Trump: promessas e perspectivas

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Nesta semana Donald Trump ganhou a eleição para a Presidência dos Estados Unidos, neste percebemos que as nações estão todos alvoroçadas, afinal a presença de Trump na presidência dos EUA gera incertezas e instabilidades de todas as regiões.

Governos nos mais diferentes matizes ideológicos estão preocupados, mas destacamos as nações que mais geram preocupações da sociedade norte-americana, como a China, a Rússia, o Irã, o México, a Coréia do Norte e o México, países que, de uma forma ou outra, ameaçam a liderança estadunidense.

Neste cenário, onde a sociedade estadunidense perde a sua hegemonia global e percebe ainda, o crescimento de novos atores econômicos, políticos e sociais, as reações do governo Donald Trump podem alavancar constrangimentos para a sociedade mundial, como a adoção de fortes políticas protecionistas, limitação da atuação de agências multilaterais, tais como a ONU, a OMC, a OMS, dentre outras, que podem culminar no refluxo da globalização.

Me chamou a atenção na campanha eleitoral, as promessas, que são sempre muito interessantes, muitas delas bastante exóticas e irreais, onde o ganhador ameaçou aumentar a proteção tarifária da economia norte-americana, taxando as importações que geram constrangimentos para a economia e impacta fortemente os trabalhadores, principalmente das regiões industrializadas, essas regiões que antes eram fortes exportadores de produtos industrializados, perderam espaço no comércio global e, suas populações estão perdendo renda, empobrecendo e aumentando a degradação social e levando grande parte da população para votarem em candidatos de extrema-direita.

As tarifas alfandegárias podem reduzir as importações internas e acomodar a produção interna, mas sabemos que as outras nações não vão aceitar passivamente, que podem gerar um conflito comercial, cujos efeitos são assustadores, preocupantes e podem aumentar os confrontos entre as nações.

Outro ponto que devemos destacar neste ambiente, é que, a redução da importação global dos Estados Unidos, como forma de proteger a indústria americana, vai impactar fortemente sobre o consumo interno, com elevação dos preços dos produtos e gerando um incremento da inflação, cujo impacto imediato é a elevação das taxas de juros que tendem a reduzir os investimentos produtivos, diminuindo o crescimento dos empregos e a queda da renda agregada.

O mundo globalizado é muito mais complexo do que as pessoas imaginam, muitas promessas são impossíveis de serem implementadas, desta forma, muitos políticos eleitos perdem a legitimidade, com inúmeras promessas na campanha que são difíceis de serem colocadas em práticas, gerando o descrédito, a desesperança e a repulsa a todos os candidatos, para todos os partidos políticos e para todo o sistema democrático, gerando um verdadeiro retrocesso.

A ascensão de Donald Trump pode motivar uma nova agenda internacional, menos multilateralismo, crescimento da extrema direita, o incremento da turbulência e com a imigração perdendo espaço, já que a promessa de endurecer a entrada de pessoas de outras nações nos Estados Unidos podem contribuir para que o mundo fique, cada vez mais, centrado nas incertezas, nas instabilidades e nas crescentes volatilidades.

 

 

O economista de Donald Trump, por Alessandro Octaviani

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Alessandro Octaviani – A Terra é Redonda – 07/11/2024

É um erro tomar Peter Navarro, um dos raros economistas a quem Trump dá alguma credibilidade, como “excêntrico”, “retrato de um acidente”, ou “desvio, que em breve será arrumado”

Peter Navarro é atualmente diretor do Office of Trade and Manufacturing Policy, do Governo Federal dos EUA, e um dos raros economistas a quem Donald Trump dá alguma credibilidade. [1]

Durante a crise do Covid-19, sua atuação foi ainda mais marcante. Como noticiado, em 2 de abril de 2020, “Donald Trump recorreu (…) à Lei de Produção de Defesa para ajudar as empresas que fabricam respiradores (…). (…) General Electric, Hill-Rom Holdings Inc, Medtronic Plc, Resmed Inc, Royal Philips NV e Vyaire Medical Inc”. [2]

Esse reforço para as empresas nacionais norte-americanas ficou a cargo de Peter Navarro, que se incumbe da missão como um verdadeiro “Falcão Econômico”: “Sobre sua ‘nova autoridade sobre empresas e suas redes mundiais de suprimentos’, ele conta como a usou com a 3M, que tem fábricas na China: ‘A empresa não estava disposta a informar sobre a distribuição das máscaras que produz ao redor do mundo e a fornecê-las ao povo americano. Ela quer agir como uma nação soberana (…). E nesta crise existe apenas um país e apenas um presidente”. [3]

A imprensa noticiou recentemente o movimento jurídico de Donald Trump rumo à tentativa de monopolizar, para os EUA, a exploração mineral na Lua e em outros corpos celestes: “Em meio à pandemia do coronavírus, que já contaminou mais de 360 mil estadunidenses, o presidente dos EUA, Donald Trump, envolve-se em mais uma polêmica após publicar um decreto que dá ao país o direito à exploração dos recursos da Lua, contrariando o acordo feito sobre o satélite natural do planeta Terra. ‘Os americanos devem ter o direito de se envolver em exploração comercial, recuperação e uso de recursos no espaço sideral, de acordo com a lei aplicável. O espaço exterior é um domínio legal e fisicamente único da atividade humana, e os Estados Unidos não o veem como um bem comum global. (…)’, diz o decreto assinado por Trump, que foi rechaçado por Moscou”.[4]

Essa proposta também tem o dedo de Peter Navarro, como se lê em Death by China (escrito em parceria com Greg Autry, para ser uma espécie de programa de ação para o Estado capitalista norte-americano ante o perigo chinês e a ameaça à sua hegemonia global): dentre as proposições concretas para “confrontar o desafio espacial chinês” consta “reivindicar a Lua antes que a China o faça”. [5]

Para Peter Navarro, a China é uma ameaça aos EUA, em razão de sua ascensão industrial capitaneada pelo Estado chinês e suas políticas de cunho mercantilista, protecionista, imperialista, planejadas e agressivas.

Dentre os instrumentos chineses, estariam (i) a formação de uma rede complexa de subsídios ilegais à exportação; (ii) moeda astutamente manipulada e brutalmente desvalorizada; (iii) flagrante falsificação, pirataria e subtração descarada da propriedade intelectual norte-americana; (iv) envolvimento em degradação ambiental significativa; (v) padrões de saúde e segurança do trabalho excessivamente frouxos; (vi) tarifas e quotas de importação ilegais; (vii) fixação de preços e uso de demais práticas predatórias com vistas a expulsar rivais estrangeiros dos principais mercados de recursos para, então, cobrar excessivamente dos consumidores por meio de monopólio de preços; e (viii) impedimento de todos os competidores internacionais de estabelecerem seus negócios em solo chinês. [6]

As cinco partes de Death by China são nomeadas em termos militaristas, “preparando a guerra” (que viria de fato a se instalar alguns anos depois de sua publicação, quando suas formulações revelaram-se adequadas às concepções de Donald Trump): “‘Buyer beware’ on steroids”, “Weapons of job destruction”, “We will bury you, Chinese style”, “A hitchhiker’s guide to the Chinese gulag” e “A survival guide and call to action”.

São elencadas medidas estratégicas a serem modeladas, em caráter amplo e urgente, várias das quais atualmente em pleno curso: (i) evitar os produtos chineses; [7] (ii) desmantelar as armas de destruição de empregos da China; [8] (iii) fixar limites rígidos para a espionagem chinesa e guerra cibernética; [9] (iv) confrontar e combater a crescente ameaça militar chinesa; [10] (v) combater o colonialismo global chinês; [11] (vi) frear as mortes na China pela China; [12] (vii) enfrentar o desafio espacial chinês. [13]

É um erro tomar Peter Navarro ou Donald Trump como “excêntricos”, “retratos de um acidente”, ou “desvios, que em breve serão arrumados”. Eles representam a expressão arraigada do Estado capitalista norte-americano e sua disciplina jurídica, vertidos, sempre, à defesa radical de seus interesses e da manutenção de suas posições de poder.

Não se trata de “excepcionalismo”, mas de “estrutura profunda”, que ecoa a célebre modelagem da “Super 301” – instrumento jurídico dos EUA para punir unilateralmente países que os afetem comercialmente – e a atuação do deputado Richard Gephardt, que propunha a incidência do diploma automaticamente “contra países que tivessem saldos superavitários excessivos em suas balanças comerciais com os EUA. Segundo o projeto, seriam feitas duas exceções: países com dificuldades de balanços de pagamentos e casos em que a ação 301 pudesse significar dano aos interesses econômicos dos EUA. (…) Derrubada por veto do Presidente Reagan, sob a justificativa de que era ‘por demais draconiana para ser efetiva’, a chamada ‘emenda Gephardt’ deu lugar à Super 301, como seu dispositivo substituto”. [14] Substituiu-se a obrigação automática de sancionar outros países pela possibilidade discricionária de atacá-los…

*Alessandro Octaviani é professor de direito econômico da Faculdade de Direito da USP.

Notas

[1] Cf., entre outros, ROGIN, Josh. “How Peter Navarro got his groove back”. The Washington Post. Publicado em 27/02/2018.

[2] Publicado em 2/04/2020.

[3] Publicado em 8/4/2020.

[4] Publicado em 7/4/2020.

[5] NAVARRO, Peter; AUTRY, Greg. Death by China: Cronfronting the Dragon – A Global Call to Action. New Jersey: Pearson FT Press, 2011, p. 257-259.

[6] Ibidem, p. 1-11.

[7] Ibidem, p. 234-239. Algumas das proposições específicas: não comprar produtos “made in China”; leis mais duras contra a China e produtos chineses que prejudiquem os americanos.

[8] Ibidem, p. 239-245. Algumas proposições concretas: enviar emissário secreto à China para avisá-la sobre a intenção americana de estigmatizá-la como manipuladora de moeda; frear o sequestro dos trabalhos de pesquisas e desenvolvimento; proibir as empresas estatais chinesas de comprarem empresas privadas.

[9] Ibidem, p. 245-249. Algumas proposições concretas: penalizar de forma mais séria e agressiva os espiões chineses; declarar os ataques cibernéticos promovidos por Estados nacionais como atos de guerra.

[10] Ibidem, p. 249-252. Exemplos de propostas: reconhecer que os EUA precisam conseguir um maior retorno do complexo industrial militar, em vista da superioridade quantitativa crescente do armamento chinês; evitar uma corrida armamentista com a China, que está numa situação econômica e militar muito mais favorável do que os EUA.

[11] Ibidem, p. 252-255. Propostas: expandir e mensagem dos EUA pelo mundo, como forma de ganhar acesso a mercados e difundir os valores democráticos; substituir o ensino de francês e alemão nas escolas de ensino médio por mandarim, como forma de conhecer o inimigo.

[12] Ibidem, p. 255-257. Algumas proposições concretas: reinstituir os direitos humanos como elemento da política externa americana (os EUA devem continuar a exercer pressão sobre a China a fim de que ela respeite os direitos humanos); realização de investimentos em empresas e moedas de países ricos em recursos, como Austrália e Brasil, que se expandem tanto quanto a China.

[13] Ibidem, p. 257-259. Proposições concretas, como mencionado acima: reivindicar a Lua antes que a China o faça; concessão de bolsas, empréstimos estudantis e subsídios/financiamentos educacionais direcionados de forma desproporcional às áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática.

[14] ARSLANIAN, Regis. O Recurso à Seção 301 da Legislação de Comércio Norte-Americana e a Aplicação de seus Dispositivos Contra oBrasil. Brasília: Instituto Rio Branco, 1994, p. 77.

 

Donald Trump — mais um prego no caixão da democracia liberal, por Luis Felipe Miguel

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Luis Felipe Miguel –  A Terra é Redonda – 07/11/2024

 Do mandato de Donald Trump, pelos sinais apresentados até agora, se pode esperar uma tentativa de orbanização do sistema político estadunidense

Evito fazer projeções bombásticas, mas é difícil resistir no calor no momento: a nova eleição Donald Trump bateu, não digo o último, mas um dos últimos pregos no caixão da democracia liberal tal como ela foi edificada ao longo do século XX.

A vitória de Donald Trump não é exatamente inesperada. O velho farsante alaranjado nunca perdeu o apoio de sua base original — operários e rednecks e empobrecidos, os que se sentem cada vez mais excluídos e sem perspectivas nos Estados Unidos de hoje. E cresceu tanto junto ao dinheiro grosso quanto ao eleitorado negro e latino.

Dos bilionários antes simpáticos aos democratas, Donald Trump ganhou o apoio declarado, a simpatia discreta ou no mínimo a neutralidade. Já entre negros e latinos há um crescente descrédito com o discurso do “neoliberalismo progressista” que é oferecido a eles pelo Partido Democrata.

De fato, o Partido Democrata parece não saber o que oferecer ao eleitorado. Em 2020, Joe Biden obteve uma vitória apertada — em um país mergulhado no caos da primeira gestão de Donald Trump, incluindo uma gestão da pandemia tão criminosa quanto a de Jair Bolsonaro.

Na presidência, ele pareceu julgar que a volta à “normalidade” (isto é, à velha política de sempre) era o que o povo queria. Esforçou-se por melhorar os indicadores econômicos, sem perceber que o efeito eleitoral deles já não era o mesmo.

No começo do mandato, em gesto ousado, Joe Biden apoiou a greve dos trabalhadores da Amazon, que reivindicavam o direito de se sindicalizar. Mas o saldo não foi angariar o apoio do vasto setor de precarizados (aqueles retratados no oscarizado Nomadland) e sim angariar a antipatia dos barões da “nova economia” — reforçado pelas tímidas tentativas de regular as big techs.

Não custa lembrar que Jeff Bezos, da Amazon, determinou que o Washington Post, o jornal do qual também é dono, rompesse a tradição de apoiar candidatos democratas e se declarasse neutro na eleição deste ano.

Quando a incapacidade física e mental de Joe Biden para concorrer à reeleição se tornou evidente demais e — após um longo e desgastante processo — ele teve que ser substituído, a opção por sua vice parecia “natural”, mas nem por isso menos equivocada.

Ela parecia ser a solução mais rápida, capaz de unir o partido. Mas, afora isso, reconhecidamente uma política pouco hábil, má oradora e desprovida de carisma, seu único trunfo era ser uma mulher com ascendência africana e indiana.

Com o apelo identitário se mostrando cada vez mais contraproducente, afastando mais eleitores do que congregava, e tendo que ser colocado em segundo plano, Kamala Harris fez uma campanha errática.

Era a mesma velha política morna, de fazer acenos em múltiplas direções para, no final das contas, manter tudo como está.

Do mandato de Donald Trump, pelos sinais apresentados até agora, se pode esperar uma tentativa de orbanização do sistema político estadunidense. Isto é: seguir os passos de Viktor Orbán, na Hungria, e suprimir todos os controles a seu poder pessoal.

Esse desfecho é o resultado da crise do modelo liberal democrático.

O segredo desse arranjo repousava na capacidade da classe trabalhadora de impor limites ao funcionamento da economia capitalista. Ou seja, as democracias históricas não se definem como um conjunto de regras do jogo abstratas, como frequentemente se apresenta na ciência política, mas como o resultado de uma determinada correlação de forças.

A acomodação da democracia liberal permite, por um lado, que os dominados tenham alguma voz no processo decisório e, por outro, que os dominantes saibam calibrar as concessões necessárias para garantir a reprodução de sua própria dominação.

Um componente necessário nessa equação é, obviamente, a capacidade regulatória do Estado. Outro é sua autonomia relativa em relação aos proprietários, a fim de que possam ser adotadas medidas que os contrariam no curto prazo.

