O trabalho na era da inteligência artificial, por Ricardo Antunes

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Ricardo Antunes – A Terra é Redonda – 30/12/2024

Nestes tempos de trabalho digital, algoritmos, Inteligência artificial e assemelhados, está surgindo um novo espectro que ronda o mundo do trabalho. Trata-se do espectro da uberização

O advento da nova aberração

O mundo do trabalho vivencia sua fase mais aguda, desde a gênese do capitalismo. Mergulhados em uma profunda “crise estrutural”, que pode ser assim resumida. O sistema de capital não mais consegue acumular sem destruir. Com as fronteiras terrestres já sob seu domínio, adentramos na era da acumulação do espaço sideral.

Quadro que aflorou, a partir de 1973, quando a trípode destrutiva – financeirização, neoliberalismo e reestruturação do capital – deu impulso para que as tecnologias de informatização invadissem o mundo da produção na indústria e, em seguida, nos serviços que foram privatizados e se converteram em excepcionais laboratórios de expansão dos capitais, potencializados pelos algoritmos, Inteligência artificial, Big Data etc.

No mundo do trabalho, a explosão global do desemprego, mais intensa no Sul Global. O moinho satânico, cunhado por Karl Polanyi, chegava à era cibernética.

No mundo do trabalho vimos a explosão global do desemprego, sempre mais exacerbado no Sul Global, agravada em 2008/9 e intensificada com a inesperada eclosão da pandemia.

Essa realidade, além jogar nas alturas o desemprego, levou as grandes corporações a terem um novo leitmotiv. Com o toyotismo japonês, conhecemos a expansão ilimitada da terceirização, que nos trouxe ao trabalho intermitente, legalizado no Brasil com a contrarreforma trabalhista de Michel Temer, em 2017, logo depois do golpe que depôs Dilma Rousseff.

E foi assim que chegamos ao trabalho uberizado, aquele que se expande nas grandes plataformas digitais, articulando, com indiscreto charme, os inventos digitais e algorítmicos, com a força de trabalho desempregada e ávida por qualquer labor. O Brasil, com uma taxa de informalidade entre 30 e 40%, foi solo fértil para essa empreitada.

Mas urgia ainda encontrar uma denominação para dar vida à nova empulhação, de modo a burlar a legislação do trabalho. O reconhecimento da condição de assalariamento, por si só, obrigaria o cumprimento da legislação do trabalho que, vale recordar, foi resultado de lutas históricas da classe trabalhadora. No Brasil, a primeira greve foi dos “ganhadores”, trabalhadores negros que, em 1857 em Salvador, paralisaram o carregamento de mercadorias e pessoas e exigiram a extinção de opressões que tipificavam a escravização. Ou a Greve Geral de 1917, em São Paulo, que paralisou diversas categorias do operariado, na luta por direitos básicos do trabalho.

Pois bem, em pleno século XXI, na era da explosão das tecnologias digitais que poderiam reduzir expressivamente a jornada de trabalho, as empresas forjaram “novas” modalidades de trabalhos, com um condicionante inquestionável: a cabal recusa em cumprir a legislação do trabalho. Apresentando-se como “empresas prestadoras de serviços e de tecnologia”, com o estrito objetivo de obliterar a condição real de assalariamento, o trabalho uberizado deslanchou. Foi assim que as grandes plataformas digitais “redefiniram” a condição de assalariamento, milagrosamente convertido em empreendedorismo.

Um aparente paradoxo aflorou: em plena era dos algoritmos, Inteligência artificial, ChatGPT, Big Data etc., o capitalismo do século XXI vem recuperando formas pretéritas de exploração, expropriação e espoliação do trabalho que foram vigentes nos séculos XVIII e XIX. O crowdsourcing, por exemplo, tão cultuado hoje, é a variante digital e algorítmica do velho outsourcing, vigente durante parte da Revolução Industrial, onde homens, mulheres e crianças trabalhavam em suas casas ou em espaços fora das fábricas, desprovidos de qualquer legislação do trabalho. Nos defrontamos, então, atualmente, com um novo espectro rondando o mundo do trabalho: a epidemia da uberização.

Mas não parou aí o tamanho do problema. Um outro movimento tornou o trabalho ainda mais vulnerável: o advento da Indústria 4.0, que foi criada para potencializar a automação, digitalização, a internet das coisas (IoT) e a Inteligência artificial. Seu objetivo precípuo: reduzir trabalho humano, introduzindo mais máquinas digitais, robôs, ChatGPT etc., que passaram a se esparramar nas novas cadeias produtivas de mais-valia.

O que estamos vendo hoje, com a Inteligência artificial calibrada pelos capitais financeiros, já apresenta resultados catastróficos para a classe trabalhadora. Se sabemos que a tecnologia floresceu junto com o primeiro microcosmo familiar, é imperioso reconhecer que a tecnologia atual está sendo prioritariamente plasmado pelo sistema do capital, que só pensa naquilo: na sua valorização. O resto é pura balela. Ou alguém conhece uma grande corporação global que ampliou a Inteligência artificial, reduziu significativamente a jornada de trabalho e ainda aumentou substantivamente o salário dos trabalhadores/as?

Atam-se, então, as duas pontas do mesmo processo destrutivo em reação ao trabalho: ao mesmo tempo em que a Indústria 4.0 elimina uma miríade de atividades laborativas, as grandes plataformas digitais incorporam essa força sobrante de trabalho em condições que remetem à protoforma do capitalismo.

O Brasil no meio do furacão

Primeira nota: Lula ganhou as eleições de outubro de 2022, depois de um embate eleitoral árduo. Nos subterrâneos, gestava-se um plano golpista – o “punhal verde e amarelo” – urdido pelos neofascistas. Mas Lula sagrou-se vitorioso, vale reiterar, pelo voto majoritário da classe trabalhadora.

Dentre as propostas que defendeu em sua campanha, uma é essencial: vencendo as eleições, ele revogaria a (contra)reforma trabalhista de Michel Temer. Aquela que nos herdou o trabalho intermitente; a prevalência do negociado sobre o legislado; o desmonte sindical; a forte retração da Justiça do Trabalho; a perda de direitos das mulheres trabalhadoras etc. Sem falar da Lei da Terceirização, que eliminou a diferença entre atividade meio e fim e assim propiciou a liberação geral da terceirização.

Será que Lula esqueceu dessa proposta?

O que pode explicar o PLP 12/2024, apresentado pelo governo, em abril deste ano que, em seu artigo 3º afirma: “o trabalhador que preste o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículo automotor de quatro rodas […] será considerado, para fins trabalhistas, trabalhador autônomo”.

Autônomo? Como assim? Desconsiderando as pesquisas acadêmicas sérias, feitas sem recurso financeiro das plataformas? Desconhecendo a Diretiva da União Europeia, recém aprovada pelos 27 Estados-membros da região, que parte da presunção do vínculo empregatício e indica também a necessidade imperiosa de controlar os algoritmos, programados para beneficiar exclusivamente as grandes plataformas.

Se esse PLP for aprovado, uma enorme parcela da classe trabalhadora será excluída da legislação do trabalho. Não terá férias, nem 13º. salário, descanso semanal, FGTS, nenhum direito para as mulheres e ainda verá liberada uma jornada (ilegal) de até 12 horas por dia, por plataforma. Se for aprovada, a porteira vai se escancarar de vez… E a conta vai sobrar para a história do Lula.

Segunda nota: As eleições municipais desse ano, se estão entre as mais negativas da história recente, ao menos ofereceram um lampejo crucial, ao tematizar vivamente a questão da jornada de trabalho (escala 6×1). Tema que tem sido tergiversado até mesmo pelas esquerdas dominantes, que se curvam às benesses do embuste do falso empreendedorismo.

Daí a louvável exceção de um jovem trabalhador do comércio no Rio de Janeiro, que fez sua campanha, pelo PSol, centrada na jornada de trabalho, apontando para a exploração do trabalho presente na escala 6×1. Ao tornar este tema eixo de sua campanha eleitoral, questões vitais foram afrontadas: tempo extenuante de trabalho, intensidade da exploração, que impede que essa geração de trabalhadores/as possa dispor de um mínimo de vida dotada de sentido fora do trabalho.

A alternativa: a jornada 4×3, quatro dias de labuta dura, e três de descanso, então, emplacou em cheio. Enquanto outros, aqui e alhures, mostravam-se maravilhados com o falso empreendedorismo. E, ao aflorar uma das questões mais vitais do mundo do trabalho, jogou para o debate público uma real tragédia cotidiana do trabalho.

Trabalhar, trabalhar, sem chance de estudar, sociabilizar, descansar, sem a possibilidade de viver um tempo maior fora da exaustão do trabalho. Isso porque a jornada 6×1 significa laborar em geral, cinco dias de trabalho, com oito horas cada, mais um dia de ao menos quatro horas, para totalizar 44 horas semanais (que é a jornada legal no Brasil). Que frequentemente se converte em 48 horas, especialmente nos serviços do comércio, hotelaria, bares, restaurantes, shoppings, etc., onde a burla é muito frequente e muitos sindicatos carecem de força social ou ter perfil mais patronal. Sem esquecer as jornadas ilimitadas presentes no trabalho motoristas e entregadores uberizados.

Pior que o 6×1, ao menos para quem gosta de futebol, só mesmo o 7×1.

Uma última nota: Nestes tempos de trabalho digital, algoritmos, Inteligência artificial e assemelhados, está surgindo um novo espectro que ronda o mundo do trabalho. Trata-se do espectro da uberização. Como impedir essa tragédia?

Esse é o maior desafio da classe-que-vive-do-trabalho. E há um elemento novo e quase sempre desconsiderado no cenário social global: ao mesmo tempo em que a classe trabalhadora se mostra ainda mais heterogênea em seu mosaico laborativo, está em curso também uma forte homogeização em suas condições de trabalho, uma vez que a precarização estrutural do trabalho é uma tendência global, diminuindo em alguma medida as diferenças entre Norte e Sul. Basta pensar no trabalho imigrante global.

Fonte, portanto, de novas ações e lutas da classe trabalhadora, base social imprescindível para que se possa reinventar um novo modo de vida.

*Ricardo Antunes é professor titular de sociologia na Unicamp. Autor, entre outros livros, de Os sentidos do trabalho (Boitempo).

Versão ampliada de artigo publicado na revista Carta capital, edição 1343, 26 de dezembro de 2024.

 

Ensino à distância, por Andrea Harada

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ANDREA HARADA*

A Terra é Redonda- 26/12/2024

O que será do professor no novo marco regulatório do EaD: sujeito oculto, indefinido ou inexistente?

Freio de contenção

O Ministério da Educação através da Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (SERES-MEC), anunciou há tempo ampla revisão do marco regulatório do Ensino à Distância e dos referenciais de qualidade para cursos de graduação nesta modalidade. Tudo indica – ao menos até segunda ordem – que a revisão do marco regulatório deve sair até 31 de dezembro de 2024. É o que estabelece a Portaria 528 publicada em 07/06/2024.

No dia anterior, em 06/06/2024, o MEC, por meio da Portaria 529, (re) instituiu o Conselho Consultivo para o Aperfeiçoamento dos Processos de Regulação e Supervisão da Educação Superior (CC-Pares). E pouco depois, em 11 de julho de 2024, com a Portaria 335, designou os integrantes do referido Conselho, que foi constituída por 8 representantes do MEC, 1 da Andifes, 1 da CONIF, 1 da UNE e 8 representantes do setor privado de ensino superior.

Em 22 de janeiro de 2024, matérias que circularam na grande imprensa, davam conta de que o MEC estaria alarmado com a proporção de estudantes por professor no ensino superior privado, destacando a queda no número de docentes no setor. De acordo com estas matérias, 11 instituições – todas privadas – seriam supervisionadas devido a desproporcionalidade de docentes em relação ao número de estudantes. Uma das organizações de ensino superior, o Centro Universitário Leonardo da Vinci, contava 2594 estudantes para cada professor. Fato que teria acendido o alerta para a fábrica de diplomas que se conformou com o crescimento do EaD.

Em 24 de julho de 2024, o jornal Folha de S. Paulo, em matéria que repercutia as então recentes Portarias editadas pelo MEC destacava a existência de 47.734 polos de educação a distância ativos no Brasil.

Este é o cenário emoldurado nas decisões do Ministério da Educação em 2024 que até aqui indicam que o freio de contenção foi acionado para barrar a porteira aberta por normativas anteriores que representam, por um lado, uma regulação tendenciosamente benéfica ao crescimento do capital na educação e, por outro, evidenciam a emergência de revisão dos parâmetros para exploração do EaD no setor privado.

Precarização do trabalho docente no ensino superior privado é velho problema

Em artigo escrito com Gabriel Teixeira e Plínio Gentil, nos idos de 2022, alertávamos para uma categoria em extinção: os professores das faculdades privadas. Confrontando as condições do trabalho docente com o mercado oligopolizado do ensino superior e o avanço do uso de tecnologias da comunicação e da informação, especialmente na modalidade EaD em suas variadas formas nos cursos de graduação: EaD, híbrido e presencial.

Afirmávamos lá, e reiteramos aqui, que o crescimento do setor privado ocorreu de forma subsidiada por programas como PROUNI, FIES e PROIES que se fomentaram, de início, maior inclusão, também financiaram o crescimento das empresas de ensino superior. Processo que não foi acompanhado por regulação compatível com o propósito anunciado de democratização do acesso.

É que as IES privadas, além de mercantilizadas, aderiram a financeirização e passaram a operar no marco da otimização de recursos com vistas a aumentar sua capacidade de valorização do valor ou, dito de outra forma, de ampliar seus lucros. O caminho mais curto e rápido no vocabulário empresarial: otimizar recursos e reduzir custos, especialmente com folha de pagamento.

Processos de redução de jornada de docentes começaram pelo ensalamento ou junção de turmas e chegaram no uso indiscriminado de tecnologia. Como se sabe, a maior parte da jornada de professores no setor privado é por hora-aula. Hoje é raro encontrar docentes com jornada de 20 horas-aula, o que preencheria um período de trabalho da semana.

Os problemas relativos às condições de trabalho e salário são muitos: ausência de piso salarial em muitas regiões do país, instabilidade de emprego, perda da autonomia, criação de subcategorias docentes (tutores e conteudistas), falta de regulamentação sobre direitos autorais, entre outros. Tudo isso como marca genérica e progressiva do trabalho docente no ensino superior privado. Ou do que restou de trabalho docente nesse setor.

Mas o avanço do EaD, nos marcos do nosso tipo de desenvolvimento, eleva o problema à outra dimensão e a outro questionamento: é possível formação de nível superior sem professor? Que tipo de educação seria essa? Ou já nem seria isso, mas a venda parcelada em mensalidades de diploma?

Em 2024 o MEC, como vimos, anunciou como preocupante a queda do número de docentes no ensino superior. Não é para menos: de acordo com os dados do Censo da Educação Superior (INEP, 2024) em 2013 o setor privado – já consolidado é preciso registrar – respondia por 5.373.450 matrículas para 212.063 docentes; em 2023 as matrículas saltaram para 7.907.652 para 186.633 docentes, ou seja, enquanto as matrículas registraram crescimento de 47,16% num intervalo de 10 anos, o número de docentes registrou queda de 11,99%.

E no caso do setor privado não adianta a fórmula simples de dividir matrículas por docentes e chegar a uma razão, porque a jornada desses docentes não é computada e está escamoteada por diversos fatores que o levantamento do INEP não capta, tornando o principal estudo censitário do INEP, o Censo da Educação Superior, falho pela imprecisão quando trata do setor privado. Em todo caso, mesmo impreciso, o dado é suficiente para o alarde.

Dados coletados para nossa pesquisa de doutoramento, defendida no final de 2023, mostravam que de acordo com as informações fornecidas pelas IES e contabilizadas pelo INEP, nos cursos a distância essa desproporção é imensa, conforme podemos observar nos dados de 2021 (HARADA SOUSA, p. 172).

Como se constata uma relação professor estudante da ordem de 2287, 79 é o mesmo que afirmar uma educação sem professor. É absolutamente impossível supor uma relação efetiva de ensino e aprendizagem ou uma relação acadêmica com vistas à formação profissional diante desse número. Como se chega nesta proporção?

Primeiro é preciso destacar o papel fomentador de diferentes governos ao setor privado de ensino que incentivou o surgimento de um mercado atrativo e consolidou o capital na educação desde quando a educação deixou de ser direito e passou a ser serviço.

Segundo os empresários e mercadores da educação que reivindicaram e comemoraram a possibilidade de explorar o EaD e de converter tudo quanto podem em produtos educacionais e oportunidade de negócio. A esculhambação gerada pela combinação entre o incentivo estatal ao setor privado e a sanha exploratória e expropriadora desse setor determina um ambiente no qual nunca houve tanta gente diplomada, e ao mesmo tempo tanta gente sem formação.

Mas para se chegar aí, o caminho foi substituir – quando não converter – professores em subcategorias docentes sem qualquer regulamentação, ou seja, não havendo professor capaz de dar conta de formar número exorbitante de estudantes, a forma utilizada pela IES privadas, sobretudo os grandes conglomerados, foi atribuir a responsabilidade aos profissionais que até aqui (pouco antes da publicação do decreto) foram identificados como tutores e conteudistas.

Tal fórmula foi igualmente aplicada nos 40% de EaD autorizados nos cursos presenciais, com outras variadas nuances, porém com o mesmo propósito. Decorre desse processo, a redução explícita no número de docentes empregados nas IES, assim como a intensa redução de jornada daqueles que permaneceram empregados como docentes. Chegamos assim ao problema da constituição do CC-Pares e das pressões às vésperas da publicação do Decreto.

(i) CC-Pares e o apagamento do professor no debate sobre o novo marco regulatório do EaD

Como vimos no início desse texto, o MEC associou as medidas legais deste ano à escandalosa relação proporção professor X estudante no EaD do setor privado. Não por menos identificou que a formação de professores – que tem se dado majoritariamente nas IES privadas e na modalidade EaD – precisava de revisão. Suspendeu novos polos e novos credenciamentos de curso. Recriou o CC-Pares e cá estamos esperando que este processo de revisão e regulação nos lançasse adiante. Só que não.

O CC-Pares foi constituído por predominantemente representantes do MEC e do setor privado. E talvez a expressão “Pares” na sigla do referido conselho consultivo seja mais do que coincidência. Um representante da UNE (União Nacional dos Estudantes) também foi designado para compor o conselho. Exceção feita à ANDIFES (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior), ao CONIF (Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica) e ao CNE (Conselho Nacional de Educação) – que é constituído por vários representantes do setor privado, todos os demais representantes do poder público são do MEC. Já o setor privado participa representado pela ANEC (Associação Nacional de Educação Católica do Brasil), pela ABIEE (Associação Brasileira de Instituições Educacionais Evangélicas), pela ABRUC (Associação Brasileira das Instituições Comunitárias de Educação Superior), pela ABMES (Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior), pela ABRAFI (Associação Brasileira das Mantenedoras das Faculdades), pelo SEMESP (Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo), pela ANACEU (Associação Nacional dos Centros Universitários) e pela ANUP (Associação Nacional das Universidades Particulares).

Nenhuma entidade representante de docentes – do setor público ou privado – integrou o conselho. Nenhuma! São oito entidades de representantes e mantenedores do setor privado. Isso não é fato que poderia passar despercebido diante do problema inicial que envolve diretamente a redução do número de professores no ensino superior e os inúmeros desdobramentos desse longo processo que resultou do atendimento predominante aos interesses do setor privado. O MEC assim constituindo o CC-Pares operou como se a nova regulação envolvesse apenas dois atores: o Estado e o mercado, não necessariamente nessa ordem.

Em 03 de dezembro último, a ABMES realizou seminário com os integrantes do setor privado que integraram o conselho. Deste evento participou também o diretor do INEP – Ulisses Tavares – quase uma unanimidade entre os representantes do setor.

Mas, para além do tom elogioso com o representante do INEP que irá participar da formulação dos novos instrumentos de avaliação das IES adequados ao novo decreto, os integrantes destacaram suas preocupações com o iminente decreto, entre elas a redefinição do corpo docente que prevê além do professor responsável, também a figura do professor-mediador ou mediador pedagógico em substituição ao tutor, que como dito anteriormente não tem qualquer regulamentação. Também se opõem à limitação de estudantes por professor ou professor mediador a 50.

Para o representante do Semesp e integrante do CC-Pares, Rodrigo Capellato: “Um conceito que nos preocupa muito é o conceito de professor categorizado e do professor-mediador (…). Hoje nós temos um papel do tutor fazendo o tutor administrativo e o tutor acadêmico, vamos dizer assim. Esse tutor acadêmico é aquele mesmo papel que universidade pública, federal inclusive, você tem o mestrando, o doutorando que faz a monitoria pro professor. Ele não é professor. Se eu colocar essa mediação como professor, ele vai cair direto na Convenção Coletiva dos professores. Isso vai acabar com o sistema também, porque foi uma coisa que a gente colocou, não dá…ele não é e (sic). Ele não dá aula, então como é que eu vou remunerá-lo como hora-aula? (…) Eu vou dar garantia semestral de salário a ele? (…)”

Como se pode observar a partir dessa declaração, o problema para o representante de sindicato patronal e interlocutor no CC-Pares parece recair sobre direitos e folha de pagamento e não sobre definições e atribuições. Muito menos sobre educação de qualidade. Expressa de forma direta que quer manter um tipo trabalhador sem direitos e ainda indaga em tom exclamativo: “Eu vou dar garantia semestral de salário a ele?”.

