Brutalidade policial pode pavimentar o caminho das milícias em SP, por Ricardo & Risso

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Exemplo vem do Rio de Janeiro, onde o descontrole das polícias faz parte de uma estratégia de lealdade da tropa para a manutenção do poder político

Carolina Ricardo, Diretora-executiva do Instituto Sou da Paz

Melina Risso, Diretora de pesquisa do Instituto Igarapé

Folha de São Paulo,11/12/2024.

A série de casos protagonizados por policiais militares de São Paulo que chocaram o país é resultado direto do modelo de gestão escolhido e implementado pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos). Os cidadãos paulistas precisam entender que estão seguindo o caminho da segurança pública do Rio de Janeiro, onde uma polícia sem controle ajudou a criar as milícias, fortaleceu o crime organizado e sustenta um tipo de política.

A atual orientação, que incentiva a brutalidade, resultou no maior índice de letalidade da PM de São Paulo desde 2020: 580 pessoas mortas em nove meses, segundo a própria Secretaria da Segurança Pública —um aumento de 55% ante o mesmo período de 2023. Com o aumento, o índice se equiparou ao dos anos em que a PM paulista não contava com as câmeras acopladas no uniforme, instrumento valioso para profissionalização da segurança e que comprovadamente previne excessos cometidos por policiais.

Nada do que vimos nos últimos episódios pode ser considerado como “exceções”. Ao contrário: dizem muito sobre a escolha deliberada de uma cultura de valorização da violência policial. O desmonte da estrutura de promoção nas polícias paulistas; a troca sem explicação de 34 coronéis na cúpula da PM; a criação de uma nova ouvidoria, sem independência; a orientação por ações midiáticas; e a falta de apoio psicológico aos policiais são evidências do aceno feito para a banda podre da polícia que venderá seu apoio político em troca da instalação da lógica do vale-tudo.

Vale até mesmo jogar um suspeito de uma ponte durante uma abordagem policial de rotina ou matar uma criança de 4 anos durante uma operação policial. Quando se valoriza esse tipo de ação, quem sofre são os bons policiais que entraram na corporação para defender a sociedade, com índices crescentes de suicídio e de vitimização.

Foram muitos os indicativos de que a mudança de rumo era urgente e necessária. Ao reconhecer seu erro em relação às corporais, o governador Tarcísio precisará provar que a mudança de posição não é mero oportunismo e sim convicção. Sem uma decisão política de que é importante controlar o uso da força e profissionalizar as polícias com medidas de tolerância zero para desvios, pouco adiantará colocar uma câmera no policial.

Os bons resultados que São Paulo vinha obtendo eram fruto de um conjunto amplo de medidas, como o investimento em armas menos letais, a criação de comissões de mitigação de risco, apoio psicológico a policiais, treinamento sistemático e, não menos importante, o envolvimento da cúpula da Segurança Pública no programa e na difusão de uma cultura de contenção ao uso desproporcional da força.

No Rio, o descontrole das polícias faz parte de uma estratégia de lealdade da tropa para a manutenção do poder político, seja por meio do expressivo voto da família policial ou do controle territorial que garante o curral eleitoral.

A economia política da violência criada pela lógica do vale-tudo se misturou ao crime organizado e hoje opera em sintonia, beneficiando uma determinada classe política em detrimento da segurança da sociedade.

Criar esse mecanismo é relativamente fácil, começa pela desestruturação das instituições. Ainda não sabemos como reverter o processo sem decretar a morte eleitoral dos que ousam fazê-lo.

Com ações movidas sob o espírito da aniquilação e da atenção midiática, como assistimos nas operações Escudo e Verão, São Paulo tem escolhido o modelo da vingança e da falta de controle das polícias. É assim que começa. Fica aqui o nosso alerta.

 

Ajuste fiscal

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Neste momento de grandes transformações estruturais da sociedade brasileira, marcadas pelo incremento da concorrência, alterações no mundo do trabalho, polarizações políticas, degradações ambientais, aumento dos conflitos militares, crescimento do protecionismo e incertezas econômicas, os agentes econômicos exigem, corretamente, um equilíbrio fiscal das contas públicas, com a definição de regras fiscais claras e consistentes para que os agentes produtivos tenham confiança nos rumos da economia nacional, estimulando novos investimentos produtivos, com geração de emprego e movimentando o ciclo econômico, evitando que o crescimento da economia sejam sustentável e consistente, não apenas um breve voo de galinha.

Ajuste fiscal é um tema complexo em todas as nações do mundo, gerando constrangimentos e conflitos na comunidade, suas repercussões impactam sobre toda a sociedade, diante disso, os agentes econômicos, sociais e políticos se organizam para evitar perdas monetárias e financeiras, buscando justificar as isenções e garantindo apoio dos legisladores e dos governos nacionais, mantendo seus privilégios e transferindo o ônus do equilíbrio fiscal para outros grupos econômicos e sociais

Diante da necessidade de controle dos gastos públicos e equilíbrio dos recursos, precisamos destacar a estrutura dos gastos governamentais, analisando em detalhes as origens dos recursos públicos que entram no caixa dos governos e para onde vão estes recursos, dando transparência dos recursos públicos, estudando a necessidade e a importância das políticas públicas, investigando as isenções fiscais e tributárias e as chamadas desonerações.

Neste cenário de ajustes das contas públicos, encontramos um verdadeiro conflito distributivo entre todos os setores da economia, onde grupos mais fortes e dotados de grande poder monetário e força política se utilizam de seus instrumentos para perpetuar seus ganhos financeiros e exige que os governos retirem recursos dos setores mais fragilizados da comunidade, se “esquecendo” dos bilhões acumulados historicamente em isenções fiscais e tributárias, além dos privilégios auferidos pelo sistema tributário nacional que não tributa lucros e dividendos, garantindo ganhos substanciais e aumentando as distorções sociais e, infelizmente, tributa fortemente uma classe média assalariada, endividada e incapaz de estimular o crescimento da economia.

O ajuste fiscal deve ser visto como algo imprescindível para todas as nações do mundo, ainda mais num momento marcado por grandes desequilíbrios financeiros globais e o incremento da competição entre empresas e governos nacionais para atraírem mais investimentos produtivos e a geração de emprego e a sobrevivência de seus trabalhadores de forma mais digna e decente. O ajuste fiscal deve priorizar os grupos mais privilegiados na sociedade, forçando os setores a pagarem seu quinhão do equilíbrio fiscal, reduzindo os penduricalhos salariais que garantem ganhos substanciais e sem tributação adequada, reduzindo os bilhões de isenções fiscais e tributárias de empresas e setores que, sistematicamente, cobram dos governos um ajuste nas contas públicas e não abrem mão de suas isenções tributárias e seus ganhos fáceis garantidos pelas taxas de juros elevadas praticadas pela Autoridade Monetária. Discutir ajuste fiscal e taxa de juros são assuntos urgente e imprescindível mas, receio que nossa sociedade não esteja capacitada para entrar a fundo nesta discussão, como disse Jean-Paul Sartre: “O inferno são os outros”…

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia do Setor Público, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor universitário.

O mito do desenvolvimento econômico – 50 anos depois, por Leda Paulani

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Introdução à nova edição do livro “O mito do desenvolvimento econômico”, de Celso Furtado

Leda Paulani – A Terra é Redonda – 03/12/2024

Se há um traço distintivo na obra de Celso Furtado é a ideia de que não havia restrições objetivas para que o Brasil se tornasse um país forte, soberano, senhor de seu destino, com economia e cultura próprias e com um lugar ao sol no comando dos rumos mundiais. Mas, nele, isso nunca foi reflexo de um imaginário nacional grandioso, mas vazio, que se escorava preguiçosamente na fantasia do “país do futuro”.

Ao contrário, sua percepção embasava-se na análise que fazia do processo socioeconômico que ocorria por aqui, análise fundamentada teoricamente, colocando sempre como pano de fundo a conexão da economia brasileira com o andamento da acumulação de capital em nível mundial. Celso Furtado era um economista político. Mas, mais que isso, era um militante, que nunca deixou de lutar para que essa esperança se objetivasse e foi nessa condição que ocupou importantes cargos em vários governos. Constituiu-se, por isso, num intérprete privilegiado das venturas e desventuras desta periferia.

Mas, para falar cinquenta anos depois deste pequeno grande livro chamado O mito do desenvolvimento econômico, quero trazer à baila uma questão um tanto rarefeita e, à primeira vista, distante, tanto do tema do livro como do propósito de escrever sobre ele meio século depois. Refiro-me à questão metodológica, ou metateórica, ou epistemológica, como queiram. Para mostrar em que medida este livro pode ser entendido como um esforço singular de interpretação, é preciso considerar não só que Celso Furtado era um economista político, e que teve possibilidades concretas, como homem de Estado, de apurar ainda mais suas análises.

É preciso levar em conta também o que significava para ele o processo de produção do conhecimento, sobretudo no campo das ciências sociais. O desvio não será muito grande, não só porque o próprio livro traz também um ensaio metodológico, o que indica a importância que Furtado conferia ao tema, como porque, dado seu objeto, a reflexão mesma em torno da questão metateórica nos trará rapidamente de volta ao mito do desenvolvimento econômico.

Apesar de haver muito dessa discussão em sua tríade autobiográfica, [1] valho-me aqui, para tanto, de uma entrevista que tive o privilégio de fazer com ele em 1997, e de onde se extraiu um depoimento que foi publicado na revista Economia Aplicada, [2] então do ipe-usp. [3] Naquela tarde, passada no Rio de Janeiro, em conversa com o grande economista, que impressionava por sua figura intensa e forte, mas igualmente serena, ouvi que ele tivera três ordens de influência: a do positivismo (ele tinha uma biblioteca positivista em casa, segundo informou), que lhe permitiu adotar uma sorte de “metafísica construtiva” que lhe trouxe confiança na ciência, a de Marx, através da sociologia do conhecimento de Karl Mannheim, que o projetou na história, e, por meio de Gilberto Freyre, a da sociologia americana, que o alertou para a importância da dimensão cultural e do relativismo que daí deriva.

Das três fontes de influência, disse que a primeira depois refutou, porque foi perdendo a confiança na ciência. O que permaneceu muito forte nele foi o “historicismo” de origem marxiana, ou seja, a percepção de que a história é o contexto que envolve tudo e que dá ao homem um marco de referência para pensar. Para ele, “quem não tem esse pensamento histórico, não vai muito longe. Isso é o que separa um pensador do economista moderno, que pretende ser um engenheiro social”. Na mesma linha, ele vai afirmar pouco mais à frente que “a economia vai se tornando uma ciência cada vez mais formal, que é exatamente a negação da ciência social”.

De toda forma, a combinação das três heranças resultou numa visão da produção do conhecimento sobre o mundo social que, além da inescapável consideração da história, associa ao necessário saber teórico e analítico também a imaginação. Para ele, a ciência se constrói, em grande parte, por aqueles que, confiantes em sua imaginação, são capazes de, empurrados pela intuição, ultrapassar determinados limites.

Para Celso Furtado, toda a teorização que se construiu, a partir da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), entre os anos 1950 e 1970, sobre a singularidade latino-americana foi resultado dessa postura: “Acredito que o passo a mais que nós demos na América Latina foi justamente este: imaginamos que éramos capazes de identificar os nossos problemas e de elaborar uma teoria para eles, ou seja, imaginamos que havia uma realidade latino-americana, uma realidade brasileira, e então o fundamental aí tinha que ser captado dessa realidade”. O mito do desenvolvimento econômico é igualmente resultado desse espírito.

Além da imaginação, há ainda outro elemento apontado por Celso Furtado como essencial. Segundo ele, é preciso ter compromisso com alguma coisa, ou seja, se o objeto cujo conhecimento se busca é a realidade social, o diletantismo não é suficiente para que a imagem de atividade nobre que a ciência carrega tenha efetividade: “A ciência social tem que responder às questões colocadas pela sociedade […], não podemos nos eximir de compromissos mais amplos, porque há muitas áreas que não merecem atenção da ciência, e são áreas vitais”. Assim, por mais que haja consciência dos limites ao desenvolvimento do conhecimento que lhe são intrínsecos, ou seja, criados pela própria sociedade, é preciso insistir na produção de uma ciência social pura, que não seja refém de interesses e clientelas específicos. Mas não é fácil, ele avisa.

Para o próprio Celso Furtado, no entanto, isso nunca foi um problema. O mito do desenvolvimento econômico, escrito num momento em que se entoavam loas ao dito “milagre econômico” – seis anos de crescimento a taxas que hoje diríamos “chinesas” –, não se deixou seduzir pelo clima de euforia (construído, ademais, sob as botas dos militares).

Considerado o momento de seu nascimento, não foi pouca coisa, em meio a tanto ufanismo, adentrar a cena um livro que insistia em que, para países periféricos como o Brasil, o desenvolvimento econômico, se entendido tão somente como a possibilidade de os países mais pobres alcançarem em algum momento o padrão de vida dos países centrais, era um mito; mais ainda, um mito que se configurava como “um dos pilares da doutrina que serve de cobertura à dominação dos povos dos países periféricos”. Seu compromisso com o país obrigou-o a dizer que era melhor ir devagar com o andor, escapar de objetivos abstratos, como o puro e simples “crescimento”, e realizar a tarefa básica de identificar as necessidades fundamentais do coletivo.

E com isso chegamos ao livro objeto deste prefácio, não sem antes enfatizar que ele jamais teria sido escrito se a pena que o redigiu tivesse por dono um economista convencional, que elabora seus modelos sem pudor, alheio à história e às carências de seu país, esquecendo-se, como disse Celso Furtado na citada entrevista, “que a ciência social se baseia na ideia de que o homem é, antes de tudo, um processo, não é um dado, uma coisa inerte”.

São quatro os ensaios que compõem o livro. O primeiro, o mais longo e então inédito, cuja quinta e última seção fornece o nome da obra, versa sobre as tendências estruturais do sistema capitalista na fase de predomínio das grandes empresas. A seu lado vão mais três peças: uma reflexão sobre desenvolvimento e dependência, que o próprio Furtado considera, na apresentação que faz, como o núcleo teórico dos demais, uma discussão sobre o modelo brasileiro de subdesenvolvimento e, por fim, o dito “ensaio metodológico”, no qual o autor, não por acaso, faz uma digressão sobre objetividade e ilusionismo em Economia.

O que conecta os quatro ensaios, para além de terem sido escritos entre 1972 e 1974 – período em que Celso Furtado atuou como professor visitante na American University (Estados Unidos) e na Universidade de Cambridge (Inglaterra) –, é o espírito militante do autor e sua inquebrantável disposição para analisar, alertar e apontar os descaminhos que ia tomando o desenvolvimento brasileiro, assentado em imensas desigualdades e delas dependente para ser “bem-sucedido”. Daí todo seu esforço de sustentar a análise na discussão sobre as tendências estruturais do sistema capitalista. Como pensar o desenvolvimento de um país periférico como o Brasil sem vinculá-lo ao plano internacional?

O objeto inicial de exame no ensaio que dá título ao livro é o estudo The Limits to Growth [Os Limites do crescimento], trabalho realizado por Donella H. Meadows, Dennis L. Meadows, Jorgen Randers e William W. Behrens em 1972, no Instituto de Tecnologia de Massachussetts (mit), nos Estados Unidos, para o Clube de Roma.