A crise que ora se vê é marcada pela erosão de praticamente todos os pilares desse arranjo. O “populismo de direita” dá respostas a ela — ilusórias, mentirosas, mas ainda assim respostas. O centro e a esquerda eleitoral não chegam nem a isso. E, sem a retomada da capacidade de pressão de uma classe trabalhadora transformada, o modelo da democracia liberal fatalmente vai degringolar para uma oligarquia escancarada, com um frágil verniz eleitoral.

Estamos falando dos Estados Unidos. Mas, como disse Horácio (e Marx gostava de citar): de te fabula narratur.

*Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil (Autêntica)

 

 

A guerra civil psicótica de volta à Casa Branca, por Franco ‘Bifo’ Berardi

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Franco ‘Bifo’ Berardi – OUTRAS PALAVRAS – 06/11/2024

Entender Trump exige política e psicanálise. Ele sintetiza a desintegração do capitalismo em meio à miséria, violência e depressão. E mobiliza a psicose coletiva que aliena multidões em nome de um ideal: “vencer a qualquer preço”

Tal como as algas mutantes e monstruosas que invadem a lagoa de Veneza, as nossas telas de televisão estão povoadas, saturadas, de imagens e opiniões “degeneradas”. Outra espécie de algas que vale a pena ter em conta, desta vez relacionada com a ecologia social, consiste nesta liberdade de proliferação concedida a homens como Donald Trump, que se apoderam de bairros inteiros de Nova Iorque, Atlantic City, etc., para os “renová-los” no processo em que os alugueis sobem e expulsam milhares de famílias pobres, a grande maioria das quais estão condenadas a perder a sua casa, sendo este caso o equivalente, para os nossos propósitos, a peixes mortos na ecologia ambiental. (Félix Guattari: Les trois écologies, Paris, Éditions Galilée, 1989, p. 34.)

Nestas linhas, escritas quando Trump começava a ocupar a cena pública, Guattari prevê o que agora é mais claro que a luz do dia: a desregulação neoliberal permite que algas monstruosas contaminem as águas. Tudo se desenrolou pontualmente e agora o mar superaquecido desencadeia tempestades terríveis, que matam centenas de pessoas na costa espanhola. Além disso, a desregulação permite a proliferação de fontes de declarações destinadas a contaminar a mediosfera e, consequentemente, a psicosfera. Aconteceu pontualmente: turbas de psicoadictos votam num sem-vergonha, que promete a maior deportação de migrantes da história. Estas poucas linhas de Guattari descrevem a gênese de um ambiente venenoso, que gera violência e opressão, ao mesmo tempo que desencadeia a guerra de todos contra todos, gerando as condições para uma tirania cínica, barroca e destrutiva.

Reconsideremos as premissas distantes daquilo que chamamos de desregulação. No início está a criação tecnológica do paradigma rizomático. Graças à comercialização de tecnologias electrônicas durante as décadas de 1960 e 1970, tornou-se possível a difusão democrática de fontes autonomas de informação. Na Itália e na França criamos centenas de estações de rádio livres depois de travarmos uma batalha cultural contra o monopólio estatal da informação. Então, a criação da world wide web possibilitou a proliferação de inúmeros centros de netcultura ao redor do mundo. Mas pela fenda aberta pela criatividade difusa entraram grandes grupos econômicos e mafiosos (Berlusconi em Itália, Trump nos Estados Unidos e indivíduos semelhantes em todos e cada um dos países do mundo), cujo objetivo não era certamente a criação, a cultura ou a informação, mas a acumulação de capital e a aquisição de poder político ilimitado sobre as mentes de uma sociedade psiquicamente subjugada.

Zed is dead, baby

Vi The Apprentice (2024), filme de Ali Abbasi, que aborda o período de aprendizagem do candidato republicano das atuais eleições estadunidenses. O título é habilmente retirado do programa televisivo em que, há algumas décadas, Donald Trump submetia os candidatos a diversas humilhações, que apareciam diante dele para serem insultados, ridicularizados, questionados e, por fim, despedidos (“You’re fired”). Havia filas para serem ridicularizadas publicamente por aquele indivíduo loiro. Porque? O enigma de Trump demonstra que os instrumentos de análise política já não são úteis. Na verdade, para compreender tal monstruosidade ética, psíquica e política, é necessário falar em humilhação, tristeza epidêmica, autodepreciação, é necessário falar em liberdade ilimitada para escravocratas, tiranos psicóticos e fabricantes de armas. O filme de Abbasi consegue isso até certo ponto: pode ser não seja um grande filme, mas é útil para compreender alguns dos antecedentes psíquicos, existenciais e mafiosos em que Trump cresceu. É útil compreender as ferramentas de seu domínio sobre a psique de um povo miserável e imensamente ignorante.

O filme não é sobre o programa The Apprentice, do qual apropriadamente tira o título, mas na verdade sobre o aprendizado do próprio Trump. Como se tornou o que é? Para responder a esta questão, a psicanálise pode ser mais útil do que a teoria política. A sobrinha do homem laranja, Mary L. Trump, psicóloga de formação, escreveu um livro intitulado Too Much and Never Enough: How My Family Designed the World`s Most Dangerous Man (2020), no qual ela tenta entender seu tio de um ponto de vista psicanalítico. A primeira impressão que tive ao ler o livro é que a vida desse indivíduo foi (e é) imensamente triste. O pai de Trump era, na opinião de Mary, uma pessoa sociopata, mas eficiente. O filme de Abbasi também consegue mostrar como a relação com o pai foi decisiva. Donald viveu sua infância e adolescência com medo da humilhação a que seu pai o submeteu sistematicamente, o que lhe causou profundas feridas psicológicas. “A crença fundamental de Fred (o pai sociopata) é esta: na vida há sempre apenas um vencedor e todos os outros são perdedores; a amabilidade, por outro lado, significa apenas fraqueza”. “Ou você é um perdedor ou é uma pessoa que aposta tudo”, diz o pai ao pequeno Donald. Partindo de tais premissas, é impossível desfrutar das relações com os outros, pois essas relações só podem ser de competição, agressão ou submissão. Mas, infelizmente, não será este um traço decisivo da personalidade coletiva dos habitantes deste país, que não teria existido sem o genocídio dos nativos americanos e sem a deportação e a escravidão?

As três regras que Donald aprende com um advogado racista da máfia (Roy Cohn) são as seguintes:

1.Ataque, ataque, ataque.
2. Sempre minta.
3. Sempre declare vitória e nunca admita a derrota.

Como observa um personagem do filme, que é jornalista do The New York Times, esses três princípios descrevem muito bem a política externa estadunidense dos últimos 30 anos. Eu diria que eles definem o espírito público dos Estados Unidos da América, do princípio ao fim. O inconsciente coletivo dos estadunidenses brancos é um porão fétido de onde emergem monstros como aquele que Tarantino retratou em Pulp Fiction (1994). Você se lembra de quando Bruce Willis liberta Marcellus daquele porão, onde Zed, o torturador, o mantém amarrado para abusar dele? Não há melhor maneira de explicar os anos Trump, embora, infelizmente, me pareça que Zed está vivo e bem, preparando-se para pisotear um bando de pobres.

Nomen est omen

No início de 2021, logo após o ataque ridículo ao Capitólio pelas tropas do general Trump, publiquei um ensaio intitulado “The American Anyss” no e-flux. Quatro anos mais tarde, esse abismo está se tornando mais profundo e um perigo torna-se cada vez mais evidente: a desintegração da mente estadunidense pode desencadear uma reação em cadeia que acabará por aniquilar a vida humana na Terra. Às vezes penso no nome desse indivíduo: trump significa vencer, superar, subjugar, mas o substantivo trump também significa peido, peido fedorento. Se alguma vez a frase “nomen est omen” [o nome é tudo] foi verdade, é esse o caso. O homem laranja é um peido fedorento, que se propõe (e consegue) a empestear a atmosfera psíquica, humilhando e ameaçando. Se eu tivesse a infelicidade de ser cidadão estadunidense, não votaria em nenhum dos candidatos: a senhora Harris, que prometeu que os militares dos EUA estarão sempre equipados com a letalidade máxima, é mais perigosa do que o senhor Trump do ponto de vista europeu, porque com a senhora Harris como presidente, a guerra na Ucrânia se estenderia até o limiar atômico. Trump, que representa consciente e explicitamente os interesses da raça branca, seria uma catástrofe para os palestinos e, de forma mais geral, para os migrantes, a quem Trump e Vance prometeram “a maior deportação da história”. Mas é difícil imaginar como Trump poderia ser mais implacável do que Biden e Obama, que deportaram mais migrantes durante as suas presidências do que o homem peido. E é difícil imaginar como é que ele poderia ser mais implacável com os palestinos do que Biden, que nunca deixou de apoiar financeiramente ou de enviar armas aos exterminadores israelenses. Talvez eu fosse menos hipócrita.

Psicose memética

Em 6 de janeiro de 2021, enquanto o novo presidente democrata se preparava para assumir o seu lugar na Casa Branca e o Congresso se reunia para realizar os seus rituais institucionais, uma multidão heterogênea respondeu ao apelo de Trump para salvar a América e alguns milhares de perturbados marcharam em direção ao Capitólio. Sem encontrar qualquer resistência séria por parte da polícia, estes lunáticos entraram nas salas do Capitólio, quebraram os vidros das janelas, vociferando enquanto agitavam bandeiras confederadas e bandeiras com suásticas. Donald Trump incitou os alvorotados a recuperar o poder pela força. “Você nunca recuperará seu país com fraqueza. Devem mostrar força e ser forte. […]. Lutem, lutem como homens condenados. E se vocês não lutarem como condenados, não haverá país para vocês”. No final do dia a multidão voltou para casa, como faz depois de um belo passeio de domingo. Algumas pessoas ficaram feridas e uma foi morta após tiros de um policial. Os comentaristas democratas ficaram realmente indignados, como não compreendê-los, mas a indignação dos Democratas perante as falsidades contadas por Trump e nas quais os seus seguidores acreditam é pueril. Depois de 2008, os estadunidenses brancos, atolados em duas guerras insanas, humilhados pelo empobrecimento provocado pela crise financeira e aterrorizados pelo colapso demográfico, agarraram-se desesperadamente às suas armas, aos seus SUVs, ao seu direito de comer carne e ao seu direito de matar.

O que aconteceu em Washington no dia 6 de janeiro de 2021 não foi uma insurreição ou um golpe de Estado, mas sim um episódio ridículo e criminoso da guerra civil americana, que é o entrelaçamento de vários conflitos, ou seja, um conflito entre o nacionalismo branco e o globalismo liberal, um conflito entre a população branca e a população negra, latina e asiática, um conflito entre as metrópoles e as áreas rurais empobrecidas e um conflito cultural entre secularistas e fanáticos de algum Jeová sintético, mas esta guerra está diante de uma guerra civil psicótica guerra de lunáticos armados, que decidem matar a primeira pessoa que se coloque no caminho. Este é o abismo estadunidense, não a propagação de fake news. Em 2016 aconteceu o impensável: um nazista loiro tingido venceu as eleições. A partir desse momento ficou claro que a maior potência do mundo is running amok [está fora de controle], que perdeu a cabeça, enquanto tem 120 armas de fogo para cada cem habitantes. Os Democratas queixam-se de que as redes sociais produzem uma avalanche de falsidades, mas só uma pessoa ingênua não perceberia que as falsidades não podem ser erradicadas, porque os Estados Unidos são o reino da falsidade.

Entre 1º de janeiro e 31 de agosto de 2023, ocorreram 28.293 mortes por armas de fogo nos Estados Unidos. As mortes em ações de mass-shooting (como traduzir uma palavra tão ligada à língua dos pistoleiros?) foram 474. Os homicídios não intencionados por arma de fogo, ou seja, os mortos por acidente no manuseio de arma, foram 1.070.

Um pai estadunidense

Apesar de consumirem quatro vezes mais eletricidade e muito mais carne do que qualquer outra pessoa no planeta (ou talvez por causa disso), os cidadãos dos Estados Unidos levam vidas miseráveis. A expectativa média de vida na Espanha é de 83,3 anos, na Suécia 83,1, na Itália 82,7, na China 77,1. Nos Estados Unidos, a expectativa de vida nos últimos anos é de 76,1 anos. 65% dos habitantes não têm poupanças e, se adoecerem, têm boas chances de acabar nas ruas. Em 2022, se produziram 100 mil mortes por overdose de opiáceos. A maior potência militar do planeta está se desintegrando. A palavra “impensável” é recorrente no discurso público estadunidense nos últimos anos.“Precisamos pensar o impensável sobre o nosso país” é o título de um editorial do The New York Times publicado em 13 de janeiro de 2022, escrito por Jonathan Stevenson e Steven Simon:

As próximas eleições nacionais serão inevitavelmente disputadas sanha e talvez violência. É correto afirmar que a ameaça que a direita representa aos Estados Unidos – e o seu objetivo evidente de lançar as bases para tomar o poder ilegitimamente, se necessário, em 2024 – é politicamente existencial. […] O pior cenário é este: os Estados Unidos como conhecemos poderão desintegrar-se.

The Unthinkeble: Trauma, Truth, and the Trials of American Democracy por outro lado, é o título de um livro de Jamie Raskin, publicado em 6 de janeiro de 2022, no primeiro aniversário da insurreição psicótica. O autor não é apenas um escritor, mas um importante membro do Congresso, eleito em Maryland para as fileiras do Partido Democrata. Além disso, Jamie Raskin é professor de Direito Constitucional, autodenomina-se liberal e pai de três filhos na faixa dos vinte e trinta anos. Um deles, Tommy, de 25 anos, ativista político, apoiador de causas progressistas e defensor dos animais, morreu na noite do último dia do ano de 2020. Tommy escolheu morrer, suicidou-se como dizem. Fez isso depois de uma longa depressão, mas também como consequência da longa humilhação moral que o trumpismo infligiu aos seus sentimentos humanitários. Para Jaimie Raskin, a decisão final de Tommy não é apenas uma catástrofe emocional, mas o início de uma reconsideração radical das suas convicções. Ao ler este livro, partilhei a dor de um pai e o tormento de um intelectual, mas ao mesmo tempo foi revelada a profundidade da crise que está dilacerando o Ocidente e, em particular, obscurecendo o horizonte cultural da democracia liberal. O pai não tem mais nenhum mundo de valores para transmitir ao filho. No livro, três histórias diferentes se desenrolam simultaneamente e se alimentam reciprocamente: a primeira é a história do fascismo estadunidense emergente. A segunda é a vida de Tommy, a sua educação, os seus ideais e a constante humilhação da sua sensibilidade ética. A terceira é o efeito da covid-19 nas mentes da geração mais jovem, aquela que mais sofreu com as regras de distanciamento. Tommy sofria de depressão e, em sua última mensagem, fala sobre isso: “Perdoe-me, minha doença venceu”.

Jamie Raskin escreve:

Tal como muitos jovens da sua geração, Tommy foi arrastado pela covid-19 para uma espiral maligna. Com os centros educativos fechados, a sua vida social foi reduzida a um ponto frágil acompanhado da máscara, as viagens tornaram-se um pesadelo. As relações tornaram-se difíceis, forçadas a uma intimidade prematura e torpe ou de fato condenadas ao esquecimento virtual. Muitos jovens sofreram com o desemprego, a falta de oportunidades econômicas e uma profunda incerteza. Muitos, como Tommy, foram obrigados a voltar para a casa dos pais e ficar em uma sala cheia de livros de bacharelado […]. Tommy declarou-se antinatalista porque não podia aceitar a perspectiva de comprometer outro ser humano com uma vida destinada a ser dominada pela dor da tristeza e do sofrimento.

Por mais que Sarah e eu tentássemos descrever para ele a alegria de ter filhos, Tommy não renunciava a sua determinação, porque ninguém tem o direito de impor a outra pessoa a inevitável experiência de dor. Não me dá muito conforto saber que uma parcela enorme e crescente da sua geração sente o mesmo em relação à opção de não ter filhos.

O antinatalismo é provavelmente um efeito da depressão – como não seria? – mas mostra que a depressão pode ser uma condição de sabedoria e não apenas uma doença. Torna-se uma doença quando não compreendemos a sua mensagem e tentamos desesperadamente conformar-nos com as normas dominantes de produtividade, eficácia e dinamismo. Rechaçar a mensagem da depressão, reafirmar a força de vontade contra a mensagem que ela nos envia, é uma forma de cair numa tendência suicida. Se formos capazes de compreender o significado e a sabedoria da depressão, é possível uma evolução consciente e partilhada da mesma. No caso de Tommy isto é evidente: o seu denatalismo é talvez mais sábio do que a decisão irresponsável de dar à luz a inocentes destinados a uma vida quase certamente infeliz.

Após a morte do filho, a percepção de Raskin muda: seu otimismo constitucionalista vacila diante da explosão da força bruta, que tende a anular a força da razão, enquanto suas certezas democráticas vacilam diante da proliferação da depressão.

De repente, meu otimismo constitucional me deixa numa situação difícil, como se fosse uma vergonha. Temo que o meu resplandecente optimismo político, que muitos dos meus amigos apreciaram em mim, se tenha se tornado uma armadilha de auto-engano massivo, uma fraqueza que pode ser explorada pelos nossos inimigos.

O otimismo político deste generoso professor de Direito Constitucional é abalado pela súbita constatação de que a democracia liberal está sentada em alicerces frágeis. De fato, ele escreve:

Sete dos nossos primeiros dez presidentes eram proprietários de escravos. Estes fatos não são acidentais, mas nascem da própria arquitetura das nossas instituições políticas.

A escravidão faz parte da bagagem psíquica da nação estadunidense. Como pode esta nação esperar servir de exemplo para as outras? Como podemos não pensar que esta nação é um perigo para a sobrevivência da humanidade?

A lei do pai não tem mais poder sobre o caos

Trump poderá voltar a ser presidente dos Estados Unidos da América [este texto foi escrito antes da vitória do ex-presidente estadunidense], enquanto o mundo entrou, por meio das instâncias estadunidenses, num ciclo de guerra civil psicótica, cujos resultados são imprevisíveis e, na verdade, verdadeiramente impensáveis. O pai não tem mais um mundo de significado para legar ao filho. A lei do pai não tem mais poder sobre o caos. Quem quer que ganhe estas eleições dopadas de bilhões de dólares, o caos está garantido.

 

Revisão dos gastos

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Vivemos momentos de grandes incertezas econômicas e financeiras que impactam sobre todo o sistema produtivo, com aumento nas taxas de juros, desvalorização cambial e preocupações crescentes sobre a inflação, desta forma, percebemos a piora dos indicadores econômicos e o incremento dos desequilíbrios políticos.

Neste cenário, os agentes econômicos e financeiros usam seus instrumentos de pressão para pressionar o governo federal para revisar os gastos públicos para evitar que a dívida pública cresça de forma acelerada, impactando fortemente sobre a economia nacional e melhore as perspectivas econômicas, estimulando o sistema produtivo e contribuindo para a recuperação nacional.

Desde a crise financeira internacional de 2008 e, principalmente, depois da pandemia os governos nacionais foram incentivados a adotarem uma política mais intervencionista, com aumento dos gastos públicos e uma visão mais protecionista com o objetivo de proteger seus setores produtivos, garantindo mais empregos e incremento dos salários, desta forma, a economia retomaria seu caminho de mais investimentos produtivos e uma maior geração de renda agregada.

Depois de grandes estímulos fiscais e financeiros, os governos nacionais buscam um maior equilíbrio fiscal, reduzindo os estímulos e reorganizando as contas públicas, reduzindo ineficiências e adotando medidas mais efetivas para melhorar a arrecadação nacional como forma de evitar o estouro da dívida pública. Neste ambiente, os mercados pressionam o governo nacional para uma maior racionalização das contas públicas, impedindo que a dívida pública cresça e a inflação impactem sobre taxas de juros maiores, refletindo negativamente sobre as atividades econômicas.

A revisão dos gastos públicos deve ser feita por todos os governos como forma de aumentar a eficiência e a melhor alocação de recursos públicos, objetivando uma melhora dos serviços públicos e evitando os desperdícios que acometem a gestão pública. Neste momento, percebemos a grande dificuldade do Estado Nacional para rever os gastos públicos e a racionalização dos recursos da comunidade, afinal rever gastos de grupos privilegiados pode ser visto como uma declaração de guerra. Todos falam a favor da redução dos gastos públicos, criticando os dispêndios governamentais, desde que a conta caia sobre os ombros de terceiros. Os grupos sociais mais bem organizados defendem seus privilégios, muitos deles “garantidos” a muitos séculos, mesmo sabendo que seus privilégios existem em detrimento de outros grupos sociais, que muitas vezes querem apenas garantir um direito essencial, gerando incertezas e instabilidades que desestabilizam os governos de plantão.

Neste momento, os palácios governamentais estão discutindo como fazer para restringir os gastos públicos e dar racionalidade ao arcabouço fiscal, reduzindo os recursos com o BPC (Benefício de Prestação Continuada), o Abono e os seguro-desemprego, que impacta fortemente sobre os grupos mais fragilizados da sociedade brasileira, tudo isso garantiria recursos adicionais para melhorar o ambiente econômico e uma melhora dos horizontes, principalmente dos financistas. Neste momento, a sociedade brasileira está perdendo tempo, devemos fazer uma revisão geral dos gastos públicos, adotando taxação de lucros e dividendos, revendo isenções fiscais e tributárias que consomem bilhões, acabando com penduricados que engordam salários elevados, além da tributação das grandes fortunas, desta forma, o ajuste  fiscal contribuirá para que o sistema tributário nacional seja menos regressistas e tão desigual.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Pragmatismo e desinteresse de Trump devem marcar relação com a América Latina, por Monica Hirst

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Apesar de sua condição periférica, regiao sofrerá impactos do novo governo na questão migratória; crise na Venezuela deve ser ponto de contato, mas sem visão coordenada.

Monica Hirst, Professora da Universidade Torquato di Tella (Buenos Aires) e pesquisadora-colaboradora do IESP-UERJ; autora de livros sobre a relação EUA-Brasil

Folha de São Paulo – 06/11/2024

A vitória de Donald Trump encontra uma América Latina prostrada, dividida e silenciosa. Mantendo-se fiel ao perfil de baixa prioridade estratégica para a grande potência do Norte, a região já não se projeta internacionalmente como um coletivo com voz política própria e difenciada. Trata-se de uma zona geográfica de poucas palavras, de peso decrescente na economia mundial, cobiçada por interesses extrarregionais em razão de suas riquezas minerais, de seu lugar como pulmão verde de um planeta que respira mal e de sua sistemática capacidade de oferta de delito organizado.

Independentemente de sua condição periférica, a região sofrerá o impacto do resultado das urnas americanas, particularmente com referência a três temas: questão migratória, democracia e geopolítica mundial.

Com certa ironia, a região deu seu aporte ao mote Faça a América Grande Outra Vez (“Make America Great again”), slogan que também vem sendo subentendido como Faça a América Branca Outra Vez. Durante toda sua campanha, o republicano mencionou o tema migratório de forma entrelaçada com os problemas causados pela porosidade em vários pontos dos 3,2 mil quilômetros de fronteira com o México.

De fato, trata-se de uma contribuição pelo avesso, já que ela se dá a partir de uma agenda negativa, a qual não só foi de enorme serventia para Trump como atuou como um estímulo de sentimentos que frequentam a agenda do ódio das massas que o apoiam. A menção constante do México e seus migrantes como os grandes responsáveis pela entrada do crime e da violência no país passou a legitimar sentimentos de xenofobia, racismo e agressividade.

A proposta do presidente eleito de uma maciça deportação (em 2022, 45% dos 11,3 milhões de imigrantes em situação irregular nos EUA eram mexicanos) seria uma “bukelização” das práticas migratórias do novo governo, a seguir o exemplo de crueldade de Nayib Bukele no tratamento da sua população carcerária em El Salvador. O sentido racista imbuído na proposta de Trump não deixa também de mostrar seu parentesco com programas de limpeza étnica tão conhecidos ao longo da história do século 20 em diferentes partes da Europa e atualmente posto em prática na Faixa de Gaza pelo governo de Israel.

O segundo tema, da democracia, ganhou um lugar privilegiado nos discursos de Kamala Harris. A inclusão desse ponto na agenda democrata fez eco em alguns países da América Latina, com menção especial ao Brasil. A articulação dos grupos de extrema direita nas redes sociais tornou-se especialmente veloz na região. O calendário eleitoral na década recente foi funcional para dar asas à regionalização de uma nova extrema direita com lideranças que atuam dentro e fora das instituições representativas, junto e dentro de organizações religiosas evangélicas, apoiadas por setores jovens de diversos segmentos sociais cativados pelo ideário libertário. Depois do período 2019-2022 do governo de Jair Bolsonaro, a chegada de Javier Milei ao poder na Argentina em 2023 deu continuidade a essa tendência.

De forma inusitada, o governo Lula se posicionou frente à disputa eleitoral a favor da candidata democrata. O resultado das urnas americanas terminou presenteando às forças opositoras no Brasil um lugar vencedor.

A retomada por Brasília de uma linha de atuação pragmática em seu bilateralismo com Washington, que dê destaque às agendas positivas em campos econômico-comerciais, poderá atenuar esse tipo de reflexo, mas não impedirá o fortalecimento dos laços políticos entre trumpistas e bolsonaristas, especialmente com a mira posta nas eleições de 2026. É de se esperar, portanto, uma via dupla de relacionamento bilateral nos próximos dois anos.

O terceiro ponto do impacto refere-se à geopolítica mundial e ao relacionamento de Trump com a região. O ponto de intersecção entre ambos deverá dar-se com respeito à Venezuela, em um mix de reedição da Doutrina Monroe e do uso de métodos esperados numa Guerra Fria 2.0. Neste caso, se aplicaria uma receita com três modos de atuação, possivelmente complementares: a coerção, com uma robusta e dolorosa aplicação de sanções econômicas; a transação, que implica um acerto amplo com Rússia sobre a Ucrânia e incluiria uma retirada de mãos (hands-off) da Venezuela; e a intervenção, instrumentalizada pelo Comando Sul e apoiado pela Guiana.

Retomando o início desta reflexão, é de se esperar que a América Latina manterá sua posição de “nada a declarar” diante de cada um desses cenários. Na América do Sul, o primado do pragmatismo e a preservação dos vínculos com a China compram o silêncio.

 

As instituições e o Prêmio Nobel, por Luiz Carlos Bresser Pereira

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Faz sentido usar as instituições para explicar o atraso sem considerar as estruturas sociais?

Luiz Carlos Bresser Pereira, Professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (1987, governo Sarney), da Administração e da Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (1995-1998 e 1999, governo FHC)

Folha de São Paulo – 07/11/2024

Acemoglu, Robinson e Johnson ganharam o Prêmio Nobel de Economia neste ano. Em 2001, eles explicaram o atraso dos países em relação aos países ricos com a tese de que os países que se atrasaram não foram colônias de povoamento como foram os Estados Unidos ou a Australia. Estavam em parte corretos, porque essa foi a tese clássica de Caio Prado Júnior. Não discutirei aqui esse trabalho.

Em 2005, eles “descobriram” que o atraso dos países periféricos em relação aos países centrais poderia ser explicado pelo fato de suas instituições não terem garantido suficientemente a propriedade e os contratos e, assim, haverem desestimulado os empresários a investir. Estavam, neste caso, errados.

Afirmar a importância de boas instituições para o desenvolvimento é a mesma coisa que dizer que a água é importante. É óbvio que as instituições —as normas que organizam a vida social— são fundamentais.
A questão real não é essa, mas sim se faz sentido usar as instituições para explicar o atraso em vez de considerar as estruturas sociais, como eles fizeram sem saber no trabalho anterior. Elas nos dizem, no caso do atraso, se o país teve uma colonização de povoamento ou de exploração mercantil, como nos países latino-americanos.

Nos primeiros, formou-se logo uma classe média e a evolução para o capitalismo foi quase natural, enquanto nos países periféricos o caráter tradicional da sociedade e a condição colonial ou dependente se mantiveram por muito tempo; no caso da dependência, até agora. Nos dizem qual foi o peso do escravismo em cada sociedade.

O que os novos nóbeis de Economia —ou a escola novo-institucionalista à qual pertencem— subestimam é que as instituições são endógenas. Elas dependem das estruturas sociais; elas mudam conforme mudam essas estruturas.

A partir do livro de 1990 de Douglas North, “Instituições, Mudança Institucional e Desempenho Econômico”, o institucionalismo se transformou em uma teoria de desenvolvimento. Surgiu, não por acaso, em torno de 1980.

Foi nesse momento que os Estados Unidos e os demais países ricos fizeram a “virada neoliberal” e perceberam que as instituições eram uma forma muito mais cômoda de explicar o atraso da periferia. Dessa maneira, a nova escola livrava-se não apenas de questões estruturais mais difíceis de mudar mas também do imperialismo ao qual os países periféricos foram e continuam sendo submetidos.

A tese novo-institucionalista da propriedade e dos contratos parece verdadeira à primeira vista, mas realmente não faz sentido.

Tomando-se como referência os primeiros anos do século 19: como seria possível comparar países em que a estrutura social era tradicional e a população em grande parte indígena ou descendente de escravos com a estrutura social de países como os Estados Unidos ou a Austrália?

Dar importância às instituições sem considerar as estruturas tornou mais fácil para o centro neoliberal definir o que os países periféricos deveriam fazer. Bastaria fazer as reformas institucionais —privatizar, desregular, liberalizar— e tudo seria resolvido.

Há ainda a considerar que em países de renda média é comum haver instituições mais modernas e adequadas do que nos países em desenvolvimento. Nós, por exemplo, temos a regulamentação dos medicamentos genéricos que poucos países ricos têm. Na Grã-Bretanha, a obtenção de documentos é mais demorada do que no Brasil. Nos Estados Unidos, o uso de armas de fogo é permitido senão incentivado.

Mudar as instituições é fácil, mudar as estruturas é mais difícil, e o país se livrar do imperialismo é mais difícil ainda. Muito mais fácil é realizar as reformas neoliberais, principalmente a completa liberalização comercial e financeira. O centro não quer o desenvolvimento da periferia; ele não quer que esta produza bens com mão de obra barata para com ele concorrer e quer manter a troca desigual entre manufaturas e commodities.

Sim, as instituições, assim como a água, são importantes. É impossível viver sem elas, mas assim como por trás da água estão as nascentes, por trás das instituições estão as estruturas econômicas e sociais.

 

Ajuste fiscal: impacto ao SUS pode ser trágico, por Guilherme Arruda

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Manifesto com forte adesão entre sanitaristas critica proposta de impor mais limites ao gasto social. Alerta é claro: abandonar investimento em áreas essenciais pode ser destrutivo para Saúde e Previdência – e abrir caminho para grande frustração popular

Guilherme Arruda – OUTRA SAÚDE – 01/11/2024

O momento pode ser um divisor de águas. Após um mês de sinais indiretos e especulações na imprensa, ministros como Fernando Haddad (Fazenda) e Simone Tebet (Planejamento) agora afirmam abertamente que o Governo Federal deve promover cortes nas políticas sociais para cumprir com os rígidos controles de gastos impostos pelo Arcabouço Fiscal e acalmar a chamada “tensão no mercado”. Na quarta-feira (30/10), Haddad confirmou que uma Proposta de Emenda Constitucional contendo um mecanismo de limitação das despesas obrigatórias será apresentada “no mês de novembro”.

A movimentação não ficou sem resposta na sociedade: um manifesto divulgado no mesmo dia se posicionou firmemente contra a proposta de ajuste fiscal, alertando que “ceder a essa lógica de cortes e restrições não é apenas um erro econômico; é um ataque frontal aos direitos sociais e à dignidade da população”. Notavelmente, o documento teve adesão expressiva na área da Saúde, a exemplo do ex-ministro José Gomes Temporão, o diretor do Instituto de Saúde Coletiva da UFF Túlio Batista Franco, o presidente da Associação Brasileira de Economia em Saúde (ABrES) Francisco Funcia e os sanitaristas Ana Maria Costa e Itamar Lages. “O Estado brasileiro tem uma enorme dívida com a sua população e não pode, na sua política fiscal, cortar nos gastos sociais. Pelo contrário, eles devem ser uma prioridade”, afirmou Túlio a Outra Saúde.

Para muitos, a assinatura no manifesto não consiste em uma ação “contra o governo” – mas uma cobrança para que ele se atenha aos compromissos de reconstrução nacional e retomada do investimento social e no SUS que firmou ainda em 2022 com o movimento sanitário, além de todo o povo brasileiro, durante a batalha contra as forças obscurantistas que conduziam o país. “Esse é o tom necessário hoje, porque essa decisão pode levar a uma regressão muito forte das políticas sociais e do direito à saúde. Recuar frente à pressão hegemônica da direita e do mercado? Não dá”, avaliou Ana Maria Costa.

A este boletim, uma dezena de especialistas, acadêmicos de diversas áreas e parlamentares alertaram para o retrocesso que os cortes anunciados podem significar para políticas tão diversas quanto o piso constitucional da saúde e o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Os riscos, como ilustra o próprio manifesto, são claros: “Ao abandonar investimentos em áreas essenciais, o governo abre caminho para o avanço de discursos autoritários e reacionários que se alimentam do desespero e da frustração popular”.

Uma tese fiscal questionável

No âmbito da Saúde, a discussão em torno do orçamento não é nova. A nível histórico, o movimento sanitário sempre frisou a necessidade de amplos recursos para que o projeto do SUS se materializasse em toda sua potência – assim como alertou sobre o risco mortal que o subfinanciamento acarreta para a concretização dos princípios da universalidade, integralidade e equidade. Mais recentemente, como sempre relembra a própria ministra Nísia Trindade, a PEC de Transição articulada antes da posse de Lula foi decisiva para que o orçamento da Saúde fosse “o maior da história” em 2023. Porém, um terceiro fato é o que realmente faz o tema pairar no ar há mais de um ano: desde a aprovação do Arcabouço Fiscal – e Outra Saúde cobriu o imbróglio em profundidade –, o Ministério da Fazenda lança “balões de ensaio” para testar a viabilidade de flexibilizar o piso constitucional de investimentos na saúde, que prevê que 15% da Receita Corrente Líquida (RCL) anual deve ir para a área.

No raciocínio da pasta, a flexibilização do piso da saúde – ou outra das medidas atualmente em discussão, como mudanças no BPC e no seguro-desemprego – poderia garantir o espaço fiscal necessário para que o orçamento não fique estrangulado e o “equilíbrio fiscal” seja alcançado. Contudo, na avaliação do economista e presidente da ABrES, Francisco Funcia, essa hipótese é imprecisa: “O que está comprovado desde a pandemia é que aumento do gasto público não inviabiliza em hipótese alguma as contas do governo. Cortar gastos não vai trazer qualquer avanço na busca pelo equilíbrio fiscal. Pelo contrário, a teoria econômica mostra que os gastos sociais, como parte dos gastos públicos, têm um efeito dinâmico na atividade econômica. Não dá para pensar na questão do equilíbrio das contas públicas com um olhar de economia doméstica, como tem sido feito pela mídia e também por alguns setores do governo”.

Funcia aponta que os próprios recursos que o governo garantiu para o orçamento da Saúde em 2023 e 2024 “têm tido um efeito positivo para a dinâmica econômica, além de terem sido uma iniciativa importante na linha da garantia dos direitos da cidadania”, depois da tragédia que o governo Bolsonaro representou para o SUS. Isto é, a nova iniciativa de contenção dos gastos estaria em contradição com os resultados concretos da destinação de recursos para a Saúde até aqui. “Eu acho muito importante destacar que o governo começou resgatando os investimentos sociais e a nova proposta vai na contramão desse resgate”, ele ressalta.

Se é mesmo preciso que uma fatia do Orçamento federal sofra cortes drásticos, como defende a equipe econômica, o manifesto propõe outro alvo: as despesas financeiras, especialmente o pagamento de juros que beneficiam os grandes rentistas. “Nós estamos em uma situação em que a única fatia do orçamento público nacional em que não se mexe é o serviço da dívida”, critica a sanitarista Ana Maria Costa.

Impacto mortal?

Por enquanto, não foi anunciado pelo Governo se os cortes impactarão áreas específicas dos investimentos sociais ou se haverá um mecanismo geral de contenção dos gastos. Contudo, onde quer que recaiam, os prognósticos apresentados por especialistas ouvidos por Outra Saúde são de uma tragédia para a população mais pobre.

Se recair sobre a Saúde, seja na forma da flexibilização do piso de investimentos ou outra, o corte de gastos “vai acabar gerando definitivamente um SUS ruim, de baixa qualidade e insuficiente para a população. A saúde que a Constituição prometeu, que é direito de todos, já não é possível com o atual gasto de 4,2% do PIB, imagine se for menos”, avalia Ana Maria Costa. Em sua visão, o próprio projeto do SUS pode estar em jogo com a futura PEC: “É essencial que se faça essa discussão agora para salvar o projeto político da saúde como um direito universal”, defende a signatária do manifesto.

Por sua vez, caso recaiam sobre a Previdência Social, os cortes “sem dúvida vão fazer com que a velhice e a pobreza voltem a ser sinônimos”, pontua Jorge Félix, professor da EACH-USP dedicado às pesquisas sobre o envelhecimento e a economia. Se as conquistas da Constituição de 1988 tiveram o mérito de melhorar a qualidade da vida dos idosos do Brasil, a “desumana desvinculação do salário mínimo da seguridade social e a estigmatização do BPC” que vem sendo aventadas pelo Governo seriam comparáveis a uma nova Reforma da Previdência em seus efeitos para os mais velhos – gerando empobrecimento e miséria em grande escala.

Parlamentares signatários do manifesto que foram ouvidos por Outra Saúde também concentraram suas críticas nos possíveis efeitos dos cortes sobre os direitos dos brasileiros mais vulneráveis. “As suspeitas de que a busca do equilíbrio fiscal recairia na revisão ou restrição de benefícios socioassistenciais têm que ser logo afastadas. Não se pode buscar ajuste fiscal sobre os mais pobres, mas sobre os mais ricos”, opinou o deputado estadual Renato Roseno (PSOL-CE).

“A previdência pública e direitos como BPC, aposentadoria, FGTS e seguro-desemprego foram duramente conquistados e são muito importantes para garantir um mínimo de dignidade para o povo brasileiro. Para mim, a importância da mobilização em torno desse manifesto é deixar bem claro que a posição de grande parte das pessoas do campo democrático é contrária a qualquer tipo de retrocesso na assistência social e nos direitos”, complementou Luana Alves (PSOL-SP), vereadora de São Paulo e trabalhadora da saúde.

Bandeiras históricas sob ameaça

Estratégico para o clima de inevitabilidade dos cortes sociais, avaliam muitos dos entrevistados, é o bombardeio midiático intenso em prol do fiscalismo. Para a professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e estudiosa da Economia Política de Comunicação, Helena Martins, “a mídia dominante tem exercido um papel fundamental de legitimar essas ações que são restritivas de direitos e apresentá-las como única saída econômica”. Contudo, ela relembra que “em todo o mundo, já se mostrou que o ajuste fiscal pavimenta o caminho da extrema-direita e o governo comete um erro grave ao seguir nessa direção”.

No mesmo sentido, a professora da UFRJ Lena Lavinas destaca que “não é verdade que solapar direitos em nome de um regime monetário e fiscal inadequado seja a única medida ao alcance do governo para promover o desenvolvimento de uma sociedade radicalmente democrática, igualitária e comprometida com a preservação do planeta. Fazer ajustes em cima de direitos essenciais é causa de sofrimento e não caminho para o progresso. Esse governo precisa ouvir e dialogar, para não comprometer o futuro”.

“A política tem sido esvaziada do seu sentido mais pleno, alimentando a descrença e não a esperança. O exercício da cidadania exige mobilização e expressão das demandas populares, tal como faz agora este manifesto, rompendo, portanto, com o marasmo e a apatia que se abateram sobre a sociedade brasileira frustrada crescentemente nas suas expectativas pela manutenção das regras de austeridade”, continua Lavinas.

O sentimento foi ecoado por outros signatários do texto, que o tomam como o alerta definitivo para que o Governo Federal tenha clareza da temeridade que representa a decisão de dar seguimento aos cortes de gastos, pondo em risco conquistas históricas dos trabalhadores. “Se nós não tivermos o tom do manifesto daqui pra frente, vamos perder nosso papel histórico enquanto movimento sanitário. Nós saímos da pandemia com o SUS valorizado pelo povo, não é hora do medo e do recuo”, afirma Ana Costa.

“O abaixo-assinado é um ato amoroso, embora duro e contundente, de solidariedade crítica. Assim, não é o manifesto que expõe e fragiliza o governo, são as medidas que o governo diz que quer adotar”, completa Itamar Lages, professor de Enfermagem da UPE e membro do Cebes Recife.

 

A força do SUS e as lutas por vir, por Túlio Batista Franco

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Embates na saúde pública tem sido duros – mas não é preciso desespero ou derrotismo. Construção coletiva e comunitária, de onde o SUS sempre tirou sua força, será mais uma vez a resposta para os desafios

Túlio Batista Franco Outra Saúde – 05/11/2024

O Brasil debate o Brasil. As eleições municipais recentes estão sendo amplamente discutidas. Independente das opiniões circulantes, estamos vivendo um momento de intensa disputa pelos rumos do país, que poderá conhecer contornos dramáticos no futuro próximo. Urge produzir um engajamento orgânico entre uma proposta política para o futuro e a maioria da população. Um país que seja libertário, livre de todo tipo de preconceito, que admita a diferença como constitutiva da paisagem humana, socialmente justo. Um mundo que caiba todos os mundos dignamente.

O movimento sanitário, que tem a Frente pela Vida como núcleo aglutinador, há 4 anos e meio assume um importante protagonismo na vida nacional. Após o enfrentamento intenso e cotidiano na pandemia, elaborou uma política de saúde para disputar as eleições em 2022, mobilizou entidades e movimentos do país inteiro em apoio à candidatura do presidente Lula e discutiu com a então Comissão de Transição do Governo, na área da saúde, soluções para o SUS. Foi contra incluir o orçamento da saúde no “arcabouço fiscal”, e vê com imensa preocupação propostas de retirada do piso constitucional da saúde, ou qualquer redução do financiamento do setor, bem como da educação, ciência & tecnologia. O que vale para qualquer política social.

E isto tem polarizado as atenções do momento. Há uma ofensiva do capital financeiro que chantageia o país com especulações, uma forma nefasta de tentar influenciar a política fiscal, notadamente com cortes em gastos sociais. Ao mesmo tempo, entramos na dinâmica da disputa eleitoral de 2026, que vai eleger o novo presidente, governadores e o Congresso Nacional. O país está em questão. O que fazer para que o muito feito até aqui seja intensificado para potencializar as forças progressistas na luta por vir?

“Se muito vale o já feito, mais vale o que será”1, nos aconselha o poeta. Então, recomenda-se haver um esforço adicional na construção mais intensiva das políticas sociais de alargamento de direitos, que faça a população perceber mudanças expressivas na sua vida cotidiana. Uma mobilização que fortaleça os vínculos comunitários nos territórios. É necessário formar uma identidade corpórea com as comunidades. Laços orgânicos de confiança, que produzam uma subjetividade solidária, e sejam capazes de organizar uma resposta coletiva contrária à ofensiva neoliberal, que propõe o empreendedor de si mesmo e o sujeito da concorrência para polarizar a base da sociedade.

Há luta por vir! E para ela contamos com um enorme ativo político, o SUS, que traz a marca da generosidade desde os momentos iniciais da sua constituição, e hoje mobiliza milhares de pessoas nas Conferências de Saúde, além de uma imensa capilaridade que o coloca em relação com a população no seu dia-a-dia. Por exempl: ele se move sobre uma rede assistencial que, só na Atenção Básica, tem 61.262 equipes de Saúde da Família, atingindo uma cobertura de 79,6% do território nacional2. São mais de 3 milhões de pessoas trabalhadoras em exercício no SUS. Destes, 403 mil são Agentes Comunitários de Saúde e Agentes de Endemias3, que têm uma relação cotidiana com os territórios e suas comunidades, sendo uma importante referência de cuidado, vínculo, e participação comunitária. É algo absolutamente extraordinário.

À experiência de participação social soma-se a iniciativa do Mapa Colaborativo dos Movimentos Sociais em Saúde. Este é um projeto lançado em 2024, liderado pelo Ministério da Saúde, Fiocruz e Conselho Nacional de Saúde, para dar visibilidade, mobilizar, e promover a interação entre entidades e movimentos no âmbito da saúde.

A participação comunitária ganha contornos mais amplos no governo através do Conselho de Participação Social da Presidência da República, do qual a Frente pela Vida participa representando o movimento sanitário. Aqui se constrói uma avançada proposta de participação social, com base nos territórios, e na educação popular como um dispositivo de construção. Esta iniciativa levou a uma ampla participação social na discussão do Plano Plurianual em 2023, que orienta a política econômica e social do Brasil até 2027. Também promoveu o amplo debate do Plano Clima que define as estratégias nacionais para reduzir as emissões de gases de efeito estufa, que causam o aquecimento global, e avançar na adaptação aos impactos das mudanças climáticas. Neste momento, organiza a participação social na Cúpula do G20 Social, que ocorrerá no Rio de Janeiro entre 14 e 16 de novembro de 2024. Por tudo isto, a perspectiva de uma política de saúde promissora na sua missão humanitária continua muito forte no cenário atual, construção que deverá ser coletiva e comunitária.

 

 

Segurança Pública — 21 anos depois, por Soares & Domingos Neto.

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Luiz Eduardo Soares & Manuel Domingos Neto

A Terra é Redonda – 04/11/2024

Hoje, associar-se ao discurso hegemônico e às práticas usuais das corporações policiais tornou-se um ativo político na guerra contra a democracia e os direitos humanos

Na quinta-feira passada (31.10.2024), deu-se uma reunião marcada há 21 anos. A convite de Lula, governadores e o ministro da Justiça encontraram-se no Planalto para discutir a Segurança Pública. Essa reunião foi agendada e postergada, depois cancelada, no início do primeiro mandato de Lula, em 2003. O atraso de 21 anos diz muito sobre as dificuldades de enfrentar o problema.

Em 2001, Lula presidia o Instituto Cidadania e era pré-candidato a presidente. Um grupo de trabalho formulou, então, seu programa de Segurança Pública. Profissionais de origens, experiências e perspectivas variadas debateram em audiências públicas, visitas e seminários. A proposição resultante foi entregue por Lula às casas congressuais e ao ministro da Justiça em 27 de fevereiro de 2002.

No ambiente ouriçado de hoje, é difícil imaginar que o então líder da oposição ao governo FHC fosse respeitosamente recebido por dirigentes da situação, todos valorizando a qualidade da proposta.

A edição do jornal O globo em 28.02.2002 destacava: “Tucanos elogiam plano anticrime do PT”. O ministro da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira, admitiu adotar medidas. “Não posso deixar de louvar essa iniciativa”, afirmou o presidente do Senado, Ramez Tebet. “Este documento é até agora o mais sério e completo sobre segurança pública já elaborado e apresentado à sociedade”, disse Aécio Neves, presidente da Câmara.

Com debilidades decorrentes, sobretudo, da falta de dados internos às corporações, a iniciativa mudou o debate. Descartou clichês e bordões puídos. Agentes públicos não mais arguiriam o “sempre foi assim”. Parecia chegar ao cabo a reatividade inercial e a falta de crítica aos padrões estabelecidos. Tornar-se-iam necessários diagnósticos e planejamento para a ação pública, que passaria a ser avaliada para que erros fossem monitorados e corrigidos.

O Plano não idealizava a racionalidade técnica e apontava para ajustes de instituições públicas às determinações constitucionais. A democracia seria reforçada. Visava-se o controle da chamada criminalidade, da brutalidade letal das polícias e do sistema de Justiça criminal, do racismo e do viés de classe que encarcera jovens pobres e negros, reproduzindo iniquidades e violências. Instituições refratárias à soberania popular seriam contidas.

Lula venceu as eleições. Em janeiro de 2003, o novo secretário nacional de Segurança Pública[i] e seus colegas tocariam o programa — aperfeiçoado com a ajuda de voluntários de distintas especializações e regiões, graças ao apoio da Firjan.

Era fundamental a adesão dos 27 governadores à tese central, a criação do SUSP, sistema único de segurança pública, inspirado na arquitetura do SUS. Em junho, o endosso unânime foi obtido. O presidente convidou os governadores para celebrar o “pacto pela paz”, como o projeto foi batizado, perante autoridades dos três poderes. A proposta seria entregue ao Congresso, posto que demandava alteração constitucional. Havia otimismo. Lula detinha respaldo popular e o consenso dos governadores fortalecia a proposta.

Os governadores não acataram por entusiasmo com uma segurança cidadã, afinada com os direitos humanos. A negociação individualizada mostrara que lhes interessava dividir o desgaste político com o governo federal. Uma reestruturação que importasse em compartilhamentos e deslocamento de autoridade para a União seria bem-vinda. A insegurança era fonte inesgotável de fragilização política. O acatamento era pragmático e lógico.

Paralelamente, o governo federal encarava o dilema: valeria a pena assumir mais responsabilidades em área tão desgastante? Dizia Leonel Brizola: chamar para si a segurança é abraçar afogado. Por que, então, o secretário nacional de segurança visitaria todos os governadores? A missão espinhosa foi testemunhada pelas mídias locais. Talvez porque não fosse crível o êxito da jornada quixotesca.

O governo federal viu-se subitamente com a batata quente na mão. Como deter a iniciativa evitando constrangimentos? A resposta fica para outro momento. O gabinete presidencial estipulara data para a reunião que seria suspensa. O passar do tempo silenciaria o “pacto pela paz”. O secretário foi afastado e o plano, engavetado. O governo investiu em prisões matutinas espetaculares de suspeitos de colarinho branco.

Mas a semente do SUSP fora lançada. Cedo ou tarde, por exigência histórica, resultaria em algo. Diante de crises, projetos embolorados, devidamente lustrados, circulariam na praça. O SUSP renasceu com sotaque diferente e inegável legitimidade e coerência quando Tarso Genro foi ministro da Justiça. Seu projeto nacional de segurança com cidadania (PRONASCI) incorporava elementos do SUSP, especialmente sua face preventiva. Mas Tarso passou, assim como a reativação indireta do SUSP.

Veio o golpe parlamentar contra Dilma Rousseff. A dramaticidade da insegurança pública crescia e a história aprontou ironia oblíqua, típica das tragédias: coube a Temer ressuscitar o SUSP e criar o ministério da Segurança previsto no plano original, de 2002 (por sugestão de Lula, então candidato, foi convertido em secretaria com status ministerial).

Mas a repetição deu-se como farsa: o SUSP, aprovado pelo Congresso em 2018, foi promulgado para não funcionar. Baseava-se em legislação infraconstitucional. Destinava-se a fazer crer em comprometimento dos governantes com mudanças profundas na Segurança. As novas regras jamais seriam aplicadas porque gerariam conflitos federativos; calculadamente, não tratavam de processos decisórios, de definição da autoridade coordenadora de ações. Tampouco foi casual que a ouvidoria fosse estabelecida como uma agência desprovida de poder.

A vida prosseguiu e o país foi empurrado à beira do abismo neofascista. Os golpistas instrumentalizaram as instituições armadas. A gigantesca e ativa “família militar” açambarcou os contingentes policiais de todas as esferas da União. Escapamos por um triz com a vitória de Lula, em 2022.

Retornando ao Planalto, Lula encontrou-se novamente com a dramática insegurança pública. Durante meses, flertou com o SUSP, reinscrevendo a necessidade de coordenação nacional no centro da agenda. Mas temeu mostrar a nudez do rei: o SUSP infraconstitucional colidiria com a Carta. Só fazia sentido ressuscitá-lo se figurasse na Constituição.

Finalmente, o ministro Ricardo Lewandowski, intimorato, pronunciou palavras banidas do léxico governamental: afirmou que para tratar da Segurança Pública caberia reformar a Carta. Realizou-se, enfim, a reunião marcada há 21 anos.

Neste interregno, regredimos de uma democracia limitada e contraditória para uma institucionalidade deteriorada. A sociedade viu-se acossada pela difusão de valores antidemocráticos, pelo ativismo reacionário de organismos do Estado e por organizações à margem da lei.

A PEC apresentada por Ricardo Lewandowski, embora menos ambiciosa, contém elementos fundamentais da proposta original. Aponta para o estabelecimento de uma coordenação nacional das estratégias da Segurança. Pressupõe uma linha de autoridade indispensável, mesmo que isso não seja enfatizado no discurso público. Enfrenta problema real: a refratariedade das corporações policiais, verdadeiros enclaves institucionais, à autoridade civil e política.

Mesmo que a aparência sugira o contrário, especialmente quando governadores de direita aplaudem práticas policiais condenáveis, o fato é que os executivos estaduais não comandam as organizações policiais. A ampla autonomia viabilizou-se com a omissão do Ministério Público, que deveria exercer o controle externo das polícias, e ameaça o Estado democrático, como demonstramos insistentemente em artigos, livros e entrevistas.

Integrantes de corporações armadas se alinham ostensivamente à extrema direita. Firmam-se como atores independentes, negando a hierarquia e as determinações constitucionais. Os enclaves corporativos instauram poderes rebeldes na medida em que se atribuem autoridade alheia à soberania popular e às mediações institucionais.

Esse quadro ruinoso é mais visível nas Forças Armadas. Comandantes se apresentam impunemente como representantes de um “poder moderador” e condicionam autoridades constituídas. Buscam respaldo no que nomeiam “família militar”, cuja composição inclui componentes das corporações policiais.

A PEC do ministro Ricardo Lewandowski possibilita restringir a disfuncionalidade da segurança pública; oferece amparo mínimo para o enfrentamento da criminalidade e da corrosão da autoridade fundada nos princípios democráticos. Propondo a coordenação nacional, enseja a possibilidade de reduzir o insulamento dos baronatos armados, organizados com ou sem máscara institucional (sob a forma de milícias).

O ministro e o presidente devem saber que a proposta não será aprovada. Mas enseja sinalização importante: tira o governo da defensiva e, pela primeira vez em muitos anos, aponta rumo para deter a barafunda institucional que impede o Estado de garantir segurança à cidadania. Livra a autoridade federal de exibir impotência e de absorver pautas conservadoras de governadores. No mais, deixa com a oposição o ônus da defesa do status quo.

A reação dos governadores tende a ser inversa a de 21 anos atrás porque a luta ideológica se interpôs ao velho cálculo de utilidade. Se a Segurança era somente causa de desgaste político e valia a pena sacrificar parte do suposto poder em benefício da divisão de responsabilidades com a União, hoje, associar-se ao discurso hegemônico e às práticas usuais das corporações policiais tornou-se um ativo político na guerra contra a democracia e os direitos humanos.

Há muito a ponderar. Por exemplo: a omissão na iniciativa governamental quanto à ouvidoria e ao papel do MP. Mas cabe saudar a coragem política, mesmo moderada, quando ela retorna à cena.

Falta aplicar essa disposição à Defesa Nacional. As Forças Armadas persistem essencialmente voltadas para o controle da sociedade e nunca abdicaram de se imiscuir na Segurança Pública.

*Luiz Eduardo Soares é antropólogo, cientista político e escritor. Ex-secretário nacional de segurança pública. Autor, entre outros livros, de Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos. (Boitempo)

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). Autor, entre outros livros de O que fazer com o militar — Anotações para uma nova Defesa Nacional (Gabinete de Leitura)

 

Nações falham ao escolher o jogo errado, por Álvaro Machado Dias.

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Para vencedores do Nobel de Economia, EUA são modelo para o mundo, mas índices de qualidade de vida dizem o contrário.

Álvaro Machado Dias, Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind.

Folha de São Paulo – 05/11/2024

Três raciocínios de interesse nacional emergem dos papers dos nobelistas de economia de 2024.

(1) Uma vez que instituições inclusivas são a base da prosperidade, o golpe militar pode ser descrito como um dos eventos mais danosos da República, posto que as suspendeu por décadas.

(2) Conforme a institucionalidade leva à prosperidade pela via da destruição criativa, segue que o agronegócio monocultor está nas antípodas do enriquecimento nacional. Sendo ou não pop, tech e yellow, o horizonte criativo da banana é bem menor que o da IA.

(3) Mudanças institucionais, como a reforma tributária, tendem a ser ainda mais importantes do que intuímos, porém exceções acumuladas costumam tornar arranjos novos tão ruins quanto os anteriores. Descontos atualmente negociados farão parte de teses futuras sobre as nossas falhas.

Essas perspectivas dão uma medida do grande poder translacional do paradigma dos autores, que em diferentes ocasiões apresentam os Estados Unidos como modelo de institucionalidade.

Aí o caldo entorna: tendo imigrado para lá aos 9 anos de idade, sinto que isso dialoga pouco com o campo. Um país em que é comum crianças invadirem a escola para matar os colegas de fuzil enquanto seus pais se engalfinham em lutas profissionais ferinas não me parece desenhado para revelar o melhor de nós. Do mais, no índice Edelman de confiança nas instituições de 2024, os Estados Unidos estão no fim da fila, abaixo da Colômbia, onde as Farc viraram partido.

A questão é profunda: a riqueza individual, norteadora das teses dos laureados sobre ganhadores e perdedores, não é fim, mas meio, para a realização em ato dos valores fundamentais humanos, os quais Thomas Jefferson acreditava serem “vida, liberdade e a busca da felicidade”.

No Relatório de Felicidade Global de 2024, os EUA aparecem na 23ª posição, empatados com o México, exemplo de falência institucional preferido de Acemoglu. A Costa Rica, que foi colônia extrativista, está na 12ª colocação. Mesmo onde as instituições são sólidas e a cultura próxima, a lógica da prosperidade como desfecho absoluto pede um grão de sal. A Finlândia é o país mais feliz, a Noruega é o 7º, com um PIB per capita 65% maior.

É fato que a pesquisa de felicidade global é limitada pela necessidade de só utilizar dimensões amplamente disponível. A alternativa é o conceito de bem-estar, que inclui o PIB per capita, mas também saúde, desigualdade e outros. Em saúde, os EUA estão mais perto da Arábia Saudita que do europeu menos saudável, a Alemanha (Ray Dalio, 2024). Em desigualdade, são lanterninhas entre as nações avançadas, tensionando a hipótese distributiva pela via da inovação institucionalizada. O Haiti, país das instituições mais frágeis do mundo, é menos desigual.

O que importa não é só considerar que a prosperidade numérica não passa de uma via para a vivencial e que, na vida das pessoas, instituições incluem educação, saúde, estruturas políticas de orientação dialógica e outros determinantes do bem-estar alheios à régua das patentes.

O ponto é que, para elevar a qualidade da vida levada no Brasil, a gente não precisa virar uma Coréia do Sul com PIB per capita de Luxemburgo. Se resolvermos questões mais modestas, como moradia digna e violência, é possível que nos juntemos à Costa Rica e outros exemplos de que, na prática, a teoria pode ser outra.

 

A revisão dos gastos é uma agenda inevitável, por Cecilia Machado;

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Não é possível alcançar crescimento de gastos quando diversas despesas crescem em maior velocidade

Cecília Machado, Economista-chefe do Banco BoCom BBM, é doutora em economia pela Universidade Columbia

Folha de São Paulo – 05/11/2024

Era um tanto quanto esperado que o descompasso entre o limite da expansão dos gastos e o crescimento das despesas obrigatórias trouxesse desconfiança com relação à sustentabilidade do novo arcabouço fiscal. Não é possível alcançar crescimento de gastos de até 2,5% (reais) quando diversas despesas crescem em maior velocidade. Esta inconsistência torna a revisão dos gastos uma agenda inevitável do ponto de vista fiscal.

Mas mesmo antes das inconsistências do arcabouço, já existiam bons motivos para que alguns programas fossem reavaliados. A revisão dos gastos permite ajustar as políticas públicas para que se tornem mais eficazes, além de abrir espaço para novos prioridades do governo.

No contexto atual, são inúmeras as oportunidades. Entre elas, programas como o BPC (Benefício de Prestação Continuada), o abono e o seguro-desemprego podem ser reformulados não apenas para melhorar o resultado fiscal, mas principalmente para corrigir distorções e ampliar a produtividade da economia.

O BPC —que transfere um salário mínimo para o idoso ou pessoa com deficiência que é pobre— é um híbrido de assistência e previdência que faz pouco sentido sob a ótica de qualquer um desses dois programas.

Como assistência, por qual razão um idoso pobre recebe uma transferência cerca duas vezes maior que uma criança pobre do Bolsa Família, considerando que os investimentos feitos nas crianças trazem benefícios que se manifestam ao longo de toda sua vida? Como previdência, faz sentido garantir que uma pessoa que nunca contribuiu para a seguridade social receba a mesma aposentadoria que aqueles que contribuíram a vida toda sob um salário mínimo?

Não menos importante é a influência do desenho destes programas sobre o comportamento das pessoas e as suas implicações para o funcionamento da economia. Por exemplo, a possibilidade de aposentadoria sem contribuição, como no caso do BPC, faz com que muitos trabalhadores de baixo salário prefiram empregos informais, onde não há desconto das contribuições em folha.

Na mesma direção, programas como o seguro-desemprego estimulam a rotatividade em um mercado de trabalho que acomoda arranjos informais. Pois é possível receber o seguro-desemprego em um trabalho informal, já que este tipo de vínculo não é observado pelo governo. Funcionasse apenas como um seguro para a perda de emprego —que se verifica com mais frequência quando a economia não vai bem— não deveríamos estar vendo um crescimento tão grande dos gastos direcionados a este programa quando o mercado de trabalho exibe bom desempenho, como agora.

Sob a ótica redistributiva, o abono não incide onde a pobreza está. Apenas 16% da incidência do abono se dá entre o terço mais pobre da população, enquanto 39% incide sobre o terço mais rico. Além disto, é um benefício oferecido apenas aos trabalhadores formais, que se encontram em melhores condições de renda e proteção social que aqueles informalizados. O abono não atende cerca de 40% dos trabalhadores sem carteira assinada.

É impressionante que as regras correntes do BPC, do seguro-desemprego e do abono salarial tenham sobrevivido tanto tempo apesar das falhas óbvias de desenho. Por mais custosa que seja, a crise fiscal de agora pode ser a única oportunidade possível para introduzir racionalidade e bom senso no redesenho destes programas sociais.

 

EUA: Democracia sem escolha, por Tatiana Carlotti.

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Crônica em Washington, às vésperas de uma eleição em que não há saída real. Vencerá a candidata da guerra perpétua ou o da ameaça fascista? Nas ruas, poucos parecem se importar. Mas os bilionários tomaram partido, e evita-se o voto negro

Tatiana Carlotti – OUTRAS PALAVRAS – 31/10/2024

No próximo 5 de novembro, a maior potência militar (US$ 886 bi para gastos militares), econômica (PIB de US$ 28,6 tri) e cultural (US$ 9 bi só em bilheterias) vai eleger “o seu” ou “a sua” presidenta em uma das mais acirradas e imprevisíveis disputas eleitorais nos Estados Unidos. Frente aos empates técnicos de cada sondagem registrada desde que Kamala Harris entrou no páreo contra Donald Trump, ninguém ousa cravar um resultado.

Com a aproximação das eleições, os republicanos apelam para um perigoso neofascismo, vide o comício de Trump na Madison Square Garden, domingo passado (27), promovendo uma agenda que reverbera um individualismo extremo, um profundo ódio à esquerda, uma misoginia escancarada e o racismo incrustado contra os “não-brancos”, além da xenofobia de carga explosiva. Em suma: a “sopa de ódios” que aquece as frustrações em meio “cada um por si” de um sistema mais e mais disfuncional, pelo menos, para a imensa massa ‘não-bilionária” do planeta.

Os democratas, por sua vez, apoiam-se nos argumentos e prometem a generalização de oportunidades hoje (e nem sempre) restritas à classe média e acesso a direitos básicos como saúde e moradia. Também apelam para “o bom senso” enquanto financiam um inominável genocídio de crianças e famílias inteiras em Gaza, que se expande aos demais países do “eixo do mal” no Oriente Médio; além de acenarem para a continuidade da guerra contra a Rússia na Ucrânia.

Em meio ao belicismo democrata e ao neofascismo republicano, a população estadunidense que se autodenomina “americana”, encontra-se profundamente polarizada, como mostrou na última sexta-feira, dez dias antes do pleito, a pesquisa divulgada pelo New York Times cravando exatos 48% em ambos os candidatos. A sondagem também apontava um contingente de 15% de indecisos e, após esta pesquisa, as demais que saíram, com pequenas variações, também indicam empate técnico.

Considerando, também, que as pesquisas são apenas acenam tendências, na medida em que a definição do presidente é realizada por uma maioria de delegados, a única certeza até agora, ante a impossibilidade de se cravar um resultado, é de confusão e judicialização do processo eleitoral pela turba republicana caso perca as eleições.

Vale lembrar que, em 2020, quando Trump se negou a aceitar a derrota (a primeira desde 1992 de um candidato-presidente à reeleição nos EUA), Joe Biden o vencia com uma margem expressiva: 81 milhões de votos e com o apoio de 306 delegados do Colégio Eleitoral. Na época, Trump obteve 74 milhões de votos e contou com apoio de 232 delegados.

Naquele ano, houve uma participação considerada recorde nas urnas – a maior desde 1900! – em um país onde o voto é facultativo. Neste ano, a considerar os votos já encaminhados pelo correio e os números da votação antecipada, a expectativa é de uma alta participação. Em Michigan, por exemplo, 1,5 milhões de eleitores já anteciparam seu voto em uma semana, e a soma dos que enviaram sua decisão pelo correio ultrapassa (a uma semana do pleito) vinte e três milhões.

Inversamente, a movimentação eleitoral não acontece nas ruas. O clima eleitoral, em particular nos estados como Nova York e na própria Whashington (D.C.), é ameno onde as colorações partidárias estão mais definidas, nos dois casos com a prevalência do azul (democrata) sobre o vermelho (republicano).

Por aqui, por exemplo, apesar da polarização, da ameaça trumpista e da possibilidade de muita gente simplesmente deixar de votar, ninguém usa adesivos de campanha, não há santinhos distribuídos nas ruas e muito menos aquele xingamento acalorado no cruzamento das grandes avenidas. Com Harris na liderança em pelo menos 18 pontos à frente de Trump, na “Big Apple” (NY) pelo menos, as caveiras de Halloween ganham – e de longe – das plaquinhas eleitorais.

Estados pêndulos, onde a eleição acontece

As eleições, no entanto, acontecem com força nos chamados estados pêndulos, ou swing states, onde permanecem indefinidas as tendências de votação num ou noutro partido, porque o sistema eleitoral da considerada “maior democracia do mundo”, além de não direto e facultativo, também é essencialmente bipartidário. É nestes estados – Nevada, Arizona, Wisconsin, Michigan, Pensilvânia, Carolina do Norte e Georgia – que estão acontecendo investimentos milionários e onde, de fato, a campanha eleitoral ganha as ruas.

Os democratas estão mobilizando mais de 2.500 pessoas em 353 escritórios nessas regiões para, entre outras atividades, bater de porta em porta e ajudar as pessoas a votarem. A tarefa é crucial, em particular, após os estados republicanos terem proposto uma série de medidas de restrição de votos, cerca de 400 leis estaduais em 47 estados, segundo a União Americana pelas Liberdades Civils (ALCU).

A ideia dos republicanos foi conter o boom da participação dos eleitores, em particular os mais pobres e, portanto, de tendência democrata, registrada durante as eleições presidenciais de 2020. Boa parte dessas leis foram implementadas em 2022, durante as eleições de meio de mandato para o Congresso, as midterms; e como nos EUA, cada estado tem a sua própria legislação eleitoral, por aqui inexiste um Tribunal Superior Eleitoral (TSE) regendo e coordenando todo o processo, a possibilidade do governo Biden de conter esse movimento foi nula. O que não o impediu de reclamar.

De modo geral, são pequenas medidas, porém mortais para a participação popular em um país onde o voto não é obrigatório. Obrigar as pessoas a entregarem os votos presencialmente ou somente aceitar que familiares o façam, por exemplo, atrapalhou a participação dos eleitores cadeirantes, de idosos moradores em abrigos, da população de rua. Exigir documentos com fotos para votar pelo Correio. Reduzir o tempo para a votação e até os locais de depósito das cédulas, contribuindo para o aumento das filas. Todas essas medidas aconteceram na Georgia, onde Trump perdeu por pouco para Biden, em 2020.

Além dos democratas, os republicanos estão investindo pesado nestes estados, criando comitês – Super Political Action Committees (SuperPAC), que vêm recebendo investimento graúdo de instituições privadas como o Future Coalition PAC, o Duty to America PAC ou o America PAC, criado pelo “mega-bilionário” Elon Musk com um fundo de US$ 75 milhões.

Segundo apuração do The Guardian, entre julho e outubro, o herdeiro sul-africano, publicamente convidado para participar de um eventual governo Trump, somente em anúncios para a campanha do magnata já investiu: US$ 201 mil no X, mais de 3 milhões na META (Facebook e Instagram) e US$ 1,5 milhões no Google. Todos esses anúncios são dirigidos para as populações e às necessidades destes estados decisivos.

Musk, que tão bem sabemos o que pensa da Justiça brasileira, vem participando como cabo-eleitoral de Trump e se divertindo, como uma espécie turbinada de Silvio Santos, em ofertar cheques gigantescos em comícios e anunciar sorteios de US$ 1 milhão por dia, até a eleição, para quem assinar a petição do American PAC. Sua presença, embora não tenha dito nada com nada, foi um dos pontos altos do comício de Trump.

Foram muitas horas de fila, em meio à turbe trumpista e sob a vigilância dos “snipers” – dois em cada um dos prédios que circundavam o Madison Square Garden – antes de começar o palavrório republicano. Não, não foi no mesmo Madison Square Garden que, em 1939, abrigou o desfile nazista em solo americano (as imagens são chocantes, confira aqui). O nome é o mesmo, o prédio o novo, mas o fascismo, com seu discurso de ódio, a substituição do argumento pelo slogan, a performática da testosterona e a perigosa tese do “inimigo interno” estavam sim por lá.

E a massa, que acompanhei tão proximamente na fila, aplaudiu para valer os animadores do circo trumpista – um misto de humoristas, coachings, bilionários dopados – e os políticos republicanos, além de funcionários e familiares do magnata, que tentaram cravar o slogan “New York is Trump country” no coração de um estado essencialmente democrata e que há 40 anos não elege nenhum presidente republicano.

Tirando uma ou outra figura com toda a tarimba de animador partidário, dentro do cercadinho trumpista onde passei a tarde e a noite no domingo passado, o que vi foi o povo e, em particular, um povo de imigrantes: indianos (todos homens contra Kamala), hispânicos (muitas mulheres – acima dos 40 – fãs de Trump), mais rapazes do que moças (em particular, judeus, brancos e negros).

Pelo menos onde fiquei, a incidência de homens prevaleceu sobre as mulheres. Nenhum bilionário no cercadinho, só gente que trabalha e que bateu efusivas palmas com os slogans de coaching durante o evento. Ao me pedir para desligar o gravador, um rapaz alto, branco e de óculos grossos me disse que Trump vai alavancar a economia em vez de ficar gastando dinheiro com os imigrantes miseráveis que entram pelas fronteiras.

Outro rapaz, negro e estudante de Direito, garantiu que com Trump, os Estados Unidos terão mais empregos, porque ele cortará as taxas pagas pelos empregadores, o que vem dificultando a abertura de trabalho. “Biden só cobra impostos”, frisou. Um pouco mais adiante, num grupo de simpáticas senhoras hispânicas, uma delas me disse que certamente “seria muito bom para os EUA ter uma mulher presidente, mas não Kamala. “Não gosto dela, eu gosto dele e ponto”.

Também poderia comentar sobre um casal de americanos, os dois com o boné MAGA na cabeça, que me disseram, em meio a tantas guerras, que nunca mais votarão nos democratas. A mesma questão veio forte de um estudante de economia, os cabelos de fogo, egresso da Dinamarca. Ele também me esperou desligar o gravador, para dizer que o governo Biden é assassino. E quando o questionei se o fascismo de Trump também não era, ele respondeu: “é tudo bobagem para conseguir voto”.

Infelizmente, não me pareceu bobagem a fala contra as minorias que consegui observar tão de perto naquela fila. Tampouco a agonia que, confesso, foi crescendo conforme as pessoas riam das piadas preconceituosas de Tony Hinchcliffe, que chamou Porto Rico de “ilha flutuante de lixo no meio do oceano” e disse que nós, latinos, gostamos de fazer bebês.

Ou quando o amigo evangélico de Trump, David Rem, chamou Kamala de “anticristo” e “diabo”. Quando Grant Cardone, investidor imobiliário, criticou as taxas de Biden e afirmou que Kamala e seus “cafetões” destruirão a América, sim, ele a chamou de “prostituta”. Ou diante da forma misógina como J.D.Vince, senador de Ohio, referiu-se à inteligência de Kamala, que cursou a Howard University e a Universidade da Califórnia, foi procuradora-geral da Califórnia, senadora da República, vice-presidente da República e está prestes a se tornar a primeira mulher presidenta dos Estados Unidos.

A agonia aumentou diante do inacreditável aplauso da plateia repleta de imigrantes depois que Trump – que divagou um bocado em suas considerações – prometer o maior programa de deportação da história dos Estados Unidos para deixar o país mais seguro, batendo na tecla perigosa do inimigo interno.

Como não pensar em Modi, o taxista indiano de riso fácil e sobrancelhas grossas que me ajudou a chegar até o estádio?

Há cinco anos em Nova York, ele aguarda a liberação do green card para poder trabalhar, sem pressão e sem medo, no país. Só depois de muita insistência, ele me disse que preferia Trump a Kamala, não por causa dela, filha de mãe indiana, mas por causa do Biden, “os dois são a mesma coisa”.

Modi acredita piamente que com Trump, o documento sai. “Biden atrapalhou muito”, balança a cabeça, “Trump não, ele faz. É um empresário”.

Enquanto isso, na Pensilvânia…

No corpo a corpo com os eleitores da Filadélfia, na Pensilvânia, onde disputa o voto dos indecisos no estado, Kamala apresentava para o eleitorado hispânico e negro, um programa de redução das desigualdades, prometendo oportunidades, emprego e ajuda ao pequeno comerciante.

“Sei que famílias negras têm 40% menos probabilidade de serem donas de uma casa. Parte da minha política beneficiará a todos, mas estou ciente de que precisamos dar às pessoas a oportunidade de ter uma casa própria, que é a oportunidade de construir riqueza intergeracional. Meu plano inclui uma assistência para os compradores pela primeira vez de um imóvel de US$ 25.000, para ajudá-los a dar o primeiro passo para a casa própria”.

Ela prometeu, também, um crédito tributário infantil de US$ 6.000. “É o que vai ajudar os pais jovens que desejam criar seus filhos, mas nem sempre possuem os recursos. Vai ajudá-los a pagar pelos cuidados infantis, comprar um berço, uma cadeirinha para as crianças no carro. Quando fizemos o Crédito Tributário Infantil pela última vez, reduzimos a pobreza infantil negra pela metade. São essas coisas que pretendo fazer, com foco no que podemos fazer e que comprovadamente funciona”, disse a uma rádio local.

A ver o apelo que mais moverá a escolha dos americanos. Enquanto a incerteza paira, um breve compilado, publicado pela Forbes nesta terça-feira (29), de várias pesquisas locais nos estados pêndulos. Os números correspondem às primeiras sondagens citadas pela reportagem:

Pennsylvania
Harris 48%, Trump, 48%

Michigan
Harris 51%, Trump 46%

Wisconsin
Harris 50%, Trump 47%

Nevada
Harris 51%, Trump 47%

Arizona
Trump 51%, Harris 47%

Georgia
Trump 51%, Harris 46%

North Carolina
Trump 50%, Harris 48%

Tatiana Carlotti, Doutora em Semiótica pelo Departamento da Linguística da Universidade de São Paulo (USP).

 

 

Vivemos uma epidemia de solidão, por Ronaldo Lemos.

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Pesquisa mostra que 1 a cada 4 pessoas enfrenta solidão severa

Ronaldo Lemos, Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.

Folha de São Paulo – 04/11/2024

A cidade de Seul acaba de anunciar que vai investir US$ 327 milhões para combater a solidão. A capital sul-coreana é a mais nova integrante do clube de governos que estão combatendo isolamento social com política pública.

O dinheiro vai ser aplicado de várias formas. A cidade vai oferecer apoio psicológico gratuito para todos os residentes, além de um serviço emergencial chamado “Adeus, Solidão”. Fez parceria com os aplicativos de delivery para identificar as pessoas que vivem sozinhas. Vai dar incentivos a quem participar de atividades sociais, incluindo visitar bibliotecas, festivais, parques e restaurantes.

Em Seul, as “mortes por solidão” têm crescido ano a ano. O fenômeno afeta principalmente homens (84% dos casos) na faixa dos 50 e 60 anos (50% dos casos).

Seul não está sozinha no problema. O Japão enfrenta há anos a crise dos “hikikomori”, jovens que romperam vínculos e vivem isolados. Há 1,5 milhão deles, muitos vivendo no próprio quarto. O problema está em todas as idades. A onda agora são os “8050”. A expressão se refere a pessoas reclusas na faixa dos 50 anos que dependem da ajuda dos pais de 80. Para combater tudo isso, o Japão tem criado centros de apoio, excursões turísticas para promover vínculos e até ajuda financeira supervisionada para reintegração social.

Quem leu até aqui pode achar que o problema é maior na Ásia. Nada disso. Em 2018, a Inglaterra criou o seu Ministério da Solidão (o nome oficial é Subsecretaria de Estado para a Solidão), que já teve quatro integrantes. A solidão cresce no país em todos os segmentos, especialmente entre 16 e 29 anos.

Nos EUA, o problema é similar. Em 2023, o cirurgião-geral (porta-voz do governo para saúde) anunciou com todas as letras que o país vive uma epidemia de solidão. Criou um plano para “reparar o tecido social”, baseado na constatação que um a cada dois americanos alegam sofrer de isolamento social.

Para quem ainda não está convencido é só olhar para a OMS. Em 2023 a Organização Mundial de Saúde decretou a solidão como prioridade global de saúde. Criou inclusive a Comissão de Conexão Social para tratar o problema, com representantes de vários países como Chile, Japão, Suécia e EUA (o Brasil ficou de fora).

Os dados publicados pela OMS são chocantes. Em pesquisa global feita pelo Gallup em 142 países, uma a cada quatro pessoas enfrentam solidão severa e o mesmo número enfrenta solidão moderada. Curiosamente os menos solitários são os mais velhos (mais de 65 anos). Já os mais sozinhos são os jovens entre 19 e 29 anos. 27% deles com solidão severa e 30% moderada.

O dano da solidão acontece em várias camadas, físicas e mentais. Um estudo de 2022 apontou que o efeito de estar sozinho para a saúde equivale a fumar 15 cigarros por dia (o equivalente em nicotina a mascar 10 sachês de Zyn, a nova tendência do momento). O Brasil não está de fora. Pesquisa IPSOS de 2021 apontou que o país ocupava o 1º lugar entre entre os que mais sentem solidão. Está na hora de reparar o tecido social aqui também.

 

Esquerdas.

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Os partidos de esquerda ou de centro esquerda apresentaram resultados pouco vistosos na última eleição, em alguns locais seu crescimento foi marginal, na maioria das vezes os ganhos foram pouco e inconsistentes, trazendo preocupações para estes grupos políticos, enquanto os partidos vulgarmente chamados de centrão, foram os grandes ganhadores no pleito municipal, notadamente o MDB e o PSD, cacifando-os para voos mais estruturados. Uma parte central deste crescimento está atrelado aos efeitos perversos do orçamento secreto, que injetou bilhões de reais nos grupos políticos de direita ou extrema direita, garantindo um naco maior de poder e de legitimidade a partir do próximo ano, um momento central e fundamental para a construção dos próximos candidatos aos governos estaduais e o governo federal.

Neste cenário, destacamos os conflitos existenciais dos partidos de esquerda, mesmo sabendo que o conceito de esquerda no século XXI está marcado por grandes dificuldades analíticas, vivemos num momento de grandes incertezas e instabilidades políticas. No front da esquerda, partindo do conceito de uma esquerda mais tradicional, destacamos uma grande dificuldade de compreender as grandes transformações do mundo do trabalho, um momento de fragilização dos sindicatos, o crescimento de novas formas de trabalho, novos modelos de negócios e alterações nas organizações sociais e produtivas, tudo isso, contribui enormemente para desestruturar os modelos anteriores, gerando medos, rancores e ressentimentos.

Destacamos ainda, as dificuldades de compreender as mudanças no mundo religioso, onde a Igreja Católica perdeu espaço para novos modelos de organização religiosa, com o fortalecimento das igrejas evangélicas, que passaram a arrebatar uma grande parte dos fiéis, com novos conceitos de religião, novas formas de estruturação social e coletiva, tudo isso, contribui imensamente para que entendamos as dificuldades dos grupos políticos mais à esquerda da sociedade.

Destacamos questões ligadas às famílias, sempre vistas como um agente imprescindíveis para as organizações sociais e que, vem passando por grandes alterações estruturais, novas formas de organização familiar, novas formas de estruturação e novos modelos de negócios, tudo isso, levou a uma erosão dos grupos de esquerda na compreensão da chamada família tradicional.

São muitos os desafios, mas gostaria de acrescentar mais um, as esquerdas estão com grande dificuldade de compreender as questões ligadas à segurança pública, perdendo espaço nas narrativas políticas e perdendo força na construção dos diagnósticos feitos pelos grupos mais à direita ou de extrema-direita.

Os desafios contemporâneos são elevados e prescindem de grandes discussões políticas, neste momento, cabem aos grupos de esquerda e de centro esquerda uma ampla reflexão para voltarem a ter influência e relevância no debate político quando o assunto está relacionado com a segurança pública, a família contemporânea, as questões religiosas e as grandes transformações no mundo do trabalho.

Os grandes desafios são imensos e precisam de grande maturidade, olhar internamente suas dificuldades, os medos e os ressentimentos mais íntimos e pessoais.

Derrota e Descaminho, por Antônio Martins

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Fiasco eleitoral do governo é dramático e expõe necessidade de mudança de rumos. Porém, Fazenda insiste no erro e pode tornar Lula refém do rentismo e do Centrão. Há alternativas; mas presidente não tem muito o tempo para buscá-las

Antônio Martins, editor de OUTRAS PALAVRAS – 28/10/2024

Mesmo quando previstas, as derrotas graves são doídas. Embora Lula governe o país, os partidos de esquerda e centro esquerda fecharam, ontem, o pleito deste ano elegendo apenas três, de 26 prefeitos de capitais – uma queda abrupta frente aos 14, em 2012, e abaixo mesmo dos 6, em 2020, sob o mandato de Jair Bolsonaro. A esquerda perdeu redutos históricos como Diadema (SP), onde governou por 32 anos nas últimas quatro décadas e elegeu, em todo o país, um número de prefeitos menor de que o alcançado há quatro anos. No primeiro turno, o PL, de Jair Bolsonaro, foi o partido mais votado (com 13,95% dos votos), graças a sua ascensão nas grandes cidades; e o PT, apenas o sexto (com 7,79%).

Mas no cômputo geral dos municípios, prevaleceram os quatro partidos do Centrão – cujo compromisso com as pautas neoliberais, na economia, e conservadoras, nos costumes, é indisputado. PSD, MDB, PP e União Brasil venceram juntos em 3097 cidades, quase onze vezes mais que a federação formada por PT, PCdoB e PV. No Nordeste, tradicional reduto lulista, PT e PSB elegeram apenas duas prefeituras – contra sete do Centrão (5) e PL (2) somados. Em São Paulo, a coalizão formada em torno de Ricardo Nunes venceu em todos os distritos eleitorais da periferia, exceto dois. Em todo o país, as pesquisas sugerem que direita e Centrão avançaram sobre o eleitorado jovem, invertendo uma tendência histórica.

Embora muitos fatores (inclusive internacionais) devam ser elencados para buscar os motivos do fiasco, um parece claro. Em seus primeiros dois anos, o governo Lula foi incapaz de corresponder às esperanças de que iniciaria a reconstrução nacional, superando o interregno de retrocessos aberto pelo golpe de 2016 e ampliado por Bolsonaro. As condições eram difíceis desde o início, mas o Palácio do Planalto acomodou-se à correlação de forças existente – ao invés de tentar alterá-la. A mobilização popular, sua principal ferramenta para fazê-lo, foi sempre desprezada.

Disso advieram duas consequências, desastrosas e complementares. As instituições conservadoras, que atuam como barreiras das elites para manutenção dos privilégios e da desigualdade, jamais sentiram-se pressionadas a fazer concessões. Um exemplo típico é o Banco Central. Bem cedo seus dirigentes – nomeados por Bolsonaro e abertamente partidários do ex-presidente – perceberam que, embora esbravejasse contra as taxas de juros, Lula não os submeteria a constrangimentos reais; assim como não mobilizaria os bancos públicos para aliviar a inadimplência e captura dos tostões da população endividada. O mesmo ocorreu com as concessionárias privadas do setor elétrico ou, em muito maior escala, com o Congresso Nacional, onde as pautas antipopulares tramitam sem tensão.

O segundo efeito é que, ao não abrir disputa contra os conservadores, Lula é visto como mais um entre eles – ou seja: parte da minoria que enriquece enquanto o país definha. Num cenário de crise prolongada, esta identificação dá origem a fenômenos bizarros, pois entrega à direita a poderosíssima bandeira de “antissistema”. Como em São Paulo, onde parte expressiva do eleitorado atribuiu esta imagem a Pablo Marçal – um milionário que se identifica com o homem mais rico do mundo – e não a Guilherme Boulos, que associou sua figura à do chefe do governo…

A baixa potência de Lula 3 deveu-se especialmente à obsessão do ministro da Fazenda por um “ajuste fiscal”, materializado no “arcabouço” no “déficit primário zero”. Num país empobrecido e reprimarizado, o investimento público pode ser a principal alavanca do governo para melhorar a vida das maiorias, renovar a infraestrutura e criar milhões de ocupações dignas. Além disso, os conservadores têm enorme dificuldade para se opor. Imagine-se o impacto que teriam, na sociedade e no Congresso, propostas como a garantia de escola pública em período integral, a extensão de Equipes de Saúde da Família a todo o território nacional, a duplicação das redes de metrô, a despoluição dos rios urbanos e a contratação de todos os profissionais necessários a estas tarefas.

Ao invés de abraçar projetos como estes, a Fazenda optou por perseguir uma “disciplina” só benéfica aos rentistas (a China, por exemplo, mantém déficits fiscais de 3% ao ano há décadas e acaba de ampliá-las; a União Europeia debate neste exato momento o Plano Draghi, que pode elevar o déficit anual a 5% do PIB; os EUA registrarão déficit de 7,3% em 2024). A eleição escancarou os resultados políticos de tal escolha. Lula conserva popularidade mediana. Mas a capacidade que ele teve, nos dois primeiros mandatos, de sinalizar tempos novos para a maioria (“nunca antes na história deste país”) e mobilizar o eleitorado em favor de seu campo político esfumaçou-se. Sensível ao declínio, o presidente retraiu-se durante a campanha. E este encolhimento pode se consolidar caso prospere a movida que o próprio Fernando Haddad articulou, nas últimas semanas. Se concretizada, ela alterará, de forma definitiva, o próprio caráter do governo.

Por volta de 10 de outubro, quando o ministro da Fazenda deu inicio à fase crucial do movimento que deflagrara quatro meses antes, o resultado das urnas já estava delineado. Haddad sabia, portanto, que seus atos incidiriam sobre um cenário de derrota eleitoral do governo e de início das definições rumo a 2026. Decidiu ir adiante.

Em 15 de outubro, algumas das colunas jornalísticas mais prestigiadas do país – em especial, as de Mônica Bergamo e Míriam Leitão – publicaram entrevistas em que o ministro admitia publicamente, pela primeira vez, seu desejo de promover “cortes estruturais” no gasto social da União. As medidas exatas, disse ele às jornalistas, estavam sobre a mesa de Lula (ou chegariam, nos dias seguintes), depois de terem sido longamente arquitetadas por seu ministério e pelo Planejamento, de Simone Tebet. Seriam feitos após as eleições.

Mas os itens do cardápio eram claros. Fim dos dispositivos que asseguram à Saúde e Educação percentuais mínimos do Orçamento. Restrições ao Benefício de Prestação Continuada (BCP), a aposentadoria dos mais pobres. Cortes no seguro-desemprego. Em certas versões, fim da âncora que protege as aposentadorias, ligando-as à evolução do salário-mínimo. Caberia a Lula optar. Mas em todos os momentos o ministro frisou “ver razão” nas pressões da Faria Lima por mais apertos nos gastos públicos. Insinuou que, se fossem satisfeitas, o “interesse internacional” poderia manifestar-se em busca de “vantagens comparativas que têm a ver com nossa matriz produtiva e energética”. Um brinde à ENEL e suas correlatas…

A manobra, porém, ainda não estava completa. No dia seguinte, 16/10, Haddad conduziria ao encontro de Lula os maiores banqueiros do país, que se reuniram juntos com o presidente pela primeira vez. O acerto, conta a repórter e analista Maria Cristina Fernandes, no Valor, vinha sendo feito pelo ministro e pela Febraban desde junho. Ou seja: as entrevistas da véspera tinham a intenção de reforçá-lo, criando sinergia entre os dois eventos. E assim foi. A própria Maria Cristina reportou mais tarde que, embora tenham tratado também de temas laterais (como o efeito dos saques na poupança sobre o crédito imobiliário e a regulação das bets), os banqueiros quiseram frisar, acima de tudo, seu apoio à cruzada de Haddad pelo corte “estrutural” nos gastos públicos. [Ninguém tocou, decerto, num tema-tabu: o fato de os juros pagos pelo Estado a um punhado de rentistas corresponder, a cada ano, a 2,5 vezes todo o orçamento federal para a Saúde, que atende 210 milhões de pessoas em 5600 municípios…].

A Economia precisa encontrar-se com a Política. Em vista das eleições, qual será o perfil do governo Lula, caso ele aceite o sentido do pacote proposto pelo ministro da Fazenda? E que cenário está pressuposto nesta “conversão” do presidente?

À esquerda, as perdas de Lula serão inevitáveis. Nos grupos de internet ligados à defesa do SUS, por exemplo, já circulam manifestos contra o fim da garantia de verbas para a Saúde Pública – que contam com a simpatia, inclusive, de ex-ministros de Lula e Dilma. Porém, é possível que Haddad (e talvez seu superior) faça(m) outros cálculos. Nestas contas hipotéticas, a esquerda não terá outra alternativa: engolirá o corte de verbas e direitos, pois será forçada a apoiar Lula (ou seu eventual candidato sucessor…) contra a ultradireita, em 2026.

E o desenho da disputa presidencial, em dois anos, será muito diferente do vivido em 2022. De um lado estará a ultradireita. De outro, Lula (ou um sucessor…). A Frente ampla que o apoiará já não terá em sua espinha dorsal a esquerda e a centro-esquerda. Basta olhar para a composição do Congresso (e a das prefeituras recém-eleitas) para enxergar. Nesse novo arranjo, dará as cartas o Centrão. Gilberto Kassab (PSD) e Baleia Rossi (MDB) serão os ministros mais poderosos – ou as eminências pardas…

Caberá à esquerda coadjuvar, tanto no ministério quanto – muito mais importante – na definição dos planos de governo.

Estamos condenados a tão pouco? A primeira resposta cabe a Lula. Ele se conformará a tal conchavo? Aceitará – assim como Gabriel Boric no Chile, Emmanuel Macron na França, Alberto Fernandez na Argentina ou Olaf Sholz na Alemanhha – o papel de figura decorativa, a lembrar que houve vida e ousadia, onde então só restará subalternidade? Saberemos nas próximas semanas.

E caso ele sucumba? Estaremos dispostos a trocar nossos projetos e sonhos de um país reconstruído por um punhado de ministérios de consolação? Ou, pior ainda, a fazer parte de um projeto que não sobreviverá à onda de ultradireita, devido à sua própria claudicância?

Nas últimas semanas, têm surgido, entre personagens de uma esquerda insubmissa, considerações de que este destino não é digno, nem aceitável. As próximas semanas e meses dirão se esta ousadia tem futuro.

 

A grande promessa das eleições, por Ana Paula Vescovi

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Resultados dos pleitos em diversos países neste ano apontam para mais juros e menor crescimento global, e o Brasil precisa se preparar para esse cenário

Ana Paulo Vescovi, Economista-chefe do Santander Brasil.

Folha de São Paulo, 03/11/2024

Um dos principais temas em 2024 é o aumento da incerteza com a agenda global tomada por eleições, majoritárias ou proporcionais. Economistas costumam não se aventurar no terreno da política, mas o amplo e inédito movimento eleitoral pode trazer sinais importantes para a economia nos próximos anos.

Segundo dados do Council on Foreign Relations, o mundo jamais se deparou com um número tão grande de eleitores votando como em 2024. São 2 bilhões em mais de 80 países, incluindo 8 entre os 10 mais populosos do mundo. A lista inclui Brasil, Índia e Estados Unidos, além da União Europeia e outros.

Globalmente, a polarização política e cenários eleitorais incertos dificultam consensos, aumentam gastos públicos e enfraquecem ações contra mudanças climáticas.  Em países emergentes, nota-se fragilidade institucional e menor apoio a reformas.

Nem todas as eleições foram realmente abertas e transparentes, havendo a recondução de incumbentes em países com regimes fechados. Na Venezuela, na Rússia ou em Bangladesh, o resultado das urnas gerou revoltas populares, seja nas ruas em conflitos conflagrados, seja por meio de elevado absenteísmo como forma de protesto silencioso, seja pela deposição do eleito poucos meses depois. É um pedaço do mundo que convive com tensões sociais aumentadas.

Entre as principais economias emergentes, Índia, México e África do Sul, os sinais foram mistos. Nos dois primeiros, os incumbentes mantiveram a sua força, se reelegendo ou elegendo sucessores. Na África do Sul, o partido de Nelson Mandela perdeu a sua força após 30 anos de hegemonia.

Entre as economias avançadas, os sinais são o aumento de gastos públicos e a ausência de ajuste fiscal, com dívidas soberanas mais altas e ainda crescentes. Isso implica juros mais altos por mais tempo, menos investimentos e pressões inflacionárias latentes.

As eleições para o Parlamento Europeu também surpreenderam, anos após o brexit e a invasão na Ucrânia. Os nacionalistas e a extrema direita aumentaram o número de cadeiras e, embora não tenham chegado à maioria, cresceram na Itália, em Portugal e na Alemanha, além de Áustria, Polônia e Holanda.

Na França, a governabilidade precisará ser bastante negociada. Foi surpreendente a convocação antecipada (em três anos) de eleições legislativas, a qual resultou em uma composição parlamentar fragmentada, com nenhuma das coalizões —Nova Frente Popular, de esquerda; a Aliança Centrista, do presidente Macron; a Reunião Nacional, da ultradireita— conseguindo maioria absoluta.

E, por fim, em poucos dias conheceremos o resultado das eleições presidenciais e congressuais nos Estados Unidos. Pesquisas denotam uma corrida bastante disputada, com os republicanos sinalizando leve vantagem nos estados que não têm a tradição de apoio persistente a um dos dois lados. O que mais atrai a atenção dos mercados são dois pontos: riscos de contestação do resultado, com atrasos na decisão final e mais fricções institucionais; e uma possível vitória majoritária —a Presidência e as duas Casas no Congresso— de um dos partidos, o que reduziria os freios e contrapesos nas discussões de medidas econômicas.

O que mais pesa são as propostas anunciadas na campanha. As estimativas de piora fiscal (aumento de gastos ou redução de impostos) giram em torno de 15% a 25% do PIB nos próximos dez anos. Espera-se ainda o acirramento do protecionismo, especialmente em relação a produtos chineses, com a imposição de tarifas, por parte dos republicanos, ou a aposta de mais subsídios para política industrial, no caso dos democratas.

Não bastasse, a questão geopolítica emerge com outros temas, que vão desde a influência para a redução do financiamento de guerras por meio do aumento de oferta e redução dos preços de petróleo até a retirada do suporte financeiro aos países envolvidos nelas (Israel e Ucrânia), passando pela rediscussão do papel das organizações multilaterais.

Ademais, o protecionismo e a fragmentação do comércio exterior retiram produtividade e crescimento da economia global. A eventual imposição de tarifas comerciais mais altas nos Estados Unidos concorre, com juros mais altos, para a valorização do dólar ao longo do tempo.

Assim, o quadro mais geral que emerge das mudanças políticas é um mundo que retrocede nos aspectos institucionais e na coordenação multilateral e, possivelmente, caminha para mais juros, menos crescimento e dólar mais valorizado, tal como nos anos 1980.

O Brasil abre novas oportunidades para escapar dessa tendência. As eleições municipais recentes sinalizaram um passo mais à direita, mas com ampliação do centro político, o que pode favorecer a busca por consensos e o equilíbrio de forças entre Poderes.

O eleitorado brasileiro indica redução da polarização, o que, se bem traduzido pelos representantes políticos, poderá nos levar para uma agenda mais pragmática. É urgente interromper o crescimento da dívida pública e do seu custo de financiamento, persistir na melhoria do ambiente de negócios (estamos próximos a uma reforma tributária), em políticas sociais mais efetivas e na promoção das vantagens comparativas.

Trata-se de um apelo para o senso de urgência que precisamos ter em relação à busca mais enfática pelo grau de investimento e pelo reposicionamento do Brasil nos mercados globais, com sustentação do seu processo de desenvolvimento.

 

Combate ao crime organizado é questão de Estado, por Oscar Vilhena Vieira.

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Sem paz não haverá prosperidade nem democracia

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023)

Folha de São Paulo, 02/11/2024

Debelar o crime organizado constitui hoje o principal desafio da democracia brasileira. Muitos dirão que temos desafios mais importantes. O fato, porém, é que dificilmente conseguiremos êxito em outras frentes sem que a criminalidade organizada seja contida.

A expansão da criminalidade organizada vem submetendo parcelas cada vez maiores da população brasileira à brutalidade e à exploração econômica. Estima-se que 23 milhões de brasileiros vivam hoje em áreas dominadas por milícias e facções. Nessas áreas não há lei nem direitos. A regra são a violência e o arbítrio. É um erro acreditar que o crime organizado se interesse apenas por atividades ilegais altamente lucrativas, como o narcotráfico, o garimpo ilegal, a grilagem, o desmatamento criminoso, o tráfico de seres humanos ou a prostituição. O crime tem expandido suas ações para a distribuição de combustíveis —e mesmo a produção de álcool—, o mercado imobiliário, de transporte coletivo e de apostas e a lavagem de dinheiro, para ficar apenas nos exemplos mais evidentes.

Milícias e facções têm se dedicado a controlar o acesso da população aos serviços públicos, ao mercado local, à liberdade básica de ir e vir e até mesmo o acesso à religião. O chamado “narcopentecostalismo” é hoje um fenômeno que vem ganhando força em muitas comunidades. São, portanto, milhões de brasileiros reféns de um estado cotidiano de exceção.

Particularmente preocupante é a expansão do crime organizado pela amazônia. Como aponta Marta Machado, secretária Nacional de Políticas sobre Drogas, há hoje uma forte conexão entre narcotráfico e degradação ambiental. Pistas clandestinas, rotas de escoamento, lavagem de dinheiro e prostituição fazem parte das mesmas redes. O enfrentamento da questão climática, no Brasil, está hoje umbilicalmente ligado ao combate ao crime organizado.

Múltiplos são os fatores que levaram a essa expansão do crime, que vão da ausência ou presença arbitrária do Estado à inexistência de oportunidades econômicas. Há, porém, uma dimensão institucional, que decorre de escolhas erradas no campo da segurança pública e da política criminal.

O primeiro desses erros tem sido apostar numa política de encarceramento indiscriminado e em massa. O Estado tem se tornado, assim, o principal parceiro do crime organizado. Nas prisões, as facções cresceram e se fortaleceram.

Um segundo erro tem sido negligenciar a profissionalização, a integração, as boas condições de trabalho, o investimento em inteligência e o controle das polícias, reduzindo sua eficiência e, em algumas circunstâncias, favorecendo a milicianização das forças de segurança.

Um terceiro erro foi flexibilizar o acesso a armas e munições, que têm migrado para as mãos de criminosos, aumentando o poder de fogo contra a população e mesmo contra a polícia.

O mais preocupante, neste momento, tem sido o avanço do crime organizado sobre a política partidária, o Legislativo, governos, polícias e mesmo a Justiça. É fundamental que medidas urgentes sejam tomadas antes que esse processo de captura do Estado se torne irreversível.

A PEC apresentada pelo Governo Federal aos governadores nesta semana pode representar um primeiro passo na criação de uma política de Estado de segurança pública. Conservadores e progressistas têm que se unir contra o crime.

 

A moda do pobre empreendedor, por Gonzalez, Barlach & Almeida Prado.

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Análises apressadas ignoram múltiplos perfis; compreender as nuances desse universo é essencial para aprimorar políticas públicas e modelos de negócio

Lauro Gonzalez, Breno Barlach e Mauricio de Almeida Prado

Respectivamente, coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão Financeira da FGV e diretores do instituto de pesquisas Plano CDE

Folha de São Paulo – 03/11/2024

Virou moda falar em pobre de direita, empreendedor, conservador etc. A hipótese aventada em diversos artigos de opinião conecta a desilusão desse grupo com governos de esquerda, que não estariam atentos às preferências pelo empreendedorismo e por formas mais flexíveis de trabalho. Esse argumento foi usado como explicação para o sucesso da candidatura de Pablo Marçal (PRTB) em São Paulo. Seu discurso, alinhado à teoria da prosperidade das igrejas evangélicas, soaria bem aos ouvidos de um estrato social que vive no “corre” diário, como autônomos, motoristas de aplicativos, entregadores etc.

De fato, muitos estudos mostram uma afinidade entre o ethos do trabalhador autônomo e políticas que preconizam a desconfiança de políticas públicas e colocam o Estado como entrave. Para esses trabalhadores, promessas de estabilidade ligadas ao regime celetista são vistas como obstáculos para oportunidades de aumento de renda.

Entretanto, no calor dos resultados eleitorais, análises apressadas ignoram os múltiplos perfis da população de baixa renda. Cria-se uma espécie de categoria analítica denominada “pobre” a qual se associa um bloco homogêneo de ideias, valores e preferências. Em um preconceito às avessas, a diversidade existente nas classes de renda mais elevada é ignorada quando se analisa essa população.

No tocante ao empreendedorismo, são claras as evidências de uma diversidade de perfis. Estudo de 2020 estimou que 23% dos empreendedores gostariam de ter um emprego formal. Ou seja, são empreendedores por necessidade. Outro estudo, mais recente, com jovens das classes CDE na escola pública, mostrou que apenas 18% tinham o empreendedorismo como objetivo profissional —os demais sonhavam com empregos formais. Estudo do Instituto Plano CDE em conjunto com o Centro de Estudos de Microfinanças e Inclusão Financeira da FGV sobre o uso de serviços financeiros por parte da população de baixa renda estimou a fração de empreendedores em torno de 20% dessa população.

O mesmo estudo mostrou a existência de múltiplos perfis atitudinais, com diferentes preferências por modos de trabalho. O mais comum destes perfis foi chamado de “conservador” (33% da população das classes C, D e E). O nome deriva não de preferências políticas, mas de uma predileção por segurança. São aqueles que temem se endividar, evitam o uso do cartão de crédito, controlam os gastos e tendem a preferir rendas estáveis.

Indo aos detalhes desse universo heterogêneo, é frequente uma variabilidade de perfis dentro do próprio domicílio. Isso porque muitas pessoas moram em domicílios com “famílias estendidas”, nas quais as composições familiares são mais complexas e contemplam múltiplas fontes de renda. É o avô que recebe a aposentadoria convivendo com o casal, ela CLT e ele empreendedor. Mas ela também faz bicos de manicure aos finais de semana, assim como o jovem que mora com eles e trabalha na feira alguns dias da semana. Portanto, em domicílios assim, coexistem múltiplos perfis comportamentais, vínculos de trabalho e, possivelmente, visões de mundo.

Vale dizer que os resultados dos estudos acima são condizentes com postulados da teoria econômica. Como destacou a ganhadora do Prêmio Nobel Esther Duflo, o empreendedorismo exige uma maior disposição para assumir riscos, sendo que o ser humano médio tende a exibir um grau de aversão ao risco elevado.

Em relação aos empreendedores por necessidade, outro Nobel, Amartya Sen, dizia que o bem-estar é alcançado pela liberdade de fazer o que se valoriza. Portanto, Sen diria que é possível aumentar o bem-estar real dessas pessoas através de outros tipos de vínculo de trabalho.

Em suma, a realidade do mundo do trabalho não só é diversa como apresenta uma dinâmica que dá os contornos das preferências por diferentes formas de trabalho. Muitas pessoas buscam flexibilidade e independência, enquanto outras preferem a segurança de um emprego formal. Compreender as nuances desse universo heterogêneo é essencial para aprimorar políticas públicas e modelos de negócio.

Por fim, talvez exista uma tendência de culpar os pobres em diversas situações. Durante a pandemia, jornalistas tarimbados não hesitaram em tacar pedra na Geni. Alguém escreveu que, ludibriado pelo pagamento do auxílio emergencial, o “rebanho de gente que precisa do governo para sobreviver, até para comer”, cairia no colo de Bolsonaro. Não foi o que aconteceu…

 

Brics +

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Vivemos momentos de grandes conturbações na economia internacional, confrontos econômicos que buscam novos espaços no comércio global, o aumento da tecnologia está moldando todas as bases da sociedade, as transformações no mundo do trabalho crescem de forma acelerada, os desequilíbrios climáticos assustam e geram preocupações palpáveis para todos os indivíduos, o incremento das desigualdades sociais gera calafrios e desesperanças. Neste cenário, encontramos embates de nações que vislumbram a hegemonia internacional, o aumento das guerras, novos padrões monetários e novas perspectivas para a economia mundial.

Diante de tantos desafios em curso na sociedade global, encontramos o fortalecimento do Brics + (inicialmente um espaço de integração entre Brasil, Rússia, Índia, China, África de Sul e países associados), que pode ser visto como uma grande transformação geopolítica mundial, com a entrada de novas nações, novas discussões geoestratégicas e novas perspectivas para o comércio internacional, o surgimento de novos projetos econômicos, comerciais e financeiros, tais como a costura de uma nova moeda para os países membros, um novo modelo monetário e financeiro, com o incremento da integração e a interdependência destas nações, estimulando a sinergia, o aumento das trocas comerciais e a maior solidariedade dentro do bloco.

Embora os analistas geopolíticos internacionais destaquem o caráter do Brics + como um modelo antiocidental, os países membros rechaçam essa definição, acreditando que o acordo vislumbra novos espaços comerciais e econômicos, com a construção de novos horizontes de integração e de interdependência. Embora acreditando que o crescimento e a consolidação, depois de muitas conversas e negociações, o Brics + tende a fortalecer as nações envolvidas, consolidando seus padrões de integração e reduzindo a dependência das nações ocidentais, impactando positivamente sobre o comércio internacional do sul global em detrimento dos países ocidentais que devem perder espaços comerciais construídos desde a expansão europeia.

Neste momento de grandes transformações na sociedade contemporânea, as nações estão buscando novas parcerias estratégicas para estimular o desenvolvimento de suas economias, novas formas de desenvolver suas estruturas produtivas, estimulando a transferência de novas tecnologias, consolidando apoios estratégicos e geopolíticos, maior autonomia econômica e soberania política nas relações internacionais, deixando de lado as nações que se comprazem com conflitos militares, estímulos crescentes da indústria bélica e da destruição, sendo verdadeiros mercadores da morte e da devastação.

Num momento de grandes incertezas e confrontos militares motivados e estimulados por nações ocidentais, onde a memória da colonização europeia, sempre marcada por pilhagens e devastações, o fortalecimento de um bloco de países do Sul Global pode gerar receios e preocupações das nações do norte, como destacou um alto integrante do governo alemão que demonstrou descontentamento com o crescimento e o fortalecimento do Brics + que podem criar constrangimentos para a manutenção da hegemonia. O Oceano Atlântico, desde a Revolução Industrial, dominou a economia internacional e garantiu a preponderância e a dominação das nações ocidentais, na sociedade contemporânea, os poderes e as hegemonias estão em franca movimentação, o Oceano Pacífico, nesta nova configuração geopolítica, tende a dominar e a controlar a economia internacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.