que em outros países, assim como diversos privilégios tributários. Elas contam com amplo apoio da esquerda e da direita, e refletem o sucesso de diversos grupos de pressão da sociedade.

A reforma tributária foi abalroada por diversos setores, cada um justificando que seu caso era particular, e que não poderia pagar a alíquota padrão a ser cobrada do restante da sociedade.

Empresas de profissionais liberais, como médicos, economistas e advogados, faturando milhões de reais por ano, conseguiram alíquotas reduzidas.

Vale mencionar que já existe um benefício tributário para empresas que faturam até R$ 78 milhões por ano. Os regimes especiais permitem pagar uma alíquota menor de imposto sobre o lucro do que as empresas no regime geral.

Os dados mostravam que a desigualdade de renda cairia bem mais com o aumento bem focalizado do Bolsa Família do que com a desoneração da cesta básica. Contudo, prevaleceram os interesses dos produtores em detrimento das famílias mais pobres. Com apoio da esquerda e da direita.

A reforma concedeu benefícios tributários para o setor de aviação regional e o transporte coletivo, entre várias outras atividades.

A desoneração da folha salarial foi criada há mais de uma década por um governo de esquerda como uma medida temporária, para beneficiar algumas empresas. Ela continua em vigor e pode ter custado mais de R$ 20 bilhões em 2024, segundo técnicos do governo.

A concessão de tratamento diferenciado é prática usual no Brasil. As regras permitem privilégios tributários e crédito subsidiado para empresas privadas, ou remuneração acima do teto constitucional para servidores do Judiciário.

Esses benefícios são custeados pelo restante da sociedade, às vezes por mecanismos criativos.

O FGTS é uma poupança forçada do trabalhador com carteira que recebe uma remuneração menor do que se fosse investida em títulos públicos. Os recursos subsidiam empréstimos para empresas privadas.

A contribuição para o Sistema S incide, economicamente, sobre o trabalhador formal. E parte dos recursos é destinada aos sindicatos patronais, como as federações e confederações da indústria, do comércio ou dos serviços.

Às vezes, pode surpreender quem apoiou algumas medidas.

Há alguns anos, João Doria, então governador de São Paulo, tentou reduzir os privilégios tributários para empresas do setor privado. A reação foi avassaladora e a medida não prosperou.

Recentemente, Tarcísio de Freitas, um governador ainda mais identificado com a direita, finalmente conseguiu uma redução desses privilégios.

O setor de energia tem sido inundado por regras que estabelecem benefícios para algumas empresas em detrimento dos demais, desde a capitalização da Eletrobras. Os muitos subsídios cruzados acabam caindo na conta de energia.

Por vezes, o processo de captura do Estado decorre de uma iniciativa temporária que promete desenvolvimento de um setor. Os benefícios tributários para a Zona Franca de Manaus tinham prazo para terminar. Décadas depois, seguem sendo renovados.

Outras vezes, a motivação seria uma crise excepcional que justificaria uma intervenção pública momentânea, como ocorreu durante a pandemia.

Um exemplo é o Perse, que beneficiou o setor de eventos. Segundo relatório da Receita Federal, há empresas beneficiadas em alojamento e alimentação; atividades administrativas; indústria de transformação, entre muitas outras. A conta passou de R$ 7 bilhões entre abril e outubro de 2024.

Vale ressaltar: além de menor cobrança de tributos indiretos, foi igualmente reduzida a tributação sobre o lucro, não exatamente um caso de crise.

Marcos Mendes e eu sistematizamos 42 medidas de concessão de benefícios aprovadas na segunda metade do governo anterior, em 6 outubro de 2022, no Brazil Journal.

As propostas seguiram um padrão usual: auxílios com impacto social, como a ampliação do Bolsa Família, lideravam uma extensa lista de benefícios para grupos organizados.

Eram muitos os caronas: taxistas, caminhoneiros, templos religiosos, transferências para estados e municípios e novos benefícios para empresas do setor privado, do etanol a semicondutores e automóveis, de equipamentos de biogás ao setor de portos. A lista segue…

Com duas exceções, as principais medidas tiveram a aprovação da maioria dos congressistas, à direita e à esquerda.

Desde a pandemia, foram transferidos R$ 69 bilhões de recursos do Tesouro a fundos garantidores de empréstimos subsidiados para empresas, como registrou Marcos Mendes. O atual governo contou com o apoio do Congresso para aumentar os gastos públicos em cerca de R$ 245 bilhões desde a transição em 2022.

O Executivo tem sua parcela de responsabilidade. Mas o mesmo ocorre com as demais instâncias do setor público, assim como com os grupos privados que obtêm favores oficiais.

A criatividade de tribunais do Judiciário parece não ter limite para ampliar a remuneração dos juízes. O Legislativo defende as emendas parlamentares, já na casa dos R$ 40 bilhões por ano.

Fica o contraste. Muitos grupos denunciam com indignação as regras que favorecem os demais. Ao mesmo tempo, defendem com virulência os seus próprios privilégios.

A imprensa se beneficia da desoneração da folha de pagamentos. Mas critica duramente as emendas parlamentares.

Empresários reclamam da carga tributária. Por outro lado, defendem vigorosamente os privilégios que recebem do poder público, como regimes tributários especiais ou acesso a créditos subsidiados.

Associações de profissionais liberais vão na linha de frente na defesa da República, mas se recusam a pagar tributos como os que oneram as demais empresas.

A retórica “esquerda versus direita” por vezes encobre os truques do nosso Estado patrimonialista.

 

Narcisistas por todo lado? por Anselm Jappe

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 Anselm Jappe – A Terra é Redonda – 05/01/2025

O narcisista é muito mais do que um tolo que sorri para si próprio no espelho: é uma figura central de nosso tempo

O presidente Emmanuel Macron, sempre preocupado com a competitividade da indústria francesa, certamente deu um impulso a uma produção muito específica: a da palavra “narcisista”. Do livro La pensée perverse au pouvoir de Marc Joly (Anamosa, 2024), que se baseia no conceito de “perversão narcísica” do psicanalista Paul-Claude Racamier, ao infatigável ensaísta Alain Minc, um macronista arrependido, para quem as ações do presidente agora simplesmente “refletem um narcisismo levado a um nível patológico, com o corolário de uma negação total da realidade” (Le Monde, 11. 12. 2024), a palavra “narcisista” nunca foi tão utilizada na política como nos últimos anos.

Na vida cotidiana, tanto em relação à esfera do trabalho quanto às relações sociais ou à vida conjugal, há décadas se fala do “pervertido narcisista” e de sua capacidade de manipular os que o cercam. A lista de publicações dedicadas a este tema, tanto profissionais como para o público em geral, continua aumentando.

O termo “narcisista”, introduzido em 1914 por Sigmund Freud em seu ensaio epônimo e durante muito tempo confinado à esfera psicanalítica e ao seu jargão, tornou-se de uso comum: isso significava então, grosso modo, “egoísta”, “egocêntrico”, “ganancioso”, “manipulador”, “sem empatia”, “sem consideração pelos outros”, mas também “excessivamente preocupado com a autoimagem e com a procura de reconhecimento”, ou simplesmente “apaixonado por seu corpo e desejoso de seduzir”.

O narcisismo evoluiu ao longo do século XX: tratado por Freud como uma patologia bastante marginal, em comparação com a importância das neuroses devidas à repressão dos desejos em seu tempo, o narcisismo “conquistou” pouco a pouco um papel cada vez mais importante, tanto no discurso psicanalítico como na consciência comum.

Parece bastante óbvio que esta evolução está ligada ao aprofundamento das relações capitalistas em todas as esferas da vida e, em particular, à fase neoliberal do capitalismo, a partir dos anos 1980: qualquer noção de solidariedade coletiva é explicitamente rejeitada, o Estado social e outras estruturas de ajuda mútua são desmanteladas e a lógica da empresa e da concorrência é estendida para toda a vida. Cada um é convidado a conquistar individualmente seu lugar na vida, utilizando todo os meios e sem se preocupar com as consequências para os outros ou para a sociedade como um todo.

O “individualismo possessivo”, pilar da teoria política liberal, pode ser resumido na frase de Margaret Thatcher: “A sociedade não existe”. Ele triunfa por todo lado: não apenas nas esferas de comando, onde sempre reinou, mas em todos os níveis da sociedade. A perversão narcísica seria, então, não mais do que o lado abertamente patológico desta mentalidade competitiva que o capitalismo contemporâneo encoraja permanentemente, e até a torna indispensável para nele sobreviver. Ela indica o ponto em que os comportamentos necessários ao funcionamento do sistema correm o risco de se tornarem não funcionais e de perturbarem o funcionamento da mega-máquina, pois resultam numa negação da realidade e destroem o mínimo de confiança entre os indivíduos, sem o qual nem mesmo o modo de vida capitalista poderia continuar.

No entanto, a ligação entre o aumento da “taxa de narcisismo” e o desenvolvimento do capitalismo no século XX existe também em outro nível. Freud fazia distinção entre um “narcisismo primário” e um “narcisismo secundário”. O narcisismo primário constitui uma etapa fundamental do desenvolvimento psíquico de cada indivíduo. A criança pequenina ainda não pode se confrontar com o mundo exterior e compensa sua impotência real com uma onipotência imaginária: ela nega sua separação da figura materna e sente-se unida ao mundo. Os objetos externos, especialmente as pessoas, são percebidos apenas como extensões de si mesmo, e as frustrações são negadas através de satisfações alucinatórias.

Segue-se a fase “edipiana”, em que a criança experimenta um mundo exterior que se opõe aos seus desejos ilimitados (a formulação inicial de Freud de um pai que impede o acesso do filho à mãe foi posteriormente reconhecida como sendo apenas um caso particular, e ligado ao contexto da época, de uma lógica psíquica bem mais vasta).

Esta renúncia à onipotência representa uma dura derrota para a criança, mas abre a ela também o caminho para o reconhecimento da realidade exterior – o “princípio de realidade” – e, assim, para a obtenção de satisfações limitadas, mas reais. No entanto, esta renúncia aos desejos infantis também pode ser sentida como insuportável – e, neste caso, o sujeito poderia limitar-se a um reconhecimento mais ou menos fingido da realidade, para continuar, sem se dar conta, a interpretar a realidade de acordo com sua anterior não-separação do mundo e sua anterior onipotência. Assim, ele vê as pessoas e os objetos como meras projeções de seu mundo interior. Em casos graves, esta atitude pode levar a sérias dificuldades – mas, muitas vezes, ela não é identificada e pode até trazer vantagens na vida social. Especialmente na vida contemporânea.

De fato, o “narcisismo secundário” – resultante da negação da situação edipiana – encontra-se “em fase” com o capitalismo pós-moderno, neoliberal, tal como a personalidade marcada pela neurose edipiana – objeto quase exclusivo da investigação freudiana – era o correspondente psíquico da fase “clássica” do capitalismo. A renúncia aos desejos ilimitados em troca da identificação com uma figura de proteção e de autoridade permite um conhecimento realista de si mesmo e de seus próprios limites, e, eventualmente, uma oposição ponderada ao mundo tal como ele é. Mas ela também pode resultar numa submissão cega às autoridades e ao ódio aos próprios desejos – e esta estrutura psíquica pode durar a vida toda.

O capitalismo clássico, que nasceu com a “ética protestante”, desenvolveu-se no século XIX e encontrou sua realização na fase chamada “fordista”, exigia que os indivíduos trabalhassem duro, poupassem, desfrutassem o menos possível e se submetessem durante toda a vida a figuras de autoridade: pai, professor, policial, padre, patrão, funcionário público, presidente ou rei. Esta injunção permanente criava com frequência escravos submissos ou mesmo entusiastas (por exemplo, no nacionalismo), mas também podia estimular a oposição e a revolta.

Mais ou menos a partir dos anos 1960, o capitalismo promoveu uma profunda transformação que se acelera permanentemente. As estruturas baseadas na submissão à autoridade, nas hierarquias piramidais, na repetição do mesmo e na repressão dos desejos não desapareceram completamente – e até regressaram recentemente – mas diminuem no “terceiro espírito do capitalismo” (Boltanski/Chiapello).

Em seu lugar, celebramos a flexibilidade, as redes, o consumo desenfreado (mesmo a crédito), a horizontalidade, a diferenciação dos estilos de vida, a criatividade, a autonomia, o individualismo. Mesmo que a realidade esteja muitas vezes longe destas promessas, é verdade que o indivíduo-tipo da sociedade contemporânea não é “rígido”, não submete seus desejos a um supereu que consiste em proibições interiorizadas, não “proíbe nada a si mesmo” e é constantemente encorajado a “acreditar na realidade de seus desejos”.

Muitas vezes, as identidades já não se definem pelo trabalho, que pode mudar facilmente, mas pelo consumo, seja ele material ou simbólico. Na “sociedade líquida” (Bauman), o “homem sem gravidade” (Melman) que efetua um “trabalho sem qualidade” (Sennett) flutua de acordo com os estímulos que lhe desfere a máquina de consumo.

Caráter assertivo, convicções inabaláveis, lealdade às origens, à família, ao trabalho, ao lugar, ao modo de vida, eram os traços que definiam uma pessoa “sólida”, “séria”, “confiável” na fase anterior do capitalismo. Hoje, são mais um obstáculo à “autorrealização” do indivíduo, impedindo-o de aproveitar todas as “oportunidades” que a vida parece oferecer. O narcisista enquadra-se perfeitamente a essa situação: sem personalidade profunda, sem apegos, apenas à procura de um prazer imediato e empenhado na construção e reconstrução permanente de sua “personalidade” de acordo com as exigências do momento, ele não ama realmente nada, porque as pessoas e os objetos são intercambiáveis a seus olhos.

É mérito do sociólogo estadunidense Christopher Lasch ter dado ao conceito de narcisismo uma dimensão social, e não apenas individual, em seus livros A cultura do narcisismo (1979) e Le moi assiégé. Essai sur l’érosion de la personnalité (1984). Ele constata uma regressão psíquica generalizada, em que o caráter “adulto”, nascido do conflito edipiano, com seus trunfos e defeitos, dá lugar a comportamentos marcados pelo desejo arcaico de negar magicamente a separação original. Ele encontra esta forma de narcisismo em fenômenos tão diferentes como a gestão completa da vida por organismos burocráticos e grandes corporações, o pseudomisticismo New Age, a arte minimalista, o uso massivo de psicoterapias, a onipresença das tecnologias na vida cotidiana e a clausura na esfera privada.

No entanto, embora Christopher Lasch tente compreender a relação entre a difusão do narcisismo e o capitalismo, não o consegue totalmente. Para isso, é preciso remeter à lógica do valor de mercado, do trabalho abstrato e do dinheiro, que está no cerne do capitalismo, ontem como hoje. Esta lógica apaga todas as diferenças, reduzindo cada mercadoria, independentemente de suas qualidades concretas, à porção do trabalho que foi necessária para sua criação e que está representada numa soma de dinheiro.

O mercado não vê qualquer diferença entre uma bomba e um brinquedo, nem entre os trabalhos necessários para produzi-los. Esta indiferença em relação a todos os conteúdos é uma diferença essencial entre o capitalismo e os sistemas precedentes de exploração e opressão. Por muito tempo, o capitalismo lutou para se libertar dos resquícios pré-capitalistas e atingir sua forma “pura”, onde os sujeitos flutuam livremente, tendo as mercadorias – materiais e imateriais – como único horizonte e guia. É aí que o narcisismo triunfa, oscilando entre a angústia da impotência e a embriaguez da onipotência.

A lógica narcísica, tal como a lógica da mercadoria, reduz tudo à mesma coisa e nega a autonomia dos objetos e das pessoas. Assim como as mercadorias são meros “suportes” intercambiáveis de uma quantidade de trabalho e dinheiro, para o sujeito narcísico, o mundo exterior a si próprio consiste apenas em projeções e extensões de seu mundo interior – e este mundo interior é pobre, pois não é enriquecido pelo contato com objetos e pessoas exteriores, reconhecidos como tal.