No estudo, que ficaria bastante famoso (traduzido para 30 idiomas, vendeu mais de 30 milhões de cópias) há aquilo que Furtado vai chamar de “profecia do colapso”. A tese central é que se o desenvolvimento econômico, nos moldes em que ia se dando nos países mais avançados, fosse universalizado, a pressão sobre os recursos não renováveis e a poluição do meio ambiente seriam de tal ordem que o sistema econômico mundial colapsaria.

Celso Furtado discorda da tese, não por divergir da questão em si, isto é, do problema causado pelo consumo exacerbado de recursos não renováveis e da deterioração ambiental que daí advém. Ao contrário, chega mesmo a dizer que “em nossa civilização, a criação de valor econômico provoca, na grande maioria dos casos, processos irreversíveis de degradação do mundo físico”, e que, portanto, é preciso reconhecer “o caráter predatório do processo de civilização, particularmente da variante desse processo engendrada pela revolução industrial”.

Sua discordância deriva do pressuposto da tese, a saber, que o desenvolvimento era um processo de tipo linear, pelo qual passariam todos os países, de modo que, em algum momento da história, todos teriam o mesmo tipo e o mesmo nível de desenvolvimento então em vigor nos países centrais. Para nosso autor, a tese, totalmente equivocada, se chocava com aquela que ele considerou, na entrevista, como “a contribuição mais importante que dei à teoria econômica”, qual seja, sua teoria do subdesenvolvimento, que ele desenvolvera uma década antes. Se o subdesenvolvimento era, não uma etapa, mas um tipo específico de desenvolvimento capitalista, a tese linear estava descartada por definição, o que tornava pouco realista a profecia do colapso.

Muito marcado pelo que ia se dando no Brasil, Celso Furtado concluíra que, dada a divisão internacional do trabalho, consagrada com a consolidação do capitalismo, passaram a existir estruturas socioeconômicas em que o produto e a produtividade do trabalho crescem por mero rearranjo dos recursos disponíveis, com progresso técnico insignificante, ou, pior ainda, por meio da dilapidação de reservas de recursos naturais não reprodutíveis. Assim, o novo excedente não se conectava com o processo de formação de capital, tendendo tais economias a se especializarem na exportação de produtos primários.

Todavia, para Celso Furtado, mais do que a tendência à produção de bens primários, sobretudo agrícolas, o que estabelecia a linha demarcatória entre desenvolvimento e subdesenvolvimento era a orientação dada à utilização do excedente engendrado pelo incremento de produtividade. Nessas economias, de fraca formação de capital, o excedente, transmutado em capacidade para importar, permanecia disponível para a aquisição de bens de consumo. Assim, era pelo lado da demanda de bens de consumo que tais países se inseriam mais profundamente na civilização industrial.

A industrialização por substituição de importações, quando surge, pelas mãos de subsidiárias de empresas dos países cêntricos, acaba então por “reforçar a tendência para a reprodução de padrões de consumo de sociedades de muito mais elevado nível de renda média”, resultando daí “a síndrome de tendência à concentração de renda, tão familiar a todos os que estudam a industrialização dos países subdesenvolvidos”.

A esse traço, que, no segundo ensaio do livro, Celso Furtado relaciona com aquilo que chama de “dependência cultural” (sobretudo das elites), ele associa as características tomadas pelo processo de acumulação naquele momento, a saber, o fato de serem as grandes empresas internacionais a dar-lhe o tom. Entre essas características, o domínio dos oligopólios (com os padrões de consumo se homogeneizando no plano internacional), operações em centros de decisão que escapam ao controle dos governos nacionais, e uma tendência à construção de um espaço unificado de atuação capitalista.

Nesse contexto, os países periféricos, em meio à industrialização por substituição de importações, verão um processo de agravamento de suas disparidades internas. Ao utilizarem tecnologia em geral já amortizada, as grandes empresas oligopólicas conseguiam superar o obstáculo produzido pela incipiente formação de capital, mas industrializavam a periferia perpetuando o atraso cifrado na desigualdade. Sem o dinamismo econômico do centro do sistema, caracterizado por permanente fluxo de novos produtos e elevação dos salários reais, o capitalismo periférico, em contraste, “engendra o mimetismo cultural e requer permanente concentração de renda”.

Em poucas palavras, para Celso Furtado, a evolução do sistema capitalista que ele presenciara caracterizava-se por “um processo de homogeneização e integração do centro, um distanciamento crescente entre o centro e a periferia e uma ampliação considerável do fosso que, na periferia, separa uma minoria privilegiada e as grandes massas da população”. Daí porque a profecia do colapso não tinha condições de vingar, já que o padrão de vida dos países do centro jamais se universalizaria na periferia do sistema.

O Brasil, com sua expressiva dimensão demográfica e um setor exportador altamente rentável, mostra Celso Furtado no terceiro ensaio do livro, tornara-se um caso de sucesso do processo de industrialização, mas não conseguira operar com as regras que prevalecem nas economias desenvolvidas, de modo que o sistema então criado foi espontaneamente beneficiando apenas uma minoria.

Feito esse rápido inventário das principais observações e análises de Celso Furtado, o que podemos dizer de O mito do desenvolvimento econômico cinquenta anos depois? É evidente que há um contexto datado na obra, por exemplo, quando nosso autor afirma que o privilégio de emitir o dólar “constitui prova irrefutável de que esse país exerce com exclusividade a tutela do conjunto do sistema capitalista”. Cinco décadas depois, ainda que o privilégio continue a existir, e tenha sido reforçado pela política de Paul Volcker, presidente do Federal Reserve, ao final dos anos 1970, a liderança americana tem estado sob permanente controvérsia, principalmente por conta da assombrosa evolução da China.

Da mesma maneira, considerada a forma como Celso Furtado faz sua análise, fica implícito que ele considerava ao menos a industrialização, ainda que não a superação do atraso, como algo que tinha se consolidado no Brasil, o que, sabemos hoje, não é verdade, dado o evidente processo de desindustrialização precoce sofrido pelo país.

Isso posto, porém, os acertos de Celso Furtado são de espantar. Nem é preciso considerar sua preocupação com o permanente desgaste dos recursos naturais, a inevitável poluição e o uso frequente de “vantagens comparativas predatórias”, sobretudo na periferia do sistema, que atravessa todo o livro, evidência máxima da correta sintonia em que operava a economia política furtadiana.

O que parece aqui mais importante mencionar é sua correta percepção quanto às tendências unificadoras do sistema capitalista. Note-se que estávamos em 1974, ainda bem longe, portanto, da queda do muro de Berlim e de se começar a falar em globalização, e mesmo assim ele afirma que “as tendências a uma crescente unificação do sistema capitalista aparecem agora com muito maior clareza do que era o caso na metade do decênio de 1960”.

Associada a isso, também a percepção precisa de que ia se formando ao longo do globo uma espécie de grande e única reserva de mão de obra à disposição do capital internacional, haja vista a facilidade com que as grandes empresas podiam evitar aumentos de salário, principalmente na periferia, deslocando os investimentos para áreas com condições mais favoráveis.

Contudo, o que é de fato mais assombroso é o acerto de seus prognósticos, feitos há cinquenta anos, quanto ao destino da modernização em curso no Brasil. Desde então até hoje, com um e outro alívio trazido por políticas sociais de alto impacto implantadas por governos populares, o atraso só fez transbordar. Esse esforço singular de interpretação não teria sido possível sem a compreensão que tinha Celso Furtado da verdadeira constituição do processo de produção de conhecimento do social, aliando à teoria e à percepção do caráter histórico dos fenômenos sob análise também a imaginação e o compromisso com a coletividade.

Na já citada entrevista, diz Celso Furtado: “Minha vida foi simultaneamente um êxito e uma frustração: um êxito pelo fato de que eu acreditei na industrialização, na modernização do Brasil, e isso se realizou; e uma frustração porque eu talvez não tenha percebido com suficiente clareza as resistências que existiam à consolidação mais firme desse processo, ou seja, que, a despeito da industrialização, o atraso social ia se acumulando”.

Não é preciso dizer mais, penso, sobre a importância de se voltar a ler hoje O mito do desenvolvimento econômico, reeditado boa hora.

*Leda Maria Paulani é professora titular sênior da FEA-USP. Autora, entre outros livros, de Modernidade e discurso econômico (Boitempo)

 

Individualismo

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Vivemos numa sociedade marcadamente individualista, o modelo econômico estimula a concorrência, os valores que comandam a sociedade capitalista internacional estão centrados nos valores do imediatismo, queremos mais e mais…. e não estamos nos atentando com as destruições estruturais que ameaçam os seres humanos e a vida em sociedade.

Neste mundo, marcado pelo consumo e pela acumulação, percebemos a degradação crescente do meio ambiente, a temperatura do planeta aumenta de forma acelerada, o clima está vivendo grandes alterações que impacta em todas as regiões do globo, nações dotadas de grandes vantagens comparativas na agricultura e da produção agrícola e mineral estão passando por mudanças extremas, o futuro está sendo marcado por grandes incertezas e grandes instabilidades.

A concorrência é sempre salutar desde que os agentes econômicos, sociais e políticos estejam concorrendo com todas as mesmas “armas”, desta forma podemos acreditar que os melhores tendem a ganhar, mas o que percebemos é uma história diferente, o discurso do mérito está difundido na sociedade, mesmo sabendo que vivemos numa sociedade altamente desigual, marcada pela exploração, pela escravização e pela corrupção que crassa parte substancial da sociedade.

Nesta mesma sociedade, a busca pelo prazer cresce de forma acelerada, os esforços cotidianos que anteriormente passavam pelos estudos e pelas reflexões teóricas, cursos superiores e qualificações constantes estão sendo substituídos por horas e mais horas na academia, nas clínicas estéticas , conversas com personal trainers e nas redes sociais, buscando mais e mais seguidores e uma curtida em uma foto extraordinária, os profissionais que antes eram referência para os jovens e para as crianças estão sendo alteradas por uma carreira de youtubers, influencers, etc… quais as contribuições para o progresso da sociedade mundial estas áreas tendem a trazer para formação humana?

Zygmunt Baumam alertou a sociedade sobre o mundo líquido, os amores líquidos, os medos líquidos, o mundo digital nos trazem vantagens e desvantagens elevadas, mas  precisamos, antes de mais nada, que os seres humanos necessitem agendar uma viagem para os seus sentimentos mais íntimos e pessoais, sem esta viagem individual estaremos construindo uma sociedade cada vez mais narcisista, imaturo e incapaz de compreender os grandes e verdadeiros desafios da sociedade contemporânea.

A psicanálise e seus predicados, por Vera Iaconelli

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Psicanálise evangélica, positiva, próspera e demais bizarrices revelam oportunismo, má-fé e ignorância sobre a teoria

Vera Iaconelli, Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “Manifesto Antimaternalista” e “Felicidade Ordinária”. É doutora em psicologia pela USP.

Folha de São Paulo, 04/12/2024

A psicanálise é um campo centenário de teorização, de pesquisa e de tratamento que não se encaixa nos moldes do ensino universitário. Uma vez que a análise do analista é seu esteio, as supervisões e a escrita, seu testemunho e não há certificado, a academia e o Estado não têm nada a dizer sobre suas formas próprias de transmissão.

A psicanálise tem sido atacada desde o dia um por propor escutar os pacientes cujos sintomas os psiquiatras eram incapazes de curar e, ao fazê-lo, reverter quadros incapacitantes. Não se tratava, obviamente, de uma escuta comum, dessas que temos com médico, padre, amigo ou professor. Freud, com sólida formação como neurologista, sabia de experiência própria como as falas de um doutor não surtiam efeito nesses casos.

Ele passou a escutar o sofrimento dos pacientes, submetidos tanto a formas de opressão e injustiça do campo social quanto às suas altas exigências inconscientes. Logo ficou claro que uma psicanálise que não considerasse o reconhecimento da alteridade como um valor absoluto, e que não defendesse a diversidade humana, não teria razão de existir.

Há mais de 80 anos, Lacan já denunciava que medicina, linguística, psicologia estão entre as áreas afins à psicanálise, mas não devem ser confundidas com ela.

E seguimos, dentro dessa tradição, escutando como os sujeitos se estruturam nos ambientes nos quais foram formados, como lidam com os acontecimentos que se apresentam e, principalmente, como encaram o fato estrutural de que somos todos castrados, limitados.

A psicanálise se debruça sobre inúmeros campos de fenômenos (alcoolismo, desemprego, parentalidade, suicídio…) sem que arrede o pé de ser o exercício da escuta de cada sujeito único diante desses fenômenos. Isso quer dizer que, a rigor, os estudos da psicanálise sobre o suicídio, sobre o alcoolismo ou sobre o desemprego se referem à forma como estudamos esses fenômenos e não a qualquer predicado da psicanálise, cuja única qualidade é escutar o inconsciente.

Se o leigo pedir uma dica de como separar o joio do trigo na oferta obscena de psicanalistas que vemos hoje nas redes, diria que qualquer um que apresente uma psicanálise com adjetivos e/ou certificada está realizando uma impostura. Psicanálise evangélica, positiva, próspera, enfim, essas bizarrices oportunistas só revelam ignorância sobre a teoria, oportunismo e má-fé.

Uma psicanálise do Evangelho, por exemplo, deveria ser aquela que estuda o que Freud demonstrou em “O futuro de uma ilusão”: o caráter alienante das crenças baseadas em dogmas. A ideia de positividade, outro exemplo, vai na contramão de toda a história do pensamento psicanalítico, que se baseia no reconhecimento do negativo como constituinte da subjetividade.

De todas as perseguições e ameaças que a psicanálise sofre desde sua criação – nazismo, fascismo, racismo, misoginia–, as investidas atuais têm sido as que mais arriscam descaracterizá-la.

Seguindo os passos de Freud e dos pós-freudianos, sabemos que a resistência a escutar o inconsciente é um fato estrutural, por isso não existe caminho suave para a formação do psicanalista. Mas as formas nas quais essa resistência se apresenta em cada época variam e devem ser continuamente mapeadas e combatidas.

 

Crescimento Econômico

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Apesar das dificuldades constantes das questões fiscais, a economia brasileira apresentou um crescimento de 0,9% no último trimestre, gerando sentimentos interessantes, uns grupos ressaltam o crescimento econômico do período de forma positiva, destacando a resiliência na estrutura produtiva nacional mesmo num ambiente marcado por grandes instabilidades e inseguranças.

De outro lado, percebemos grupos econômicos e políticos que acreditam que o crescimento econômico está diminuindo, perdendo tração, destacando a fragilização fiscal e que as perspectivas não são muito positivas, apostando que a economia nacional chegou no seu limite máximo e, se continuar crescendo, vai produzir impactos inflacionários que tendem a aparecer com maior força, levando o Banco Central a intensificar o incremento nas taxas de juros, reduzindo os investimentos produtivos, aumentando o desemprego e limitando a renda agregada, como força de reduzir os impactos sobre os preços.

Vivemos num momento de grandes incertezas, o tão sonhado crescimento econômico e a redução do desemprego, visto como muito positivo, tende a pressionar os preços relativos e a inflação cresce com maior rigor e intensidade, gerando pressões crescentes sobre o governo federal para adotar medidas mais profundas para encontrar o equilíbrio fiscal, reduzindo os repasses para os grupos mais fragilizados, esse grupo é visto como o grande responsável pelo retorno do presidente Lula ao governo numa eleição fortemente polarizada.