Em que pese o tom quase coloquial da fala, porque entre pares, essa é posição efetiva do setor privado e o real interesse do capital na educação: reduzir ou suprimir a participação de professores na formação acadêmica de nível superior, para vender certificados mais baratos, formação mais operacional e garantir a reprodução de força de trabalho precária para o mercado de trabalho precário.

É presumível que setores empresariais se organizem e defendam seus interesses, assim como é certo que sempre interessou ao capital a substituição de trabalho vivo por trabalho morto ou, sendo imprescindível o trabalho vivo, que ele seja superexplorado e sem direitos, como querem alguns representantes patronais. O que não é razoável é o MEC, sob pretexto de corrigir parte dos sérios problemas do ensino superior privado, ignorar deliberadamente que todos os atores implicados no EaD e no ensino superior deveriam ser ouvidos e não olvidados. Especialmente inadmissível se estes atores são as e os trabalhadores que fazem educação – EaD, presencial ou semipresencial.

Tem sido corrente a análise de que o governo da frente ampla está emparedado pela desfavorável correlação de forças, mas neste caso como em outros da política recente, foi o próprio governo quem definiu seus interlocutores. Diante disso, é improvável supor que tal constituição não expresse o projeto continuísta do governo para a educação.

O estopim para revisão do marco regulatório que, junto de outros documentos legais configuram a política educacional desde o final dos anos 1990 que nos trouxe aqui, foi o escancarar de uma educação amplamente degradada, que demandava interferência do poder público a fim de reconfigurar ao menos em parte a aberração de mais de 2000 estudantes para um professor.

Contudo, as perspectivas que se anunciam diante desse cenário, em que o “par” predominante e nada surpreendente é composto por Estado e mercado, não permitem vislumbrar muito mais que um novo decreto para legitimar os interesses empresariais na educação.

Apesar de tudo isso, o decreto ainda não foi publicado. Não muda o fato de que ao constituir um conselho consultivo sem nenhuma representação docente o MEC repetiu a prática de promover alterações legais que tratam o professor como sujeito oculto, indefinido ou, pior ainda, inexistente. Há muitas formas de silenciamento e apagamento, impedir de debater e de formular sobre aquilo que é matéria de seu ofício é uma delas.

Caso o decreto previsto para o que ainda resta de 2024 mantenha a indefinição sobre as diferentes formas de trabalho docente no EaD, será perpetuado o emprego de subcategorias ainda mais precarizadas que os professores do setor privado de ensino e o MEC terá mais uma vez favorecido a ampliação e hegemonia do setor privado na formação da nossa juventude, sobretudo a pobre, que poderá acessar o ensino superior mas para alimentar o motocontínuo da exclusão travestida de inclusão.

*Andrea Harada é doutora pela Faculdade de Educação da Unicamp e presidente do Sindicato dos Professores e Professoras de Guarulhos.

 

Carta Mensal – Fevereiro/2024

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O mês de fevereiro de 2024 nos trouxe grandes novidades que tem todo potencial para se prolongar por todo ano, com impactos generalizados nas lógicas econômica e política, gerando debates calorosos entre a oposição, na maioria Bolsonaristas, e os grupos intitulados de progressistas.

Neste mês, as investigações da Polícia Federal sobre o golpe de Estado ganharam elementos novos, com o surgimento de novos áudios, conversas vazadas que colocaram o ex-presidente Jair Bolsonaro no centro das preparações para o golpe de Estado, gerando graves constrangimentos políticos e levaram-no a adotar uma política mais defensiva e, posteriormente, organizando novos movimentos de apoio, que culminaram num evento na avenida Paulista no final de fevereiro, marcados por variados grupos de apoiadores. Neste momento, percebemos que o movimento a favor do ex presidente perdeu algum apoio, mesmo sabendo que poucos políticos teriam condições de organizar um evento como este, mesmo percebendo uma queda de apoio,precisamos destacar que ainda mantem um público cativo e fiel, mesmo sabendo das investigações em curso e, principalmente as variadas evidências de participação, desvios de recursos e variados questionamentos.

Neste mês percebemos a entrada dos militares nas investigações, com prisões de alguns e a criação de um clima de perseguições, lembranças das movimentações históricas ocorridas no período pós-governo militar que aumentaram os espaços de anistias gerais e irrestritas, desde então, os militares nunca foram punidos por um capítulo sangrento da história nacional, deixando uma lacuna negativa para a compreensão das memórias nacionais.

Percebemos algum tipo de cisão nos movimentos da extrema-direita, onde surgem grupos com interesses diferentes, com novas bandeiras, novos comportamentos e o surgimento de novos atores, desta forma, percebemos novos confrontos dos mais tradicionais defensores das pautas conservadores e o crescimento de novos grupos, com novas pautas e com confrontos com ideias anteriores, gerando nítidas cisões políticas e interesses diferenciados.

No campo da política monetária, encontramos novas movimentações do Serviço Especial  de Liquidação e Custódia (SELIC), a taxa de juros que remunera os títulos públicos. Em fevereiro, a Autoridade Monetária reduziu para 11,25%, iniciando uma consolidação da queda dos juros, com impactos positivos sobre a atividade econômica e um respiro para os setores produtivos, atores importantes para o comportamento econômico e, ao mesmo tempo, destravando investimentos relevantes para aumentar a geração de emprego, melhora dos salários e incremento da renda nacional.

Neste período, encontramos graves conflitos entre o governo federal e os setores que receberam desoneração no período da pandemia, onde o Ministro da Fazendo adotou políticas mais efetivas para encerrar as isenções fiscais dos setores de eventos, setor este que foi agraciado por benefícios fiscais temporários, mas muitas das medidas  que eram vistas como temporárias passaram a ser permanentes, gerando graves constrangimentos fiscais do governo federal, iniciando uma queda de braços entre o governo e a iniciativa privada, onde os últimos foram abraçados pelos congressistas da oposição e utilizaram seu poder político para impor ao Ministro da Fazendo uma derrota que, posteriormente, trariam graves constrangimentos para a sociedade brasileira.

Olhando pelos indicadores econômicos, muitos setores do mercado acreditavam que a economia brasileira estava perdendo dinamismo, o crescimento econômico estava dando mostras de fragilização, que poderiam culminar em desequilíbrios nos setores produtivos. A queda de braço entre o governo federal e os condutores da política econômicas e os atores do mercado estavam se mostrando cada vez mais nítida e evidente, onde os primeiros buscavam fortalecer as bases fiscais, com mais arrecadação, e reduzir as necessidades de contingenciamentos futuros e os mercados colocavam em xeque as medidas arrecadatórias que priorizavam as receitas e pouco limitavam as despesas.

Destacamos um assunto que gera graves repercussões na sociedade mundial, o crescimento dos conflitos militares entre nações e confrontos dentro das nações, neste momento, em fevereiro de 2024, a guerra entre Ucrânia e Rússia, completava mais de dois anos, com baixas em todos os lados, mas os grandes perdedores deste conflito eram os ucranianos e muitos europeus, que perderam suas fontes de energia barata e tiveram que pagar muito mais para acessar fontes energéticas mais caras e mais distantes, enpobrecendo sua população e gerando graves constrangimentos da população.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Desemprego

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Recentemente, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou os dados referentes ao desemprego do Brasil no ano de 2024, perfazendo 6,1%, chamando atenção a melhora do emprego no decorrer do ano, trazendo grande capital político do governo federal e agitando as discussões econômicas no final do ano.

O ano de 2024 está chegando ao final e as discussões econômicas crescem de forma acelerada, estimulando conversas equivocadas e comentários maldosos e defesas acaloradas, sem ponderações equilibradas e defesas passionais, parciais e fragilizadas, sem lastro na teoria econômica.

Vivemos, a nível global, uma grande crise de emprego em todas as regiões do mundo, as transformações tecnológicas estão impulsionando fortes movimentos no mundo do trabalho, as agitações nas organizações motivadas pela concorrência e a pela competição constantes estão exigindo dos atores econômicos e produtivos novos comportamentos, alterações nos modelos de negócios e uma maior profissionalização, exigindo maiores dispêndios de recursos monetários em pesquisa, ciência e tecnologia, uma verdadeira transformação no âmbito das organizações.

No caso brasileiro, precisamos nos atentar com as características locais e a estrutura do mundo do trabalho, onde percebemos uma grande informalidade, grande número de trabalhos precários e degradantes, que geram salários reduzidos e de baixa qualificação e com reduzida produtividade, tudo isso, contribuem diretamente para compreendermos as desigualdades crescentes que visualizamos na sociedade brasileira.

Neste ano, percebemos a redução do desemprego, algo muito positivo para a sociedade no geral, mas acaba criando novos desafios para a política econômica, afinal, desemprego baixo pressiona os preços e “obriga” a Autoridade Monetária a elevar as taxas de juros.

Com juros em 12,25% ao ano, definidos na última reunião do Comitê de Política Monetária (COPOM), e com perspectivas de incrementos maiores nos próximos meses, a economia nacional tende a diminuir o ímpeto de crescimento e aumenta o endividamento do governo federal, além de reduzir os investimentos produtivos, postergar novas contratações, aumentar as dispensas e estimular os investimentos especulativos, afinal, numa situação de grandes incertezas quais os atores econômicos que investiriam na economia nacional, sabendo que com uma taxa de juros estratosférica que garantem ganhos substanciais, imediatos e sem riscos?

Vivemos numa anomalia econômica bastante interessante e preocupante, depois de liderar a recuperação do emprego nacional, com indicadores macroeconômicos positivos, a economia tende a reduzir sua recuperação em decorrência do incremento das taxas de juros, taxas estas motivadas por um Banco Central supostamente independente, mas na verdade, independente do governo federal, aquele que foi eleito democraticamente pela população nacional e nunca independente dos barões do mercado financeiro, onde encontramos os maiores ganhadores das movimentações conduzidas pela Autoridade Monetária.

Sabemos que os indicadores fiscais brasileiros são ruins, mas não são catastróficos, como querem passar os atores do mercado financeiro, que exigem do governo um ajuste rápido e violento, com impactos generalizados nos gastos sociais e se “esquecendo” da regressividade tributária nacional que garante grandes benesses dos setores mais aquinhoados nacionais, uma elite que pouco paga imposto, detentores de grandes desonerações e usufruem dos juros escorchantes.

Neste momento, percebemos que as taxas de juros elevadas travam o crescimento e a recuperação nacionais e fazem com que, novamente, percamos uma oportunidade sublime de levantarmos a economia, gerando novos horizontes positivos e reduzindo as desigualdades sociais que fazem parte da história nacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Administrador, Gestor Financeiro, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Congresso empoderado

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Nestes últimos anos, estamos percebendo o empoderamento do Congresso Nacional, ganhando relevância e importância na gestão de recursos escassos, tudo isso, acaba gerando graves constrangimentos para o Executivo, levando-o a perderem forças políticas e recursos econômicos que prejudicam os gestores públicos no momento da construir de uma estratégia de desenvolvimento econômico e a redução dos péssimos indicadores sociais que caracterizam a sociedade nacional.

Poderíamos dizer que o empoderamento do Legislativo começou no início do governo federal anterior, em 2019, quando este governo terceirizou a gestão do orçamento público, aumentando o poder do Congresso Nacional e aumentou os recursos para emendas parlamentares, criando a chamada emenda PIX, onde os recursos eram enviados diretamente aos gestores locais, turbinando recursos para suas bases eleitorais e facilitando as eleições ou reeleições destes parlamentares, garantindo uma perpetuação destes grupos políticos e, não podemos esquecer, que estes recursos eram transferidos com pouquíssima transparência, aumentando espaços de corrupção e desperdícios de recursos públicos.

Historicamente, percebemos que o empoderamento do Legislativo é algo que vem crescendo desde a redemocratização, nos anos 1980, cresceu e ganhou relevância nos governos democráticos como forma de construir uma base mais sólida e consistente para que o Executivo de plantão conseguisse governar, o chamando presidencialismo de coalizão, como descreveu o cientista político Sérgio Abranches, que cunhou e popularizou essa expressão que ganhou importância no jargão dos intelectuais e analistas políticos.

Mas precisamos destacar o período do segundo governo Dilma Rousseff que teve como presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, que utilizou seu poder político como presidente para chantagear o Executivo, angariando grandes somas monetárias para construir seus instrumentos de pilhagem e corrupção, além de abrir um processo de impedimento da presidente Dilma, culminando na derrubada da primeira mulher eleita, duas vezes, como presidente de República.

Depois do impeachment as portas foram abertas para grandes desastres políticos e econômicos, que geraram graves constrangimentos na sociedade brasileira, a ascensão de um presidente fraco e incompetente, operações contra corrupção marcadas pelo forte partidarização, prisões exageradas, mídias compradas e grandes prejuízos econômicos para a economia nacional, levando muitos setores produtivos importantes a perderam espaço e, desta forma, foram destruídos pelos concorrentes externos. Depois de tudo isso, os próximos governos foram marcados por presidentes fracos, sem projetos e sem poder político para conduzirem seus governos, sendo obrigados a se venderem para continuar governando, atuando como verdadeiros marionetes de grupos econômicos e políticos, propondo privatizações desastrosas, reformas impopulares e inconsistentes, tudo isso, para pagar a fatura de seus governos.

O empoderamento do Legislativo deve ser visto como mais uma deformidade do sistema democrático, fenômeno que estamos percebendo em todo mundo ocidental, cujas promessas não mais se efetivam e a democracia vem perdendo legitimidade na sociedade, ganhando espaço e relevância para propostas de aventureiros, fascistas e neofascistas, tudo isso contribuem ativamente para o crescimento da extrema-direita, que vem ganhando espaço nas sociedades ocidentais, cujas propostas estão concentradas na destruição de tudo que existe na sociedade contemporânea, um retorno para uma sociedade anterior, tudo isso acaba seduzindo os grupos sociais e econômicos que viviam muito bem e gozavam de grande prestígio e status social.

O empoderamento do Legislativo pode ser visto, por alguns, como um grande avanço para a sociedade, afinal os legisladores representam a sociedade de uma forma global, mas infelizmente as coisas não são assim, os grandes donos do poder legislativo se cacifam com mais poderes e se utilizam desta estrutura para perpetuar seus poderes em prol de seus interesses paroquiais, garantindo as benesses de seus grupos políticos e usam estes poderes para chantagear os governos de plantão, garantindo uma perpetuação perversa e desigual.

Neste momento, vivemos uma situação única, onde o Supremo Tribunal Federal (STF) está questionando para onde estão indo os recursos, as emendas PIX, os repasses orçamentários, etc… para dar maior transparência, mais credibilidade e reduzir os espaços de corrupção que garantam ganhos substanciais e a perpetuação no poder em detrimento de uma desigualdade e uma pobreza que caracterizam a sociedade brasileira.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

 

 

SP: Merenda terceirizada e ensino em ruínas, por Ricardo Normanha

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Dobradinha Nunes-Tarcísio diz que privatizar gestão das escolas não afetará pedagogia. Mas com merendas terceirizadas, crianças são impedidas de repetir refeições. Parece mórbido, mas é sintoma de concessões e PPPs que avançam sem resistência

Ricardo Normanha – OUTRAS MÍDIAS – 16/12/2024

A recente repercussão da notícia de que escolas municipais de São Paulo estão proibindo a repetição na merenda escolar sob a gestão de Ricardo Nunes é apenas mais uma peça em um quebra-cabeça maior e mais complexo que estrutura um projeto cada vez mais claro para a educação pública. Trata-se de um programa amplo, produto na ideologia neoliberal e ultraliberal, alicerçado no paradigma da Nova Gestão Pública, de terceirização e privatização de serviços públicos essenciais, incluindo a educação. No caso da merenda escolar, a terceirização já vem sendo aplicada há anos e ilustra os impactos negativos de uma lógica de gestão que desconsidera o caráter pedagógico de todas as atividades escolares.

Ao assumir que certas funções desenvolvidas dentro da escola — como a alimentação — são apenas “administrativas” e podem ser delegadas a empresas externas, o poder público reforça uma falsa dicotomia entre atividades pedagógicas e administrativas, fragmentando o espaço escolar e as práticas educativas. Sobretudo no contexto da educação infantil, onde o momento da refeição é fundamental para o desenvolvimento das crianças, a prática de oferecer pratos padronizados e prontos desconsidera o processo pedagógico intrínseco ao ato de servir-se, escolher e aprender sobre suas próprias necessidades alimentares.

A transferência da merenda para empresas terceirizadas é expressão de um projeto de privatização mais amplo, capitaneado pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB), mas que encontra eco na política privatista do Governo do Estado de São Paulo, sob o comando de seu aliado Tarcísio de Freitas (Republicanos). Tarcísio vem promovendo Parcerias Públicos-Privadas (PPPs) em áreas centrais da educação, sob o pretexto de eficiência e contenção de gastos. Se o consórcio privatista estivesse restrito às figuras da direita e extrema direita, ambas neoliberais, seria um mal menor. Mas uma grande questão se coloca quando vemos que essas políticas de privatização por meio das PPPs são respaldadas deliberadamente pelo BNDES, regulado politicamente pelo Governo Federal, eleito com um programa democrático, progressista e com a absorção de algumas demandas populares.

Assim como na merenda, outras atividades relacionadas diretamente à educação escolar também têm sido terceirizadas e privatizadas, como a manutenção predial, a segurança e o fornecimento de material didático e recursos tecnológicos (a exemplo das plataformas digitais educacionais). Na mesma semana em que a polêmica sobre a proibição de repetição da merenda veio à tona, o prefeito Ricardo Nunes anunciou que planejava estabelecer convênios com a Iniciativa privada para a gestão de escolas municipais, incluindo EMEIs (Escolas Municipais de Educação Infantil), EMEFs (Escolas Municipais de Ensino Fundamental) e EMEFMs (Escolas Municipais de Ensino Fundamental e Médio).

Os projetos de PPPs e de terceirização trazem para a escola uma visão corporativa e lucrativa, que é essencialmente incompatível com a ideia de uma educação pública universal, gratuita, de qualidade e gerida democraticamente. A contratação de empresas para esses serviços considerados não-pedagógicos implica não apenas em cortar custos para aumentar a eficiência dos serviços — o que nem sempre acontece —, mas também em reduzir a autonomia escolar em relação a essas atividades. Ao se submeter a esse tipo de parceria, a escola passa a funcionar como uma “sombra” do projeto político pedagógico, subsumida a um modelo de gestão no qual o lucro e a eficiência operacional se sobrepõem à formação integral dos estudantes e ao propósito social da educação escolar.

A contratação de uma empresa externa para definir o que as crianças comem e como elas comem, sem levar em consideração o processo de aprendizado que acontece durante as refeições, na prática, desumaniza o ambiente escolar, pois trata as crianças como “usuárias de serviço” em vez de protagonistas de um processo educativo.

O projeto de privatização da educação, ao ser impulsionado pelos municípios, pelos estados e pelo governo federal, representa um enorme retrocesso na garantia do direito a uma educação pública de qualidade. Esse movimento transfere a responsabilidade do Estado para as empresas, que, por sua própria natureza, têm o lucro como principal objetivo, não o bem-estar ou a educação plena das crianças. Nesse cenário, o papel da escola como um espaço de promoção da cidadania e desenvolvimento integral dos indivíduos é subvertido, cedendo espaço para a lógica de mercado.

Além disso, o fato de o governo repassar cada vez mais aspectos da educação para a iniciativa privada cria um ciclo vicioso: a dependência das escolas em relação a essas empresas aumenta, minando a capacidade de gestão autônoma por parte dos profissionais de educação e da comunidade escolar, promovendo a fragmentação do espaço escolar. O ambiente, que deveria ser concebido a partir de uma totalidade pedagógica, é repartido em diferentes segmentos, administrados por terceiros, cada um com suas próprias metas e prioridades, que quase nunca coincidem com os objetivos finais do processo educativo.

A terceirização também tem um impacto profundo na conformação da comunidade escolar. Os funcionários terceirizados acabam por constituir um quadro de trabalhadores segmentados em relação ao quadro permanente das escolas — ainda que esses quadros permanentes estejam minguando cada vez mais, diante da contratação cada vez maior de professores temporários —, o que significa que eles não têm o mesmo vínculo ou compromisso com os alunos e com a instituição. A rotatividade de profissionais terceirizados, seja na cozinha, na limpeza ou na segurança, desfaz os laços que poderiam ser estabelecidos entre alunos, professores e funcionários, essenciais para fortalecer os vínculos de pertencimento e de comunidade.

Nesse sentido, portanto, a proibição da repetição da merenda é um reflexo de uma lógica que visa cada vez mais enxugar a educação pública, tratando-a como um serviço padronizado que pode ser terceirizado e comercializado. Em última análise, essa política de privatização progressiva por meio das terceirizações e PPPs compromete o direito dos estudantes a uma educação integral, desconsiderando que cada aspecto da vivência escolar — da sala de aula ao refeitório — é parte essencial do processo pedagógico. A educação pública deve ser um espaço que permita o desenvolvimento integral dos indivíduos a partir de uma perspectiva coletiva e solidária. Resistir ao canto da sereia da terceirização e privatização, defendendo uma escola que seja, de fato, pública e para todos, é a tarefa mais urgente que nos cabe encampar.