No entanto, o narcisista não pode escapar ao sentimento de vazio e às frustrações que o sonho impossível de onipotência lhe proporciona: é por isso que o ressentimento, resultado inevitável do narcisismo, domina hoje o panorama político sob a forma de racismo e populismo, nacionalismo e fundamentalismo religioso, e ainda de outras formas de descarregar seu ódio sobre os presumíveis responsáveis.

Assim, o narcisista é muito mais do que um tolo que sorri para si próprio no espelho: é uma figura central de nosso tempo. E seria muito fácil atribuir isso apenas aos ricos e poderosos, aos Macron e Musk: o desejo de nos libertarmos de todos os limites que nos são impostos pela nossa condição biológica, a ideia de termos de esgotar todas as “oportunidades” da vida, a utilização das tecnologias para resolver o menor problema da vida são todos formas de narcisismo. Há narcisistas por todo lado.

*Anselm Jappe é professor na Academia de Belas Artes de Roma, na Itália. Autor, entre outros livros, de Crédito à morte: A decomposição do capitalismo e suas críticas (Hedra).

Tradução: Fernando Lima das Neves.

 

As big techs e o fascismo, por Eugênio Bucci

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Eugênio Bucci – A Terra é Redonda – 09/01/2025

Zuckerberg subiu na carroceria do caminhão extremista do trumpismo, sem pejo, sem molejo e com sacolejo. A Meta saiu do seu armário de silício para entrar no fanatismo desvairado

Agora ficou escancarado. Depois do pronunciamento que Mark Zuckerberg divulgou na terça-feira, anunciando que cerrará fileiras com Donald Trump para combater os projetos de regulação das plataformas, projetos que ele qualifica de “censórios”, não dá mais para disfarçar. Seguindo o exemplo de Elon Musk, dono do “X”, antes conhecido como Twitter, Mark Zuckerberg subiu na carroceria do caminhão extremista do trumpismo, sem pejo, sem molejo e com sacolejo. A Meta saiu do seu armário de silício para entrar no fanatismo desvairado.

Eram favas contadas? Sim, eram. Mais cedo ou mais cedo ainda, a maquiagem escorreria. E escorreu. Está tudo na cara. Agora, ninguém mais pode alegar que a desinformação e os discursos de ódio propagados industrialmente pelo maquinário da Meta fossem acidentes de percurso. Não. Promover o trumpismo e todo o seu ideário – ou todo o seu bestiário – não foi um efeito colateral, mas a finalidade do conglomerado monopolista global comandado por Mark Zuckerbert. Detalhe: no seu vídeo, que foi manchete ontem em jornais do mundo inteiro, ele aparece de camisa preta. Ato falho? Ou intencional?

A Meta, detentora do WhatsApp, do Facebook e do Instagram, tem um poder de fogo – a metáfora belicista vai de brinde –considerável, um pouquinho maior do que o deste jornal, por exemplo, ou de todos os diários brasileiros somados, ou mesmo de todos os diários do planeta. Estamos falando de companhias cujo valor de mercado se conta na casa dos trilhões de dólares. São as famigeradas big techs. Uma a uma, elas deixam cair a máscara de isenção, de objetividade e de compromisso com os fatos e mostram sua natureza essencial: são usinas de propaganda e manipulação a serviço do autoritarismo. Não têm e nunca tiveram nada a ver com educação ou conhecimento.

Falando em big techs, as coisas não estão melhores nos domínios da Amazon, de Jeff Bezos. No sábado, a ilustradora Ann Telnaes, ganhadora do Prêmio Pulitzer, anunciou sua demissão do The Washington Post, hoje controlado por Jeff Bezos. Ann Telnaes acusou o jornal de censurar um cartum em que ela criticou a subserviência dos bilionários a Donald Trump. Na charge, é possível reconhecer, entre os magnatas que se dobram ao novo presidente dos Estados Unidos, a fisionomia assustadiça do dono da Amazon. O The Washington Post vetou. Foi outro sinal tenebrosamente ruim de que os bilionários da maior democracia do mundo deixam pra lá os compromissos com os fundamentos do liberalismo e se vergam à truculência.

Truculência é a palavra, embora gasta. Barbárie é a palavra, embora puída. Donald Trump não tem nada a ver com o tal “sonho americano” ou com os chamados “pais fundadores” da federação que, mais de dois séculos atrás, deu origem ao estado mais poderoso do nosso tempo. Donald Trump é um fascista extemporâneo, tardio e piorado.

O adjetivo “fascista”, que antes os estudiosos procuravam evitar para não incorrer em anacronismos e imprecisões conceituais, acabou se impondo. É preciso dar nome às coisas. Recentemente, o grande historiador americano Robert Paxton, um dos que resistiam a empregar a palavra, reviu sua posição e admitiu: o que está acontecendo nos Estados Unidos precisa, sim, ser qualificado como fascismo, ainda que com as cautelas metodológicas de praxe.

O que se passa por lá é mais, muito mais, que um soluço autoritário, e as big techs estão no cerne da inflexão. Mais do que correias de transmissão instrumentais, elas são o laboratório que sintetiza a mentalidade obscurantista, as pulsões violentas, os vetores do ódio, a intolerância, ou, sejamos precisos, o fascismo em suas roupagens pós-mussolínicas.

As ambições de expansionismo territorial em que Donald Trump tem insistido de forma escandalosa vêm confirmar essa caracterização. Lembram, de longe, ou nem tão de longe assim, a velhíssima categoria de “espaço vital”. A promessa de ocupar países vizinhos ou longínquos para ampliar o poder é marca registrada do bonapartismo do século XIX, do nazismo do século XX e, agora, do trumpismo do século XXI. Desta vez, as big techs são a alma e a arma do negócio: estão para Donald Trump assim como o cinema e o rádio estiveram para Adolf Hitler. Com uma distinção, apenas: elas são mais determinantes hoje do que o cinema e o rádio foram naquela época.

A partir de agora, o debate sobre “moderação de conteúdo”, “agências de checagem”, “educação midiática” e “combate às fake news” ficará em segundo plano. Ficou patente que as big techs não querem mais falar disso. Com ninguém. Elas querem substituir a era da informação pela era da desinformação, pois sabem que sua única chance de seguir no gigantismo depende da vigência de ordens autoritárias, com viés totalitário.

Assim como a imprensa só pode prosperar na democracia, as plataformas sociais só poderão crescer na tirania. É uma questão de vida ou morte. Para elas e para cada um de nós. O que elas precisam garantir para viver no luxo em que se arrancharam, sem prestar contas a ninguém que não seja Donald Trump, é o que nós, cidadãos (ao menos até aqui), precisamos combater para não morrer.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica).

 

Compromisso com a segurança, por Oscar Vilhena Vieira

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O país tem criado políticas ineficientes e muitas vezes contraproducentes, mas que têm mais apelo eleitoral

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023).

Folha de São Paulo, 11/01/2025

A negligência com a segurança pública levou à morte de cerca de 1 milhão de pessoas nas últimas duas décadas no Brasil. Essa é a face mais dramática de um fenômeno mais amplo, que dilacera famílias, esgarça o tecido social, compromete nosso desenvolvimento, além de brutalizar o cotidiano de milhões de pessoas, submetidas ao domínio arbitrário e violento do tráfico, de milícias e mesmo de agentes do Estado que, por definição, teriam a função de proteger os cidadãos.

A incapacidade do Estado brasileiro de assegurar o direito à segurança aos seus cidadãos gera ainda um outro efeito adverso que é ampliar a desconfiança da população nas suas instituições, abrindo espaço para discursos de lideranças populistas e descomprometidas com o Estado de direito.

Apesar de a criminalidade se encontrar entre as principais preocupações dos brasileiros, desde a década de 1990, as respostas oferecidas pelos sucessivos governos, sejam eles de direita, centro ou esquerda, tanto no âmbito dos estados, como no plano federal, não apenas se demonstraram insuficientes para conter o crescimento da criminalidade, em especial a criminalidade organizada, como em muitos aspectos têm contribuído para sua expansão.

Muito embora as últimas décadas tenham gerado um conjunto consistente de experiências bem-sucedidas de controle da criminalidade ao redor do mundo, o mercado político brasileiro tem premiado políticas ineficientes e muitas vezes contraproducentes, mas que têm mais apelo eleitoral.

Exemplo disso é a política prisional. O Brasil tem hoje a terceira maior população prisional do mundo. São mais de 800 mil presos, distribuídos em cerca de 1.500 estabelecimentos. Estima-se que 70% desses estabelecimentos estejam sob controle de facções criminosas. O resultado é que, para atender à demanda do populismo penal, o Estado brasileiro transformou-se no principal parceiro na arregimentação e no fortalecimento do crime organizado. Um desastre!

Múltiplas são as razões que têm dificultado reformas ou mesmo a adoção e consolidação de políticas públicas mais efetivas no campo da segurança pública. A primeira delas é que o debate sobre segurança tem se tornado cada vez mais polarizado, reduzindo a possibilidade da formação de consensos, com base em evidências e experiências bem-sucedidas. O caso das câmeras corporais é um bom exemplo.

Um segundo obstáculo são os interesses corporativos. Além das disputas entre as Polícias Militares e Polícias Civis, há também interesses do Ministério Público e da Justiça, que têm bloqueado a construção de soluções mais eficientes. Paralelamente, governadores com pretensões reformistas têm enormes dificuldades de se contrapor aos interesses dessas corporações.

Por fim, não se deve negligenciar a contaminação das instituições. O crime organizado é uma atividade altamente rentável e que depende de um sistema de segurança ineficiente e com baixa integridade para expandir suas atividades. Seus representantes, nas diversas esferas, estão, portanto, permanentemente mobilizados para assegurar a manutenção dessa baixa eficiência e falta de integridade.

Enfrentar essas resistências à modernização de nosso sistema de segurança é o principal desafio a lideranças efetivamente comprometidas com o bem-estar da população, assim como com a própria sobrevivência da democracia.

 

Inflação

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Inflação é o aumento generalizado de preços em uma economia, tudo isso, acaba criando variados impactos sobre a economia nacional, gerando incertezas e instabilidades, levando os agentes econômicos e produtivos a diminuírem seus investimentos na economia, reduzindo os empregos, diminuindo a renda e o salário nacional.

A economia brasileira conviveu com inflação durante muitas décadas, para muitos especialistas, o crescimento industrial e as transformações na estrutura produtiva foi financiado com a geração de inflação, levando o governo nacional a imprimir moedas e, consequentemente, incrementou os preços nacionais, levando o sistema a criar instrumentos de defesa, nascia a tão famosa indexação dos preços internos.

Depois de décadas convivendo com a inflação desenfreada, os governos democráticos, pós 1985, transformaram o combate a inflação um mantra emergencial, afinal, aumento generalizado de preços na economia geravam graves distorções na economia nacional.

Neste embate contra os preços, os governos nacionais utilizaram um variado repertório para reduzir a inflação, tais como o congelamento de preços, tablitas, controles constantes de preços, troca de moedas, dentre outros, mas todas estas medidas não foram suficientes para controlar os preços relativos e melhorar o ambiente econômico e produtivo.

Em 1994, o governo federal lançou o Plano Real, cujo êxito sobre o controle dos preços levou a uma reviravolta na sociedade, a inflação perdeu força e o país passou a ganhar novos espaços na economia mundial, aumentando a abertura da economia, com a redução do Estado, incremento das privatizações, aumento das concessões públicas, fortalecimento das parcerias públicas e privadas, desregulamentação… que culminaram num abraço caloroso com os defensores dos ideários neoliberais.

O Plano Real comemorou 30 anos e trouxe grandes benefícios para a sociedade brasileira, mas trouxeram, como tudo, outros grandes desajustes na estrutura econômica e produtiva, tais como a valorização excessiva do câmbio, taxas de juros elevadas, a entrada em demasia de produtos importados e, tudo isso, contribuíram, enormemente para a tal desindustrialização da economia nacional, cujos efeitos deletérios são sentidos ainda atualmente.

No ano de 2024, a inflação chegou a 4,83%, se compararmos com os números dos anos 1990, o número atual é inexpressivo, mas muitos especialistas acreditam que, se continuarmos nesta toada, a inflação tende a crescer de forma acelerada, uns dizendo que o país poderia voltar aos índices inflacionários dos anos 1990, um verdadeiro terrorismo e uma inverdade.

Para esclarecimento, no começo do século, as Autoridades Monetárias criaram um modelo chamado de Meta de Inflação, onde o governo nacional autorizava o Banco Central a buscar o centro da meta, se utilizando de todos os instrumentos da chamada política monetária, aceitando uma variação para baixo ou para cima, no caso brasileiro nossa meta de inflação definida institucionalmente era de 3,0%.

Lembro-os que os indicadores inflacionários nos mostram que o centro da meta inflacionária de 2024 era de 3,0%, com tolerância de 1,5% a 4,5%, desta forma, a inflação estourou o teto da meta, levando o Banco Central Brasileiro a apresentar uma carta endereçada ao Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, com justificativas das razões que levaram a inflação a ter ficado acima da meta.

Segundo o Presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, o estouro da meta inflacionária está ligado ao aumento do dólar, uma economia em crescimento e o clima, que geraram graves constrangimentos sobre os preços relativos, levando ao aumento da inflação.

A desvalorização cambial impacta fortemente sobre os preços relativos, levando a um aumento dos custos produtivos que são repassados para os consumidores, gerando preços mais em ascensão e impactando negativamente sobre a renda dos trabalhadores, criando uma verdadeira sensação de empobrecimento do salário nacional.

Outra justificativa para o aumento da inflação em 2024 foi as alterações climáticas, que impactaram fortemente sobre toda a agricultura nacional, com quebra de safras e redução nas plantações, reduzindo a oferta de produtos e levando o governo nacional a aumentar a importação, com impacto sobre a balança comercial, tudo isso contribuíram para a redução do superávit na balança comercial, que chegou a US$ 80 bilhões.

Outro motivo destacado pelo presidente do Bacen, foi o crescimento da economia nacional. No começo do ano de 2024 as expectativas de crescimento da economia nacional eram de 0,8%, 1,0% ou até 1,5%, mas o crescimento do produto interno bruto (PIB) superou todas as previsões dos economistas de mercado, os chamados ortodoxos, chegando a 3,5%. Com esse crescimento econômico os preços foram pressionados, afinal, a estrutura produtiva não conseguiu aumentar a produção, obrigando a Autoridade Monetária a aumentar as taxas de juros para esfriar o crescimento econômico nacional.

Juros altos reduz ou posterga os investimentos produtivos, fragilizando a geração de emprego, fundamentais para a melhora do ambiente econômico, tudo isso, melhoraria os indicadores econômicos e sociais, reduzindo as desigualdades que sempre caracterizaram a sociedade brasileira, uma nação rica em recursos naturais e dotado de um solo valoroso, mas ao mesmo tempo, uma nação marcada pelas desigualdades crescentes, uma estrutura fundiária atrasada e uma elite industrial que se compraz com ganhos elevados no mercado financeiro, perdendo a vocação ao empreendedorismo e a inovação.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre e Doutor em Sociologia.

 

 

Protecionismos

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O ano de 2025 começou com inúmeros sonhos, grandes promessas, expectativas crescentes e a busca contínua de metas pessoais e coletivas. Neste ambiente, marcado por inúmeras transformações econômicas e sociais, percebemos que o ano começou com grandes incertezas, volatilidades e instabilidades nos campos econômico e político, com a ascensão, ou o retorno, de Donald Trump, como presidente dos Estados Unidos, com a divulgação de medidas preocupantes, unilaterais e assustadoras com impactos generalizados sobre o comércio global e possíveis desequilíbrios da economia internacional.

