Haddad e o FMI, por Paulo Klias

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Desde Getúlio, a relação do Brasil com o Fundo alternou subordinação e conflito. Lula 1 alcançou certa independência. Agora, ministro mostra-se submisso diante das orientações da instituição que sempre levaram o Sul a privatizações e desmonte de direitos

Paulo Klias – OUTRAS PALAVRAS – 29/10/2024

As relações econômicas e financeiras formais entre o Brasil e o Fundo Monetário Internacional (FMI) sempre foram marcadas por algum grau de conflito e tensão. Afinal, apesar da motivação das negociações ser o ingresso de recursos externos para auxiliar a situação do balanço de pagamentos de nosso país, em geral os governos apresentavam divergência com relação às condições impostas pelas diferentes equipes do Fundo.

A primeira operação ocorreu em 1954, com a assinatura de um empréstimo para o governo presidido por Getúlio Vargas. Tratava-se de um aval concedido pelo FMI a um empréstimo, no valor de US$ 300 milhões, oferecido pelo Eximbank dos Estados Unidos ao governo brasileiro. Porém, cinco anos depois, em 1959, Juscelino Kubitschek rompe o acordo com a instituição multilateral em função dos compromissos assumidos em seu Plano de Metas. Tendo em vista a necessidade de promover uma flexibilização no rigor fiscal imposto pelo FMI, o presidente decide sair da austeridade para conseguir espaço orçamentário para projetos como a construção da nova capital em Brasília e outras medidas envolvendo despesas públicas elevadas, além de investimento estatal direto.

A relação só voltaria se normalizar após o golpe militar de 1964 e a consequente implementação de uma política econômica de natureza ortodoxa e conservadora. Entre 1965 e 1972 são assinados e renovados anualmente acordos classificados como “stand by”, cuja intenção era auxiliar em eventuais problemas de balanço de pagamentos. No entanto, como os governos da ditadura cívico-militar ofereciam benesses e atratividade ao capital internacional, tais acordos operavam mais como uma garantia de expectativas, uma vez que o fluxo de recursos externos não parava de crescer no período.

Brasil e FMI: décadas de tensão

A situação muda de figura a partir do final da década de 1970 com a crise do petróleo na esfera internacional. Logo na sequência tem início uma fase de grandes dificuldades nas contas externa dos países do chamado Terceiro Mundo – a chamada crise da dívida. Em 1982, durante a gestão de Delfim Neto como o superministro da área econômica do último governo dos generais, o Brasil assina um acordo com o Fundo para assegurar o ingresso de recursos externos para cumprir as obrigações com os credores. Delfim teria assinado seis cartas de intenção com o organismo e nunca cumpriu com as cláusulas ali constantes. Foram diversos anos de dificuldades em honrar os compromissos constantes nas cláusulas dos títulos de endividamento. É desta época a frase que ficou famosa proferida pelo ministro, quando afirmou que “dívida pública não se paga, dívida se rola”.

Com o início da transição política para superar a fase ditatorial, o governo Sarney promove algumas medidas importantes na área econômica. Dentre elas estava a formalização da moratória da dívida externa em 1987. Na sequência, com a eleição de Collor de Mello para a Presidência da República, as sucessivas equipes de economia buscam um acordo com o FMI entre 1990 e 1992, mas não obtêm resultado. Com o fracasso de tais negociações, a situação só volta a se “normalizar” no final do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso (FHC). O ministro da Fazenda Pedro Malan logra assinar um acordo com o Fundo em 1998, por meio do qual o Brasil recebe um total de US$ 41,5 bilhões.

O problema são as contrapartidas impostas pelo Fundo. Como sempre, trata-se da exigência de implementação das orientações previstas no Consenso de Washington, tais como a privatização de empresas estatais, a liberalização geral da economia e a imposição de regras rígidas de austeridade fiscal. Boa parte de tais iniciativas já estavam em curso desde a posse de Collor de Melo em 1990, mas FHC acelera em 1998 a venda do sistema público de telecomunicações e de energia elétrica. Além disso, o seu governo encaminha um projeto de lei ao Congresso Nacional que se converte na Lei de Responsabilidade Fiscal, a Lei Complementar nº 101 de 2000.

FMI e as recomendações conservadoras

Com a posse de Lula em 2003, houve uma melhoria sensível nas contas externas brasileiras. Com isso, em 2005, o País quitou sua dívida junto ao Fundo e em 2009 avançou ainda mais, comprando U$10 bi em bônus da instituição e tornando-se, pela primeira vez na História, credor do FMI. Apesar da falta de exigência formal de uma política econômica seguindo as regras da ortodoxia conservadora, a duplinha Antonio Palocci no Ministério da Fazenda e Henrique Meirelles no Banco Central (BC) mantiveram a essência do austericídio, com rigor fiscal de índices de superávit primário até então inéditos e taxas de juros também rolando na estratosfera.

Durante os 14 anos em que o Partido dos Trabalhadores esteve no governo federal, a presença do FMI sempre passou ao largo do debate e da subserviência explícita ao organismo. A existência de um estoque significativo de reservas cambiais e a manutenção de uma recorrente folga na Balança Comercial deixaram para um segundo plano a necessidade de eventual ajuda para solucionar eventuais problemas nas contas externas. Em 2003, elas estavam em US$ 39 bi. Em 2007 superam a marca dos US$ 100 bi. Em 2008, atingem US$ 200 bi. Em 2011, as reservas atingem e superam os US$ 300 bi. Atualmente estão na faixa de US$ 370 bi.

Ocorre que o “golpeachment” praticado contra Dilma Rousseff e a posterior eleição de Bolsonaro em 2018 institucionalizaram o conservadorismo na política econômica de forma escancarada. Sem nenhuma pressão formal do FMI, os governos recuperaram a pauta da privatização das estatais, da redução do Estado à sua dimensão mínima e do aprofundamento da pauta da austeridade fiscal.

Lula 3.0 e a esperança de mudança

No entanto, as esperanças depositadas na eleição de Lula para um terceiro mandato em 2022 começaram a se verem frustradas com a indicação de Fernando Haddad para o Ministério da Fazenda. O que se assistiu desde então foi a retomada da agenda conservadora de austeridade, com a troca do Teto de Gastos de Temer pelo Novo Arcabouço Fiscal (NAF). Com isso, manteve-se a essência da estratégia de redução do peso do Estado na economia e a preparação para que parte dos serviços públicos, das políticas públicas e da infraestrutura sejam assumidos pelo capital privado.

Nesse contexto de aproximação com os interesses do financismo local e global, Fernando Haddad acaba por incorporar de forma plena a pauta do povo da finança. A manutenção da austeridade fiscal como ponto essencial da política econômica termina por comprometer toda a capacidade de recuperação do protagonismo do Estado. O ministro da Fazenda busca se apresentar como representante do bom mocismo junto aos representantes do financismo e se concentra em obter bons resultados fiscais. Isso se concretiza, por exemplo, na obsessão em zerar o déficit fiscal primário em 2024.

Mas o aspecto recente mais impressionante foi a aceitação e a concordância passiva de Haddad com as orientações do FMI. O Fundo apresentou um novo relatório a respeito da situação da economia brasileira e realizou algumas projeções para os próximos períodos. Como era de se esperar, as conclusões apontam para uma suposta “explosão” da dívida pública brasileira. Esse é um dos principais argumentos em favor de um endurecimento ainda maior no controle dos gastos governamentais.

Haddad: conversão ao conservadorismo neoliberal

O documento do FMI faz coro às manifestações dos escribas do sistema financeiro nos grandes meios de comunicação: o governo estaria sendo conivente com o retorno ao espírito da “gastança generalizada”, uma vez que ele não se compromete seriamente com o rigor necessário na condução da política fiscal. Haddad assume esse sentimento de culpa e declara:

(…) “Estamos agora tendo que repensar essa estratégia para fortalecer o arcabouço fiscal. Mas do ponto de vista fiscal, eu penso que o fortalecimento do arcabouço fiscal é o remédio mais adequado para o momento que estamos vivendo” (…)

Além disso, o ministro avança em suas afirmações, cedendo às pressões para aprofundar ainda mais o extremismo fiscal. Indagado a respeito da suposta incapacidade em atingir as metas este ano e nos próximos exercícios, ele deixa aberta possibilidade de um maior rigor nas regras previstas atualmente no NAF. O dispositivo que se converteu na Lei Complementar 200 estabelece a obrigatoriedade de que as despesas só possam crescer a 70% do ritmo de elevação das receitas. Como existem algumas garantias constitucionais para saúde e educação, além do compromisso de Lula com a valorização do salário mínimo acima da inflação, é possível que as metas austerizadas não sejam efetivamente cumpridas. Mas o ministro, ao invés de defender a maioria da sociedade brasileira contra os intentos do financismo, termina por concordar com o diagnóstico conservador e sugere um aprofundamento ainda mais severo dos mecanismos de contenção. Segundo ele, o diferencial entre despesas e receitas poderia ser ainda mais elevado. Uma loucura!

(…) “é necessário manter os gastos entre 50% e 70% da receita para retomar a uma posição de equilíbrio” (…)

Se Lula quiser cumprir efetivamente com suas promessas de campanha e com as exigências de um país que precisa romper o círculo vicioso da pobreza e da desigualdade, é fundamental sair da camisa de força imposta pela austeridade fiscal. Não faz sentido um governo presidido pelo Partido dos Trabalhadores somar esforços junto ao FMI para completar a imposição da pauta neoliberal em nossas terras.

Paulo Klias, Doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal

 

 

Alunos do curso de Gestão Hospitalar da Fatec Barretos 2024.

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Alunos do curso de Gestão Hospitalar da Fatec Barretos 2024.

A disputa dos recursos públicos, por Luciano Fedozzi

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Luciano Fedozzi – A Terra é Redonda – 27/10/2024

A estratégia política do governo federal em não abrir a discussão do orçamento com a sociedade civil tem efeitos negativos, tanto em nível federal como nos demais níveis subnacionais de governo

O contexto de reconstrução nacional do Estado e das políticas públicas no Brasil, após a catástrofe autoritária e ultraliberal desencadeada desde 2016, exige a combinação do fortalecimento das instituições representativas da democracia e a reconstrução das instâncias da democracia participativa, criadas após a Constituição Federal de 1988.

A partir da vitória de Lula, o Governo Federal vem encaminhando, juntamente com atores da sociedade civil e as comunity politics, a reconstrução das esferas socioestatais de participação social que foram destruídas ou enfraquecidas desde 2016, e principalmente durante o governo de Jair Bolsonaro. Foram retomados conselhos nacionais e conferências, e institucionalizada a articulação interconselhos, todas instâncias importantes para a democratização da gestão governamental e a efetivação de políticas ligadas aos direitos da cidadania.

A instauração do Conselho de Participação Social (CPS), vinculado ao Gabinete de Transição, que funcionou como órgão de assessoria ao presidente eleito, indicou linhas gerais para a relação entre o novo governo e a sociedade civil, assim como as respectivas políticas de participação a serem efetivadas em nível federal.

No âmbito da estratégia de participação social, após a vitória democrática, o Orçamento Participativo Nacional (OPN) surgiu como uma possibilidade real, apesar da complexidade de funcionamento dessa modalidade na escala federal. O Observatório das Metrópoles e a Rede Brasileira dos Orçamentos Participativos (RBOP) [i] apresentaram uma proposta, no início de 2023, [ii] para implementá-lo, e veem promovendo atividades para a retomada dos Orçamentos Participativos na agenda política das cidades, já que é decrescente o número de municípios que adotam essa prática no país, um paradoxo em relação à expansão internacional, conforme aponta o Atlas Mundial dos Orçamentos Participativos. [iii]

O tema do Orçamento Participativo Nacional foi abordado na campanha eleitoral de 2022, quando Lula o apresentou em contraponto ao “orçamento secreto. A prática intransparente de congressistas deveria ser substituída pela abertura democrática de participação e controle da sociedade. Em 2023, sob o impacto da vitória democrática, a realização do Plano Plurianual Participativo (2024-2027), pelo Governo Federal, demonstrou que a escala nacional não impediu a participação social na elaboração da proposta orçamentária.

Foram 4 milhões de acessos no Brasil Participativo, na internet, sendo 34.310 participantes nas plenárias presenciais das 27 capitais, 1,4 milhão de inscritos na plataforma digital, 8.254 propostas e 1,5 milhão de votos. [IV] O Brasil deu mais uma demonstração de ousadia na invenção democrática, sendo o único país de grande escala geográfica a realizar esse tipo de prática para definir prioridades de políticas, em parceria com organizações e movimentos sociais e de governo estaduais.

Portanto, a negativa do Governo Federal em seguir adiante, a partir de 2024, no processo de elaboração participativa do Projeto de Lei Orçamentária (PLO) em nada tem a ver com as possíveis dificuldades do salto de escala (scaling-up) nas práticas dos Orçamentos Participativos. Ressalte-se, ainda, contra o argumento das dificuldades da big escala, as iniciativas inovadoras de Orçamentos Participativos que já ocorreram e vem ocorrendo hoje em estados da Região Nordeste, com destaque para o caso consolidado da Paraíba, desde 2011, sob direção e protagonismo do PSB, a partir da experiência de João Pessoa.

Essa iniciativa foi seguida pelos estados do Maranhão e do Piauí (ambos governados pelo PT), além do Rio Grande do Norte e de Pernambuco, que agora decidiram iniciar o processo. Todavia, não conta com o governo do Ceará, apesar da experiência do atual governador na coordenação do Orçamento Participativo de Fortaleza, há alguns anos. São modelos participativos distintos, em que a incidência popular nas decisões é ainda restrita a uma pequena parcela dos recursos, mas que demonstram o quanto a democracia participativa, seja presencial ou virtual (ou híbrida), é possível mesmo em escalas que vão além dos municípios, a exemplo do que já fez pioneiramente o Rio Grande do Sul durante o governo de Olívio Dutra (PT, 1999-2002).

A estratégia política do governo federal em não abrir a discussão do orçamento com a sociedade civil tem efeitos negativos, tanto em nível federal como nos demais níveis subnacionais de governo. Em primeiro lugar, porque a disputa dos recursos públicos vem ocorrendo de forma restrita à institucionalidade dos poderes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, campo em que o governo federal não tem relação de forças favoráveis.

Nessa situação, é claro que os setores dominantes do mercado, da mídia empresarial corporativa e no Congresso Nacional tem maior poder de influência. O campo popular está fora desse jogo de cartas marcadas. Trata-se de uma estratégia do governo Lula que repete o primeiro ciclo dos governos liderados pela esquerda, nos quais se optou pela inexistência de qualquer programa mobilizador da população e dos segmentos mais atuantes da sociedade civil. É necessário lembrar que apesar do Orçamento Participativo Nacional também constar do programa eleitoral na campanha de 2002, o ensaio participativo realizado em 2003 também foi abortado, baseado no falso argumento de que ele poderia incentivar o excesso de demandas populares que seriam frustradas pelas limitações orçamentárias.

Agora, mais uma vez, o projeto de governo da esquerda repete a estratégia que supõe a passividade dos setores subalternos. Ocorre que diferentemente do ciclo da década de 2000, quando o crescimento econômico garantiu apoio popular, o modelo tradicional de democracia aparece hoje aos olhos dos cidadãos/as fortemente desgastado e pouco confiável, legado também da década de crise econômica iniciada em 2014, dos episódios reais de corrupção, da demonização da política a partir de 2016, além da destruição das políticas provocada pelo neoliberalismo do qual se alimenta a extrema-direita.

É visível o crescimento dos sentimentos antipolítica e antissistema na sociedade brasileira. Nesse contexto, o Brasil caminha para o parlamentarismo, com passividade de atores progressistas da sociedade civil e dos movimentos sociais, que parecem alheios aos fatos.

Considerando a vasta experiência dos Orçamentos Participativos em centenas de metrópoles e cidades no país, durante as últimas três décadas, é possível afirmar que, se efetivada e bem conduzida, de forma transparente e em conjunto com atores da sociedade civil, a gestão orçamentária participativa poderá se constituir em importante contranarrativa no enfrentamento do retrocesso representado pela captura dos recursos públicos, pelas forças fisiológicas e patrimonialistas no Congresso Nacional, articuladas localmente.

Os cerca de R$ 50 bilhões das emendas impositivas já se fizeram sentir nas eleições municipais desse ano, provocando desequilíbrio na competição devido aos recursos disponibilizados às prefeituras, elos das redes conservadoras do Congresso Nacional.

Nesse contexto de retrocessos, um Orçamento Participativo bem conduzido poderá contribuir para a criação de uma arena pública de discussão sobre a geração e o uso dos recursos públicos, onde atores da sociedade civil possam se posicionar e participar ativamente da disputa concentrada nessa parte fundamental do coração do Estado. O Orçamento Participativo Nacional poderá ajudar uma parte da sociedade constituída por organizações e movimentos sociais a entrar nesse jogo de garroteamento e cerco do Governo Lula.

Veja-se que a ação justa e correta do STF – ao entrar nessa disputa estratégica das emendas – forneceu justificativas para ações no Congresso Nacional que pretendem retirar poder dessa instância da república, caminho utilizado pela extrema-direita nos processos de desdemocratização que estão em curso em vários lugares do mundo. Os Orçamentos Participativos não são panaceia para os males da democracia representativa, mas inegavelmente eles contêm enormes potenciais democratizantes na relação entre o Estado e a sociedade.

Como mostram pesquisas acadêmicas, nas últimas décadas, nenhum procedimento de inovação democrática no mundo contém maior potencial de inclusividade política e social do que os Orçamentos Participativos, quando eles são para valer, algo que também se aplica ao seu potencial redistributivo em bem-estar urbano. Eles permitem incluir os setores populares de modo ativo na decisão de políticas, reconfigurando as bases em que se dá o exercício do poder e a hegemonia de classes na sociedade.

Também permitem politizar questões que são aparentemente técnicas, como a política fiscal e as formas justas de financiamento das políticas públicas, tema de alto relevo para a eficácia da democracia na provisão de bem-estar, que em geral fica restrita aos meios técnicos governamentais e às elites de especialistas dos mercados, além dos parlamentares.

Uma segunda contribuição democratizante do Orçamento Participativo Nacional diz respeito ao seu provável efeito estimulante junto aos governos subnacionais, em especial os municípios, articulando o uso dos recursos federais repassados e induzindo o aumento da participação, da transparência e do controle social nas cidades, inclusive sobre as emendas impositivas, que se generalizaram nas casas legislativas do país.

Como mostrou o ciclo de expansão dos Orçamentos Participativos, nos anos 1990/2000, muitas prefeituras do campo progressista e mesmo liberal-conservador, assim como a atuação de atores civis locais, são incentivadas a adotar práticas mais democráticas e participativas quando outras instituições também o fazem. Sem dúvida, o Orçamento Participativo Nacional poderá exercer um efeito-demonstração de apoio à resistência democrática por meio do estímulo à disseminação de Orçamentos Participativos locais e estaduais, que precisam de apoio quando a própria democracia liberal se encontra ameaçada.

O possível temor de um Orçamento Participativo de “confronto” com o Congresso Nacional não se sustenta, haja vista a aprovação do PPA participativo, em 2023. Além do mais, renunciar de antemão às divergências naturais sobre as melhores formas de elaboração dos orçamentos pelos governos é renunciar à disputa de hegemonia dos projetos políticos. É capitular diante dos projetos autoritários, elitistas e neoliberais.

Por outro lado, no contexto em que se aprofunda o sequestro dos recursos para fins eleitorais e de poder, o quadro é de passividade dos movimentos sociais e atores civis do campo democrático e progressista, diminuindo sobremaneira a margem de manobra do governo federal. Esse quadro de fragilidade contrasta com o ativismo e a mobilização dos setores sociais e políticos da extrema-direita, que detém a iniciativa pública apesar da derrota eleitoral em 2022 e do fracasso do golpe em janeiro de 2023.