Mazzucato: a Era da Água Escassa chegou

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Ataques à Natureza perturbam o ciclo das chuvas no mundo todo, provocando crises inéditas. Há caminhos para enfrentá-las. Exigem considerar a água um Comum, multiplicar investimento público e adotar feixe de saídas pós-capitalistas

Por Mariana MazzucatoNgozi Okonjo-IwealaJohan Rockström, e Tharman Shanmugaratnam.

OUTRAS PALAVRAS – 12/09/2024

No que diz respeito à água, o mundo enfrenta uma situação insustentável. No entanto, resolver o problema está a nosso alcance; e é o resultado mais fácil de se obter, porque permite lidar com as mudanças climáticas e gerar empregos e crescimento.

A crise da água é evidente. Ano após ano, em uma região após a outra, ondas de calor e secas recordes são seguidas por tempestades e inundações destrutivas. Os sistemas alimentares estão secando e as cidades estão afundando à medida que atingimos os limites de extração de água da terra. Mais de 1000 crianças menores de cinco anos morrem a cada dia em decorrência de doenças causadas por água potável insegura e falta de saneamento. Centenas de milhões de mulheres passam horas todos os dias coletando e transportando água.

Esta é uma crise criada pelo ser humano, e pode e deve ser resolvida por meio de intervenções humanas. Mas para alcançar equidade e sustentabilidade em todos os lugares, precisaremos de novas formas de governo da água; de uma onda de investimentos muito maiores que os atuais; de inovação em escala e capacitação. Os custos dessas ações são insignificantes em comparação aos danos econômicos e humanitários que serão infligidos se a falta de ação continuar

O primeiro passo é reconhecer que os problemas que enfrentamos não são meramente tragédias locais. Todos os cantos do mundo estão sendo afetados, e cada vez mais, por m ciclo de água desestabilizado. As abordagens atuais tendem a lidar com a água que podemos ver – a “água azul” em nossos rios, lagos e aquíferos – e assumem que o suprimento de água é estável ano após ano. Mas isso não é mais verdade, pois as mudanças no uso da terra, as mudanças climáticas e um ciclo de água fora de controle estão afetando os padrões de chuva.

O pensamento convencional ignora, com frequência, um outro recurso crítico de água doce — a “água verde” que aparece em nossas florestas, plantas e solo; que transpira e é reciclada pela atmosfera. A água verde gera cerca de metade da precipitação que cai na terra, a própria fonte de toda a nossa água doce. E os países não estão conectados apenas por meio de fluxos de água azul (como rios), mas — o que é mais importante — por meio de fluxos atmosféricos de umidade. Como um componente essencial do ciclo global da água, a água verde precisa urgentemente ser melhor gerenciada.

O mais perigoso é que as interrupções no ciclo da água estão profundamente interligadas com o aquecimento global e o declínio da biodiversidade planetário, sendo que fenômeno reforça o outro. Um suprimento estável de água verde no solo é fundamental para sustentar os sistemas naturais terrestres que absorvem de 25% a 30% do dióxido de carbono emitido pela combustão de combustíveis fósseis.

Esse processo representa um dos aportes naturais mais significativos para a economia global. No entanto, a perda de áreas úmidas e da umidade do solo, juntamente com o desmatamento, está esgotando as maiores reservas de carbono do planeta, com consequências que podem tornar insuportável o ritmo do aquecimento global. O aumento das temperaturas desencadeia ondas de calor extremas e aumenta a demanda de evaporação na atmosfera, o que seca severamente as paisagens e aumenta o risco de incêndios florestais.

Portanto, a crise hídrica afeta praticamente todos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU e ameaça as pessoas em todos os lugares. A insuficiência de alimentos para uma população mundial crescente, a disseminação acelerada de doenças e o aumento da migração forçada e dos conflitos entre fronteiras são apenas alguns dos resultados previsíveis.

Missão H2O

Um problema coletivo e sistêmico de tão grande escala só pode ser resolvido com uma ação conjunta em todos os países e por meio da colaboração entre fronteiras e culturas. É fundamental que haja um entendimento compartilhado do Comum. Caso contrário, o que pode parecer bom para um país hoje pode facilmente criar problemas para esse mesmo país amanhã, bem como para outros em todo o mundo.

A situação exige não apenas maior ambição, mas também uma abordagem da água voltada para a missão. Uma abordagem que abranja vários setores e se concentre em todos os níveis, desde o gerenciamento de bacias hidrográficas locais até ao estabelecimento de uma cooperação multilateral. Podemos e devemos ter sucesso nas missões hídricas mais importantes do mundo:

  • Lançar uma nova Revolução Verde nos sistemas alimentares para reduzir o uso da água e, ao mesmo tempo, aumentar a produção agrícola para atender às necessidades nutricionais de uma população crescente.
  • Conservar e restaurar os habitats naturais que são essenciais para proteger os recursos hídricos verdes.
  • Estabelecer uma economia de água “circular” em todos os setores.
  • E garantir que todas as comunidades vulneráveis tenham serviços adequados de água limpa e segura e saneamento até 2030.

Embora essas missões devam impulsionar mudanças nas políticas, alinhar os setores público e privado e estimular a inovação, elas também exigem novas formas de governar. A formulação de políticas deve se tornar mais colaborativa, responsável e inclusiva de todas as vozes, especialmente as dos jovens, das mulheres, das comunidades marginalizadas e dos povos indígenas que estão na linha de frente da conservação da água.

A mudança política mais fundamental está na valorização adequada da água para refletir sua escassez, bem como seu papel fundamental na sustentação dos ecossistemas naturais dos quais toda sociedade depende. Precisamos acabar com a subvalorização da água em toda a economia e com os subsídios agrícolas prejudiciais que impulsionam o uso insustentável e degradam a terra. O redirecionamento desses fundos para a promoção de soluções de economia de água e o fornecimento de suporte direcionado para os pobres e vulneráveis seriam de grande ajuda.

Para corrigir o subinvestimento crônico em água, precisamos redefinir a prioridade da infraestrutura hídrica nas finanças públicas, onde ela é estranhamente negligenciada na maioria dos países. Os formuladores de políticas podem se basear nas melhores práticas de parcerias público-privadas para oferecer incentivos justos para compromissos de longo prazo e, ao mesmo tempo, atender aos interesses do público, especialmente das comunidades carentes.

Dada a natureza coletiva do desafio da água, devemos garantir fluxos financeiros maiores e mais confiáveis para ajudar os países de renda baixa e média-baixa a investir na resiliência da água. Os bancos multilaterais de desenvolvimento, as instituições financeiras de desenvolvimento e os bancos públicos de desenvolvimento precisarão trabalhar em estreita colaboração com os governos para apoiar as missões nacionais de água que refletem as necessidades locais e as condições ecológicas. Os acordos comerciais internacionais também oferecem possíveis alavancas para promover o uso eficiente da água, pois podem ajudar a garantir que a “água virtual” incorporada aos produtos comercializados não agrave a escassez em regiões com estresse hídrico.

Assim como estamos fazendo em relação às emissões, devemos compilar dados de alta integridade sobre as pegadas hídricas corporativas e criar estruturas para a divulgação do uso da água. Também precisamos desenvolver sistemas para avaliar a água como parte do capital natural. A fixação de um preço para esse recurso fundamental poderia gerar dividendos significativos para os países ao longo do tempo.

Em resumo, precisamos moldar os mercados em nossas economias – da agricultura e mineração à energia e semicondutores – para que se tornem radicalmente mais eficientes, equitativos e sustentáveis no uso da água.

O relatório preliminar de 2023 da Comissão Global sobre a Economia da Água apresentou os argumentos para buscar uma mudança fundamental na forma como o mundo gerencia a água. Nosso relatório final em outubro deste ano mostrará como podemos fazer isso por meio de uma ação coletiva transformadora.

Estamos apenas em 2024. Se não enfrentarmos esses problemas, os incêndios florestais, as inundações e outros eventos extremos causados pela água e pelo clima se tornarão mais intensos e mortais nos próximos anos. Promover a agenda de segurança hídrica pode parecer mais difícil em meio às crescentes tensões geopolíticas, mas apresenta uma oportunidade de provar que a colaboração pode beneficiar todos os países e possibilitar um futuro justo e habitável para todos. Não podemos fugir desse desafio.

 

Alguns dos principais eventos de 2024, do ponto de vista econômico, por Bráulio Borges

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Dólar acima dos R$ 6 e El Niño mais intenso afetaram a economia brasileira no ano

Braulio Borges, Mestre em teoria econômica pela FEA-USP, é economista-sênior da LCA Consultores e pesquisador-associado do FGV IBRE.

Folha de São Paulo, 26/12/2024

Esta é minha última coluna do ano. A ideia é relembrar alguns dos principais eventos ocorridos neste ano, do ponto de vista econômico.

Começo por aquele que ganhou destaque na minha coluna da semana passada: a forte desvalorização do real neste ano, de cerca de 25% (de 4,90 para uns 6,20). Apontei que, não fossem fatores estritamente internacionais, o R$/US$ encerraria este ano em torno dos R$ 5,60.

Alguns analistas questionaram isso. Contudo, há várias análises disponíveis indicando que pelo menos R$ 0,50 da depreciação do real neste ano se deveu a fatores internacionais.

Como o fortalecimento de 7% do dólar, a alta de 0,7 p.p. do juro longo americano, dentre outros.

Portanto, pode-se discutir se 40% ou 50% da perda de valor do real se deveu a fatores internacionais, mas não dá para afirmar que a quase totalidade da desvalorização refletiu fatores domésticos — como insinuam aqueles que estão mais interessados em realizar um debate ideológico/”lacrador” e caçar cliques nas redes sociais.

Convém relembrar o estudo do FMI (Fundo Monetário Internacional) que citei semana passada, que aponta que altas do dólar norte-americano de 10% ante as outras moedas fortes reduzem o PIB (Produto Interno Bruto) dos emergentes em 1,9 ponto percentual um ano depois. Portanto, a valorização de 7% neste ano não é irrelevante, vai causar bastante estrago em 2025.

Outro acontecimento importante, entre meados de 2023 e meados deste ano, foi a ocorrência de um El Nino de intensidade relativamente forte, algo que não acontecia desde 2015/16. Esse tipo de fenômeno climático gera seca nas regiões Norte e Nordeste, excesso de chuvas no Sul e temperaturas mais altas no Brasil todo.

Refletindo isso, a safra de grãos brasileira recuará quase 7% neste ano (maior queda desde 2016), o que pressionou os preços dos alimentos, a inflação total e mesmo os gastos públicos (a despesa com o Proagro, seguro rural oficial, está em quase R$ 11 bilhões desde meados do ano passado), além de ter reduzido a oferta de divisas.

O El Niño também está por trás da tragédia que assolou o Rio Grande do Sul, a qual gerou diversos impactos econômicos, também elevando o déficit fiscal deste ano, por conta dos quase R$ 15 bilhões em créditos extraordinários federais para lidar com esse evento.

Ou seja: os El Niños representam, para o Brasil e diversos países, um “choque de oferta desfavorável”, que impacta negativamente o PIB e aumenta a inflação. Quão relevantes são esses choques? Estudo recente divulgado na Revista Nature (“Nonlinear El Niño impacts on the global economy under climate change”) aponta que as perdas econômicas causadas pelos eventos de 1997/98 e 2015/16 (que foram muito fortes) chegaram aos trilhões de dólares, sobretudo nos países em desenvolvimento e que dependem mais de agricultura.

A perspectiva de clima neutro em 2025 (ou seja, nem El Niño, nem La Niña) sustenta projeções de alta de 6% a 8% da safra de grãos brasileira no próximo ano.

Assim, uma boa análise da economia brasileira não pode menosprezar ou minimizar o fato de que somos muito afetados por aquilo que acontece no resto do mundo (condições financeiras, preços de commodities e comércio) e que as condições climáticas são cruciais para o desempenho econômico de um país em que quase 25% do PIB está associado ao agronegócio e cerca de 60% da geração de eletricidade depende de chuvas.

 

Esperanças

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No último artigo do ano, gostaria de fazer algumas reflexões sobre a sociedade brasileira neste momento de incertezas e instabilidades que prejudicam o planejamento econômico e impõem custos adicionais nos investimentos produtivos, nas contratações e na renovação das esperanças cotidianas.

A sociedade brasileira continua bastante polarizada, setores chamados de centro, direita e esquerda se engalfinham todos os dias nos parlamentos e nas redes sociais, todas as propostas trazidas pelos seus oponentes, são rechaçadas imediatamente, sem reflexão, sem conversação, sem análises sérias e sistemáticas, se são propostas dos oponentes devem apenas ser metralhadas e degradadas, deixando de lado, bons projetos, boas ideias e possíveis políticas públicas que poderiam melhorar as condições de vida de uma parte substancial da população, grupos degradados e empobrecidos, vistos como entulho na coletividade dita civilizada, setores sem oportunidades e sem perspectivas.

Nestes embates, encontramos grupos econômicos e políticos que querem privatizar e desnacionalizar todas as empresas estatais, reduzindo fortemente a atuação estatal, acreditando que os setores privados são melhores na gestão, mais eficientes e geram maiores ganhos monetários. De outro lado, encontramos setores políticos que acreditam no potencial do Estado Nacional como gestor estratégico para a economia, buscando nas memórias desenvolvimentistas do século XX as estratégias para o momento atual. Ideologias e interesses imediatos continuam dominando as discussões na sociedade brasileira, como destacou Millor Fernandes: “Quando uma ideologia fica bem velhinha, vem morar no Brasil”. Precisamos renovar ideias, pensamentos e investir fortemente em educação, em conhecimento e em capital humano.

A economia brasileira vem passando por momentos interessantes, vivemos num período de encruzilhadas constantes, de um lado, encontramos uma economia em crescimento, com melhora nos indicadores macroeconômicos, desemprego em queda, crescimento da renda e do salário, produto interno bruto em ascensão, aumento do investimento externo, dentre outros e, em contrapartida, preocupações fiscais que limitam nosso crescimento sustentável nos próximos anos e demanda juros altos para saciar os ganhos astronômicos dos rentistas. Como nos disse, o economista liberal Eduardo Giannetti recentemente: “Os indicadores fiscais brasileiros, embora preocupantes, não são calamitosos. Longe disso. Nós não estamos na beira de nenhum precipício fiscal.”

Vivemos numa nação marcada por grandes desigualdades sociais e históricas que perduram durante séculos, uma sociedade centrada na concentração de renda, onde uma pequena parte da população se beneficia das benesses do capitalismo contemporâneo, com luxos, tecnologias e prazeres materiais e, em contrapartida, uma parte substancial da população vivendo à margem do bem-estar e da civilização, sobrevivendo em casebres precários e salários degradantes, desta forma, vivemos numa verdadeira fábrica de pobrezas, violências constantes e degradação social. Neste ambiente, percebemos que este cenário de desigualdades crescentes passou a ser visto como algo normal e natural.

Como sabemos, vivemos numa nação marcada por grande potencial econômico e produtivo, solo imensamente rico, clima e vegetação  agradáveis, energia limpa e variada em abundância, população empreendedora e trabalhadora, sociedade civil pujante, universidades públicas e privadas consolidadas, organizações sociais estruturadas e consistentes, embora tenhamos grandes dificuldades, precisamos encarar de frente os desafios da sociedade contemporânea e compreendermos que, neste cenário de fortes incertezas, a união de esforços nos auxiliam na construção de uma nação civilizada, mais sólida e consistente, com mais esperança, com menos desigualdades e mais oportunidades para todos os cidadãos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

 

Os desastres da extrema direita, por Richard Seymour

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Richard Seymour – A Terra é Redonda – 24/12/2024

As novas direitas são verdadeiramente cativadas e obcecadas por cenários alucinatórios de desastre extremo

O mundo de hoje está cheio de desastres reais. Mas da prontidão militar às fantasias de deportação em massa, a direita e a extrema direita prometem a seus apoiadores catástrofes melhores: aquelas em que eles estarão no comando. Portanto, é necessário perguntar o que é o “nacionalismo de desastre” e por que ainda não veio a ser fascismo. [1]

Há alguns anos, percebi que a nova extrema direita estava obcecada por cenários fantásticos em que prevalecia um mal extremo imaginário. Campos de extermínio da FEMA (Agência Federal de Gerenciamento de Emergências nos EUA), a “teoria da grande substituição”, a “grande reinicialização”, cidades de 15 minutos, [2] antenas 5G que funcionam como faróis de controle mental e microchips instalados nas pessoas por meio de vacinas.

Na Índia, existe uma teoria chamada “romeo jihad”, segundo a qual os homens muçulmanos seduzem jovens hindus e os convertem ao Islã, travando assim uma espécie de guerra populacional. O QAnon fantasia que pedófilos satanistas e comunistas governam o mundo. Ou seja, as novas direitas são verdadeiramente cativadas e obcecadas por cenários alucinatórios de desastre extremo. Por que acontece isso?

Não faltam desastres reais: incêndios, inundações, guerras, recessões e pandemias. No entanto, eles frequentemente negam que esses desastres existam. Muitos dizem que o COVID-19 foi apenas uma desculpa para o Quarto Reich, ou que a mudança climática é uma desculpa para um regime liberal totalitário, uma nova forma de comunismo e assim por diante. Contudo, as pessoas de direita são realmente cativadas e obcecadas por cenários alucinatórios de catástrofes extremas.

Costumo usar o exemplo dos incêndios florestais no Oregon. Os incêndios varreram planícies e florestas e queimaram a 800 graus Celsius. Eles representavam uma ameaça real à vida das pessoas. Mas muitas pessoas se recusaram a sair porque ouviram que, na verdade, eram os “antifas” que estavam ateando fogo e que tudo fazia parte de uma conspiração sediciosa para acabar com os cristãos conservadores brancos.

Então, em vez de fugir para salvar suas vidas, eles montaram postos de controle armados e apontaram suas armas para as pessoas, alegando que estavam procurando os tais “antifas”. Por que ocorre essa fantasia de um apocalipse em massa? Porque ela transforma o desastre de um modo que ele se torna realmente muito emocionante. Na maioria das vezes, quando as pessoas sofrem catástrofes, elas ficam deprimidas e se afastam um pouco da vida e da esfera pública. Mas a extrema direita oferece outra saída.

Ela diz que “aqueles demônios em sua cabeça, com os quais você está lutando, são reais e você pode matá-los”. O problema não é difícil, abstrato ou sistêmico; não, ele simplesmente vem de pessoas más; logo, é preciso acabar com essas pessoas. Inventa-se uma fantasia sobre as emoções dolorosas que as pessoas enfrentam diante das crises econômicas e das mudanças climáticas e se encontra um modo de dar a elas uma saída que pareça válida e empoderada.

Isso é o que chamo de nacionalismo de desastre. Ainda não é fascista porque, embora organize os desejos e emoções das pessoas em uma direção muito reacionária, não se tenta derrubar a democracia parlamentar, não se busca esmagar e extirpar todos os direitos humanos e civis … ainda não.

Essas direitas também carecem de maturidade organizacional e ideológica. Elas estão ainda numa fase de acumulação fascista de força. Se voltarmos ao período entre guerras, vê-se que esse processo de acumulação ocorreu, pois havia pogroms em massa; ou seja, já havia importantes movimentos de extrema-direita antes do fascismo. Portanto, parece que está se desenrolando ainda uma fase inicial de um fascismo incipiente.

No final de The Anatomy of Fascism, publicado em 2005, Robert Paxton nos adverte que a política israelense pode cair no fascismo. É necessário pensar que lugar Israel está ocupando nesse fascismo que ainda não é bem fascismo.  Quando comecei a escrever este livro, não esperava falar muito sobre Israel. Achei que seria um elemento menor em um mosaico global constituído por estados muito maiores. No final, tive que escrever um capítulo totalmente novo por causa do genocídio em Gaza.

Há muito tempo está claro que o sionismo pratica ainda um genocídio incipiente porque o seu desejo final é que os palestinos não existam. E sempre houve elementos do fascismo hebraico desde a década de 1920. Eu diria que sua dinâmica colonial é bastante única. Você não vê isso, por exemplo, nos Estados Unidos. É óbvio que o colonialismo dos colonos é uma realidade histórica com repercussões permanentes, mas não é uma realidade viva e atual. Você não pode viver em Israel sem conhecer os palestinos e seu desejo recalcitrante e irritante de existir.

Mas existem outros aspectos que são bastante semelhantes aos padrões observados nos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Índia, Brasil etc. É o declínio do Estado, o declínio do sistema político. É o declínio do sistema do pós-guerra, no caso um arranjo corporativista entre o trabalho judeu, o capital judeu e o Estado, alcançado por meio da limpeza étnica de 1948. Esse sistema entrou em colapso na década de 1970 e, como em todos os lugares, tornou-se neoliberal. Os sindicatos israelenses recusaram. Contudo, tentaram se adaptar por meio da política da “terceira via”. Ora, a sua última chance foi provavelmente o processo de Oslo. Hoje quase não existe essa perspectiva.

Essas tendências de crescente pessimismo e desigualdade de classe já ocorreram, mas a velha utopia nacionalista do mundo do pós-guerra desapareceu. A classe capitalista se tornou cosmopolita e intimamente integrada a Washington, não à utopia nacionalista judaica que eles estavam tentando construir.