O “novo” governo estadunidense defende abertamente o aumento do protecionismo comercial, com o aumento das tarifas e forçando as empresas estrangeiras vistas como estratégicas para investir internamente, aumentando a geração de emprego e melhorando a renda dos trabalhadores. Estas medidas podem ser vistas como nacionalistas e protecionistas, como uma forma de estimular o ambiente econômico, mas sabemos, que estas políticas impactarão fortemente sobre a economia mundial, levando os parceiros a adotarem represálias comerciais e adotarem políticas protecionistas parecidas, aumentando as tarifas de importação, incrementando os subsídios, reduzindo o comércio internacional e diminuindo os espaços de crescimento das economias.

No campo econômico, as propostas de Donald Trump tendem a gerar graves constrangimentos para a economia internacional, aumentando a inflação, levando a Autoridade Monetária a aumentar as taxas de juros, atraindo dólares e gerando uma forte desvalorização das moedas, obrigando os Bancos Centrais a aumentarem as taxas de juros internas, reduzindo os investimentos nacionais e levando as economias a uma possível crise econômica, com graves custos políticos e sociais.

As medidas alardeadas pela “nova” administração dos Estados Unidos estão gerando grandes incertezas na sociedade global, não apenas para as nações rivais, como a Rússia e a China, mas também os países aliados, como Canadá, México, União Europeia e o Panamá. Todas estas medidas acabam criando mais incertezas e mais dúvidas sobre a sociedade internacional, gerando mais rivalidades, antagonismos e constrangimentos.

O protecionismo norte-americano vem ganhando novos contornos, recentemente o governo exigiu que a empresa detentora do Tik Tok, ByteDance, vendesse seu controle acionário para um grupo local, alegando, como sempre, risco à segurança nacional, alegação esta que está sendo utilizada pelo governo estadunidense para vetar a aquisição de uma empresa siderúrgica local, a US Steel, que está sendo adquirida por um grande conglomerado siderúrgico japonês, Nippon Steel, alegando novamente risco à segurança nacional do país.

Vivemos num momento de grandes instabilidades, os governos estão adotando políticas protecionistas para fortalecer as atividades internas e recuperar seus setores industriais, adotando políticas nacionalistas, aumentando os subsídios fiscais e tributários para atrair empresas estratégicas de ponta, aumentando a animosidade entre os atores econômicos, gerando fortes constrangimentos políticos, levando as nações a conflitos militares que podem culminar em destruições generalizadas.

Neste cenário de forte protecionismo interno das nações desenvolvidas, marcadas pelo aumento das concorrências comerciais e produtivas, encontramos estratégias diferentes e variadas, alguns países protegem seus setores econômicos, fortalecem suas estruturas nacionais, exigindo empresas locais comprometidas com um projeto nacional, enquanto outros países, verdadeiros vassalos submissos ao mercado financeiro global, vendem seus conglomerados econômicos e produtivos a preços irrisórios, enriquecem as custas da miséria da população e acreditam serem verdadeiros patriotas.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Segurança, prioridade esquecida, por Maria Hermínia Tavares.

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Regras constitucionais inadequadas e visões opostas sobre o assunto vêm bloqueando os necessários avanços

Maria Hermínia Tavares, Professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, é pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Folha de São Paulo, 09/01/2025

A segurança pública é o grande fracasso do sistema democrático que se construiu sob a égide da Constituição de 1988. Nos 36 anos desde a sua promulgação, o país promoveu profundas reformas no sistema de proteção social. Elas permitiram a universalização da atenção primária em saúde por meio do SUS; o acesso à educação básica para todos —além da ampliação do ensino médio e do ensino superior; a existência de um conjunto robusto de políticas assistenciais organizadas no Suas (Sistema Único de Assistência Social), ancoradas no Bolsa Família e no BPC (Benefício de Prestação Continuada).

Para os avanços na área social foi fundamental encontrar a fórmula de produzir a cooperação entre governos nos três níveis da federação. Assim, foi decisiva a existência, em cada âmbito de ação, de redes de especialistas que transitavam entre o mundo acadêmico e a prática de gestão pública. Nesse enlace, geraram-se diagnósticos do legado de políticas anteriores e produziram-se inovações orientadas por abrangentes ideias do que fazer. Dito de outro modo, pensamento e instituições permitiram a colaboração intergovernamental —com uma exceção.

No livro “Segurança Pública: um projeto para o Brasil”, de 2020, o professor Daniel Vargas, da Escola de Direito da FGV, argumenta que regras constitucionais e visões opostas sobre esse tema vêm bloqueando avanços. De um lado, a Carta de 1988 estabeleceu um regime de segurança descentralizado, com o centro de gravidade nos estados; compartimentado entre os diversos órgãos encarregados de manter a ordem e combater o crime (polícias, Ministério Público, Judiciário e sistema penitenciário); e rígido, devido ao estabelecimento, detalhado em lei, das atribuições de cada um deles.

De outro lado, duas visões influentes e diametralmente opostas dificultaram a convergência em torno de inovadoras soluções institucionais. A primeira, típica das direitas, que delas usam e abusam para fins eleitorais, é o punitivismo. Ou seja, na sua versão mais polida, a crença de que as coisas podem se resolver com mais cadeia e endurecimento do direito penal. Sua tradução mais crua é a legitimação da violência policial desenfreada.

A segunda visão seria própria dos progressistas. Estes, cativos da memória dos desmandos da ditadura militar, não conseguem ir além da oposição de princípio ao primado da barbárie oferecida pelo punitivismo.

Sob a democracia, não faltaram experiências nos estados. Embora promissoras, foram abandonadas sem gerar legados duradouros. Tampouco faltou consciência da necessidade de articulação federativa tanto na lei de 2018 que criou o Susp (Sistema Único de Segurança Pública), quanto na proposta do ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski de transformá-la em dispositivo constitucional.

Mas, tudo continuará como está —um consumado desastre— enquanto, primeiro, não surgir uma comunidade de especialistas mais pragmática, influente e apta a construir consensos e pensar em incentivos para a cooperação entre os entes da federação e os diferentes órgãos do sistema de segurança. E, segundo, sobretudo enquanto Brasília não se dispuser a dar a devida atenção àquilo que é prioridade para os brasileiros.

Zuckerberg está errado, por Thiago Amparo

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E está contribuindo para transformar o Vale do Silício no curral do autoritário de plantão

Thiago Amparo, Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

Folha de São Paulo, 09/01/2025

Se havia alguma dúvida sobre a posição política do CEO da Meta, agora não há mais. Como quem discursa em uma convenção ultraconservadora, o anúncio feito por Mark Zuckemberg na terça (7) é, na linguagem, trumpista ao chamar checagem factual de censura, e extremismo de liberdade; é, no seu impacto, perigoso ao desmerecer os esforços da própria empresa contra ilegalidades; e é, no espectro político, radical de direita ao favorecer toda sorte de discursos de desinformação desde que estes privilegiem Trump e aliados.

Zuckerberg mostra o que já era claro em Bezos e Musk: o Vale do Silício deixou de ser oásis da inovação para se tornar o curral do autoritário de plantão, desde que este faça com que as empresas ganhem o maior volume de dinheiro possível com a menor regulação aceitável. Os donos da tecnologia se juntam formalmente ao tecnoautoritarismo. Zuckerberg quer que creiamos que coisas como proibir chamar pessoas trans de doentes mentais ou derrubar conteúdos que exponham crianças a exploração sexual sejam políticas abrangentes demais e, portanto, inaceitáveis. Não o são.

Zuckerberg propõe, ademais, um tecnoimperialismo ao colocar a Meta à disposição do governo Trump na batalha contra regulação na Europa e na América Latina. Glenn Greenwald está errado ao repetir nesta Folha o despautério de Zuckerberg sobre ilusórias cortes secretas no Brasil: a quem não souber onde é o STF eu passo o endereço (os invasores do 8 de Janeiro, impulsionados pela desinformação, sabiam); a quem não souber a diferença entre tribunal secreto e investigação sob sigilo, a lei explica. O STF suspendeu postagens em investigação de golpe, e as cortes eleitorais engajaram com plataformas no cumprimento da lei.

Mesmo com falhas, não há que se dizer que o STF seja uma corte secreta, tampouco que o risco maior para a democracia está em derrubar postagem pró-golpe, e não na tentativa de envenenar um presidente, revelada inclusive pela retirada do sigilo da decisão de Moraes.

O Vale do Silício está com as malas prontas para se mudar da Califórnia para o Texas e, a partir de lá, governar o mundo.

 

O que significa o 8 de janeiro para a extrema direita, dois anos depois? Wilson Gomes

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Grave violação das instituições democráticas dividiu grupo político entre críticas táticas e justificativas ideológicas

Wilson Gomes, Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de “Crônica de uma Tragédia Anunciada”.

Folha de São Paulo, 08/01/2025

Oito de janeiro. A data desta coluna se impõe como tema e como memória, especialmente após os relatórios da Polícia Federal sobre a “trama golpista” da extrema direita. Não era, como supomos em 2023, o plano “A” do golpe —este havia sido previsto para dezembro de 2022—, mas um plano de contingência, a última tentativa dos conspiradores de fazer o Alto Comando das Forças Armadas ignorar sua avaliação de que as circunstâncias eram desfavoráveis.

Nos últimos dois anos, o governo, o campo político democrático, a imprensa e a esquerda adotaram concepção bastante homogênea acerca daqueles eventos.

Desde os primeiros “vivos”, o telejornalismo tratou o episódio como uma tentativa de golpe de Estado, sem ambiguidades. Assim também se comportaram o governo e o Judiciário, que agiram rapidamente para debelar o ataque, evitar que suas consequências se alastrassem e punir os envolvidos. Tentativa de “abolição violenta do Estado de Direito” foi o selo definitivo que fechou a interpretação.

Pelo menos para o campo democrático e para as autoridades e instituições que tinham a obrigação de defender a democracia.

Mas e os envolvidos? Como os bolsonaristas elaboraram esses eventos e as suas consequências?

Minha hipótese, decorrente da observação sistemática dos grupos bolsonaristas online, é que o bolsonarismo, apesar das diferenças internas, nunca assumiu uma condenação clara e uniforme sobre os eventos do 8 de janeiro. Enquanto a sociedade brasileira, em geral, tende a ver os atos como uma grave violação das instituições democráticas, a extrema direita os enxerga de maneira ambígua, dividida entre críticas táticas e justificativas ideológicas. O que emerge é uma constelação de discursos e pontos de vista que se alternam entre a autocrítica estratégica, a vitimização e a negação de responsabilidade.

Em muitos casos, os atos são vistos como “burrice estratégica”, um “gol contra” que deu aos adversários a oportunidade de perseguir a direita e reforçar a sua posição de poder. Essa postura tenta separar o objetivo, considerado legítimo —contestar o governo e as instituições—, dos meios, esses sim, desastrados.

Os argumentos predominantes nesses ambientes são variados, mas um dos mais recorrentes é o da “armadilha orquestrada pelo governo”. Os atos não teriam sido genuínos ou espontâneos, mas parte de uma trama extremamente elaborada para desestabilizar a direita, prender simpatizantes e consolidar o poder do “desgoverno” atual.

Termos como “armadilha”, “infiltrados” e “conspiração” são amplamente usados para transferir a culpa aos outros. Essa versão permite que a extrema direita se mantenha em uma posição de vítima, reforçando a ideia geral de perseguição política.

Outra narrativa comum é a de que os manifestantes, muitas vezes descritos como “patriotas” ou “inocentes úteis”, foram injustamente presos e perseguidos, com algumas versões investindo no drama humano dos participantes ao mencionar idosos, cadeirantes ou mães com crianças. A vitimização é uma estratégia central: os envolvidos são vistos como mártires de um sistema opressor, apanhados em um protesto legítimo que foi manipulado e draconiamente reprimido.

No entanto, essas posições não são homogêneas. Alguns setores, mais pragmáticos, reconhecem os eventos como um erro estratégico que enfraqueceu a direita e forneceu munição para os seus adversários políticos.

Isso é o mais próximo de uma autocrítica que se consegue chegar, ainda que limitada a questões de eficácia política e imagem pública. Por outro lado, setores mais ideológicos e conspiratórios rejeitam qualquer culpa, preferindo acreditar que tudo foi uma farsa organizada pelo governo para justificar a repressão. Esses grupos frequentemente usam o 8 de janeiro como um símbolo da luta contra um “estado de exceção” que, segundo eles, está em curso no Brasil.

Essas nuances revelam que o 8 de janeiro é um ponto de tensão dentro da extrema direita. As críticas ao evento não convergem com a posição predominante da sociedade brasileira, pois divergem do pressuposto de que foi um ataque à democracia. Os argumentos predominantes oscilam entre negar responsabilidade, justificar os atos como legítimos e lamentar seus resultados práticos. Internamente, essas diferenças refletem divisões que fragmentam a direita radical.

No final, o que emerge é que o 8 de janeiro foi um evento mal compreendido ou uma armação dos inimigos da extrema direita, em que patriotas inocentes caíram feito patos. E que, se houve um golpe nesse dia, a direita foi a vítima maior da artimanha.

 

Força bruta é a arma da falta de inteligência, por Ilona Szabó de Carvalho

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Além de ineficaz para garantir segurança, o uso desproporcional da força é ameaça constante à democracia

Ilona Szabó de Carvalho, Presidente do Instituto Igarapé, membro do Conselho de Alto Nível sobre Multilateralismo Eficaz, do Secretário-Geral. da ONU, e mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia).

Folha de São Paulo, 08/01/2025

Neste 8 de janeiro, que marca dois anos de um brutal ataque à democracia, faço um alerta sobre a perigosa reação de governadores ao decreto sobre uso da força publicado pelo governo federal na véspera do Natal. A atitude mostra o quão equivocados estão sobre suas responsabilidades perante a segurança pública em um país democrático.

Para lembrar, o texto, que reitera que a força deve ser aplicada com bom senso e sem discriminação — sendo a arma de fogo o último recurso, condiciona o repasse de recursos federais aos órgãos de segurança estaduais à adequação a essas normas. Só o fato de ser necessário um decreto para determinar o que já deveria ser default nas políticas de segurança pública escancara o grau de descompromisso de um número relevante de governantes com a proteção da população, para não falar da democracia.

Quando comecei a trabalhar com segurança pública, estava cercada de policiais que se orgulhavam de seu treinamento para o uso legal e progressivo da força. Eram guardiões da boa conduta e do verdadeiro ethos de proteção cidadã e democrática que as polícias precisam carregar e exercer.

Hoje, os bons exemplos estão escanteados. São cada vez mais raras as manifestações de policiais falando contra os abusos dos pares. A polarização tóxica acirrou o corporativismo e intimida ou, no mínimo, inibe os bons policiais de se colocarem em público. O populismo extremista que rifa a segurança pública por motivos eleitoreiros, seja no Poder Executivo ou Legislativo, e que por vezes conta com o respaldo do Judiciário e do Ministério Público, mantém impunes os que abusam da força.

O resultado se vê nas barbáries cometidas pela Polícia Militar de São Paulo, registradas em vídeos de câmeras privadas, e nas que se manifestam em diversos outros estados líderes em violência policial, como Rio de Janeiro, Bahia e Amapá – além dos “erros” cometidos por policiais rodoviários federais ainda ‘empoderados’ pela gestão passada.

A ineficácia dos órgãos de segurança pública no Brasil se ancora na leitura rasteira de seus papéis e deveres. Sem inteligência, em todos os sentidos, a única arma proposta é a força bruta.

Não é preciso inventar a roda. É preciso, e urgente, que sejam exercidos os controles interno e externo previstos na legislação. Inclusive pelo Ministério Público, que, em boa parte, não vem cumprindo seu papel de fiscalização da atividade policial.