Nenhum ator civil relevante dos movimentos sociais apresentou até agora alguma iniciativa de mobilização em defesa dos recursos públicos em bases transparentes, constitucionais e republicanas. O golpe da captura dos recursos do Executivo parece ser apenas uma briga entre os poderes. Sem dúvida, a crise social, a precarização do trabalho e a fragmentação da sociedade de consumo reforçada pelo hiper individualismo digital está impactando a capacidade de ação coletiva dos movimentos e organizações sociais do campo progressista, mas isso não explica por si só a passividade observada diante do sequestro dos recursos que faltam às políticas públicas e que estão modificando o sistema político para o parlamentarismo, sem mudar a Constituição Federal.

Esse quadro exige que os atores civis do campo progressista e de esquerda reajam, sob pena de os retrocessos da democracia serem irreversíveis, amarrando estrategicamente o país na aliança do atraso fisiológico de direita – nas redes que unem prefeituras e congressistas – com o projeto neoliberal das elites sob a hegemonia ideológica da extrema-direita. Acreditamos que uma das formas possíveis dessa reação – sem panaceia – é o aprofundamento da democracia, utilizando o que o Brasil criou e exportou ao mundo, o Orçamento Participativo.

*Luciano Fedozzi é professor titular de sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Autor do livro Orçamento Participativo de Porto Alegre: 35 anos.

 

Plano Real – os moedeiros falsos, por José Luís Fiori

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José Luís Fiori

Artigo publicado por ocasião do lançamento do plano econômico de FHC, em julho de 1994

“Afinal é preciso admitir, meu caro, que há pessoas que sentem necessidade de agir contra seu próprio interesse…”
(André Gide).

“É importante para um ‘technopol’ vencer a próxima eleição para continuar a implementar sua agenda e não para manter-se no cargo. Vencer uma eleição abandonando suas posições é para ele uma vitória de Pirro”
(John Williamson).

A Terra é Redonda, 29/06/2024

Entre os dias 14 e 16 de janeiro de 1993, o Institute for International Economics, destacado “think tank” de Washington, tendo à frente Fred Bergsten, reuniu cerca de cem especialistas em torno do documento escrito por John Williamson, “In Search of a Manual for Technopols” (Em Busca de um Manual de ‘Tecnopolíticos’), num seminário internacional cujo tema foi: “The Political Economy of Policy Reform” (A Política Econômica da Reforma Política).

Durante dois dias de debates, executivos de governo, dos bancos multilaterais e de empresas privadas, junto com alguns acadêmicos, discutiram com representantes de 11 países da Ásia, África e América Latina “as circunstâncias mais favoráveis e as regras de ação que poderiam ajudar um ‘technopol’ a obter o apoio político que lhe permitisse levar a cabo com sucesso” o programa de estabilização e reforma econômica, que o próprio Williamson, alguns anos antes, havia chamado de “Washington Consensus” (Consenso de Washington).

Um plano único de ajustamento das economias periféricas, chancelado, hoje, pelo FMI e pelo Bird em mais de 60 países de todo mundo. Estratégia de homogeneização das políticas econômicas nacionais operada em alguns casos, como em boa parte da África (começando pela Somália no início dos anos 1980), diretamente pelos técnicos próprios daqueles bancos; em outros, como por exemplo na Bolívia, Polônia e mesmo na Rússia até bem pouco tempo atrás, com a ajuda de economistas universitários norte-americanos; e, finalmente, em países com corpos burocráticos mais estruturados, pelo que Williamson apelidou de “technopols“: economistas capazes de somar ao perfeito manejo do seu “mainstream” (evidentemente neoclássico e ortodoxo) à capacidade política de implementar nos seus países a mesma agenda e as mesmas políticas do “Consensus”, como é ou foi o caso, por exemplo, de Aspe e Salinas no México, de Cavallo na Argentina, de Yegor Gaidar na Rússia, de Lee Teng-hui em Taiwan, Manmohan Singh na Índia, ou mesmo Turgut Ozal na Turquia e, a despeito de tudo, Zélia e Kandir no Brasil.

Um programa ou estratégia sequencial em três fases: a primeira consagrada à estabilização macroeconômica, tendo como prioridade absoluta um superávit fiscal primário envolvendo invariavelmente a revisão das relações fiscais intergovernamentais e a reestruturação dos sistemas de previdência pública; a segunda, dedicada ao que o Banco Mundial vem chamando de “reformas estruturais”: liberalização financeira e comercial, desregulação dos mercados, e privatização das empresas estatais; e a terceira etapa, definida como a da retomada dos investimentos e do crescimento econômico.

Foi ainda nos anos 1980 que o reiterado insucesso das políticas monetaristas de estabilização introduziu nos debates econômicos a importância crucial para o sucesso no combate antiinflacionário do “fator credibilidade”, e teve como consequência a canonização de uma heterodoxia, a da re-regulação do câmbio ou “dolarização”. Logo à frente, já nos anos 1990, as novas avaliações pessimistas, tanto do FMI como do Bird, puseram em destaque a importância decisiva do “fator poder político” no sucesso ou fracasso de seu programa econômico.

Esta nova preocupação dos intelectuais e gestores do Consenso de Washington é que explica não só a realização do Seminário de Bergsten e Williamson, como a presença nele de dois cientistas políticos, Joan Nelson e Stephan Haggard, responsáveis por um dos mais abrangentes estudos comparativos já feitos sobre este assunto nos Estados Unidos.

No seu documento introdutório, Williamson resume as perguntas e hipóteses centrais relativas às dificuldades próprias de cada uma das etapas do plano e sobre as respostas alternativas encontradas pelos diferentes países. Porque reconhece os perversos efeitos sociais e econômicos das medidas de austeridade e liberalização sobre as economias e populações nacionais, o autor também entende, com este programa, como fica difícil eleger e sustentar um governo minimamente estável. De onde surgiram várias táticas ou artifícios políticos capazes de fazer os eleitores aceitarem os desastres sociais provocados em todo lugar pelo programa neoliberal como sendo transitórios ou necessários em nome de um bem maior e de longo prazo.

Listam-se ali, como condições mais favoráveis, quando o programa consegue ser ampliado depois de alguma grande catástrofe (guerra ou hiperinflação) capaz de minar toda e qualquer resistência; quando os “technopols” conseguem defrontar-se com uma oposição desacreditada ou desorganizada; quando, além disto, eles disponham de uma liderança forte capaz de “insularizá-los” com relação às demandas sociais.

Condições que não dispensaram, entretanto, em todas as situações conhecidas, a formação prévia de uma coalizão de poder suficientemente forte para aproveitar as condições favoráveis e assumir, por um longo período de tempo, o controle de governos sustentados por sólidas maiorias parlamentares. Esta, sim, uma condição considerada indispensável para poder transmitir “credibilidade” aos atores que realmente interessam, neste caso: os “analistas de risco” das grandes empresas de consultoria financeira, responsáveis, em última instância, pela direção em que se movem os capitais “globalizados”

Poucos ainda têm dúvidas de que o Plano Real, a despeito de sua originalidade operacional, integra a grande família dos planos de estabilização discutidos na reunião de Washington, onde o Brasil esteve representado pelo ex-ministro Bresser Pereira. E aí se inscreve não apenas por haver sido formulado por um grupo paradigmático de “technopols“, mas por sua concepção estratégica de longo prazo, anunciada por seus autores, desde a primeira hora, como condição inseparável de seu sucesso no curto prazo: ajuste fiscal, reforma monetária, reformas liberalizantes, desestatizações, etc., para que só depois de restaurada uma economia aberta de mercado possa dar-se então a retomada do crescimento.

Neste sentido, os seus “technopols“, como bons aprendizes, sabem que a dolarização inicial da economia será sempre um artifício inócuo se não estiver assegurada por condições de poder inalteráveis por um período prolongado de tempo.

Desde este seu ponto de vista, aliás, o Plano Real não foi concebido para eleger FHC, foi FHC que foi concebido para viabilizar no Brasil a coalizão de poder capaz de dar sustentação e permanência ao programa de estabilização do FMI, e dar viabilidade política ao que falta ser feito das reformas preconizadas pelo Banco Mundial.

Por isto, não surpreende a confusão popular frente à candidatura de FHC e suas relações sinergéticas com o Plano Real. O que surpreende, sim, é a confusão ainda maior que reina entre os intelectuais que criticam ou justificam emocional ou ideologicamente as suas atuais preferências políticas.

Erro que não cometeria o FHC professor, lógico e realista, se não estivesse impedido de recorrer a si mesmo e ao que ainda melhor explica suas preferências políticas atuais: os seus próprios ensaios sobre o empresariado industrial e a natureza associada e dependente do capitalismo brasileiro, datados dos anos 1960. Eles permitem entender e acompanhar de forma perfeitamente racional o caminho lógico que levou FHC à sua posição atual no xadrez político-ideológico brasileiro. Mas é verdade que, ao mesmo tempo, contêm o libelo mais duro, veemente e essencial contra a sua própria opção.

Em termos muito sintéticos: (a) O trabalho acadêmico de FHC pode ser todo ele definido como uma busca incansável dos “nexos científicos” entre os interesses e objetivos desenhados pelas situações “histórico-estruturais” e os caminhos possíveis que vão sendo construídos politicamente nas sociedades concretas pelos grupos sociais e suas coalizões de poder.

(b) Com esta perspectiva, FHC foi um dos pioneiros a investigar e concluir, de maneira implacável, já em 1963, que “a burguesia industrial nacional estava impedida, por motivos estruturais, de desempenhar o papel que a ideologia nacional-populista lhe atribuía” e que, por isto, “havia optado pela ordem, isto é, por abdicar de uma vez por todas de tentar a hegemonia plena da sociedade, satisfazendo-se com a condição de sócio-menor do capitalismo ocidental.”

Constatação que lhe permitiu redescobrir muito cedo no empresariado brasileiro uma condição universal do capitalismo: a de que pode estar associado, indiferentemente, segundo as circunstâncias, a um discurso ideológico protecionista ou livre-cambista, estatista ou anti-estatista, obedecendo apenas ao interesse maior da liberdade de movimento do capital e dos desdobramentos geoeconômicos e políticos da sua continuada internacionalização.

Esta descoberta foi responsável direta pelo seu passo seguinte e mais original: para FHC, se a condição periférica do capitalismo se definia pela ausência de moeda conversível e capacidade endógena de progresso tecnológico, a sua “condição dependente” se definia pela forma peculiar de associação econômica e política do empresariado nacional com os capitais internacionais e o Estado. Tripé de sustentação econômica da fase de “internacionalização do mercado interno” (em que as empresas multinacionais assumiram a liderança em quase todos os setores de ponta, responsabilizando-se por cerca de 40% do produto industrial) e de um tipo de “industrialização associada”, tão viável quanto inevitável do ponto de vista da “burguesia industrial brasileira.”

Durante os anos 1970, o trabalho intelectual de FHC consistiu em demonstrar que esta “situação estrutural” não impedia o crescimento econômico nem o associava necessariamente a um só modelo social e político. Concluindo, logo antes de entrar para a vida política, que o caráter predatório, excludente e autoritário do capitalismo brasileiro era a marca própria que a coalizão conservadora de poder imprimira ao Estado desenvolvimentista brasileiro.

Não é difícil estender e atualizar a análise de FHC à nova “situação estrutural”, definida por uma internacionalização mais avançada ou globalizada do capitalismo, associada ao aumento de nossa “sensibilidade” interna às mudanças da economia mundial. Sobretudo porque a nova realidade ultrapassa, mas não invalida, o que de essencial FHC escreveu nos anos 1960 e 1970. E a sua inteligência lhe impede repetir bobagens e lhe permite saber que o que interessa para o Brasil no novo contexto globalizado não tem nada a ver com a queda do Muro de Berlim nem tampouco com o esgotamento do modelo de substituição de importações que já ocorrera nos anos 60/70…

Nessa atualização, basta ter claro que a globalização não é um processo completamente apolítico, envolvendo desde os anos 1980 pressões crescentes de governos e organismos multilaterais sobre a condução doméstica das economias periféricas. Por isto, os ajustes nacionais tampouco são puramente econômicos. Os Estados nacionais têm que optar e decidir como se conectam à nova redefinição das coalizões interna e externa de poder.

No nosso caso, o velho tripé econômico e sua aliança com as elites políticas regionais entrou em crise e precisa ser refeito. Dos antigos aliados, a velha elite política está esfacelada regionalmente; o sócio internacional “financeirizou-se”; o empresariado local, que já se “ajustou” a nível microeconômico, mantém sua velha opção ainda quando tenha encontrado seu exato lugar enquanto “sócio menor associado”, e por isto já se alinhou plenamente com o livre-cambismo anti-estatista do “Washington Consensus“; e, por fim, o Estado, falido financeiramente, já foi além disto destruído de forma absolutamente irracional e ideológica pelo governo Collor.

FHC sabe como ninguém que mudar ou refazer esta articulação econômica e aliança política é o problema central que hoje está posto no cenário brasileiro. E, frente a esse desafio, tomou sua primeira e decisiva decisão: resolveu acompanhar a posição do seu velho objeto de estudo, o empresariado brasileiro, e assumiu como um fato irrecusável as atuais relações de poder e dependência internacionais. Deixou seu idealismo reformista e ficou com seu realismo analítico abdicando dos “nexos científicos” para se propor como “condottiere” da sua burguesia industrial, capaz de reconduzi-la a seu destino manifesto de sócia-menor e dependente do mesmo capitalismo associado, renovado pela terceira revolução tecnológica e pela globalização financeira.

Como consequência natural, aderiu à estratégia de ajustamento do FMI e do Banco Mundial. Mas sua opção mais importante não foi esta. Dispunha de um elenco de alternativas políticas para implementar essa mesma estratégia. Mas, diante da hipótese de uma aliança de centro-esquerda que poderia revolucionar o sistema político e social brasileiro aproximando-o do social-liberalismo de Felipe González, FHC preferiu o caminho de Oraxi, Vargas Llosa ou Mitsotakis, e decidiu-se por uma aliança de centro-direita com o PFL que lhe garante o apoio natural dos demais partidos conservadores num eventual segundo turno. Uma aliança que, obviamente, não se explica por razões puramente eleitorais, pois afinal Collor e Berlusconi já demonstraram que nesse campo é possível obter melhores resultados por caminhos mais diretos e “modernos”.

O que a nova aliança de FHC se propõe, na verdade, é algo mais sério e definitivo: remontar a tradicional coalizão em que se sustentou o poder conservador no Brasil. Este o verdadeiro significado direitista de sua decisão que, aliás, não é de hoje, mas data de maio de 1991, quando apoiou a reorganização do governo Collor em aliança com o próprio PFL de ACM e Bornhausen.

Se ali não teve sucesso, foi por obra do destino ou de Mário Covas, mas as cartas já estavam lançadas. Desde então, costurou de forma brilhante e eficiente a adesão de quase toda a grande imprensa e do empresariado, mas sobretudo os apoios internacionais que faltaram a Collor, haja vista, além das avaliações de risco das grandes consultoras financeiras publicadas pela imprensa internacional, o desfile recente de personalidades mundiais (públicas e privadas) do neoliberalismo que têm vindo dar apoio ao programa de estabilização e reformas de FHC. Faltam-lhe ainda, contudo, duas coisas: o apoio das lideranças políticas regionais que vêm negociando com imensa dificuldade a partir do PFL e, sobretudo, o dos eleitores que pretende obter através do sucesso instantâneo de seu Plano Real.

Em síntese, FHC optou por sustentar a estratégia do Consenso de Washington, valendo-se da mesma coalizão de poder que construiu e destruiu o estado desenvolvimentista de forma igualmente excludente e autoritária. E, com isto, em nome do seu realismo, na verdade está se propondo, ainda uma vez, a refundar a economia sem refundar o Estado brasileiro. E aqui sim, contradiz um ponto essencial de suas ideias e de seu passado reformista.

Não nos interessa discutir aqui porque o programa FMI/Bird pode ser virtuoso para o empresariado e catastrófico para um país continental e desigual como o Brasil, mas apenas nos ater aos dilemas internos e específicos de tal proposta, e de sua experimentação concreta, para assim esclarecer o significado mais radical da opção de FHC. Mas para isto devemos voltar brevemente a Washington.

Não mais às sugestões práticas do seminário de John Williamson, mas às conclusões do estudo comparativo de J. Nelson e S. Haggard, sobre um grupo de 25 países que antecederam o Brasil na adesão ao “Washington Consensus”. E aqui todas as experiências apontam numa mesma direção: se o projeto não avança sem “credibilidade”, não há credibilidade possível sem governos com autoridade centralizada e forte. Mas por que chegaram a esta conclusão de que era indispensável recorrer à política e a Estados fortes para alcançar o “mercado quase perfeito”?

Primeiro, porque na maioria dos países que já aplicaram as políticas e fizeram as reformas recomendadas não houve a esperada recuperação dos investimentos. E isso porque, em segundo lugar, o apoio empresarial, interno e externo, não passa do entusiasmo retórico para a cooperação ativa, indispensável inclusive para a primeira etapa da estabilização sem ter garantias sobre as reformas liberalizantes.

Em terceiro lugar, como consequência, aliás, todos os países que lograram vencer a etapa da estabilização contaram com uma ajuda externa politicamente orientada; no caso chileno, 3% do PIB durante cinco anos, de ajuda pública mais um aporte equivalente, durante três anos, por parte dos bancos comerciais; 5% do PIB durante cinco anos no caso da Bolívia; 2% do PIB durante seis anos no caso do México, etc.

Mas, em quarto lugar, mesmo quando obtiveram ajuda externa e se estabilizaram, estas economias “reformadas” atravessaram profundas recessões, perdas significativas da massa salarial e aumento geométrico do desemprego, os famosos “custos sociais” da estabilização.

Em quinto lugar, mesmo ali onde houve retomada do crescimento, esse tem sido lento e absolutamente incapaz de recuperar os empregos destruídos pela reestruturação e abertura das economias. Sendo que para culminar, em sexto lugar, no caso das experiências bem-comportadas, as etapas de estabilização e reformas tomaram de três a quatro anos cada uma, e até uma década para a retomada efetiva do crescimento.

Neste quadro, como é óbvio, fica difícil obter credibilidade para as políticas neoliberais junto ao empresariado, seu aliado indispensável, e pior ainda, junto aos trabalhadores. Segue-se daí a conclusão inevitável: a longa espera pelos eventuais resultados positivos das políticas e reformas preconizadas pelo FMI e Bird demandam uma estabilização prolongada da situação de poder favorável às reformas. Solução que desemboca, entretanto, num novo problema: o da viabilização eleitoral duradoura da coalizão “reformista”. Eis aí a questão: como fazer com que o povo compreenda e apoie por um longo período de tempo, e apesar de sua dura penalização, a verdade dos “technopols”? Ou em termos mais diretos: nestas condições, como ganhar eleições e manter tanto tempo uma sólida maioria no Congresso Nacional?

Frente a este desafio, descartada a “alternativa Menem” (usar um programa para a campanha eleitoral e outro no governo) defendida entusiasticamente no seminário de Washington por Nicolas Barlette do International Center for Economic Growth, os estudos apontam para três caminhos conhecidos: (a) o dos partidos capazes de assegurarem a vitória e a maioria parlamentar por mais de uma década, o que em geral se deu em sociedades com menores índices de inflação e/ou de desigualdade social; (b) o da existência de condições excepcionais, de guerra ou recuperação democrática, favoráveis ao logro de acordos sociais e políticos entre partidos, sindicatos e empresários; (c) ou então, como os estudos mencionados indicam em quase todos os casos dos países com economias de alta inflação, grande fragilidade externa e extrema desigualdade social, o apelo a regimes autoritários permanentes ou “cirúrgicos”, como foi o caso da Turquia no início dos 1980 e do Peru mais recentemente.