A economia brasileira apresentou indicadores que sinalizam um crescimento em torno de 4%, um número visto por muitos economistas ortodoxos como algo muito elevado para o potencial da economia nacional. Vivemos momentos de forte crescimento da demanda, motivado pelo consumo crescente e pelos investimentos em ascensão, que tendem a diminuir nos próximos meses, mostrando que para continuar crescendo e com redução no desemprego, precisamos aumentar os investimentos produtivos. Neste cenário, percebemos que, com as taxas de juros que temos , nosso crescimento tende a diminuir de forma acelerada, o chamado voo de galinha, que acontece com a economia nacional a muitas décadas.

 

Milei supera oposição e joga sozinho em 1º ano de governo, por Fabio Giambiagi

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 Em cenário de turbulências e oposição dividida, presidente pode ser divisor de águas na Argentina

Fabio Giambiagi, Economista especialista em finanças públicas e Previdência Social. Autor, entre outros, do livro “Tudo Sobre o Déficit Público: Um Guia Sobre o Maior Desafio do País Para a Década de 2020” (Alta Books).

Folha de São Paulo, 01/12/2024

[RESUMO] Javier Milei completa no dia 10 seu primeiro ano como presidente da Argentina, período marcado pelo início da implementação de um programa de corte de gastos e de diminuição estatal sem precedentes na história de seu país, frente a uma oposição peronista enfraquecida. Embora resultados até aqui exitosos em alguns indicadores inspirem prognósticos otimistas, ainda é cedo para dizer se a Argentina caminha mais uma vez para o desastre ou se Milei, figura folclórica cheia de bizarrices, levará o país a uma economia estável de livre mercado.

O variado conjunto de esquisitices que marcou a irrupção do presidente argentino Javier Milei na política fez com que muitas vezes fosse encarado apenas como uma figura folclórica. O objetivo deste artigo é mostrar como, a despeito de tais bizarrices, ele pode vir a se tornar um divisor de águas na história da Argentina, pela profundidade do ajuste e das reformas que vem tentando implementar.

A exemplo de Jair Bolsonaro, Milei é um personagem que desperta emoções intensas. Traçar uma avaliação isenta do seu primeiro ano de governo, portanto, é um desafio.

Tentarei, no restante deste texto, não cair nos extremos, tanto de quem diz que ele está liderando uma economia em “recuperação em forma de V”, como da postura da oposição peronista, que julga que ele está destruindo o país, esquecendo-se do que foram as últimas décadas da Argentina, cuja decadência, na verdade, começou na última Presidência de Juan Domingo Perón (1973-1974).

O ajuste

A base de toda a estratégia oficial é atingir e manter o tão almejado “déficit zero” nas contas públicas, ou seja, o equilíbrio entre receitas e despesas totais. Se o governo conseguir, seria realmente um feito notável que, mantido a longo prazo, marcaria um contraste completo em relação às décadas de desequilíbrio fiscal responsáveis pelas múltiplas crises econômicas argentinas desde o pós-guerra.

Por enquanto, esse resultado vem sendo conseguido, ao menos até outubro, graças a uma estratégia de “arrocho” da despesa —que, em quaisquer outras circunstâncias que não as da Argentina atual, teria levado os responsáveis por essa política à beira da destituição, por falta de condições para se manter no poder.

Entretanto, na Argentina de 2024, qual é o pano de fundo? Três governos anteriores fracassados (Cristina Kirchner, Maurpicio Macri e Alberto Fernandez), uma inflação em 2023 na casa de três dígitos anuais, um nível muito elevado de pobreza antes de Milei assumir, a oposição estraçalhada, e Fernandez suspeito de praticar corrupção e indiciado por agressão contra ex-primeira-dama.

Nesse contexto, Milei  reuniu absoluto em 2024 no campo da política com uma espécie de “cheque em branco” inicial da sociedade para fazer “o que fosse preciso” para cumprir a promessa de acabar com a inflação.

O seu governo então promoveu uma contração real do gasto, até outubro, de nada menos que 28%, na comparação com os mesmos meses do ano anterior, com reduções de 19% da despesa em benefícios previdenciários, de 30% em subsídios, de 68% nas transferências discricionárias para as províncias e de 78% no investimento público.

Isso levou o país não apenas a obter superávit primário nas suas contas, como inclusive a ter um pequeno superávit fiscal nominal nos primeiros dez meses do ano, mesmo incluindo os juros.

A repetição constante da expressão “no hay plata” para dizer “não” às demandas por mais despesas levou muitos analistas a admitir que o país está passando por uma “mudança de época”, uma espécie de novo zeitgeist em relação à cultura tradicionalmente estatista e gastadora da política argentina.

A dúvida, no caso, é se a sociedade suportará estoicamente esse rigor e premiará o presidente com uma vitória eleitoral nas eleições parlamentares de 2025 e na reeleição em 2027, ou se, no meio do caminho, não voltará a dar uma chance ao velho peronismo ressurgindo, mais uma vez, das cinzas.

Inflação

Em algumas entrevistas nos anos que antecederam a sua eleição, quando era presença constante em programas de televisão e de YouTube, Milei reconheceu que “a diferença entre um gênio e um louco é o sucesso”. Como ele trouxe elementos disruptivos positivos, mas, ao mesmo tempo, está longe de ser considerado uma pessoa que funciona dentro das condições normais de temperatura e pressão, a forma como passará à história argentina dependerá do que ocorrer com a inflação.

Se houver um “antes” e um “depois” da Presidência dele, como foi o caso do Plano Real aqui, será visto pelos livros como “o presidente que derrotou a inflação”, da mesma forma que FHC está associado à ideia de conquista da estabilidade.

Por outro lado, se a inflação, após uma queda temporária, voltar a subir, Milei ficará conhecido para sempre pelo título da biografia não autorizada que um jornalista lançou sobre ele em 2023, “El loco”. E o que foi que aconteceu com a inflação, até agora?

Os dados mostram uma queda muito expressiva da variação mensal dos preços depois de dezembro, quando Milei assumiu o governo. No começo de sua gestão, ele adotou uma maxidesvalorização que gerou um salto inicial da inflação, até então ligeiramente superior a 10% ao mês.

Na disputa política, o peronismo imputa os 26% de inflação de dezembro a Milei, mas é óbvio que, na guerra de narrativas, este joga a culpa no governo anterior, devido à forte expansão monetária durante a campanha eleitoral.

Depois disso, a taxa de variação mensal dos preços foi caindo seguidamente, com uma ou outra oscilação, para 21% em janeiro, 13% em fevereiro, 11% em março e assim sucessivamente, até menos de 3% em outubro.

O governo ainda se aferra ao poder de convergência relacionado com o crawling peg, minidesvalorizações diárias da taxa oficial, de 2% ao mês, que em 2025 será de apenas 1,4 %, com o que Milei aposta em obter uma inflação mensal de 1% a 1,5% ano que vem.

Para um país que parecia flertar com a hiperinflação, isso pode parecer detalhe, mas o problema é que a cada mês que a desvalorização nominal fica abaixo da inflação, a taxa de câmbio real se aprecia mais, o que inspira preocupações naturais acerca da competitividade da economia e do que poderá acontecer caso o governo deixe a taxa de câmbio flutuar livremente.

O que vai ocorrer com a inflação e com a taxa de câmbio está ainda em aberto, indo desde o otimismo do governo, que menciona chegar no futuro a uma mítica “inflação zero”, até as cassandras habituais da oposição.

Elas citam, semana sim e a outra também, com evidente frisson, os finais desastrosos de Alfonsín em 1989, De la Rua em 2001 e Macri tendo que pedir uma ajuda bilionária ao FMI para o país não quebrar em 2018.

Com essas lembranças presentes na memória do país, fazem menção ao “dia em que vai explodir tudo” —uma espécie de “tara” da política local, pouco acostumada a alternâncias tranquilas de poder. Por enquanto, porém, Milei navega de braçada, como dizendo “so far, so good” (por enquanto, tudo bem).

Recessão

É importante lembrar que em 2023 a Argentina enfrentou a pior seca dos últimos 100 anos. Portanto, em condições normais, 2024 deveria ser um ano de recuperação, nem que seja pelo retorno à normalidade do setor agropecuário, chave na economia do país.

O fato de, após a queda do PIB de 2023, o país se preparar para um novo encolhimento no ano em curso, da ordem de 3%, dá uma ideia da intensidade da crise.

Fazer história contrafactual é um exercício tão difícil quanto fútil, de modo que cada um pode imaginar o que quiser acerca do que poderia ter acontecido com os números de crescimento, se o candidato do peronismo tivesse vencido o segundo turno das eleições presidenciais em 2023.

Após o início de um declínio que, em termos dessazonalizados, já tinha começado antes de Milei assumir, a queda do nível de atividade alcançou proporções dramáticas no primeiro semestre, com o investimento chegando a cair a taxas interanuais de mais de 25% (24% no primeiro trimestre e 29% no segundo).

Chama a atenção, pela sua elevada importância relativa e pela sua intensidade, a dimensão da queda observada no consumo das famílias, com reduções interanuais de 7% no primeiro trimestre e de 10% no segundo. Há dados inequívocos, entretanto, de que o terceiro trimestre do ano marcou uma clara mudança, sendo que o governo espera que a economia cresça 5% em 2025.

As exportações estão “voando”, mas olhando para a frente, excetuando-se a recuperação do crédito em curso no rastro de uma queda da incerteza inflacionária e a possibilidade de algum “efeito rebote” do investimento após o “fundo do poço” de 2024, não está claro quais seriam os drivers do crescimento sustentado durante vários anos.

A economia operará em um ambiente onde o investimento público terá ido quase a zero; a taxa de juros real, com uma política monetária convencional, nos próximos anos, deveria aumentar em relação a 2024 em um regime de taxa de câmbio flutuante; e o grau de confiança estará longe de ter um incremento expressivo, enquanto existir a possibilidade de que um eventual novo governo em 2028 promova um giro de 180 graus em relação às políticas atuais, na ausência de acordos políticos com alguma semelhança com o famoso Pacto de Moncloa espanhol. Enfim, vale a velha expressão: “A ver”.

Pobreza

A população argentina tem passado, ao longo dos últimos 15 anos, por um calvário: cada vez que um governo acaba, o país está pior. Isso vale para diversas estatísticas. Uma delas é a da pobreza, talvez um dos indicadores mais emblemáticos da situação de um país.

Aqui a comparação com o passado distante fica prejudicada pelo “apagão” estatístico do segundo governo de Cristina Kirchner, quando o INDEC (IBGE/Argentino) passou de uma fase de “sovietização” dos dados. É razoável inferir, contudo, que no final daquele período (2012/2015) o país tinha mais pobres que no começo.

Depois, a pobreza continuou aumentando nos governos Macri e Fernández. O INDEC faz duas medições, uma por semestre, e revelou um forte crescimento também sob Milei, passando de 42% no final de 2023 (com 12% de indigência) para 53% no final do primeiro semestre de 2024 (18% de indigência), ainda que o governo atual acene com uma rápida queda no contexto de melhora do PIB no segundo semestre.

O fato é que até agora, na comparação com o começo da Presidência Macri, em 2016, a pobreza passou de 30% para 53%, e a indigência de 6% para 18%, com responsabilidades compartilhadas entre as gestões de Macri, Fernández e Milei. É muito impressionante.

Evidentemente, a economia poderá se recuperar (é razoável que haja uma boa melhora em 2025) e sempre haverá o argumento de que o ocorrido no primeiro semestre deste ano foi um efeito da necessidade de “limpar a bagunça” do caos deixado pelo kirchnerismo.

Politicamente, porém, considerando a famosa frase de Milei de que “a justiça social é um roubo”, é difícil que a oposição não explore esses números para convencer o eleitorado de que tudo decorre da insensibilidade social do presidente e de seu plano de ajuste.

O que o mercado olha?

O dólar, mais uma vez, está no epicentro do debate acerca dos rumos da economia argentina. Esta vive há anos uma situação particularmente ingrata.

Normalmente, as dívidas são roladas e, muitas vezes, aumentam. Os empréstimos do FMI são concedidos, justamente, para situações emergenciais, após as quais os países voltam aos mercados.

O problema da Argentina, porém, é sua fama, compreensível, de “caloteira serial”. Lembre-se o que, certa vez, disse David Lipton, antigo diretor do FMI: “Los argentinos son estafadores [vigaristas] simpáticos”.

A Argentina não teve, nos últimos anos, como repagar os quase US$ 45 bilhões que devia ao FMI, pois não conseguia recursos nos mercados internacionais. Tendo levado “calote” quatro vezes em quatro décadas, os investidores externos, por sua vez, ficaram escaldados com o país e só voltarão a apostar nele depois de estarem convencidos de que “dessa vez vai ser diferente”.

O que o mercado olha, então? Basicamente, cinco coisas: 1) as negociações com o FMI, para avaliar se há chances de a instituição emprestar ao país, o que requer um plano sólido de reformas e certa flexibilidade do organismo, para o qual a Argentina se converteu numa grande dor de cabeça nos últimos anos; 2) o spread entre o dólar paralelo e o oficial, como sinalizador da situação das contas externas; 3) a trajetória da inflação (continuará caindo? ficará estacionada ali pelos 3% mensais?); 4) os resultados fiscais mês a mês, para se ter certeza de que o ajuste é “pra valer”; e 5) as pesquisas sobre popularidade do governo, para medir a temperatura de até que ponto a população continuará a apoiar um presidente que fez o “maior ajuste fiscal da história”, como Milei não cansa de se gabar.

Nesse contexto, em algum momento, o governo terá que decidir o que fazer com o cepo cambial, um conjunto de restrições vigentes há 5 anos que limitam a demanda por dólares ao câmbio oficial.

O ideal para Milei seria acabar com as restrições, sem que no dia seguinte ocorra um salto da cotação cambialO outro extremo seria haver uma corrida e o dólar escalar. “Nesse caso, o governo terá acabado”, como diz Ricardo Arriazu, um dos economistas que mais apoiam a política oficial.

Por enquanto, o governo “vai levando” —nos últimos meses, inclusive, o spread chegou a diminuir expressivamente, no que a imprensa chamou de “veranito” financeiro.

“Y ahora, qué?”

Os primeiros meses de processos de transformação são incertos, pois no começo não se sabe se estamos na etapa inicial de uma nova era ou num interregno antes do retorno a algo que se imaginava ter ficado atrás.

Em 2024, sabemos que o Plano Real deu certo, mas em 1995 ainda havia muitos temores. Em 2024, sabemos que o câmbio flutuante de 1999 veio para ficar, mas as primeiras semanas do novo regime foram de pânico, com muitas dúvidas acerca do futuro.

Hoje, é difícil fazer apostas taxativas de que a Argentina esteja no limiar de uma transformação definitiva para se tornar uma economia estável e competitiva de livre mercado. Será que, no final, não assistiremos a um novo fracasso? Ninguém tem uma resposta categórica.

No cerne da questão, há um tema crucial: o que acontecerá com o país, 20 anos à frente? Há condições de serem estabelecidos entendimentos que, em caso de mudança de governo, possam ser respeitados, preservando políticas sensatas, como no Uruguai, onde as gestões se alternam sem grandes mudanças do menu econômico?