Por isso, o decreto é bem-vindo e precisa ser implementado com urgência. O governo federal deve usar todos os recursos de que dispõe para incentivar o uso responsável da força e a transformação das polícias militares e civis dos estados brasileiros em instituições cidadãs e democráticas.

Já passou da hora de a segurança pública ser compreendida e priorizada em sua totalidade, e em todos os níveis de governo e poderes do Estado. Segurança pública é um sistema integrado, que começa na prevenção, passa pelas polícias, defensorias, ministérios públicos, sistema prisional, e Judiciário.

A desestruturação das políticas públicas de prevenção e das condições do sistema prisional perpetua o ciclo vicioso da força bruta e sustenta o populismo autoritário. Nesse filme, que, como já vimos, leva à porta de entrada da derrocada da democracia, o descontrole das polícias é um spin-off a ser derrotado nas bilheterias para as eleições do ano que vem.

 

Filhos dos ricos merecem herança? por Michel França

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Proteção excessiva de herdeiros limita desenvolvimento

Michael França, Ciclista, vencedor do Prêmio Jabuti Acadêmico, economista pela USP e pesquisador do Insper. Foi visiting scholar nas universidades de Columbia e Stanford.

Folha de São Paulo, 07/01/2025

Em minha última coluna, intitulada “Qual é o legado dos ricos”, argumentei que, com a baixa taxa de fecundidade e o progressivo abandono do ideal de ter filhos, especialmente nas gerações mais jovens, a árvore genealógica de muitas famílias está destinada a morrer em um futuro próximo.

Isso levanta uma relevante questão sobre o que realmente significa deixar um legado, visto que, para muitos, ainda predomina o antiquado modelo de transmitir fortunas herdadas de gerações passadas e acumuladas ao longo da vida para seus descendentes.

Não podemos negar que deixar a herança exclusivamente para os filhos tem um forte apelo emocional. Afinal, queremos proteger o futuro de nossos entes queridos. Apesar disso, é importante questionar se tal proteção realmente beneficiará os filhos, pois grandes heranças podem, na verdade, prejudicar mais do que ajudar.

Tal fato tende a ser negligenciado por muitos pais que procuram fazer de tudo por seus filhos. Porém, ao eliminar a necessidade de esforço e resiliência, fortunas herdadas tendem a desestimular o desenvolvimento pessoal e profissional, criando uma geração de herdeiros não só dependentes, mas também, em muitos casos, incompetentes.

Em vez de aprenderem a conquistar o que possuem, muitos crescem com a sensação de que tudo está garantido. Isso acaba levando-os a ter de tudo, mas, ainda assim, possuírem um sentimento de vazio e falta de propósito.

A ausência de necessidade de lutar pela segurança financeira faz com que muitos herdeiros apresentem dificuldades em construir uma identidade independente. Em diversos casos, isso se reflete em uma vida marcada pela falta de realização pessoal.

Para além do indivíduo, a transmissão de heranças tem um impacto coletivo negativo, pois intensifica a concentração da riqueza. A herança garante que aqueles que nascem em famílias mais ricas comecem a vida muito à frente dos demais, cristalizando ainda mais suas vantagens. Os ricos não herdam apenas bens, mas também toda uma rede de oportunidades derivadas de uma educação melhor, contatos e retornos dos mais variados ativos.

Como resultado, nossas elites deixam de se renovar. Quando grandes fortunas são passadas de uma geração para outra, o poder econômico e político fica concentrado em poucas famílias, reduzindo as possibilidades de transformações significativas em espaços de decisão.

Dessa forma, tal contexto nos desafia a refletir sobre qual impacto podemos gerar com nossos recursos e habilidades para além de nossos filhos e familiares. Para os filhos, optar por investir a riqueza em algo que promova um bem coletivo não significa abandono, mas uma oportunidade de trilhar seus próprios caminhos, com toda a sorte de já terem nascido em um ambiente altamente privilegiado.

Em vez de herdar fortunas, eles podem receber uma educação de excelência e a liberdade de construir sua própria trajetória com maior legitimidade, ou seja, sem o fardo de serem apontados como herdeiros. Pais que optam por não deixar a herança para os filhos não estão negando apoio, mas oferecendo uma chance para que eles desenvolvam sua independência, caráter e senso de propósito.

 

Cibervassalos de todos os países, uni-vos, por Yanis Varoufakis

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Novos senhores do mundo capturam, além da riqueza material, a subjetividade das populações. Que práticas sociais antissistêmicas podem vencê-los, ao usar a “nuvem” para favorecer o compartilhamento e tornar desprezível a acumulação?

Yanis Varoufakis é economista, blogger e político grego membro do partido Syriza. Foi o ministro das Finanças do Governo Tsipras no primeiro semestre de 2015. Varoufakis é um assíduo opositor da austeridade. Desde a crise global e do euro começou em 2008, Varoufakis tem sido um participante ativo nos debates ocasionados por esses eventos.

OUTRAS PALAVRAS – 26/07/2024

Pareceram passar horas até que o artista finalmente apareceu. À sua espera no palco estava um exoesqueleto de metal brilhante, superdimensionado e de aparência robótica, suspenso por um longo cabo no teto alto do espaço de arte – uma antiga usina elétrica convertida, nos arredores de Sydney. Eu estava entre o público na sala de turbinas pouco iluminada, cada vez mais cativado pela trilha sonora e hipnotizado pela máquina elegantemente reluzente.

Era 19 de agosto de 2000 – quase quatro anos antes de Mark Zuckerberg lançar o Facebook, seis anos antes do primeiro tuíte e apenas uns dois anos após a primeira pesquisa no Google. A Internet ainda estava em sua Era da Inocência, e o sonho de que ela fosse um fórum digital aberto, para participantes soberanos e governado por eles, ainda estava vivo.

Por fim, surgiu Stelarc, o artista. Uma vez dentro do exoesqueleto, Stelarc continuaria livre para mover suas pernas como quisesse, mas seus braços seriam controlados remotamente por uma multidão anônima que assistia e participava pela Internet. Stelarc entrou na máquina, que ele chamou de Movatar, e o sistema começou a ser inicializado. Em pouco tempo, ele se conectou à internet, onde estranhos invisíveis o aguardavam.

Ao contrário de um dançarino que cativa com a facilidade de seus movimentos, o Movatar era atraente por sua estranheza. A parte superior do corpo se movia de forma brusca, como se estivesse em oposição às pernas. Seus movimentos desajeitados eram estranhamente comoventes, cheios de significado – mas significando o que exatamente? Senti uma janela se abrindo para a relação entre os seres humanos e suas tecnologias e as mesmas contradições que haviam inspirado Hesíodo.

O Movatar de Stelarc profetizou o que aconteceria conosco quando o capital tradicional evoluísse para o capital em nuvem, de um “meio de produção” para um meio de modificação de comportamento. Stelarc estava apenas experimentando a ideia do pós-humano, mas seu Movatar capturou a essência da realidade futura da humanidade. Na minha visão atual, o Movatar era uma criatura à mercê do capital hiperconectado, orientado por algoritmos e baseado na nuvem. Outro nome para ele seria Homo technofeudalis.

A morte do indivíduo liberal

Para os jovens do mundo atual, fazer a curadoria de uma identidade on-line não é opcional. Suas vidas pessoais tornaram-se um dos trabalhos mais importantes que realizam. Desde o momento em que dão seus primeiros passos on-line, eles sofrem, como o Movatar, com duas exigências espantosamente contraditórias. Eles são ensinados de modo implícito a se verem como uma marca, mas que será julgada de acordo com sua autenticidade percebida. (E isso inclui possíveis empregadores: “Ninguém me oferecerá um emprego”, disse-me uma vez um graduado, “até que eu tenha descoberto meu verdadeiro eu”).

Assim, antes de publicar qualquer imagem, fazer upload de qualquer vídeo, analisar qualquer filme, compartilhar qualquer fotografia ou mensagem, eles devem estar atentos a quem sua escolha agradará ou afastará. Eles devem, de alguma forma, descobrir qual de seus possíveis “eus verdadeiros” será considerado mais atraente, testando continuamente suas próprias opiniões em relação a qual seria a opinião média entre os formadores de opinião on-line.

Toda experiência pode ser capturada e compartilhada e, por isso, eles são continuamente consumidos pela questão de se devem ou não realizá-la. E mesmo que não exista uma oportunidade real para compartilhar a experiência, ela pode ser prontamente imaginada e será. Toda escolha, testemunhada ou não, torna-se um ato na curadoria de uma identidade.

Não é preciso ser um crítico radical de nossa sociedade para ver que o direito a um pouco de tempo diário em que não se está à venda praticamente desapareceu. A ironia é que o indivíduo liberal não foi extinto nem pelos fascistas camisas-pardas, nem pelos guardas stalinistas. Ele foi morto quando uma nova forma de capital começou a instruir os jovens a fazer a mais liberal das coisas: Seja você mesmo! (E seja bem-sucedido nisso!) De todas as modificações comportamentais que o capital em nuvem engendrou e monetizou, essa é certamente sua maior e mais importante conquista.

O individualismo possessivo sempre foi prejudicial à saúde mental. O tecnofeudalismo tornou as coisas infinitamente piores quando demoliu a cerca que costumava oferecer ao indivíduo liberal um refúgio do mercado. O capital em nuvem fragmentou o indivíduo em fragmentos de dados, uma identidade composta de escolhas expressas por cliques, que seus algoritmos são capazes de manipular.

Ele produziu indivíduos que, mais que possessivos, são possuídos — ou, melhor, pessoas incapazes de serem se autopossuírem. Diminuiu nossa capacidade de concentração ao cooptar nossa atenção. Não nos tornamos fracos de vontade. Não, nosso foco foi roubado. E como os algoritmos do tecnofeudalismo são conhecidos por reforçar o patriarcado, os estereótipos e as opressões preexistentes, os mais vulneráveis – as meninas, os doentes mentais, os marginalizados e, sim, os pobres  – são os que mais sofrem com o resultado.

Se o fascismo nos ensinou alguma coisa, foi a nossa suscetibilidade a estereótipos demonizadores e a terrível atração produzida por emoções como a hipocrisia, o medo e a inveja. Em nosso mundo tecnofeudal, a Internet traz o temido e odiado “outro” para mais perto, bem na sua cara. E, como a violência on-line parece sem sangue e anódina, é mais provável que respondamos a esse “outro” on-line com insultos, linguagem desumana e bile.

O fanatismo é a compensação emocional do tecnofeudalismo para as frustrações e ansiedades que sentimos em relação à identidade e ao foco. Os moderadores de comentários e a regulamentação do discurso de ódio não podem impedir isso porque é intrínseco ao capital da nuvem, cujos algoritmos otimizam a renta da nuvem, a qual flui mais copiosamente do ódio e do descontentamento.

Diante do tecnofeudalismo, agir sozinho, isolado, como indivíduo liberal, não nos levará muito longe. Cortar o acesso à internet, desligar nossos telefones, usar dinheiro em vez de plástico pode ajudar por um tempo, mas não é solução. A menos que nos unamos, nunca civilizaremos ou socializaremos o capital em nuvem e, portanto, nunca recuperaremos nossas próprias mentes de suas garras.

E aqui reside a maior contradição: para resgatar essa ideia liberal fundamental – de liberdade como algo próprio – será necessária uma reconfiguração abrangente dos direitos de propriedade sobre os instrumentos de produção, distribuição, colaboração e comunicação cada vez mais baseados na nuvem. Para ressuscitar o indivíduo liberal, precisamos fazer algo que os liberais detestam: planejar uma nova revolução.

Por que o tecnofeudalismo não pode ser domado pela política da mesma forma que o capitalismo foi contido, pelo menos por um tempo, por governos social-democratas?

Os social-democratas conseguiram fazer a diferença em uma época em que o poder estava nas mãos do velho capital industrial. Eles atuaram como árbitros entre os trabalhadores organizados e os capitães da indústria manufatureira, metaforicamente (e às vezes literalmente), fazendo-os sentar em torno de uma mesa e forçando-os a fazer concessões. O resultado foi, por um lado, melhores salários e condições para os trabalhadores e, por outro lado, o desvio de uma parte dos lucros do setor para aposentadorias, hospitais, escolas, seguro-desemprego e artes.

Porém, quando o poder passou do setor industrial para o financeiro após a morte do acordo de Bretton Woods em 1971, os social-democratas europeus e os democratas americanos foram atraídos para uma barganha faustiana com os banqueiros de Wall Street e de Londres, Frankfurt e Paris. A barganha era crua e simples: os social-democratas no governo libertaram os banqueiros das amarras da regulamentação. “Fiquem loucos! Regulamentem a si mesmos”, disseram a eles. Em troca, os financistas concordaram em entregar as migalhas de sua mesa substancial, na forma de uma pequena porção de seus ganhos gigantescos com a financeirização raivosa, para financiar o estado de bem-estar social.

Em termos homéricos, os social-democratas haviam se tornado os comedores de lótus da época. Ao se empanturrarem com a financeirização, tornaram-se intelectualmente lassos e moralmente cúmplices de suas práticas. Seu suco melado os levou a acreditar que o que antes era arriscado agora não era mais, que essa galinha mágica sempre botaria ovos de ouro e que, se esses ovos pudessem ser usados para financiar o estado de bem-estar social, então tudo o mais que a galinha fizesse poderia ser justificado.

Quando em 2008 o capital financeiro desmoronou, eles não tinham as ferramentas mentais e os valores morais para dizer aos banqueiros: “Chega! Podemos salvar os bancos, mas não vocês”. Daí a combinação letal de socialismo para banqueiros e austeridade para quase todos os outros, que estagnou nossas economias e, ao mesmo tempo, financiou a ascensão dos nebulosos.

Antigamente, os social-democratas tinham um certo poder sobre os industriais porque contavam com o apoio dos sindicatos e podiam ameaçar com regulamentações dolorosas. Hoje, os nebulosos não temem sindicatos poderosos, porque os proletários das nuvens são fracos demais para formá-los, e os servos das nuvens nem sequer se consideram produtores.

Quanto à regulamentação, ela tem funcionado por meio do controle dos preços ou do desmantelamento de cartéis. Na Era do Capital na Nuvem, os defensores da nuvem se sentem seguros com a ideia de que nenhuma das duas faz sentido. A regulamentação de preços é irrelevante quando os serviços dos quais os consumidores precisam já são gratuitos ou os mais baratos do mercado.

Quanto a desmembrar estas corporações, como o presidente Theodore Roosevelt fez com Rockefeller ao dividir a Standard Oil e outros cartéis, isso só era possível nos velhos tempos do capital terrestre. A Standard Oil era composta por postos de gasolina, refinarias e sistemas de transporte de combustível espalhados por toda a América do Norte. Dividi-la em empresas petrolíferas regionais e incentivá-las a competir entre si foi politicamente difícil, mas tecnicamente muito fácil. Mas como dividir a Amazon, a Meta, o PayPal ou a Tesla hoje em dia?

Os defensores da nuvem sabem que podem destruir qualquer desenvolvedor terceirizado (ou seja, um capitalista vassalo, que ganha a vida em seu feudo na nuvem), que ouse entrar em contato com um de seus usuários (ou seja, os servos da nuvem) sem antes pagar uma renta. Eles sabem que podem tratar seus usuários como quiserem – qual foi a última vez que alguém recusou os termos e condições de uma atualização de software? – por causa dos reféns que têm em mãos: nossos contatos, amigos, históricos de bate-papo, fotos, músicas, vídeos, todos os quais perderemos se mudarmos para um feudo de nuvem concorrente.

E eles sabem que há pouco que o Estado possa fazer para impedi-los. Ao contrário das empresas telefônicas nacionais, que nossos governos nacionais forçaram a cobrar as mesmas tarifas ao ligar para clientes de empresas concorrentes, como eles podem forçar o X (antigo Twitter) a compartilhar o acúmulo de todos os seus tuítes, fotos e vídeos com, digamos, o Mastodon?