É por isso que alguns membros do movimento sionista estão tentando reconstituir esta pátria judaica, uma salvaguarda judaica, se se quiser. A direita diz: “Não, já superamos isso. Estamos em uma situação em que temos que resolver a questão com os palestinos de uma vez por todas.” Para eles, isso significa expulsar os palestinos e colonizar decisivamente cada pedaço de terra que eles acreditam pertencer ao Grande Israel.

Isso leva ao fascismo? Não, ainda não enquanto houver sistemas democráticos constitucionais liberais. É uma democracia de exclusão. E isso não é tão incomum. Os Estados Unidos até a década de 1970 eram uma democracia de exclusão. Ora, eu diria até que ainda é hoje, mas em um grau diferente. Israel tem uma cultura cada vez mais racista, autoritária e genocida e está mais perto de um golpe fascista do que em qualquer outro lugar. Acho que o genocídio e o processo de radicalização das bases vão levar a um golpe kahanista ou de extrema direita.

Se se quiser ver onde o fascismo está bastante avançado, eu diria que isso se vê em Israel, mas também na Índia. Você tem que ouvir os alarmes: “Estamos à beira do genocídio”, porque o BJP [Partido Bharatiya Janata], um movimento autoritário de direita ligado ao fascismo histórico, colonizou o Estado e suprimiu os direitos civis. É um fenômeno global no qual Israel desempenha um papel único e distinto. Israel está muito perto de um regime fascista milenar. A médio prazo, essa é uma possibilidade real e perigosa, dado que se trata de um estado nuclear.

Parece tolice ignorar as fantasias catastróficas da direita. Eles geralmente estão sintonizados com realidades que o otimismo liberal prefere não reconhecer. Isso é bem real.

Às vezes, eles colocam o dedo em elementos importantes da realidade. As teorias da conspiração sobre cidades de 15 minutos, por exemplo, são incompreensíveis e delirantes porque as pessoas pensam que elas anunciam algum tipo de ditadura comunista contra o automóvel. Mas, em sua essência, é uma ameaça real ao uso do automóvel, ao estilo de vida suburbano e às vantagens relativas de possuir um carro.

Se você construir cidades em torno do conforto e ciclovias em todos os lugares, eliminando a poluição o máximo possível e eliminando vagas de estacionamento, isso se torna um problema para aqueles que gostam de dirigir para todos os lugares. Será especialmente problemático se se começa a colocar barreiras de tráfego para impedir que se use certas estradas. Se você for direta e pessoalmente afetado, pode ter a sensação de que a vida mudará radicalmente nas próximas décadas.

E eles não estão totalmente errados: a mudança climática exigirá grandes mudanças estruturais. Os liberais querem negar a gravidade do que está por vir e do que as pessoas já estão experimentando. Acho que a resposta da esquerda deveria ser dizer: “Sim, você está certo, vamos transformar tudo, mas será muito melhor para você. Veja como.”

O exemplo que sempre vem à mente é o de Barack Obama, em 2016. Ele zombou de Donald Trump por ser um pessimista em sua campanha, dizendo com ironia: “No dia seguinte, as pessoas abrirão as janelas, os pássaros cantarão, o sol brilhará”. O páthos que ele estava tentando invocar era que as pessoas estavam realmente muito felizes, que tudo estava indo bem. Então, na eleição, ele teve sua resposta: Donald Trump venceu.

Para muitas pessoas, as coisas não estão indo bem. Donald Trump fez seu discurso de posse, escrito por Steve Bannon, falando sobre “carnificina americana”, que eu acho que é uma espécie de poesia reacionária, porque carnificina não é uma descrição imprecisa da destruição da América industrial.

Eles colocaram o dedo em um problema real, mas sua resposta foi culpar a China, o Leste Asiático. A maioria dos empregos perdidos foi resultado de uma guerra de classes vinda de cima: enxugamento, destruição sindical. Houve um elemento de terceirização, mas a culpa é das empresas, dos empregadores, não dos trabalhadores do Leste Asiático.

Então, pode-se ver que eles são capazes de identificar certas formas de desastre. O que eles não incapazes é de integrá-los numa análise global coerente e sólida. Tudo o que eles propõem, na realidade, são sintomas projetados para não resolver nada, mas que permitem que você massacre muçulmanos na Índia, palestinos na Cisjordânia e Gaza, mate apoiadores do Partido dos Trabalhadores no Brasil, atire, esfaqueie ou use carros para atropelar manifestantes do Black Lives Matter nos EUA, ou organizar tumultos racistas na Grã-Bretanha, onde tentaram queimar requerentes de asilo em seus abrigos. É isso que a direita propõe como alternativa ao desastre; ou seja, ela propõe melhores desastres, desastres em que você sente que está no controle.

É necessário falar sobre os assassinatos de muçulmanos na Índia. É necessário perguntar em que consistiu o pogrom de Gujarat e porque ele deve ser visto como o ponto de partida da atual onda de nacionalismo de desastre. Parece que há um canário na mina de carvão.

Obviamente, está longe de ser o único grande pogrom na Índia. Existe uma espécie de máquina de pogrom: Paul Brass fala dela com elegância. O que aconteceu. Eclodiu um incêndio em um trem no qual vários peregrinos hindus morreram. Como eles eram membros do partido de extrema-direita VHP, o movimento Hindutva [do nacionalista hindu] especulou que os muçulmanos haviam ateado fogo no trem com coquetéis molotov.

Havia poucas evidências disso: investigações imparciais concluíram que o incêndio foi um acidente. Mas eles decidiram que o genocídio havia ocorrido contra os hindus e, nos dias seguintes, incitaram a população a pegar em armas e perseguir, matar e torturar muçulmanos. Foi o que fizeram, organizados diretamente por membros do BJP, incitados por líderes do BJP, com a cumplicidade e participação da polícia e empresários que pagaram indivíduos para participar da operação. Foi uma explosão coletiva de violência pública coordenada e permissiva com algum controle das autoridades. O resultado foi que a votação do BJP aumentou 5%, embora se esperasse que perdesse o governo do estado depois de ter administrado mal um desastre real: um terremoto ocorrido no ano anterior.

Então se vê o padrão: há uma catástrofe real que afeta as pessoas, o governo administra terrivelmente, então eles inventam uma versão falsa da catástrofe e fazem com que as pessoas matem alguém e é muito emocionante. As coisas que fizeram foram horríveis. Eles mataram bebês na frente de suas mães, cravaram estacas entre as pernas das mulheres, cortaram as pessoas ao meio com espadas.

Obviamente, isso já acontecia há muito tempo, então, nos meses que se seguiram, Narendra Modi organizou comícios do orgulho hindu e disse às pessoas que, se pudéssemos restaurar o orgulho do povo hindu, todos os Alis, Malis e Jamalis não seriam capazes de nos prejudicar – ele estava obviamente se referindo à população muçulmana que acabara de sofrer um pogrom. O fato de que esses comentários não desacreditaram o BJP, mas eletrificaram sua base e fizeram de Modi um símbolo sexual pela primeira vez, diz muito sobre esse tipo de política.

Já vimos isso repetidamente. Sem todas as manifestações armadas, comícios antibloqueio e violência contra os manifestantes do Black Lives Maters (BLM), não teríamos visto a insurgência fracassada de 6 de janeiro. Algo semelhante se viu no Brasil: Jair Bolsonaro ficou alguns pontos atrás, quase venceu em 2022 e obteve mais votos do que em 2018. Como ele fez isso?

Um verão caótico de violência em que ele declarou que os ativistas de esquerda devem ser metralhados, e seus apoiadores brandiram suas armas na cara dos apoiadores do Partido dos Trabalhadores, agrediram-nos ou mataram-nos. Não estou dizendo que o pogrom de Gujarat precipitou esses outros eventos, mas foi um dos primeiros exemplos do que estava acontecendo, e assim que Modi foi eleito em 2014. Ademais, ele mostrou que o capitalismo liberal toleraria esse excesso.

A maior parte da violência genocida desde a década de 1990 tem sido contra muçulmanos de várias etnias e, embora haja muito racismo contra diferentes grupos na política ocidental, os ataques mais veementes parecem ser reservados aos muçulmanos. Tommy Robinson, por exemplo, se gaba de que os negros são bem-vindos em seus comícios. Que papel desempenha a figura abstrata do “muçulmano” no catastrófico discurso nacionalista? Por que ele substituiu o “judeu” como a figura de ódio da extrema direita?

Não acho que isso vai acontecer no Brasil ou nas Filipinas. Mas está em toda uma constelação de estados, da Índia a Israel, passando pelos Estados Unidos e pela maioria dos países da Europa Ocidental e até da Europa Oriental. Em termos semióticos, não é exatamente o mesmo que a figura do “judeu”, porque, por enquanto, o discurso da extrema direita não dá a impressão de que os muçulmanos, além de serem uma espécie de massa miserável da Terra, controlam tudo.

Houve tentativas de desenvolver uma espécie de teoria da conspiração, como a de Bat Ye’Or sobre a Eurábia, por exemplo. Mas na maioria das vezes não se trata de uma crença de que os muçulmanos estão secretamente no comando e administram o sistema financeiro, mas sim que eles são uma massa subversiva, violenta, anormal e inferior que precisa ser subjugada com violência e fronteiras para mantê-la sob controle.

Eu diria que isso tem suas origens na virada da década de 1980 para o absolutismo étnico, a coalizão entre os apoiadores do Likud em Israel e os fundamentalistas cristãos nos Estados Unidos, em direção a um tipo de política de identidade absolutista na qual todos têm de caber em uma determinada caixa: há uma espécie de colapso da solidariedade antirracista unificadora que vimos na era da Guerra Fria em Grã-Bretanha, assumindo a forma de negritude política. Tudo isso desmoronou, E então veio o caso Rushdie e os muçulmanos foram categorizados como um problema específico.

É importante que isso esteja enraizado na experiência cotidiana da vida capitalista. Na Grã-Bretanha, por exemplo, as pessoas que eram membros do mesmo sindicato nas cidades do norte ou nas docas, uma vez que essas indústrias foram fechadas e os sindicatos foram desmantelados, muitas vezes se mudaram para setores marginais da economia e descobriram que suas moradias ainda eram segregadas, que o sistema escolar era efetivamente segregado, que os municípios praticavam políticas segregacionistas e que a polícia era segregacionista nesse sentido, ou seja, muito racista.

Se acrescentarmos austeridade a isso, chegamos à miséria pública, ninguém tem nada, e os que estão na base são sempre culpados: “Eles têm tudo, eu não tenho nada”. É quando se começa a ver tumultos nas cidades do Norte e a guerra ao terror parece catalisar tudo isso.

Portanto, este é um fenômeno global no qual a civilização liberal se definiu contra os “maus muçulmanos”. No início, havia essa ideia de que o problema não eram todos os muçulmanos, mas apenas o que foi chamado de fascismo islâmico: George W. Bush enfatizou isso. Mas a forma como essa ideia foi entendida pela população e a forma como foi politizada se estendeu a todos os muçulmanos. Portanto, o muçulmano é uma figura central, mas acho que temos que vê-lo como parte de uma cadeia de equivalências com o “predador transexual do banheiro”, o “marxista cultural” e o imigrante.

Nas Filipinas, a principal categoria são os viciados em drogas. Pode ter nuances diferentes, mas concordo com a tese que diz: globalmente e, em particular no Ocidente, “o muçulmano” resume em si todos os problemas.

Um dos capítulos mais interessantes do meu livro trata do papel do gênero no discurso nacionalista sobre desastres. Há também um capítulo sobre o genocídio em Gaza, embora coloque um pouco menos de ênfase na psicanálise do que em outros capítulos. Questões de exploração e agressão sexual foram recorrentes durante todo o genocídio em Gaza, desde soldados israelenses postando vídeos no TikTok vestindo roupas íntimas de mulheres palestinas até motins em defesa de soldados acusados de estuprar detidos na prisão. Qual é o papel do sexo no imaginário nacionalista do desastre?

Eu argumentaria que, em termos da economia libidinal dessa nova extrema direita, sua premissa subjacente parece ser que alguém é sempre estuprado e que o problema é que os “comunistas” (incluindo Kamala Harris etc.) querem que as pessoas erradas sejam estupradas. O movimento “incel” dos celibatários involuntários, os ativistas dos direitos dos homens etc. tentam muitas vezes justificar o estupro.

Há uma espécie de contradição nessa economia libidinal entre proibições severas renovadas – não mais casamento gay, não mais transexuais, mulheres de volta à cozinha, “fetichismo” de esposa tradicional – por um lado, e por outro, total liberdade predatória para os homens e, portanto, permissividade seletiva. Não é surpreendente ver isso em zonas de guerra. As guerras geralmente resultam em inúmeras violações: a vitimização do inimigo inclui a brutalização das mulheres.

Recentemente, pesquisei os autores de crimes, em particular o genocídio em Gaza, e uma das coisas que surge é a ideia da mulher perigosa. Em termos modernos, se trata da guerreira da justiça social, uma ruiva que grita alto, etc. Contudo, para o movimento Freikorps alemão da década de 1920, a mulher perigosa era uma comunista com uma arma na saia. Essa mulher era alguém que deveria ser morta por alguém capaz de se aproximar dela. Essa proximidade perigosa é emocionante porque você se aproxima do perigo, depois o supera e pega o que quer, da pior maneira possível.

Imagino que grande parte da política masculina de direita de hoje seja uma tentativa de superar uma sensação de ineficiência, impotência, paralisia e assim por diante. E, francamente, quando eles falam sobre estupro, eles insinuam que há muito estupradores.  Mas as evidências sugerem que os homens jovens, os homens jovens em geral, não estão tão interessados em sexo quanto as gerações anteriores. Eles não estão tão interessados em sexo, eles não estão tão interessados em romance, não há nada muito sexy na vida contemporânea.

Uma das coisas aqui é que eles culpam as mulheres pelo fato de não terem desejo e dizem: “somos celibatários involuntários”. Eles dizem que se as mulheres flertassem com eles, estariam dispostos a fazer sexo o tempo todo. Eu duvido. Eles estão tão confusos, chateados e fodidos quanto todos os outros, se não mais. Mas acho que eles tentam inflar seu desejo transformando-o em uma demonstração de poder, eficiência, força.

Há muito disso. Eu acho que haverá coisas específicas em Gaza, porque toda a coisa de soldados israelenses se filmando com a lingerie roubada de mulheres palestinas é obviamente paródica, é genocida, mas há algo nisso que envolve uma identificação inconsciente com a vítima.

Meu livro carecia de uma análise do papel dos centristas liberais nessa situação. Estou pensando em particular em Kamala Harris, que fez campanha com os Cheneys antes de perder para Donald Trump. Está lá em segundo plano, mas eu me perguntei se era possível explicar como os liberais se encaixam nesse quadro.

Existem dois ângulos para esta questão. O primeiro aponta para os centristas liberais como indivíduos e como grupo e sua relação simbiótica com a extrema direita. A segunda é aquela em que me concentro no livro, sobre os fracassos da civilização liberal. Sua barbárie inerente se manifesta no imperialismo e na guerra, no racismo, no sadismo fronteiriço, no trabalho e na exploração, mas também nas hierarquias de classe e na miséria que eles geram.

A questão, então, é como chegamos a situações concretas em que pessoas como Obama, Hillary Clinton e agora Kamala Harris e Joe Biden contribuem para a ascensão ao poder dessa nova formação extremista. Eu diria que o filósofo Tad DeLay coloca uma questão interessante em seu livro recente, O futuro da negação, sobre a política climática: “O que o liberal quer?” É uma boa pergunta, porque os liberais constantemente proclamam sua afinidade com valores igualitários e libertários. Afirmam apoiar a luta contra as alterações climáticas, mas também se opõem a quaisquer meios eficazes para alcançá-las.

Acredito cada vez mais que, em última análise, os liberais não querem o liberalismo. Obviamente, é preciso fazer distinções, porque há liberais que estão realmente comprometidos filosófica e politicamente com os valores liberais, que lutarão por eles e que irão para a esquerda se necessário. Mas também existem centristas ferrenhos cuja política é organizada principalmente em torno de uma fobia da esquerda. Estou falando aqui de um anticomunismo alucinatório, principalmente relacionado à direita, mas os liberais têm uma visão igualmente irrealista da esquerda e de sua suposta ameaça.

Seria bom se a esquerda fosse mais forte e estivéssemos à beira de uma revolução comunista, mas não estamos. Quando Bernie Sanders concorreu ao cargo presidente dos Estados Unidos, lembro-me do pânico entre os liberais americanos. Um apresentador temia que, uma vez que os socialistas tomassem o poder, eles encurralariam as pessoas e atirariam nelas. Pense também em como o centro duro (centro-esquerda e centro-direita) fomentou teorias da conspiração, como na Grã-Bretanha, a Operação Cavalo de Tróia: a ideia de que os muçulmanos estavam tomando conta das escolas de Birmingham. Essa teoria da conspiração não veio da extrema direita, mas dos governos liberais.

A relação é a seguinte: a extrema direita pega os predicados já estabelecidos pelo centro liberal, radicaliza-os e torna-os mais coerentes internamente. Há alguns anos, no início do período em que o Novo Trabalhismo estava no poder, começou a reprimir os requerentes de asilo. Eles regularmente colocam no noticiário fotos de um ministro em Dover procurando requerentes de asilo em vans de pessoas e coisas do gênero. Enquanto isso, o Partido Nacional Britânico (BNP) estava crescendo e dizendo em entrevistas: “Gostamos do que eles estão fazendo, eles estão nos legitimando”. Eles pegaram as preocupações que estavam no fundo das preocupações do povo em 1997 e as trouxeram para o topo, o que deu legitimidade ao BNP.

Por suas próprias razões, eles tendem a amplificar as correntes reacionárias que já estavam circulando. Então, quando a extrema direita se desenvolve nessa base, eles tendem a dizer “essa é uma boa razão para irmos mais longe nessa direção, porque mostra que, se não resolvermos esse problema, a extrema direita se desenvolverá ainda mais”. É como uma máquina de ressonância, ricocheteando uma na outra. Um dos problemas com a escolha entre um democrata centrista e um republicano de extrema-direita é que ela se baseia na exclusão da esquerda. Estruturalmente, ambos se alimentam dessa exclusão, mas no longo prazo é a extrema direita que se beneficia.

No final do livro, digo que apelar para a racionalidade e o interesse próprio das pessoas nem sempre funciona, e que a política do “pão com manteiga”, embora necessária, pode não ser suficiente: para mobilizar as pessoas politicamente, é preciso despertar suas paixões. Como devem ser as “rosas” que devem ser oferecidas junto com o “pão”?

Eu deveria ter usado essa metáfora no livro: “pão e rosas” é uma boa maneira de dizer isso. Acredito que existe uma aspiração legítima e inata à transcendência que é imanente à vida como tal. Em outras palavras, estar vivo é aspirar a uma situação sempre diferente. A vida é um processo teleológico no qual nos esforçamos para alcançar um certo nível de desenvolvimento. Mas também, a aspiração ao conhecimento, a aspiração ao outro – este é o instinto social, a aspiração, na linguagem de Platão, ao bem, ao verdadeiro e ao belo.

Acredito que esse instinto está presente em todos, em todos os seres vivos. Eu diria que podemos ver isso quando acontecem rupturas de esquerda, como a campanha de Bernie Sanders. É muito bom falar sobre pão com manteiga. Há coisas boas de que as pessoas precisam, como assistência médica e um salário-mínimo mais alto. Trata-se de lutar contra a exploração do empregador, mas também além disso é preciso enfrentar o sadismo com os que estão além das fronteiras. É preciso dizer às pessoas que elas precisam e intimamente querem viver em uma sociedade decente.

As pessoas com instintos decentes foram atraídas para esse tipo de campanha, foram, assim, eletrificadas por ela; mas, afinal, o que ela dizia? Não dizia “vote em mim e você terá mais bens materiais”; ao contrário, dizia “vote em mim e você terá uma revolução política”. E não apenas vote em mim, junte-se a um movimento político comigo, tome o poder, derrube todos os elementos decrépitos e sádicos de nossa sociedade e se aprofunde na democracia.

Bernie Sanders falou de uma jornada improvável juntos para refazer e transformar o país. As pessoas realmente querem trabalhar juntas para alcançar algo maior. Uma das patologias da vida moderna é que as pessoas se sentem frustradas, paralisadas, ineficazes. O seu modo característico de expressão era “se ficarmos juntos” e, quando ele disse isso, a multidão explodiu. Este é apenas um exemplo de ruptura da esquerda. Jean-Luc Mélenchon tem seu próprio estilo, Jeremy Corbyn tem um estilo muito diferente, mas a ideia básica é sempre a mesma: o ethos social, o esforço comum.

Karl Marx e Friedrich Engels falaram sobre essa dialética na qual você se junta a um sindicato no início para obter salários mais altos, uma jornada de trabalho mais curta, coisas de que você precisa fundamentalmente, mas depois desenvolve outras necessidades mais ricas. Muitas vezes, os trabalhadores entram em greve para defender seu sindicato, mesmo que percam dias de pagamento e suas condições materiais objetivas se deteriorem um pouco.

Eles precisam um do outro, eles precisam de sua união. Ora, isso pode ir mais longe; pode ser politizado muito mais profundamente. A necessidade mais radical é a necessidade de universalidade, no sentido marxista do termo. Quando as pessoas saem às ruas para combater as mudanças climáticas, elas pensam em um mundo unido em uma totalidade, não necessariamente num mundo onde tenham todos os gadgets e produtos de que precisam, mas um mundo onde todos e todas as espécies tenham a oportunidade de prosperar e florescer. Eu diria que isso é normal.