FHC, desde 1991, pelo menos, optou claramente por este projeto de modernização neoliberal e por um bloco de sustentação de centro-direita. Neste sentido, segundo nos relata a experiência, optou por uma estratégia socioeconômica que tem gerado ou aprofundado os níveis preexistentes de desigualdade e exclusão social. E além disto, para culminar, também optou para levar à frente este projeto anti-social e quase sempre autoritário, através de uma coalizão política que foi sempre autoritária e que já logrou forjar, antes e durante a era desenvolvimentista, esta nossa sociedade que ocupa hoje o penúltimo lugar mundial em termos de concentração de renda.

Neste sentido é que se pode concluir, sem ofender a lógica, que FHC realmente aderiu a um projeto de “aggiornamento” do autoritarismo anti-social de nossas elites.

Mas agora o jogo já começou e as coisas já evoluíram. Hoje, FHC se transformou em refém de seus próprios “technopols“. Como sua proposta neoliberal satisfaz o empresariado mas deixa pouca margem para costurar as alianças com as velhas elites políticas regionais, e como a situação dos eleitores piorou enormemente desde que assumiu o Ministério da Fazenda, só lhe resta esperar pelo milagre dos três meses prometidos pelas cabeças “iluminadas” de sua equipe econômica.

Neste ponto, aliás, o Brasil produz uma novidade que talvez possa ser relatada no próximo seminário de Washington: em vez de silenciar sobre os efeitos perversos do programa, faz-se de seu sucesso antecipado de curtíssimo prazo a grande arma para obter a vitória eleitoral… Mas é por isto também que neste caso o plano de estabilização já nasceu de forma autoritária, de tal forma que, desde agora, a condução independe do conhecido senso público do ministro Ricupero.

Lançado num período eleitoral quando, por definição, as escolhas são livres e os resultados indeterminados, o pré-anunciado sucesso do Plano supõe que só possa haver um ganhador, ou pior, supõe que, quem quer que seja o ganhador, terá que se submeter aos “technopols“, a menos que queira enfrentar uma hiperinflação explícita, com fuga de capitais, sobrevalorização cambial e desequilíbrio fiscal gerado pelas altas taxas de juros.

Para não falar que, nestes três meses de engodo, tudo o que faz parte normal de uma campanha eleitoral será considerado subversivo do ponto de vista do Plano… Sendo desnecessário acrescentar, neste momento, que mesmo que FHC ganhe as eleições dificilmente terá a maioria parlamentar de que falam, o que nos candidata fortemente, segundo a experiência relatada, a prolongarmos no tempo a concepção originariamente autoritária do Plano.

Neste sentido, ao contrário do que alguns defendem, FHC está dando uma nova e sofisticada colaboração para a irracionalidade da política brasileira.

E quanto à moeda que nasce, depois de chegar a Brasília protegida pelos tanques do Exército, seguirá sendo uma moeda virtual ancorada numa paridade cambial, que, por sua vez, está atrelada a futuro político impossível de ser assegurado de antemão. Sorte teríamos neste sentido se sobre ela pudéssemos apenas parafrasear Helmut Schmidt (quando disse aqui no Brasil, comentando a possibilidade de sucesso imediato das reformas liberais no Leste europeu): “Ter-se-ia que ser professor de Harvard para crer nestas tolices”. Nossa situação é ainda mais triste, porque temos que reconhecer que nossos “technopols” conseguem reunir à “tolice dos professores de Harvard” a irresponsabilidade dos moedeiros falsos do André Gide.

*José Luís Fiori é professor emérito da UFRJ. Autor, entre outros livros, de  Os   moedeiros falsos (Vozes).

Publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo, caderno mais! em 3 de julho de 1994.

 

Como pensam os chineses, por Luiz Carlos Bresser-Pereira.

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Como para eles não há teoria absolutamente verdadeira, a regra é fazer experimentações

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Folha de S. Paulo, 31/08/2024

A revista The Economist publicou em 11 julho artigo com o título “Xi Jinping inabalavelmente comprometido com o setor privado”. A publicação tem dificuldade de entender que um país possa estar ao mesmo tempo comprometido com o setor privado e com o setor público. Para a perspectiva neoliberal, da qual a revista é a principal representante no jornalismo, ou um país está comprometido com o mercado ou com o Estado, porque os dois seriam incompatíveis: o aumento de um setor implicaria a diminuição do outro.

A visão do desenvolvimentismo não é oposta, mas é muito diferente. Estado e mercado, setor público e setor privado são complementares. Em certos casos, o avanço do setor público pode expulsar (“crowd out”) o setor privado, mas isso é antes a exceção do que a regra. Geralmente, o investimento público cria demanda para o setor privado. Basta seguir a regra desenvolvimentista: os setores que são monopolistas e os que envolvem segurança nacional devem ser controlados pelo Estado, enquanto os setores competitivos devem ficar por conta do setor privado.

O mercado é uma instituição coordenadora do capitalismo insuperável quando há competição —quando, portanto, há mercado. Quando, porém, não há um mercado para coordenar o setor, é mais racional deixá-lo por conta do Estado. Mas vejamos o que nos diz The Economist. “Segundo a visão chinesa de fazer políticas públicas, a China adota políticas de cima para baixo, mas também abraça a experimentação de baixo para cima”.

Para os chineses, experimentar é sempre bom. Mais do que isso, como para eles não há teoria absolutamente verdadeira, não há uma política pública que possa ser deduzida da teoria, a regra é experimentar políticas diferentes —algo que é mais fácil quando se tem diferentes regiões para fazer as experiências.

Os chineses acreditam no poder das contradições; pensam, portanto, de forma dialética. Pensam o Estado e o mercado não apenas como complementares, mas também como mantendo entre si uma relação de atração e rechaço. Isso é pensar dialeticamente, compatível com a filosofia de Confúcio. Eles afirmam defender os dois princípios de coordenação econômica de forma “inabalável”, “inarredável” —em relação aos quais o governo não cederá.

A revista informa que na China existem 867 mil empresas que têm algum grau de propriedade estatal. Cito The Economist, resumindo: “A sorte das empresas privadas da China piorou. Sua participação no investimento atingiu 59% em 2014, de acordo com dados oficiais. Mas essa porcentagem caiu desde então. No final do ano passado, era de apenas 50%. Em vez de apoio, os empresários privados da China sofrem repressão. Três anos atrás, as empresas privadas representavam 55% do valor de mercado das 100 maiores listadas da China, de acordo com o Peterson Institute. No final do ano passado, esse número era de 37%”. Mas, reconhece a revista, os dois “inabaláveis” são mais compatíveis do que parecem. Segundo o diretor de um think tank em Pequim, “a economia privada não enfraqueceu a economia estatal, mas melhorou a eficiência das empresas estatais”. Continua a revista: “As empresas privadas temem que as empresas estatais as expulsem: ‘O Estado avança, o setor privado recua’, como os chineses às vezes dizem. Mas, desde a crise financeira global de 2007-9, o setor privado muitas vezes recuou por conta própria em resposta às desacelerações do mercado, não aos avanços do Estado.

Nesses casos, os investimentos de veículos estatais, inclusive das empresas de infraestrutura dos governos locais, preencheram a lacuna na demanda deixada por um setor privado intimidado. As ligações entre as indústrias são ‘como uma teia de aranha gigante’, aponta Xiaohuan Lan, da Universidade Fudan.

Funcionários do Partido Comunista disseram repetidamente que os empresários privados são ‘nosso próprio povo’. Os funcionários não são indiferentes à iniciativa privada. O compromisso inabalável do partido com o setor é sincero —mesmo que muitos empresários desejem que fosse menor”. Como se vê, The Economist fez suas críticas ao modelo desenvolvimentista chinês. Não poderia deixar de fazê-las, já que a forma de coordenação econômica alternativa ao liberalismo econômico é o desenvolvimentismo. E a revista teme a competição. Não obstante, parece haver aprendido com a China a pensar dialeticamente.

Contra a moral e os bons costumes? por Michael França.

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Não há virtude em resistir a mudanças que ampliem a dignidade humana

Michael França, Ciclista, vencedor do Prêmio Jabuti Acadêmico, economista pela USP e pesquisador do Insper. Foi visiting scholar nas universidades de Columbia e Stanford

Folha de São Paulo – 29/10/2024

É comum vermos aqueles considerados mais progressistas subestimando a visão de mundo dos mais conservadores. Mas, ao olharmos com alguma calma, perceberemos um valor em uma perspectiva que procura privilegiar a preservação das tradições e que adota um certo ceticismo diante de mudanças muito aceleradas.

Existe uma sabedoria acumulada nos valores que resistiram ao teste do tempo. Os costumes, os laços familiares e a reverência às instituições religiosas, por exemplo, são aspectos relevantes que moldaram a estrutura social ao longo da história. Ao proteger alguns valores do passado, estamos, de certo modo, preservando o que nos trouxe até aqui.

Essa proteção atua como um porto seguro diante das grandes incertezas de um mundo em transe e que está progressivamente sendo consumido pelas abruptas mudanças sociais, econômicas, tecnológicas e climáticas. Essa preservação oferece uma âncora no meio do agitado mar das incertezas, evitando que sejamos arrastados pelas ondas dos impulsos momentâneos ou modismos passageiros.

Entretanto, devemos ter em mente que essa proteção não deve se transformar em resistência. Diversas mudanças são não apenas inevitáveis mas necessárias. O conservadorismo perde seu propósito original quando é usado em discursos que justificam a exclusão ou mantêm a inércia das desiguais estruturas de poder. Nesse contexto, devemos reconhecer que não há virtude em resistir a mudanças que ampliem a liberdade e a dignidade humana.

Acabamos aprisionados em um mundo limitado quando não abrimos espaço para o questionamento daqueles valores que herdamos e que adotamos sem muita reflexão. Ficamos presos a um mundo pequeno que restringe nossas liberdades individuais e a capacidade de evolução. Esse apego inflexível ao passado não apenas limita nosso próprio crescimento mas também afeta toda a sociedade ao impedir que novas ideias surjam e floresçam.

Ainda assim, é importante ter uma postura de cautela diante do novo. O ceticismo é uma ferramenta poderosa quando nos leva a avaliar cuidadosamente as implicações de nossas escolhas. No entanto, essa cautela deve vir acompanhada de abertura para explorar o desconhecido. É preciso encontrar o equilíbrio que permita preservar aquilo que nos fortaleceu, sem sufocar o novo. É preciso equilibrar uma coexistência harmoniosa entre o passado e o futuro.

Nesse contexto, é necessário muito diálogo, disposição para ouvir e, mais que tudo, abrir-se ao contraditório. Precisamos de um diálogo que não tema as diferenças, mas que encontre nelas a base para reimaginar o futuro enquanto aprendemos com o passado. Pois o que a história nos ensina é que não avançamos abandonando nossos valores, mas revisitando-os e, quando necessário, reescrevendo-os.

 

Administração Unirp 2023

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Alunos do curso de Administração do Centro Universitário de Rio Preto (Unirp), uma ótima turma que tenho prazer de conhecer desde 2023

Escolhas. Livres? por Aracy P. S. Balbani.

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Aracy P. S. Balbani – A Terra é Redonda – 25/10/2024

A política, cada vez mais, tem se transformado em caso de psicologia e de polícia

Às vésperas do segundo turno das eleições municipais em muitas localidades, a polêmica sobre o comportamento do eleitorado prossegue. Intelectuais e jornalistas esmiúçam as causas do crescimento da direita e da extrema direita nas prefeituras e câmaras municipais. Analistas políticos projetam consequências dos resultados eleitorais nos municípios mais populosos em 2024 para a disputa presidencial de 2026.

Influenciadores digitais opinam sobre o fenômeno estrondoso dos votos brancos e nulos e das abstenções em mais um pleito no País, onde o voto ainda é obrigatório, mas, na prática, a teoria é facultativa.

Militantes organizados e outros cidadãos se perguntam como governantes escancaradamente incompetentes ou políticos enroscados em casos de corrupção cabeludos ainda conseguem ser os preferidos dos eleitores. Especialmente dos eleitores e eleitoras mais pobres e prejudicados pela gestão pública ineficiente.

Louise Michel, educadora francesa, encarcerada nos anos 1880 como militante anarquista, disse ao amigo Paul Lafargue quando ele a visitou na prisão de Saint-Lazare: “Não se queixe, eu sou mais livre que muitos que passeiam por aí a céu aberto; eles são prisioneiros pelo pensamento; eles estão acorrentados às suas propriedades, aos seus interesses por dinheiro, suas tristes necessidades de vida, eles estão tomados ao ponto de não viverem, nem serem humanos, seres pensantes”.1

Vários fatos concretos permitem aplicar a frase de Louise Michel ao Brasil de hoje. A começar do aumento exponencial da violência política; não apenas com ofensas e dossiês forjados contra adversários, mas também com atentados a tiros mirando candidatos e candidatas à luz do dia, e cadeiradas ao vivo na TV.

Eleitores são coagidos a silenciar e votar em candidatos ligados a milícias e outras organizações criminosas. Políticos têm de pedir autorização para líderes do tráfico de entorpecentes e de armas para realizar eventos de campanha em áreas dominadas pelo crime. Nem aldeias indígenas escapam da vigilância opressora de drones do crime estruturado.

O medo é indisfarçável nos rostos dos miseráveis, cujos casebres na periferia e nas favelas estampam cartazes vistosos de propaganda política de candidatos milionários que sempre moraram em condomínios fechados com segurança privada. A política, cada vez mais, tem se transformado em caso de psicologia e de polícia.

Até o “bico” temporário de cabo eleitoral agitador de bandeira está em extinção. Windbanners manufaturados em série substituem o trabalho humano para tremular fotos retocadas e slogans dos candidatos nas esquinas e praças.

O recorde de denúncias de assédio eleitoral nas empresas mostra que o discurso e a prática colonialistas escravocratas estão mais vivos do que nunca no Brasil. Não faltam serviçais pobres que se prestem ao papel de capatazes dos patrões contra seus colegas de trabalho, tão explorados e desprezados quanto eles.

Dentre a classe média, a consulta ao sistema público de prestação de contas das campanhas à Justiça Eleitoral seria divertida se não fosse preocupante. Candidatos a vereadores por um partido de oposição ao prefeito efetuam doações ao candidato… da situação. Como assim?

Nas classes sociais média alta e alta, a circulação a céu aberto, mesmo que em carros de luxo blindados, não garante a liberdade de escolha no momento do voto secreto. Quem depende de licenças e alvarás de funcionamento, incentivos fiscais municipais ou fornecimento de bens ou serviços para o poder público sabe que há centenas de olhos e orelhas indiscretas de coronéis políticos à espreita, prontos para mexerem a língua e deflagrar represálias que afetem os lucros financeiros privados. A aposta política do coronel pode ser vizinho(a) do(a) eleitor(a)-empreendedor(a) no condomínio.

Ao fim e ao cabo, a militância que tem consciência política resiste, enquanto, em muitos municípios, a massa despolitizada, prisioneira de si mesma ou acorrentada a interesses inconfessáveis, tende a perpetuar no poder quem rouba, mas nem sempre faz alguma coisa que preste.

Parece que tudo é mesmo uma questão de rabo: se está preso ou se é ele que balança o cachorro.

*Aracy P. S. Balbani é médica otorrinolaringologista. Atua como especialista exclusivamente no SUS no interior paulista.

Nota

Louise Michel. Pertenço à Revolução Social. Samantha Lodi, Ed. Entremares, 2022, p. 128.

Há algo de podre no reino do Judiciário, por Lygia Maria.

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Venda de sentenças causa ainda mais indignação quando se sabe que juízes representam uma casta social privilegiada no Brasil

Lygia Maria, Mestre em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.

Folha de São Paulo, 28/10/2024

As notícias recentes sobre vendas de sentenças por juízes causam indignação a qualquer brasileiro não só pela distorção escabrosa da função desses servidores, mas também porque os 18.256 magistrados do país compõem uma casta social privilegiada.

Ranking da Folha mostra que eles têm o maior salário médio entre 427 ocupações: R$ 24.732. Com penduricalhos, porém, o gasto efetivo chega a R$ 70 mil.

Segundo o CNJ, 90% da despesa do Poder Judiciário se dá com pagamento de funcionários, magistrados, desembargadores e ministros de cortes superiores. Em 2023, os dispêndios atingiram R$ 132,8 bilhões, ante R$ 84 bilhões em 2009 —os valores anuais são corrigidos pela inflação.

Já o Tesouro revelou que o gasto com tribunais, incluindo remunerações, é o maior entre 53 países analisados, equivalente a 1,6% do PIB. Não apenas maior, quatro vezes maior do que a média internacional (0,4%). Do montante total de R$ 159,7 bilhões, 82% foram para ordenados.

Uma das justificativas usadas para tal remuneração nababesca é o desincentivo à corrupção. Mas para os desembargadores do Mato Grosso do Sul e da Bahia, investigados por venda de sentenças, seus gordos contracheques não foram suficientes.

Há privilégios até quando juízes cometem delitos graves no exercício da função. Como punição, são obrigados a se aposentar com recebimento dos vencimentos. Chega a ser comovente.

Dado o excesso de regalias, seria esperado que a casta ao menos aparentasse honestidade.

Contudo, os notórios convescotes de juízes e de ministros do STF com empresários e políticos, incluindo eventos em hotéis de luxo e viagens internacionais, mostram que parte dos magistrados não está nem um pouco interessada em se portar como a proverbial mulher de César.

É urgente uma reformulação geral da aplicação do orçamento do setor e do código de conduta de juízes. Sem isso, o Poder Judiciário continuará a ser alvo de críticas, até mesmo agressivas. E não adianta que o STF pretenda penalizá-las como “ataques ao Estado democrático de Direito”, dado que quem dá mostras de querer miná-lo são os próprios integrantes do sistema de justiça.

Gastos Públicos

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Nos últimos meses, percebemos uma forte pressão dos mercados para que o governo federal reduza os gastos públicos e diminua a relação existente entre dívida e produto interno bruto (PIB), gerando fortes pressões dos mercados, principalmente do financeiro, que estão impactando sobre as taxas de juros e câmbio, com fortes constrangimento sobre a solvência fiscal do Estado Nacional.

Com o arcabouço fiscal criado pelo governo federal em 2023 o Ministro da Fazenda insiste na busca do déficit zero, forçando o ministério a buscar todas as formas de aumentar a arrecadação fiscal, incrementando a entrada da receita e melhorando as condições fiscais do governo federal, todos os recursos adicionais eram vistos como positivos para a melhora das contas públicas.

Mesmo assim, o mercado não acredita e nunca acreditou que o governo federal conseguisse zerar o déficit, desta forma, partiu para o embate e pressionou para que o governo adotasse uma revisão dos gastos, sugerindo cortes de recursos mínimos em Saúde e Educação, acabando com a valorização do salário-mínimo e das vinculações de benefícios sociais, desta forma, na visão do mercado, eram suficientes para que as questões fiscais fossem equacionadas.

As medidas sugeridas pelo mercado repercutiram no governo negativamente e forçaram o presidente da república a confirmar seu compromisso histórico de que não mexeria nos gastos sociais e não renunciaria a pisos na educação e saúde, desta forma, percebemos um impasse de difícil resolução.

Diante disso, percebemos um embate diário entre o mercado e o governo, onde o primeiro deu mostras de seu descontentamento pode gerar graves constrangimentos para a economia brasileira, impactando sobre taxas de juros, inviabilizando investimentos produtivos e postergando a recuperação econômica, ainda mais, como vivemos num momento de grandes incertezas na economia mundial, com graves conflitos militares, polarizações e desequilíbrios climáticos, que exigem uma atuação mais intensa dos governos nacionais, com gastos públicos e estímulos variados, os recursos fiscais são imprescindíveis para alavancar a economia nacional.

Neste momento, percebemos uma briga de foice, todos querem garantir seus benefícios, o governo quer continuar gastando, tributar mais e reduzir as distorções tributárias nacionais, os mercados querem que o governo reduza os gastos sociais e continuem garantindo folgas fiscais para manter os ganhos das taxas de juros praticadas pela Autoridade Monetária e o Legislativo quer continuar garantindo seus elevados ganhos das emendas PIX e repassem gigantescos de recursos em emendas parlamentares, sem transparência, sem fiscalização e garantindo ganhos para a classe política.

Vivemos um impasse, desta forma, a economia cresce pouco, as desigualdades sociais melhoram marginalmente, os grandes ganhadores desta situação de degradação política nacional continuam se refastelando neste banquete que poucos conseguem enriquecer em detrimento da degradação da maioria da sociedade nacional.

 

 

 

Eleições mostram esquerda diante de enigmas que podem devorá-la, por Rodrigo Nunes.

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 Não será fechando os olhos e apostando na volta a uma normalidade perdida que os problemas serão resolvidos

Rodrigo Nunes – Folha de São Paulo, 27/10/2024

Professor da Universidade de Essex e da PUC-Rio. Autor de “Do Transe à Vertigem: Ensaios sobre Bolsonarismo e um Mundo em Transição” e “Nem Vertical Nem Horizontal: uma Teoria da Organização” (no prelo)

[RESUMO] Professor de filosofia analisa que fraco desempenho da esquerda nas eleições municipais deste ano decorre de uma série de complexos problemas aos quais ela não vem oferecendo resposta adequada, como a crescente desigualdade econômica, a precarização do trabalho, a submissão da política à lógica das redes sociais, os desastres ecológicos e o crescimento da extrema direita. Fazer de conta que a crise é passageira, e não produto de tendências de longo prazo, apenas irá acelerar derrocada das forças progressistas, avalia.

A despeito de eventuais viradas na votação deste final de semana, o veredito sobre o resultado das eleições municipais está dado. Ele indica uma incapacidade da esquerda em transformar sua volta à Presidência, uma vitória apertada há dois anos, em uma retomada mais ampla, capilarizada na política local em diferentes partes do país.

Indica também  que o governo Lula falhou até aqui em reacender o otimismo que acompanhou sua eleição duas décadas atrás, ou mesmo as memórias positivas do que veio depois.

Percebe-se ainda uma consolidação do centrão —como pano de fundo que, de tão pervasivo, ameaça a todo momento ocupar o centro da cena política brasileira— e do bolsonarismo —não apenas uma força que pode continuar a existir para além de Bolsonaro, mas um vírus suficientemente potente para sofrer mutações altamente contagiosas, como demonstrou a candidatura de Pablo Marçal em São Paulo.

Diante disso, proliferam os diagnósticos de crise, ou mesmo morte da esquerda brasileira; todos são justos à sua maneira. Mas o que ocorre no Brasil está longe de ser um caso isolado.

E ainda que estas eleições tenham sido marcadas por questões bastante nossas —o fortalecimento de um bloco de lideranças evangélicas alinhadas à extrema direita, a infiltração crescente do crime organizado na política, o papel determinante das chamadas emendas Pix no aumento da taxa de reeleição —, elas têm como pano de fundo um conjunto de enigmas que a esquerda global hoje enfrenta, sem saber dar-lhes resposta.

Isso deixa claro que tampouco se trata de uma simples dificuldade de comunicação, como se fosse apenas a propaganda em tempos de eleição que falhasse —e bastassem caras mais sorridentes ou linguagens mais “jovens” para tudo se resolver.

Estamos falando de nós problemáticos que afetam tanto a substância da política como a forma como ela é feita, nos períodos de pleito e, sobretudo, fora deles. Eles não correspondem a uma simples hierarquia de quais seriam as “questões mais importantes de nosso tempo”, embora certamente estejam entre elas, mas antes são as questões que definem nosso tempo, diferentemente de outras (como o racismo, a diferença entre gêneros, o colonialismo) que são a herança maléfica de períodos anteriores.

Neste contexto mais amplo precisamos situar o impasse que as eleições municipais revelam, que marcarão não apenas o próximo ciclo eleitoral, mas as próximas décadas.

Desigualdade e viração

O primeiro destes nós, sob muitos aspectos o mais determinante, tem a ver com o crescimento da desigualdade econômica, e por extensão política, nas últimas décadas.

Em comparação ao período do pós-guerra, a era neoliberal viu uma explosão da concentração de riqueza, claramente expressa no crescimento do número de bilionários e no iminente surgimento dos primeiros trilionários, que se traduz em concentração de poder político.

Cada vez mais, um grupo restrito de indivíduos tem uma capacidade infinitamente maior de influenciar as ações governamentais, na comparação com a maioria da população.

Isso ficou muito evidente quando, após a crise de 2008, partidos tanto de direita quanto nominalmente de esquerda em diversos países acorreram a salvar os bancos e transferiram o custo do resgate para a população, na forma de cortes na legislação trabalhista e na proteção social.

É visível também no modo como o presidente Emmanuel Macron simplesmente ignorou a vitória da esquerda nas eleições parlamentares francesas para apontar um governo que tende a fortalecer a extrema direita de Marine Le Pen no curto prazo; ou na maneira como o socialista Olaf Scholz (Alemanha), o trabalhista Keir Starmer (Reino Unido) e os democratas Joe Biden e Kamala Harris (Estados Unidos) dão as costas a uma opinião pública crescentemente crítica ao Estado de Israel para continuar apoiando ações cada vez mais indistintas do genocídio nu e cru.

O que isso significa para a forma como se faz política é que o consentimento ativo da população parece importar cada vez menos: os Estados se acostumaram a operar com baixa legitimidade, aproveitando-se de, e reforçando, uma tendência histórica de queda do engajamento na política.

E quando governos nacionais tentam se comportar de outra forma, como foi o caso da Grécia sob o Syriza em 2015, mecanismos internacionais podem facilmente dobrá-los. Em resumo, tornou-se muito mais difícil influenciar governos não só desde fora, como, inclusive, desde dentro.

O segundo nó se refere ao que se costuma chamar de “transformações do mundo do trabalho”: o aumento do subemprego e da informalidade, a precarização, a uberização etc.

Isso não apenas faz com que as velhas estruturas sindicais apareçam como defensoras de um estrato cada vez mais restrito de trabalhadores formais, mas cria todo um novo universo ao qual as categorias sobre as quais a luta laboral foi historicamente construída não se aplicam: não há mais identificação do trabalhador enquanto trabalhador, direito de se organizar, tempo livre, espaço de trabalho como espaço de organização etc.

Neste campo, os pleitos municipais trouxeram alguns sinais positivos que a esquerda faria bem em explorar e aprofundar, como a eleição para a Câmara Municipal carioca de Rick Azevedo, do movimento Vida Além do Trabalho, que luta contra a escala 6×1; e a proposta de Guilherme Boulos, já implementada em lugares como Juiz de Fora e o Distrito Federal, de instalar pontos de apoio para entregadores, que têm o potencial de se constituírem como locais de troca e organização para os trabalhadores de aplicativo.

O terceiro nó, diretamente ligado ao anterior, tem a ver com o que poderíamos chamar de longa duração da reprogramação subjetiva produzida pelo neoliberalismo. Décadas de ajustes e reformas feitas sob a lógica do recuo das proteções sociais e individualização dos riscos não têm um efeito apenas sobre a forma como as pessoas vivem, mas também sobre como elas veem a si mesmas e suas relações umas com as outras.

Daí que mesmo estratos hiperexplorados como os trabalhadores de aplicativo se identifiquem com a figura do empreendedor, e que o imperativo da “viração” —a necessidade de fazer o que for preciso para sobreviver— se traduza em internalização da ideia de que a vida social é uma guerra de todos contra todos mediada pelo mercado, de que o fracasso é uma responsabilidade pessoal, e daquilo que poderíamos chamar “solidariedade negativa”: o sentimento de que “se eu tenho que passar por isso, todo mundo também tem”.

Simultaneamente, a financeirização da economia e o fato de que o trabalho assalariado não é mais garantia de uma boa vida explicam que cada vez mais gente se volte para soluções mágicas de enriquecimento, como a indústria dos coaches e as apostas online.

Do ponto de vista da forma, isso significa que não é mais evidente que as pessoas queiram mais proteção, mais cuidados, mais participação. A combinação de um largo histórico de frustrações na entrega desse tipo de promessa com a crença crescente em atalhos, ainda que improváveis, faz com que mesmo setores historicamente desprotegidos prefiram estar “livres” para empreender e vejam atitudes antes tidas por antissociais, a evasão fiscal ou o recurso à legalidade, como sinais de esperteza e competividade.

Isso ajuda a explicar porque parte do eleitorado parece infinitamente capaz de perdoar comportamentos questionáveis de figuras como Donald Trump, Javier Milei e Pablo Marçal, assim como a receptividade de um discurso anticomunista para o qual “comunismo” é qualquer coisa que busque impor algum limite ao capitalismo de faroeste mais desenfreado.

Devir-plataforma do mundo

O quarto nó é a plataformização da economia e a colonização da política pela lógica das redes sociais.

Um aspecto da hegemonia neoliberal das últimas quatro décadas foi a substituição de políticas antitruste, voltadas a limitar o poder que monopólios podiam ter de ditar as regras de seus mercados, por uma lógica inspirada pelos argumentos de Robert Bork e seus acólitos na Universidade de Chicago, segundo a qual a formação de monopólios não seria um problema conquanto implicasse preços mais baixos para os consumidores.

Além de ignorar os efeitos sobre trabalhadores e ambiente, esta doutrina não apenas justificou a leniência com o aumento da concentração de capital nos mais diversos setores —demonstrou-se particularmente mal adaptada à economia digital, na qual empresas como Google e Meta podem oferecer serviços gratuitos porque seu verdadeiro negócio consiste em vender os dados e a atenção de seus usuários, e outras, como a Uber, têm financiamento suficiente para operar no vermelho até dominar seus respectivos mercados.

O problema, é claro, não para aí. Algumas dessas companhias não são somente monopólios, mas controlam uma fração absolutamente desproporcional de toda a informação que se produz e se consome no mundo, o que lhes confere um poder inédito sobre aquilo que se vê e não se vê, bem como sobre os dados de quem se mostra.

Os caprichos de Elon Musk à frente do ex-Twitter apenas tornam explícita uma realidade que já existe há algum tempo: a aparência de funcionamento “neutro” esconde o fato de que os algoritmos que governam essas plataformas atendem antes de tudo aos interesses econômicos e simpatias políticas de seus proprietários.

Esta situação impõe uma série de questões de substância, como a regulação das plataformas, o desmembramento de monopólios e o combate ao capitalismo anticompetição. Não é à toa que, como demonstra a entrada entusiasmada de Elon Musk e da indústria de criptomoedas (entre outros) na campanha presidencial estadunidense, a extrema direita parece cada vez mais deixar de ser o plano B para se tornar o plano A do Vale do Silício. Afinal, ninguém promete descontrole tão absoluto quanto ela.

Mas a plataformização também implica uma série de consequências para a maneira como se faz política hoje, decorrentes da lógica das redes sociais. Não se trata somente da prevalência de um certo modelo de captura da atenção, que favorece conteúdos cada vez mais extremos, da ubiquidade de processos recursivos de polarização entre diferentes públicos, da explosão da desinformação, ou da centralidade de figuras como os trolls.

Pablo Marçal e Nikolas Ferreira, talvez os maiores vencedores destas eleições, são os dois grandes expoentes atuais de um empreendedorismo que vive de converter notoriedade digital em capital econômico e político, e vice-versa.

O que se vê até aqui é que faltam ao sistema eleitoral proteções adequadas para lidar com essas transformações. E se a eleição ofereceu alguns sinais positivos de que a esquerda não está completamente perdida neste novo terreno de disputa —de novo, o avanço do Vida Além do Trabalho—, convém lembrar que a lógica das plataformas não parece favorecer apenas conteúdos de extrema direita, mas também uma forma de política centrada na personalidade de indivíduos isolados, com bases atomizadas e sem instrumentos de controle sobre o líder —o que parece mais apto a produzir novos tipos de clientelismo que projetos coletivos de emancipação.

Adiar (ou apressar) o fim do mundo

O quinto nó é, sem dúvida, o maior de todos; trata-se, obviamente, da crise ecológica.

Do ponto de vista da substância, sua consequência mais importante é a impossibilidade de manter a aposta em um crescimento infinito da economia como maneira de combater a desigualdade no longo (ou longuíssimo) prazo.

Essa foi a promessa, liberal por excelência, que a maior parte da esquerda foi obrigada a abraçar a partir do momento em que tirou a propriedade dos meios de produção de pauta: se não estava mais em questão distribuir a riqueza existente, só restava fazer o bolo crescer para tentar reparti-lo melhor.

É isso, justamente, que mais a engasga na hora de assumir plenamente a gravidade da situação. Reconhecer que não dá para seguir crescendo para sempre, ainda mais no atual ritmo —e, no caso de países como o Brasil, às custas do extrativismo desenfreado—, necessariamente forçaria a esquerda a também reconhecer que, para manter a justiça social na agenda, é preciso trazer o problema da distribuição da riqueza de volta.

Estamos falando de taxar pesadamente os setores responsáveis pelas maiores emissões, fazendo com que arquem com o custo da transição energética sem que possam repassar o mesmo ao consumidor; de restringir a oferta de crédito privado que financia atividades que aprofundam a catástrofe; de atacar o rentismo e as altas taxas de lucro para fomentar a expansão e a descomodificação de serviços públicos básicos, como os cuidados e uma rede de transporte descarbonizada; da introdução de medidas como fundos de propriedade inclusiva, com objetivo de diluir o poder de acionistas e aumentar o dos trabalhadores sobre as empresas; e assim por diante.

A emergência em que nos encontramos deveria oferecer o contexto ideal para defender esse tipo de medida. A dificuldade de dizer as coisas com clareza evidencia, contudo, a ligação íntima entre este e o primeiro nó: o modo como o poder econômico subjuga o poder político hoje faz com que, no melhor dos casos, os políticos continuem a fingir que a crise está em um futuro longínquo, e não em um presente de eventos climáticos extremos cada vez mais comuns —e sigam encenando o “faz de conta” de que o mercado encontrará uma solução para o problema mesmo após décadas de tempo valioso perdido.

A situação não é menos espinhosa do ponto de vista da forma. Em primeiro lugar, porque envolve vender a ideia de que é preciso desacelerar e decrescer a um mundo em que a necessidade e o desejo de crescimento têm valor de evidência.

Em segundo, porque tampouco se trata de desacelerar ou decrescer tudo de uma vez: é preciso saber empregar a própria mudança de rumo como instrumento de promoção da justiça, distribuindo perdas e ganhos de maneira desigual para que quem tem menos possa ter mais, enquanto quem tem mais aceite ter menos.

Isso significa, finalmente, ter de convencer diferentes frações da população mundial a abrir mão de partes de seu padrão atual de consumo em nome do bem-estar de outras, próximas ou distantes. Não se trata, ao contrário da caricatura que frequentemente se faz do ecologismo, de pregar um ascetismo monástico e ranzinza às pessoas, mas de construir o desejo por outros modos de vida, mais sustentáveis. Ainda assim, o trabalho de convencimento é inegavelmente árduo.

E aqui chegamos ao sexto e último nó: o crescimento da extrema direita na última década. Não é só que ele tenha aumentado a desinformação sobre temas como o aquecimento global ou deslocado o centro do debate político cada vez mais para a direita, nos afastando das discussões que realmente precisariam estar acontecendo. Em um certo sentido, é preciso reconhecer que a extrema direita oferece uma resposta perfeitamente razoável ao mundo em que vivemos.

Se supomos que a concentração de poder econômico e político é grande demais para ser modificada; que a democracia de baixa legitimidade veio para ficar; que haverá cada vez menos emprego formal e proteção social, cada vez mais riscos e precariedade; que a concentração de capital continuará como está, e a economia, voltada sempre mais à mera extração de renda, permanecerá estagnada; que o caminho natural das coisas, especialmente à medida em que os efeitos da crise ecológica se intensificarem, é o crescimento das populações excedentes, o recuo da fronteira que separa a vida protegida da vida descartável, a desintegração social —vem daí o poder dessublimador do discurso da extrema direita, que parece ser a única a assumir com todas as letras aquilo que as demais forças políticas disfarçam com palavras enquanto seguem fazendo com ações.

Assim, a mensagem radical de construir muros, expulsar quem é diferente, perseguir grupos marginalizados, se dessensibilizar frente ao sofrimento alheio de defender o “nosso” modo de vida a qualquer custo parece uma alternativa racional em meio à irracionalidade crescente. Se a desintegração é inevitável, o melhor a fazer é antecipar-se a ela e se posicionar da maneira mais favorável.

Decifra-me ou…

Este crescimento acabou por botar a esquerda em xeque. Incapaz de admitir o tamanho dos desafios com que se depara e frente a uma força que aposta em acelerar a desintegração, boa parte dela se viu obrigada à defesa de alguns restos de um estado de coisas em frangalhos em que cada vez menos gente acredita (as promessas da modernidade e do crescimento econômico, a forma de uma democracia sempre mais esvaziada, a racionalidade da ciência, a confiabilidade da mídia tradicional etc.).

Com isso, deixou a via aberta para que a extrema direita se apresentasse como única intérprete dos sentimentos antissistema.

Não se trata, por óbvio, de tentar emular o vandalismo conservador dos direitistas. Mas fazer de conta que a policrise atual é passageira, e não o produto de tendências de longo prazo, e que, portanto, seria possível agarrar-se ao que dá para proteger enquanto se espera a tormenta passar, quando muito retarda o pior no curto prazo, e talvez até o acelere no médio.

Essa é a lição que o crescimento de Marine Le Pen sob os anos de centrismo macroniano nos deixará —e deverá a ser repetida em breve sob Scholz, Starmer, os democratas norte-americanos e, porque não, o PT.

É evidente que não estamos falando unicamente de “falta de vontade”; os problemas são objetivamente complexos, talvez até intratáveis.

No entanto, certamente não será tapando os olhos e apostando na possibilidade de volta a uma normalidade que já não existe que chegaremos mais perto de resolvê-los.

Toda proposta que seja realista no sentido de encarar esses problemas de frente necessariamente parecerá radical, comparada ao que existe hoje. Não ter medo de dizer aquilo que pode parecer inaceitável agora e continuar trabalhando para torná-lo aceitável no futuro próximo é a melhor lição que a esquerda pode aprender com a extrema direita.

O caminho é árduo e sem garantias, mas não começará enquanto não se assumir que estes são os desafios a enfrentar pelas próximas décadas —o fato de que seja impossível resolvê-los de imediato não é desculpa para seguir adiando a construção das condições em que seja possível fazê-lo.

Talvez estes enigmas não possam ser resolvidos; mas a alternativa a nem sequer tentá-lo é aceitar ser devorado.

 

Carta póstuma de um professor, por Antônio Simplício de Almeida Neto.

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Antônio Simplício de Almeida Neto – A Terra é Redonda – 26/10/2024

O que é essa tal BNCC, senão uma proposta curricular precária dirigida à formação precária do proletariado precarizado?

Prezado Antonio,

Escrevo desde aqui, do outro lado do espelho. Confesso que nunca imaginei que faria algo desse tipo, ato inusitado, para dizer o mínimo, mas é que soube por alguns colegas dos idos tempos, que você se tornou historiador, professor de história e, como se não bastasse, está formando novos professores dessa disciplina na Unifesp. Quem diria? Gostaria de ver essa cena.

Não vou negar que sinto uma pontinha de orgulho, mas seria leviano afirmar que tive alguma influência sobre suas escolhas. Salvo engano, lá se vão quase 50 anos desde nosso último encontro…, você era um garoto miúdo, imberbe, entrando na adolescência sem muita vontade, estava na 7ª série, acho. Eu já era um senhor respeitável, veterano, professor austero, envergando o jaleco branco de algodão, óculos de armação grossa e escura, calvície avançada e cabelos alinhados com brilhantina Glostora.

Talvez fique surpreso em saber que estou morto. Infarto fulminante. Ocorreu em 1987. Estava em casa, assistindo televisão, tranquilo em minha poltrona, sozinho, de pijama. Meu corpo foi achado pelo porteiro do prédio em que eu residia, ali no centro antigo de São Paulo, depois de dois dias do funesto evento. Eu não desci para pegar o jornal diário, ele interfonou, bateu na porta, silêncio, usou a chave reserva que eu lhe confiara para alguma emergência. O Elias era um cara batuta. Foi ao meu enterro.

Contudo, não escrevo para falar desse trágico e inevitável episódio, pois todos morremos um dia, não é mesmo? Na verdade, eu resolvi escrever porque soube (aqui nesse não-espaço atemporal, nós sabemos de muitas coisas…) que você localizou uma fonte documental, um trecho de entrevista que dei a uma estudante de licenciatura em história lá da FEUSP, na disciplina Prática de ensino de história, com aquela professora… Elza Nadai (que está entre nós), e que fez estágio comigo em 1979, quando eu já estava me aposentando.

Parece que a estudante registrou em seu relatório: “Em conversa com o professor [eu!] pude observar toda uma desilusão a respeito do ensino. Leciona desde a década de 40, acredita firmemente que ser professor é virtude inata, não se aprende através de técnicas. Disse-me que já utilizou vários métodos para lecionar e atualmente utiliza aquele que a classe merece, isto é, aulas expositivas, pois [eles, os alunos] não têm nível para outra coisa.”. Vamos e venhamos, Antonio, o relatório da estudante é carregado de representações típicas de quem nunca lecionou. Esse papo de “desilusão a respeito do ensino”, valha-me Zeus!

Quero ver entrar numa sala de aula cheia de adolescentes insolentes, várias turmas e turnos, arrocho salarial, idade avançando, rotina pesada, pais torrando a paciência, direção autoritária… Seria mais apropriado falar em desencanto com o ensino e com a escola. De qualquer forma, foi mesmo incrível essa minha resposta! Eu e meu sarcasmo!… O pessoal daqui ficou perplexo e houve quem me chamasse de déspota esclarecido (aqui, apesar da imaterialidade, ainda mantemos o bom humor).

Lembro bem de quando conversei com aquela jovem estudante de história, arrogante como ela só, insinuando que eu não sabia lecionar, querendo me expor na frente dos alunos. Ah, a juventude impetuosa! Aliás, ela também morreu, num acidente de moto na Rio-Santos, a caminho de Trindade. Viva fosse, aposto que seria eleitora do excrementíssimo (adorei esse neologismo!) ex-presidente Jair Bolsonaro.

Aliás, também fiquei sabendo que numa de suas aulas, você mencionou minha metodologia catequética como exemplo a não ser seguido: ditado de perguntas e de respostas a serem decoradas para a prova. Cá entre nós, passados tantos anos, admito que minhas aulas não eram lá muito dinâmicas. Não querendo me justificar, o fato é que eu não era historiador, com formação superior em história e tudo mais, e sequer fiz licenciatura. na verdade, eu estudei direito, mas nunca tive muito jeito para advogar, e, como gostava muito de história, acabei me tornando professor como um bico, e fui ficando.

Isso era muito comum naquela época, anos 1940, 1950. De modo que, eu ia fazendo como me dava na veneta. Lembra de uma aula que dei para sua turma sobre os fenícios? Eu achava esse assunto fascinante, mas vocês não suportavam, eu ditei uma pergunta/resposta e mencionei “embarcação trirreme”, e desenhei na lousa um perfil meio tosco de um barco e três níveis de remos, para que entendessem o que era aquela expressão. Esse era o máximo de didática a que eu chegava. Já a professora Neide, com quem você teve aula na 5ª série, que era bem mais jovem (soube que morreu de Covid-19…), ingressou no magistério nos anos 1970, cursou história, licenciatura, tudo bonitinho, era adorada pelos alunos, até a voz dela era modulada para aquela faixa etária.

E tem mais…, só aqui, no além-túmulo, compreendi que naqueles anos 1970 a escola pública vivia uma verdadeira metamorfose, os filhos da classe trabalhadora (para usar a expressão do velho Marx, cuja fama revolucionária descobri aqui) passaram a frequentar os bancos escolares, era gente com outros costumes, pouco cultivados, pais sem estudo. E isso era muito complicado para professores como eu, acostumados a lecionar para os filhos da classe média, “gente como a gente”, sabe? E aí começou a chegar aquela “gente diferenciada”, como diz o pessoal de Higienópolis, alunos sem material didático, sem uniforme, não faziam o dever escolar, desorganizados, alguns vinham por causa da merenda escolar(!), modos pouco civilizados. Posso parecer preconceituoso, mas… eram horrorosos!

A bem da verdade, e da minha finada reputação, meu entendimento correspondia a certo zeitgeist, como se diz por aí. Era o espírito da época, de modo que muitos professores e autoridades educacionais compartilhavam dessa minha percepção. Lembro vivamente da Keila, professora de Música que, além de não ensinar música, era extremamente preconceituosa com qualquer estilo que não fosse o erudito; do professor Constantino, de Língua Portuguesa, que humilhava os alunos que não entregassem trabalhos impecáveis (como os do filho dele, que era seu colega de turma); do professor Juvêncio, de Educação Física, que submetia os estudantes fisicamente inábeis a um corredor polonês formado pelos hábeis (fascista!, diriam hoje); do professor Salim, de Ciências, que passava álcool na mesa e demais objetos da sala de aula, e sequer tocava no giz, com medo de se contaminar (tinha nojo dos alunos). Olhando à distância, até que havia uma fauna pitoresca.

Sabe, Antonio, devo reconhecer que foi muito difícil para aquele veterano professor que se considerava parte da elite intelectual, porque leu alguns livros a mais, e que supunha dar aula para os filhos da sua classe social, seus iguais, ter de civilizar a massa ignara, ensinar os filhos das “classes perigosas”, e ainda ser colocado numa condição salarial e de trabalho… proletária. O ressentimento – a chave que decifra o Brasil – bateu forte. Sei que você não tem um olhar complacente com o passado, coisas da formação acadêmica, mas é que aquela estagiária me pegou num mau momento.

Mudando de assunto, estou… (ia dizer “preocupado”, mas o fato é que nada mais me preocupa) estupefato, por assim dizer, pois soube que vocês estão às voltas com uma nova proposta curricular, um monstrengo chamado BNCC, que retirou a disciplina história do currículo e que, ainda por cima, houve historiador que colaborou na elaboração desse documento, dando tiro no próprio pé! E que, como se não bastasse, há historiadores discutindo “a BNCC de história que queremos”! Vanitas vanitatum et omnia vanitas! O que pequenas vantagens fazem com os seres humanos, não é mesmo? Mas o que me deixa perplexo, meu caro, não é a vaidade, pois também já cometi meus pecadilhos, mas saber que alguns de vocês, que alegam ter consciência histórica, entraram nessa barca furada.

Noto, pelo pouco que acompanho à distância, que os mentores desse documento curricular são ardilosos e mais sofisticados que os milicos et caterva de outrora. Enredaram vocês direitinho… Foi um crime curricular perfeito! Como se usassem uma enorme rede de arrasto, e capturassem toda a educação básica (incluindo o Ensino Médio), as disciplinas escolares, seus conteúdos e materiais didáticos, o ensino superior (privado e público), cursos de capacitação e treinamento, e até esses cacarecos eletrônicos, que não havia no meu tempo, como plataformas e softwares (nem sei o que é isso…). Esse pessoal das fundações privadas não dorme no ponto! Como se dizia antigamente, enquanto vocês iam com o milho, eles voltavam com o fubá.

Agora, o surpreendente é que os professores da sua geração, e alguns da geração anterior, que tanto lutaram para democratizar o ensino e formar alunos críticos, entraram nessa barca furadíssima, que não só liquidou com a disciplina História no Ensino Médio e vem depreciando a formação dos futuros professores de História, como está privando os alunos da educação básica – os filhos da classe trabalhadora! – de ter acesso ao conhecimento qualificado de História. Isso para não falar da criação desses… xenomorfos curriculares, como Empreendedorismo e Projeto de Vida, que remetem à EMC e à OSPB de outrora. Enfim, tudo aquilo deu nisso?!! Tantos debates sobre resistência, brechas e dobras, inclusão, conscientização, antirracismo, decolonialidade, seminários, congressos e publicações, para dar numa… janela de oportunidade$ e negócio$?!

Veja que curioso, meu caro, não sei se vai lembrar, mas noutra fonte documental que você utilizou em suas pesquisas, havia um trecho de uma Ata de reunião pedagógica do ano de 1970, de uma escola estadual da Vila Brasilândia, periferia de São Paulo, em que o diretor disse aos professores que eles deveriam formar os estudantes “de acordo com o nível do bairro, [e cujo objetivo] não será [seria] a intelectualização, mas sim dirigida para o trabalho.”

Essa frase soa perturbadora, não? Eu não lecionei nessa escola, mas naquela época eu teria considerado normal, pois era o jogo jogado. Agora que estou em outra dimensão e vejo tudo em outra perspectiva, parece-me que aquele diretor era um… visionário! Sim, um visionário! 50 anos depois seu vaticínio se cumpriu! O que é essa tal BNCC, senão uma proposta curricular precária dirigida à formação precária do proletariado precarizado?

Por essa, nem o Paulo Freire (também o vi circulando por aqui) esperava… E sabe o que mais me impressionou? É que esse golpe curricular aconteceu à luz do dia, foi arquitetado lentamente e amplamente anunciado, e ainda contou com a ajuda efusiva de setores acadêmicos, sob a alegação de estarem dando o melhor de si ou de “resistirem por dentro”. Quanto mais eu rezo, mais assombração me aparece!!

Por essas e outras é que não tenho nenhuma vontade de retornar, reencarnar, baixar, corporificar, descer, essas coisas… Além de andar meio desencantado, desde os anos 1970…, se ao menos eu acreditasse em vida após a morte…, poderia alimentar alguma esperança de realização plena em outro nível de existência. Mas não tem jeito, Antonio, vocês terão de se haver com o “horizonte de expectativas” do seu tempo presente, como escreveu o tal do Koselleck (eita, sujeito complexo! Também morreu.). Creia, o abacaxi e o pepino que vocês cultivaram e colheram terão de ser descascados por vocês e pelas próximas gerações.

E com isso vou me despedindo, com essa menção ao trabalho duro que espera os futuros professores de História. Ou você tinha a ilusão de que haveria vida eterna? Não se iluda, meu querido, “tudo agora mesmo pode estar por um segundo”, como cantou o vivíssimo Gilberto Gil. Quando menos se espera…, babau!, passamos dessa para o… nada.

Bem…, creio que não mais nos falaremos e tampouco nos veremos, de modo que lhe desejo força nesses anos de vida que lhe restam. Já deve ter percebido que “o caminho é deserto” (essa é do Braguinha, um cara porreta!) e o lobo mau está à espreita, às vezes, dissimuladamente, participando de um evento acadêmico.

Adeus!

Professor Hélio Vieira[1]

*Antonio Simplicio de Almeida Neto é professor do Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Autor, entre outros livros, de Representações utópicas no ensino de história (Ed. Unifesp).

Nota

[1] Esse texto foi publicado anteriormente no e-book Cartas do Ensino de História, organizado por ALMEIDA NETO, Antonio Simplício de; SOARES, Olavo Pereira; MELLO, Paulo Eduardo Dias de. São Carlos/SP: Pedro & João Editores, 2023.

A economia alemã, por Flávio Aguiar.

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De gigante robusto a criança-problema

Flávio Aguiar – A Terra é Redonda – 14/10/2024

Recentemente Christoph Swonke, economista, pesquisador e ligado ao Deutsche Zentral-Genossenschafts Bank, conhecido como DZ-Bank, declarou que a Alemanha tornou-se “a nova criança-problema entre os países europeus”. Ou seja: para ele, a economia alemã está deixando de ser o carro-chefe da economia europeia, para atravancá-la com seus problemas internos.

O que está acontecendo?

Na quarta-feira da semana passada, 9 de outubro, o ministro da Economia e vice-chanceler do governo alemão, Robert Habeck, do Partido Verde, declarou que pelo segundo ano consecutivo a economia do país iria se retrair. Em 2023 ela encolheu 0,3%. Agora a previsão é de que em 2024 ela encolha mais 0,2%.

Diante da situação interna adversa, com aumento do custo da energia, dos alimentos, queda no consumo, falta de investimentos, empresas alemãs estão se voltando para o exterior em busca de socorro, às custas de seus ativos. A Deutsche Bahn, empresa ferroviária alemã e outrora uma das meninas-dos-olhos do transporte europeu, enfrenta dificuldades de caixa e desempenho. Em consequência, decidiu vender sua subsidiária de cargas, a rentável Schenker, para a dinamarquesa DSV, por 14 bilhões de euros (cerca de R$ 85 bi), a fim de equilibrar seu caixa.

O Comerzbank, segundo maior banco privado do país, vendeu parte de seus ativos para o banco italiano Unicredit. Este manifestou interesse em adquirir todo o banco alemão, e o Banco Central Europeu já deu luz verde para esta possível transação.

Outras empresas estão pensando em buscar locações mais atraentes. A indústria química BASF decidiu investir 10 bilhões de euros para montar uma unidade na China.

Os proprietários suíços da empresa Techem, do setor energético, considerada de médio porte, pensam vendê-la para a norte-americana TPG.

A tradicional Volkswagen anunciou que pretende fechar unidades de produção, em parte devido à concorrência dos carros chineses, e rompeu um acordo salarial com o sindicato de trabalhadores que durava 30 anos, protegendo empregos e salários.

Um problema suplementar surgiu com a decisão alemã de romper parcial e temporariamente com o chamado acordo de Shengen, restabelecendo o controle policial de passaportes e veículos em suas fronteiras terrestres. Empresários cujas empresas localizam-se perto da fronteira com a Polônia e empregam trabalhadores deste país dizem estar apreensivos pela dificuldade de circulação que isto provoca.

Como a Alemanha ainda é a maior economia do continente, e a principal importadora e exportadora de produtos, seus problemas internos atingem toda a Europa. O clima geral é de apreensão e expectativa negativa para os próximos tempos.

Para amenizar a situação o ministro Robert Habeck previu que a Alemanha voltará a crescer a partir do próximo ano, anunciando a adoção de medidas desburocratizantes na relação entre governo e empresas e a busca de um novo programa de geração de energia elétrica considerado climaticamente neutro.

Mas as dificuldades não são pequenas. Desde 1980 sucessivos governos anunciam a intenção de desburocratizar a rotina daquela relação, com resultados considerados insatisfatórios.

Além disto, o clima geral dos mercados mundiais de comércio, finanças e investimentos produtivos também é de apreensão e cautela, devido à guerra na Ucrânia e aos confrontos no Oriente Médio, com a ação armada de Israel se expandindo na região.

Por fim, mas não menos importante, grupos ecológicos manifestam grave preocupação diante das, crescentes resistências, por parte de empresários do setor industrial e de produtores agrícolas, em relação às iniciativas verdes, consideradas pouco rentáveis e prejudiciais diante da concorrência estrangeira. A Alemanha e a Europa como um todo podem passar de líderes no setor a novas crianças-problemas no que toca a preservação do planeta.

*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo)

De Gaza ao Líbano — um mundo de impunidade, por Paulo Sérgio Pinheiro

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Paulo Sérgio Pinheiro – A Terra é Redonda – 23/10/2024

Diversos conflitos armados recentes têm desintegrado completamente os sistemas de proteção da população civil

Uma perturbadora erosão gradual e constante das normas universais do direito internacional tem ocorrido nas últimas décadas. Diversos conflitos armados recentes têm desintegrado completamente os sistemas de proteção da população civil.

No mais grave e longevo desses conflitos, o Estado de Israel, à guisa de se defender do Hamas, em um ano destruiu na Faixa de Gaza todas as escolas, hospitais, universidades, mesquitas, igrejas, arquivos, museus. Cerca de 1,9 milhão de habitantes foram deslocados de suas casas. Quase 2% da população foi morta pelos bombardeios israelenses — 60% dessas 42 mil vítimas são crianças, mulheres e idosos a partir de 60 anos.

No final do mês de setembro, a escalada de ataques, iniciada em 8 de outubro de 2023 entre Israel e o grupo não estatal armado libanês Hezbollah, se agravou. Em 27 de setembro último, sem aviso prévio, Israel lançou mais de 80 bombas de 2.000 libras num bairro no sul de Beirute, destruindo seis prédios de apartamentos e resultando na morte do secretário-geral do Hezbollah, Hassan Nasrallah.

Seguiram-se 1.700 bombardeios no Líbano, inclusive, recentemente, no centro de Beirute. No total, 1,2 milhão de pessoas foram deslocadas, 2.083 mortas e 10 mil feridas desde outubro passado, a maioria nas últimas três semanas. Israel atacou soldados da Força Interina das Nações Unidas no Líbano (Unifil) sob protestos de 40 países, inclusive do Brasil.

Tudo antes da morte do líder do Hezbollah, considerada pelos EUA como “medida de justiça”, parece ultrapassado. Mas, para as vítimas, o passado recente continua sendo o presente. Como foram as explosões em 17 e 18 de setembro no Líbano, e também na Síria, em pagers e walkie-talkies, atribuídas a Israel — visando o Hezbollah, mas que atingiram 3.500 libaneses, com 42 mortes. Perderam ambos os olhos 300 pessoas e, 500, uma das vistas. Houve registros de lesões graves na cintura e no rosto das vítimas, além de mãos amputadas.

Os ataques, a quem estava de posse dos dispositivos visados, violaram o direito internacional dos direitos humanos e humanitário, avaliou o alto-comissário de direitos humanos da ONU, Volker Turk. Apesar disso, as potências ocidentais que apoiam Israel não condenaram esses ataques. As reações da mídia internacional foram de um fascínio indecente, com o feito considerado “inovador” e “audacioso”.

Era de se esperar que os ataques de Israel contra o Líbano gerassem protestos aqui, visto o Brasil ter a maior comunidade de libaneses e descendentes fora do país do Oriente Médio — entre 7 e 10 milhões de pessoas.

Ledo engano. Diante desses horrores, as entidades da sociedade civil brasileira não se manifestaram. Caladas durante um ano quanto ao genocídio em curso em Gaza — cuja plausibilidade foi constatada pela Corte Internacional de Justiça —, guardam um obsequioso silêncio sobre a desesperadora situação no Líbano.

Mas uma vez nos salva desse constrangimento internacional o governo brasileiro, que condenou com veemência os ataques aos pagers e denunciou as operações militares de Israel no sul do Líbano como violação ao direito internacional, à Carta da ONU e a resoluções do Conselho de Segurança.

Acontecimentos como os ocorridos em Gaza, no Líbano e em diferentes partes do mundo solapam a aplicabilidade universal de normas e mecanismos internacionais decisivos para a proteção das populações civis.

Urge que a sociedade civil brasileira se dê conta, como há dias disse António Guterres, secretário-geral da ONU, do “mundo de impunidade” que ameaça os fundamentos da lei internacional.

*Paulo Sérgio Pinheiro é Professor Émerito da FFLCH (USP) e da Unicamp; ex-ministro dos Direitos Humanos. Autor, entre outros livros, de Estratégias da ilusão: a revolução mundial e o Brasil, 1922-1935 (Companhia das Letras).

 

Precariedade: a barbárie assume seu protagonismo, por Jacob Carlos Lima.

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No Brasil industrial, ela foi vista por décadas como nódoa, condição passageira a ser superada. Nos tempos de Bolsonaro e Guedes, virou “solução”: evita que se fale em desemprego e alivia o empregador do “fardo” tributário. O que está por trás deste retrocesso?

Jacob Carlos Lima, no Boletim Lua Nova – 27/05/2024

A informalidade, vista por muito tempo como sinônimo de atraso econômico e pobreza urbana, volta à tona, agora com chancela presidencial, menos como sinônimo da modernidade do capitalismo flexível, mais como opção (ou falta de) entre empregos e direitos. Nada a se espantar com declarações desse tipo num quadro em que a barbárie é vista como solução; assistimos diariamente sua implementação com o beneplácito da sociedade de “bem”, representada por nossas instituições que, cada vez mais, representam menos.

Mas o que é esse informal declarado agora como modelo a ser seguido pelo mercado de trabalho?

Num artigo publicado há duas décadas, Luis Machado da Silva (2002) questionava o uso do termo “informal” para se referir a empregos não regulamentados, pois esse teria perdido seu caráter explicativo. Num quadro de expansão neoliberal, o termo “empregabilidade” poderia substituí-lo, assim como, acrescentamos, o de empreendedor individual poderia substituir também o de trabalhador autônomo que estava sendo reconfigurado.

O conceito de informalidade tem sido utilizado desde os anos 1970, tendo como ponto de partida estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) realizado no Quênia em 1972. No Brasil, substituiu o conceito de marginalidade social, empregado anteriormente para explicar aqueles que sobreviviam de expedientes na cidade, fora de qualquer regulamentação oficial, e eram marcados pela vulnerabilidade representada pela exclusão de qualquer benefício social.  Machado da Silva, de certa forma, antecipou o conceito em sua dissertação de mestrado defendida em 1971, na qual discutia mercados de trabalho metropolitanos.

Desde o início de sua utilização, o conceito de informalidade e trabalho informal foi objeto de críticas e questionamentos, como aliás acontece com grande parte dos conceitos sociológicos. O contexto do surgimento da utilização do termo se deu num momento de crescente regulação das relações capital e trabalho, após a Segunda Guerra Mundial e ao momento do debate sobre desenvolvimento-subdesenvolvimento dos países periféricos capitalistas, tendo como pressuposto a industrialização como sinônimo de modernização.

A insuficiência da industrialização levaria à formação de grandes massas excedentes ou marginais, excluídas do mercado de trabalho regulado, em ocupações de baixa produtividade e renda, na ocupação caótica da cidade e sem qualquer organização política. A dualidade da análise, progressivamente, foi substituída pela discussão do desenvolvimento desigual e combinado, no qual o capitalismo subordina outras formas de produção e de trabalho às necessidades de acumulação. A massa marginal, constituiria a imprecisa informalidade resultante de uma superpopulação excluída do mercado de trabalho regulada, o que explicaria também o baixo custo da força de trabalho na região, dada a abundância da oferta. O “atraso” como parte integrante do moderno, a população excedente refletindo a superposição de formas de acumulação distintas. Até a década de 1980, a informalidade era a representação do subdesenvolvimento, do atraso econômico, da precariedade e vulnerabilidade dos trabalhadores.

A partir daí houve a guinada neoliberal. Um conjunto de situações políticas, econômicas e culturais podem ser elencadas para discutirmos a crise de acumulação da década de 1970 e o início do que vai ser conhecido como capitalismo flexível. O trabalho regulado e com direitos sociais começa a ser visto como custo que encarece a produção e compromete a competitividade das empresas. Aberturas de mercado, desterritorialização da produção, migração em massa, vão se constituir na nova realidade da nova fase da acumulação capitalista, também sinônimo de globalização. O capitalismo flexível pressupõe a redução da intervenção do Estado na regulação econômica e na reprodução social, vistas como inibidora do livre mercado, e das novas necessidades da acumulação capitalista.

Na América Latina, autores como Hernando De Soto (1987), analisando a informalidade no Peru, descartaram a negatividade do conceito como atividade de pobre e para pobre e passaram a discutir o caráter empreendedor presente na economia informal, Assim, o problema não estaria na ausência do Estado, mas na sua presença excessiva. O trabalhador informal latino-americano, por suas estratégias de sobrevivência seria um empreendedor nato, e o Estado deveria eliminar os entraves regulatórios nessa atividade, inibidora da capacidade de iniciativa e criatividade dos indivíduos. A informalidade torna-se sinônimo de empreendedorismo e trabalho flexível.

Outro elemento nessa “reconfiguração” da informalidade resulta do seu aparecimento como problema também em países avançados, nos quais as condições laborais até então vigentes proporcionavam aos trabalhadores segurança, perspectivas de promoção e ascensão social (Sennet, 1999). Alejandro Portes, Manuel Castells, Lauren Benton (1989); Edna Bonacich (1989;1990) e Saskia Sassen (1988) referem-se aos mercados e às sweatshops nos centros das grandes cidades norte-americanas e europeias onde podem ser encontradas grande número de trabalhadores, sem nenhum tipo de vínculo formal no mercado de trabalho. Podem ser trabalhadores por conta própria ou pessoas que produzem bens ou serviços para algum “empreendedor”, em geral mediador entre os trabalhadores e grandes empresas industriais e/ou intermediários em redes de comercialização. É notório o recorte étnico desses segmentos da força de trabalho, que vão sendo substituídos de acordo com a sucessão dos movimentos migratórios, originados em países estrangeiros ou no interior dos próprios países. As indústrias da confecção, do vestuário e de calçados são ramos produtivos em que a constatação de sweatshops e de oficinas com condições precárias de trabalho tem sido recorrente, com predomínio de situações análogas à de trabalho escravo em várias partes do mundo. Em 2002 a OIT incluiu entre os trabalhadores informais aqueles dispensados em função da reestruturação econômica levada a efeito na década anterior e que não mais conseguiram retornar ao mercado de trabalho formal, redefinindo estratégias de sobrevivência agora na informalidade.

A precariedade das condições nesses empreendimentos, tanto na ausência das garantias laborais definidas pelo assalariamento, quanto às condições ambientais, de inserção e permanência do mercado de trabalho, revelam que os valores veiculados pela ideologia do empreendedorismo são uma falácia. A insegurança e vulnerabilidade dos trabalhadores tornam-se a perspectiva a curto, médio e longo prazo.

No Brasil, houve uma redução da informalidade a partir do final da década de 1990 com a estabilização econômica do governo FHC e continuou a se reduzir até 2013, resultante de uma situação econômica favorável, das políticas de formalização do emprego, valorização do salário mínimo e políticas sociais compensatórias dos governos petistas. Mesmo com a maior formalização, a ideologia empreendedora permaneceu como perspectiva de inserção no mercado de trabalho, na manutenção de uma racionalidade neoliberal tal como discutida por Pierre Dardot e Christian Laval (2016). O trabalho por conta própria é uma oportunidade de ocupação, de crescimento individual, aproveitando a capacidade de iniciativa dos indivíduos. O programa Microempreendedor Individual (MEI), criado em 2008, teve o objetivo de formalizar o trabalho informal a partir de uma redução da carga tributária para essa atividade e de uma constatação que este não é provisório como antes era pensado, mas definitivo.

Mesmo no trabalho regular e formalizado, o potencial empreendedor do trabalhador torna-se uma das qualidades valorizadas pelas empresas que buscam trabalhadores jovens, flexíveis e móveis para atender às demandas da produção. O trabalhador empreendedor é flexível e aberto à inovação. Nessa categoria se incluem tantos profissionais altamente qualificados, que prestam serviços na elaboração de projetos, para grandes empresas, quanto trabalhadores de pouca “empregabilidade”. Nestes últimos, podem ser incluídos vendedoras de artigos de beleza, nomeadas como consultoras de grandes empresas produtoras de cosméticos, camelôs e sacoleiros que comercializam produtos variados, dos mais simples aos mais sofisticados, de bugigangas a produtos eletrônicos e de informática.

A comercialização desses produtos intensifica a mobilidade nacional e internacional de trabalhadores, ligando os polos de venda aos polos de consumo de mercadorias explicando a circulação de trabalhadores em mercados de fronteiras, em feiras da madrugada e mercados populares (Pinheiro Machado, 2011; Lima e Rangel, 2019; Lima e Soares, 2002; Veras de Oliveira, 2013).

A informalidade representada por sacoleiros e camelôs, seus representantes mais visíveis, embora ilegal, termina sendo tolerada e em grande parte legitimada com a necessidade da população “se virar”. Aliás, com esse argumento, atribui-se a uma declaração do então presidente Fernando Henrique Cardoso nos anos 1990 que desemprego era coisa de país rico e que no Brasil seu índice era baixo, exatamente porque todo mundo “se virava”. Polos de produção informal por todo país, ao lado de mercados e feiras informais nas grandes cidades tornam-se objeto de repressão e estímulo. Repressão nos processos de fiscalização e regulação do espaço urbano e contra a pirataria. E estímulos com a constituição de shoppings populares e à regulamentação dessas atividades, como forma de aumentar a arrecadação de impostos, além de serem considerados modelos de flexibilidade na produção e do trabalho.

A esse contingente de trabalhadores, ilegais, mas legitimados, soma-se o contrabando em pequena escala (mas não só) que abastece pequenas lojas, formais e informais, e também a comercialização de produtos ilícitos como drogas, produtos roubados, além de serviços variados de suporte que os viabilizam. Esses trabalhadores não reconhecidos como tal, entre eles crianças e jovens, constitui-se num número crescente não mensurável pelas estatísticas oficiais. A rede que a mantém resulta, sem dúvida, da capacidade de seus organizadores de “empreender”, movimentando enormes quantias, que alimentam uma economia subterrânea considerada criminosa, que se espraiam pelas cidades formais e informais com a participação ostensiva de agentes privados e estatais.

A nova onda desregulatória do atual governo retorna ao discurso oficial, mesmo com todos os fracassos anteriores presentes na implementação de políticas neoliberais e suas nefastas consequências sociais. Mais uma vez estamos diante de um “discurso único” no qual as dissonâncias estão fragilizadas e sem saber como reagir. Empregos e direitos tornam-se antônimos. A informalidade surge como desejada, num mar de declarações absurdas.

Informais, precários e vulneráveis, o contingente de trabalhadores nessa situação só cresce. As novas tecnologias informacionais contribuem para sua disseminação inserindo uma nova variável – as plataformas digitais –, informalizando mais e mais ocupações.

Reformas são propostas e redigidas “imparcialmente” por empresários pensando nos seus interesses, e eliminando formas de solidariedade social, propondo capitalizações que, mais uma vez, inviabilizam o presente e o futuro. O informal, o ilegal e o ilícito, cada vez mais se confundem e as fronteiras com o institucionalizado se apagam.

Não tem mais atraso, ou subdesenvolvimento, como fase a ser superada. Com o fim do império da regulação, a barbárie assume seu protagonismo.

Referências bibliográficas:

BONACCIH, Edna. Asian and Latino Immigrants in the Los Angeles Garment Industry: An Explorationship of the Relationshin between Capitalism and Racial Oppression. ISSR Working Papers in the Social Sciences, 1989-90, Vol. 5, Number 13.

DARDOT, Pierre, LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

DE SOTO, Hernando. Economia subterrânea: uma análise da realidade peruana. Rio de Janeiro: Globo, 1987.

HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992.

LIMA, Jacob C., SOARES, Maria José B. Trabalho flexível e o novo informal. Caderno  CRH, Salvador, n. 37, p. 163-180, jul./dez. 2002.

LIMA, Jacob C.; RANGEL, Felipe. Dimensões da nova informalidade no Brasil: considerações sobre o trabalho em polos industriais e no comércio popular. In RODRIGUES, Iram Jacome. Trabalho e ação coletiva no Brasil: contradições, impasses, perspectivas (1978-2018). São Paulo: Annablume, p.15-39,  2019.

MACHADO DA SILVA, Luís A. Mercados Metropolitanos de Trabalho Manual (dissertação). Rio de Janeiro, Museu Nacional – UFRJ, 1971.

MACHADO DA SILVA, Luis. A. Da Informalidade à Empregabilidade (Reorganizando a Dominação no Mundo do Trabalho). Cadernos do CRH (UFBA), Salvador, v. 37, n.37, p. 81-109, 2002.

NUN, José Luis. O futuro do emprego e a tese da massa marginal.  Novo Estudos Cebrap, nº 56, p.43-62, março de 2000.

PINHEIRO MACHADO, Rosana, Made in China. São Paulo: Anpocs/Hucitec, 2011.

PORTES, A., CASTELLS, M., BENTON, L.A. The Informal Economy. Studies in Advanced and Less Developed Countries. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1989.

SASSEN, Saskia. New York City’s Informal Economy.   ISSR Working Papers Volume 4, Number 9/1988

SENNET, Richard. A corrosão do caráter. Rio de Janeiro: Record, 2009.

VERAS DE OLIVEIRA, Roberto. O Polo de confecções do Agreste Pernambucano: elementos para uma visão panorâmica. In: VERAS DE OLIVEIRA, R., SANTANA, M.A. (org.) Trabalho em territórios produtivos reconfigurados no Brasil. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2013.

 

A falácia das “metodologias ativas” por  Márcio Alessandro de Oliveira.

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 Márcio Alessandro de Oliveira – 23/10/2024 – A Terra é Redonda

A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida

Este ano, tive o desprazer de deparar com um critério desagradável no edital de um Instituto Federal (IF), localizado no Nordeste: exigia o uso de “metodologias ativas”. Detesto-as.

Nem vou explorar o fato de que “metodologias” se tornou um jargão pedantesco dos pedagogos, muitos dos quais nunca lecionaram, embora insistam em vigiar o trabalho docente sob o signo da gestão, marca do neoliberalismo. Este, como sabemos, considera a escola como empresa e o aluno como cliente – e o cliente, é claro, tem sempre razão.

O cliente tem de gostar do produto mercantil em forma de “aula”, e é exatamente por isso que as falácias escolanovistas e construtivistas há uns cem anos estão sustentando, “cientificamente”, as tais “metodologias” ativas, que supostamente dão motivação inesgotável ao aluno, quer ele seja suficientemente inteligente e empenhado nos estudos que tem de fazer em casa, quer não. Entretanto, para o viés “progressista” da pedagogia, a culpa de qualquer fracasso só pode estar nos procedimentos de ensino, que, por pedantismo, os pedagogos chamam de “metodologias”.

Sempre uso a locução procedimentos de ensino por considerá-la mais precisa, ainda que a precisão seja uma consequência de sua abrangência. Contudo, mesmo se eu usasse a palavra metodologias, que tem sido usada de modo cada vez mais leviano ao ponto de ficar vazia de significado real, continuaria cabendo a seguinte pergunta: Quando foram criadas as metodologias “passivas”? Em quais disciplinas e em quais níveis elas são aplicáveis? Por que insistem em demonizar o ensino tradicional?

O ensino que a pedagogia demonizou eu divido nas seguintes etapas: revisão do conteúdo da aula anterior; lançamento de conteúdo; explicação e exemplificação do conteúdo novo; fixação da matéria por meio da avaliação formativa; dúvidas dos alunos.

O esquema acima permite a indução, a dedução, a analogia e a maiêutica, e está de acordo com a didática tradicional e conteudística, centrada que é na análise dos dados. Estes, no ensino, compõem a matéria, ao passo que, na pesquisa, compõem o corpus. Esta é a única semelhança entre o ensino e a pesquisa: os procedimentos de estudo giram em torno dos dados, de modo que são inseparáveis o ensino e a pesquisa. Contudo, são práticas muito distintas. Todo bom professor é um bom pesquisador. Daí a facilidade de concluir que o “argumento” de que o pesquisador não sabe dar aula é uma falácia.

Trata-se de um ressentimento contra os verdadeiros acadêmicos, que valorizam a organização dos dados e a clareza, o que não exclui uma dose de vocabulário técnico-científico nem o esforço do aluno. Estes dois últimos atributos a pedagogia moderna rechaça, embora os mesmos defensores das “metodologias ativas” (que, como integrantes de uma seita totalitária, não aceitam críticas aos seus dogmas) reprovem sem dó os alunos que não mostram aptidão para o mestrado ou doutorado. (Existem, é claro, pessoas aptas que são reprovadas por outros motivos. Um deles é o fato de não bajularem os professores do programa de pós-graduação, apesar de eu mesmo nunca ter presenciado isso no meu tempo de mestrando.)

O passo a passo de cinco fases também está de acordo com a premissa de que o aluno nunca fica passivo por assumir o que o linguista Mikhail Bakhtin considerava como sendo a atitude responsiva-ativa. Enquanto o receptor da mensagem recebe o texto, ele fica imaginando réplicas ou dúvidas, desde que ele preste atenção. Sendo assim, não posso aceitar a pressuposição da existência de metodologias “ativas”. Ocorre que é insustentável o conceito de metodologias “ativas”, porquanto nunca tenham existido as metodologias “passivas”.

Além disso, temos de levar em conta a origem do meu passo a passo, que é a didática de Herbart, descrita da seguinte forma: “esse ensino tradicional estruturou-se por meio de um método pedagógico, que é o método expositivo, que todos conhecem, todos passaram por ele, e muitos estão passando ainda, cuja matriz teórica pode ser identificada nos cinco passos formais de Herbart. Esses passos, que são o passo da preparação, da apresentação, da comparação e assimilação, da generalização e, por último, da aplicação, correspondem ao esquema do método científico indutivo, tal como fora formulado por Bacon, método que podemos esquematizar em três momentos fundamentais: a observação, a generalização e a confirmação. Trata-se, portanto, daquele mesmo método formulado no interior do movimento filosófico do empirismo, que foi a base do desenvolvimento da ciência moderna” [SAVIANI, 2021, p. 35-6].

Ao fragmento acima devemos adicionar outro: “se os alunos fizeram corretamente os exercícios, eles assimilaram o conhecimento anterior, então eu posso passar para o novo. Se eles não fizeram corretamente, então eu preciso dar novos exercícios, é preciso que a aprendizagem se prolongue um pouco mais, que o ensino atente para as razões dessa demora” [SAVIANI, 2021, p. 37].

Ademais, para o Sr. Luckesi, “o método pode ser entendido dentro de uma concepção teórica ou de uma compreensão técnica. O autor compreende Metodologia como a concepção segundo a qual a realidade é abordada. Esta é uma concepção teórica do método. Porém, afirma que há uma compreensão técnica do método que também atravessa o conteúdo, visto que “são modos técnicos de agir que estão dentro do conteúdo que se ensina” (p. 138). Exemplo: o modo de extrair raiz quadrada (Matemática) ou o modo de proceder numa análise sintática (Língua Portuguesa). Tanto uma quanto a outra perpassam os conteúdos tratados nas diferentes disciplinas curriculares” [GRUMBACH e SANTOS, 2012, p. 33].

Com efeito: “Todo conhecimento é atravessado por uma metodologia e é possível descobrir no próprio conteúdo exposto o método com o qual ele foi construído [LUCKESI, 1995, p. 138 apud GRUMBACH e SANTOS, 2012, p. 34]”.

Por que tantos acadêmicos defendem as metodologias “ativas”? Por que insistem em defender essa ficção pedagógica na educação básica e até no ensino superior? Posso listar alguns fatores.

Antes de tudo, a universidade, mesmo que seja pública, continua sendo um aparelho ideológico de Estado. Uma vez que o Estado fica na mão do mercado, o meio acadêmico se torna um capitão do mato do neoliberalismo, cujo eixo “moral” e cujo eixo epistemológico são o individualismo extremo, ligado ao empreendedorismo. É ela (a universidade) que, dentro do neoliberalismo, tem força equivalente ao poder que a Igreja Católica tinha na Idade Média, conforme um dos arrazoados do sociólogo Jessé Souza.

Sem o aval “científico” da universidade, não seria possível uma pedagogia que rebaixasse o professor, e, de fato, ela o rebaixa com a regularidade do sol. Basta ver o assédio moral que os docentes sofrem nas escolas municipais e estaduais. Na rede estadual do Espírito Santo, por exemplo, há uma portaria que impõe vigilância na sala de aula e uma lista de descritores a serem aplicados pelo professor, que é tratado como se fosse funcionário de uma lanchonete de franquia. Se o professor não acatar esse despautério, responderá por isso. Também responderá se não usar tecnologias ultrapassadas, compradas com o dinheiro público. Esse gosto por tecnologia, que é usada como se fosse um fim, e não um meio, é herança do tecnicismo, tendência pedagógica implantada no Brasil no tempo da ditadura militar.

As verbas para as “pesquisas” da pedagogia moderna estão condicionadas a linhas de pesquisa que não melhoram o ensino nem a vida profissional dos docentes, porém é certo que reforçam a “inclusão” escolar num país com esgoto a céu aberto, conforme a cartilha do Banco Mundial.

Outro fator da desonestidade intelectual dos doutores que defendem a baboseira em forma de “metodologia ativa” é a necessidade de tornar “lúdico” e “atraente” o ensino para que o aluno fique na escola, mesmo que ele não estude. É graças a essa pseudoinclusão que políticos e burocratas incompetentes e incultos conseguem se promover. “Assim”, escreve a sueca Inger Enkvist (2021, p. 83), “os políticos arruinaram a escola pública enquanto se faziam passar por seus defensores”. Não importa a altíssima temperatura das salas de aula, não importa a falta de ventilador, não importa a falta de erudição, não importa a falta de bibliotecas bem equipadas e protegidas por bibliotecários (profissionais raros): o que importa é que o professor dê motivação aos alunos, mesmo que a saúde mental dele esteja em frangalhos. E ai do professor que não usar os outros “espaços pedagógicos” da escola para agradar aos “líderes” de turma, que vigiam o professor tanto quanto os filhos vigiam os pais no romance 1984, de George Orwell.

Não é de surpreender que os pedagogos sejam contra o ensino conteudístico e transmissivo: eles não têm conteúdo para transmitir: sua ladainha é desprovida de substância: é um catecismo do nada. Se realmente acreditassem no poder transformador da educação, acreditariam no esforço do aluno e no ensino baseado em conhecimento acadêmico, e não em atividades práticas que exigem corte e colagem de papel ou desenhos de matinho e florzinha. Tratam todos os alunos como se fossem crianças, independentemente do nível do ensino e da modalidade.

No caso da educação linguística, tudo se resume a uma visão superficial das tipologias ou tipos textuais (que são cinco) e a gêneros textuais (que são praticamente ilimitados). Ao aluno são oferecidos textos ruins, que falam de redes sociais e outros temas que são do gosto do mercado. Os pedagogos adoram isso, porque não percebem que estão acentuando a formação de consumidores para a indústria cultural, eivada de senso comum e adolescentes falsos de séries televisivas da Nickelodeon.

Isso tudo, porém, é condizente com a visão intelectualmente desonesta dos sectaristas das “metodologias ativas”. Com efeito: um professor que tenha feito uma formação aligeirada é a justificativa perfeita para ele receber um baixo salário. Ele pode ser um agente de “inclusão” social, um “facilitador” do aprendizado, mas nunca poderá ser autoridade na matéria que leciona, a menos que queira correr o risco de ser tachado de tirano. Quem não se dobra aos dogmas dos sectaristas é perseguido a ponto de responder a um PAD (Processo Administrativo Disciplinar).

O professor não leciona propriamente: o aluno faz “atividades” para ficar “ativo”, mas não faz uma aventura intelectual, que esse tipo de exercício exige esforço e condições que os gestores não oferecem ou por incompetência, ou por má vontade. Ora, se o aluno tem de fazer “atividades” preenchendo papel em nome de avaliações externas, o professor não tem de ser um modelo de como pensa e age um intelectual.

Apesar de tudo, estou convencido de que, muito embora seja impossível começar a inclusão só pela escola num país onde alunos mal têm o que comer em casa – e defender o oposto disso seria tão absurdo quanto dizer que cobrar mensalidades dos alunos “ricos” das universidades públicas seria uma forma de igualdade e inclusão –, é fato que os países que não seguiram a pedagogia moderna, cheia de ineptos projetos, metodologias “ativas” e outras tolices que interessam tão só ao empresariado, conseguiram mais igualdade e inclusão do que os que adotaram a pedagogia moderna.

Quem mais precisa de ensino tradicional é justamente quem é pobre. A Suécia é um exemplo do que a pedagogia moderna faz: lá, o totalitarismo se consolidou, e isso porque o sistema escolar tornou burros os seus cidadãos. Esses são os efeitos danosos do escolanovismo e do construtivismo, correntes anticientíficas ignoradas por muitos professores, acostumados que estão com o “status” de peões do ensino. Se, no passado, todos tivessem se rebelado contra as falácias de Carl Rogers, expoente da linha não-diretiva e do fato óbvio de que o aprendizado acontece no cérebro do aluno, talvez tivessem conseguido exorcizar também o fantasma de John Dewey. Ambos os autores estão obsoletos, e, no entanto, suas teses “científicas” continuam se sobrepondo aos professores, que ignoram as referências com as quais poderiam combater as falácias dos cientistas das arábias.

Eu disse que somos vigiados. Isso acontece há décadas! “Entre nosso corpo e nossa sexualidade”, escreve Marilena Chauí (2018, p. 113-14), “interpõe-se a fala do sexólogo, entre nosso trabalho e nossa obra, interpõe-se a fala do técnico, entre nós como trabalhadores e o patronato, interpõe-se o especialista das ‘relações humanas’, entre a mãe e a criança, interpõe-se a fala do pediatra e da nutricionista, entre nós e a natureza, a fala do ecologista, entre nós e nossa classe, a fala do sociólogo e do politólogo, entre nós e nossa alma, a fala do psicólogo (muitas vezes para negar que tenhamos alma, isto é, consciência). E entre nós e nossos alunos, a fala do pedagogo”.

Mas há mais: Vejamos o que diz a sueca Inger Enkvist (2020, p. 275-6): “[] os pedagogos não funcionam de maneira científica nem democrática, mas como uma seita com uma fé especial que não questiona as bases de sua crença. Autoproclamados especialistas do ensino, apresentam-se como uma instância superior aos demais professores que “apenas” ensinam suas matérias. A primeira fase foi a doutrinação dos professores para justificar a presença dos pedagogos. Como não são responsáveis por ensino algum, sua presença constitui um tipo de parasitismo nos sistemas educacionais []. Como é típico das seitas, desprezam os demais. Os pedagogos são os bons, os que sabem a verdade, e introduziram uma nova linguagem para os iniciados. Além de uma crença e de uma linguagem própria, uma seita também precisa de dinheiro, e nesse caso os membros do grupo souberam instalar-se dentro das estruturas do serviço público, e viver do dinheiro do contribuinte”.

Muitos pedagogos, sem que nunca tenham lecionado, num total desrespeito ao Artigo 67 da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), tornam-se diretores escolares… perdão: tornam-se gestores escolares – e o gestor, conforme o que aponta Marilena Chauí, é análogo ao gângster dentro do neoliberalismo. Isso é tão absurdo quanto colocar na direção de um hospital um não-médico ou um médico que nunca tenha clinicado. Também há os que se tornam supervisores ou inspetores, que são capitães do mato.

Precisamos nos insurgir contra a pedagogia moderna: devemos fazer debates públicos fundamentados na verdade, e a verdade é que não funcionam as tais “metodologias ativas”: são um fracasso vergonhoso, e isso tem de ser exposto nos simpósios e nas outras comunicações realizadas em eventos acadêmicos, mesmo que isso acabe ferindo a vaidade dos doutores das arábias que veneram o Lattes.

Outro passo importante é impugnar os editais que digam que o professor tem de ser avaliado em função do uso das tais “metodologias” ativas. Por lei, cada um de nós, professores, tem direito a diferentes concepções pedagógicas, e a que eu adotei é tradicional. Não posso ser obrigado a distorcer anos de conhecimento acadêmico só porque os próprios acadêmicos querem selecionar pessoas que compactuem com as tolices deles.

Em agosto de 2024, fiquei em segundo lugar na prova objetiva do concurso de um Instituto Federal, localizado no Sudeste. Depois descobri que fui desclassificado na prova didática: tirei 48 numa escala de 0 a 100. A menos que a banca aceite o meu recurso, todo o tempo e todo o dinheiro investido em viagens e hospedagens terão sido em vão. Não posso afirmar que o fato de eu ter inserido no cabeçalho do plano de aula os excertos de Saviani e o conceito de Bakhtin para fundamentar as oposições que naquele documento eu faço às “metodologias ativas” me prejudicou, até porque o barema não apresentava o uso de tais “metodologias” como critério de avaliação da prova didática, mas a subjetividade dos avaliadores, a julgar pelo currículo deles, está eivada de tolices pedagógicas do jaez das “atividades”.

Curiosamente, apesar de todo o “progressismo”, a banca exigira conhecimentos que estão na gramática de Evanildo Bechara, um autor que, para muitos, é extremamente conservador. As questões objetivas também tinham exigido conhecimentos que só poderiam ser acumulados por um professor cujo perfil fosse acadêmico, embora um bom professor pudesse fracassar naquela etapa: caíram questões sobre o pensamento de autores cujos livros não foram mencionados no edital, que nem sequer continha bibliografia.

Permanece a minha sugestão: temos de nos insurgir contra as falácias pedagógicas. Isso quer dizer que temos de fazer um movimento de baixo para cima, de modo que seja atingido o meio acadêmico: é ele que dá o aval “científico” a toda a barbárie que nós, professores, sofremos, e que é até mais perigosa do que a do tempo da ditadura militar brasileira ou do que a da “Revolução” Cultural da China. Esta última perseguiu abertamente professores e outros intelectuais.

Não devemos sentir medo: na democracia, é salutar a contestação; na ciência, só pode haver verdade quando questionamos os pressupostos e os métodos, ou seja: o conhecimento só é confiável quando a epistemologia e o paradigma são contestados e testados. A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida.

*Márcio Alessandro de Oliveira é mestre em Estudos Literários pela UERJ e professor da rede estadual do Espírito Santo.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: Estética da Criação Verbal. Tradução feita a partir do francês por Maria Emsantina Galvão G. Pereira. 2ª ed. SP: Martins Fontes, 1997.

CARNEIRO, Moaci Alves. LDB fácil: leitura crítico-compreensiva, artigo a artigo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.

CHAUÍ, Marilena. O que é ser educador hoje? Da arte à ciência: a morte do educador. In: Em defesa da educação pública, gratuita e democrática. Organização de Homero Santiago. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. ENKVIST, Inger. O complexo ofício de ser professor. Tradução de Ricardo Harada. 1ª ed. Campinas, SP: Editora Kírion, 2021.

______. A boa e a má educação: exemplos internacionais” (tradução de Felipe Denardi. São Paulo: Kírion, 2020.

ORWEL, George. 1984. Trad. Alexandre Hubner e Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

Parece revolução, mas é só neoliberalismo: o professor universitário em meio às cruzadas autoritárias da direita e da esquerda. In: Piauí (Folha de São Paulo). Jan. 2021. Disponível em: <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/parece-revolucao-mas-e-soneoliberalismo/>.

SANTOS, Ana Lúcia Cardoso; GRUMBACH, Gilda Maria. Didática para Licenciatura: Subsídios para a Prática de Ensino (volumes 1º e 2º). Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2012.

SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. Campinas, SP: Autores Associados, 2021.

SOUZA, Jessé. A elite do atraso. Rio de Janeiro: Leya, 2017.

______. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. 2ª ed. Rio de Janeiro: Leya, 2018.

 

A Rota da Seda

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Na sociedade contemporânea encontramos grandes confrontos em curso na comunidade internacional, além dos conflitos militares que movimentam variadas regiões, gerando destruições generalizadas, o aumento das mortes e devastação na infraestrutura, além disso, encontramos o crescimento dos confrontos comerciais, retaliações, protecionismos e a busca constante pela liderança global, onde destacamos os embates entre os Estados Unidos e a China.

Neste cenário marcado por grandes confrontos estratégicos, destacamos as movimentações geopolíticas em curso na economia mundial. Desde 2013, o governo chinês, liderado por Xi Jinping propôs a construção da Nova Rota da Seda com grandes investimentos para desenvolver novas rotas comerciais terrestres e marítimas ao redor do mundo, impulsionando as estruturas produtivas globais, gerando novos empregos e fomentando todas as regiões do mundo.

Desde o lançamento, a Nova Rota da Seda expandiu-se para mais de 147 países com adesão de nações africanas, da Oceania e da América Latina, consumindo mais de US$ 2 trilhões de projetos de investimentos produtivos, movimentando variados setores econômicos e políticos, alavancando ferrovias, portos, estradas, aeroportos, oleodutos, gasodutos, parques industriais, entre outros investimentos, gerando novos modelos de negócios, renovando horizontes, abrindo novas oportunidades de crescimento econômico e produtivo.

Dentre as nações da América Latina encontramos ao menos 20 nações que aderiram a iniciativa chinesa, se integrando aos investimentos produtivos da Rota da Seda, levando os países participantes e o governo chinês a pressionarem para a entrada do Brasil nesta iniciativa ambiciosa, garantindo grandes vantagens políticas, melhoras sociais substanciais e retornos econômicos estratégicos.

A Nova Rota da Seda, iniciativa chinesa marcada por grandes investimentos produtivos, busca estimular o crescimento do comércio, o aumento da cooperação econômica e o desenvolvimento de infraestrutura nos países ao longo das rotas. Apesar das críticas sobre as dívidas geradas, seus defensores argumentam que se trata de uma ferramenta de desenvolvimento econômico.

Ao analisar o caso brasileiro, percebemos visões diferentes, alguns diplomatas acreditam que a entrada do Brasil na Nova Rota da Seda seria um grande ganho político para a China e auxiliaria na reestruturação da infraestrutura nacional, incluindo projetos de ferrovias e outros setores estratégicos para garantir ganhos de produtividade e dinamismo para competir numa economia globalizada. No entanto, há divergências entre diplomatas brasileiros sobre a adesão, alguns acreditam que o Brasil já recebe investimentos chineses significativos, reduzindo nossa autonomia econômica e aumentando a desnacionalização dos setores produtivos.

Existem pesquisas do Banco Mundial que mostram que os investimentos da Nova Rota da Seda têm diminuído os custos do comércio mundial, garantindo o incremento das trocas internacionais e garantindo o crescimento das rotas comerciais, as nações que conseguiram se preparar anteriormente, com fortes investimentos em estruturas produtivas, aumento dos dispêndios em educação, ciência e tecnologia, podem garantir grandes retornos no crescimento do comércio global.

No caso do Brasil, a entrada na Nova Rota da Seda deve ser vista como uma decisão estratégica, aderir pode trazer vantagens desde que tenhamos maiores ganhos econômicos e produtivos, além de ambicionar a transferência de tecnologias, novos investimentos estratégicos que reduzam os custos nacionais, contribuindo para atrair novos parceiros comerciais, alavancando o desenvolvimento econômico e reduzindo as gritantes desigualdades sociais que nos caracterizam historicamente.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

 

Por que as economias crescem? por Bernardo Guimarães.

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Direitos de propriedade afetam desenvolvimento econômico. E liberdade política? Não temos certeza

Bernardo Guimarães, Doutor em economia por Yale, foi professor da London School of Economics (2004-2010) e é professor titular da FGV EESP

Folha de São Paulo – 23/10/2024

Por que uns países são tão mais ricos que outros? Por que em algumas décadas algumas economias crescem muito enquanto outras ficam estagnadas?

Em 1993, Douglass North ganhou o Prêmio Nobel pelos seus trabalhos com dados históricos que apontavam para o papel das instituições políticas no desenvolvimento econômico. Em resumo, ele concluía que leis e instituições que garantiam os direitos de propriedade e o cumprimento de contratos, protegendo os investidores do governo e de outras pessoas, estimulavam investimentos e inovações, e o crescimento econômico aparecia como consequência.

Na semana passada, Acemoglu, Johnson e Robinson ganharam o Prêmio Nobel por seus trabalhos sobre instituições, aprofundando e expandindo os achados de North. Por exemplo, em um artigo publicado em 2005, Acemoglu e Johnson usaram análise estatística e dados históricos para concluir que instituições que protegem pessoas da expropriação por governos são mais importantes que instituições que permitem contratos entre as pessoas.

Os vários trabalhos nessa área levaram os autores a uma visão sobre os caminhos que países devem trilhar para a prosperidade. Essa visão foi trazida para o público geral no livro “Porque as Nações Fracassam”, de Acemoglu e Robinson, publicado em 2012. O livro enfatiza a importância de instituições inclusivas, que promoveriam inovação, prosperidade para muitos e liberdades políticas.

Poucos dias depois do anúncio do Prêmio Nobel, saiu a notícia de que o crescimento da economia chinesa poderia ficar abaixo de 5% no ano de 2024. Analistas tratam essa notícia com um tom negativo. Com exceção de 2020 (Covid) e 2022, 2024 deve trazer a menor taxa de crescimento da economia do país desde os anos 1990.

Desde meados do século passado, vários países asiáticos tiveram enorme crescimento econômico. Coreia do Sul, Taiwan e Singapura são exemplos usuais, juntamente com a China, cuja renda por habitante era parecida com a da Etiópia em 1980 e hoje já é bem maior que a do Brasil.

Acemoglu e Robinson argumentam no livro que o crescimento chinês não deve ser sustentável no longo prazo. O sistema político chinês concentra o poder nas mãos de uma pequena elite política, os líderes do Partido Comunista, e isso deve reduzir a possibilidade de inovações e crescimento de longo prazo.

Desde 2012, quando o livro de Acemoglu e Robinson foi publicado, a economia da China quase dobrou de tamanho. A economia brasileira, por outro lado, mal saiu do lugar –neste ano vamos comemorar o crescimento de 3%. Pode ser que eles estejam certos, mas esse longo prazo está demorando para chegar.

Como em geral acontece, algumas prescrições do livro são mais bem ancoradas na evidência que outras. Faz sentido, pois os autores devem mostrar ao mundo suas visões e conclusões. Mas se há bastante evidência ligando proteção de direitos de propriedade ao desenvolvimento econômico, temos menos segurança sobre o efeito de liberdade política no crescimento do PIB.

 

Raízes da letargia neoliberal nas escolas, por Ednei de Genaro.

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 Sob o mito de “eficiência”, avaliações individuais, feedbacks e competição arruinam a saúde mental de professores. Porém, esse sistema é naturalizado e gera autoculpa. O Ensino deve matar esse zumbi gerencial que visa impor o realismo da precarização

Ednei de Genaro – OUTRAS MÍDIAS – 17/10/2024

Em 2009, Mark Fisher publicou um livro seminal — Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo — para a compreensão e atualização, no contexto do século XXI, da “lógica cultural do capitalismo tardio”, tal como Fredric Jameson preconizou, em 1991, em Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio.

Mark Fisher foi professor em instituições públicas de ensino na Inglaterra, lecionando em universidades e em programas de “educação continuada” (futher education), oferecidos a qualquer pessoa maior de 16 anos que deseje realizar cursos diversos de aperfeiçoamento ou obtenção de novas habilidades de trabalho; ou seja, no mais das vezes, um programa de especialização e de reciclagem da classe trabalhadora do país. Em sua referida obra, tais experiências enquanto profissional da educação mobilizam exemplos diversos e emblemáticos da cultura contemporânea.

Levando em conta isso, buscarei aqui recuperar as fecundidades e sofisticações das respostas de Mark Fisher sobre o estado psicossocial realista capitalista, tendo em vista, bem particularmente, as questões e problemas referentes à escola pública, onde parece ser mais fácil imaginar o fim das escolas públicas do que o fim do gerencialismo de autoculpabilização dentro delas.

Sobre os processos diversos de neoliberalização e mercantilização do ensino, quem ainda procura pensar nisso? De outro modo, como podemos nos desembrutecer acerca dessa “coisa inominável”, sem nenhuma lei transcendente, sem limites, infinitamente plástica, que é o capitalismo? Perguntas em tom retórico, em primeira instância, para lembrar a situação atual de desengajamento e a deflação depressiva decorrentes da normalização das crises — tendo em Mark Fisher a obra literária distópica Filhos da Esperança, de P. D. James ([1992] 2013), e a adaptação cinematográfica homônima, de Alfonso Cuarón, como icônicas da ascensão do ultra-autoritarismo e ultracapitalismo, de destruição massiva dos espaços públicos, algo já presente entre nós, mas com consumação em um futuro próximo.

Uma situação, enfim, que se metamorfoseia sobretudo em posicionamentos de mundo hedonistas niilistas, escreve Mark Fisher, de modo que o aprendizado de convicções políticas e atitudes é substituído pelo desengajamento e pela observação voyeurística do mundo (Fisher, 2020, p. 13). O realismo capitalista é “[…] análogo à perspectiva deflacionária de um depressivo, que acredita que qualquer estado positivo, qualquer esperança, é uma perigosa ilusão” (Idem, p. 14).

Ao absorver toda contraposição, ao usurpar o tempo livre e ao anular qualquer atitude alternativa e independente, o capitalismo contemporâneo funciona “sem um exterior”. Do rock ao hip hop, passando pelo atual ideal gangster — para citar as exemplificações culturais marcantes de Fisher — a busca é de autenticidade e… conformação à guerra hobbesiana de todos contra todos, condicionando a produção da cultura, da educação e do trabalho. “Cair na real” significa hoje a construção de competências e friezas para o distanciamento cínico, longe assim do crítico e destinado à práxis. A ironia anticapitalista, presente agora até em filmes da Disney, “[…] mais alimenta do que ameaça o realismo capitalista” (Idem, p. 25-6).

É precisamente nestas posturas que as formas ideológicas capitalistas se reavivam. Sobre isso, segue um trecho da obra Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia, de Slavoj Žižek (1992), conforme citado por Mark Fisher: “O distanciamento cínico é só uma maneira […] de fechar os olhos para o poder estrutural da fantasia ideológica: mesmo quando não levamos as coisas a sério, mesmo quando mantemos um distanciamento irônico, nós as continuamos fazendo” (Žižek apud Fisher, 2020, p. 26).

A fantasia ideológica cínica é complementada pela inviabilidade do desempenho de uma crítica moral do capitalismo, tornada inócua, uma vez que “pobreza, fome e guerra podem ser apresentadas como aspectos incontornáveis da realidade” (Fisher, 2020, p. 35), somente reforçam o realismo capitalista, de modo que a reativação da crítica/práxis, propõe Mark Fisher, exige uma inflexão, explicitando a burocracia, que “em vez desaparecer, mudou sua forma” (p. 38) e a resultante disso, o problema de saúde mental, isto é, “o caso paradigmático de como o capitalismo realista opera” (Idem, p. 36-7), enquanto as duas aporias, por excelência, do capitalismo contemporâneo, que ensejam transtornos e aborrecimentos na população em geral, e nos expedientes das escolas públicas, de maneira muito representativa.

A abolição do otium e a transformação da escola em espaços constituintes e integrados ao negotium é um problema enraizado na própria gênese das escolas públicas na modernidade. Fato que assinalou o paradoxo de sua origem no mesmo ato de destruição do seu sentido autêntico, ou seja, da escola (scholé) como o lugar do tempo livre, de retiro, do repouso; em outras palavras, do tempo disponível à ocupação intelectual, aos estudos científicos diversos, à filosofia e à política. A dimensão do negotium em ambiente escolar se transfigurou e agravou com o modelo neoliberal introjetado no nível psicossocial das vivências e relações públicas.

Segue a resposta de Mark Fisher ao mito da descentralização como fim da burocracia, prescrevendo a própria definição do modelo neoliberal de gestão escolar: “O fato que medidas burocráticas tenham se intensificado sob governos neoliberais que se apresentam como antiburocrático e antiestalinista pode, a princípio, parecer um mistério. No entanto, viu-se, na prática, proliferar uma nova forma de burocracia — uma burocracia de ‘objetivos’, dos ‘resultados esperados’, das ‘declarações de princípio’ — ao mesmo tempo em que ganha força a retórica neoliberal sobre o fim do comando vertical e centralizado. Pode parecer que essa volta da burocracia é algo assim como um retorno do reprimido, ironicamente reemergindo no coração de um sistema que jurou destruí-lo. Mas seu triunfo no neoliberalismo é bem mais que um atavismo ou uma anomalia” (Fisher, 2020, p. 72).

Nem atavismo e nem anomalia sociais, mas, sim, uma ordem constituída: o “stalinismo de mercado”. De forma sutil, a burocracia reemerge com novas técnicas e se intensifica. “A avaliação periódica dá lugar a uma avaliação permanente e onipresente, que não pode deixar de gerar uma ansiedade perpétua” (Idem, p. 87), ao impor “[…] à força a responsabilidade ética individual que a estrutura empresarial desvia” (Idem, p. 116).

Assim, a metabolização simbólica das classes sociais se manifesta: a responsabilidade recai em relação às tarefas e processos dos indivíduos, a despeito da estrutura social ou da instituição, alterando, pois, a própria lógica de visibilidade e estruturação dos papéis sociais, com base em dois clichês dominantes: culpar a estrutura é apenas desculpa invocada pelos fracos — o “choro dos fracos”; cada indivíduo deve dar o máximo de si para se tornar aquilo que aspira a si — o “voluntarismo mágico”, sendo estes clichês, como escreve Fisher, “[…] a ideologia dominante e a religião não oficial da sociedade capitalista contemporânea […]” (Idem, p. 140), que esculpem a mentalidade capitalista.

Os mecanismos individuais de avaliação e autoculpabilização são a chave para se gerir, conservar e desresponsabilizar a ordem institucional, mantendo seus vícios e defeitos, inclusive nos “espaços de lazer e tempo livre”, as escolas. Tudo se conserva, engolindo todos na epidemia da cultura de auditorias internas e externas, por ranqueamentos, classificações e titulações infinitas de produtividade, alimentados por dados, informações e processos compostos e insertado nos sistemas enquanto o âmago do trabalho educacional. O delírio psicológico burocrático é tanto uma violência à saúde mental dos profissionais de educação quanto a destruição de espaços coletivos e deliberativos, como colegiados de instituições de ensino, que se transformam em reuniões de feedbacks, e de espaços formativos, que se tornam treinamentos.

O gerencialismo de autoculpabilização é a perda do sentido de gerência coletiva. A descentralização e a competição entre os pares são meios para o controle e a despotencialização do coletivo subordinado. A precarização do educador, por meio de contratos temporários e sobrecarga de trabalho, arremata a condição de informalidade causal e autoritarismo silencioso que pairam sobre as cabeças dos trabalhadores.

Em resumo, uma trapaça. “As metas rapidamente deixam de ser um meio para avaliar e tornam-se a finalidade em si” (Idem, p. 77), a fim de que continuamente se repita o universo quantitativo de “valorização dos símbolos dos resultados, em detrimento do resultado efetivo” (p. 76). Lógicas falaciosas que coadunam com o espírito do capitalismo financeiro e de influência em redes sociais, pois o valor gerado no mercado de ações e de monetizações depende menos do que um perfil ou uma empresa “realmente faz” e muito mais das percepções, visualizações e expectativas performáticas futuras (Idem, p. 77).

A ilusão de muitos que entram nas funções de gerência, com grandes esperanças, é precisamente de que eles, os indivíduos, podem mudar as coisas, que não vão repetir o que seus gerentes fizeram, que as coisas serão diferentes desta vez. Mas basta prestar atenção a qualquer um que tenha sido promovido a um cargo gerencial para perceber que não demora muito tempo para que a petrificação cinza do poder comece a engoli-lo. É aqui que a estrutura é palpável: pode-se praticamente vê-la absorvendo e tomando conta das pessoas, ouvir os juízos moribundos/mortificantes da estrutura sendo vocalizados através delas. (Idem, p. 115-6).

A incerteza ontológica e a lógica falaciosa do gerencialismo de autoculpabilização são estratégias de adaptação e ruína da saúde mental dos educadores. Em termos deleuzianos e kafkianos, isto é, nas condições atuais de poder cibernético e distribuído das sociedades de controle, as aflições, os problemas e dilemas coletivos, tratados como assuntos individuais, são submetidos a uma “postergação indefinida”: o processo se prolonga, sem fim; as aflições, problemas e dilemas nunca se resolvem; pelo contrário, são resguardos por “policiamentos internos” e atarefamentos exaustivos, que agora se levam para casa.

Uma experiência de poder dominante que liquida a ideia de ponto central de comando. Um sistema que se quer sem “operadora central”, como previu Kafka (2005), em O processo. Em última instância, em caso de altercação sobre o poder e a responsabilidade, o procedimento geral é de denegação e anunciação de um “grande outro”: “o superior que cuida disso, desculpa”. No máximo, a responsabilidade recairá sobre “[…] os indivíduos patológicos, aqueles que ‘abusam do sistema’, e não o próprio sistema” (Idem, p. 116).

Ademais, escreve Mark Fisher, “os professores se encontram hoje sob a intolerável pressão de mediar a subjetividade pós-letrada do consumidor no capitalismo tardio e as demandas do regime disciplinar (passar nos exames e coisas do tipo)” (Idem, p. 49). Como se fossem um dos últimos representantes do poder panóptico, os professores, entre muros, carteiras e cadeiras, derivam seu público, composto por “desenraizados” e flexíveis, impacientes e dispersos, buliçosos pela ausência e pelo hedonismo permissivo dos pais, desde muito cedo ansiando em ser também como os seus célebres “empreendedores online” da cultura, vistos e comentados pelas redes sociais.

A “letargia hedônica” presente hoje nos jovens designa o ponto máximo de dissolução da cultura na economia cibernetizada, de controles automáticos sobre cognições e ambientes de trabalho/lazer. Em última instância, a programação massiva de modelos assincrônicos de educação a distância demarca o fim das instituições escolares.

Os sofrimentos e a paralisia psíquica dos professores são deliberadamente cultivados e tratados como “fatos naturais” e privados. As deteriorações da psique, da cultura, da educação e do trabalho têm obviamente razões para existir: permitir a submissão fatalista das pessoas. Ora, o descontentamento privatizado, a sorte de pelo menos ter um emprego e a aceitação de que as coisas vão piorar são propositados e explicam historicamente a destruição do “estado bem-estar social” a partir da ascensão do discurso neoliberal contra a classe trabalhadora.

Na Inglaterra, país de origem das primeiras experiências políticas neoliberais, uma das medidas inaugurais foi a abolição do leite nas escolas públicas, em 1971, no momento em que Margareth Thatcher era secretária de educação… Contudo, o neoliberalismo hoje não passa de um zumbi.

O neoliberalismo perdeu a iniciativa, e persiste inercialmente, desmorto, como um zumbi. Podemos ver agora que, embora o neoliberalismo fosse necessariamente “realista capitalista”, o realismo capitalista não precisa ser neoliberal. Para se salvar, o capitalismo poderia voltar a um modelo social-democrata ou a um autoritarismo do tipo que se vê no filme Filhos da esperança. Sem uma alternativa crível e coerente ao capitalismo, o realismo capitalista continuará a governar o inconsciente político-econômico. (Idem, p. 130).

De 2009 a 2024, foram os autoritarismos fascistas e neoreacionários que se desenvolveram no mundo todo, inclusive no Brasil, inclusive dentro das escolas públicas, com os projetos cívico-militares, entregando uma compleição moribunda às democracias e as faces mais violentas do zumbi neoliberal, ao escancarar a subordinação do Estado ao capital e ao manter monopólios e oligopólios como antimercados e espaços de articulação fascistas… Afinal, questiona Mark Fisher, como elaborar estratégias políticas para matar este zumbi? Como “[…] desenvolver alternativas às políticas existentes, mantê-las vivas e disponíveis até que o politicamente impossível se torne politicamente inevitável”? (p. 142).

Um novo anticapitalismo, “[…] não necessariamente ligado a velhas tradições e linguagens […]” (Idem, p. 130), é possível, antes de tudo, a partir da rejeição das estratégicas que não funcionam, por exemplo: estratégias horizontalistas, de ação direta sem ações indiretas, devem ser rejeitadas. “Só a esquerda horizontalista acredita na retórica da obsolescência do Estado” (Idem, p. 148), que, pensando bem, faz deleitar o capital com a sua popularidade e inocuidade, pois aparecem como “[…] ruídos carnavalescos para o realismo capitalista” (Idem, p. 27). Por sua vez, “no caso dos professores talvez a tática das greves devesse ser abandonada, porque prejudicam apenas estudantes e membros da comunidade” (Idem, p. 131-2).

Onde se empenhar, afinal? Segue um trecho da resposta de Mark Fisher: “Se o neoliberalismo conseguiu triunfar ao incorporar os desejos da classe trabalhadora pós-1968, uma nova esquerda poderia começar agindo sobre os desejos que o neoliberalismo gerou, mas que não foi capaz de satisfazer. Por exemplo, a esquerda deveria argumentar que pode entregar o que o neoliberalismo falhou em fazer: uma redução massiva da burocracia. O que se faz necessário é travar uma nova batalha em torno do trabalho e de seu controle; uma afirmação da autonomia do trabalhador (em oposição ao controle gerencial) juntamente com a rejeição de certos tipos de trabalho (com a auditoria excessiva que se tornou uma característica tão central do trabalho no pós-fordismo). Esta é uma luta que pode ser vencida — mas apenas por meio da composição de um novo sujeito político”.

Esse novo sujeito não surgirá, pois, sem um enfoque nos elementos estruturais e nas falhas que produzem os efeitos negativos do neoliberalismo, algo que sensibilizaria e mobilizaria novamente as populações para as pautas de esquerda, a fim de que estratégias parlamentares, no seio Estado, resultem em mudanças estruturais da situação. Não obstante, na atual conjuntura brasileira, na última década, tal sensibilização e mobilização foram bem-sucedidas pela coordenação de grupos, recursos e desejos para as pautas de (extrema) direita, a partir do aproveitamento massivo das comunidades online solipsistas — “redes interpassivas de mentes semelhantes que confirmam, ao invés de desafiar, os pressupostos e preconceitos de cada um” (Idem, p. 126).

Na “guerra cultural” que se tornou a política contemporânea, o futuro das escolas públicas — e das instituições de ensino, em geral — depende imensamente da mudança de estratégias e de novos ventos na política. No Brasil, a precarização do trabalho, o gerencialismo de autoculpabilização e o modelo cívico-militar, que silenciam e dessolam a saúde mental dos professores e alunos, são prioridades na luta política progressista nas escolas públicas.

Ednei de Genaro é professor do curso de educação na Universidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT), Campus Tangará da Serra.

Referências

Fisher, Mark. Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.

James, P. D. Filhos da esperança. São Paulo: Editora Aleph, 2023.

Jameson, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1997.

Kafka, Franz. O processo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

Žižek, Slavoj. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

 

Isenções, exceções e a erosão da base do imposto, por Cecília Machado.

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É possível reduzir nossas desigualdades removendo, não ampliando, as exceções na forma com tributamos a renda

Cecilia Machado, Economista-chefe do Banco BoCom BBM, é doutora em economia pela Universidade Columbia

Folha de São Paulo, 22/10/2024

Existem alguns bons motivos para que os trabalhadores de baixa renda paguem menos imposto que os demais. Um imposto sobre a renda gera distorções, por exemplo, desincentivos ao trabalho. Intuitivamente, é como se as pessoas recebessem um salário menor, já que uma parte do que é ganho não fica com elas. Considerando que os trabalhadores de baixa renda são mais sensíveis a essa perda, um regime de tributação progressiva —cuja alíquota cresce com a renda— desfaz parte dessa ineficiência, além de contribuir para redistribuir renda dos mais ricos para os mais pobres.

No Brasil, a progressividade do Imposto de Renda está presente em alíquotas que variam de 0% a 27,5%, com isenção para trabalhadores que ganham até dois salários mínimos. É nesse sentido que o aumento do limite de isenções até R$ 5.000 pode gerar mais progressividade. Mas ampliar a isenção também traz inúmeros outros desafios, o que apenas uma reformulação muito mais profunda na forma como tributamos a renda poderá endereçar.

Afinal, o que significa ganhar R$ 5.000 no Brasil? Por incrível que pareça, esse valor é a realidade quase absoluta do nosso mercado de trabalho. Cerca de 85% da população ocupada recebe salários de até R$ 5.000. Pouco menos de 70% recebem até dois salários mínimos. E metade da população ocupada recebe até R$ 1.600 (PnadC 2023). O aumento da isenção permite diferenciar os mais altos salários, mas também passa a tratar de forma igual trabalhadores que são muito diferentes, como os que recebem R$ 1.600 e R$ 5.000.

A expressiva erosão da base tributária em resposta ao aumento do limite de isenção reflete o desafio de redistribuir através de um imposto sobre a renda, considerando a enorme desigualdade que ainda persiste no mercado de trabalho e a possibilidade de evasão de tributos, seja em razão da existência de arranjos de trabalho informais, seja por causa da existência de regimes especiais que dão saída para aqueles que permanecem na base tributária.

Os exemplos são inúmeros. Trabalhadores denominados empreendedores pagam menos imposto através do MEI. Trabalhadores que viram pequenas empresas se beneficiam de regimes como o Simples. E os que são sócios ou acionistas ganham tratamento diferenciado com os lucros e dividendos.

O fato é que as pessoas respondem aos incentivos gerados pelas isenções e exceções, e o resultado é um sistema de tributação de renda com baixo poder arrecadatório e pouca capacidade redistributiva. No Brasil, a arrecadação com o imposto sobre a renda corresponde a apenas 2,4% do PIB e a cerca de 10% da arrecadação do governo federal. Em perspectiva comparada, destoamos de diversos países desenvolvidos que estabeleceram no imposto sobre a renda a principal fonte de receita do governo e o mais importante instrumento de redistribuição.

Há um amplo espaço para tornar o sistema tributário brasileiro mais justo, mas corrigir os problemas existentes através de uma nova rodada de exceção não parece ser a melhor forma de fazê-lo. As exceções não apenas reduzem o potencial redistributivo do imposto mas também geram distorções, modificando substancialmente a forma como os recursos são alocados na economia. Nesse sentido, é possível reduzir nossas desigualdades removendo —não ampliando— as exceções na forma com tributamos a renda.