Mas qual é a alternativa ao tecnofeudalismo? E como vamos construí-la?

Empresas democratizadas

Imagine uma corporação na qual cada funcionário tem uma única ação, que recebe ao ser contratado, da mesma forma que um estudante recebe um cartão da biblioteca ao se matricular na universidade. Essa ação, que não pode ser vendida ou alugada, concede a cada funcionário um único voto. Todas as decisões – contratação, promoção, pesquisa, desenvolvimento de produtos, preços, estratégia – são tomadas coletivamente, com cada funcionário exercendo seu voto por meio da intranet da empresa, que funciona, portanto, como uma assembleia permanente de acionistas. A igualdade de propriedade não significa, entretanto, igualdade de remuneração.

O pagamento é determinado por um processo democrático que divide as receitas da empresa após o pagamento dos impostos em quatro fatias: uma para cobrir os custos fixos (como equipamentos, licenças, contas de serviços públicos, aluguel e pagamentos de juros), outra reservada para P&D, uma fatia da qual é feito o pagamento básico aos funcionários e, por fim, uma fatia para bônus. Novamente, a distribuição entre essas quatro fatias é decidida coletivamente, na base de uma pessoa igual a um voto.

Qualquer proposta de aumento de uma fatia deve ser acompanhada de uma proposta de redução de despesas em uma ou mais das outras fatias. As propostas concorrentes são submetidas a uma votação em que os funcionários-acionistas classificam cada proposta em ordem de preferência por meio de um formulário de cédula eletrônica. Se nenhum plano obtiver a maioria absoluta das primeiras preferências, ocorrerá um processo de eliminação. O plano com o menor número de primeiras preferências é eliminado e seus votos de primeira preferência são realocados para a segunda preferência do eleitor. Esse processo algorítmico simples é repetido até que um plano de negócios obtenha mais da metade dos votos expressos.

Depois de determinar as quantias de dinheiro que a empresa gastará com as várias fatias do bolo, a parcela do salário básico é dividida igualmente entre todos os funcionários, desde pessoas recentemente empregadas como secretárias ou faxineiras até os principais designers ou engenheiros da empresa. Isso deixa uma pergunta importante sem resposta: Como eles decidem a distribuição da fatia do bônus entre os funcionários?

A resposta é: por meio de uma variante do esquema de votação que ficou famoso no Festival Eurovision da Canção, no qual cada país participante recebe um número definido de pontos que pode atribuir às músicas de todos os outros países. Com esse espírito, uma vez por ano, cada funcionário recebe cem tokens digitais para distribuir entre seus colegas.

A ideia é simples: você distribui esses tokens para os colegas que você acredita terem contribuído mais durante o ano anterior. Depois que os tokens forem distribuídos, a fatia total do bônus será alocada proporcionalmente ao número de tokens que cada funcionário recebeu de seus colegas.

O impacto da legislação desse sistema de governança corporativa seria o equivalente a um grande cometa se chocando contra o alicerce do tecnofeudalismo. No nível mais superficial, libertaria os funcionários da tirania de gerentes egoístas, mas em um nível estrutural, faria muito mais.

Primeiro, eliminaria a distinção entre salários e lucros; assim, temos propriedade coletiva e eliminamos a divisão fundamental de classes entre aqueles que são proprietários e recebem lucros ou rentas e aqueles que alugam seu tempo por um salário. Também abolimos o mercado de ações – apenas um funcionário pode ter uma ação em uma empresa, ela não pode ser vendida ou alugada – cortando assim o cordão umbilical que liga as finanças e a especulação do mercado de ações.

De uma só vez, acabamos com a financeirização e destruímos o private equity [participação privada]. Muito provavelmente, também acabamos com a necessidade de órgãos reguladores cuja função é acabar com as grandes corporações antes que elas estabeleçam monopólios. Como a tomada de decisões coletivas se torna difícil em empresas acima de um determinado tamanho – digamos, 500 pessoas -, parece muito provável que os funcionários acionistas não as formem e, no caso de conglomerados já formados, votem para dividi-las em empresas menores.

A maioria das pessoas que conheço, incluindo as gerações de alunos que ensinei, supõe que o capitalismo é igual a mercados. Que o socialismo deve significar o fim dos preços como sinais para produtores e consumidores. Nada poderia estar mais longe da verdade. As empresas capitalistas são zonas livres de mercado, dentro das quais um processo não mercantil extrai a mais-valia dos funcionários, que então assume a forma de rentas, lucro e juros. Quanto maior a empresa e quanto mais capital em nuvem ela emprega, maiores são os aluguéis que ela extrai de uma sociedade cujos mercados não funcionam bem como resultado.

Em contrapartida, as empresas democratizadas que proponho aqui são mais consistentes com mercados competitivos que funcionam bem, nos quais os preços – livres do flagelo do aluguel e do poder de mercado concentrado – são formados. Em outras palavras, a eliminação das empresas capitalistas, por meio do fim dos mercados de trabalho e de ações, prepara o terreno para mercados realmente competitivos de produtos e para um processo de formação de preços que impulsiona o grande motor do empreendedorismo e da inovação que o pensamento convencional, erroneamente, associa ao capitalismo.

O que tudo isso significaria para os rentistas, ou senhores das nuvens [cloudalists]? Os vários Bezoses, Zuckerbergs e Musks acordariam e descobririam que possuíam uma única ação em “sua” empresa, o que lhes daria um único voto. Em cada item da agenda de tempo contínuo do processo de tomada de decisões da Amazon, Facebook, X ou Tesla, eles teriam que influenciar a maioria de seus colegas, funcionários-acionistas igualmente capacitados.

O controle sobre o capital em nuvem da empresa, incluindo os poderosos algoritmos em seu centro, seria democratizado, pelo menos dentro dos limites da empresa. Mesmo assim, a potência do capital em nuvem não seria menor – sua natureza como meio de modificação comportamental permaneceria inalterada – e, portanto, a sociedade precisaria de proteções adicionais contra ele.

Uma dessas proteções seria uma Lei de Responsabilidade Social que estipulasse que todas as empresas fossem classificadas de acordo com um índice de dignidade social, a ser compilado por painéis de cidadãos selecionados aleatoriamente — o equivalente a júris — escolhidos de um conjunto diversificado de partes interessadas: os clientes da empresa, membros das comunidades que ela afeta e assim por diante. Se a classificação de uma empresa cair consistentemente abaixo de um determinado limite, uma investigação pública poderá resultar no cancelamento do registro da empresa. Uma segunda proteção social, ainda mais pertinente, é proporcionada pelo fim de serviços “gratuitos”.

Aprendemos da maneira mais difícil o que acontece quando os serviços são financiados pela venda da atenção dos usuários a terceiros. Isso transforma os usuários em servos da nuvem, cujo trabalho aprimora e reproduz o capital da nuvem, aumentando ainda mais seu controle sobre nossas mentes e nosso comportamento. Para substituir a ilusão de serviços gratuitos, nossa realidade alternativa apresenta uma plataforma de micropagamento. Vamos chamá-la de “Penny For Your Thought”.

Isso funciona um pouco como o modelo de assinatura da Netflix, mas combinado com o princípio de fornecimento universal do NHS, o Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido. Os desenvolvedores de aplicativos que precisam de nossos dados teriam que pagar para obtê-los de usuários que consentem, protegidos por uma Declaração de Direitos Digitais que garante a todos nós o direito de escolher quais de nossos dados serão vendidos e para quem.

A combinação da plataforma de micropagamento com a Declaração de Direitos Digitais encerra, na prática, o atual modelo de mercado. Qualquer pessoa que use um aplicativo paga ao desenvolvedor pelo acesso a ele. As somas envolvidas são pequenas para o indivíduo, mas para um aplicativo com um grande número de usuários, elas se acumulam. Isso não impediria que algumas pessoas tivessem condições de pagar pelos serviços digitais de que precisam? Não, devido à forma como o dinheiro funciona nesse sistema alternativo.

Dinheiro democratizado

Imagine que o Banco Central fornecesse a todos uma carteira digital gratuita, efetivamente uma conta bancária gratuita. Para atrair as pessoas a usá-la, um depósito (ou dividendo básico) é creditado mensalmente em cada conta, tornando a renda básica universal uma realidade. Dando um passo adiante, o banco central paga juros àqueles que transferem dinheiro de suas poupanças em bancos comerciais para sua nova carteira digital. Com o tempo, haveria um êxodo em massa (se não total), à medida que as pessoas transferissem suas economias de bancos privados para esse novo sistema público de pagamentos e economias digitais. Isso não exigiria que o Banco Central cunhasse grandes quantidades de dinheiro?

Sim, os depósitos terão de ser dinheiro cunhado novamente, embora não em um ritmo que exceda as quantidades que os Bancos Centrais vêm emitindo desde 2008 para apoiar bancos privados permanentemente instáveis. Quanto ao restante do dinheiro, ele já foi criado pelos bancos privados. Tudo o que acontece aqui é que ele migra do livro-razão inseguro dos bancos privados para o livro-razão seguro do Banco Central.

À medida que as pessoas e as empresas começarem a pagar umas às outras usando esse sistema, todo o dinheiro permanecerá no registro do Banco Bentral, passando de uma parte para outra a cada transação, em vez de ficar disponível para os banqueiros e seus acionistas fazerem apostas.

Isso faz com que os Bancos Centrais deixem de ser servos complacentes de banqueiros privados e passem a ser algo como um Comum monetário. Para supervisionar suas operações, inclusive a quantidade de dinheiro no sistema e a privacidade das transações de cada pessoa, o Banco Central é responsável, e monitorado por um Júri de Supervisão Monetária composto por cidadãos selecionados aleatoriamente e especialistas de diversas profissões.

E quanto ao investimento? Nesse sistema, você pode emprestar suas economias para uma start-up ou para uma empresa madura, mas não pode comprar uma parte de nenhuma empresa, já que as ações são distribuídas exclusivamente na base de um funcionário — uma ação. Em vez disso, você pode emprestar suas economias diretamente, usando a carteira digital do Banco Central ou por meio de um intermediário — mas com uma regra crucial. Esse intermediário não pode criar dinheiro do nada, como os bancos fazem hoje sempre que emitem um empréstimo. Ele deve negociar com fundos já existentes de poupadores de fato existentes.

E quanto à tributação? Lembre-se de que há três tipos de renda. Primeiro, os dividendos básicos creditados nas carteiras digitais dos cidadãos pelo Banco Central. Segundo,os ganhos provenientes do trabalho nas empresas democratizadas, que incluem o salário básico mais os bônus. Terceiro, os juros pagos aos poupadores pelo Banco Central ou por intermediários privados. Nenhuma dessas rendas é tributada. Tampouco há impostos sobre vendas, IVA ou qualquer coisa do gênero.

E quem financia o Estado? Toda empresa o faz por meio de um imposto fixo sobre todas as receitas — por exemplo, 5%. Observe que essa é uma parcela fixa das receitas totais, não dos lucros, o que evita o espaço infinito para truques contábeis que disfarçam as despesas como custos a fim de reduzir a renda tributável das empresas. Os únicos outros impostos incidem sobre terrenos e edifícios comerciais, discutidos mais adiante.

Quando se trata de comércio e pagamentos internacionais, um novo sistema financeiro internacional garante transferências contínuas de riqueza para o Sul Global, ao mesmo tempo em que restringe o comércio e os desequilíbrios financeiros do tipo que infla bolhas e causa colapsos financeiros. A ideia é que todos os movimentos comerciais e monetários entre diferentes jurisdições monetárias – como Reino Unido, Alemanha, China e Estados Unidos – sejam denominados em uma nova unidade contábil internacional digital, que chamei de Kosmos.

Se o valor Kosmos das importações de um país exceder suas exportações, será cobrada do país uma taxa de desequilíbrio, proporcional ao seu déficit comercial. Da mesma forma, se as exportações de um país excederem suas importações, também será cobrado o mesmo tributo na proporção de seu superávit comercial. Isso acaba com o motivo mercantilista de um país extrair persistentemente o valor de outro país vendendo a ele mercadorias de maior valor do que as que ele importa e, posteriormente, emprestando-lhe o dinheiro para continuar comprando dele – uma forma de financiamento de fornecedores que coloca o país mais fraco em uma situação de dívida permanente.

Enquanto isso, uma segunda taxa especulativa é cobrada da conta Kosmos de um país sempre que uma quantidade excessiva de dinheiro sai ou entra muito rapidamente no país. Durante décadas, os países em desenvolvimento foram prejudicados sempre que o dinheiro de curtíssimo prazo, detectando o crescimento econômico futuro (por exemplo, na Coreia do Sul, Tailândia e alguns países africanos), corria para comprar terras e empresas antes que seu preço subisse. Com o aumento da entrada de dinheiro, os preços dos terrenos e das empresas dispararam e surgiram falsas expectativas em relação ao nível de crescimento, inflando assim as bolhas.

No momento em que as bolhas estouram, como inevitavelmente acontece, o dinheiro “esperto” sai do país mais rápido do que havia entrado, deixando apenas vidas e economias arruinadas. O objetivo, portanto, da taxa de especulação é tributar esses movimentos especulativos de dinheiro para impedir danos desnecessários aos países mais fracos. Os rendimentos desses dois impostos são usados para financiar investimentos verdes diretos no Sul Global.

O sistema de um trabalhador — uma ação — um voto tem efeitos revolucionários: acaba com os mercados de ações e de trabalho e com a hegemonia do Capital; democratiza os locais de trabalho e diminui organicamente o tamanho dos conglomerados. A reconfiguração do livro-razão do Banco Central como um sistema comum de pagamento e poupança tem efeitos igualmente revolucionários: sem de fato banir os bancos privados, ela tira o tapete que está debaixo de seus pés, libertando-nos da dependência deles para fazer pagamentos ou armazenar nossas economias.

Além disso, a garantia de dividendos para os trabalhadores revoluciona nossa maneira de pensar sobre o trabalho, o tempo e o valor, libertando-nos da equação moral opressiva de trabalho árduo remunerado e virtuoso. Por fim, o sistema Kosmos equilibra o fluxo e o refluxo internacional de bens e dinheiro, evitando a exploração das economias mais fracas pelas mais poderosas e, ao mesmo tempo, financiando investimentos verdes nas partes do mundo em que eles mais necessários.

Esses são os elementos fundamentais de uma economia liberada da tirania do capital e, portanto, capaz de negar ao tecnofeudalismo o ponto de apoio necessário para nos dominar. Agora surge a pergunta: como exatamente libertamos nossas sociedades da tirania da renta – a antiga variedade da renda do solo, que sobreviveu à derrota do feudalismo pelo capitalismo, e os aluguéis das nuvens nos quais o tecnofeudalismo se baseia?

A nuvem e a terra como bens comuns

O café está quase pronto. Seu laptop está sendo inicializado. Em pouco tempo, com a caneca de café na mão, você está lendo o feed de notícias da manhã em um site de mídia administrado pela biblioteca do seu bairro. O primeiro item nas notícias diz respeito a um referendo local que está por vir, o segundo é transmitido do Brasil sobre a luta para compensar os povos indígenas por décadas de extração ilegal de madeira, o terceiro relata um debate entre os atuais membros do Júri de Supervisão Monetária sobre se o Banco Central deve reduzir a taxa de juros que os poupadores recebem ou, alternativamente, aumentar o dividendo básico de todos.

Tudo isso é um pouco áspero para o seu gosto. Então, com o cuidado de evitar as páginas de esportes, você clica na sua seção favorita, que é dedicada à arqueologia e é constantemente atualizada por pesquisadores de todo o mundo. Sim, isso faz seu pulso acelerar!