A questão é como esse comunismo instintivo básico, nas palavras de David Graeber (1961-2020), é frustrado, esmagado e sequestrado. Como essa necessidade impecavelmente respeitável é negligenciada e patologizada, de modo que as pessoas nem se atrevem a pensar sobre isso, muito menos expressá-lo? Cria-se esse tipo de situação para que as pessoas adotem uma espécie de postura cínica.

Acredito que as rosas de que precisamos são aquelas que vêm de nossa unidade: mencionei os termos platônicos “o bom, o verdadeiro e o belo”. Vamos pensar na cultura e no trabalho que podemos fazer juntos, vamos pensar na busca da verdade na ciência e no trabalho que fazemos juntos. Nossos esforços para elevar o padrão moral, tentando acabar com a violência, o estupro e o racismo, são capacidades intrínsecas que todos nós possuímos. É óbvio que não estamos à altura da tarefa, que podemos viver vidas privadas em que somos egoístas, odiosos e ressentidos. Mas isso não é tudo. Se fosse esse o caso, poderíamos muito bem parar com o esforço transformador e renunciar.

*Richard Seymour é jornalista. Edita o blog leninology.co.uk e é co-editor da revista Salvage. É autor, entre outros livros, de Corbyn: The Strange Rebirth of Radical Politics (Verso).

Notas do tradutor

[1] O texto foi construído a partir da entrevista do autor a Olly Haynes sobre o seu livroDisaster Nationalism, recém editado pela editora Verso, em que ele usa a psicanálise e marxismo para examinar o que está ocorrendo com a extrema direita mundial.

[2] A cidade do quarto de hora é o modelo de uma cidade onde todos os serviços essenciais são a uma distância de um quarto de hora à pé ou de bicicleta, conceito relançado sob esta denominação em 2015 por Carlos Moreno, um urbanista franco-colombiano.

 

As tarifas de Donald Trump, por Eduardo Vasco

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Eduardo Vasco – A Terra é Redonda – 26/12/2024


As ameaças de Donald Trump, se aplicadas, podem ter resultados positivos para o Brasil. O governo brasileiro pode retaliar e impor tarifas recíprocas às importações provenientes dos EUA

1.

As relações do Brasil com os Estados Unidos tendem a observar uma piora significativa a partir da posse de Donald Trump. E não apenas do presidente Lula ou de seu governo com o republicano e seu governo, mas também da própria burguesia nacional brasileira com a norte-americana.

A balança comercial de Brasília com Washington (nosso segundo maior parceiro comercial) é deficitária. Entre janeiro e novembro, nossas exportações alcançaram o valor de R$ 221,26 bilhões (US$ 36,57 bilhões), enquanto as importações chegaram a R$ 226 bilhões (US$ 37,36 bilhões). Tivemos um prejuízo de R$ 4,8 bilhões (US$ 790 milhões).

Até a implantação e consolidação do regime neoliberal no Brasil, na década de 1990, o comércio com os Estados Unidos havia sido superavitário. Porém, a partir de 1995 passamos a importar mais e exportar menos aos norte-americanos, sendo o comércio deficitário entre 1995 e 1999, no auge das privatizações e entrega das grandes propriedades nacionais ao capital estrangeiro.

Em 2000 a balança voltou a ser positiva, mas a partir de 2009 – e desde então, ou seja, há 15 anos – tivemos novamente déficit atrás de déficit comercial com os EUA. O nosso déficit acumulado, nesses últimos 15 anos, é de R$ 231,4 bilhões (US$ 67,9 bilhões).

A razão disso é que o caráter do comércio bilateral é, a rigor, semicolonial. Nesses últimos 15 anos, nós vendemos aos EUA basicamente petróleo bruto e combustíveis, produtos agrícolas e alimentícios para que depois os norte-americanos os refinassem e nos vendessem de volta, com um alto valor agregado, junto com adubos e fertilizantes.

O que salva são as exportações de aeronaves e equipamentos de alta tecnologia, mas também compramos máquinas e equipamentos industriais. Para variar, como toda relação entre um país desenvolvido e um país atrasado, os EUA compram de nós, majoritariamente, commodities (de baixo valor agregado) e nos vendem manufaturados (de alto valor agregado).

Donald Trump vai manter essa tradição e já anunciou que quer aplicar tarifas contra produtos brasileiros. No dia 16 de dezembro, ele citou o Brasil nominalmente como exemplo de país que sofrerá novas taxas. “Quem nos taxar, taxaremos de volta”, disse.

Mas os EUA já taxam uma série de produtos do Brasil. Em 2023, o valor de produtos brasileiros importados pelos EUA que ficaram sujeitos a sobretaxa de importações foi de US$ 233 milhões. E há uma pressão nas grandes companhias siderúrgicas contra a revogação do direito antidumping sobre a importação de determinados tipos de aço brasileiros, feita no início de 2024 – após 32 anos. Os EUA já são o país com mais medidas protecionistas contra o Brasil e, em 2018, Donald Trump classificou nossas exportações de aço como uma “ameaça à segurança nacional dos EUA”.

Após ser eleito pela segunda vez presidente dos Estados Unidos, Donald Trump também anunciou a intenção de impor tarifas de 100% aos produtos importados dos países do BRICS, caso eles concretizem as ideias de desdolarização de suas transações comerciais.

2.

As ameaças de Donald Trump, contudo, se aplicadas, poderiam ter resultados positivos para o Brasil. O governo brasileiro provavelmente retaliaria e imporia tarifas recíprocas às importações provenientes dos EUA. Além disso, o dólar valorizado em relação ao real encarece ainda mais as nossas importações.

É uma chance de investir na produção doméstica e colocar efetivamente em prática o plano de reindustrialização de Lula, que ainda deixa muito a desejar e não pretende, de fato, reverter a destruição histórica da indústria nacional pela implantação do neoliberalismo – que segue sendo o pilar da estrutura econômica brasileira. O incentivo do Estado ao mercado interno também poderia contrabalançar as vantagens dos produtores locais em exportar com o dólar mais caro, para que comercializem mais dentro do Brasil e não aumentem os preços para os consumidores brasileiros.

Além disso, é uma chance para elevar o nível da diversificação das relações comerciais do Brasil. Os países BRICS são parceiros com os quais boa parte do comércio com os EUA, desigual há anos e afetado pelas medidas de Donald Trump, poderia ser substituída. O Mercosul e os demais vizinhos também poderiam cumprir um papel importante nessa diversificação, bem como as nações asiáticas, levando em consideração que o porto de Chancay, no Peru, já está em funcionamento, e que ele poderia ser ligado por trem e rodovias com o porto de Santos.

Se o acordo Mercosul-UE não tivesse o mesmo caráter das relações históricas com as potências capitalistas, também poderia servir ao Brasil para reduzir a dependência dos EUA. Analistas consultados pelos jornais brasileiros têm mesmo previsto que vários produtos que até agora são vendidos aos EUA deverão ser destinados à China e à Europa.

No mesmo período (2009-2024) em que teve um déficit de quase US$ 70 bilhões com os EUA, o Brasil teve com a China um superávit de mais de US$ 300 bilhões. Em 2019, o saldo comercial com a China chegou a representar 83% do saldo total do Brasil em sua balança comercial com o mundo, conforme estudo de Pedro Garrido da Costa Lima para a Câmara dos Deputados.

Porém, devido à implantação do neoliberalismo, a qualidade das exportações caiu (74% eram produtos da indústria de transformação em 1997, mas em 2022 eram apenas 22,5% do total, com mais de 37% sendo da agropecuária e 40% da indústria extrativa). Por isso a urgência da reindustrialização, a fim de que não apenas haja uma diversificação de parceiros, mas também uma qualificação do comércio.

Mais do que tudo, no entanto, a diversificação e qualificação das relações comerciais tem um papel estratégico na geopolítica brasileira. Os EUA sempre trataram o Brasil – bem como toda a América Latina, mais ainda do que o resto do mundo – como uma colônia. Não só do ponto de vista comercial, senão também político e cultural. Mas isso só é possível porque dominam as nossas relações econômicas.

Se o Brasil quiser ser um país realmente independente, precisa necessariamente deixar para trás essa relação de subordinação econômica com os Estados Unidos.

*Eduardo Vasco é jornalista. Autor, entre outros livros, de O povo esquecido: uma história de genocídio e resistência no Donbass.

 

A cultura (não) importa? por Michael França

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Limitações na forma de pensar podem ser tão restritivas quanto a falta de recursos

Michael França, Ciclista, vencedor do Prêmio Jabuti Acadêmico, economista pela USP e pesquisador do Insper. Foi visiting scholar nas universidades de Columbia e Stanford.

Folha de São Paulo – 24/12/2024

A cultura molda não apenas quem somos mas como vemos o mundo e como tomamos decisões. Ela não se limita a tradições, mas também reflete o conjunto de valores, expectativas e maneiras de pensar que são transmitidos de uma geração para outra.

Ela representa um senso de identidade e de pertencimento que dá aos indivíduos um significado. Ao mesmo tempo, ela também pode moldar nossas decisões de uma forma que nos impeça de avançar em certos caminhos. Isso tende a ser particularmente impactante para aqueles que vivem em comunidades marginalizadas, lugares onde o peso de uma história de exclusão se faz presente a todo momento.

É um peso que sussurra a todo momento em seus ouvidos: “Conforme-se com sua realidade, é assim que é a vida”. “Pessoas como nós nasceram para ficar à margem.” “Não seja ambicioso para não se frustrar.” “Não vale a pena tentar. Isso não é para você.” “Você não é digna de valor e respeito.” “Você tem a cor da servidão.”

Nesse contexto, tem-se que, quando uma pessoa cresce ouvindo que certos caminhos “não são para ela”, a cultura se torna um eco de nossas barreiras estruturais, refletindo-se em uma fonte psicológica de limitações que, em muitos casos, tende a ser até mais poderosa do que as restrições de recursos.

Talvez você faça parte do seleto grupo de nossa sociedade que não tenha ouvido, ano após ano, mensagens limitantes semelhantes, e tudo bem. Você não tem culpa de ter ganhado na loteria do nascimento.

Entretanto, quero que você compreenda que, quando mensagens desse tipo se repetem e quando crenças negativas se enraízam, não é difícil imaginar como isso vai afetar as escolhas. E aqui também não se trata de culpar a cultura pela pobreza ou pela desigualdade, mas de entender como estruturas profundamente arraigadas, como o racismo, o machismo e a negligência institucional, moldam e perpetuam a própria cultura.

Essas estruturas não operam isoladamente. Elas influenciam valores, comportamentos e até mesmo as narrativas que valorizamos e que contamos sobre nós mesmos e sobre o mundo ao nosso redor. No fundo, tem-se que o que uma pessoa almeja não surge do nada, mas representa o fruto de uma construção forjada pelas expectativas que ela ouve desde a infância, pelos exemplos que observa em sua comunidade e pela maneira como o mundo ao seu redor valida ou invalida suas ambições.

As conversas que temos, os gestos que nos são mostrados e os modelos sociais a que temos acesso criam as bases sobre as quais construímos nossos ideais de possibilidades e limites. Uma criança que cresce em um lugar onde o sucesso é visível, alcançável e incentivado tende a acreditar mais em si mesma e visualizar que seus sonhos podem se realizar. Entretanto, aquelas que são expostas constantemente a mensagens de fracasso, exclusão ou desvalorização tendem a internalizar a ideia de que seus desejos não são alcançáveis ou até mesmo que são irrelevantes.

A história das aspirações humanas é também a história das oportunidades que lhes são negadas ou permitidas. Em um país em que, para muitos, as oportunidades são escassas, tem-se que milhares aprenderam apenas a se adaptar ao contexto.

 

As perdas e os danos do pacote fiscal, por Adriana Fernandes

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O que o Executivo quis era insuficiente, o Congresso achou muito duro e reduziu as medidas, o Judiciário não fez nada

Adriana Fernandes, Jornalista em Brasília, onde acompanha os principais acontecimentos econômicos e políticos há mais de 25 anos

Folha de São Paulo -24/12/2024

O mercado financeiro queria muito mais do que o governo Lula apresentou no pacote de contenção de gastos. O que o Executivo quis era insuficiente. O Congresso achou muito duro o que o governo apresentou e reduziu as medidas. O Judiciário não fez nada e disse nem vem não tem.

Esse é o balanço final da tentativa da equipe econômica de buscar uma solução para a crise de crescimento da política fiscal brasileira com medidas de redução do crescimento das despesas.

A votação do pacote de contenção de gastos escancarou como nunca o impasse que vive a sociedade brasileira e mostrou que, sem um amplo diálogo em 2025, o Brasil não sai da crise.

A cotação do dólar pode até recuar um pouco, mas o problema continuará como um fantasma a ameaçar a continuidade do crescimento da economia brasileira de forma sustentável e sem taxas de juros exorbitantes para controlar a alta da inflação.

O ministro Fernando Haddad (Fazenda) retratou a situação como uma disputa entre a direita, que não quer pagar o imposto que deve, e a esquerda, que não quer cortar gastos.

“Como é que fecha a conta?”, questionou ele, na sexta-feira (20), quando procurou mostrar que brigou para o Congresso não desidratar o pacote. O dilema, porém, é maior do que essa polarização também no campo das contas públicas.

A direita também não quis aprovar, por exemplo, medidas duras no BPC (Benefício de Prestação Continuada) para idosos e pessoas com deficiência —uma pauta da esquerda. Já a esquerda descartou medidas de retirada de gastos tributários que acabam beneficiando grupos privilegiados que estão na direita.

O impasse mostrou que existem outras vertentes sobre a agenda de corte de gastos, além da resistência da ala do governo que derrubou as medidas mais duras de Haddad.

Enquanto o Executivo entregou um projeto mal comunicado, misturado com várias coisas e tido como insuficiente, o Congresso e o Judiciário mostraram que não têm nenhuma predisposição ou tolerância para fazer alguma coisa mais forte.

Ninguém no governo Lula vai ter coragem de falar isso em voz alta, mas o Judiciário foi coagido a dar sua contribuição —ao final, porém, fez pressão corpo a corpo no plenário do Congresso para que as medidas de restrição ao supersalários fosse esvaziada.

Os parlamentares, que estavam com raiva do STF (Supremo Tribunal Federal) em razão das emendas parlamentares, aceitaram. A medida dos supersalários, que era uma agenda moralizadora e apoiada pela sociedade civil, caiu por terra mais uma vez no plenário do Congresso. Por que será?

É curioso que o país tenha chegado a uma situação de deterioração tamanha do preço dos ativos e as respostas não tenham sido dadas por quem estava cobrado. No passado, não foi assim nos momentos mais difíceis. Houve reação.

Há um negacionismo da crise pela falta de compreensão do que está acontecendo na economia. O preço atual dos ativos não é bom para a população, a atividade econômica e as principais empresas do setor real. Não é bom nem para os bancos.

Se não existir algum tipo de acordo em resposta à crise, o impasse continuará e o cenário poderá piorar.

 

Ainda há lugar para a esperança? por Leonardo Boff

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 Leonardo Boff – A Terra é Redonda – 21/12/2024

A vida visível, assim como a conhecemos, corre risco de desaparecer, à semelhança das grandes dizimações do passado

Considerando os pronunciamentos do Secretário Geral da ONU, António Gutérrez, percebemos que em todos os grandes encontros com autoridades estatais e empresários, está mais e mais agravando os tons sombrios de suas advertências: chama atenção de que ou assumimos todos a nossa responsabilidade comum, face à degradação ecológica do planeta ou então conheceremos um suicídio coletivo.

Suas palavras carregam especial peso, pois, por sua função diante de um organismo mundial, acompanha o dia a dia do curso do mundo e a gravidade dos problemas. Dá-se conta, com clara consciência, de que não estamos, como coletividade, fazendo o suficiente e o necessário para enfrentarmos as mudanças que estão ocorrendo no planeta Terra. Como nunca antes na história, o destino está em nossas mãos. Não que a Terra vai acabar. Poderá acabar ou ser letalmente afetado o milagre maior da evolução, a vida em sua imensa diversidade, a nossa incluída.

A vida visível, assim como a conhecemos, corre risco de desaparecer, à semelhança das grandes dizimações do passado quando entre 75-90% da carga biótica desapareceu. Mas nós não estávamos lá. Somente milhões de anos após entramos no cenário da história evolutiva. Agora a crise é planetária. Estamos profundamente metidos na extinção em massa de organismos vivos, nós incluídos. Fala-se de uma nova era geológica, a do antropoceno, do necroceno e, por fim, do piroceno.

A mim impressionam os testemunhos de duas figuras da maior seriedade científica. O primeiro é de Max Weber (1864-1920) pouco tempo antes de sua morte. Exímio conhecedor de como funcionam as sociedades, por fim, ao confrontar-se com o conjunto de sua obra e com algumas intuições do marxismo (em fim), nos advertiu: “O que nos aguarda não é o florescimento do outono, nos aguarda uma noite polar, gélida, sombria e árdua”.[1] Ele cunhou a expressão forte que atinge o coração do capitalismo: ele esta encerrado numa “jaula de ferro”(Stahlhartes Gehäuse) que ele mesmo não consegue romper e, por isso, nos pode levar a uma grande catástrofe.[2]

O outro testemunho nos vem de um dos maiores historiadores do século XX. Eric Hobsbawn (1917-2012) em seu conhecido livro-síntese A Era dos Extremos concluindo suas reflexões pondera: “O futuro não pode ser a continuação do passado… Nosso mundo corre o risco de explosão e implosão… Não sabemos para onde estamos indo. Contudo uma coisa é clara. Se a humanidade quer ter um futuro que vale a pena, não pode ser pelo prolongamento do passado ou do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio sobre esta base iremos fracassar. E o preço do fracasso ou seja, a alternativa para a mudança da sociedade é a escuridão” (p.562). Não estamos operando nenhuma mudança paradigmática da sociedade.

Convenhamos: tais juízos de pessoas altamente responsáveis devem ser ouvidas. Com acerto asseverou o Papa Francisco em sua encíclica dirigida a toda a humanidade e não só aos cristãos, Sobre o cuidado da Casa Comum (2015): “as previsões catastróficas já não se podem olhar com desprezo e ironia. Às próximas gerações, poderemos deixar demasiadas ruínas, desertos e lixo… nosso estilo de vida atual, por ser insustentável, pode desembocar em catástrofes” (n.161). Na encíclica Fratelli tutti (2020) radicaliza sua advertência ao afirmar: “estamos todos no mesmo barco; ou nos salvamos todos ou ninguém se salva” (n.34). E não há um barco paralelo para o qual pular e nos salvar.

Neste contexto sinistro foram elaborados, entre outros menores, três documentos que procuram, no meio da obscuridade, nos infundir uma luz de esperança: a Carta da Terra (2000), as encíclicas do Papa Francisco Sobre o cuidado da Casa Comum (2015) e a outra Fratelli tutti (2020).

Carta da Terra, fruto de uma ampla consulta mundial, sobre valores e princípios, capazes de nos garantir a vida no futuro, afirma com esperança: “Nossos desafios ambientais, econômicos, políticos, sociais e espirituais estão interligados e juntos podemos forjar soluções includentes (Preâmbulo d). E aponta caminhos e meios de salvamento.

Na encíclica Sobre o cuidado da Casa Comum o Papa nos lembra que somos Terra (n.2), com o imperativo ético de ouvir simultaneamente o grito da Terra e o grito do pobre (n.49); nossa obrigação é comprometermo-nos na preservação e na regeneração do planeta, pois “tudo está relacionado e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs numa peregrinação maravilhosa que nos une também com terna afeição ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão rio e à Mãe Terra” (n,92). Nossa missão é guardar e cuidar desta herança sagrada, hoje ameaçada.

Na encíclica Fratelli tutti confronta dois paradigmas, o do dominus (dono) com o do frater (irmão/irmã)Pelo dominus, o ser humano, se entende fora e acima da natureza, como senhor e dono dela; usando o poder da tecno-ciência tornou mais confortável a vida, mas ao mesmo tempo, levou à atual crise devastadora dos ecossistemas e ao princípio de autodestruição com armas, capazes de liquidar a vida na Terra.

A este paradigma o Papa apresenta na encíclica Fratelli tutti, o da “fraternidade universal”: com todos os seres da natureza, criados pela Mãe Terra e entre nós seres humanos, irmãos e irmãs junto com os da natureza e no meio dela, cuidando-a e garantido sua regeneração e perpetuidade em benefício das presentes e futuras gerações. Essa fraternidade universal se constrói de forma sustentável a partir do território (bioregionalismo), portanto, debaixo para cima, garantindo algo novo e alternativo ao sistema dominante que, a partir de cima, impõe uma dupla injustiça, contra a natureza devastando-a e contra os seres humanos, relegando-os em sua grande maioria na pobreza e na miséria.

Isso garante um lugar para a esperança? É o que cremos e esperamos. Mas o fato doloroso é que, como dizia Hegel (1770-1831), aprendemos da história que não aprendemos nada da história, mas aprendemos tudo do sofrimento.

Prefiro a sabedoria do africano Santo Agostinho (354-430): a vida nos dá duas lições: uma severa, do sofrimento e outra agraciada, do amor que nos leva fazer atos criativos e inusitados. Provavelmente iremos aprender do sofrimento que virá, mas muito mais do amor que “move o céu e todas as estrelas” (Dante Alignieri) e nossos corações. A esperança não nos defraudará assim nos prometeu São Paulo (Rom 5,5).

*Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Cuidar da Casa comum: pistas para protelar o fim do mundo (Vozes).

Notas

[1] Le savant et le politique, p. 194.

[2] Cf. a pertinente análise de M.Löwy, La jaula de hierro: Max Weber y el marxismo weberiana, México, 2017.

 

‘Claramente, há uma reação exagerada do mercado financeiro’, afirma Eduardo Giannetti

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Economista e filósofo diz que números fiscais do Brasil são preocupantes, mas não calamitosos; ele critica alta dos juros e ‘dominância que o mercado financeiro exerce na formação das expectativas’

Luiz Guilherme Gerbelli – O Estado de São Paulo – 23/12/2024

O economista e filósofo Eduardo Giannetti avalia que há uma reação exagerada do mercado financeiro com os números da economia brasileira. No fim deste ano, a incerteza sobre o futuro das contas públicas do País levou o dólar para a casa de R$ 6,30 e fez os juros futuros dispararem.

“Claramente, há uma reação exagerada do mercado financeiro”, afirma. “Os indicadores fiscais brasileiros, embora preocupantes, não são calamitosos. Longe disso. Nós não estamos na beira de nenhum precipício fiscal.”

Em entrevista ao Estadão, Giannetti critica a alta dos juros ― em seu último encontro, o Comitê de Política Monetária (Copom) aumentou a Selic em 1 ponto porcentual ― e avalia que o País enfrenta uma dominância do mercado financeiro “na formação das expectativas e no ambiente do debate público brasileiro”.

“O mercado financeiro é extremamente exigente quando se trata de pedir cortes de gasto primário, mas ele é completamente omisso quando se trata de trazer à tona o custo fiscal de um aumento extravagante de juros como esse que nós estamos vivendo no Brasil”, diz.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Como o sr. analisa essa piora dos ativos e até onde essa piora pode chegar?

Quando a gente conversou no ano passado, a minha avaliação era a de que o governo Lula tinha ganho a batalha das expectativas do primeiro ano do mandato. Podemos dizer, agora, que o governo Lula perdeu a batalha das expectativas no segundo ano do mandato. O termômetro dessas expectativas no regime de macroeconomia, como nós temos hoje no Brasil, é a taxa de câmbio. Quando as expectativas se deterioram, o real desvaloriza. Quando as expectativas melhoram, o real valoriza. Os milhares de agentes econômicos compram ou vendem papéis denominados em real dependendo do estado das expectativas. E as expectativas se deterioraram, especialmente, no segundo semestre de 2024.

Na avaliação do sr., o que motivou essa deterioração?

É uma conjunção de muitos fatores que se combinam. É fato que o dólar se valorizou em todo mundo, especialmente nos mercados emergentes. Portanto, o ambiente externo não foi benéfico, embora, no ano passado, mesmo com os juros americanos mais altos, nós tenhamos assistido a uma apreciação do real, porque o governo foi bem ao apresentar o arcabouço fiscal e a proposta de reforma tributária. Mas o fato também é que a desvalorização do real este ano foi muito além do que aconteceu com as outras moedas relevantes do mundo emergente. Nós vivemos uma desvalorização do real que extrapolou muito o padrão do mundo. E aí nós temos que obrigatoriamente olhar para fatores domésticos, exacerbado nesse movimento.

E o sr. poderia detalhar esses fatores domésticos?

Um fator de primeiríssima ordem, sem dúvida, é o desapontamento com a proposta de corte de gastos apresentada pelo governo. Houve vários problemas. O primeiro e grave é que o governo tentou escamotear o corte de gastos com apresentação de cunho ― e eu posso dizer ― político-eleitoral da proposta de reforma do Imposto de Renda com a exceção para quem ganha até R$ 5 mil. O problema dessa proposta, entre outros, é que, se o lado da isenção é líquido e certo, o lado da arrecadação compensatória dessa isenção é extremamente complicado de implementar. Ficou uma assimetria que gera muito ruído. Mas isso é uma parte. A outra parte é que o que o Haddad apresentou, embora correto, é claramente insuficiente para endereçar a questão do cumprimento do arcabouço fiscal nos próximos anos. Ele anunciou medidas muito pontuais, quase conjunturais. Não disse nada a respeito dos problemas de fundo do nosso desequilíbrio estrutural.

Quais são esses problemas de fundo?

São, essencialmente, três. A vinculação de todas as despesas sociais ao reajuste do salário mínimo, que tem um impacto automático de enorme magnitude nos gastos públicos, ainda mais num governo que não abre mão de uma política de valorização do salário mínimo, que, em si, me parece até justificável. Mas atrelar isso a toda família de benefícios sociais e previdenciários é devastador para as contas públicas. São também as despesas obrigatórias, especialmente, saúde e educação, que crescem também de acordo com a arrecadação e tem um crescimento orgânico. Por fim, os gastos tributários, as isenções que o governo oferece para grupos que se beneficiam de regimes tributários especiais. Se nós não endereçarmos essas três questões, o problema estrutural das contas públicas continuará na corda bamba. E a cada ano nós vamos ter de fazer medidas duvidosas e muito sofridas em alguns casos para conseguir manter minimamente uma expectativa de que o arcabouço fiscal vai ser cumprido.

O arcabouço perdeu credibilidade?

Eu não acho que o arcabouço fiscal está terminado e enterrado, como foram enterrados a Lei de Responsabilidade Fiscal e o teto de gastos, mas eu diria que está na UTI, respirando por aparelhos. E o governo vai ter de apresentar alguma coisa mais consistente para recuperar a credibilidade desse arcabouço fiscal. Agora, vamos colocar as coisas em perspectiva. Claramente, há uma reação exagerada do mercado financeiro.

Por que o sr. vê um exagero?

Entra nisso um elemento especulativo. Agentes poderosos do mercado financeiro adoram volatilidade, porque é dessa forma que ganham dinheiro. Os indicadores fiscais brasileiros, embora preocupantes, não são calamitosos. Longe disso. Nós não estamos na beira de nenhum precipício fiscal. Eu acho que houve também um fato que o presidente do Banco Central (Roberto Campos Neto) apontou e é relevante: o movimento intenso de remessa de dividendos das empresas transnacionais que atuam no Brasil para suas matrizes. O que não deixa de representar um fato positivo, que é o fato de que elas tiveram bons resultados no Brasil este ano. Estão podendo mandar dinheiro para as matrizes. Isso também pressionou o câmbio.

E se a gente olhar para a economia real, os indicadores deste ano são positivos. Tivemos um crescimento do PIB da ordem de 3,5%, sendo que, no início do ano, a previsão era de 1%, 1,5%. Veja como o mercado financeiro erra para mais ou para menos nas suas projeções, nas suas expectativas. Criamos 3 milhões de empregos. Metades dos quais na economia formal. As nossas contas externas permanecem muito sólidas e equilibradas, tanto pelo resultado da balança comercial como pelo investimento direto estrangeiro. Não temos, portanto, nenhum tipo de vulnerabilidade externa. O que me causa uma certa estranheza é a dominância que o mercado financeiro exerce na formação das expectativas e no ambiente do debate público brasileiro, o que acaba exacerbando esses movimentos.

Como o País sai dessa situação, então?

Primeiro, o governo deixando de dar informações desencontradas e unindo o discurso. Eu acho que está mais do que na hora de o presidente da República fazer um pronunciamento sólido de que a questão fiscal não será desconsiderada e que o compromisso é sério. E que, se for o caso, existem instrumentos de contingenciamento que permitem cumprir o arcabouço fiscal nos próximos dois anos. E isso tem de ficar muito claro que será implementado. Eu acredito também que está na hora de começarmos a discutir mais seriamente os três temas que eu mencionei que endereçam de maneira mais permanente o desequilíbrio fiscal brasileiro. Era tabu discutir a reforma da Previdência no Brasil. Essa discussão amadureceu e a reforma acabou sendo aprovada ― ainda que não seja suficiente para um tempo indefinido ― de maneira amadurecida. Nós não podemos interditar o debate em torno dos três temas estruturais.

Mas o que vimos foi o cenário de crise econômica. Os indicadores da economia real estão bons, mas os indicadores dos mercados apontaram para um cenário difícil, com a disparada do dólar e dos juros futuros. Qual é o cenário que o sr. vê daqui em diante?

Ninguém tem como antever mercados que são tão volúveis como são os mercados de alta frequência, o mercado de câmbio, o mercado de Bolsa, o mercado de títulos e de juro futuro. Eu tendo a crer que, se prevalecer um mínimo de bom senso, teremos uma acomodação. Agora, uma coisa eu digo: esse juro no patamar em que está não pode permanecer por muito tempo, porque ele leva a nossa dívida pública para um caminho insustentável e explosivo. Eu acho que faltou muito, no debate, um ponto ― e aí eu lembro aquele meu ponto da dominância do mercado financeiro na formação das crenças em relação à economia ― de enfatizar a extravagância fiscal que um aumento da Selic e no patamar em que está e o que representa.

Qual é o custo fiscal desse aumento?

É um número que não é fácil de estimar e a gente tem ouvido informações muito desencontradas. Quanto custa para os cofres públicos o aumento de 1 ponto porcentual na Selic se ele for mantido durante um ano? Não é o número simples, porque não é todo o estoque da dívida pública que é remunerado pela taxa Selic. É apenas uma fração. Numa estimativa conservadora, nós estamos falando de um valor ao redor de R$ 30 bilhões por ano. Veja só: em uma reunião do Copom, o gasto público aumenta um montante equivalente a toda promessa de contenção de gastos daquele pacote tão sofrido que o Fernando Haddad anunciou. O aumento de juros primários no Brasil, de agosto para cá, supera em termos de gasto público largamente o valor total previsto de contenção nos próximos dois anos anunciado pelo governo.

Agora, nessa hora ninguém lembra. O mercado financeiro é extremamente exigente quando se trata de pedir cortes de gasto primário, mas ele é completamente omisso quando se trata de trazer à tona o custo fiscal de um aumento extravagante de juros como esse que nós estamos vivendo no Brasil. Hoje, estamos gastando algo em torno de 6% do PIB, 7% do PIB com juros. Nenhum país sustenta e aguenta por muito tempo uma conta dessa. Sem falar do impacto altamente regressivo na distribuição de renda, que significa uma transferência de um valor dessa ordem para quem tem poupança financeira neste país.

O sr., então, acha que seria possível não aumentar tanto os juros como o Banco Central está subindo e indicando?

Existem dois tipos de erro na condução da política monetária. Um é o erro de sinal, e o outro é o erro de dosagem. No período recente, o erro mais inequívoco de sinal foi no governo Dilma. Por influência política da Dilma, numa época em que o Banco Central não era formalmente independente, o governo e o Banco Central reduziram os juros quando precisavam aumentar. Isso é um erro de sinal, e as consequências nós vimos. A inflação brasileira subiu às alturas, o governo meteu os pés pelas mãos tentando controlar preços e foi aquele festival de horrores do final do governo Dilma.

Eu acredito que hoje há um erro de dosagem. Nós aumentamos demais o juro, depois demoramos para reduzir o juro e, quando reduzimos, reduzimos menos do que poderíamos ter reduzido. E agora, na minha opinião, estamos sendo mais realistas que o rei. Esse último momento de juro do Banco Central surpreendeu o próprio mercado financeiro, que estava com uma expectativa um pouco menor.

Agora, aí é um jogo de credibilidade. Colocando-me do lado do Banco Central, eu posso interpretar como uma tentativa de estabelecer uma credibilidade que lhe permita, um pouco mais à frente, voltar a ter uma política monetária menos agressiva.

O sr. disse da necessidade de novas medidas adicionais, mas há uma leitura de enfraquecimento do ministro Haddad. Essas medidas são possíveis ainda?

A minha leitura é de que o Haddad não está enfraquecido e não vai se enfraquecer. Eu acho que o presidente Lula tem plena ciência de que, se a situação já está difícil com o Haddad, ela vai piorar ainda mais sem o Haddad. E ele é um laço, um fiador de algum grau de compromisso com a responsabilidade fiscal no Brasil. O que seria uma alternativa à equipe do Haddad no governo Lula hoje? Seria o PT. E aí, apertem os cintos, a Argentina é logo ali.

Muitos analistas têm comparado este governo do Lula com a gestão Dilma. No mundo real, o sr. acha que este governo é parecido com Lula 1, Lula 2, Dilma 1 ou Dilma 2?

No primeiro ano, eu acho que o governo ganhou a batalha das expectativas. A reforma tributária é um feito importantíssimo e a gente não pode subestimar isso. Estamos há mais de 30 anos discutindo a reforma tributária no Brasil. O governo Bolsonaro passou inteiro sem que sequer apresentasse uma proposta de reforma tributária, e o governo Lula, no primeiro ano de mandato, apresentou, negociou e encaminhou ao Congresso uma bela proposta de reforma do imposto sobre o consumo. Temos de reconhecer isso. A paixão partidária não pode prevalecer. Fernando Haddad montou, apresentou e, num primeiro momento, convenceu com o seu arcabouço fiscal. Não é uma coisa heroica. E é bom que não seja, porque, se for muito heroico, sabe-se que não será cumprido, mas encaminhava e mostrava que havia um compromisso com equilíbrio, para que a dívida pública não saísse do controle.

Neste segundo ano, a coisa começou a piorar. Agora, nós estamos muito longe do descalabro que começou no segundo Lula e chegou à plenitude no primeiro governo Dilma. Se o PT assumisse o Ministério da Fazenda, eu acho que nós poderíamos dizer, agora, que estamos de volta ao governo Dilma. E quem conspira contra Fernando Haddad ― ou, pelo menos, desejaria vê-lo enfraquecido ― saiba que está aproximando para uma eventual recaída na aventura que a equipe econômica da Dilma colocou o País. E foi de uma incompetência épica. Eu não economizo adjetivos para descrever a gravidade dos erros, que, de certa maneira, prepararam o terreno para a ascensão do Bolsonaro. O descalabro da Dilma foi o território que deu ao Bolsonaro um caminho para ele chegar aonde chegou.

O sr. citou a necessidade de o Brasil endereçar questões mais de fundo. Até quando o País aguenta não discutir e resolver a questão das contas públicas de uma vez?

Tem dois caminhos. Ou nós precisaríamos de uma gravíssima crise financeira para a ficha cair. É o caminho da dor. Ou nós teremos maturidade para entender que essa é uma realidade que se impõe. Nós não podemos estar em um sistema em que o dinheiro público é gasto antes de ser arrecadado, em que a margem de manobra do gasto discricionário do governo tende a zero nos próximos anos. Não vai ter dinheiro para investir. Vai haver uma arrecadação para imediatamente entregar o dinheiro já gasto na outra ponta. Não precisa mais de governo. Nós temos de amadurecer essa questão no Brasil. Tem o exemplo da reforma da Previdência. Era um tabu. Foi trazida, foi discutida. É certo que precisou de uma grande crise para ela entrar na pauta, mas a crise aconteceu e ela entrou na pauta. E, quando foi aprovada, havia, na opinião pública, entendimento e aprovação da reforma previdenciária. Isso é raro em qualquer país do mundo. Não dá para continuar com um Orçamento tão absurdamente engessado, rígido e carimbado como a gente tem hoje no Brasil e com tantos privilégios, inclusive, no Congresso e no Judiciário, que ficam totalmente à margem do debate sobre gasto público. Se for mantido o patamar de juros que está telegrafado ao longo do próximo ano, a gente vai para uma situação muito delicada. É um sistema de retroalimentação.

Como assim?

A desconfiança leva à desvalorização, a desvalorização leva à inflação, e a inflação obriga a aumentar os juros. O nome disso é dominância fiscal. Em vez de tranquilizar, o aumento dos juros piora a expectativa, inclusive, a de inflação. Tem um outro ponto, não é uma ação de governo, mas todos nós temos de refletir. É exagerada a presença da visão financeira e de mercado financeiro no debate público brasileiro. Esse aumento de juros que nós vivemos recentemente prejudica enormemente o setor real da economia. E isso passa batido. As empresas que estão endividadas hoje e pagam juros estão tendo perdas, às vezes, por resultado de um enorme esforço de produção e rentabilidade apenas por conta de uma reunião do Copom. Muitas delas vão ter dificuldade para honrar compromissos financeiros. E isso passa batido. O setor real da economia não tem voz no debate brasileiro. O mercado financeiro tem uma dominância e uma hegemonia impressionante na formação de expectativas e no encaminhamento do debate público.

Por que isso ocorre?

O fato é que eles contratam os melhores economistas e que têm presença na mídia. A mídia tem uma preferência por ouvir os economistas do mercado financeiro. O Boletim Focus é mercado financeiro na veia e é um grande elemento de formação de expectativas. E o mercado financeiro, por ser muito volátil, naturalmente atrai a atenção dos formadores de opinião, porque ele está lidando com o mercado de alta frequência que chama muita atenção. É por isso que ninguém fala de demografia. É a coisa mais profunda e importante na vida de uma sociedade, mas, como o movimento é muito lento e difuso no tempo, ninguém discute. Agora, uma mudança no juro e uma desvalorização da moeda são manchetes o tempo todo. Mas eu garanto para vocês que a demografia é muito mais importante do que qualquer mudança de juros e câmbio.

 

Instabilidades cambiais

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Nesta semana, a economia brasileira apresentou grandes instabilidades cambiais, com impactos generalizados para todo o sistema econômico e produtivo, com preocupações sobre os níveis de preços e um crescimento inflacionário.

O noticiário nacional foi dominado pelas dificuldades econômicas pelas quais o governo estava vivenciando, nas redes sociais os embates cresceram de forma acelerada, os defensores do governo anterior destacaram os descaminhos da economia nacional, criticando as promessas do presidente Lula e degradando toda a imagem do governo, com falas deprimente e desrespeitosas….

De outro lado, encontramos os defensores do governo do presidente Lula colocando toda a culpa nos barões do mercado financeiro, os financistas e rentistas, que impulsionaram uma degradação da economia nacional, como forma de garantir seus ganhos imediatos e impedir que o presidente Lula cresça e, em 2026, consiga sua reeleição.

Os donos do capital nunca aceitaram Lula como presidente do Brasil, sempre jogaram pesado com seu nome e patrocinaram todos os grupos sociais e políticos que trabalhavam para a degradação de seu partido político, o Partido dos Trabalhadores (PT).

Ao analisar os indicadores macroeconômicos brasileiros teremos dificuldade para compreender os motivos da desvalorização crescente da moeda nacional, afinal, estamos num ambiente com desemprego em níveis menores desde 2014, superávit comercial de quase 100 bilhões de dólares, investimento externo crescente, renda salarial em franco em ascensão e perspectivas de quase 4% de crescimento do produto interno bruto (PIB), inflação controlada com indicadores em torno de 4,7% neste ano, um pouco superior a meta, mas nada preocupante.

A escalado do dólar impacta fortemente sobre a economia brasileira, afinal a moeda norte-americana é responsável por grande parte das negociações internacionais, responsáveis por grande quantidade do comércio global e os preços dos produtos consumidos e produzidos internamente.

O chamado ataque especulativo deve ser visto como uma situação em que os agentes econômicos e financeiros se utilizam de seus instrumentos para fragilizar os instrumentos das autoridades monetárias e ganhar com a movimentação dos preços dos ativos, garantindo ganhos substanciais e, com certeza, aumento nos rendimentos financeiros.

Ataque Especulativo são instrumentos conhecidos e utilizados para seus para incrementar os lucros, cabendo aos governos nacionais utilizarem seus instrumentos para controlar os ataques, evitando ganhos imediatos que garantam ganhos substanciais em detrimento de outros atores do mercado financeiro.

Oficialmente, os agentes econômicos não gostaram do pacote fiscal anunciado pelo governo federal, acreditando que essas medidas eram tímidas e insuficientes para debelar as inquietações fiscais, neste momento, os mercados se utilizaram de seu poder financeiro para pressionar o governo, desvalorizando a moeda nacional, estimulando a desvalorização da moeda nacional, aumentando os custos produtivos e motivando aumento dos preços relativos.

As medidas solicitadas pelos agentes econômicos eram reduzir o aumento do salário mínimo, reduzir os gastos sociais, principalmente no Benefício de Prestação Continuada (BPC) e o Abono salarial, recursos que impactariam grande parte da população mais carente da sociedade brasileira, estes recursos economizados contribuíram para aumentar as expectativas positivas para a economia brasileira e forçaria uma melhora significativa do ambiente macroeconomia nacional.

De outro lado, essas medidas impactariam fortemente sobre setores que votaram no presidente Lula e reduziriam o potencial político na próxima eleição presidencial e inviabilizaria nestes próximos dois anos de governo e, desta forma, pavimentaria novos grupos políticos ou traria setores vinculados ao governo anterior, liderados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.

Neste momento, nos encontramos numa verdadeira encruzilhada, onde se o governo sinalizar a adoção de medidas dos donos do capital tenderiam a se distanciar dos grupos mais fragilizados da população e os grandes responsáveis pelo retorno do presidente Lula à Presidência da República, uma escolha importante, mas marcada por grandes incertezas e instabilidades.

Nos chamou a atenção a condução da política monetário do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, suas exposições críticas contra a política fiscal do governo federal, suas participações em eventos privados nacionais e internacionais com discursos críticos na condução da política econômica do Ministério da Fazenda, além de posições desconfortáveis nos períodos eleitorais, quando da eleição presidencial de 2022, o presidente da Autoridade Monetário foi votar usando camiseta da seleção brasileira, uma marca muito atrelada ao então governo Bolsonaro e seus posicionamentos com o governador paulista Tarcísio de Freitas, quando se colocou como seu potencial Ministro da Fazenda nas eleições de 2030.

Outro ponto interessante é salientar as atuações do Banco Central do Brasil num momento de desvalorizações cambiais e degradação da moeda nacional, montado em mais de 350 bilhões de dólares a Autoridade Monetário postergou por muito tempo a atuação no mercado de câmbio.

No governo anterior, o mesmo Banco Central atuou no mercado em mais de cem vezes para diminuir as instabilidades cambiais, ao passo que, atualmente, o Banco Central atuou pouquíssimas vezes, até recentemente as atuações ocorreram em apenas uma vez, uma temeridade. Nesta semana, pressionados por grupos mais a esquerda e assustados os impactos negativos para a economia nacional, o Banco Central voltou a atuar no mercado de câmbio e segurando a cotação da moeda nacional.

Estes posicionamentos nos colocam em grandes questionamentos, muitos economistas liberais e ortodoxos defendem a independência do Banco Central, mas uma pergunta que nos parece muitos atual e contemporânea: Independência do Banco Central para quem?

O que percebemos é que a independência do Banco Central está diretamente ligada as questões políticas, pois a independência efetiva nunca se consolidou, o verdadeiro interesse da política de independência da Autoridade Monetária é limitar o poder político dos governos eleitos democraticamente, afinal quem manda e continua mandando são os donos do capital….são eles que empregam posteriormente os atuais diretores do Banco Central, haja vista a origem dos presidentes que sempre vieram da banca privada e posteriormente, retornariam para os postos anteriores, atuando nos bancos Itaú, Santander, Bradesco, Safra….

O ataque especulativo é, na verdade, uma grande política entre os donos do poder econômico e os governantes, neste embate os verdadeiros perdedores são, primeiramente, a população mais pobre e mais desprotegida, depois o governo federal de plantão que percebe sua perda de força política e, os grandes vencedores são sempre os mesmos, os financistas e rentistas. Até quando!!

Ary Ramos da Silva Júnior, Economista, Gestor Financeiro, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Socorristas

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A sociedade internacional nos traz grandes instrumentos de reflexões constantes, vivemos numa comunidade marcada por inúmeras transformações, violências e incertezas, o século XXI está revirando todas as bases sociais, aumentando as incertezas econômicas e confrontos políticos e militares, gerando uma sociedade ingovernável.

Embora saibamos das grandes dificuldades de governar um planeta como a Terra, ainda num momento de transição planetária como a que estamos vivenciando atualmente, precisamos refletir que, ao nos assustarmos com os rumos que a comunidade internacional está passando, precisamos relembrar quem é o verdadeiro governador do planeta Terra, nosso Mestre Jesus. Todas as dificuldades existentes na contemporaneidade, todas as violências em curso, todos os desafios econômicas e sociais, todos eles, são vistos e controlados pelos trabalhadores espirituais liderados pelo nosso governador.

Vivemos numa sociedade centrada por grandes modificações estruturais, a tecnologia nos abre novos horizontes para a comunidade, criando oportunidades, negócios inexistentes anteriormente passaram a moldar a sociedade global, mas ao mesmo tempo estão criando novos constrangimentos no cotidiano, desagregação familiar, medos profissionais, mercados de crenças, picaretagens constantes, violências reais e imaginárias, cobranças crescentes e instabilidades emocionais, tudo isso caracteriza as bases da contemporaneidade.

A palavra socorro nos remete a algumas explicações utilizadas constantemente, no dicionário encontramos como definição aquilo que se dá para auxiliar ou socorrer alguém; esmola, auxílio, benefício, ajuda ou assistência a alguém que se acha em situação de perigo, desamparo, doença etc. Diante destas definições, percebemos que os socorristas são pessoas dotadas de grande solidariedade e que se utilizam de suas capacidades para auxiliar pessoas ou comunidades em momentos de crises, desesperanças ou degradações.

Neste espaço, gostaria de refletir sobre um ator fundamental na comunidade terrestre e espiritual, um ator pouco conhecido pelos indivíduos da sociedade mundial, cujo papel é imprescindível para equilibrar os ambientes dos mundos material e imaterial. Esse ator descrito no artigo é o grupo dos chamados de socorristas, um grupo altamente qualificado que trabalha no entorno da comunidade espiritual prestando socorro para todos os indivíduos ou grupos de indivíduos que passam para o mundo espiritual, no momento de grandes inquietações, medos e dificuldades, esses atores auxiliam as pessoas no momento do desencarne, um momento que todos sabemos que vamos passar, mas não sabemos quando teremos que passar, um momento de incertezas e preocupações crescentes que aumentam com o passar dos anos, muitos acreditam que o momento acontecerá no envelhecimento, mas muitos indivíduos desencarnam em tenras idades ou na meia idade, não temos condições de definir, mas sabemos que todos, todos mesmo, vamos passar no momento correto definido por Deus.

A Doutrina Espírita nos traz grandes reflexões e ensinamentos para compreendermos a vida, a importância do amor e da solidariedade, afinal nascemos em sociedade, vivemos e nos desenvolvemos ao lado de outros seres humanos, ninguém cresce e se desenvolve sem a vivência social com outros indivíduos, neste momento, onde os valores do capitalismo contemporâneo se concentra no imediatismo, no individualismo e no lucro monetário, o Espiritismo deve ser visto como um verdadeiro oásis de reflexão individual e preparação da convivência em comunidade.

Os socorristas nos mostram a importância da solidariedade humana, em momentos de incertezas imediatas seu trabalho é um grande divisor de águas para a comunidade, por isso, sua relevância é tão grande e sua valorização tão importante para compreendermos a coexistência social e espiritual, afinal somos espíritos que estamos em estágio no corpo material.

A Doutrina dos espíritos nos brinda com inúmeros livros, revistas, entrevistas, artigos, filmes e documentários que nos mostram cenas interessantes e situações cotidianas que retratam a vivência no mundo espiritual, cenas de experiências em outras encarnações, os desafios dos seres humanos, os ensinamentos transformadores, os valores mais valorosos e os exemplos trazidos na passagem do Mestre Jesus.

No livro “Memórias de um suicida”, de Yvonne Pereira, encontramos reflexões importantes sobre o trabalho dos socorristas, a obra aborda os trabalhos desenvolvidos pela Legião dos Servos de Maria, trabalhadores do Instituto Correcional Maria de Nazaré, que são responsáveis pelo auxílio dos espíritos trazidos para o instituto, estes espíritos estavam muito comprometidos com energias negativas, trajetórias de grandes equívocos, comportamentos degradantes e dificuldades de compreensão a realidade cotidiana, no momento eram espíritos muito comprometidos com desequilíbrios e o trabalho dos socorristas foi fundamentais para melhorar a compreensão daquele momento marcado por grandes desajustes e negatividades.

Na atuação dos socorristas, percebemos uma personalidade forte e envolvente destes trabalhadores do Instituto Correcional Maria de Nazaré, força física, assertividade, firmeza e empatia são traços sublimes e verdadeiros dos chamados Legião dos Servos de Maria, afinal, muitos dos socorridos eram indivíduos dominados por uma trajetória de rancores, ódios e ressentimentos.

Na obra, a Legião dos Servos de Maria era destacada para monitorar o umbral, local marcado por grandes dores e desequilíbrios, observando o comportamento destes espíritos, monitorando seus passos e atuando no momento que os orientadores do Instituto autorizassem o resgaste, um momento de esperança para muitos e frustrações para outros.

Muitos espíritos estavam revoltados e ao verem as movimentações dos socorristas, acreditavam que seriam resgatados, alguns eram liberados e levados para o Instituto, agora, outros não conseguiam o resgaste, pois não estavam preparados para esta empreitada, não queriam largar suas “liberdades” ilusórias e teimavam em fugir das realidades paralelas que viviam, gostavam de prazeres imediatos, se empanturrando com sexos, alucinógenos, alimentos e paixões descontroladas.

Na contemporaneidade, encontramos inúmeros exemplos de intervenções dos socorristas, atuando fortemente em prol da redução dos desesperos dos espíritos, muitos desesperados no momento da morte, quando se deparam em uma realidade jamais imaginada, indivíduos dotados de grande poder político e econômico, pessoas de posses materiais que nunca vislumbraram a possibilidade da existência de ambientes imaterial ou espiritual, pessoas que acreditavam na existência de um juízo final, um momento onde um Deus juntaria, no mesmo local e na mesma data, todos os seus filhos para um verdadeiro julgamento final, onde os bons seriam levados para um verdadeiro céu, sem maldades e avessos a violências variadas. Aos que não foram aprovados, ou foram reprovados por comportamentos equivocados e distantes dos valores cristãos, seriam levados para uma outra localidade, um verdadeiro inferno, onde teriam oportunidades para purgar seus desequilíbrios mais íntimos e pessoais.

No mundo atual encontramos guerras fratricidas que destroem a humanidade, armas bélicas dotadas de grande capacidade de destruição, além de trilhões de dólares despejados em pesquisas científicas para o desenvolvimento de novos armamentos, drones, caças e softwares destrutivos que espalham mortes e degradações para todas as regiões do mundo. Neste ambiente, marcado por grandes devastações militares, encontramos mais de cem conflitos militares na contemporaneidade, exigindo, dos socorristas uma atenção constante, observando os comportamentos dos combatentes e de seus governos, afinal, num momento de insanidade que perpassam estas nações, uma nova arma ou um novo armamento, podem impulsionar mais destruições, matando milhares de pessoas, destruindo famílias e localidades.

Os responsáveis pelas destruições militares acabam criando um rastro de devastações constantes, espalhando mortes, rancores e ressentimentos generalizados, gerando amarguras, tristezas e violências que se espalham todos os dias. Neste cenário, os grandes ganhadores são aqueles que investem em indústrias militares, seus acionistas e todos que ganham com este mercado da morte e da destruição. Ao chegarem ao mundo espiritual, terão que arcar com suas escolhas, terão ainda que prestar contas a verdadeira justiça, aquela que não protege um ou outro em decorrência dos valores materiais e dos cifrões acumulados no decorrer da experiência no mundo material.

O livro “Memórias de um suicida” nos traz ênfase no trabalho dos socorristas, nos mostrando que o mundo espiritual é dotado de grande organização, com variados grupos e setores que se estruturam para melhor servir os espíritos em desespero, para isso, os socorristas são muito bem-preparados, qualificados, capacitados e supervisionados pelos superiores no mundo espiritual, dando todo o suporte técnico, emocional e espiritual para que desenvolvam seu trabalho.

No momento do socorro espiritual, os socorristas precisam dispor de capacidade técnica, emocional e espiritual para auxiliar aqueles que se encontram em desespero, espíritos que acordam num outro local, sem pessoas conhecidas e sem compreensão das dificuldades imediatas. Como nos disse Francisco Cândido Xavier, grande parte dos indivíduos que desencarnaram ainda não conseguiram compreender a sua nova realidade imediata, entrando em desespero, gritando e bradando contra Deus, terceirizando suas responsabilidades pessoais.

Quantos espíritos, ao se depararem com a chegada do seu desencarne, se dizem surpreendidos na existência da vida espiritual, acreditando na existência de uma única vivência no mundo material e rechaçavam, no mundo material, a possibilidade da chamada reencarnação. Estes espíritos entram em desequilíbrio quando se deparam com uma nova realidade, mais imaterial, mais individual e, ao mesmo tempo, mais consistente e organizada.

Gostaria de destacar, ainda, uma reflexão que faço constantemente em meus estudos e nos meus escritos espíritas, em mais de trinta anos de trabalho sistemático nesta doutrina, poucas vezes eu tive a oportunidade de assistir uma palestra efetiva sobre a importância dos espíritos socorristas, seu papel imprescindível para compreender a justiça, o amor e a solidariedade de Jesus, nosso governador do Planeta Terra, nosso modelo e guia, o espírito mais desenvolvido que encarnou no mundo material.

Embora, percebamos que o papel dos socorristas é imprescindível, percebemos que muitos preferem uma reflexão mais consistente de outros atores mais conhecidos, mais renomados e mais queridos. Neste artigo, gostaria de ressaltar a importância do trabalho dos socorristas, seu trabalho de socorro espiritual é central, afinal, quantos de nós, que vivemos numa sociedade centrada no individualismo, no imediatismo, no narcisismo e no enfoque no lucro, teremos que contar com o auxílio valoroso dos socorristas para nos auxiliarmos no momento do desencarne?

Nestas reflexões e na trajetória de estudos e trabalhos doutrinários, percebemos todos os indivíduos que cultivam o hábito da oração cotidiana, aqueles que trabalham no bem e vivenciam sentimentos bons e elevados, serão constantemente auxiliados pelos espíritos superiores em todos os momentos da vida e, não tenham dúvida, que no momento do passamento, serão muito bem auxiliados, amparados e encaminhados para locais de equilíbrio e refazimentos energético e espiritual.

Os samaritanos eram vistos como os verdadeiros trabalhadores socorristas nos tempos de Jesus, seu papel era fundamental para conduzir indivíduos perdidos ou equivocados, aqueles que, muitas vezes viviam em situações transitórias, onde fizeram alguns males na sociedade da época, pessoas que sentiam dores internas na alma, sentindo mal com suas atitudes anteriores e que queriam buscar um novo caminho, seguir novas trajetórias e construir uma nova conjuntura.

A Doutrina Espírita nos traz novas reflexões sobre o tema, nos mostra novas formas de compreendermos a sociedade, os desafios dos seres humanos e os modelos de vida trazidos pela espiritualidade para auxiliar no desenvolvimento da humanidade. Os socorristas atuam diretamente sobre as dores, as angústias e os medos dos indivíduos, auxiliando nos momentos mais críticos, ajudando no momento do desencarne, contribuindo nas dúvidas mais íntimas e pessoais, muitas das dúvidas deveriam ter sido sanadas no decorrer da reencarnação, mas muitas pessoas se esquecem deliberadamente dos mais sublimes ensinamentos trazidos pelo nosso mestre Jesus, se abraçando a valores materiais, gozos imediatistas e vantagens cotidianas, se esquecendo que somos frutos de inúmeras encarnações, talvez em muitos casos em mais de 800 vidas sucessivas, onde nascemos, crescemos, desencarnamos novamente, chegamos ao mundo espiritual e voltamos novamente para o mundo material….dando sequência no ciclo da vida.

Neste momento de transição planetária, todos os indivíduos encarnados estão precisando de socorros variados, uns passando por momentos de privações materiais, desajustes emocionais ou sentimentais, outros se encontram em momentos de instabilidades espirituais, um momento importante e imprescindível para refletirmos sobre os nossos valores espirituais, nossas crenças mais íntimas, nossas possibilidades pessoais e nossos anseios interiores.

Os socorristas são exemplos sublimes de amor verdadeiro, espíritos que deixam seus afazeres imediatos para auxiliar, acariciar, amparar e confortar todos aqueles que sofrem as mais terríveis dores da alma, suas fragilidades e suas deficiências. Neste momento, passemos a ver com outros olhos, com mais carinho, com mais atenção e com maior solidariedade humana o trabalho dos socorristas, cuja importância para a sociedade é imprescindível, urgente e insubstituível.

Ary Ramos da Silva Júnior, Economia, Mestre, Doutor em Sociologia (Unesp) e Professor Universitário.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Historiador destrincha por que países têm zonas com regras paralelas de impostos

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Joana Cunha – Folha de São Paulo, 21/12/2024

Em ‘Capitalismo Destrutivo’, Quinn Slobodian aborda impacto de zonas de exceção na democracia ao longo dos anosQuantos países existem no mundo hoje, e quantos haverá em 2150? É com essa pergunta provocadora que começa o novo livro do historiador canadense Quinn Slobodian, “Capitalismo Destrutivo – Os Radicais do Mercado e a Ameaça de um Mundo sem Democracia” (Objetiva).

O leitor é instado a responder o número atual sem consultar a internet. O autor retruca que temos cerca de 200 países, mas ressalva que esse número pode ser diferente no futuro.

É que os países, como existem hoje, já abrigam territórios e jurisdições peculiares, paraísos fiscais, zonas francas, distritos isentos de tarifas, impostos alfandegários ou taxas aduaneiras.

Recém-lançado no Brasil, o livro define as zonas como enclaves criados dentro dos limites de uma nação, sem formas comuns de regulamentação, em que os poderes de tributação usuais costumam ser suspensos, dando aos investidores a chance de ditar suas próprias regras.

Podem ser locais de produção de baixa remuneração ou, em outra versão, paraísos fiscais —destinos que abrigam lucr os corporativos com impostos baixos ou nulos, o que custa, só aos EUA, US$ 70 bilhões em receitas tributárias por ano, segundo o autor.

Slobodian cita casos de ilhas do Caribe onde há mais empresas registradas do que pessoas residentes. O mundo tem, hoje, mais de 5.400 zonas, de acordo com o levantamento dele, sendo que a maior parte está na América Latina, na África e na Ásia —aproximadamente metade delas fica na China.

Algumas se assemelham a pequenos galpões instalados no ciclo logístico do mercado global para armazenar ou montar determinados produtos evitando tarifas. Também podem ser megaprojetos urbanos futuristas, como a cidade inteligente de Songdo, na Coreia do Sul, Neom , na Arábia Saudita, ou Fujisawa, no Japão

Embora menos de 10% das zonas estejam localizadas na América do Norte e na Europa, segundo Slobodian, é no Ocidente que estão seus maiores entusiastas, que as defendem como arranjos políticos alternativos em pequena escala e sugerem que a utopia do livre mercado pode ser alcançada por meio de atos de fragmentação, criando territórios livres dentro das nações.

O autor descreve os arranjos como aberturas de buracos no território do Estado, em que se criam zonas de exceção com leis diferentes e em muitos casos sem supervisão democrática, podendo prejudicar as bases do país ao seu redor.

“Defensores dessa perfuração se apresentam como guerrilheiros de direita, reivindicando —e decompondo— o Estado-nação. Tão logo o capital fuja para novas zonas não regulamentadas e com impostos baixos, reza a teoria, as economias que se recusarem a se sujeitar à prática serão forçadas a emular essas anomalias”, diz o autor na introdução.

“Este livro conta a história do que chamo de capitalismo destrutivo. Trata-se, ao mesmo tempo, de uma descrição do mundo que tomou forma nos últimos 40 anos pelos esforços descoordenados de atores privados ávidos por lucro e segurança econômica, o que foi viabilizado por governos solícitos e também da história de uma ideologia deliberada”, completa.

No livro, o canadense reconta a origem de alguns dos destinos mais emblemáticos de sua pesquisa, começando por Hong Kong. Entre os detalhes históricos que dão ritmo à leitura, o autor relembra o papel que teve o neoliberal Milton Friedman ao disseminar, por meio da popular série de televisão “Free to Choose”, no fim dos anos 1970, o modelo praticado na então colônia britânica.

Em entrevista à Folha, Slobodian diz que Hong Kong foi uma escolha óbvia no livro. Além de a China ser mais expressiva em número de zonas econômicas especiais, ele afirma que era preciso registrar a forma como as cidades costeiras do sul do país, especialmente Shenzhen, seguiram o modelo de Hong Kong para se tornarem pequenos espaços com mercados de trabalho e direitos sociais fluidos.

“Era extremamente estranho e atípico no final da década de 1970 ter um lugar que ainda era uma colônia, que era tão pequeno e ainda assim economicamente importante, que não estava se movendo em direção à democracia de forma alguma. Isso era uma espécie de anacronismo, que alguém como Friedman via, paradoxalmente, como um tipo de espaço futurista que poderia ser replicado em outros lugares”, diz o autor.

Ao longo do texto, ele também aborda casos como Liechtenstein, Somália e Singapura. Segundo Slobodian, “Capitalismo Destrutivo” pode ser visto como uma sequência de sua obra anterior, “Globalistas – O Fim do Império e o Nascimento do Neoliberalismo”, lançado em 2018.

“É uma espécie de sequência porque o anterior era uma tentativa de sair do modelo binário de que ou há soberania nacional ou há capitalismo global. Como eu mostro no livro, o capitalismo funciona através das nações. E também funciona através desses enclaves territoriais menores e jurisdições dentro das nações que podem ser frequentemente usados pelos populistas nacionais para seus propósitos”, afirma.

“Eu queria mostrar como grande parte da retórica do nacionalismo que estava sendo usada no retrocesso desde 2016 estava se baseando em algumas das ferramentas mais antiquadas da integração capitalista global. Então, [Giorgia] Meloni ou [Matteo] Salvini, [ Viktor] Orbán ou Boris Johnson, todos abraçam a zonificação e as zonas econômicas especiais, mesmo quando falam uma linguagem de proteção nacional e soberania. Foi uma tentativa de estourar a bolha da retórica populista de direita”, diz ele.

Capitalismo Destrutivo – Os Radicais do Mercado e a Ameaça de um Mundo sem Democracia – Quinn Slobodian, Editora Objetiva

 

Realidade Paralela

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As movimentações na sociedade internacional geradas pelo desenvolvimento da tecnologia e da integração econômica e produtiva estão gerando novas formas de comportamentos nos indivíduos, levando as organizações, em escala global, a buscarem formas de satisfazer os novos anseios dos consumidores, assim como os governos estão se organizando para melhorar os serviços públicos, as regulamentações e novas formas de inclusão dos cidadãos neste ambiente centrado na concorrência e na competição constantes.

Neste cenário, percebemos o crescimento do embate entre os atores sociais e econômicos como forma de perpetuar seus ganhos indiretos, as isenções fiscais e seus benefícios tributários, moldando um grande conflito distributivo nos seios da sociedade contemporânea, cada um está buscando seus ganhos imediatos e se esquecendo da importância de pensarmos como atores integrados e interdependentes, garantindo seus recursos em detrimento de outros setores mais fragilizados, desta forma, contribuem ativamente para o incremento das desigualdades sociais que crescem na sociedade global.

Nesta sociedade, percebemos o crescimento de uma realidade paralela, construída, estruturada e difundida para legitimar interesses mesquinhos, individualistas e imediatistas, onde poucos grupos sociais usufruem diretamente, mas foram construídas de forma altamente profissional, com grandes investimentos financeiros, mesmo sabendo que poucos grupos sociais ganham com estas ideias e pensamentos.

Nesta situação, encontramos grupos econômicos e políticos importantes que investem somas altíssimas de recursos para desacreditar aqueles que combatem as violentas alterações climáticas, rechaçando as transformações no Meio Ambiente e se mobilizam para fragilizar as organizações que trabalham para aumentar a regulamentação governamental e impor mais responsabilidade nos investimentos que podem impactar sobre a natureza e os seres humanos.

Encontramos ainda, grupos econômicos e financeiros dotados de grandes recursos monetários e influência política que usam seus recursos para fortalecer os mercados das armas, das tecnologias militares, das indústrias bélicas e todo um arsenal que fatura bilhões de dólares, empregando pessoas e são responsáveis pela destruição inteira de regiões e nações em todas as partes do mundo, vide o acontecido em nações como o Iraque, a Ucrânia, a Síria, o Líbano, a Palestina, países destruídos pela devastação militar e, ao mesmo tempo, garante o enriquecimento da indústria da morte.

Neste mesmo cenário global, vivenciamos aqui, no Brasil, uma realidade paralela, encontramos nos meios de comunicação e nas universidades discussões secundárias e ultrapassadas, falamos constantemente em corrupção e nos esquecemos das raízes deste fenômeno, nos esquecemos das evasões fiscais, não discutimos nosso sistema tributário regressivo e concentrador e menos ainda, nada falamos de um Congresso turbinado por emendas pouco transparentes, foco constante de corrupção e desperdícios. Falamos das farras fiscais e nos esquecemos dos juros estratosféricos definidos pelo Banco Central que consomem bilhões de reais e aumentam a dívida pública. Criticamos os servidores públicos e degradamos as políticas públicas como ineficientes e nos esquecemos que convivemos com um judiciário caro, lento e ineficiente.

Precisamos urgentemente sair desta realidade paralela, os desafios contemporâneos exigem maturidade, senso de responsabilidade, compreensão do momento atual e forte capacidade de liderança, construindo políticas públicas sólidas e consistentes, vislumbrando uma nação melhor, mais harmônica, com mais oportunidade para os cidadãos e menos parasitas, especuladores, aproveitadores e exploradores.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

A cultura dos juros altos, por Luiz Carlos Bresser Pereira

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 Luiz Carlos Bresser Pereira – A Terra é Redonda – 19/12/2024

A economia brasileira está presa em círculo vicioso da quase estagnação

Um dia desses, um dos meus filhos me perguntou por que o governo Lula estava privatizando estradas de rodagem que são monopolistas e, por isso, não devem ser privatizadas. Não seria esse governo neoliberal? Ou neoliberal progressista, acrescentei parafraseando a filósofa americana Nancy Fraser.

Não, o presente governo é social-progressista e desenvolvimentista: defende uma diminuição da desigualdade e a intervenção do Estado na economia para aumentar o investimento público e promover o investimento privado. Não obstante, esse governo não tem alternativa senão privatizar as rodovias que exigem investimentos para os quais não tem recursos. O Brasil está preso no círculo vicioso da quase estagnação.

Entendo por quase estagnação o fato de um país não realizar o “catch-up” – o fato de seu crescimento per capita ser quase sempre inferior aos dos Estados Unidos, de forma que o padrão médio de vida dos brasileiros se afasta cada vez mais do padrão americano. Apesar de um desempenho econômico razoável neste ano e nos dois últimos anos, nada aconteceu de novo na economia brasileira que nos permita afirmar que escapamos da quase estagnação, inclusive porque a taxa de investimento continua muito baixa.

A economia brasileira está quase estagnada desde 1980. Hoje, a distância em relação aos Estados Unidos é maior do que era em 1980. A causa direta dessa quase estagnação é a taxa de investimento muito baixa. Tanto o investimento privado quanto o público é sistematicamente inferior a 17% quando deveria girar em torno de 25% do PIB. Sete pontos percentuais é uma diferença muito grande.

Se compararmos a presente situação com meados dos anos 1970 (a última década em que o Brasil cresceu satisfatoriamente e estava realizando o “catch-up“), veremos que o investimento privado, que naquela década estava em torno de 15% do PIB, se manteve nesse nível, embora devesse ter crescido devido às privatizações – deveria ter crescido para pelo menos 20% do PIB.

Já o investimento público, que deveria ter caído um pouco devido às mesmas privatizações, caiu muito; correspondia a aproximadamente 8% do PIB, agora está em torno de 2,5%. Em consequência, o investimento total caiu de 23% para aproximadamente 16% do PIB, e a taxa de crescimento caiu correspondentemente.

A primeira razão para isso é a taxa de juros exorbitante que existe no Brasil desde a abertura financeira (1992). A taxa de juros real vem sendo desde então em média cerca de 6% a 7% ao ano, quando deveria se manter em torno de 3% ao ano, ou seja, igual a taxa de juros real internacional mais um adicional que dê conta do risco dos brasileiros em investir no Brasil (não dos estrangeiros), que eu estimo ser de aproximadamente 1%.

Duas vezes menor, portanto, que a taxa real que o Banco Central tem praticado e, portanto, uma taxa que desestimula o investimento. Eu falei em risco dos brasileiros, que deve ser menor que o risco Brasil, calculado pelos mercados internacionais para investidores fora do país aqui investirem, que é maior de cerca de 2,5%.

A segunda razão é a tendência de apreciação da taxa de câmbio no Brasil, que tem por trás quatro motivos: (i) porque a taxa de juros é alta para poder atrair capitais; (ii) porque o Brasil incorre sistematicamente em déficits na conta corrente de aproximadamente 2% do PIB, quando deveria mantê-los em torno de zero; (iii) porque o Brasil não reconhece e não neutraliza a doença holandesa, não tendo, portanto, uma política que evite que a taxa de câmbio se torne valorizada para as empresas industriais, a qual reduz a competitividade internacional dessas empresas; e (iv) porque a taxa de poupança no Brasil é muito baixa, não sendo por isso compensada pelo recurso a financiamento interno ou externo.

Os atores

Para sabermos o porquê das três primeiras razões, precisamos considerar os atores que causam a baixa taxa de investimento e o círculo vicioso da quase estagnação. São eles os capitalistas rentistas e seus financistas, o agronegócio, o Norte Global ao qual os dois primeiros grupos estão associados, os empresários industriais, os eleitores e os políticos. Todos são responsáveis pela taxa de câmbio apreciada, a baixa taxa de investimento e a quase estagnação do Brasil.

Os rentistas e financistas, que são dominantes, querem uma taxa de juros real (descontada a inflação) alta e uma taxa de inflação baixa (para garantir o objetivo anterior). Os dois grupos são liberais: não querem que o Estado invista ou intervenha na economia; não querem, por exemplo, que o Estado tenha uma política cambial que estabilize a taxa de câmbio e evite que ela seja apreciada.

Assim, estão felizes com um déficit na conta corrente em torno de 2% do PIB e não querem saber da doença holandesa, embora esta surja quando o preço das commodities exportadas pelo Brasil sobe e torna as empresas industriais não competitivas, ainda que sejam competitivas no plano técnico.

Rentistas e financistas estão satisfeitos. Eles têm poder suficiente sobre a sociedade brasileira para capturar indevidamente cerca de 3% do PIB graças à diferença entre a taxa de juros média razoável (de 3% ao ano, como vimos acima) para a taxa praticada de 6% ao ano. Esses juros altos naturalmente desestimulam o investimento, a não ser que a taxa de lucro esperada seja alta e a desigualdade econômica, acentuada.

O agronegócio, embora recebendo altos subsídios do Estado, se afirma liberal e, como os dois grupos anteriores, não quer saber de uma política de neutralização da doença holandesa; quer realizar lucros extraordinários quando há um boom de commodities.

A doença holandesa é uma apreciação de longo prazo e cíclica da taxa de câmbio para a indústria causada por um substancial aumento de preços das commodities exportadas pelo país, que causa uma apreciação da taxa de câmbio geral ou corrente. Enquanto, para o setor exportador de bens primários (agronegócio e exportador de minérios e petróleo), essa taxa de câmbio mais apreciada é satisfatória porque o aumento de seus preços compensa a valorização da moeda nacional, para a indústria essa apreciação é desastrosa. É papel do Estado garantir uma taxa de câmbio competitiva para a indústria.

Nos países exportadores de commodities, a taxa de câmbio é cíclica porque os preços das commodities também tendem a ser cíclicos: ela se deprecia fortemente quando há uma crise financeira e depois se aprecia, chega à taxa de equilíbrio geral (que equilibra a conta corrente do país) e afinal se torna mais apreciada à medida que o déficit na conta corrente aumenta devido à política que os países adotam equivocadamente de incorrer em déficits na conta corrente (“poupança externa”). Começa então o endividamento externo que, afinal, levará o país a nova crise de balanço de pagamentos e a nova depreciação violenta da taxa de câmbio, encerrando-se assim o ciclo.

O Norte Global (o conjunto dos países ricos liderados pelos Estados Unidos) não tem qualquer interesse em uma taxa de investimento alta na sua periferia. Pelo contrário, visa evitar que os países em desenvolvimento se industrializem, porque não querem concorrência no futuro.

Para isso, além de nos recomendarem que tenhamos déficits na conta corrente desde que esses não levem o país a uma crise de balanço de pagamentos, buscam manter economicamente abertos os países em desenvolvimento para a exportar capitais (investimentos diretos e empréstimos) e para manter a troca desigual – a troca entre bens tecnologicamente sofisticados, que pagam bons salários e lucros, e bens pouco sofisticados que se caracterizam por baixo valor adicionado per capita.

As empresas industriais, que não precisam de proteção com base no argumento da indústria infante, precisam dramaticamente de proteção contra a doença holandesa que, em boom de commodities, as tornam não competitivas. Não obstante, seus dirigentes ou empresários não sabem ou não querem saber o que é a doença holandesa, que pode ser mortal para eles.

O setor interno de serviços, muito amplo e diversificado, quer que a taxa de juros seja baixa, mas seus dirigentes não têm poder político capaz de influenciar o Banco Central. Ao contrário, eles acabam sendo corresponsáveis pelos altos juros porque as associações que os representam são ocupadas por economistas neoliberais.

Os eleitores, principalmente a classe trabalhadora e de empregados, criticam a taxa de juros elevada, mas estão satisfeitos com uma taxa de câmbio apreciada que aumenta o poder aquisitivo de seus salários e demais rendimentos.

Os políticos, finalmente, acompanham seus eleitores e estão felizes com uma taxa de câmbio apreciada que facilita sua reeleição.

Os déficits na conta corrente e os investimentos privados

Os liberais afirmam que o principal problema da economia brasileira é o déficit público que causa aumento da dívida pública em relação ao PIB e causaria inflação. De fato, manter o equilíbrio fiscal é importante, mas mais importante é manter a conta corrente do país (a conta externa comercial mais os serviços) equilibrada, algo que só acontece raramente.

Na verdade, rentistas, financistas, agronegócio, interesses estrangeiros, eleitores e os políticos estão todos satisfeitos com um déficit na conta corrente moderado, porque esses déficits aumentam o poder aquisitivo dos seus rendimentos e mantêm tudo como está, inclusive a quase estagnação.

Ora, uma das características do populismo é procurar dar rendimentos artificiais aos eleitores que são, afinal, prejudiciais ao país. Ao aceitarem como bons os déficits na conta corrente (porque implicam acesso à poupança externa), nossos atores são todos populistas. Mas não teriam eles razão? Afinal, seria mais que natural que os países ricos em capitais transfiram seus capitais para países pobres em capitais como é o Brasil.

Não, a política de crescimento com poupança externa ou de déficits na conta corrente é uma política que contém a causa do seu fracasso). Ao incorrer em déficit na conta corrente, as entradas de capitais são maiores que as saídas, a taxa de câmbio se aprecia e, além de estimular indevidamente o consumo, desencoraja o investimento.

Esse caráter auto fracassante da política de crescimento com endividamento externo deixa de sê-lo se o país adota uma política cambial capaz de compensar o excesso de entradas de capitais. Tudo, portanto parece desestimular o investimento privado que, por isso, não aumentou sua participação no PIB como seria de se esperar.

Finalmente, é preciso considerar que a poupança brasileira é muito baixa e, ainda que esse fato possa ser superado pelo recurso ao financiamento interno (por isso Keynes e Kalecki disseram nos anos 1930 que o investimento precede a poupança), ela precisa ser considerada. A poupança deveria ser, em princípio, quase igual aos lucros, os quais, para os empresários industriais, são necessariamente baixos, dada a taxa de juros alta e a taxa de câmbio apreciada.

Eles, portanto, não têm recursos necessários para financiar os investimentos de modernização de suas fábricas e de expandir sua produção, o que leva à desindustrialização. Além disso, ao não investirem, ficam atrasados tecnologicamente e a produtividade da economia permanece estagnada.

Já o agronegócio realiza lucros elevados, mas seus empresários investem na própria agricultura e pecuária e se opõem a qualquer política industrial e de neutralização da doença holandesa. Os rentistas e financistas, por sua vez, recebem juros e aluguéis elevados, mas não investem na indústria porque ela não dá o retorno que desejam. Preferem investir seu dinheiro no mercado financeiro e seus altos juros ou em imóveis que rendem bons aluguéis e se valorizam.

Em síntese, a taxa de investimento na indústria em relação ao PIB não aumentou apesar das privatizações que ocorreram desde os anos 1970. Em todo o período, os investimentos foram fortemente desestimulados porque apresentaram uma taxa esperada de lucro insatisfatória, incapaz de motivar os investimentos, dada a taxa elevada de juros que desde 1992 caracteriza a economia brasileira. Foram, portanto, claramente insuficientes para que o país retome o desenvolvimento e volte a realizar o “catch-up“.

A cultura dos juros altos

Além de rentistas e financistas defenderem juros altos e estes serem necessários para atrair capitais que financiem um déficit na conta corrente que não deveria existir, há uma causa subjacente para os juros serem altos: a cultura de juros altos, a acomodação de todos com os juros altos, que decorre do poder estrutural do capital e de um hábito cultural existente há muitos anos.

Duas indicações desse fato. Em 1964, já no quadro do regime militar, garantiu-se para as cadernetas de poupança, além da correção monetária, uma taxa de juros real de 6% ao ano. Em 1988, a nova Constituição limitou a 12% a taxa de juros real. Um limite muito alto, mas foi tanta a pressão do capital contra esse dispositivo que o STF decidiu depender de lei complementar do sistema financeiro internacional. Assim, a Constituição se tornou letra-morta nesse ponto, enquanto o Congresso não se move para discutir a lei necessária.

A falta de poupança pública e o investimento público

Voltando à comparação entre os anos 1970 (a última década em que o crescimento foi satisfatório no Brasil) e o presente, foram os investimentos do setor público que mais sofreram na virada dos anos 1970 para os anos 1980. A poupança pública que girava em torno de 4% do PIB caiu de repente para -2%, uma diferença de seis pontos percentuais.

Dois fatores foram determinantes da queda da poupança pública e do investimento público: a crise da dívida externa e a crise fiscal do Estado, que estudei bastante naquela época. Pergunto agora: seria possível o Estado voltar a realizar uma poupança pública e recuperar pelo menos uma parte daqueles seis pontos percentuais? Isto não parece provável. O Brasil continua com uma poupança pública negativa e a possibilidade de voltar a ter uma poupança pública positiva parece impossível.

Para aumentar a poupança pública, a maneira mais óbvia seria aumentar impostos para, assim, compensar o excesso de juros que são pagos aos rentistas locais e aos do Norte Global. Como vimos que esse excesso é de 3% do PIB, a carga tributária em relação ao PIB deveria aumentar na mesma proporção, mas ninguém quer pagar mais impostos.

A solução dada por rentistas e financistas ou, mais amplamente pelos, neoliberais é reduzir as despesas do Estado exceto os juros. Vimos que os investimentos públicos já foram reduzidos ao mínimo. Quanto às despesas sociais, é impossível reduzi-las. Seria, sim, possível reduzir os penduricalhos que a burocracia pública logra incluir em seus salários. O atual governo vem tentando fazer alguma coisa em relação a esse problema.

Seria também possível reduzir os incríveis e absurdos subsídios e isenções de impostos, como vem tentando o atual ministro da Fazenda, mas além de ter de neutralizar o lobby dos interessados nos subsídios e nas isenções, o Ministério da Fazenda tem que convencer muitos dos próprios membros do governo, que se julgam representantes dos interesses de suas áreas, e o próprio presidente da República que deve ser reeleito. Nessa área, como na dos juros, há bilhões a ser economizados, mas os interesses contrários são poderosos.

Demitir funcionários? No plano federal, não há excesso de servidores públicos. Nos governos estaduais e municipais, o excesso deve ser pequeno e o problema precisa ser enfrentado, mas não fará grande diferença. Onde faria uma grande diferença seria a redução da despesa com juros, que se obteria com a baixa da taxa para um nível civilizado e perfeitamente compatível com o controle da inflação. Mas quem será capaz de dobrar os rentistas e os financistas?

Assim, sem poder reduzir significativamente as despesas e sem conseguir aumentar os impostos para financiar essas despesas, o Estado não consegue realizar a poupança pública que seria necessária para financiar os investimentos públicos, que compensariam o não aumento do investimento do setor privado. Na verdade, o país não consegue zerar seu déficit público, que lhe permitiria realizar alguma poupança pública, a qual permanece negativa.

Os rentistas e financistas, porém, estão satisfeitos, porque não querem que o Estado invista – o que eles denominam “estatização”. Os rentistas e financistas (o “mercado financeiro”) querem que o Estado realize o superávit primário, uma métrica que lhes agrada porque exclui (esconde) os juros e, não obstante, garante que a dívida pública em relação ao PIB não aumente. Mas mesmo esse superávit o governo tem grande dificuldade de conseguir.

O círculo vicioso se fecha

Em consequência de tudo isso, o Brasil está preso no círculo vicioso da quase estagnação. Um círculo que tem alguma semelhança com o fluxo secular de Joseph Schumpeter, definido em 1911. Nesse fluxo circular, que decorre da lógica da teoria econômica neoclássica ou ortodoxa e do seu ideal de concorrência perfeita, não há lucros (existe apenas o lucro normal, igual à taxa de juros), os investimentos são iguais à depreciação efetivamente ocorrida e não há crescimento.

Já no caso do círculo vicioso da quase estagnação brasileira, há lucros, mas são baixos para a indústria de transformação; há investimentos e há crescimento porque setores do agronegócio, da indústria e o setor de serviços investem, mas esses são poucos, insuficientes para que o país saia da quase estagnação em que está mergulhado desde os anos 1980.

Por outro lado, o Estado não tem recursos para complementar o setor privado. Nos anos 1970, investia cerca de 8% do PIB. Hoje, investe apenas cerca de 2%. Não consegue nem sequer financiar os investimentos públicos em infraestrutura que são necessários para o país crescer. A solução proposta pela ortodoxia liberal é privatizar. Os governos vêm seguindo essa trilha, mas os resultados são parcos. O apetite e as possibilidades do setor privado são restritos.

Entretanto, alguns investimentos em infraestrutura, cujos lucros são certos, como nas concessões de rodovias, atraem muitos os rentistas e financistas e são relativamente necessários. O governo Lula, portanto, avança nas concessões por falta de alternativa.

Já outros investimentos muito necessários em infraestrutura não atraem o setor privado, a não ser que o Estado subsidie seus investimentos (parcerias público-privadas). A potencialidade dessas parcerias, porém, é limitada porque envolve gastos do Estado, o qual é mantido no nível de subsistência.

Há 20 anos, afirmo que a economia brasileira está presa na armadilha dos juros altos e do câmbio apreciado. Hoje, apoiado na teoria novo-desenvolvimentista, posso acrescentar que o Brasil está preso ao círculo vicioso da quase estagnação. Um círculo que se fecha com a impotência do Estado de rompê-la.

Ao apresentar o Brasil, sua economia e sua política de uma maneira nova, na qual podemos ver como os diversos atores tratam de manter a economia brasileira presa a esse círculo, sou obrigado a me mostrar pessimista quanto ao futuro do Brasil e do seu povo.

*Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor Emérito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP). Autor, entre outros livros, de Em busca do desenvolvimento perdido: um projeto novo-desenvolvimentista para o Brasil (Editora FGV)