Olhando os dados fiscais e de inflação, há razões para otimismo. Já observando-se o comportamento do presidente, que com seu descontrole verbal chama de “ninho de ratos” o Congresso, enquanto os seus “trolls” qualificam como “fracassados” ou até “velhos mijões” os consultores críticos acima dos 60 anos, com campanhas de perseguição midiática de rara brutalidade, é difícil não encarar o futuro com reservas, acentuadas pelas dúvidas acerca da capacidade de conservar uma taxa de câmbio que foi se apreciando em termos reais.

“Pensei que não havia nada mais apaixonante do que uma corrida de touros, até que ouvi dois argentinos discutindo sobre política”, disse certa vez o mexicano Octavio Paz. A desunião foi sempre uma receita de fracasso no país.

Milei conseguiu fazer um ajuste impressionante sem apoio político, apenas a partir de determinação e liderança difundidas nas novas mídias. Se as pesquisas deixarem de sorrir para o governo, a lista dos inimigos dá três voltas na Casa Rosada.

Por enquanto, porém, com a inflação em queda, o dólar parado, a oposição dividida e o peronismo capitaneado pela figura fantasmagórica de Cristina Kirchner, Milei “les pasa por arriba” (esmaga) a todos.

 

Estamos vivendo numa democracia? por Oded Grajew

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Que modelo é este que produz terríveis desigualdades?; mudanças no IR são justas, mas pobres continuarão a ser penalizados

Oded Grajew, Presidente emérito do Instituto Ethos, conselheiro do Instituto Cidades Sustentáveis e membro do Pacto Nacional pelo Combate às Desigualdades

Folha de São Paulo, 02/12/2024

A democracia poderia ser definida como um regime político em que o poder é exercido de forma participativa pelos cidadãos, diretamente ou por meio dos seus representantes. Sendo assim, na democracia exercida em sua plenitude, as políticas públicas deveriam beneficiar de forma equitativa o conjunto da sociedade, resultando num país com poucas desigualdades.

Vejamos o quadro no Brasil: somos o sétimo país mais desigual do mundo, apesar de sermos a oitava maior economia. De acordo com o Observatório Brasileiro das Desigualdades, idealizado pelo Pacto Nacional Pelo Combate às Desigualdades, as nossas desigualdades econômicas, sociais, ambientais, regionais, de gênero e raça são enormes. Por exemplo: 1% da população detém 63% da riqueza do Brasil; os 10% mais ricos obtêm um rendimento médio mensal per capita 14,4 vezes maior que os 40% mais pobres; cerca de 7,6 milhões de brasileiros vivem com uma renda domiciliar per capita mensal menor do que R$ 150; a mulher negra ganha em média 42% do que recebe o homem não negro; as pessoas negras representam 76,9% das vítimas de mortes violentas intencionais e são 83,1% das mortes decorrentes de intervenções policiais; a taxa de mortalidade infantil é 59% maior na região Norte do que na região Sul.

Todos que têm o mínimo de conhecimento de como funciona o nosso sistema político sabem da enorme influência do poder econômico nas eleições e sobre os tomadores de decisões, nas várias instâncias de poder das nossas instituições públicas. Como resultado direto temos políticas e decisões políticas que beneficiam a minoria mais rica e consequentemente sustentam e alimentam as desigualdades brasileiras.

O nosso sistema tributário é um dos mais regressivos do mundo; o Brasil é um dos poucos países que não taxam lucros e dividendos e instituímos diversos mecanismos que fazem com que, atualmente, mais de 70% da renda dos super-ricos não seja tributada. As mudanças no Imposto de Renda anunciadas na semana passada são justas, mas os pobres continuarão a pagar proporcionalmente mais tributos que os ricos porque ainda taxamos muito o consumo e pouco a renda e o patrimônio.

Tudo isso apesar de a Constituição brasileira declarar que “constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. O que significa que o nosso sistema tributário deveria ser considerado inconstitucional!

O nosso terrível e vergonhoso quadro de desigualdades não foi construído por acaso, é resultado de decisões políticas. Alimenta a descrença na política e na democracia e reforça os movimentos políticos extremos e autoritários (vale lembrar que os Estados Unidos são o país mais desigual entre as nações mais desenvolvidas).

Se quisermos valorizar e defender a democracia e barrar seus detratores precisamos nos empenhar para que as políticas públicas se liberem da influência excessiva do poder econômico, respondam às necessidades de toda a população e não apenas aos interesses de uma minoria —e estejam dedicadas, como manda a Constituição, à redução das desigualdades. Caso contrário, poderemos estar sempre nos perguntando: Estamos vivendo numa democracia? Que democracia é esta que produz tantas e terríveis desigualdades?

O que há por trás dos boicotes, por Ana Paula Vescovi

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Reações acirradas de grupos franceses ao acordo UE-Mercosul demonstram o quão estratégico ele se tornou

Ana Paula Vescovi, Economista-chefe do Santander Brasil.

Folha de São Paulo, 10/12/2024

Uma carta aberta de uma das maiores redes varejistas francesas iniciou boicote quase despretensioso sobre a compra de carnes do Brasil; a resposta brasileira, vinda do setor produtivo, traz à tona o potencial destrutivo da guerra comercial.

Os produtores sujeitos às restrições impostas pela França reagiram deixando de vender carnes para a rede europeia no Brasil. O movimento foi tão forte que levou a empresa francesa a uma retratação.

O principal prejudicado? O consumidor, sempre.

A proximidade da reunião de presidentes do Mercosul, no Uruguai, na primeira semana de dezembro atraiu o furor de produtores rurais franceses. A diplomacia dos dois blocos —União Europeia e Mercosul— trabalha para pautar e votar pela aprovação do acordo birregional.

O Brasil tem demonstrado com ênfase o seu interesse na aproximação. Do lado europeu, os mais enfáticos são os alemães, os espanhóis e os portugueses. Além da França, Polônia, Áustria e Itália apresentaram algum nível de resistência.

O que está em jogo é uma frente de redução de tarifas, com definição de quotas em alguns casos, para intensificar a corrente de comércio e serviços entre as duas regiões.

Os ganhos de comércio são há muito tempo conhecidos na literatura. São um verdadeiro ganha-ganha. Os países podem se especializar na produção de bens e serviços em que são mais eficientes, levando ao aumento da produtividade geral, do nível de renda e da produção e revelando vantagens comparativas.

Ademais, o comércio internacional promove a concorrência e a contestação de mercados, o que contribui para preços mais baixos, melhor qualidade e práticas de produção e maior inovação. O acesso a mercados maiores permite que as empresas produzam em maior escala, reduzindo potencialmente os custos por unidade e que os consumidores tenham acesso a uma gama maior de produtos e serviços de diferentes países.

Pode facilitar a troca de conhecimento e tecnologia entre países, promovendo inovação e maior crescimento potencial, além de fomentar os investimentos estrangeiros.

Embora alguns empregos possam ser deslocados entre setores e regiões, o comércio internacional cria oportunidades de trabalho em setores exportadores e nas indústrias de apoio. E não apenas empresas grandes exportam.

Os consumidores, por sua vez, podem obter preços mais baixos e maior poder de compra. E os países, por fim, podem se beneficiar com a promoção de laços diplomáticos e a paz entre as nações por meio de uma saudável interdependência econômica.

Além da teoria, a realidade demonstrou isso. Após a entrada da China na OMC (Organização Mundial do Comércio), em 2001, e economia mundial vivenciou anos de crescimento robusto com inflação controlada e juros baixos. O aumento de renda ampliou a classe média global, movimento que foi mais forte nos países em desenvolvimento. Estimativas apontam crescimento de 50% na América Latina. O que deu errado tem sido objeto de muitos estudos, mas a crise financeira global de 2008/2009 foi uma inflexão, entre outros fatores.

O concreto é que tudo mudou desde então e, nos últimos anos, as guerras comerciais têm prevalecido. As recentes eleições presidenciais nos Estados Unidos sancionaram mais aumentos de tarifas e mais disputas comerciais, o que tende a escalar no próximo ano. Esse é um fator importante por trás da reação dos franceses. A integração comercial entre Mercosul e União Europeia ficou ainda mais estratégica, para os dois lados, depois da eleição dos Estados Unidos.

De um lado, uma região que produz automação industrial de excelência, capaz de impulsionar a modernização do parque industrial na América do Sul. De outro lado, uma região capaz de alavancar os objetivos da transição (e da segurança) energética na Europa. O Brasil produz o crédito de carbono com o menor custo do planeta.

No meio, estão os produtores de alimentos na França e em algumas outras localidades. São acostumados a pesados subsídios e a uma regulação ambiental severa, com estrutura fundiária diferente da nossa (menos concentrada).

A acidez e o tom ofensivo das manifestações na França revelam nada mais do que o tamanho da briga para manter o status quo. Simplesmente negligenciam os anos de avanços tecnológicos e na vigilância sanitária que tivemos. No Brasil, iniciativas no próprio setor privado têm assegurado políticas rigorosas de desmatamento ilegal zero com 100% de rastreabilidade nos seus negócios de exportação. E não somente para a Europa. O uso de satélites de rastreamento e da inteligência artificial já é uma realidade no monitoramento de fazendas exportadoras.

Mas toda crise traz aprendizados. O primeiro deles seria assegurar um caminho consistente de “acreditação” para os nossos exportadores, com avanços consistentes no desmatamento ilegal zero e melhora na aplicação e fiscalização do Código Florestal. E muita disposição para explicar os progressos. O Brasil já se estabeleceu como uma potência pecuária, temos uma das agriculturas mais modernas do planeta, com muitos avanços por vir na área da agroenergia.

Com efeito, há muito o que avançar. E as vantagens do comércio podem trazer fortes incentivos para compromissos de preservação ambiental. Se a Europa está fidedignamente engajada no desmatamento ilegal zero, então não há melhor política do que aprofundar a (saudável) interdependência comercial com os países da região amazônica.

O que vimos com os boicotes foi uma demonstração pedagógica dos efeitos do protecionismo, caminho errado a seguir.

 

 

A Europa prepara-se para a guerra, por Flávio Aguiar

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Flávio Aguiar – A Terra é Redonda – 27/11/2024

 Sempre que a Europa preparou-se para guerra, ela acabou acontecendo, com as consequências trágicas que conhecemos

Um autêntico calafrio percorreu toda a Europa na semana passada. Noticiou-se com destaque que os governos da Suécia e da Finlândia divulgaram para seus cidadãos manuais sobre como proceder no caso de uma guerra contra terceiros.

O governo sueco distribuiu pelo correio uma brochura de 32 páginas. O finlandês disponibilizou uma publicação online.

Embora o nome não aparecesse, era óbvio que se tratava de uma guerra com a Rússia. A Suécia não tem uma fronteira terrestre com a Rússia. Há uma fronteira marítima entre ela e o enclave russo de Kaliningrado, espremido entre o Mar Báltico, a Lituânia e a Polônia. A Finlândia tem uma fronteira terrestre com a Rússia de 1.343 km.

Ambas mensagens abordam outras crises, como a ocorrência de pandemias, desastres naturais e ataques terroristas. Mas o destaque no noticiário foi para a guerra, graças à existência do conflito direto entre a Rússia e a Ucrânia, que tem o apoio da OTAN, de que não faz muito Suécia e Finlândia passaram a integrar.

Tanto na Suécia como na Finlândia as instruções envolvem a manutenção de estoques de alimentos, água, remédios e dinheiro, a guarda de cartões de crédito, conselhos sobre como se manter informado através do rádio, a busca de abrigos coletivos no caso de ataques aéreos ou nucleares, como neles se comportar ou onde se proteger caso seja impossível chegar até eles.

Logo no começo das instruções suecas, encontra-se a seguinte exortação patriótica: “Se a Suécia for atacada, nós nunca nos renderemos. Qualquer sugestão em contrário é falsa”.

Aos poucos surgiram informações complementares. Em ambos os casos, tratava-se de uma atualização de instruções anteriores. Também noticiou-se que outros governos, como os da Dinamarca e da Noruega distribuíam instruções semelhantes. Nada disto atenuou o impacto midiático do clima de preparação para uma guerra.

Para engrossar o caldo, a Alemanha entrou na dança. A mídia do país noticiou a existência de um documento do Exército até então secreto, com mil páginas sobre a possibilidade e os desdobramentos de uma guerra com a Rússia. Entre outras coisas o documento prevê que a Alemanha se transformaria num imenso corredor por onde passariam centenas de milhares de tropas da OTAN – norte-americanas e outras. O país se transformaria no grande organizador logístico do fluxo de tropas, suprimentos e armas de variada espécie para o conflito.

Outras informações vieram à tona. O Exército está disponibilizando instruções específicas para empresários sobre como adequar suas empresas à circunstância de uma guerra, com destaque para a questão dos transportes.

Para compreender o impacto destas informações, deve-se levar em conta a moldura em que surgiram e alguns antecedentes.

Concomitante a elas noticiava-se uma escalada de fato ou retórica em torno da guerra na Ucrânia e agora também em território russo, com a invasão da região de Kursk por tropas ucranianas.

Noticiou-se a presença de tropas norte-coreanas em território russo, em apoio a Moscou. O governo de Joe Biden autorizou a utilização pela Ucrânia de mísseis de longo alcance contra território russo, e o fornecimento de minas terrestres contra veículos e pessoas para o governo de Kiev. Este anunciou que a Rússia lançara um míssil de longo alcance, capaz de levar uma ogiva nuclear, contra seu território.

Moscou relaxou as normas para utilização se armas nucleares em caso de conflito, sobretudo se atacada por um país que tivesse o apoio de uma potência nuclear. França, Alemanha e Polônia anunciaram estarem aumentando significativamente seus orçamentos militares. O exemplo pode ser seguido por outros países. Os Estados Unidos anunciaram o restabelecimento de mísseis em território europeu.

A TV russa divulgou uma reportagem comentando quais cidades europeias poderiam ser alvo de ataques por mísseis de longo alcance. Não faz muito o governo de Joe Biden aumentou em 20% a presença de pessoal militar e conexo norte-americano no continente europeu, contingente que hoje passa de 120 mil, maior do que, por exemplo, todo o Exército do Reino Unido. Autoridades civis e militares alemãs já falaram abertamente que é possível haver uma guerra com a Rússia em cinco ou seis anos. Em suma, a Europa se prepara para a possibilidade da guerra.

Políticos que admitem o risco usam com frequência o dito popularizado em latim, “si vis pacem para bellum”, “se queres a paz, prepara-te para a guerra”. Entretanto lembremos que o currículo europeu na matéria não é bom. Sempre que a Europa preparou-se para guerra, ela acabou acontecendo, com as consequências trágicas que conhecemos.

*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).

 

Parceria Estratégica

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Com o retorno de Donald Trump ao comando da sociedade norte-americana encontramos muitas inquietações e incertezas nas políticas econômica e comercial, alguns analistas acreditam que o novo governo vai retomar os confrontos com a China, limitando a entrada de imigrantes e deportando milhares de ilegais, outros especialistas apostam no retorno de uma visão mais unilateral, nos moldes do conhecido América primeiro…. que podem levar as nações ao incremento de políticas protecionistas como forma de defender sua estrutura produtiva e seu emprego interno, mesmo sabendo que essa proteção pode gerar impactos preocupantes sobre a economia mundial.

Neste cenário, percebemos que os governos nacionais estão buscando instrumentos para defender seus sistemas econômico e produtivo, evitando a perda de espaço no mercado global, cujos impactos são negativos para as economias nacionais, podendo gerar graves constrangimentos sociais, com incremento do desemprego, queda maciça da renda agregada e desajustes macroeconômicos.

Vivemos numa economia altamente integrada, as estruturas produtivas estão totalmente interligadas e interdependentes, as políticas protecionistas adotadas em uma nação podem gerar represálias comerciais, levando ao aumento dos custos de produção, incrementando os preços e impactando sobre a inflação dos países, levando as Autoridades Monetárias a adotarem políticas mais restritivas, reduzindo a quantidade de moeda em circulação e elevando as taxas de juros, com impactos generalizados sobre o investimento produtivo e, posteriormente, reduzindo a geração de emprego e da renda agregada.

O Brasil, neste cenário, caminha para momentos de grandes decisões estratégicas, que podem impactar fortemente sobre a sociedade brasileira, abrindo novos espaços e novos horizontes de comércio internacional, criando novos laços afetivos e se integrando com novos polos comerciais, produtivos e culturais, mas precisa compreender que as escolhas podem trazer novos constrangimentos políticos e econômicos, além do afastamento de investimentos estrangeiros fundamentais. As decisões exigem maturidade política para fazer as escolhas corretas e precisas, além de ampla capacidade de compreender os inúmeros desafios contemporâneos e das fragilidades internas, que podem limitar nossa capacidade de reposicionarmos na economia mundial.

Neste momento, o governo federal adota políticas efetivas para a reconstrução da indústria nacional, setor estratégico e fundamental para todas as nações e, internamente, perdeu espaço desde os anos 1990, combalida pela desastrada abertura econômica e pela adoção do câmbio como instrumento de estabilização de preços. Atualmente, as relações comerciais com os países asiáticos podem trazer grandes investimentos e novos horizontes econômicos, mas precisamos salvaguardar a estrutura produtiva, entrar numa concorrência com a indústria asiática pode ser vista como o desaparecimento por completo da indústria nacional.

Estamos num momento imprescindível para adotarmos políticas mais agressivas e ambiciosas, somos detentores de grande potencial energético, temos capacidade alimentar que poucas nações possuem e somos vistos como detentores de grande potencial produtivo e cultural. Precisamos ter a maturidade política para exigir, nos fóruns internacionais, transferências de tecnologias, sociedade com atores nacionais e atração de tecnologias para movimentarmos nosso potencial econômico e transformar nossas potencialidades para melhorarmos as condições de vida da nossa população e reduzir as desigualdades que caminham com nossa história nacional, uma trajetória de pilhagem, exploração, concentração e escravização.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.  

 

Os CEOs da terra falida, por Giovana Madalosso.

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Tem criança que sabe falar dois idiomas mas não sabe arrumar a cama

Giovana Madalosso, Escritora, roteirista e uma das idealizadoras do movimento Um Grande Dia para as Escritoras.

Folha de São Paulo, 25/11/2024

É final de ano e a cidade está cheia de anúncios de escolas chamando para matrículas. Umas oferecem educação com ênfase no amanhã. Outras sugerem desenvolver no aluno o espírito de liderança. Pelo jeito, desistimos de formar cidadãos para formar CEOs. Não é só culpa das escolas: é uma demanda dos pais, preocupados em garantir um futuro de estabilidade profissional e financeira para os filhos.

Só que a vida não é uma empresa. A sociedade não cabe em um organograma. E tampouco estamos sozinhos. Aqui nesta Terra, um sonho se sonha com oito bilhões de pessoas. E uma infinidade de outros seres vivos.

A festa do Cada Um Por Si já se mostrou um fracasso. Não há pulseira VIP que nos impeça de ver a dança mórbida do capitalismo tardio, com uma minoria se refestelando com a maior parte da riqueza.

Se a propaganda da escola fosse honesta, o globo terrestre exibido na mão do aluno sorridente estaria pegando fogo. A lupa não estaria apontada para uma florzinha e sim para uma amostra de microplástico ou de corais mortos pelo calor.

Fora do muro dessas escolas, há aproximadamente oito milhões de brasileiros passando fome. Duzentas mil pessoas em situação de rua. Uma floresta prestes a virar savana. Rios sendo contaminados com mercúrio. Novos poços de petróleo sendo abertos quando mais de duzentos milhões de pessoas já se deslocam pelo mundo por causa de desastres climáticos.

O futuro brilhante vendido pela propaganda tem grande chance de ser uma distopia. E, mesmo com essa perspectiva, há quem não se importe, pensando que, como sempre, o dinheiro irá safar os seus da desgraça coletiva.

E eu só me pergunto: que altura de portão nossos filhos terão que construir para se esconder de tanta tristeza? Haja bônus e pró-labore para tanto tijolo e para tanta cerca farpada. Haja catraca e cancela para se proteger de tamanha desigualdade. Haja dique para se resguardar de uma natureza em fúria. Haja espumante para se entorpecer de tudo e tanto.

Antes nossos heróis corporativos estivessem morrendo de overdose. Estão morrendo de estresse, depressão, ansiedade, pânico, solidão, anorexia. E, mesmo assim, continuamos mirando nesses exemplos. Desviando a luneta dos nossos filhos das Três Marias para mirar nessas cadeiras. Ou numa chair bem longe daqui.

Tem criança que sabe falar dois idiomas mas não sabe arrumar a cama. Antes de qualquer coisa, deveriam aprender a limpar a casa e a escola, a observar quanto lixo cada pessoa produz, a fazer a própria comida. A não depender do outro para realizar a tarefa mais primordial que existe: cuidar de si mesmo.

Só assim mais uma geração de brasileiros não passará pelo constrangimento de estudar em uma sala de aula que só tem crianças brancas, em uma escola que só tem crianças brancas, aspirando a cargos que só são ocupados por brancos, em um país onde a maioria da população é negra e, infelizmente, em parte ainda limpa e cozinha para os outros.

É desanimador mas, por outro lado, não é. Um mundo em crise é um mundo gritando para ser refeito. Um caminho repleto de possibilidades de se agir diferente. Tenho certeza de que essa geração irá encontrar ótimas saídas, desde que tenha a chance de olhar mais para os lados, e não só para o topo.

 

BPC: Caçada aos direitos dos vulneráveis, por Ion de Andrade.

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Governo aventa corte em benefício para idosos e pessoas com deficiência na miséria – única fonte de renda para muitos. E gerará “efeito rebote” no comércio local e geração de impostos que a proteção social estimula. Vale tudo para manter o arcabouço fiscal?

Ion de Andrade – OUTRAS PALAVRAS – 28/10/2024

Recentemente a mídia repercutiu medidas do Ministério da Fazenda dando conta de um plano de cortes que penaliza brutalmente, dentre outros direitos, o BPC.

Mas o que é o BPC? O site do próprio Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome explica:

O Benefício de Prestação Continuada – BPC, previsto na Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS, é a garantia de um salário mínimo por mês ao idoso com idade igual ou superior a 65 anos ou à pessoa com deficiência de qualquer idade. No caso da pessoa com deficiência, esta condição tem de ser capaz de lhe causar impedimentos de natureza física, mental, intelectual ou sensorial de longo prazo (com efeitos por pelo menos 2 anos), que a impossibilite de participar de forma plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas. O BPC não é aposentadoria. Para ter direito a ele, não é preciso ter contribuído para o INSS. Diferente dos benefícios previdenciários, o BPC não paga 13º salário e não deixa pensão por morte. Para ter direito ao BPC, é necessário que a renda por pessoa do grupo familiar seja igual ou menor que 1/4 do salário-mínimo.1

Noutras palavras o BPC é o benefício de R$1.412,00 pago a (a) idosos que, sempre subempregados e egressos da miséria, nunca contribuíram para a previdência e (b) portadores de deficiência que sejam pobres.

Esses brasileiros serão alvo do pente fino do Ministério da Fazenda para economizar parte dos 25,9 bilhões de reais previstos.

Vale ressaltar que há pessoas sem receber o BPC, mesmo fazendo jus a ele; por condições de não cidadania e de precariedades imensas nesse contingente populacional, incontáveis brasileiros e brasileiras, idosos miseráveis e portadores de deficiência, por vezes inclusive em situação de rua que estão invisibilizados.

Muitos dos que o recebem, reforçando essa ideia da exclusão social desses beneficiários, foram ajudados por terceiros de boa vontade, preocupados com a miserabilidade extrema daquele ser humano singular, no entanto elegível para receber o BPC.

Ora, se for subtraído do benefício dificilmente, muitos dos que o recebem atualmente reunirão novamente as condições para reivindicar a revisão da decisão negativa, pois precisarão atender a uma burocracia estatal perante a qual estão antecipadamente derrotados.

Recebendo o BPC está portanto, é bom que se diga, a federação dos excluídos e dos miseráveis, gente com distúrbios mentais, idosos que nunca contribuíram, gente que não sabe ler, pessoas simples e vulneráveis de todos os matizes, razão porque muitos dos que têm direito legal não o recebem.

A prova da existência desses invisíveis é o que nos informa o elogioso artigo da Folha de São Paulo em relação às medidas do governo, intitulado “Corte de R$ 25,9 bi prometido por Haddad prevê fim de brechas legais que impulsionaram benefícios” que foi publicado em 5 de julho de 2024, alusivo à iniciativa de cortes do governo. Diz a Folha:

“O gasto com o BPC é um dos que mais preocupam a equipe econômica. O programa tem hoje quase 6 milhões de beneficiários — dos quais 1 milhão foi incluído nos últimos dois anos. A despesa com o programa está prevista em R$ 105,1 bilhões neste ano e poderá crescer mais R$ 10 bilhões no ano que vem se nada for feito. As concessões do benefício tiveram uma aceleração considerável a partir do segundo semestre de 2022. Até então, o público do programa oscilava entre 4,6 milhões e 4,7 milhões, com pequenas variações mensais. Em julho daquele ano, o governo habilitou 93 mil novos beneficiários. No mês seguinte, mais 90 mil. Desde então, as concessões têm se mantido superiores a 50 mil por mês.”2

Ou seja, a aceleração das concessões provavelmente se deve ao fato de que o governo Lula vem identificando, através do MDS mais situações de pessoas não atendidas do que o governo Bolsonaro. A que senhor o Ministério da Fazenda serve?

Carta Capital em 20 de agosto de 2024, nos traz o que pensa o ministro responsável pela pasta sobre o assunto, arrematando o que segue:

“Não podemos correr o risco de tirar do mercado quem pode trabalhar, por uma distorção de um programa mal gerenciado.” Rever as condições do BPC é parte significativa do pacote anunciado por Haddad para cortar 25,9 bilhões de reais em gastos do governo em 2025.3

Ora, com o valor de R$1.412,00 por BPC, cada bilhão de reais amealhados por ano pelo Ministério da Fazenda implicará no corte de, segue a fórmula, (1.000.000.000/1.412,00 = 708.000 benefícios)/12 meses ou 708 mil/12 meses perfazendo 59 mil beneficiários excluídos do benefício por ano.

Isso tem implicações econômicas óbvias: o BPC, quer as famílias tenham ou não os seus dados cadastrais atualizados, conforme estabelece a lei, serve essencialmente para cobrir despesas de sobrevivência indo para a economia assim que é recebido, utilizado que é em compras de comida, medicamentos e gêneros de primeira necessidade…

Isso significa que parte das despesas do governo com o pagamento do BPC volta imediatamente aos cofres públicos, sob a forma de impostos, barateando, portanto e muito o próprio BPC.

Esse BPC barateado, volta para o governo, no entanto, não sem antes ter dado vitalidade à combalida pequena economia local do entorno da moradia dos beneficiários, pois, é a isso que servem. De fato, os beneficiários do BPC não poupam os recursos recebidos, nem o enviam como parte dos lucros ao exterior.

Ao fim do ano fiscal, portanto, aqueles R$1.412,00 investidos no consumo dos pobres e na economia local, terão sido deduzidos fiscalmente de muito do que custaram ao governo, pois terão gerado a arrecadação que está atrelada ao consumo, gerado empregos e renda, configurando um multiplicador keynesiano.

Isso significa que além dos idosos pobres e dos portadores de deficiência pobres os cortes também atingirão a padaria e o mercadinho das favelas e periferias do Brasil, produzindo desemprego e insolvência. Um golaço! Só que contra.

Por que isso está sendo feito?

Como tudo tem que ter um mínimo de legitimidade para ser levado adiante e produzir o devido consenso, o BPC tem algumas atualizações a serem feitas, sobretudo no que se refere aos benefícios pagos por ocasião da covid que talvez pudessem ser suspensos. Diz a Folha:

Um dos casos mais emblemáticos é uma portaria da época da pandemia de covid-19 que permite a concessão do BPC (Benefício de Prestação Continuada) a pessoas que não estão no Cadastro Único ou não comprovam o enquadramento no limite de renda para acessar o benefício.

A medida foi adotada no momento em que o isolamento social era necessário para conter uma doença para a qual ainda não havia vacina. Mais de um ano após a declaração do fim da emergência de saúde pública, o texto segue em vigor.

Mais adiante o artigo arremata, com a verdadeira justificativa que explica tudo:

O governo articula incluir as propostas no projeto de lei que trata da desoneração da folha de 17 setores empresariais e dos municípios de até 156 mil habitantes. O texto tem o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), como relator. Parte da economia de despesas pode inclusive ajudar a compensar o impacto das renúncias fiscais.2

Ou seja, por ser responsável do ponto de vista fiscal, e é, parabéns, o governo tem, para assegurar a sustentabilidade das renúncias fiscais com as quais está plenamente comprometido, que tirar, quanto mais melhor (por isso o pente fino cadastral) o dinheiro minguado das compras famélicas dos mais pobres dos pobres, esgarçando o já frágil tecido econômico das periferias.

Sim pois:

“O plano do governo é, no primeiro momento, convocar para atualização cadastral 900 mil beneficiários do BPC que estão há mais de quatro anos sem passar por reavaliação, bem como aqueles que estão fora do CadÚnico, acima do limite de renda ou tiveram o benefício concedido pela via judicial.”2

Vamos observar aqui que a concessão do benefício por via judicial é tomada pelo Ministério da Fazenda como graciosa, quando esse tipo de situação decorre muitas vezes da costumeira negativa do Poder Constituído de honrar benefícios para evitar os gastos públicos (em cima dos mais pobres, claro). A justiça só pode atuar a bem de assegurar um benefício garantido pela lei…

Entretanto, é claro que o controle do gasto público deve imperativamente ser feito pelo governo, não com o propósito de cortar para reduzir, mas de, sendo o caso, de cortar para garantir que os que realmente fazem jus (e como vimos, nem todos ainda foram cobertos) não sejam em qualquer circunstância prejudicados.

Portanto, se há gente recebendo e que não deveria receber, corte-se o benefício, por dever de ofício e não para ajudar a pagar as renúncias fiscais do próprio governo.

Essa auditoria prevista dos 900 mil, uma blitzkrieg, se dará portanto, para essa gente excluída de tudo, sob a espada da perda do que para muitos deles é a sua única fonte de renda!

Considerando que o propósito não é o da gestão dos direitos do programa para a garantia do que a lei estabelece, mas a da garantia dos benefícios a outro projeto social do governo (a renúncia fiscal dos ricos), estaríamos diante do constrangimento ilegal de centenas de milhares de beneficiários?

O lógico, obviamente, deveria ser o oposto, ou seja:

(a) para assegurar a continuidade do BPC e

(b) a inclusão dos novos contingentes, que fazem jus ao mesmo, mas estavam até aqui invisibilizados pela miséria e adversidade, o governo Lula fará:

(c) uma revisão dos benefícios eventualmente injustificáveis como os da COVID ou de quem recebe e tem renda mais alta e

(d) complementarmente fará também uma blitz krieg em cima das renúncias fiscais dos tais 17 setores da economia beneficiados.

Ora, além desse aparente desvio de finalidade (enxugar para beneficiar terceiros) a caça da renda de sobrevivência dessa gente, é uma grande jogada, porque se quando os orçamentos do SUS foram ameaçados os movimentos da Saúde, pintados de guerra, visitaram o Ministério da Fazenda para dizer um “vem que tem”, desse contingente o Brasil só terá notícia no cruzamento das grandes cidades onde provavelmente haverá mais idosos mendicantes, além de portadores de deficiência em cadeiras de roda implorando a caridade pública.

O pacote ainda inclui uma revisão da multa do FGTS para os demitidos sem justa causa, restrições ao Seguro Desemprego e, escrito com bom humor, também pretende limitar os super salários do funcionalismo público, o que inclui os do Judiciário.

A esquerda não foi bem nas eleições municipais, mas parece não precisar de oposição.

Notas:

1 BRASIL, MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO E ASSISTÊNCIA SOCIAL, FAMÍLIA E COMBATE À FOME, disponível em (https://www.mds.gov.br/webarquivos/assistencia_social/bpc/Perguntas%20Frequentes%20BPC.pdf)

2 Folha de São Paulo, Corte de R$ 25,9 bi prometido por Haddad prevê fim de brechas legais que impulsionaram benefícios” que foi publicado em 05 de julho de 2024 disponível em (https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/07/corte-de-r-259-bi-prometido-por-haddad-preve-fim-de-brechas-legais-que-impulsionaram-beneficios.shtml)

3 Carta Capital Haddad defende rever ‘distorções’ no BPC e diz não se tratar de corte em gasto social, disponível em (https://www.cartacapital.com.br/economia/haddad-defende-rever-pagamentos-do-bpc-e-diz-nao-se-tratar-de-corte-em-gasto-social/)

 

A finalidade do trabalho, por Silvane Ortiz

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Silvane Ortiz – A Terra é Redonda – 24/11/2024

O impacto do neoliberalismo na subjetividade do trabalhador, sob a lente de Ken Loach

“Tudo o que era sólido e estável se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são finalmente forçados a encarar sem ilusões a sua posição social e suas relações com os outros homens.” (Marx e Engels. Manifesto do partido comunista).

As condições das relações de trabalho, mediadas e formalizadas pelo direito, sendo ele o organizador e possibilitador da manutenção das relações de produção vigentes em determinada formação social, são índices importantes acerca da conjuntura econômico-política. É possível se depreender muito do espírito de um tempo, quando analisamos as condições das relações laborais daquele período.

No filme Sorry We Missed You (2019) de Ken Loach, conhecido diretor de obras que aprofundam questões sociais candentes, tem-se retratado o panorama do avanço do neoliberalismo (pós-fordismo) em paulatina implantação no Reino Unido desde a década de 1980, com especial atenção aos efeitos deste quanto à degeneração das políticas de bem-estar social, surgidas no período pós-Segunda Guerra Mundial. A social-democracia do período, com seus laivos humanistas, também foi uma forma de contraponto ocidental ao socialismo em desenvolvimento, sobretudo na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Sendo, então, mais uma frente na disputa ideológica crescente, que veio a deflagrar os desdobramentos do período da guerra fria.

Na obra do cineasta britânico, temos um quadro do asselvajamento do atual modo de produção neoliberal. Jogando luz no que por vezes não percebemos, por se dar de forma contínua e gradual, o filme choca ao enfocar o contexto de degradação de uma família, colapsada em seus afetos, pela materialidade de sua condição econômica.

A verossimilhança ali presente causa desconforto por conta do reconhecimento que gera em quem acaba por se reconhecer nos abusos constantes perpetrados sob a tutela dos direitos, na reprodução da sociabilidade. Fazer com que essa relação seja estabelecida e que o encoberto pelo automatismo de sua reprodução seja visto às claras, pode ser um papel da arte, quando firmemente calcada na crítica social.

A crítica ao sujeito de direito, como organizador máximo das relações sociais sob o capitalismo, remonta ao fenômeno de contratualização liberal, onde funda-se a ideia de existência de uma igualdade subjetiva entre os sujeitos, baseada na liberdade contratual. Contudo, seu garantismo formal nunca conseguiu atrelar um conteúdo de igualdade material a essa subjetividade liberal.

Mesmo em momentos de estabilidade econômica, pressuposto crasso para manutenção da estabilidade político-social sob o capitalismo, a discrepância das condições econômico-sociais enfrentadas entre quem detém ou não capital é patente. E a balança jurídico-legal, por seu construto estrutural, é tencionada a pender na maioria das vezes para o mesmo lado.

Nessa formação social, onde granjeiam campo as relações sócio-produtivas do capitalismo neoliberal, há um enfraquecimento das políticas públicas e, por extensão, do próprio Estado. E em seu lugar, nesse movimento reacionário-liberal – dicotomia na abordagem de pautas de costumes e das relacionadas à economia – o mercado é alçado a mediador máximo destas relações. E, uma vez que a legislação protetiva encontra-se rebaixada, a dignidade tende a passar ao largo de todas as relações sociais.

A estrutura da sociedade capitalista é montada para a irrefreável produção de valor. E a relação que entrega esse almejado produto é aquela derivada da venda da mercadoria que todos dispõe, de forma inata, para participar do mercado perante a lei. A força de trabalho é a mercadoria que produz, de forma germinal, o (mais) valor. Assim sendo, com a decadência do balizamento estatal para a proteção da parte mais fraca – pois descapitalizada – dessa relação de produção, a exploração máxima e descomprometida é a concretude que vigora.

Afinal, sob o estágio neoliberal do capitalismo, o trabalhador é um livre prestador de serviço, que contrata em pé de igualdade com pequenas empresas ou megacorporações transnacionais.

No contexto brasileiro isso não é diferente. As constantes reformas que deformam a legislação trabalhista, em contraponto à imutabilidade dos instrumentos que codificam as relações civis, são sinais claros da deterioração das atuais condições sociais dos trabalhadores. Institutos como a Lei 13.874/19, da liberdade econômica e, sobretudo, a lei 13.467/2017, da reforma trabalhista, são pensados e implantados para fomentar o chamado empreendedorismo – quase sempre de si, desregulamentado as relações de trabalho.

Contudo, poucas são as discussões levadas a cabo para a garantia de condições dignas aos trabalhadores e, menos ainda, àqueles que se encontram à margem da proteção conferida pela CLT. A defesa de sua normatividade é, inclusive, tida por anacrônica por alguns analistas, por sua implantação ter se dado no auge do projeto de industrialização da Era Vargas, ainda amalgamado ao ideal de bem-estar social então vicejante.

Essa desconstituição paulatina dos direitos trabalhistas ganhou um novo capítulo com a recente apresentação do Projeto de Lei Complementar nº 12/24, para a regulação das atividades de motoristas por aplicativos. No PL apresentado pelo governo, tem-se replicado o conteúdo proposto pelos representantes das plataformas. O que, portanto, acaba por conferir chancela legal à precarização das condições destes trabalhadores, que ficam, assim, de pronto, reconhecidos como trabalhadores autônomos, abrindo margem para a crescente plataformização do trabalho.

Pois, uma vez reconhecida a inexistência de vínculo trabalhista entre motorista e plataforma, o que passa a subsistir é uma relação de intermediação, o que não guarda lastro na concretude da subordinação do trabalhador à plataforma. E isso configura mais um passo no caminho que vem sendo pavimentado para o esvaziamento da Justiça do Trabalho. Essa desfaçatez do caráter trabalhista de tais relações acabam por retirar de seu foro, lides de cunho evidentemente trabalhista.

Não à toa, com a insegurança gerada por relações de trabalho a cada dia mais instáveis e asselvajadas, as doenças emocionais são o mal que assola o nosso tempo – tempo esse absolutamente líquido, com jornadas sem início ou fim. Esse sujeito acelerado, progressivamente individualizado, quase convertido em pleno autômato, deixa de ver sentido nos laços que o conformam como ser social. E sem horizonte de mudança, não repara na absurdez de ter a vida centrada em relações sociais mediadas pela forma mercadoria (fôrma matriz) e suas derivações.

Estas relações tornam-se, então, assimiladas e são reproduzidas como a realidade da vida, o que acaba realizando o estulto mantra neoliberal de que a sociedade trata de uma ficção. O que passa a existir, concretamente, é o indivíduo e este sofre os sintomas de uma sociedade fantasmagórica.

O que se pode depreender dessa análise é que a real ficção resta na crença de que o ser humano, historicamente entendido como animal que somente prosperou como espécie por sua natureza social e mutualista, pode viver – vida aqui conceituada por um fazer-existir balizado para muito além de uma concepção de utilidade – em um sistema que tem por premissa estruturante a concorrência predatória entre os homens e sua predação concorrente sobre a natureza.

*Silvane Ortiz é graduanda na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Referências

ANTUNES, Ricardo. O Privilégio da Servidão. São Paulo: Boitempo, 2018.

ANTUNES, Ricardo. Uberização, Trabalho Digital e Indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020.

FAUSTINO, Deivison. LIPPOLD, Walter. Colonialismo Digital. São Paulo: Boitempo, 2023.

FISHER, Mark. Realismo Capitalista. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.

KRENAK, Ailton. A Vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

MARX, Karl. O Capital: crítica da Economia Política. Livro 1. São Paulo: Boitempo, 2013.

SORRY we missed you. Direção: Ken Loach. Produção: Sixteen Films, France 2, Canal +, Le Films du Fleuve. Reino Unido. Le Pacte, Entertainment One. 2019. Amazon Prime.

 

Para onde caminha a humanidade? por Márcia Castro

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Janela de oportunidade para a virada da chave climática ainda está aberta

Márcia Castro, Professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard.

Folha de São Paulo, 23/11/2024

Nas últimas duas semanas, dois fóruns multilaterais, o G20 e a Conferência do Clima (COP 29), pautaram agendas sobre mudanças climáticas. No centro das discussões estava o apoio financeiro para que países em desenvolvimento implementem medidas de adaptação.

Um relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, publicado neste mês, mostra uma lacuna no atual financiamento concedido por países desenvolvidos para implementação de ações de adaptação em países em desenvolvimento.

A estimativa feita por um grupo de 130 países em desenvolvimento é que é necessário US$ 1,3 trilhão. A Declaração de Líderes de Rio de Janeiro ressalta a necessidade de aumentar o financiamento climático de bilhões para trilhões.

Entretanto, as negociações na COP29 não parecem chegar a um consenso, já que números propostos pelos países desenvolvidos giram em torno de US$ 200 a 300 bilhões.

A contradição entre documentos de dois fóruns multilaterais que ocorreram concomitantemente questiona o real compromisso ou capacidade de líderes em cumprir aquilo que assinam. Basta ver o Acordo de Paris.

Um relatório publicado neste mês mostra que, sem mudanças nas atuais metas climáticas, podemos chegar a um aumento de 2,7°C (em relação aos níveis pré-industriais) até 2100. Para que a meta de 1,5°C do Acordo de Paris seja alcançada, o Brasil precisa reduzir suas emissões em cerca de 85% abaixo dos níveis de 2005 até 2035.

Essa redução seria de 25% se não houvesse emissões associadas ao uso da terra e incêndios florestais. Fica nítida a importância da preservação ambiental.

A meta climática divulgada pelo governo brasileiro na COP29, entretanto, está abaixo do necessário. O governo propôs reduzir emissões entre 59% e 67% abaixo dos níveis de 2005 até 2035.

Além de metas climáticas abaixo do esperado, mudanças de liderança em nações podem reverter compromissos previamente assumidos. Não deveriam, afinal são questões que afetam toda a humanidade.

Por exemplo, com a eleição de Donald Trump nos EUA, participação na COP, mobilização em torno de metas climáticas e muito mais serão deixadas de lado. Essa postura não afetará apenas os Estados Unidos, mas todo o planeta, e pode levar outras nações a desacelerarem suas metas climáticas.

Em um cenário em que os EUA se ausentem das discussões (apesar de ser o segundo maior emissor de gases de efeito estufa do mundo), União Europeia, China e Brasil precisam se unir e assumir a liderança.

A COP30 será em Belém, capital do Pará. Ainda não se sabe quem presidirá o evento.

Paira a dúvida de como Belém vai acomodar o número esperado de participantes (de 50 a 80 mil). Atualmente, a capacidade hoteleira da cidade é de pouco mais de 12 mil leitos.

Além disso, o Pará é o campeão de desmatamento e garimpo ilegal na Amazônia. E, em breve, Belém abrigará a maior refinaria de ouro do país, a North Star, cujos grandes acionistas são acusados ou já foram condenados por comércio ilegal de ouro, segundo reportagem do site Pará Terra Boa.

Incoerências gigantescas.

De nada adiantará mais um evento com “belos” discursos e acordos não cumpridos.

A janela de oportunidade para a virada da chave climática ainda está aberta. Mas o vento para fechá-la não para de soprar.

 

Jayati Ghosh: Como, agora, taxar os super-ricos?

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 Proposta brasileira foi aprovada por consenso no G20. E agora? Haverá fuga de capitais? E os paraísos fiscais? Como enfrentar declarações fraudulentas? Economista indiana explica os mecanismos para tributar, e redistribuir, 250 bilhões de dólares ao ano

Entrevista à Andy Robinson, OUTRAS MÍDIAS, 22/11/2024

A cúpula do G20, que se realizada nos dias 18 e 19 de novembro sob a presidência brasileira no Rio de Janeiro, está prestes a chegar a um consenso sobre uma proposta ousada de aplicação de um imposto sobre a riqueza ou o rendimento dos chamados “super ricos” do planeta, uma das prioridades do Governo Lula. Se isto acontecer, os Estados poderão ter entre 200 e 250 bilhões de dólares em rendimentos adicionais em todo o mundo. Neste momento, como destacou Lula no seu discurso no início da cúpula, 3 mil pessoas têm uma riqueza superior a 13 bilhões de dólares – mais do que o PIB agregado da América e da América Latina – enquanto 733 milhões de pessoas passam fome. Apenas um dos 19 países reunidos esta semana se opõe à proposta: a Argentina, cujo presidente, Javier Milei, chegou ao Rio após participar do banquete oferecido por Donald Trump em sua residência em Mar-a-Lago, em Palm Beach, para comemorar sua vitória e em que foi fotografado com o apresentador e com o homem mais rico do mundo, Elon Musk.

Nesta entrevista, realizada no mês passado em Washington, a economista Jayati Ghosh, uma das promotoras da ideia do imposto para os super-ricos, explica porque é necessário e como seria concebido. Nascida na Índia em 1955, Ghosh é uma especialista em desenvolvimento da escola heterodoxa, que após 35 anos na Universidade Jawaharlal Nehru, em Deli, ingressou no departamento iconoclasta de Ciências Econômicas da Universidade de Amherst, em Massachusetts, juntamente com Bob Pollin e Isabella Weber.

Eis a entrevista

Como você definiria o termo super rico?

Pois bem, Gabriel Zucman, da Escola de Economia de Paris, que elaborou o relatório sobre o imposto para o G20 no Brasil, propôs aplicá-lo aos bilionários. Mas existem apenas 3 mil bilionários em todo o mundo. Então eu diria que seria para pessoas com 70 ou 50 milhões. Estamos falando de pessoas muito, muito, muito ricas.

Quantos impostos os super-ricos pagam?

Menos que nós. Jeff Bezos, por exemplo, não paga um centavo de imposto de renda. Todos os super-ricos têm consultores fiscais e contabilísticos que os aconselham a contrair dívidas de consumo para pagar juros dedutíveis de impostos e registrar perdas. Deixe-os declarar ganhos de capital não realizados. Então eles não pagam impostos. Existem estudos rigorosos sobre o assunto nos EUA, Canadá e França. E, para os super-ricos, verifica-se que a taxa média de imposto está entre zero e 0,5%. Compare isso com os impostos que você e eu pagamos.

O imposto sobre os super-ricos seria cobrado em cada país separadamente, certo?

Sim. Seriam impostos totalmente nacionais. Temos que gerar nossos próprios recursos fiscais. Os governos de todo o mundo precisam desesperadamente deles. Especialmente países em desenvolvimento como o meu, onde a desigualdade é obscena. Precisamos dele para a proteção social, para o desenvolvimento, para as alterações climáticas. Para tudo. E sabemos que a riqueza, o patrimônio, está distribuído de forma extremamente desigual, ainda mais que o rendimento.

Os bilionários já estão entrando diretamente no poder político.

Sim. A riqueza vem com o poder. Uma vez rico, você terá muito poder para o bem social e econômico. Você pode influenciar governos, comprar uma plataforma de mídia porque gosta da ideia e depois mudá-la da maneira que desejar. Você pode voar para a lua se quiser. Isso é muito poder. Portanto, temos de moderar esse excesso de poder que provém do excesso de riqueza.

Como se explica o aumento da riqueza dos super-ricos?

Nada justifica este excesso de riqueza. Não é resultado da produtividade, mas sim das instituições que criamos. E a razão pela qual a situação está piorando é que os super-ricos podem influenciar essas mesmas instituições para as mudarem a seu gosto. Portanto, por muitas razões, um imposto sobre a riqueza é muito importante.

Há muito apoio à proposta?

É enorme. Houve uma pesquisa do Clube de Roma, do qual sou membro. Fizemos um estudo com a Gallup e 68% das pessoas entrevistadas em 17 países da OCDE apoiam um imposto sobre os super-ricos. Apenas 11% acham que é uma má ideia. Na Índia, o apoio foi de 80% porque temos níveis francamente obscenos de desigualdade de riqueza.

Então qual é a ideia?

Cada super-rico deveria pagar um mínimo de 2% de sua riqueza como impostos. Isso não significa que seja um imposto sobre a riqueza. Pode ser tributado sobre rendimentos de dividendos ou sobre algum outro ganho de capital não realizado. Como tributamos não importa. Quer dizer, existem diferentes maneiras de fazer isso, em diferentes contextos. O FMI acredita que é melhor tributar o rendimento do capital do que a riqueza. E não tenho nenhum problema com isso. A questão principal é que os super-ricos devem pagar 2% dos seus ativos. O economista francês Gabriel Zucman afirmou isso no relatório que preparou para o governo brasileiro visando a sua presidência do G20. Faz parte da agenda brasileira do G20.

Existe algum precedente?

Sim. A ideia é a mesma da taxa mínima de imposto sobre as sociedades de 15% que foi aprovada na OCDE. Isto serve para contrariar o truque empresarial de transferir os lucros das multinacionais para paraísos fiscais. Você sabe, quando, por exemplo, o Google diz ao governo espanhol: “Sinto muito. Eu não gero nenhum lucro em seu país. Tenho que pagar royalties sobre a propriedade intelectual e isso vai para a Irlanda. É uma pena, mas não posso pagar impostos aqui.” E a Irlanda tem uma taxa de imposto muito baixa, apenas 12,5%. É a famosa tática. Mas com o novo plano adotado pela OCDE, o país onde essa empresa opera pode dizer: “Tudo bem, mas se pagar apenas 12,5% na Irlanda, vamos tributar-lhe os restantes 2,5% aqui”.

E o mesmo sistema se aplicaria a indivíduos com alto patrimônio líquido e às empresas, correto?

Sim. É a mesma ideia aplicada aos indivíduos. Ou seja, o princípio deste imposto mínimo foi aceito pela OCDE para as empresas. Também deve ser feito para pessoas super ricas.

Como isso seria aplicado aos indivíduos?

A ideia é esta: que cada país aplique um imposto mínimo de 2% sobre a riqueza dos super-ricos. Se disserem que todo o seu dinheiro está nas Ilhas Cayman, bem, o país onde você reside diz: “Mas você não está pagando nenhum imposto nas Ilhas Cayman, então, de acordo com os novos regulamentos, posso tributar 2% de seus ativos.”

Não haveria problemas com mudanças e fuga de capitais?

Não, porque o Zucman tem outra ideia, que acho muito boa. É verdade que você costuma fazer isso e todo mundo ameaça se mudar. Está ocorrendo na Inglaterra neste momento com o fim do regime “non dom” (residentes temporários). Portanto, Zucman propõe um imposto de saída com base no tempo de permanência no país e na quantidade de riqueza que acumulou enquanto esteve nesse país. Em outras palavras, os super-ricos têm que pagar mesmo que saiam do país.

Mas como seria aplicado um imposto de saída?

Vejamos o caso de Gérard Depardieu. Você se lembra que em 2012 ele se mudou para a Bélgica porque achava que a taxa de imposto francesa era muito alta? Na medida em que ainda tenha alguns negócios em França, essa taxa de partida seria aplicada se quisesse regressar a Paris, por exemplo, para jantar. Antes de regressar à Bélgica, teria de pagar.

Como é que o G20 vai implementar isto?

Já sabe que as cúpulas do G20 são locais onde as pessoas mais falam do que agem. E tudo bem porque é melhor conversar do que ir para a guerra. Mas isso não leva necessariamente a nada. No entanto, o que aconteceu globalmente é que ocorreram duas grandes mudanças. Uma delas foi em 2016, quando conseguimos a troca automática de informações bancárias. 142 países assinaram. Todas as informações bancárias são trocadas automaticamente entre jurisdições fiscais. Muitos paraísos fiscais ficaram de fora; Os Estados Unidos ficaram de fora. Mas isso é o suficiente para começar.

Qual é a outra mudança?

Conseguimos, graças à União Africana, um acordo para criar uma convenção fiscal da ONU. O que é uma grande conquista. Sim. Isso não significa que todos os países terão de implementar os mesmos impostos. Estabelecer apenas os princípios nos quais as leis fiscais podem se basear. Então é uma espécie de harmonização. A transferência de lucros e tudo isso vai ficar muito mais difícil. São avanços muito importantes.

O que resta fazer?

São grandes avanços e o imposto para os super-ricos será outro. Mas os super-ricos não tendem a guardar dinheiro em seus próprios nomes. Eles usam relações de confiança. Portanto, precisamos de registros de ativos que identifiquem os proprietários beneficiários de todos os trustes. Normalmente, o truste é controlado por seu contador ou advogado. A UE introduziu esse regulamento, onde é necessário identificar o beneficiário efetivo. O problema é que eles não compartilham as informações com outras pessoas. Assim, se um bilionário na Índia tiver um truste, a UE poderá saber quem é o beneficiário efetivo. Mas o governo indiano não saberá. Precisamos compartilhar. Cada país deve fazer este registro de ativos e depois partilhar essa informação. Se as pessoas soubessem, exigiriam isso. Não há barulho suficiente sobre isso. Deve ser melhor comunicado. E este é o trabalho de meios de comunicação como o seu.

 

China X EUA

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Neste espaço, analisamos algumas das grandes transformações da sociedade internacional, destacando as mudanças nos modelos de negócios, transformações motivadas pelos desenvolvimentos científicos e tecnológicos, modificações no mundo do trabalho e as grandes agitações da lógica geopolítica, onde encontramos um novo confronto entre duas grandes nações, ambas vislumbrando a hegemonia do século XXI, buscando o domínio das estruturas econômicas e políticas. Neste novo século, encontramos uma rivalidade crescente entre os Estados Unidos e a China, deste conflito perceberemos o nascimento de uma nova sociedade global.

A hegemonia norte-americana foi incontestável no período pós segunda guerra mundial, onde os Estados Unidos liderou a recuperação da economia internacional, injetando bilhões de dólares nas estruturas econômicas ocidentais, exportando seu modelo produtivo, levando suas empresas para todas as regiões do mundo, internacionalizando seus valores centrados na concorrência, no individualismo e no imediatismo, liderando a construção de organizações multilaterais, tais como o Banco Mundial, a Organização das Nações Unidas, o Fundo Monetário Internacional, além de outras agências mundiais e impondo à sociedade global a sua moeda como o instrumento monetário e financeiro, transformando o dólar na moeda mais importante do mundo, responsável pelos fluxos comerciais e financeiros globais, garantindo para os Estados Unidos um privilégio exorbitante.

Nos anos 1980, a sociedade chinesa começa um processo de reestruturação interna, abertura econômica, centralização política, com forte planejamento do Estado Nacional, com grandes estímulos nos setores exportadores, centrados em políticas industriais ativas, atraindo interesses estrangeiros e exigindo a transferência de tecnologias para reestruturar os seus modelos econômicas e produtivos, ao mesmo tempo, o governo nacional incrementou os investimentos em educação, pesquisa científica e o desenvolvimento de novas tecnologias, copiando produtos, aprendendo modelos e aprimorando setores econômicos, ganhando mercados externos, com fortes estímulos fiscais e financeiros, levando a economia chinesa a crescer de forma acelerada e se transformando na indústria do mundo.

Na contemporaneidade, percebemos o embate entre dois grandes atores econômicos globais. A China se transformou na indústria do mundo, detentora de grandes tecnologias, retirando mais de 800 milhões de pessoas da indigência, um recorde global, além de criar empresas transnacionais que crescem de forma acelerada e é vista como uma nação marcada por grande disciplina, flexibilidade, autoconhecimento e grande capacidade de transformação nacional. Do outro lado, encontramos uma nação dividida, com forte crescimento das desigualdades, dotada de grande potencial bélico e militar, forte desenvolvimento tecnológico, detentora da moeda mais importante das finanças globais, que vem recorrendo ao protecionismo comercial como forma de evitar o crescimento do grande rival global e evitando a perda de espaço na economia internacional.

Neste ambiente de confrontos geopolíticos, o Brasil precisa compreender a importância de adotarmos uma política externa pragmática, flexível e responsável, fortalecendo a autonomia nacional e consolidando sua soberania política, conversando com todos as nações, negociando com todos os atores internacionais, fortalecendo seu setor industrial, participando dos fóruns globais, exigindo transferências de tecnologias, atraindo grandes empresas estrangeiras em parceria com conglomerados nacionais, fortalecendo a política industrial, incrementando os investimentos em educação, saúde, pesquisa e desenvolvimento tecnológico, reduzindo a dependência externa e fortalecendo setores inovadores e que apresentam grande potencial de desenvolvimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário

Golpismo bolsonarista vem dos porões da ditadura, por Marcos Augusto Gonçalves

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Golpismo bolsonarista vem dos porões da ditadura

Tramas reveladas pela PF expõem necessidade de cordão de isolamento entre a política e as Forças Armadas

Marcos Augusto Gonçalves, Editor da Ilustríssima, formado em administração de empresas com mestrado em comunicação pela UFRJ. Foi editor de Opinião da Folha.

Folha de São Paulo, 22/11/2024

As investigações da Polícia Federal acerca das tramas golpistas no entorno de Jair Bolsonaro vão confirmando o que já se sabia: o ex-presidente é um filhote dos porões da ditadura militar, discípulo e admirador de Carlos Brilhante Ustra e da facção de torturadores e fanáticos que viviam nos subterrâneos tenebrosos do regime e acabaram derrotados durante seu processo de decadência.

Mentiroso contumaz, sádico e inimigo da democracia, Bolsonaro foi acusado de indisciplina em campanhas por grupos salariais no Exército e de tramar explosões de bombas para desestabilizar os comandos. Foi considerado culpado por uma junta de três coronéis e depois absolvido por 8 a 4 pelo Superior Tribunal Militar, numa decisão acochambrada, que antecedeu sua saída da Força.

Beneficiando-se de medidas judiciais heterodoxas da Lava Jato, que levaram seu maior rival à prisão, Bolsonaro cresceu num momento internacional de turbulências em democracias. Contou com o apoio de elites econômicas de visão curta, quando não apenas chucras e irresponsáveis, e de uma classe média indignada com a corrupção e com o sistema político. Ganhou ainda o voto de uma massa de “batalhadores”, além de pobres desesperançados, entorpecidos pela mistificação religiosa e pelo moralismo evangélico reacionário.

Com sua experiência de ativista incendiário, Bolsonaro promoveu comícios e alastrou a politização na caserna, sob a sombra cúmplice de figuras sinistras como o general Eduardo Villas-Bôas. Seu partido usava farda.

Visto inicialmente com simpatia por setores expressivos da mídia, que acreditaram numa hipotética revolução liberal na economia a ser liderada pelo mitômano (o termo é de Persio Arida) Paulo Guedes, o ex-capitão não demorou muito a mostrar os dentes, que, aliás, já havia exibido, mas se fingia que não morderiam.

Conhece-se bem o que se passou a viver no Brasil, um vendaval a cada semana. O governo desmontou os mecanismos de proteção ambiental, apostou contra a crise climática e as vacinas, passou a atacar a imprensa, com sua característica perversão misógina, e a solapar a lógica da democracia. O ministério, um horripilante trem fantasma, contava com um general da ativa, Eduardo Pazuello, na Saúde.

Como nunca se viu desde a ditadura, a ocupação de cargos públicos por militares e policiais disparou. Ao mesmo tempo, surgiam as relações com milicianos e apostava-se no armamentismo.

Às primeiras evidências de fracasso político, Bolsonaro entregou a chave do cofre para o centrão e tratou de investir contra as instituições que poderiam certificar uma já factível derrota eleitoral. Tramava-se contra o Estado de Direito, golpistas acampavam diante de quartéis acolhedores, e a urna eletrônica era apedrejada todo dia. Um resultado negativo seria visto como fraude.

A conspiração dos nostálgicos dos porões, que arrastou beócios extremistas à “festa de Selma”, continua se revelando ao país. O complô, que incluía até planos de assassinatos de autoridades, não contava com a maioria da cúpula militar, mas nada pode ser visto como fato isolado. É preciso de uma vez por todas estabelecer um cordão de isolamento entre a política e as Forças Armadas. E revisar na Carta o artigo 142, que só fomenta pretensões fantasiosas na caserna.

Donald Trump e o sistema mundial, por José Luís Fiori

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José Luís Fiori – A Terra é Redonda – 21/11/2024

Se houver um acordo de paz na Ucrânia, o mais provável é que ele seja ponto de partida de uma nova corrida armamentista dentro da própria Europa e entre os EUA e a Rússia

A maioria dos analistas está de acordo que o fracasso internacional do governo de Joe Biden teve um papel importante na vitória de Donald Trump, nas eleições do dia 5 de novembro de 2024. Com destaque para a humilhante retirada americana do Afeganistão; para o fracasso da OTAN na Guerra da Ucrânia; ou finalmente, para a ambiguidade dos EUA frente ao genocídio israelense da Faixa de Gaza, dividido entre seus apelos humanitários, e o fornecimento direto das armas, do dinheiro e das informações utilizadas pelo governo de Israel no bombardeio da população palestina.

Neste momento ainda não se pode saber se a reeleição de Donald Trump será apenas uma rodada a mais da “gangorra” política americana. Desta vez, entretanto, Donald Trump não pode reeleger-se e terá um mandato de apenas quatro anos, mas ao mesmo tempo contará com uma maioria conservadora no Congresso, no Senado e na Corte Suprema, e disporá de uma equipe de auxiliares homogênea. O que lhe permitirá, em princípio, levar à frente, de forma rápida e imediata, a sua “agenda nacional”. Mas na área internacional, entretanto, o horizonte é menos claro.

Neste campo a consigna básica de Donald Trump foi sempre a mesma: “a paz através da força”, e não pela guerra. Mas, além disso, o projeto internacional de Donald Trump abre mão da “excepcionalidade moral” dos EUA, e adota o “interesse nacional americano” como a única referência de todas as suas escolhas, decisões e alianças que poderão variar através do tempo. Seguindo-se daí o ataque de Donald Trump contra todas as instituições multilaterais, e contra todos os acordos e regimes comerciais, ou associados com a “questão climática” e a “transição energética”.

As “políticas internas” de Donald Trump envolvem decisões soberanas e autônomas, e poderão ser tomadas sem maiores consultas a outros países e governos. Mas no caso da agenda internacional do novo governo, o problema é muito mais complexo, porque envolve acordos passados dos EUA, e se enfrenta com a vontade soberana de outros países, e de outras Grandes Potencias, como no caso da China, do Irã, da Rússia, ou mesmo dos seus aliados da OTAN.

Com relação à China, é muito provável que Donald Trump consiga negociar acordos comerciais e tecnológicos pontuais. Mas a competição e o atrito entre os dois países deve se manter e aumentar de intensidade nos próximos anos. Até porque a China já foi definida pelos estrategos americanos, já faz algum tempo, como principal competidor e a principal ameaça aos Estados Unidos, no Século XXI. Nesse campo se pode falar inclusive de um consenso bipartidário, entre democratas e republicanos, com diferenças apenas de gradação e intensidade. De fato, o governo de Joe Biden manteve a mesma política protecionista contra China do primeiro governo de Donald Trump.

Com a diferença que agora a China se encontra melhor preparada e não será surpreendida como aconteceu no primeiro governo Trump. Além disto, nestes anos recentes a China aprofundou sua relação econômica com seus vizinhos asiáticos, e com os países africanos e latino-americanos. E desde o início da Guerra da Ucrânia, em 2021, os chineses estreitaram seus laços econômicos e sua aliança estratégica com a Rússia, fechando a porta para qualquer tentativa de repetir a estratégia de Henry Kissinger, do século passado, só que agora invertendo os papéis da China e da Rússia.

Por tudo isto, o mais provável durante o segundo mandato de Donald Trump, é que as relações entre as duas potências sigam regidas pela “armadilha de Tucídides”, com uma aceleração sem precedentes da sua competição tecnológica e militar, com a universalização de sua “guerra comercial”, incluindo-se a possibilidade anunciada por Donald Trump, de punição dos países que não utilizem o dólar em suas transações internacionais, em particular no caso do grupo do BRICS.

No caso do Oriente Médio, também, são muito pequenas as diferenças entre as posições dos democratas e dos republicanos. Donald Trump deve inclusive aumentar o apoio do governo norte-americano à Israel e às suas guerras em Gaza e no Líbano. E deve aumentar a política de “pressão máxima” contra o Irã. Mas neste seu segundo mandato Donald Trump deve encontrar no Oriente Médio uma realidade militar e política muito diferente da que existia no seu primeiro mandato, sobretudo depois do sucesso dos dois ataques militares diretos do Irã contra a território israelense, da ruptura radical da Turquia com Israel, e da reaproximação entre o Irã e a Arábia Saudita, promovida pela China e abençoada pela Rússia.

Por isto qualquer acordo de cessar-fogo imediato que possa ser logrado não significará que Israel e o Irã suspendam a sua disputa de longo prazo, que é do tipo “soma zero”. A hipótese dos “dois estados” parece completamente afastada e a resistência dos palestinos deve prosseguir, assim como a ameaça permanente de uma guerra entre os persas e os judeus com a possibilidade de transformar-se num conflito generalizada dentro do Oriente Médio.

Já na Europa o panorama é completamente diferente, e existe uma oposição radical entre o posicionamento dos democratas e o dos republicanos. Neste caso, a simples vitória eleitoral de Donald Trump, junto com a implosão do governo alemão de Olaf Scholz, provocaram de imediato, um profundo abalo e uma primeira divisão dentro do bloco belicista liderado pela presidenta da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e por sua nova Chefe de Política Externa, Kaja Kallas, e apoiado pelo governo Biden, pela francês Emmanuel Macron, e pelo governo do primeiro-ministro inglês, Keir Stramer.

Ainda não está excluída a hipótese de que esta “coalisão russofóbica” se lance num ataque suicida contra a Rússia, antes da posse de Donald Trump. Mas o mais provável agora é que se iniciem de imediato as negociações de paz, com o reconhecimento implícito por parte dos EUA da vitória militar russa. Mas também aqui não há que ter ilusões. Depois de sua vitória militar e econômica os russos não aceitarão mais o mundo unipolar tutelado pelos EUA. E o mais provável é que os EUA e a Inglaterra, junto com seus aliados europeus sigam se armando contra a Rússia, o grande “inimigo externo” que serviu como uma espécie de “princípio organizador estratégico” das potências ocidentais, e em particular da Inglaterra durante todo o Século XIX e dos EUA, no Século XX.

Se este “inimigo necessário” desaparecesse os EUA e a Inglaterra teriam que sucatear parte importante de sua infraestrutura militar global, construída com o objetivo de conter o “expansionismo russo”, envolvendo um investimento gigantesco em armas e em todo tipo de recursos materiais e humanos, civis, militares e paramilitares. E a OTAN, em particular, perderia sua razão de ser levando de roldão a estrutura de poder atual da União Europeia.

Por isto, se houver um acordo de paz na Ucrânia, o mais provável é que ele seja também o ponto de partida de uma nova corrida armamentista, cada vez mais intensa, dentro da própria Europa, e obviamente, entre os EUA e a Rússia, com repercussões em cadeia, em todas as direções e latitudes do sistema mundial.

Por fim, os países periféricos da América Latina e da África não têm a menor importância dentro do projeto internacional de Donald Trump, que supõe sua submissão pura e simples ao poderia monetário e econômico dos EUA. E neste caso, é muito provável que se repita o que passou na década de 80 do século passado, quando a periferia capitalista foi submetida e/ou derrotada pela política econômica norte-americana do “dólar forte” e do “keynesianismo militar’ de Ronald Reagan, sendo depois “resgatadas” pelas políticas e reformas neoliberais” impostas pelos “programas de ajuste” do FMI.

Só que agora o enquadramento e submissão dos Estados e das economias endividadas da América Latina e África deverá acontecer como derivação ou consequência indireta do novo “protecionismo econômico” anunciado por Donald Trump. Seu efeito imediato deverá ser o aumento da inflação e dos juros dentro dos EUA, e este aumento dos juros deverá provocar uma desvalorização generalizada das demais moedas nacionais, com aumento da dívida externa dos países endividados em dólares, junto com o aumento das suas taxas de inflação, paralisia fiscal dos seus estados e estagnação de suas economias. E no fim, a volta e a submissão provável ao FMI, como no caso patético da Argentina de. Javier Milei.

Resumindo, portanto, o que se deve esperar no campo internacional para os próximos quatro anos da administração Trump: os Estados Unidos abdicam do projeto de universalização messiânica dos seus valores nacionais, e deixam de ser os “Cavaleiros Templários” de uma “ordem mundial regida por regras”. E se propõem atuar dentro do Sistema Mundial a partir exclusivamente dos seus “interesses nacionais” utilizando-se da sua força bruta, financeira, tecnológica e militar para impor sua vontade onde considere que seja necessário. Com um apelo, só em última instância, ao recurso da guerra.

*José Luís Fiori é professor emérito da UFRJ. Autor, entre outros livros, de Uma teoria do poder global (Vozes)

 

Por que a guerra comercial de Trump causará caos, por Martin Wolf

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Tarifas, especialmente sobre um país, levarão a uma bagunça econômica e política desastrosa

Martin Wolf, Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

Folha de São Paulo, 19/11/2024

Donald Trump deve ser levado ao pé da letra ou a sério? Salena Zito ofereceu essas alternativas em uma coluna no The Atlantic publicada em setembro de 2016. Hoje, antes de ele obter poder pela segunda vez, Trump deve ser levado mais a sério e mais literalmente do que da última vez.

As evidências vêm de suas nomeações, notavelmente Robert F. Kennedy Jr na saúde, Pete Hegseth na Defesa, Tulsi Gabbard na Inteligência nacional e Matt Gaetz na justiça. Essas pessoas mostram que Trump será muito mais radical. Além disso, a política comercial há muito é a área em que ele deve ser levado tanto a sério quanto literalmente; o protecionismo não é apenas uma crença pessoal de longa data, mas uma à qual ele já estava dedicado da última vez.

Infelizmente, o fato de que Trump precisa ser levado ao pé da letra e a sério não significa que ele (ou aqueles ao seu redor) entendam a economia do comércio. Se ele está disposto a acreditar nas bobagens “anti-vacina” de Kennedy, por que se importaria com o que os economistas pensam sobre isso?

Ele comete dois grandes erros: primeiro, não tem noção de vantagem comparativa; segundo e pior, não entende que o saldo comercial é determinado pela oferta e demanda agregadas, não pela soma dos saldos bilaterais. É por isso que sua guerra tarifária não reduzirá os déficits comerciais dos Estados Unidos. Pelo contrário, especialmente no contexto atual, é mais provável que leve à inflação, conflito com o Federal Reserve e perda de confiança no dólar.

Se alguém quer produzir mais de algo —substitutos de importação, por exemplo, como Trump deseja— os recursos devem vir de algum lugar. As perguntas são “de onde?” e “como?”. A resposta pode ser “das exportações, via um dólar mais forte”, já que as tarifas reduzem a demanda por moeda estrangeira, com a qual se compram importações. Dessa forma, um imposto sobre importações acaba sendo um imposto sobre exportações. O saldo comercial não melhorará.

Fundamentalmente, a macroeconomia sempre vence, como Richard Baldwin do IMD em Lausanne nos lembra em uma nota para o Peterson Institute for International Economics. O saldo comercial é a diferença entre rendas e gastos agregados (ou poupança e investimento). Enquanto isso não mudar, o saldo comercial também não mudará.

Os EUA têm gasto consideravelmente mais do que sua renda há muito tempo. Isso é mostrado no fornecimento líquido consistente de poupança estrangeira, que em média foi de 3,9% do PIB, entre o segundo trimestre de 2021 e 2024. Assim, os setores domésticos devem, em conjunto, ter registrado déficits correspondentes.

De fato, o superávit de poupança sobre investimento no setor doméstico foi em média de 2,3% do PIB e no setor corporativo de 0,5%. Em suma, apenas o governo registrou um déficit, que em média foi de enormes 6,7% do PIB. Se alguém quer eliminar os déficits externos, os setores domésticos devem ajustar-se na direção oposta, em direção a superávits maiores de poupança, com o maior ajuste certamente vindo desses enormes déficits fiscais.

No entanto, como Olivier Blanchard observa em outro artigo para o Peterson Institute, Trump prometeu estender os cortes de impostos promulgados em 2017. Além disso, ele sugeriu que os benefícios da Seguridade Social e gorjetas se tornem totalmente não tributáveis, que as deduções de impostos estaduais e locais sejam aumentadas, e que a taxa de imposto corporativo, que foi reduzida de 35% para 21% em 2017, seja ainda mais diminuída para 15% para empresas de manufatura. Ele também sugeriu a deportação em massa de cerca de 11 milhões de imigrantes indocumentados.

Em resumo, ele planeja reduzir a oferta e estimular a demanda. Isso piorará o saldo comercial, não o melhorará. Além disso, também criará pressão inflacionária, que o FED terá que reprimir. Enquanto isso, a dívida federal continuará em seu caminho explosivo, talvez ameaçando a confiança no próprio dólar.

Em suma, não há possibilidade de reduzir o déficit comercial geral com as políticas que Trump propõe. Reduzir o déficit bilateral com a China apenas aumentaria os déficits com outros. Isso é inevitável, dadas as pressões macroeconômicas persistentes. Além disso, suas políticas comerciais discriminatórias, com tarifas de 60% sobre a China e de 10% a 20% sobre outros, estão destinadas a se espalhar.

Trump e seus funcionários verão que as exportações de outros países estão substituindo as da China via transbordo, montagem em outros países ou competição direta. As respostas serão ou a imposição de “regras de origem”, com toda a burocracia que isso requer, ou um aumento nas tarifas para 60% sobre todas as importações de manufaturados. Enquanto isso, sem dúvida, também haverá retaliação.

Tal disseminação de altas tarifas nos EUA e em todo o mundo provavelmente levará a um rápido declínio no comércio e na produção mundial. O Instituto Nacional de Pesquisa Econômica e Social do Reino Unido prevê: “Cumulativamente, o PIB real dos EUA pode ser até 4% menor do que seria sem a imposição de tarifas.”

Meu palpite é que isso é muito otimista, dada a incerteza que também seria desencadeada. No entanto, mesmo assim, os déficits externos dos EUA podem não encolher. Isso dependeria de se os gastos caíssem ainda mais do que a produção. Se isso acontecesse, o saldo comercial melhoraria. Mas isso também significaria uma recessão profunda.

Na semana passada, apontei que a política comercial é muito improvável de reverter o declínio de longo prazo na participação de empregos na manufatura dos EUA.

Esta semana, acrescento que tarifas não apoiadas por uma redução nos gastos agregados em relação à produção não eliminarão déficits externos. Tarifas sozinhas, especialmente tarifas discriminatórias sobre um país, apenas causarão uma bagunça econômica e política, à medida que se espalham como ervas daninhas pelo globo.

Quando o rei Canuto da Inglaterra supostamente se sentou diante da maré que subia, ele o fez para provar que não podia comandar o mar. Donald Trump acredita que pode. Ele ficará desapontado. E, infelizmente, nós também.