Seu feed de notícias e as seções que o acompanham são compilados por um algoritmo calibrado e mantido pelo centro de mídia pública local que, por sua vez, é de propriedade do seu município, mas controlado por pessoas locais selecionadas por meio de uma combinação de sorteios e eleições. Às vezes, você fica entediado com o feed de notícias e passa a usar um mapa-múndi digital cheio de pontos, cada um representando outros centros de mídia pública locais, cujos feeds de notícias você pode acessar com um clique.

Toda vez que você visita um centro de mídia fora da sua área, um pequeno pagamento sai da sua conta bancária central e ajuda a financiar as pessoas generosas que lhe oferecem uma janela para o mundo delas. Sem anúncios, sem algoritmos de modificação de comportamento. Esses pequenos pagamentos são insignificantes em comparação com o dividendo básico pago a você pelo Banco Central mensalmente. Além disso, pagá-los faz você se sentir bem. Eles asseguram a você – e a todos os outros – a civilização. Eles lhe oferecem uma janela para o mundo, para centros de mídia cooperativos espalhados por todo o planeta, que se esforçam ao máximo para fornecer informações boas, diversificadas e empolgantes, conhecimento e um toque de sabedoria – como seu meio de comunicação local anuncia seus produtos.

Sua caneca de café está vazia, é hora de ir para o trabalho. Você toca no aplicativo de viagens do seu telefone, também fornecido pela prefeitura, e depois toca novamente em “trabalho”. Aparece uma lista de tarifas oferecidas por várias cooperativas de motoristas, juntamente com informações sobre onde e quando você pode pegar o ônibus ou trem mais próximo.

Você se lembra com um breve tremor dos dias de Uber e Lyft, aqueles feudos na nuvem que exploravam a mão de obra dos motoristas, transformando-os em proletários na nuvem, e os dados dos passageiros, transformando você em um servo na nuvem. A má lembrança se dissipa quando você se lembra de que, agora, os motoristas-proprietários e a equipe de transporte público controlam os algoritmos, e não o contrário. E você sai com um ânimo a mais, agora que não é mais empregado de uma empresa capitalista, de propriedade de empresas de fachada opacas, que o tratavam como um cruzamento entre um robô e um alimento humano. A vida ainda é um campo minado de preocupações, especialmente porque podemos ter destruído o clima de forma irreparável, mas pelo menos o trabalho não é sistematicamente destruidor de almas.

No trabalho, você tem um aplicativo em seu telefone que lhe dá acesso a todos os tipos de cédulas de votação de acionistas e funcionários, algumas das quais você vota e outras opta por ignorar. Se você tiver uma ideia para uma nova maneira de fazer as coisas ou um novo produto, você a publica no Quadro de Ideias da empresa e espera para ver quem, entre seus colegas, quer trabalhar com você para desenvolvê-la. Se ninguém quiser, você ainda poderá publicar a ideia novamente quando ela estiver mais bem desenvolvida. As coisas não são perfeitas. A natureza humana sempre encontra maneiras de bagunçar até mesmo o melhor dos sistemas. Seus colegas, se reunirem a maioria, podem votar para que você seja demitido. Mas a atmosfera no trabalho agora é de responsabilidade compartilhada, o que reduz o estresse e cria um ambiente no qual o respeito mútuo tem mais chances de florescer.

A caminho de casa, quando o táxi sai da zona comercial, você relembra os tristes tempos em que, para ter um lugar para morar, as pessoas tinham que escolher entre a escravidão da dívida hipotecária e o aluguel; entre a vida em servidão ao banqueiro ou ao proprietário; entre taxas hipotecárias predatórias e aluguéis vorazes. Atualmente, cada região é administrada por uma Associação de Condados que supervisiona a divisão de terras entre zonas comerciais e sociais, de modo que os aluguéis cobrados das primeiras financiem o fornecimento de moradias sociais nas segundas.

Como de costume, as pessoas que oficiam na Associação do Condado são selecionadas aleatoriamente, com a ajuda de um algoritmo que garante uma representação justa dos vários grupos e comunidades do condado. O lar não é mais uma fonte constante de ansiedade, mas um lugar onde você se sente capaz de criar raízes a longo prazo.

Vou deixá-lo imaginar o resto de sua vida nesse presente alternativo, enquanto explico um pouco mais sobre o aspecto mais crucial: a posse da terra e da propriedade, o mais antigo dos fundamentos dos sistemas feudal e capitalista e o compartilhamento do poder.

A chave para o sistema de cobrança de aluguel na zona comercial é o Permanent Auction Subletting Scheme (PASS), um mecanismo criado para garantir que as comunidades possam extrair o máximo de aluguéis de suas zonas comerciais para investir em suas zonas sociais. O PASS funciona um pouco como o famoso truque para distribuir um bolo de forma justa entre duas pessoas: uma pessoa corta, a outra escolhe. Com o mesmo espírito, o PASS cria um leilão permanente que coloca os atuais ocupantes de um espaço comercial contra os possíveis ocupantes.

Uma vez por ano, como ocupante atual na zona comercial, você deve visitar o PASS e enviar a avaliação do seu imóvel com base em duas regras. Primeiro, o PASS calculará seu aluguel mensal como uma parte fixa do valor de mercado declarado por você mesmo – sem auditorias, sem burocracia, sem pechinchas, sem agentes imobiliários. Ótimo, não é? Mas aí vem a segunda regra: qualquer pessoa pode, a qualquer momento no futuro, visitar o PASS e oferecer uma avaliação mais alta; nesse caso, você está fora e eles estão dentro de seis meses.

Essa segunda regra garante que você tenha um incentivo para declarar sua avaliação da forma mais verdadeira e precisa possível. Se você exagerar na sua avaliação real, acabará pagando um aluguel maior do que o valor do imóvel. E se a subestimar, aumentará as chances de se arrepender de sua avaliação – no momento em que alguém oferecer um valor mais alto, mais próximo de sua avaliação real, e, ao fazê-lo, o expulsar.

A beleza do PASS é que a Associação do Condado não precisa definir os aluguéis na zona comercial. Em primeiro lugar, seu trabalho é simplesmente decidir quais terrenos e edifícios devem ser designados para as zonas comerciais e quais para as zonas sociais. Se eles reservarem muitos terrenos para as zonas sociais, terão menos dinheiro para investir nelas. Por outro lado, a expansão das zonas comerciais deixa menos espaço para moradias sociais e empresas sociais. Uma vez que a Associação de Condados tenha decidido como resolver a troca, sua segunda tarefa, mais difícil, o aguarda: definir os critérios de acordo com os quais as habitações sociais – especialmente as casas mais desejáveis – serão distribuídas. Essa é a parte mais difícil de resolver. Portanto, é fundamental saber quem faz parte da County Association.

Uma Associação de Condados eleita substituiria a tirania da propriedade da terra pela tirania dos sistemas eleitorais, que têm uma propensão inerente a gerar hierarquias poderosas. Sabendo disso, os antigos democratas atenienses se opuseram às eleições e as substituíram por loterias – a ideia na qual o sistema de júri ocidental tem suas raízes. Se alguma coisa pode recriar uma terra comum em uma sociedade tecnologicamente avançada, certamente é a sua Associação de Condados, composta por moradores selecionados aleatoriamente.

O mesmo princípio se estende além das regiões e dos condados para a governança de sua nação como um todo, que ocorre com a ajuda de uma Assembleia de Cidadãos nacional. Composta por cidadãos selecionados aleatoriamente de todo o país, ela funciona como um banco de testes de ideias, políticas e legislação. A deliberação de seus membros jurados ajuda a moldar os projetos de lei que o Parlamento debate e aprova posteriormente. O “demos”, finalmente, foi colocado de volta na democracia.

Uma rebelião nas nuvens

Em um mundo cada vez mais dominado pelo capital nas nuvens, que é produzido em grande parte pelo trabalho gratuito de servos das nuvens não assalariados, organizar o proletariado – e, de fato, o precariado – não será suficiente. Não estou sugerindo que a organização de trabalhadores de fábrica, maquinistas de trem, professores e enfermeiras não seja mais necessária. O que estou dizendo é que isso está longe de ser suficiente. Para ter alguma chance de derrubar o tecnofeudalismo e colocar o demos de volta na democracia, precisamos reunir não apenas o proletariado tradicional e os proletários das nuvens, mas também os servos das nuvens e, de fato, pelo menos alguns dos capitalistas vassalos. Nada menos do que uma grande coalizão que inclua todos eles podem minar suficientemente o tecnofeudalismo.

Pode parecer uma tarefa difícil – e é. Mas a resistência ao poder exorbitante do capital sempre foi uma tarefa difícil. Quando penso no que foi necessário para organizar um sindicato no século XIX, fico arrepiado. Trabalhadores, mineiros, estivadores, tosquiadores e costureiras enfrentavam espancamentos da polícia montada e violência de bandidos a serviço dos capitalistas. Acima de tudo, eles enfrentaram a perda de seus empregos em uma época em que abrir mão de um dia de salário significava fome para suas famílias. Mesmo quando conseguiam realizar uma greve bem-sucedida, qualquer aumento salarial que garantissem era compartilhado pelos não grevistas, aumentando um cálculo que já pesava muito contra a mobilização. Mesmo assim, eles se mobilizaram. Fizeram isso contra todas as probabilidades, esperando perdas pessoais enormes em troca de benefícios compartilhados pequenos e incertos.

O tecnofeudalismo ergue uma nova e grande barreira à mobilização contra ele. Mas também concede um novo e grande poder àqueles que ousam sonhar com uma coalizão para derrubá-lo. A nova grande barreira é o isolamento físico dos servos da nuvem e dos proletários da nuvem uns dos outros. Interagimos com o capital da nuvem e estamos sujeitos a ele por meio de nossas telas individuais, de nossos telefones celulares pessoais, dos dispositivos digitais que monitoram e gerenciam os funcionários dos depósitos da Amazon. A ação coletiva se torna mais difícil quando as pessoas têm menos oportunidades de se reunir. Mas é aí que reside o grande poder que o capital em nuvem apresenta aos seus rebeldes em potencial: a capacidade de criar coalizões, organizar e agir por meio da nuvem.

Em seus primórdios, essa era uma das promessas do Twitter, é claro: que ele poderia permitir a mobilização das massas. Da Primavera Árabe ao Black Lives Matter, vimos até que ponto essa promessa foi cumprida e até que ponto não foi. Mas não estou falando apenas de uma mobilização por meio da nuvem, mas de ações que poderiam realmente ocorrer usando os sistemas e as tecnologias da nuvem. Imagine uma ação global direcionada a uma empresa de nuvem de cada vez – começando pela Amazon.

Imagine uma coalizão internacional de sindicatos conclamando os trabalhadores dos depósitos da Amazon em todo o mundo a ficarem afastados por um dia. Por si só, essa ação é fraca. Mas não se uma campanha mais ampla persuadisse um número suficiente de usuários e clientes em todo o mundo a não visitar o site da Amazon apenas por um dia, a resistir à sua condição de servos ou vassalos por esse breve período.

O inconveniente pessoal envolvido seria trivial, mas seu efeito cumulativo seria notável. Mesmo que tivesse um sucesso moderado, causando, por exemplo, uma queda de 10% nas receitas habituais da Amazon, enquanto a greve do armazém da Amazon interrompesse as entregas por 24 horas, essa ação poderia ser suficiente para derrubar o preço das ações da companhia de uma forma que nenhuma ação tradicional organizada por trabalhadores poderia alcançar. É assim que os proletários e os servos da nuvem podem se unir de forma eficaz. É o que chamo de mobilização na nuvem.

A beleza da mobilização em nuvem é que ela coloca de cabeça para baixo o cálculo convencional da ação coletiva. Em vez de um sacrifício pessoal máximo para um ganho coletivo mínimo, agora temos o oposto: um sacrifício pessoal mínimo que proporciona grandes ganhos coletivos e pessoais. Essa inversão tem o potencial de pavimentar o caminho para uma coalizão de servos e proletários da nuvem que seja grande o suficiente para interromper o controle dos nebulosos sobre bilhões de pessoas.

Naturalmente, ações desse tipo contra uma ou até mesmo várias grandes empresas de nuvem não serão suficientes. A rebelião da nuvem que eu imagino precisará recrutar para sua causa muitos círculos eleitorais diversos, incluindo, por exemplo, qualquer pessoa que perca o sono quando receber suas contas de água e energia. Ataques de pagamento bem calculados e direcionados poderiam ser usados para causar uma queda equivalente nos preços das ações e dos derivativos das empresas privadas de serviços públicos.

Na hora certa, essas greves pacíficas de guerrilha poderiam causar muitos danos à influência política e econômica dos conglomerados cujos destinos estão cada vez mais fundidos com os das finanças nas nuvens. A rebelião também poderia reunir apoio internacional se usasse, por exemplo, um boicote de consumidores nos Estados Unidos especificamente para atingir uma empresa por sua pressão sobre os trabalhadores na Nigéria ou pela destruição de reservas naturais no Congo.

Outra campanha poderia envolver a solicitação de indicações de todo o mundo para empresas com o pior histórico de contratos de zero hora ou salários baixos, grandes pegadas de carbono ou condições de trabalho precárias, ou aquelas que têm o hábito de “reduzir” para aumentar os preços das ações – e, em seguida, organizar uma retenção em massa das contribuições para os fundos de pensão que possuem ações dessas empresas. O simples anúncio da escolha de um fundo de pensão como alvo seria suficiente para fazer com que suas ações despencassem e causar um êxodo de investidores preocupados dos fundos de ações relacionados a ele.

Inspirado pelo Wikileaks, posso imaginar um grupo de rebeldes escrevendo e carregando vírus digitais cujo objetivo seria simplesmente a transparência: rastrear e revelar ao mundo as conexões digitais ocultas entre os cloudalists, as agências governamentais e os maus atores, como as empresas de combustíveis fósseis. Como e se isso é possível, eu não sei, mas estou convencido de que se, por qualquer meio, essas instituições soubessem que têm bilhões de olhos atentos às suas ações, elas ficariam paralisadas e, à medida que as escamas caíssem desses bilhões de olhos, a coalizão reuniria mais aliados e apoio.

Nada disso é fácil ou inevitável. Mas será que é mais difícil ou menos provável do que o que os mineiros, as costureiras e os estivadores imaginaram e sacrificaram suas próprias vidas para alcançar no século XIX? A nuvem toma – mas a nuvem também dá àqueles que querem recuperar a liberdade e a democracia. Cabe a eles, a nós, decidir e provar o que é maior.

Marx descreveu de forma famosa nossa condição sob o capitalismo como uma condição de “alienação”, devido ao fato de não termos propriedade sobre os produtos de nosso trabalho, de não termos voz sobre como as coisas são feitas. No tecnofeudalismo, não somos mais donos de nossas mentes. Todo proletário está se transformando em um proletário das nuvens durante o horário de trabalho e em um servo das nuvens no resto do tempo. Todo trabalhador autônomo se transforma em um vassalo da nuvem, enquanto todo lutador autônomo se torna um servo da nuvem.

Enquanto a privatização e o private equity esvaziam toda a riqueza física ao nosso redor, o capital em nuvem se encarrega de esvaziar nossos cérebros. Para nos apropriarmos de nossas mentes individualmente, precisamos nos apropriar do capital em nuvem coletivamente. Essa é a única maneira de transformar nossos artefatos baseados em nuvem de um meio produzido de modificação de comportamento em um meio produzido de colaboração e emancipação humana.

Servos das nuvens, proles das nuvens e vassalos das nuvens do mundo, uni-vos!

Não temos nada a perder, a não ser nossas correntes mentais!

Yanis Varoufakis é ex-ministro das finanças da Grécia, político e autor. Este artigo foi extraído de seu livro, “Technofeudalism “, e usado com a permissão das editoras Bodley Head, no Reino Unido, e Melville House Publishing, nos EUA (2023).

 

Marta e Maria e as prioridades da vida

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A sociedade contemporânea nos traz grandes desafios todos os dias, levando os indivíduos a se desdobrarem para sobreviver num mundo marcado por inúmeras transformações, exigindo trabalhos cotidianos, estudos e qualificações para conseguirem sustento material na caminhada cotidiana.

Vivemos numa sociedade marcada pela busca frenética por recursos monetários, essa sociedade se assenta em valores materializados e imediatistas, somos impulsionados pelo individualismo e a busca constante pelos prazeres materiais, que tem na acumulação a bússola que orienta a grande parte da comunidade global.

A tecnologia, a concorrência, a competição e as transformações no mundo do trabalho exigem dos indivíduos novos comportamentos, o trabalho cotidiano está moldando as pessoas e as comunidades e o lucro transforma os valores da sociedade, todos queremos acumular e garantir uma aposentadoria mais tranquila, mais segura, com mais recursos amoedados e o acúmulo constantes de posses materiais.

Neste cenário, muitas pessoas se dedicam completamente para o seu desenvolvimento profissional e o crescimento do seu pé de meia, deixando de lado, outras atividades da vida contemporânea, acreditando que a acumulação de recursos monetários até uma determinada época da vida, pode garantir condição financeira, posteriormente, para investir seu tempo e suas energias para fazer caridade. Embora muitas pessoas pensem assim, acredito que isso é um grande equívoco, afinal, não sabemos quando e como seremos chamados para o outro lado da vida, ou seja, não sabemos quando será a nossa desencarnação! Precisamos refletir sobre isso, todos os momentos estamos capacitados para servir a Jesus, o Governador do Planeta Terra precisa de mãos valorosas e interessadas no desenvolvimento de todos os nossos irmãos.

Nesta sociedade, percebemos que, muitas manifestações religiosas, estão sendo transformadas por valores imediatistas e individualistas, centradas cada vez mais no acúmulo monetário, um verdadeiro processo de mercantilização das questões religiosas, intermediados pelos cifrões que dominam pessoas e comunidades, deixando de lado valores espirituais e religiosos e se entregando fortemente ao comércio e sendo dominados pelos mercadores da fé, indivíduos sem escrúpulos e sedentos de ganhos materiais imediatos.

Nestas reflexões, a Doutrina Espírita nos traz grandes análises do papel dos seres humanos na sociedade, estamos aqui, encarnados para angariar o crescimento enquanto espírito, cultuando valores imateriais que estão imantados em nossa alma, algo íntimo e pessoal. A Doutrina Espírito nos mostra a importância de valores espirituais, valorizando a família, as reflexões, o pensamento, o conhecimento e o respeito dos seres humanos, afinal, somos seres imortais e progredimos coletivamente.

O Espiritismo se diferencia de outras religiões ou de outras manifestações religiosas, porque nos traz novas formas de enxergar a vida e os seres humanos, valorizando o processo de crescimento espiritual, a vivência em comunidade, nascendo e renascendo como forma de impulsionar nosso crescimento moral e imaterial.

Numa sociedade centrada no imediatismo e no individualismo, onde as pessoas fazem tudo para garantir a acumulação monetária imediata, onde os indivíduos se vendem para valores financeiros em busca de prazeres imediatistas, onde os valores espirituais estão sendo trocados pelo prazer imediato, nesta sociedade, encontramos decepções constantes e cotidianas, com o incremento de ansiedades, depressões e suicídios, patologias que estão entranhadas na alma dos seres humanos contemporâneos.

Gostaria de trazer para essa discussão, um episódio marcante e muito relevante nas passagens de Jesus Cristo, para compreendermos os desafios da sociedade contemporânea, A história de Marta e Maria nos ensina a importância das prioridades da vida, um dos grandes desafios de todos os indivíduos encarnados. Estar na presença de Jesus, buscando conhecer a sua Palavra, evitando as distrações mundanas, numa vida equilibrada de amor e fé é fundamental.

Marta e Maria eram duas irmãs que viviam em Betânia. Quando Jesus visitou aquela aldeia, ficou hospedado na casa de Marta. Esta, recebeu a Jesus e os seus discípulos com amor e servia a todos com muita dedicação, como aquela ocasião especial requeria. Mas, a sua irmã Maria decidiu ficar ouvindo as palavras de Jesus, sentada aos seus pés, dedicando tempo e atenção a Ele.

Marta desaprovou essa atitude de Maria e, contrariada, questionou a Jesus se Ele não se importava que ela ficasse sozinha nos serviços, sem a ajuda da irmã. Marta pediu a Ele que pedisse a Maria para ajudá-la, afinal, neste momento o Nazareno arrebatou um grupo de pessoas interessadas em ouvir suas pregações, como acontecia constantemente.

Com amor, Jesus repreendeu Marta, mostrando-lhe que a ansiedade e a inquietação das suas tarefas não eram mais importantes que ouvir a Palavra de Deus. Maria escolheu a boa parte e ninguém poderia lhe tirar isso. Nesta passagem, percebemos a importância de organização e planejamento da vida dos seres humanos, discernimento para compreender as tarefas cotidianas e elencar as prioridades que temos no momento da passagem na vida material.

O episódio de Marta e Maria está registrado Evangelho de Lucas 10:38-42:

Caminhando Jesus e os seus discípulos, chegaram a um povoado, onde certa mulher chamada Marta o recebeu em sua casa.

Maria, sua irmã, ficou sentada aos pés do Senhor, ouvindo-lhe a palavra.

Marta, porém, estava ocupada com muito serviço. E, aproximando-se dele, perguntou: “Senhor, não te importas que minha irmã tenha me deixado sozinha com o serviço? Dize-lhe que me ajude! ”

Respondeu o Senhor: “Marta! Marta! Você está preocupada e inquieta com muitas coisas; todavia apenas uma é necessária. Maria escolheu a boa parte, e esta não lhe será tirada”. – Lucas 10:38-42

Nesta passagem bíblica trazemos grandes reflexões sobre a vivência no mundo material, todos estamos buscando um verdadeiro equilíbrio entre os valores materiais e os valores espirituais, desta forma, conseguiremos compreender os verdadeiros valores da existência humana, mesmo sabendo que, na contemporaneidade, os valores que dominam e comandam a comunidade são aqueles atrelados a matéria, o imediatismo, o narcisismo e os prazeres hedonistas.

O episódio registrado no Evangelho de Lucas 10:38-42 nos trazem grandes reflexões, embora não gostaríamos de tomar partido a favor de cada uma das irmãs, o que percebemos é que o ideal seria juntarmos as mãos operosas e eficientes de Marta com a capacidade de ouvir e de refletir de Maria, estas seriam as melhores escolhas que todos deveríamos fazer, mas sabemos que essas escolhas são sempre pessoais, intransferíveis e influenciam no decorrer da vida de todos os indivíduos.

Marta exemplifica bem a maioria das pessoas da sociedade contemporânea: vivendo em um estilo de vida agitada e caótica. Infelizmente, vivemos cheios de inúmeras programações, agendas sempre lotadas de compromissos materiais e muitos afazeres diários e, simultaneamente, também nos perdemos em muitas distrações e variados prazeres materiais.

Marta representa as pessoas que abraçam uma vida corrida e agitada, se desdobrando em inúmeras tarefas e atividades cotidianas, com variados projetos sociais e particulares, muitas vezes ainda se dedicando para servir bem as pessoas.

Isso não é necessariamente ruim. Jesus não reprovou o serviço dedicado de Marta. O problema é quando fazemos tudo isso cheios de ansiedades, agitações e frustrações, por não sermos valorizados ou por não recebermos a ajuda que gostaríamos.

Jesus elogiou a escolha mais acertada de Maria, que decidiu desfrutar da companhia e dos ensinamentos do Senhor Jesus, ensinamentos valiosos e dotados de ideais transformadores das vidas material e espiritual, levando experiências sublimes para seus valores mais íntimos e pessoais.

A presença física de Jesus Cristo em nossa casa seria algo impensável para todos os indivíduos, essa oportunidade única que as irmãs tiveram foi muito bem aproveitada por Maria, que deixou todos os seus afazeres cotidianos de lado e se sentou ao lado do Messias, ouvindo, refletindo, conversando, indagando e se beneficiando da presença de tão sublime visitante, naquele momento Maria estava ao lado do espírito mais elevado que passou pelas paragens do mundo material, seus ensinamentos sempre foram sublimes, inigualáveis e transformadores.

Tal como Maria, devemos manter uma preferência mental para aprender com Deus, em submissão total. Frente às muitas distrações da vida cotidiana, precisamos concentrarmo-nos nas Palavras de Jesus Cristo. Silenciando todas as outras vozes que nos deixam ansiosos e agitados, nos prostrarmos em quietude, humildade e contemplação, para nos dedicarmos em adoração, e assim O conhecermos cada dia mais e melhor.

Nas peregrinações de Jesus Cristo no mundo material, inúmeros indivíduos o buscaram, tais como Nicodemos, um alto membro do Sinédrio, além do senador romano Públius Lêntulus, que buscaram uma oportunidade de conversação com o Messias, ambos buscaram diminuir suas angústias e desesperanças, que geravam graves constrangimentos em seus valores mais íntimos.

Nestas andanças cotidianas, Nicodemos procurou o Mestre Jesus para alguns esclarecimentos, afinal, todos temos dúvidas, todos temos indagações, todos estamos tentando satisfazer nossos questionamentos do Doutor da Lei, como era conhecido o membro do Sinédrio. Das dúvidas de Nicodemos, destacamos uma das maiores indagações dos seres humanos, muitos falam abertamente sobre suas dúvidas cotidianas e outros postergam suas preocupações. Nicodemos queria compreender como encontrar o Reino de Deus e queria uma explicação mais consistente e estruturada, afinal, não conseguia entender como aconteceria o nascer de novo, resposta cotidianamente destacada pelo Nazareno. Como nascer de novo seria possível para um homem adulto, como ele conseguiria voltar o ventre materno e renascer?

Jesus de Nazaré responde as indagações de Nicodemos e mostra que nascer de novo era uma metáfora para compreendermos aquilo que o Espiritismo chamou de reencarnação, um momento em que todos precisamos passar para o desenvolvimento espiritual e o crescimento individual que todos estamos buscando neste momento do estágio no mundo material.

Outro exemplo retumbante que encontramos está no livro Há dois mil anos, escrito pela parceria entre Francisco Cândido Xavier e Emmanuel, onde a obra retrata a história do cristianismo, as perseguições dos cristãos e as agitações políticas e sociais da sociedade da época. Dentre as mais variadas conversas descritas de Jesus de Nazaré, destacamos a conversa entre o Senador Públius Lêntulus, que o procurou para pedir ajuda na recuperação de sua filha, que sofria de lepra, uma doença incurável e a ciência da época não conseguia resolver o problema.

Na conversa, Jesus deixa claro que o senador era uma pessoa de Estado, superficial e orgulhoso, suas prioridades eram sempre imediatistas e individuais, sua demanda seria resolvida não pela pessoa, mas pela fé de sua esposa, pessoa caridosa e dotada de grande solidariedade humana, além de espírito de grande envergadura moral.

Ambas as conversações descritas acima aconteceram na penumbra, na escuridão, sem testemunhas, isso aconteceu porque os interlocutores, pessoas proeminentes da sociedade da época, queriam conversar com o Messias a sós, sem presença de outras pessoas, sem registros e sem público. Os interlocutores se sentiriam diminuídos se a sociedade soubesse que eles buscaram apoio de uma pessoa do povo, um carpinteiro humilde, sem títulos e sem valores monetários.

Ao se sentar aos pés de Jesus Cristo, Maria nos traz elementos para compreendermos os verdadeiros ensinos de Deus, priorizando suas Palavras e nos submetendo a Ele, em contrapartida, Marta estava mais preocupada em deixar a casa em ordem para os visitantes, preparando uma refeição saudável, mas Jesus preferia mais alimentar do que ser alimentado, tudo isso nos traz grandes elementos de reflexões, afinal Jesus estava no mundo material para alimentar os irmãos.

Vivemos numa sociedade marcada por inúmeras distrações no cotidiano, na contemporaneidade, encontramos variados produtos, tecnologias e experiências variadas, nesta situação nos esquecemos do que é o mais importante e a presença de Deus é a maior prioridade de todos os indivíduos, lembremos disso!

Isso pode ser aplicado em nossa própria vida, quando, muitas vezes, nos distraímos com tantas tarefas, atividades mundanas, muitas programações (inclusive na Casa Espírita!) e deixamos de prestar atenção às coisas mais importantes. A vida de oração, leitura e estudo do Evangelho devem estar bem presentes em nossa rotina diária.

A leitura do evangelho de Lucas nos traz grandes instrumentos de reflexões, mais que isso, o episódio do encontro de Jesus com Marta e Maria nos traz mais informações para que compreendamos quais os verdadeiros valores do mundo material, afinal, grande parte das pessoas estão buscando acumular riquezas materiais, propriedades, aplicações financeiras, terrenos e fortunas para garantir o futuro, poucos param para refletir sobre quais os compromissos que assumimos na espiritualidade, no momento da reencarnação, no momento no planejamento do retorno ao mundo material. Somos muito imaturos, amamos a matéria, o poder e a acumulação, mas nada disso nós levamos para o outro lado da vida, levamos apenas as nossas obras, nossos sentimentos e nossos valores.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia.

 

 

As estapafúrdias ideias da senhora Landau, por Gilberto Maringoni

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Sempre que leio ou ouço o nome de Elena Landau, me vem à lembrança o LTD Landau, destaque da Ford nos anos do milagre brasileiro.

Gilberto Maringoni – GGN – 05/01/2025

A entrevista da economista Elena Landau à Folha de S. Paulo deste domingo é terrorismo econômico em estado bruto. A chamada musa da privataria do governo FHC solta logo de cara um petardo de alta intensidade: “As expectativas estão muito ruins. Falta confiança. Não dá mais para falar de pequenos ajustes. Então, precisa dar um cavalo de pau. Não adianta olhar o copo meio cheio e dizer: ‘Ah, o PIB está crescendo, o desemprego está baixo’”. Sim, meias-palavras, meias-ideias, tudo esgrimido como se tábuas da lei fossem.

COMO “FALTA CONFIANÇA”? Falta para quem, cara-pálida? Os indicadores econômicos são bons, mas há o problema sério da inflação de alimentos e do viés claramente liberal do arcabouço fiscal. A visão douta da economista volta-se totalmente para o câmbio. Em parte é verdade. Mas vai além da alta do dólar a questão adentra a histórica destruição da política de estoques reguladores, implantados no Brasil a partir do governo Jânio Quadros, em 1961. Através deles, o Estado comprava o excedente da produção agrícola, estocava em tempos de inflação baixa e vendia em armazéns públicos quando os preços disparavam. Os estoques reguladores brasileiros foram reconhecidos internacionalmente como eficiente política de equilíbrio da oferta em tempos de alta inflacionária.

As medidas foram trituradas pelos governos neoliberais, a partir de Fernando Henrique (1995-2003), sob a alegação de distorcerem o mercado. Fraseado sem sentido! Foi através de estoques reguladores que o governo de Franklin Roosevelt, nos EUA (1933-44), conseguiu conter ondas especulativas em meio ao New Deal.

LANDAU NÃO TEM A MÍNIMA PREOCUPAÇÃO COM ISSO. Como uma metralhadora desregulada, sai atirando e onde pegar, pegou. “O presidente da República não se deu conta da gravidade da situação. No meio da discussão do fiscal, dá aumento ao funcionalismo, assina decretos liberando empresa estatal para fazer a sua gestão de investimentos – estatais que já deveriam ter acabado”. Sim, como uma sinhá, passa pito no presidente a três por dois.

Mais adiante, releva as chantagens dos talibãs da alta finança: “É por isso que, quando culpam o mercado, eu não concordo. (…) O mercado foi paciente. Aceitou a PEC da Transição e deu o maior apoio a Lula e ao arcabouço de Haddad —até chegar ao ponto em que ficou claro ser insuficiente”. Qui bunitinho! Ela fala como se “o mercado” fosse um serzinho com vontades e comportamentos edificantes – ser “paciente” seria um deles – que só precisa que lhe façam as vontades. Nessa algaravia toda, só faltou dizer que essas seriam as vontades do povo.

Tenho escrito que o governo erra forte ao traçar uma regra fiscal que pune o funcionalismo com arrocho salarial e busca restringir políticas públicas, como o BPC e o salário mínimo. Mas Landau quer sangue e insiste em quimeras caras ao neoliberalismo, como o fantasma da relação dívida/PIB (escrevi há dois dias sobre a ineficácia desse indicador como prova do que quer que seja em economia).

A NOÇÃO QUE A SENHORA LANDAU tem de democracia é um mimo. Cita para isso, além de FHC, o golpista de 2016: “Nos governos Temer ou Fernando Henrique Cardoso, a equipe econômica tinha autonomia. Se dizia: ‘Ah, presidente, precisamos privatizar a Telebras, precisa ter um teto de gastos’, a resposta era, ‘OK, se isso é necessário para a estabilização do Real””. Que gracinha: torra-se uma estatal estratégica porque meia dúzia de burocratas decide, com as planilhas embaixo do braço, o que é bom e o que não é.

O coroamento de seu raciocínio não poderia ser mais previsível: “Olhe Javier Milei, na Argentina. Apesar do PIB caindo, da pobreza aumentando, está se segurando porque reduziu a inflação do patamar de 20% para 2%. A inflação é inimiga do pobre.” Sim, matemos o povo de fome e recuperemos a credibilidade dos cemitérios. Ei, ei, ei, Milei é nosso rei!

Sempre que leio ou ouço o nome de Elena Landau, me vem à lembrança o LTD Landau, destaque da Ford nos anos do milagre brasileiro. Era o carrão dos sonhos da classe média emergente, inspirado no Galaxie americano 1966. Era também um primor de gastança em tempos de gasolina barata, difícil de estacionar e de manutenção cara. Saiu de linha na virada dos anos 1970-80. Não deixou saudades. Alguns ainda circulam por aí, como curiosidade vintage.

São mais ou menos como as ideias da senhora Elena Landau.

Gilberto Maringoni de Oliveira é um jornalista, cartunista e professor universitário brasileiro. É professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, tendo lecionado também na Faculdade Cásper Líbero e na Universidade Federal de São Paulo.

 

Para onde vai a educação paulista? por Márcio dos Santos

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Márcio dos Santos – A Terra é Redonda – 31/12/2024 

Através da EFAPE, escola de formação de professores, formadores bem-intencionados, mas despreparados, oferecem curso de aperfeiçoamento a professores ainda mais despreparados

Imagine a seguinte situação; você passa com um médico clinico geral, faz alguns exames, percebe que tem um problema sério no coração e que precisa passar no cardiologista urgente. Imagine que os médicos de São Paulo, assim como nossos professores da rede estadual de ensino, até são especialistas, mas metem o bedelho em coisas que as vezes não dominam.

A profissão de médico, assim como a de professor, exige formação continuada, no caso de nós professores, oferecida remotamente pela EFAPE. O médico se especializou em psiquiatria, mas fez um curso de aperfeiçoamento a distância, por uma escola de formação para médicos, e agora ele está “habilitado” para cuidar do seu coração e até mesmo para realizar cirurgias cardíacas caso seja necessário. Especialidade essa conquista a “duras penas” pelo ensino a distância.

Agora vem a minha pergunta? Você confiaria a saúde do seu coração a um psiquiatra que se formou em cardiologia a distância? Se sua resposta for sim, sua cabeça está precisando de mais atenção do que o seu coração, acredite.

Esse cenário patético e farsista é um cenário real que encontramos na rede pública de ensino paulista. Através da EFAPE, escola de formação de professores, formadores bem-intencionados, mas despreparados, oferecem curso de aperfeiçoamento a professores ainda mais despreparados. A situação do ensino público paulista é desastrosa. Ainda é um grande desafio, não só para as escolas de São Paulo, mas de todo o pais resolver seus problemas e melhorarem seus números, principalmente em disciplinas como português e matemática, mas a demais disciplinas, se também avaliadas, mostraram os mesmos problemas senão maiores.

No site do Inep encontramos a informação de que escolas de Alagoas, Ceará e de Pernambuco, alcançaram nota 10 no Ideb em 2023. Na mesma página temos acesso ao relato do ministro Camilo Santana que é bem esclarecedor quanto a situação atual das nossas escolas: “Fico muito feliz de receber aqui as 21 escolas que tiraram 10 no Ideb, que são todas do Nordeste brasileiro, de Alagoas, Pernambuco e do Ceará, mas nós queremos que todos os estados do Brasil tenham também escolas nota 10. Esse é um esforço de todos nós e para o qual estamos trabalhando”, ressaltou o ministro.

Diante desse cenário fica a pergunta: O que essas escolas têm feito? Porque obtiveram êxito onde outras falharam? O ministro continuou dizendo que “quando assumiu o Ministério da Educação, priorizou programas e ações voltados para a educação básica, pois o investimento do Brasil por aluno na educação superior está na média do que é investido pelos países desenvolvidos, enquanto, na educação básica, o investimento é um terço do que os países desenvolvidos investem”.

Aqui em São Paulo o nosso governador Tarcísio de Freitas se envolveu em um debate espalhafatoso sobre redirecionar uma parte dos recursos da educação para a saúde, como noticia o site da revista Carta capital, “PEC de Tarcísio que pode retirar quase R$10 bi da Educação vai a votação na Alesp” A notícia veiculada em 05/11/2024 continua com a seguinte informação; “A proposta busca reduzir investimentos na área de 30% para 25%, redirecionando verbas para a Saúde”.

A Constituição Federal “em seu artigo 212, estabelece que a União aplicará, anualmente, nunca menos de 18, e os estados, o Distrito Federal (DF) e os municípios 25%, no mínimo, da receita líquida de impostos (RLI) na manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE) (BRASIL, 1988)” de acordo com um dossiê publicado por José Marcelino de Rezende Pinto, professor da FFCL Universidade de São Paulo, campus de Ribeirão Preto. O dossiê, entre outras questões, analisa a estrutura do financiamento da educação prevista na constituição federal.

Em suas considerações finais o dossiê aponta para os problemas envolvendo a EC/ no. 95 de 2016 que na prática limitou os gastos públicos com a educação mantendo-o no patamar de 5% do nosso PIB. No site Gazeta do Povo, em uma matéria de 10 de setembro de 2024, observamos que o Brasil reduziu o gasto com educação, com a exceção do ensino infantil. É preocupante observarmos o que investimos em educação por aluno no ensino médio, 3.181 dólares contra os 5.139 dólares da Costa Rica, ainda muito distante das primeiras posições desses países como Luxemburgo: 26.357 dólares e Suíça 19.448 dólares por aluno como vemos no portal O globo de 10/09/2024. Sem contar que o Estado de São Paulo coloca na conta dos “investimentos” em educação as aposentadorias dos inativos, o que, pela constituição, é contraproducente.

Na rede já há mais de dez anos venho percebendo melhorias significativas no que diz respeito aos equipamentos que utilizamos na escola, o que não quer dizer, que esse dinheiro, e esse equipamento, faça realmente alguma diferença na qualidade da aprendizagem dos alunos. Em anos recentes, temos visto a plataformização do ensino que começou com o Estado do Paraná, quando Renato Feder era o seu secretário de educação e migrou para São Paulo trazendo a mesma mentalidade.

Só a plataforma Alura custou aos cofres públicos 30 milhões de reais e o processo ocorreu sem licitação e também sem transparência em reportagem do jornal Folha de S. Paulo. Ainda faltam estudos que comprovem que essa “parafernália técnológica toda” faça de fato tanta diferença assim no ensino. Enquanto isso, o Jornal da USP em 2019 nos dava a notícia de que o Brasil era o último país no ranking dos países que valorizam seus profissionais na educação no total de 35 países avaliados e que 91% da população acredita que o professor não é respeitado em sala de aula.

Voltando a questão inicial do texto; você respeitaria um profissional formado a distância que desenvolve uma função para a qual ele não é preparado? Ouço muitos colegas defendendo essa posição, dizendo que nós professores é que temos que nos preparar, o que já fizemos com a nossa formação, é o que opino. Mas, se me formei em história não pretendo lecionar geografia ou sociologia, da mesma maneira que um clínico geral jamais será capaz de sair por aí dando laudos em casos psiquiátricos.

Lembremos que a febre dos cursos a distância começou com nós mesmos professores, que não viam problema em fazer uma segunda graduação em seis meses, a distância e por um preço acessível. Hoje a educação na cidade de São Paulo com sua “ausência” de plano de carreira acaba atraindo os piores profissionais para os seus quadros. Somos nós professores os primeiros a depreciarmos o nosso trabalho.

Quando se pensou em reforma do ensino médio, a falácia era a de que, o currículo era exaustivo e que não fazia sentido para o aluno. Estamos privilegiando cada vez mais um ensino técnico que bem na prática também não está preparando esse aluno para o mundo do trabalho. Aulas de história, geografia, filosofia e sociologia tem perdido espaço no currículo o que me faz deixar aqui a minha outra pergunta: qual é o problema com essas disciplinas? Porque todo governo quando quer impor à massa a sua ideologia – independente de qual seja – começa mexendo no currículo escolar, e acaba sempre sobrando para as ciências humanas, que são voltadas para as questões humanas e se debruçam sobre as questões humanas, como foi o caso da substituição das aulas de História por Educação Moral e Cívica durante a ditadura civil-militar?

Ouço de alguns colegas gestores que ainda temos uma escola do século XIX em pleno século XXI. As crianças não aprendiam engenharia na primeira infância na Inglaterra por conta dos avanços da Revolução Industrial. Ademais, qual o problema com a educação do século XIX que formou gente do calibre de Einstein, Freud e Darwin? Uma rápida olhada no modo como é trabalhada a formação do aluno do terceiro ano do ensino médio do colégio de elite Bandeirantes nos dá uma ligeira impressão e ao mesmo tempo, nos tira todas as dúvidas quanto as desigualdades do ensino entre alunos filhos da elite, e aos alunos, filhos da classe trabalhadora.

Nas nossas salas de aulas, nas escolas públicas, percebemos uma geração pé-de-meia que mais se preocupa em responder a chamada do que em realizar de modo consistente estudos que possam prepará-los para vestibulares ou outros concursos. Não faço aqui uma crítica direta ao programa, só acho que o programa deveria estar atrelado a desempenho e não a assiduidade do aluno em sala de aula.

Acredito que um pacote com profissionais bem preparados e bem pagos, propostas pedagógicas relevantes e que preparem o aluno para o exercício da cidadania e do trabalho, como previsto na LDB (Lei de diretrizes e bases da educação), infraestrutura que permita ao aluno confiar seu futuro à escola, e uma visão mais profunda sobre a nossa realidade social, principalmente nas escolas da periferia, seria um pacote bem mais contundente para melhorarmos nos índices nos quais apenas patinamos nos últimos anos.

Quanto aos bons profissionais, só os teremos oferecendo boas oportunidades. O professor hoje é obrigado a mesclar o ensino na rede municipal, que pelo menos do caso da cidade de São Paulo é mais atraente do que o estadual, e nas escolas privadas ou estaduais para conseguir fechar as suas contas no final do mês.

Quando esse profissional que chega a trabalhar mais de doze horas por dia se prepara? Como os alunos irão se inspirar nos estudos como possibilidade de mudança de vida, quando seus próprios professores são desvalorizados por eles mesmos, suas famílias e por governos que ainda acreditam que formar um técnico, filho da classe trabalhadora é mais interessante do que formar um cientista?

Quanto a isto, uma última observação; temos falado e muito sobre negacionismos históricos e científicos no Brasil e no mundo nos últimos anos. Essa visão de ensino técnico em detrimento do científico no Brasil me leva a crer que, no nosso país, o negacionismo científico começa nos bancos da escola.

*Márcio dos Santos é professor de História da Secretaria da Educação de São Paulo.

Referências

PINTO, José Marcelino de Rezende. Dossiê. O financiamento da educação na constituição federal de 1988: 30 anos de mobilização social. Educação & sociedade. Campinas, v 39, 145, p. 846-869, out-dez, 2018.

Desafios econômicos globais

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A economia internacional vem passando por grandes incertezas e instabilidades, com aumento sistemático de políticas protecionistas, incremento dos subsídios, pressões de cortes de gastos, transformações no mercado de trabalho, crescimento de novas tecnologias que criam novas oportunidades mas, ao mesmo tempo, aumentam as incertezas sobre o futuro dos trabalhadores, além de conflitos militares entre nações, regiões inteiras, retaliações, ameaças e grandes instabilidades em todos os setores econômicos, políticos e sociais.

Com o ano novo, os desafios aparecem fortemente, exigindo lideranças em todas as áreas e setores, para enfrentarmos os grandes desafios da sociedade contemporânea, construindo novos consensos, diminuindo a pobreza, combatendo as desigualdades que crescem de forma acelerada, estimulando novas formas de conversação, trazendo ideias inovadoras e empreendedoras, renovando valores, consolidando novos modelos de negócios, trazendo para o debate maior sustentabilidade, fortalecendo políticas públicas comprovadas e construindo uma governança que rechacem privilégios desnecessárias e minimizem a corrupção.

Logo no começo deste ano, percebemos perspectivas preocupantes relacionados ao comércio internacional. A nova gestão dos Estados Unidos, com o retorno de Donald Trump, vem prometendo incrementar pressões sobre outras nações e blocos de países, aumentando tarifas comerciais para proteger os setores produtivos norte-americanos, buscando atrair empresas estrangeiras para aumentar os investimentos em solo estadunidense, garantindo aumento do emprego interno, incremento da renda e impulsionando a indústria nacional, uma visão fortemente protecionista e intervencionista, cada vez mais distante das políticas liberalizantes defendidas anteriormente.

Importante destacar ainda, o combate sistemático da imigração, proposta fortemente defendida por Donald Trump, desde o primeiro mandato, que podem gerar graves constrangimentos para o mercado de trabalho estadunidense, elevando os custos de contratação, impactando sobre os preços dos produtos produzidos internamente, elevando a inflação e levando a Autoridade Monetária a políticas mais restritivas de crédito.

Estas medidas tendem criar graves constrangimentos para o comércio internacional, levando as nações a adotarem políticas protecionistas parecidas, aumentando as tarifas comerciais, criando cotas de trocas externas e reduzindo o comércio global, fomentando a busca de novos mercados consumidores, abrindo novos horizontes e, neste cenário podemos vislumbrar a degradação de relações políticas e econômicas entre nações e fomentar conflitos que podem gerar desajustes regionais, criando mais incertezas e instabilidades em todas as regiões do globo.

Destacamos ainda, dentre as promessas do “novo” governo norte-americano que geram expectativas quanto ao crescimento econômico dos EUA, mas suscitam ainda, receios quanto à estabilidade financeira global, à desregulamentação e a redução dos tributos dos bilionários e de grandes empresas, que podem expandir o déficit público de forma assustadora e, podem desestabilizar o mercado de título com a dívida pública.

Como vivemos numa economia fortemente integrada e interdependente, todas estas medidas podem impactar sobre a economia mundial, com a possível valorização do dólar, elevação das taxas de juros, afetando negativamente países emergentes, como o Brasil, com enfraquecimento do comércio global e aumentando a pressão sobre o crescimento econômico global. Neste momento de novos desafios, o retorno de Donald Trump pode gerar mais incertezas e instabilidades, mas como disse Lewis Carrol, no livro Alice no País das Maravilhas: “Para quem não sabe para onde vai, qualquer caminho serve”.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia.