Efeitos dos eventos climáticos nas grandes cidades, por Carlos Nobre.

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Ilhas de calor urbanas podem ampliar em até 10°C a temperatura nessas áreas

Carlos Nobre, Climatologista, é pesquisador sênior pelo Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e copresidente do Painel Científico para a Amazônia; foi eleito em maio de 2022 membro estrangeiro da Royal Society

Folha de São Paulo, 19/11/2024

As cidades brasileiras são resilientes aos eventos climáticos extremos? Os eventos extremos tropicais são cada vez mais frequentes e trazem às cidades distúrbios diversos, como chuvas excessivas, alagamentos, rajadas de vento, raios e ondas de calor, com forte impacto nas pessoas e na economia local. Uma realidade que exige adaptações das cidades, especialmente nas áreas urbanas e superpopulosas, onde os eventos vêm causando grandes desastres.

A Organização Meteorológica Mundial mostra que desastres naturais nos últimos 50 anos somaram 11 mil eventos, somando US$ 3,5 trilhões de prejuízo e 91% da mortalidade nos países em desenvolvimento. Entre outras características, a resiliência climática de uma cidade pode ser enquadrada como a quebra dos seus serviços de segurança hídrica e de regulação térmica.

A ilha de calor urbana é um fenômeno notado globalmente, com ampliação de temperatura nas áreas urbanizadas em escalas de até 10ºC, com maior ênfase nas grandes cidades. Municípios como São Paulo, superpopulosos, absorvem energia radiativa atmosférica muito superior à de áreas com vegetação.

Os fatores urbanísticos que mais reduzem as mortes e doenças decorrentes do calor urbano excessivo são a utilização de ar refrigerado e pronunciada vegetação próxima às habitações. Porém, essas condições não prevalecem em cidades como São Paulo, que está dominantemente coberta por edifícios e asfalto, com pouca vegetação e utilização de ar condicionado restrita às classes de maior renda.

As condições de eventos climáticos extremos são chuvas prolongadas ou tempestades intensas associadas com fortes rajadas de vento e descargas elétricas. Essas tempestades, que em São Paulo geram 700 mil raios por ano, são justamente estimuladas nas áreas urbanizadas devido ao aquecimento local, e respondem por 80% dos danos à rede de eletricidade.

As estatísticas dos extremos climáticos nas cidades só crescem e o risco tende a ser agravado no futuro. Isso por conta do crescente aumento da população nas áreas urbanas, do aumento da probabilidade de ocorrências, e da maior vulnerabilidade da população, seja pelo seu envelhecimento ou pelo adensamento populacional crescente em regiões de baixa renda.

Cidades consideradas resilientes são pouco penalizadas pelos grandes distúrbios atmosféricos porque, ao terem clareza de seus impactos, se preparam para enfrentá-los. No Brasil, ainda não dispomos desse preparo, que depende de soluções que envolvem planejamento urbano de médio e longo prazos de caráter sustentável, como as interferências de infraestrutura verde, que possam reter mais a água em áreas verdes, sejam elas públicas, privadas ou vegetação viária.

Essas interferências associadas ao incremento e adensamento da vegetação têm efeito na redução da temperatura e, por consequência, na redução de eventos extremos.

 

A miséria da política no Brasil neoliberal, por Giovanni Alves

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Giovanni Alves – A Terra é Redonda – 14/11/2024

Trechos, selecionados pelo autor, da introdução do livro recém-lançado

A miséria da política no Brasil neoliberal

O objetivo do livro O Estado neoliberal no Brasil: Uma tragédia histórica é explicar a gênese, afirmação e consolidação do Estado capitalista neoliberal no Brasil, uma estrutura política que impede a nação de oferecer respostas efetivas à crise de civilização que a aflige. Esse modelo de Estado é incapaz de combater a desigualdade social, construir um projeto de nação livre e soberana e enfrentar de maneira eficaz os desafios das transições climática, demográfica e epidemiológica, que devem convulsionar a sociedade brasileira nas próximas décadas. Esta é uma verdade inegável.

Na Parte 1, apresento importantes conceitos da teoria política marxista que explicam a miséria política brasileira, responsável pelo colapso da Nova República e pela consolidação do poder da oligarquia financeira – a fração de classe que organiza o bloco no poder do Estado neoliberal no Brasil.

A Parte 2 trata dos sistemas que sustentam o Estado neoliberal no Brasil: o sistema da oligarquia financeira, o sistema de superexploração do trabalho e o sistema de produção da ignorância cultural no país. Por fim, elaboro uma reflexão sobre a construção da sociedade civil neoliberal, a base da hegemonia burguesa que mantém o poder dominante.

O Estado neoliberal é o Estado político do capital na fase do capitalismo global. Como país de capitalismo dependente e subalterno à mundialização do capital, o Estado neoliberal se reproduziu no Brasil com base histórica no Estado oligárquico-burguês, fortalecido e perpetuado pela ditadura civil-militar (1964-1984).

A perpetuação do Estado oligárquico-burguês é secular, refletindo historicamente o poder social das classes dominantes brasileiras: (i) o patronato agrário-industrial, financeiro-rentista parasitário e comercial; e (ii) o patriciado estatal (político-militar e tecnocrático) e civil (eminências, lideranças e celebridades). Como aliados históricos das classes dominantes, temos os setores intermédios (autônomos e dependentes). [1]

No campo da disputa ideológica e política pela sustentação da forma de Estado oligárquico-burguês neoliberal, temos as classes subalternas (operariado, assalariados de serviços e campesinato) e as classes oprimidas (os miseráveis ou a ralé). Como nunca tivemos uma revolução social no Brasil, o poder da oligarquia proprietária e das camadas patriciais se enrijeceu na estrutura material do Estado brasileiro, sendo reproduzido secularmente pelo modo politicista de fazer história no Brasil (negociação, clientelismo, conciliação).

Desde a Independência do Brasil, há 200 anos, a forma estatal oligárquico-burguesa de dominação de classe reflete a hegemonia ideopolítica e cultural do capital, tanto na “sociedade política” (o Estado propriamente dito) quanto na “sociedade civil”. A classe dominante (patronato e patriciado) é também classe dirigente, na medida em que produz e reproduz o metabolismo ideológico-mental adequado à dominação de classe.

A ideologia da classe dominante é a ideologia dominante na sociedade – eis a lei histórica. As classes subalternas e oprimidas nunca conseguiram disputar historicamente a hegemonia intelectual-moral na sociedade civil e a direção político-moral do Estado propriamente dito. As ideias, a cultura e o pensamento social brasileiros refletiram, de certo modo, os humores, idiossincrasias e a visão de mundo burguês oligárquico-senhorial da nossa formação capitalista dependente.

Isso se refletiu inclusive no pensamento da esquerda social e política, que não conseguiu efetivamente ir além das estruturas deformadas da visão liberal do mundo reproduzida pelos donos do poder. Nosso objetivo é criticar o Estado neoliberal enquanto materialidade política ampliada do capital: sociedade política e sociedade civil neoliberais. É essa materialidade política do Estado neoliberal ampliado, tal como iremos apresentar aqui, que reproduz no Brasil a dominação burguesa nas condições históricas da crise estrutural do capitalismo brasileiro.

Nesta introdução, apresentaremos as principais características que configuram a miséria política sob o capitalismo neoliberal: o politicismo, o fisiologismo, o taticismo, o pragmatismo e o burocratismo. Todos eles compõem o complexo da pequena política. Não foi o Estado neoliberal que criou a miséria da política, mas ele exacerbou, com o império da pequena política, as determinações estranhadas da politicidade alienada do capital. Na verdade, a miséria da política nas condições históricas do capitalismo periférico hipertardio e dependente, de extração colonial-escravista, faz parte historicamente da estrutura da materialidade política brasileira e do modo de dominação política da oligarquia brasileira.

No século XXI, com a crise estrutural do capital e a decadência do projeto civilizatório burguês, exacerbou-se – no centro e na periferia – a crise da democracia liberal, devido à falência histórica da esquerda social e política (o grande transformismo) e à incapacidade do centro-direita de resolver os problemas do capitalismo à deriva. Enquanto estrutura de poder, o Estado neoliberal tornou-se a expressão da tragédia histórica brasileira. O Brasil, país de capitalismo periférico dependente e subalterno à ordem mundial do capital, a partir de 1980 – com a crise da dívida externa –, afundou seu projeto de civilização construído desde a década de 1950, entregando-se de vez, a partir de 1990, à programática neoliberal.

Na verdade, esta foi a escolha política da burguesia brasileira, organicamente subordinada aos interesses do poder imperial dos EUA – a mesma burguesia que fez o Golpe de 1964 e sustentou o regime militar autocrático até sua decrepitude acelerada com a crise do capitalismo na década de 1970. Foi a mesma burguesia associada ao imperialismo que operou a transição lenta, gradual e segura para a democracia política – transição pelo alto, concertada com os militares na década de 1980.

A Constituição de 1988 foi produto da correlação de forças sociais e políticas na década de 1980 no Brasil. Ela materializou a hegemonia burguesa sob o nome de Estado democrático de direito, criando, naquela época, um sistema político que pudesse reproduzir o complexo da miséria política que iremos descrever neste capítulo. Foi a burguesia de cariz autocrático e de formação escravista-colonial que – com o medo ontogenético do povo brasileiro – produziu e apoiou o candidato que, a partir de 1990, implantaria o programa neoliberal no Brasil: Fernando Collor de Mello (PRN [2]).

Mas a Nova República, instaurada com a Constituição de 1988, durou até 2016. Com a crise profunda do capitalismo global a partir de 2008 e a longa depressão da década de 2010, a burguesia brasileira, classe dominante e dirigente do Estado neoliberal, operou – mais uma vez – um golpe de Estado – não mais na forma militar (como em 1964), mas na forma jurídico-parlamentar (lawfare [3]), visando destituir a Presidenta Dilma Rousseff (PT), obstáculo político para que a classe dominante e suas frações pudessem reestruturar o capitalismo brasileiro a seu modo, por meio do aumento da taxa de exploração e da espoliação das riquezas nacionais.

Foi assim que foi consolidado o Estado neoliberal no Brasil. Entendemos o Estado neoliberal como a materialidade política do declínio civilizatório no Brasil. Trinta anos de Estado neoliberal foram mais do que suficientes para constatarmos os resultados da política de reforço do sistema da dívida pública (austeridade neoliberal permanente), do sistema de superexploração da força de trabalho (predomínio dos baixos salários) e do sistema de produção da ignorância cultural (manipulação midiática numa intensidade nunca antes vista na história brasileira).

A década de 1990 foi marcada pelas contrarreformas neoliberais no Estado e na economia, bem como pelo fortalecimento do ethos neoliberal na sociedade civil por meio da manipulação midiática. Foi assim que se constituiu o Estado neoliberal, uma estrutura de poder reproduzida nas décadas seguintes por todos os governos – de direita ou de esquerda – da República brasileira. O PT, partido histórico da esquerda brasileira, passou por um Grande Transformismo [4] e conformou-se com a reprodução da ordem dominante.

Durante os governos do PT, sob o espírito do lulismo, afirmou-se o Estado neoliberal. O neoliberalismo eliminou a política, mas isso só ocorreu devido à eliminação do protagonismo antagônico da esquerda social e política contra a ordem burguesa [5]. Tanto quanto o neoliberalismo, o Grande Transformismo foi responsável pelo aprofundamento da miséria política na vida brasileira. Assim, a morte da política pelo neoliberalismo é a morte da esquerda social e política capaz de criticar a ordem burguesa. Isso contribuiu para consolidar o Estado neoliberal, que em 2024 completa trinta anos de domínio efetivo do capitalismo neoliberal no país – com o apoio da esquerda brasileira representada pela figura carismática de Luís Inácio Lula da Silva (PT).

A distinção metodológica entre Estado e governo

É crucial distinguir entre Estado e governo. O governo é uma parte do Estado. Os partidos eleitorais visam apenas administrar a materialidade do Estado político do capital, aspirando, portanto, ao governo para ocupar cargos e gerir o establishment, ou seja, o poder da burguesia. A diferença entre governo e Estado é, de fato, uma questão complexa que tem sido objeto de debate na ciência política por séculos.

De forma geral, pode-se afirmar que o Estado é a entidade soberana que detém o monopólio da força legítima, com o objetivo de garantir as relações de propriedade da classe dominante. Ele é produto de uma construção histórico-social das classes proprietárias, surgindo da necessidade de organizar (dominar/dirigir) a sociedade e assegurar sua ordem e segurança como pré-requisitos para a reprodução social.

O Estado é composto por um conjunto de instituições, entre elas o governo, além do exército, da polícia e do sistema judiciário. O Estado também possui um território definido, uma população e soberania, enquanto o governo é o conjunto de instituições que administra o Estado. O governo, por sua vez, é a instituição que exerce o poder político dentro do Estado, formado por um conjunto de pessoas, geralmente eleitas, responsáveis por tomar as decisões que governam a sociedade.

O governo pode ser dividido em três poderes: executivo, legislativo e judiciário. Portanto, a principal diferença entre governo e Estado é que o governo administra o Estado, ou seja, é responsável por tomar as decisões que regem a sociedade, enquanto o Estado é a materialidade política que garante a ordem e a segurança da sociedade capitalista. O Estado é uma instituição permanente, enquanto o governo é temporário, eleito por um período determinado. O monopólio da força legítima é uma característica do Estado, e não do governo. [4]

No Brasil, o Estado é uma república federativa, o que significa que está dividido em três níveis de governo: federal, estadual e municipal. Cada nível possui suas próprias atribuições e responsabilidades. O governo federal cuida de políticas nacionais, como defesa, economia e diplomacia. Os governos estaduais são responsáveis por políticas estaduais, como educação, saúde e segurança pública. Já os governos municipais tratam de políticas locais, como saneamento básico, transporte público e cultura. Todos os governos eleitos no período da Nova República no Brasil – sejam de direita ou de esquerda – apenas reproduziram e consolidaram o Estado neoliberal. Devido à pressão do bloco no poder, esses governos aceitaram os limites de sua função administrativa.

Mesmo os governos do PT, o principal partido de esquerda do país, renunciaram a uma estratégia de poder que ultrapassasse a materialidade política do Estado capitalista brasileiro, que, desde 1990, foi constituído como um Estado neoliberal. Por exemplo, a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal [6] tornou-se uma cláusula pétrea do Estado brasileiro, que todos os governos optaram por obedecer.

Caso desafiassem essa lei, sofreriam não apenas penalidades legais, mas também as impostas pelo mercado financeiro, que os obrigaria a se submeter a outra cláusula pétrea: o sistema da dívida pública ou sistema da oligarquia financeira. Os governos de esquerda, eleitos a partir de 2002, apenas procuraram operar da melhor forma a nova ordem neoliberal, implantando medidas compensatórias no âmbito social para os mais pobres, sempre respeitando os interesses da classe proprietária. Esse é o espírito de colaboração de classes que caracterizou os governos de esquerda desde então.

À medida que o Estado neoliberal se consolidava, com seus sistemas de dominação de classe, ele sobrepôs-se e subordinou a sociedade civil. Em suma, os dirigentes políticos do maior partido de esquerda no Brasil renunciaram a um projeto de poder que superasse o Estado neoliberal e, em vez disso, buscaram reforçá-lo. Quando eleitos em 2022, a esquerda política, representada pelo PT, paralisou-se diante do poder consolidado do Estado neoliberal, sendo incapaz de implantar seu programa de mudanças sociais, devido à falta de margem de manobra. Esse foi o resultado de mais de 20 anos de conciliação de classes e acomodação ao Estado neoliberal, o que, hoje, tornou inoperante a esquerda social e política.

Estado neoliberal e a tragédia da política

Além de esclarecer o que é o Estado neoliberal, nosso livro busca criticar a esquerda brasileira, que renunciou à crítica do Estado neoliberal, limitando-se a operar a ordem dominante, administrando-a e, enquanto suposta esquerda, tentando torná-la mais humana, mas sem promover um projeto (ou ação) contra-hegemônica. Essa postura política da esquerda social-liberal, representada pelo PT (Partido dos Trabalhadores), esgotou-se e hoje se encontra rendida ao Estado neoliberal.

O horizonte da luta política dessa esquerda social-liberal – como a chamaremos – resume-se à vitória eleitoral e à governabilidade dentro da ordem neoliberal. Enquanto a direita neoliberal e a extrema direita são contrarreformistas, a esquerda social-liberal administra a nova materialidade política e social resultante da nova ordem neoliberal, limitando-se a “reformas de baixa intensidade”. No fundo, ela não possui uma estratégia de contrapoder, mas se dedica a táticas de luta política focadas em eleições, reeleições e ocupação de cargos nas instituições do Estado.

A esquerda neoliberal não é uma esquerda reformista, como era a esquerda social-democrata, mas sim uma esquerda contrarreformista. Por isso, podemos afirmar que a esquerda brasileira faliu de uma vez por todas, à medida que todo seu espectro politicamente relevante – PT e PSOL – incorporou as características estruturais da política burguesa no Brasil, como descreveremos a seguir. Esta é a maior tragédia histórica do Brasil. As formas ideológicas da miséria da praxis política alienada, que têm caracterizado nosso sistema político, servem para reproduzir a ordem do capital.

Essas formas alienadas de politicidade do capital aderiram à praxis política, provocando uma distorção irremediável. Ao incorporar essas determinações da politicidade alienada do capital, a esquerda social-liberal contribuiu para a morte da política e da democracia liberal, ao se identificar com seus oponentes históricos. Embora se apresente como alternativa à direita neoliberal, a esquerda social-liberal tornou-se cada vez mais incapaz de mudar a ordem burguesa, que hoje não consegue atender às demandas civilizatórias.

A morte da política – que é também a morte da esquerda – é uma operação fundamental da ofensiva neoliberal do capital. O capital subsumiu a política de esquerda, degradando-a da mesma forma que degradou o trabalho, o consumo, a cultura e a sociedade. Isso configura o novo sociometabolismo do capital ou o sociometabolismo da barbárie no plano da praxis política. Incapaz de oferecer um projeto civilizatório, o capital produz o sociometabolismo da barbárie.

No caso de países de capitalismo dependente, hipertardio e com formação escravista-colonial, a degradação da política sempre foi uma estratégia de dominação da classe dominante. Contudo, em décadas passadas, havia movimentos de oposição de esquerda capazes de vislumbrar a grande política. Na década de 1980, quando se criou o PT, por exemplo, havia um horizonte para a grande política, apoiada em uma base organizada da classe. À medida que o capital desmantelou a classe operária, também desmantelou sua representação política. Foi isso que mudou com a ofensiva neoliberal do capital – a subsunção da política de esquerda ao capital.

A miséria da política brasileira não foi criada pelo capitalismo neoliberal. Nossa tradição política oligárquica e golpista, há séculos, degradou a atividade política das massas, esvaziando seu valor fundamental. A pequena política, com sua constelação de atributos alienados, domina a praxis política desde a Proclamação da República em 1889. Portanto, não é novidade a cultura do fisiologismo e oportunismo, prática da direita conservadora nacional, impregnada pelo taticismo.

A política foi reduzida a um jogo de interesses esvaziados de ideologia, moldado pelas conveniências do momento. A forma autocrática de dominação burguesa no Brasil contribuiu para esvaziar o valor da política como instância para a transformação social. Isso explica a despolitização ontogenética da sociedade brasileira. “Política não se discute”, diz o ditado popular. A cultura da despolitização, que impregna o imaginário popular, reforça o fisiologismo (ou metabolismo político) da dominação oligárquico-burguesa.

A tragédia do Brasil é que, após uma década de transição para a democracia política, o país se rendeu à ofensiva neoliberal, que, por natureza, é hostil à socialização da política e à democratização da sociedade. A Nova República estava condenada no ato. Assim, elevou-se a um patamar superior a miséria política brasileira, com a esquerda social-liberal incorporando-se a ela ao renunciar à transformação do Estado neoliberal, limitando-se a um projeto de governo. A era do capitalismo neoliberal é a era de decadência histórica do capital, em razão de sua crise estrutural.

Dessa forma, todos os valores caros à civilização burguesa, oriundos da Revolução Francesa, perdem sentido. A democracia liberal, esvaziada de seu significado real, diante da precarização estrutural do trabalho, entra em profunda crise, junto com o sistema político. A ascensão da extrema-direita é o atestado de óbito da democracia liberal.

Após a década neoliberal, a política entrou em uma era de indeterminação. [8] O capitalismo terminal, tornado farsesco, rebaixou a democracia política ao que ela realmente é: um significante poderoso, mas impotente diante da concentração de renda e da desigualdade social, do abismo entre ricos e pobres. A democracia burguesa perde seu valor na era neoliberal porque se torna irrelevante diante da incapacidade visceral do Estado neoliberal de resolver a questão social no século XXI.

Por não ser uma democracia substantiva e de valor universal, transforma-se em uma democracia acessória, desvalorizada pelas massas insatisfeitas, que, ao contrário, cultivam o ódio à democracia.[9]

A pequena política e praxis política alienada

A distinção entre “grande política” e “pequena política” é um conceito do marxismo de Antonio Gramsci, fundamental para caracterizar não apenas a política na era neoliberal, mas também a política historicamente dominante no Brasil desde a fundação da República. A pequena política sempre esteve presente, e o que fazia a diferença era a atuação da esquerda. A pequena política representa a miséria da prática política, em torno da qual gravitam diversos atributos alienados. Ela é uma ideologia da práxis política que a classe dominante brasileira sempre cultivou e disseminou tanto na sociedade civil quanto na sociedade política.

Os conceitos de “pequena política” e “grande política” formam um par conceitual que serve não apenas para definir traços decisivos do conceito geral de política, mas também aparece como um elemento essencial naquilo que Gramsci chama de “análise das situações” e “relações de força”. O predomínio de uma ou outra forma de ação política – seja a “pequena” ou a “grande” política – é decisivo para determinar qual classe ou grupo de classes exerce a dominação ou a hegemonia em uma situação concreta, e de que modo o faz.

Segundo Antonio Gramsci: “Grande política (alta política) e pequena política (política do dia a dia, política parlamentar, de corredor, de intrigas). A grande política abrange as questões ligadas à fundação de novos Estados, à luta pela destruição, defesa ou conservação de determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais. A pequena política abrange as questões parciais e cotidianas que surgem dentro de uma estrutura já estabelecida, decorrentes de lutas pela predominância entre as diversas frações de uma mesma classe política”. [10]

A hegemonia ancestral da burguesia brasileira degradou historicamente a práxis política, obstruindo qualquer movimento de catarse, elemento central da práxis política segundo Gramsci. Lembrando o conceito gramsciano de “catarse”, podemos afirmar que apenas a “grande política” realiza o “momento catártico”, ou seja, a passagem do particular ao universal, do econômico-corporativo ao ético-político, da necessidade à liberdade. Gramsci nos adverte, contudo, que “é grande política tentar excluir a grande política do âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo à pequena política” [11]. Isso foi o que a burguesia brasileira fez historicamente: excluir a grande política do horizonte prático e sensível das massas.

Em outras palavras, para as classes subalternas, o predomínio da pequena política é sempre sinal de derrota. No entanto, esse predomínio pode ser – e frequentemente é – a condição para a supremacia das classes dominantes. Quando a esquerda social-liberal, a partir da década de 1990, renunciou a operar a transição do particular ao universal, do econômico-corporativo ao ético-político, e da necessidade à liberdade – ao abdicar, por exemplo, da luta pelo socialismo – consolidou a supremacia da pequena política. Essa foi a grande derrota histórica que permitiu a consolidação do Estado neoliberal.

A oposição entre “grande política” e “pequena política” também se aplica à ação dos intelectuais. O “Grande Transformismo” não se limitou à práxis política, mas também envolve a atuação intelectual. O cerne do grande transformismo foi justamente isso: o predomínio da pequena política em detrimento da grande política, no sentido do abandono da perspectiva da totalidade social e da classe social que permitiria um horizonte além do capitalismo e a elaboração de uma perspectiva socialista.

O fato de a esquerda ter sido reduzida à pequena política não impede que a burguesia seja forçada a praticar a grande política. A pequena e a grande política não se resumem a uma distinção entre reação e progresso. Na era do capitalismo neoliberal, a burguesia conduziu a grande política no sentido da reestruturação capitalista, operando contrarreformas e processos de subjetivação catárticos às avessas.

Se o “momento catártico” representa a passagem do particular ao universal, do econômico-corporativo ao ético-político, da necessidade à liberdade, o momento catártico às avessas representa a produção de subjetivações particularistas, incapazes de agir na perspectiva ético-política, resultando no sociometabolismo da barbárie. Ao imiscuir as massas proletárias e a esquerda política e social na pequena política, com a estreiteza de programas e a debilidade da consciência nacional, a burguesia demonstrou um imenso esforço para impedir qualquer mudança radical. E esse esforço imenso da burguesia é, em si, uma grande política. [12]

*Giovanni Alves é professor aposentado de sociologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Autor, entre outros livros, de Trabalho e valor: o novo (e precário) mundo do trabalho no século XXI (Projeto editorial Praxis).

Referência

Giovanni Alves. O Estado neoliberal no Brasil: Uma tragédia histórica. Marília, Projeto editorial Praxis, 2024, 302 págs.

 

[1] RIBEIRO, Darcy. Os brasileiros: 1. Teoria do Brasil. Vozes: Rio de Janeiro, p. 97.

[2] O Partido da Reconstrução Nacional (PRN) foi fundado em 1989. Surgiu de uma cisão do Partido Democrata Cristão (PDC) e teve como figura mais proeminente Fernando Collor de Mello, que seria eleito presidente do Brasil no mesmo ano em que o partido foi fundado.

[3] Lawfare é um termo que combina as palavras “law” (lei) e “warfare” (guerra) para descrever o uso estratégico da legislação e dos processos jurídicos como uma forma de guerra. Em essência, o lawfare envolve o uso (ou abuso) do sistema legal para atingir objetivos políticos, econômicos ou militares, prejudicando adversários, enfraquecendo opositores, ou desacreditando figuras públicas. Esse conceito se aplica tanto em contextos nacionais quanto internacionais.

[4] Compreendemos o “Grande Transformismo” como o processo de mudança ideológica e política experimentado pelo Partido dos Trabalhadores (PT) na década de 1990. Essa transformação resultou na conversão do partido em um administrador da ordem burguesa neoliberal, levando-o a abdicar de políticas de reformas sociais abrangentes em favor de políticas públicas focalizadas e programas de transferência de renda. Este fenômeno não se limitou ao Brasil, sendo parte de uma tendência global que afetou partidos de esquerda social-democrata e trabalhista em diversos países. Exemplos notáveis incluem o Partido Trabalhista britânico sob a liderança de Tony Blair e o Partido Social-Democrata alemão sob Gerhard Schröder. O Grande Transformismo representou, portanto, uma mudança significativa na orientação política e nas práticas desses partidos, alinhando-os mais estreitamente com políticas econômicas neoliberais e afastando-os de suas raízes ideológicas originais. Antônio Gramsci utilizou o termo “transformismo” para referir-se à cooptação gradual de elementos da oposição política pela classe dominante ou pelo grupo no poder. Gramsci desenvolveu este conceito analisando a política italiana do final do século XIX e início do XX, particularmente o período do Risorgimento (unificação italiana). O transformismo é um mecanismo pelo qual a classe dominante mantém seu poder, absorvendo e neutralizando potenciais lideranças das classes subalternas. Ao cooptar indivíduos ou grupos da oposição, o transformismo enfraquece movimentos de resistência e mudança social. O objetivo principal é preservar a ordem social existente, evitando mudanças estruturais significativas. Pode ocorrer através de concessões políticas, ofertas de cargos, ou incorporação parcial de demandas da oposição. O transformismo afeta a formação de uma vontade coletiva nacional-popular, dificultando a organização das classes subalternas, sendo uma estratégia para manter a hegemonia cultural e política da classe dominante. Gramsci via o transformismo como uma forma de evitar reformas substanciais, mantendo mudanças superficiais.

[5]  Esta morte da esquerda é o que Francisco de Oliveira denominou de “hegemonia às avessas” no livro homônimo de 2010 (OLIVEIRA, Francisco; BRAGA, Ruy; RIZEK, Cibele (Org.) Hegemonia às avessas: Economia, Política e Cultura na Era da Servidão Financeira. Boitempo editorial: São Paulo, 2010, p. 21). Neste mesmo livro, Carlos Nélson Coutinho comparece com o capítulo intitulado “A hegemonia da pequena política”.

[6] BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: Fragmentos de um dicionário político. Paz e Terra, Rio de Janeiro. p.69-84

[7] A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) é uma legislação brasileira que foi promulgada em 4 de maio de 2000, com o objetivo de estabelecer normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal dos entes federativos, ou seja, União, estados, Distrito Federal e municípios. Oficialmente conhecida como Lei Complementar nº 101/2000, a LRF tem como principal meta garantir o equilíbrio das contas públicas, promovendo uma administração mais responsável, transparente e eficiente dos recursos públicos.

[8]  Francisco de Oliveira usou o conceito de “era da indeterminação” para descrever um período histórico em que as antigas certezas e categorias analíticas tradicionais, especialmente aquelas relacionadas à política, economia e sociedade, tornaram-se insuficientes para explicar a complexidade do mundo capitalista neoliberal. Esse conceito aparece em suas reflexões sobre o capitalismo globalizado e o impacto do neoliberalismo, particularmente no contexto brasileiro e latino-americano. O livro intitulado “A era da indeterminação” publicado em 2007 foi organizado por Franscisco de Oliveira e Cibele Saliba Rizek. Na “era da indeterminação”, de acordo com Francisco de Oliveira, há uma crise nas estruturas tradicionais que antes orientavam a sociedade, como o Estado-nação, as formas de trabalho, as ideologias políticas e as instituições democráticas. A indeterminação se refere a um estado de incerteza e de transição, em que os antigos modelos não se aplicam mais plenamente, mas novos modelos ainda não foram estabelecidos de forma clara. Alguns pontos principais do conceito apresentados no livro são os seguintes incluem: (1). Colapso das Certezas Ideológicas e Políticas: Oliveira argumenta que, na era da indeterminação, as distinções tradicionais entre esquerda e direita perdem clareza, especialmente à medida que movimentos de esquerda adotam práticas neoliberais (o que ele mais tarde – em 2011 – denominou “hegemonia às avessas”). Isso gera uma crise de identidade política, onde as categorias ideológicas tradicionais não conseguem mais descrever adequadamente a realidade. (2). Subordinação da Política ao Capital: Um aspecto crucial da era da indeterminação é a subordinação crescente da política ao capital, particularmente ao capital financeiro. Oliveira via o neoliberalismo como uma força que reconfigurou a política, tornando-a cada vez mais incapaz de controlar ou moderar as forças do mercado. Isso leva a uma crise da política, onde as decisões econômicas dominam a agenda, deixando pouco espaço para projetos políticos transformadores. (3). Fragilidade das Instituições Democráticas: Na era da indeterminação, as instituições democráticas se tornam frágeis, com sua capacidade de representar e responder às demandas sociais sendo questionada. Essa fragilidade é exacerbada pela concentração de poder econômico e pela desigualdade social, que minam a legitimidade e a eficácia das democracias. A era da indeterminação é caracterizada por um sentimento generalizado de incerteza e transitoriedade. As regras e normas que antes regulavam as relações sociais e econômicas parecem cada vez mais voláteis e imprevisíveis. Isso se reflete em fenômenos como a precarização do trabalho, a volatilidade dos mercados financeiros e a instabilidade política. (4). Crise da Representação e do Trabalho: Outro ponto central na análise de Oliveira é a crise do trabalho, especialmente em sua forma tradicional. A globalização e o avanço tecnológico transformaram as relações de trabalho, criando novas formas de exploração e precariedade. Ao mesmo tempo, as estruturas de representação dos trabalhadores, como sindicatos e partidos, se mostram incapazes de lidar com essas novas realidades. No Brasil, a era da indeterminação é marcada pela adoção do neoliberalismo, o enfraquecimento dos movimentos sociais e a crise das instituições políticas tradicionais. Para Oliveira, essa era reflete a incapacidade do sistema político e econômico de oferecer respostas adequadas às demandas da sociedade, levando a uma desorientação generalizada. No plano global, a era da indeterminação reflete o colapso das velhas ordens, como o Estado de bem-estar social, e a ascensão de um capitalismo globalizado que escapa ao controle dos Estados-nação. Essa nova realidade gera incerteza e ansiedade, já que os mecanismos tradicionais de regulação e controle se mostram insuficientes para lidar com os desafios do século XXI.

[9] Rancière, Jacques. O ódio à democracia. Boitempo editorial: São Paulo, 2014.

[10] GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, Volume 3, Maquiavel. Notas sobre o Estado e a Política. Civilização brasileira, 2000: p. 21

[11] GRAMSCI, Antonio. op.cit. p. 21

[12] COUTINHO, Carlos Nelson. De Rousseau a Gramsci: Ensaios de teoria política. Boitempo editorial: São Paulo. p. 124-125.

 

O que economistas têm a dizer sobre a democracia e a riqueza de países? por Claudio Ferraz

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Vencedores do Nobel construíram modelos matemáticos para incorporar política e instituições em análises da economia

Claudio Ferraz, Professor da Escola de Economia de Vancouver (Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá) e da PUC-Rio.

Folha de São Paulo, 17/11/2024

O Prêmio Nobel de Economia de 2024, concedido a Daron Acemoglu, Simon Johnson e James Robinson, coroa décadas de pesquisas voltadas a compreender como instituições criadas durante a colonização moldaram a trajetória da democracia e do desenvolvimento econômico dos países, contribuição fundamental para responder por que algumas nações prosperam e outras fracassam, uma das questões mais primordiais da disciplina.

Em 2003, eu cursava o segundo ano de doutorado na Universidade da Califórnia em Berkeley. Tinha ido para lá decidido em me especializar na área de desenvolvimento econômico e esperava aprender os modelos matemáticos de fronteira que explicavam por que alguns países se desenvolviam e outros não.

A primeira disciplina de desenvolvimento econômico focava as falhas de mercados de países pobres, a chamada microeconomia do desenvolvimento. O livro “Development Microeconomics”, de Pranab Bardhan e Christopher Udry, tinha acabado de sair, e o campo passava por um ressurgimento, com mais ênfase na microeconomia e em trabalhos empíricos.

Cheguei na segunda disciplina com a expectativa de estudar modelos de crescimento econômico e temas como educação, saúde e capital social. Logo na primeira aula, no entanto, percebi que aquele curso seria diferente. O professor não era do departamento de economia, mas de ciência política.

Em vez de enfatizar os trabalhos acadêmicos que iríamos ler, ele buscou nos convencer que, para ter boas ideias, teríamos que ler livros, algo que os economistas, infelizmente, não fazem no doutorado. A primeira leitura seria “Markets and States in Tropical Africa”, livro do cientista político Robert Bates.

Depois de distribuir a ementa, James Robinson foi para o quadro e começou a ensinar o modelo de crescimento de Solow, algo padrão naquela época, mas emendou um modelo matemático de economia e política para tentar apresentar as causas e as consequências econômicas do apartheid na África do Sul. Seu argumento era que a desigualdade que surgiu depois da colonização gerou a repressão e a exclusão de parte da população pela elite branca. Isso tinha desdobramentos não só políticos quanto econômicos.

Para mim e para grande parte do campo da economia nas universidades de ponta dos EUA, aquilo era uma novidade. No começo dos anos 2000, poucos economistas olhavam para a política usando modelos matemáticos. A exceção era um grupo de macroeconomistas, como Alberto Alesina, Torsten Persson e Guido Tabellini, que usava modelos políticos para entender déficits fiscais, ciclos políticos e decisões de estabilização.

Economia política não era lecionada em quase nenhum programa de doutorado de ponta e, no campo do desenvolvimento econômico, aspectos políticos não estavam na agenda, exceto por textos mais descritivos, como um trabalho de Albert Hirschman dos anos 1970.

O Prêmio Nobel de Economia deste ano foi concedido a Daron Acemoglu, Simon Johnson e James Robinson, que lançaram luz sobre uma das questões mais fundamentais em economia: por que algumas nações prosperam enquanto outras fracassam? Diferentemente da literatura anterior, que se concentrava nos fatores de crescimento, a contribuição dos três pesquisadores foi trazer quantitativamente aspectos políticos para a análise dos economistas.

Seus trabalhos mostraram que é impossível entender o desenvolvimento econômico dos países sem levar a sério aspectos políticos. O prêmio coroa décadas de pesquisa e celebra duas agendas complementares: uma empírica, que busca compreender as raízes institucionais do crescimento, e outra teórica, voltada a modelos matemáticos que explicam a persistência de instituições ineficientes e as causas econômicas de transições de regimes políticos.

Durante décadas, economistas tentaram explicar as desigualdades de renda entre países. Nos anos 1950, Robert Solow, Nobel de 1987, desenvolveu um modelo que atribuía essas disparidades à acumulação de capital e ao crescimento populacional dos países. Nações que poupam mais e cuja população cresce mais devagar terão renda per capita mais alta a longo prazo.

Uma predição empírica desse modelo: países mais pobres deveriam crescer mais rapidamente, convergindo para o nível de renda dos países ricos, algo que raramente se observou na prática. Em 1997, Lant Pritchett publicou um artigo em que argumentava que a convergência de renda só ocorreu entre os países ricos no século 20. Já os países de baixa renda, com poucas exceções, permaneciam presos em uma armadilha de pobreza.

Como explicar o fato de países ricos continuarem a crescer mais rapidamente que muitos países em desenvolvimento? No final dos anos 1980, economistas como Philippe Aghion, Robert Lucas e Paul Romer começaram a destacar o papel do capital humano e do investimento em inovação como fatores centrais para o crescimento econômico.

Eles mostraram que os países que investiram cedo na educação e direcionaram recursos para pesquisa e desenvolvimento cresceram mais rapidamente na segunda metade do século 20. Estudos empíricos que incluíam educação e ciência se provaram mais eficazes em explicar as diferenças de renda entre os países que modelos que consideravam apenas o capital físico.

Os economistas continuavam, porém, sem entender sistematicamente o que levou alguns países a investir em educação ou inovação tecnológica e outros não. Aspectos políticos não faziam parte da modelagem utilizada pela maioria dos economistas neoclássicos, mesmo que historiadores econômicos como Douglas North e Robert Thomas já tivessem enfatizado, nos anos 1970, a importância das instituições.

Esses autores argumentaram que as regras do jogo que regulam as interações entre pessoas, empresas e governos eram fundamentais para entender a trajetória econômica dos países. Em seus trabalhos, sugeriram que países que protegiam direitos de propriedade, por exemplo, geraram mais inovação e incentivos para o empreendedorismo e que isso acontecia quando instituições políticas restringiam o poder dos líderes.

A tese de que instituições e políticas governamentais eram importantes foi testada por Robert Hall e Charles Jones. Em 1999, eles publicaram um trabalho muito influente que mostrava que diferenças de acumulação de capital e produtividade estavam relacionadas com o que eles chamaram à época de infraestrutura social dos países —instituições e políticas governamentais que determinam o ambiente econômico em que indivíduos acumulam habilidades e firmas acumulam capital e inovam.

Os autores usaram dados de consultorias de risco político e mediram índices de lei e ordem, qualidade burocrática, corrupção e risco de confisco e expropriação. Permanecia, no entanto, a pergunta: por que alguns países tinham infraestrutura social melhor?

Nessa mesma época, o proeminente economista Jeffrey Sachs argumentava que o principal problema dos países pobres era sua geografia. Países localizados nos trópicos têm clima menos propício à agricultura e grande propensão a doenças em razão de suas florestas cheias de mosquitos e malária. Tudo isso contribuiria negativamente para o crescimento econômico e geraria diferenças de longo prazo.

Foi depois de uma palestra de Jeffrey Sachs no final dos anos 1990 que James Robinson começou a pensar no papel histórico da geografia no desenvolvimento econômico dos países. Se a geografia é tão determinista, como países que foram ricos no passado em razão da sua geografia são pobres hoje?

Ao lado de Daron Acemoglu e Simon Johnson, Robinson se debruçou sobre dados históricos. No começo dos anos 2000, os pesquisadores publicaram dois artigos seminais que contestavam a importância direta da geografia como o principal determinante da riqueza das nações. O argumento de Acemoglu, Johnson e Robinson reconhecia que a geografia importava, mas não devido à qualidade do solo ou à proliferação de doenças, como argumentava Jeffrey Sachs, mas pelo efeito que teve sobre a colonização.

Em um trabalho, eles argumentaram que, onde havia recursos abundantes e a colonização era difícil devido à alta mortalidade, os colonizadores estabeleceram uma sociedade que tinha como objetivo extrair riquezas e, em locais mais propícios à sobrevivência, criaram instituições mais inclusivas que facilitavam a sua permanência.

Testar empiricamente a relação entre boas instituições e desenvolvimento econômico não era fácil. O que era causa e o que era consequência? Boas instituições poderiam ter facilitado o acúmulo de riqueza, mas o contrário também poderia ter acontecido. Como saber o que veio primeiro?

Acemoglu, Johnson e Robinson usaram o que economistas chamam de experimento natural. Essas técnicas se disseminaram na economia no final da década de 1980 e no início dos anos 1990 como forma de avaliar o impacto de políticas sociais. A ideia básica é selecionar lugares parecidos, onde uma política foi adotada em só parte deles, e comparar o que aconteceu com cada um deles ao longo do tempo. Até então, essas metodologias não eram usadas para avaliar eventos históricos —eram utilizadas para avaliar programas educacionais ou de mercado de trabalho.

Os três pesquisadores compararam países com diferentes processos de colonização e mostraram que, naqueles onde a mortalidade foi maior no período colonial, existem hoje instituições piores e, na média, os países são mais pobres. O argumento central é que, onde a mortalidade era mais alta, foram estabelecidas instituições extrativistas, sem Estado de Direito e com direitos de propriedade fracos, e que essas instituições persistiram até hoje.

Se as instituições impostas na colonização foram realmente importantes, civilizações que eram prósperas antes de se tornarem colônias devem ser hoje mais pobres como consequência da imposição de instituições extrativistas. Esse argumento já havia sido defendido por outros cientistas sociais, como os historiadores Stanley Engerman e Kenneth Sokoloff em um trabalho sobre a reversão da riqueza nas Américas. Eles notaram que grandes proprietários fundiários e instituições extrativistas (trabalho escravo) foram favorecidos em locais onde a produção agrícola demandava grandes extensões de terra. Isso gerou desigualdade e concentrou o poder político em uma pequena elite.

Faltava, contudo, uma metodologia capaz de quantificar esses efeitos. Em um trabalho, Acemoglu, Johnson e Robinson compararam a renda per capita dos países no final do século 20 com as taxas de urbanização e densidade populacional por volta de 1500, quando os europeus começaram a colonização. Os pesquisadores descobriram que países relativamente ricos em 1500 são hoje relativamente pobres, o que sugere que a geografia não pode ser um fator determinante no crescimento das nações.

A pesquisa dos vencedores do Nobel impulsionou uma enorme literatura. Diversos pesquisadores chamaram a atenção para problemas com os dados históricos e o tratamento do processo de colonização como experimento natural. A principal crítica veio dos economistas Edward Glaeser, Rafael La Porta, Florencio López de Silanes e Andrei Shleifer, que argumentaram que os colonizadores também trouxeram capital humano, o que pode ter gerado investimentos em educação que explicariam o desenvolvimento a longo prazo.

Uma forma de testar se instituições afetam a prosperidade a longo prazo é focar um país e analisar a variação entre regiões que tiveram experiências históricas distintas.

Melissa Dell, orientada por Daron Acemoglu no MIT, analisou, em um trabalho publicado em 2010, os efeitos de longo prazo da mita, instituição de trabalho forçado em que espanhóis obrigavam aldeias indígenas a ceder parte da sua população para a mineração de prata. Dell demonstrou que locais onde a mita existiu são mais pobres até hoje.

Sara Lowes e Eduardo Montero, alunos de James Robinson em Harvard, estudaram a extração de borracha no Congo belga. Eles mostraram que locais onde houve concessões para essa atividade são hoje mais pobres, têm índices de escolaridade menores e indicadores de saúde piores.

Em relação ao Brasil, Joana Naritomi, Rodrigo Soares e Juliano Assunção publicaram um trabalho em 2012 que mostrou que locais que fizeram parte do boom de cana-de-açúcar ou do ouro no período colonial têm pior governança e pior provisão de bens públicos.

A contribuição acadêmica de Acemoglu e Robinson não se reduz a demonstrar que instituições têm um efeito causal na prosperidade dos países. Eles construíram modelos matemáticos para explicar por que instituições políticas são fundamentais para o processo de consolidação democrática e desenvolvimento econômico. Em países onde o poder político é distribuído mais igualitariamente, políticas públicas e escolhas de instituições econômicas geram mais prosperidade.

Essas ideias contrastam radicalmente com a forma como a maioria dos economistas modelavam o desenvolvimento econômico até os anos 1990, ignorando totalmente aspectos políticos.

Usar modelos em que a adoção de inovações tecnológicas dependem da aprovação do governo é uma forma de pensar a relação entre elites políticas e desenvolvimento econômico. Podemos imaginar uma sociedade agrícola em que a elite mantém seu poder político controlando os trabalhadores rurais. A modernização por meio da industrialização não só muda a atividade econômica predominante, mas leva à perda da capacidade da elite de controlar os trabalhadores. Em um caso como esse, a elite poderia frear a industrialização e atrasar a adoção de tecnologias modernas pelo país por temor de perda de poder político.

Durante os anos 2000, Acemoglu e Robinson publicaram uma série de trabalhos na área de economia política buscando responder por que países não adotam instituições que maximizam o bem-estar da sua população. Como instituições ineficientes são sustentadas ao longo do tempo? Em que contextos acontecem transições de regimes autoritários para regimes democráticos?

Os autores usaram modelos matemáticos para construir uma teoria geral do processo de democratização, consolidação democrática e reversão autoritária por meio de golpes de Estado. Suas teorias, resumidas no livro “Economic Origins of Dictatorship and Democracy “, de 2005, partem de duas premissas. Primeiro, que o povo —mesmo em sistemas autocráticos, em que não tem poder político— pode fazer uma revolução e tirar os ricos do poder. Segundo, que a elite, para evitar que isso aconteça, pode reprimir o povo usando violência ou redistribuir recursos.

Eles mostram que, para satisfazer as demandas da população mais pobre e prevenir uma revolução, a elite precisa fazer concessões, mas que essas concessões podem não ser críveis, já que as condições econômicas podem mudar ao longo do tempo. Mesmo que a elite promova uma redistribuição de renda no presente, a probabilidade de uma revolução pode ser baixa no futuro e a elite decida redistribuir menos.

A questão do compromisso crível é central nos modelos de Acemoglu e Robinson. A democratização, em seus modelos, surge como uma forma de tornar crível a promessa de redistribuição futura. Quando a população mais pobre adquire o direito ao voto, as políticas implementadas tendem a refletir os interesses do cidadão mediano em vez de atender exclusivamente aos desejos da elite. Portanto, a democratização é vista como uma concessão estratégica por parte da elite para evitar uma revolução.

Em modelos posteriores, os pesquisadores ultrapassaram a dicotomia entre ditadura e democracia e se perguntaram por que vemos transições democráticas sem a esperada redistribuição para a população mais pobre. Para explicar esses fenômenos, eles construíram um modelo que distingue as instituições entre regras “de jure” e “de facto”.

Uma coisa é que o que está escrito na Constituição, outra é o que realmente acontece na vida real. Mesmo que um país permita que seus indivíduos mais pobres passem a votar, a elite ainda pode recorrer à compra de votos, à violência ou mesmo a regras eleitorais que façam com que o voto dos mais pobres valha menos.

Um exemplo desse modelo foi testado empiricamente por Thomas Fujiwara que estudou a introdução do voto eletrônico no Brasil em 1996. O economista brasileiro mostrou que, apesar de indivíduos analfabetos terem o direito de votar desde 1985, grande parte dos seus votos eram anulados. A introdução do voto eletrônico mudou essa situação, garantiu mais representatividade “de facto” e mudou as políticas implementadas pelos políticos eleitos.

Os modelos de Acemoglu e Robinson nos ajudam a entender uma variedade de fatores que facilitam ou dificultam a consolidação democrática, como o nível de organização da sociedade civil, a desigualdade entre ricos e pobres e o impacto de crises econômicas. Ao incorporar a dinâmica política nas análises, seus estudos não apenas explicam por que algumas nações fracassam, mas oferecem dicas valiosas sobre como promover o crescimento econômico sustentável e inclusivo.

Em um momento em que a democracia enfrenta desafios globais, focar as instituições políticas é uma contribuição essencial e oportuna.

 

 

Lula na encruzilhada, por José Luis Fevereiro.

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Por trás da hesitação diante pacote proposto por Haddad, há uma guerra. A Faria Lima e a mídia chantageiam para definir de vez os rumos do governo. O presidente parece ter percebido que, se ceder, caminha para uma derrota desonrosa em 2026.

José Luis Fevereiro – OUTRAS PALAVRAS – 10/11/2024

Lula foi eleito em 2022 numa frente ampla que ia da esquerda até a parte da Faria Lima, mais exatamente a Febraban.

O mesmo acordo, “com o STF com tudo” que tirou Lula de Curitiba e anulou suas condenações fajutas, viabilizou a sua candidatura em defesa das liberdades democráticas e contra Bolsonaro.

A Democracia Liberal não é apenas um conjunto de regras para arbitrar as disputas entre classes sociais, mas também para arbitrar os conflitos intra classes sociais. Bolsonaro era disfuncional para isso e parte da burguesia brasileira decidiu se livrar dele.

O acordo com Lula, a Frente Ampla, não era apenas colocar Geraldo Alckmin na sua roupagem de simpático médico do interior como vice. Alckmin era o símbolo de um acordo.

Lula obtinha um expressivo impulso fiscal garantido pela PEC da transição que somava quase 200 bilhões de reais ao já turbinado orçamento de 2022 com a PEC eleitoral de Bolsonaro, revogava-se o teto de gastos, mas em contrapartida se aprovaria um novo arcabouço fiscal que garantiria novas amarras ao gasto público a serem usadas quando o desemprego baixasse a patamares que elevassem o poder de barganha do trabalho em relação ao Capital, viabilizando ganhos reais de renda além do crescimento da produtividade, reduzindo desta forma a participação dos lucros na renda nacional.

Parte da esquerda achou boa ideia a Frente Ampla e agora manifesta seu espanto quando a Banca cobra o cumprimento do acordado. Desde 2023 que se sabe que o arcabouço fiscal não se sustentaria sem o pleno enquadramento aos seus limites do conjunto dos gastos contidos no orçamento. A quebra dos pisos constitucionais da saúde e educação, a limitação da política de valorização do salário mínimo e os gastos previdenciários acabariam sendo colocados na mesa.

Lula tentou administrar essa situação empurrando com a barriga se possível até depois de 2026. Só que o desemprego caiu ao menor patamar desde 2013 e o trabalho recuperou condições de barganha em relação ao Capital. A burguesia cobra para já o cumprimento do pactuado.

A Faria Lima em si não tem voto, mas os aparatos mediáticos que se alinham com ela, como a Globo, por exemplo, formam opinião e foram importantíssimos na eleição de Lula. E a Faria Lima tem força para chantagear o governo pressionando o câmbio e contando com a colaboração do Banco Central.

Por outro lado, uma investida do governo Lula cortando renda dos mais pobres, tornando mais rígidos os critérios de acesso ao BPC, alterando a política de valorização do salário mínimo, e mexendo nos pisos da saúde e educação, atingirá diretamente a sua base social.

Nestas horas é importante lembrar que o Partido Democrata acaba de perder as eleições, não porque Trump tenha aumentado sua votação (perdeu mais de 1 milhão de votos em relação a 2020), mas porque mais de 10 milhões de eleitores de Biden em 2020 desistiram de votar este ano.

Lula tem dois caminhos pela frente. Manter o pacto da Frente Ampla e garantir mais tempo de trégua com seus aparatos mediáticos (nenhuma garantia de apoio em 2026, porque seguem sonhando com um candidato dos seus sem a disfuncionalidade de Bolsonaro) , pagando o enorme preço da perda de confiança e de motivação de parcela importante da base social que o elegeu com consequências eleitorais dramáticas em 2026; ou romper esse pacto, enfrentar os riscos inerentes a essa ruptura, governar os dois anos restantes sob fogo de barragem da mídia e sob a chantagem dos mercados, mas manter coesa e mobilizada a sua base social.

Em qualquer cenário, perder as eleições em 2026 será uma forte possibilidade. Mas se for para perder que seja defendendo os seus porque isso constrói melhores condições para o futuro. Melhor o risco de uma derrota eleitoral que o risco de uma derrota eleitoral com cara de derrota histórica.

 

Ainda estou aqui, por Erik Chiconelli Gomes

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Erik Chiconelli Gomes – A Terra é Redonda – 09/11/2024

Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles

Ainda estou aqui transcende a mera representação histórica para se estabelecer como um documento vivo da memória coletiva brasileira. O filme se apropria magistralmente das experiências cotidianas para construir uma narrativa que evidencia as múltiplas camadas de resistência presentes na sociedade brasileira durante o período ditatorial.

A construção narrativa proposta por Walter Salles dialoga intimamente com a ideia de que a história se manifesta através das experiências vividas por indivíduos comuns, especialmente aqueles que se encontram em situações de opressão e resistência. Neste sentido, a escolha de centralizar a narrativa em Eunice, interpretada magistralmente por Fernanda Torres, não é apenas uma decisão estética, mas também metodológica.

O filme evidencia como as estruturas de poder se materializam no cotidiano das pessoas, transformando espaços de convivência em locais de vigilância e opressão. A cena inicial, com o helicóptero sobrevoando a praia do Leblon, estabelece uma metáfora poderosa sobre a onipresença do aparelho repressivo estatal.

A transformação da protagonista de uma típica dona de casa da elite carioca em uma figura de resistência demonstra como as situações históricas podem mobilizar indivíduos para além de suas posições sociais predeterminadas. Esta mudança reflete um processo histórico mais amplo de conscientização e mobilização social.

A narrativa estabelece um diálogo profundo com as práticas de resistência cotidiana, demonstrando como as pequenas ações de enfrentamento ao regime se manifestavam nos gestos mais simples, desde a preservação da memória familiar através de filmagens em Super 8 até a manutenção da esperança em meio ao desaparecimento forçado.

O trabalho fotográfico de Adrian Tejido merece destaque especial por sua capacidade de traduzir visualmente a dialética entre opressão e resistência. O uso consciente da luz e da sombra cria uma atmosfera que reflete as contradições do período histórico retratado.

A presença da câmera na mão em determinados momentos estabelece uma conexão direta com o cinema verdade brasileiro, criando uma ponte entre a ficção e o documento histórico. Esta escolha estética reforça o compromisso do filme com a verdade histórica sem abrir mão de sua potência narrativa.

A construção narrativa do filme dialoga diretamente com as pesquisas historiográficas que evidenciam o caráter sistemático da violência estatal durante o regime militar. A cena da prisão de Rubens Paiva, retratada com uma brutalidade contida, mas impactante, ecoa os relatos documentados pela Comissão Nacional da Verdade sobre os métodos de repressão utilizados pelo Estado.

O ambiente do DOI-CODI, retratado com uma frieza calculada por Walter Salles, representa não apenas um espaço físico de tortura, mas simboliza todo um sistema institucionalizado de repressão. A interpretação de Fernanda Torres nesses momentos traduzida cinematograficamente o que os arquivos do DOPS, hoje disponíveis para pesquisa, revelam sobre o tratamento dado aos prisioneiros políticos.

A narrativa familiar de Paiva serve como microcosmo para compreender uma questão mais ampla: o desmantelamento sistemático das estruturas democráticas brasileiras. O filme evidencia como a classe média intelectualizada, inicialmente apoiadora do golpe, gradualmente também foi vitimada pelo aparelho repressivo que ajudou a legitimar.

O aspecto mais contundente da obra reside em sua capacidade de demonstração como o terrorismo de Estado operava em vários níveis. Para além da violência física, o filme expõe a violência psicológica perpetrada contra as famílias dos desaparecidos políticos. A busca incessante de Eunice por informações sobre o marido reflete uma realidade ainda presente na sociedade brasileira.

Walter Salles consegue capturar, através da transformação de Eunice, o processo de politização forçada que muitas famílias experimentaram durante o regime. O filme dialoga com estudos historiográficos que demonstram como as mulheres, especialmente as esposas e mães de desaparecidos políticos, tornaram-se importantes agentes de resistência.

A constante presença do medo, representada através de elementos sutis como olhares desconfiados e conversas sussurradas, encontra-se paralelamente nos depoimentos coletados por pesquisadores que estudaram a memória do período. O filme evidencia como o terror psicológico foi uma ferramenta deliberada de controle social.

O uso de imagens de arquivo familiar no Super 8 não serve apenas como recurso estético, mas representa uma importante fonte histórica sobre o período. Essas filmagens caseiras, comuns entre famílias de classe média da época, tornaram-se documentos importantes para compreender o cotidiano durante a ditadura.

O filme aborda também a questão da impunidade e do silenciamento institucional. A ausência de respostas sobre o destino de Rubens Paiva reflete um problema maior: a política de ocultamento e negação que persiste até hoje em setores da sociedade brasileira.

A transição entre períodos históricos é magistralmente representada pela presença de Fernanda Montenegro como a Eunice dos anos 2000. Esta escolha narrativa dialoga com estudos sobre memória e trauma coletivo, demonstrando como as feridas da ditadura permanecem abertas nas gerações subsequentes.

O filme evidencia como a estrutura familiar, tradicionalmente vista como espaço de proteção, tornou-se alvo direto da violência estatal. A desestabilização das relações familiares era parte integrante da estratégia de terror renovada pelo regime.

A representação da elite carioca e suas contradições encontra respaldo em estudos historiográficos sobre o papel das classes privilegiadas durante o regime militar. O filme expõe as fissuras dentro dessa classe social, evidenciando como o apoio inicial ao golpe se transformou em resistência quando a violência atingiu seus próprios círculos.

Walter Salles consegue, através de sua narrativa, contribuir para o que os historiadores têm chamado de “dever de memória”. O filme se estabelece não apenas como obra artística, mas como documento importante para a construção de uma memória coletiva sobre o período.

A ausência de respostas definitivas sobre o destino de Rubens Paiva, mantida no filme, dialoga com a luta permanente por verdade e justiça no Brasil. O filme evidencia como o desaparecimento foi uma política de Estado que continua reverberando no presente.

A obra se insere em um importante momento de revisão historiográfica sobre o período ditatorial, contribuindo para desconstruir narrativas que minimizam ou justificam a proteção dos direitos humanos cometidas pelo Estado brasileiro.

*Erik Chiconelli Gomes é pós-doutorando na Faculdade de Direito na USP.

Referência

Ainda estou aqui
Brasil, 2024, 135 minutos.
Direção: Walter Salles.
Roteiro: Murilo Hauser e Heitor Lorega.
Direção de Fotografia: Adrian Teijido.
Montagem: Affonso Gonçalves.
Direção de Arte: Carlos Conti
Música: Warren Ellis
Elenco: Fernanda Torres; Fernanda Montenegro; Selton Mello; Valentina Herszage, Luiza Kosovski, Bárbara Luz, Guilherme Silveira e Cora Ramalho, Olivia Torres, Antonio Saboia, Marjorie Estiano, Maria Manoella e Gabriela Carneiro da Cunha.

 

Bibliografia

 

Alves, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984), Petrópolis: Vozes, 1984.

ARNS, Paulo Evaristo. Brasil: Mais Nunca . Petrópolis, Vozes, 1985.

Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório Final. Brasília: CNV, 2014.

FICO, Carlos. Como Eles Agiam: Os Subterrâneos da Ditadura Militar. Rio de Janeiro: Record, 2001.

Gaspari, Élio. A Ditadura Escanarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

Joffily, Mariana. No Centro da Engrenagem: Os Interrogatórios na Operação Bandeirante e no DOI de São Paulo (1969-1975). São Paulo: Edusp, 2013.

PAIVA, Marcelo Rubens. Ainda estou aqui. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.

Reis Filho, Daniel Arão. Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedade  Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

Ridenti, Marcelo. O Fantasma da Revolução Brasileira. São Paulo: Editora UNESP, 2010.

Teles, Janaína de Almeida. Os Herdeiros da Memória: A Luta dos Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos por Verdade e Justiça no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2017.

 

Project 2025: Como Trump ameaça o mundo, por Mel Gurtov

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Ampliar agressão econômica e geopolítica à China, potência nuclear. Impor novas restrições ao comércio internacional. Ameaçar Irã, Coreia do Norte, Venezuela e até o México. Visita à delirante (e perigosíssima) agenda externa do candidato

Mel Gurtov – OUTRAS PALAVRAS – 05/11/2024

Uma conspiração de extrema direita às claras

O Projeto 2025, o ambicioso guia de planejamento de políticas da extrema direita publicado como Mandate for Leadership (Mandato para Liderança), foi concebido para desmantelar o “Estado Profundo” e instalar um presidente e aliados leais que levarão adiante a agenda autoritária de Donald Trump. Agora, ele supostamente não existe mais – mas não é verdade. A campanha de Trump, preocupada com a má impressão que o Projeto 2025 estava recebendo, ordenou que ele fosse desconectado. Mas não se engane: embora Trump possa discordar de algumas das recomendações, o projeto foi concebido com ele, e somente ele, em mente.

Trump afirma que “não sabe nada sobre o Projeto 2025”, mas seu nome aparece no documento mais de 300 vezes; a CNN conta pelo menos 140 pessoas que trabalharam no documento do Projeto 2025 e que trabalharam anteriormente para o governo Trump; e Trump mantém laços estreitos com a Heritage Foundation, que publicou o documento. Se houver outra presidência de Trump, os colaboradores do Projeto 2025, muitos da Heritage Foundation e outros de uma rede de extrema direita em Washington chamada Conservative Partnership Institute, povoarão seu governo.

Nesta análise em duas partes, exploro os capítulos do Mandate for Leadership que dizem respeito a assuntos internacionais e à política externa dos EUA. Na primeira parte, observarei os aspectos autoritários do documento e, em seguida, examinarei suas propostas de políticas com relação à China e à Rússia. Na parte 2, examinarei o que o documento tem a dizer sobre comércio, armas nucleares e gastos militares, Coreia do Norte, Oriente Médio e América Latina.

O plano para reordenar os Estados Unidos

A maior parte da atenção da mídia dos EUA e dos legisladores democratas tem sido dedicada, com razão, ao lado doméstico da agenda do Projeto 2025 – seus planos para colocar o Departamento de Justiça a serviço do presidente, livrar-se do Departamento de Educação como um passo para emascular a educação pública, tornar os Estados Unidos indesejáveis para imigrantes negros, proibir o aborto em todo o país, dar ao setor de combustíveis fósseis o que ele quiser e conter a dissidência pública.

As ideias sobre relações exteriores seguem essa agenda porque, para serem implementadas, todas elas dependem de um executivo todo-poderoso e de uma burocracia que foi expurgada de liberais e esquerdistas. (“Grande parte da força de trabalho do Departamento de Estado é de esquerda e está predisposta a discordar da agenda e da visão política de um presidente conservador”, diz o documento).

O Projeto 2025 propõe três tarefas essenciais de governança para promover sua causa: reafirmar o papel dominante do presidente na formulação de políticas, desmantelar as principais agências governamentais preocupadas com o bem-estar social e substituir muitos funcionários públicos que não passam no teste de lealdade (eles serão reclassificados como trabalhadores comuns) por funcionários políticos leais ao chefe do Executivo. O plano busca maneiras de contornar a burocracia do governo, o que, por si só, é um objetivo comum a todas as administrações anteriores.

Mas ele difere drasticamente em sua submissão aos impulsos autoritários de Trump. Todas as páginas do documento enfatizam que os funcionários e outros membros da equipe devem alinhar seus pontos de vista com os do presidente, com a forte implicação de que não fazer isso resultará em demissão ou reatribuição. É uma fórmula para limitar o debate político dentro das agências ou entre elas ao que o presidente já decidiu.

Política da China e da Rússia

O Projeto 2025 é absolutamente obcecado pela China. Como já aconteceu com as opiniões dos EUA sobre a União Soviética, agora acredita-se que a China esteja por trás de todas as situações problemáticas em todos os continentes. A China recebe tanta atenção, diz o autor da seção sobre o Departamento de Estado, porque ela é “a ameaça definidora”.

Esse é Kiron K. Skinner, que anteriormente era responsável pelo planejamento da política de Trump no Departamento de Estado e depois se juntou à equipe da Heritage Foundation. Da mesma forma, escreve Christopher Miller na seção sobre o departamento de defesa, “Pequim representa um desafio aos interesses americanos em todos os domínios do poder nacional”. (Miller, um coronel aposentado das Forças Especiais, foi o secretário de defesa interino de Trump por cerca de três meses).

Além disso, a ameaça militar que a China representa é especialmente grave. Ele retrata a China como uma “ameaça imediata” a Taiwan e aos aliados dos EUA no Pacífico, sem mencionar o perigo nuclear, tudo isso sem nenhuma evidência convincente. No entanto, Miller recomenda como prioridade máxima “a construção de um planejamento de força convencional para derrotar uma invasão chinesa em Taiwan antes de alocar recursos para outras missões. . .” Essas outras missões provavelmente incluem a Ucrânia.

Skinner critica a política de Biden para a China por estar tratando a China com indulgência. Ela argumenta que alguns profissionais de política externa “conscientemente ou não, ‘papagaiam’ a linha comunista. Líderes globais, incluindo o presidente Joe Biden, tentaram normalizar ou até mesmo elogiar o comportamento chinês”.

Na verdade, o oposto é verdadeiro. Biden também exagerou a ameaça da China e rotulou Xi Jinping de “ditador”. Quando Skinner escreve que a China é um país “cujo comportamento agressivo só pode ser contido por meio de pressão externa”, ele optou por ignorar como, sob o comando de Biden, os EUA alinharam vários países do Leste Asiático, incluindo Japão, Índia, Coreia do Sul e Filipinas, em uma coalizão contra a China – e é por isso que Pequim acusa os EUA de novamente seguir uma política de contenção.

O tratamento dado pelo Projeto à Rússia está muito distante de sua análise da China. A Rússia é uma ameaça apenas com relação à segurança da Ucrânia. Não há nenhuma consideração sobre a crença de Vladimir Putin no excepcionalismo russo, suas ideias políticas, seu histórico de direitos humanos ou suas ambições imperiais. (O documento do Projeto 2025 dá mais espaço para o Ártico do que para a Rússia).

Skinner observa três vertentes do pensamento conservador sobre a política da Ucrânia e conclui:

“Independentemente dos pontos de vista, todos os lados concordam que a invasão da Ucrânia por Putin é injusta e que o povo ucraniano tem o direito de defender sua pátria. Além disso, o conflito enfraqueceu muito a força militar de Putin e impulsionou a unidade da OTAN e sua importância para as nações europeias.”

Skinner conclui que o apoio dos EUA à Ucrânia deve continuar, desde que seja “totalmente pago; limitado à ajuda militar (enquanto os aliados europeus atendem às necessidades econômicas da Ucrânia); e tenha uma estratégia de segurança nacional claramente definida que não arrisque vidas americanas”.

Alguns desmentidos de Trump

Donald Trump nunca falou sobre o direito de autodefesa da Ucrânia ou sobre a importância da unidade da OTAN diante da agressão russa. Ele também não concorda com o pagamento integral da missão na Ucrânia. A principal preocupação de Trump são as relações com a Rússia e a Europa, não a segurança da Ucrânia. Ele já disse várias vezes que Putin é um grande amigo, que Putin não teria iniciado uma guerra com a Ucrânia se Trump fosse o presidente e que ele, Trump, vai elaborar um acordo de paz muito rapidamente.

Pode ser por isso que a Ucrânia nem sequer seja mencionada na plataforma do Partido Republicano, que se refere simplesmente à restauração da “paz na Europa”. Em resumo, Trump quer se livrar do problema da Ucrânia apaziguando a Rússia. Ele só está na mesma página do Projeto 2025 ao argumentar que a Europa e a OTAN devem ser tratadas em termos transacionais, ou seja, ao insistir que os europeus paguem mais pela defesa e ofereçam mais em termos de comércio.

Trump também pode não estar totalmente de acordo com o Projeto 2025 no que diz respeito a Taiwan. Como ele já demonstrou no passado, o ganho financeiro e a vingança são marcas registradas de sua abordagem às relações internacionais, seja lidando com amigos ou adversários.

Lembre-se de que Trump assumiu o cargo em 2017 acreditando que tanto o Japão quanto a China haviam enganado os EUA nas relações comerciais. Em seguida, ele se distanciou da OTAN, argumentando que seus membros precisam pagar mais por sua defesa ou sacrificar o apoio dos EUA.

Portanto, quando lhe perguntaram, em uma entrevista à Bloomberg News em 25 de junho, qual seria sua política em relação a Taiwan, ele não pensou em defender a ilha, o que os republicanos no Congresso consideram a primeira prioridade, mas sim o seguinte: “Eles ficaram com cerca de 100% do nosso negócio de chips. Acho que Taiwan deveria nos pagar pela defesa. Sabe, não somos diferentes de uma companhia de seguros. Taiwan não nos dá nada”. Isso não significa que Trump abandonará Taiwan; ele pode simplesmente estar pressionando o país a pagar mais, assim como exigiu da OTAN.

Segunda Guerra Fria

Em resumo, o Projeto 2025 é menos uma análise séria e objetiva do que um documento ideológico. Ele eleva o nível das ameaças internacionais aos interesses dos EUA, sendo a China o inimigo central; apoia uma enorme expansão do poder presidencial; pede uma ênfase maior do que a de Biden na modernização e expansão das armas nucleares; deixa para os aliados a principal responsabilidade de confrontar a Rússia; pressiona por grandes aumentos no orçamento militar dos EUA; e defende o fortalecimento da base industrial de defesa dos EUA e o aumento das vendas de armas estadunidenses no exterior.

Não procure por iniciativas diplomáticas, questões de direitos humanos, preocupações ambientais, o papel do direito internacional ou discussões sobre pobreza, autocracia ou democracia. Se uma agenda Trump-Projeto 2025 for implementada, podemos esperar crises cada vez maiores na Europa Central e no Oriente Médio, novas corridas armamentistas com a Rússia e a China, outra guerra comercial com a China e novas tensões no Estreito de Taiwan.

Um “gênio estável” estará no comando. Qualquer pessoa que não tenha vivido a primeira Guerra Fria terá uma oportunidade de vivê-la agora.

O retorno do “Tariff Man”

O capítulo de Navarro está totalmente alinhado com as ideias de Trump, o “Tariff Man”, sobre política comercial. Navarro argumenta que uma política comercial dos EUA que se iguale às altas tarifas da China, da Índia ou de qualquer outro país é a melhor maneira de reduzir o déficit comercial dos EUA. Segundo ele, a imposição de tarifas elevadas também forçará as empresas multinacionais dos EUA a construir fábricas no país e será bom para os agricultores estadunidenses (Lembre-se de que nada disso aconteceu durante o mandato de Trump).

Navarro também é a favor do comércio e da dissociação financeira da China, que ele acusa de nada menos que cinquenta formas de “agressão econômica”. Bem conhecido por sua visão ideologicamente voltada para a China, Navarro escreve que os chineses “nunca negociam de boa fé”. Suas propostas praticamente acabariam com a maior parte do comércio com a China, com os investimentos dos EUA no país asiático e com os investimentos chineses nos EUA. Os intercâmbios educacionais e de pesquisa com a China também seriam bastante restritos.

Os custos dessas propostas para os consumidores e as instituições de pesquisa científica e tecnológica dos EUA, o impacto sobre as cadeias de suprimentos globais, a provável retaliação na forma de uma interrupção das exportações chinesas de terras raras e outros minerais vitais para os EUA e o aumento das tarifas da China em resposta às tarifas mais altas dos EUA – todos esses resultados muito prováveis nunca são considerados por Navarro, assim como não o foram por Trump como presidente.

Alguém poderia ler o capítulo de Navarro e pensar que ele e Trump se opõem aos interesses das corporações multinacionais e estão profundamente preocupados com os interesses dos trabalhadores americanos. Mas sabemos, por experiência própria, como Trump mascarou seu objetivo real de obter favores do grande capital, conforme evidenciado por seus cortes de impostos que beneficiaram principalmente o 1% das famílias mais ricas e sua dependência de grandes doações de alguns dos líderes corporativos mais ricos. Agora, Trump propõe reduzir a alíquota do imposto corporativo de 21% no projeto de lei fiscal de 2017 (que era de 35%) para 15%. E você pode apostar que Trump nomeará chefes da Comissão Federal de Comércio e do Federal Reserve que são fãs da América corporativa.

Políticas: Irã, Coreia do Norte, Venezuela, México, armas

Sobre o Irã, o Projeto 2025 diz: “os Estados Unidos podem utilizar suas próprias ferramentas econômicas e diplomáticas e as de outros países para facilitar o caminho rumo a um Irã livre e a um relacionamento renovado com o povo iraniano”. Como fazer isso? Outra reversão às políticas anteriores de Trump: sanções mais severas, apoio a Israel para “tomar o que considerar medidas apropriadas para se defender contra o regime iraniano” e, por fim, buscar uma mudança de regime. O Oriente Médio recebe pouca atenção.

Sobre a Coreia do Norte: “Os Estados Unidos não podem permitir que a Coreia do Norte continue a ser uma potência nuclear de fato com a capacidade de ameaçar os Estados Unidos ou seus aliados. . . . Não se deve permitir que a RPDC lucre com suas violações flagrantes de compromissos internacionais ou ameace outras nações com chantagem nuclear. Ambos os interesses só podem ser atendidos se os EUA não permitirem o comportamento desonesto do regime da RPDC.” Deixando de lado o significado de “proibir” e “não permitir”, essa proposta segue o fracasso de Trump em fechar um acordo com Kim Jong Un quando ele teve a chance. O Projeto 2025 deixa em aberto a possibilidade de outra rodada de ameaças nucleares entre os EUA e a Coreia do Norte.

A Venezuela é o foco da seção América Latina do Projeto 2025. Ele diz: “o próximo governo deve tomar medidas importantes para colocar os abusadores comunistas da Venezuela em alerta e, ao mesmo tempo, fazer progressos para ajudar o povo venezuelano”. Esse conselho ambíguo foi amplamente superado pelos acontecimentos. A eleição presidencial contestada da Venezuela em 28 de julho já levou os EUA a reconhecer o oponente do presidente Nicolás Maduro, Edmundo Gonzalez, como o vencedor, manter as sanções e oferecer a Maduro anistia e uma carona para fora do país. Por enquanto, o governo Biden tem contado com os antigos amigos da Venezuela – os presidentes do México, Brasil e Colômbia – para tentar persuadir Maduro a renunciar. No entanto, não há sinais de que, sob Biden, os EUA colocarão Maduro “em alerta”.

O México é tratado como um “Estado cartel” que perdeu sua soberania. “O próximo governo”, diz o documento do Projeto, ‘deve adotar uma postura que exija um México totalmente soberano e tomar todas as medidas à sua disposição para apoiar esse resultado da maneira mais rápida possível’. A falta de soberania total do México é um argumento para uma intervenção mais direta dos EUA no México? Sabe-se que Trump já expressou a opinião, enquanto presidente, de que os EUA deveriam considerar invadir o México sob o pretexto de interromper o comércio de drogas.

Com relação a armas nucleares e gastos militares, o Projeto 2025 propõe aumentar a produção e a modernização de armas nucleares e retomar os testes com elas (em violação ao Tratado de Proibição Total de Testes Nucleares). Essas ideias, totalmente alinhadas com a paixão de Trump por armas nucleares, estão todas ligadas a propostas para grandes aumentos no orçamento militar dos EUA, para fortalecer a base industrial de defesa estadunidense e para aumentar as vendas de armas dos EUA no exterior. Como se Biden já não estivesse gastando o suficiente com as forças armadas e armas nucleares, ou se afastando da venda de armas!

Conclusão

Em resumo, nas relações exteriores e na segurança nacional, o Projeto 2025 eleva o nível das ameaças internacionais aos interesses dos EUA, com a China como inimigo central; apoia uma enorme expansão do poder presidencial, às custas da diplomacia e das descobertas de inteligência; pede uma ênfase maior do que a de Biden na expansão militar-industrial, incluindo a modernização de armas nucleares; deixa para os aliados a principal responsabilidade de confrontar a Rússia; e parece defender a mudança de regime no Irã, na Venezuela e até no México. Como presidente, Trump teria a liberdade de aceitar ou rejeitar qualquer parte das ideias do Projeto 2025. Mas o que quer que ele aceite não será menos perigoso do que qualquer uma das ideias que ele, como um “gênio estável”, carregou consigo do passado.

 

Gabinete Trump – de, por e para os ricos, por Branko Marcetic

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O alto-escalão do novo governo dos EUA será ocupado por bilionários e CEOs, como Elon Musk. Objetivos estão traçados: menos impostos para corporações, desregulamentações e austeridade para pobres e classe média. É o cinismo de um presidente que se diz “pró-trabalhador”

Branko Marcetic – OUTRAS MÍDIAS -14/11/2024

O alto-escalão do novo governo dos EUA será ocupado por bilionários e CEOs, como Elon Musk. Objetivos estão traçados: menos impostos para corporações, desregulamentações e austeridade para pobres e classe média. É o cinismo de um presidente que se diz “pró-trabalhador”

Após uma derrota eleitoral desmoralizante, o Partido Democrata está mergulhado em debates e acusações enquanto tenta descobrir o que realmente quer ser nos próximos anos: um partido de trabalhadores ou de CEOs e bilionários. O lado de Donald Trump, enquanto isso, já decidiu: vai com os CEOs e bilionários. Tudo o que estamos vendo sobre os planos do novo governo por meio de pessoas de dentro deixa bem claro que este será um governo de, por e para grandes empresas.

Os assessores de Trump disseram à Axios que, no primeiro dia, o novo presidente vai promover “uma agenda favorável aos negócios de cortes de impostos, desregulamentação e expansão da produção de energia” e “preencherá seus altos escalões com bilionários, ex-CEOs, líderes de tecnologia e legalistas”. Há planos em andamento para reduzir ainda mais as taxas de impostos corporativos, desregulamentar uma variedade de setores como criptomoedas, inteligência artificial e grandes bancos, e expulsar a presidente antimonopólio da Federal Trade Commission, Lina Khan, para abrir caminho para mais uma vitória corporativa.

Isso não é nenhuma surpresa, já que Trump já entregou as rédeas de sua presidência para a elite empresarial. A transição de Trump está sendo liderada por dois doadores milionários para sua campanha: Linda McMahon, que como ex-CEO da World Wrestling Entertainment acumulou um longo histórico enganando trabalhadores (e pode ser recompensada ainda mais com o posto de Secretária de Comércio), e o CEO da empresa de negociação Cantor Fitzgerald, Howard Lutnick, que cortou financeiramente as famílias de seus funcionários mortos no ataque de 11 de setembro apenas um dia depois de chorar na televisão sobre suas mortes. O recém-nomeado chefe de gabinete de Trump é um lobista corporativo que trabalhou para empresas de tabaco, seguros e carvão. Alguns gestores de fundos de hedge estão concorrendo para ser seu secretário do tesouro.

Esses são apenas alguns dos bilionários e executivos que silenciosamente moldam a futura presidência de Trump nos bastidores, incluindo o ultra-capitalista Marc Andreessen e o ex-presidente da Marvel Entertainment, Ike Perlmutter. Mas um nome merece menção especial: o bilionário Elon Musk.

Musk é mais um megadoador da campanha de Trump que agora está tendo o favor retribuído pelo presidente eleito. Ele será encarregado, ao que parece, de cortar US$ 2 trilhões de suposto desperdício e fraude do governo, uma ideia que foi pessoalmente endossada por Trump em público. O que está sendo sinalizado é um programa de austeridade implacável para os pobres e a classe média, um que Musk admitiu aberta que mergulhará os americanos em “dificuldades” e uma crise econômica “severa”, mesmo que o governo enriqueça os ultra-ricos.

Não é de se admirar, então, que os dez homens mais ricos do mundo já tenham aumentado sua riqueza em US$ 64 bilhões com a vitória de Trump na última terça-feira, o que fez o mercado de ações ferver com antecipação para a elite empresarial?

Com a eleição garantida, Trump e sua equipe nem se preocupam mais em fingir que passarão os próximos quatro anos lutando contra a elite econômica em nome do trabalhador americano oprimido. Em vez disso, eles vão, muito abertamente, unir forças com essa elite para seguir uma agenda que empobrecerá ainda mais os muitos eleitores que depositaram sua confiança em Trump para tirá-los das atuais dificuldades econômicas.

A reformulação da marca do velho Partido Republicano como o “partido dos trabalhadores” sempre foi uma farsa, especialmente vindo de um líder cuja principal realização legislativa no primeiro mandato foi um corte massivo de impostos para os ricos. Tudo sugere que eles estão prestes a tornar essa “reformulação de brading” mais uma piada.

Branko Marcetic é escritor da redação da Jacobin e mora em Toronto, Canada.

 

Tecnologia não é sinônimo de progresso, por Suzana Herculano-Houzel

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Parar de pensar acentua as desigualdades

Suzana Herculano-Houzel, Bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).

Folha de São Paulo – 15/11/2024

Estou achando difícil ser um animal da espécie humana ultimamente, quando meu vício profissional é pensar o tempo todo em como chegamos aqui: somos fruto de uma sequência de oportunidades amplificadas exponencialmente por um truque tecnológico, o pré-processamento do que comemos, que colocou mais calorias em nossas bocas, mais neurônios em nosso cérebro, e mais tempo em nossas mãos.

A história sobre como alcançamos a biologia que temos, radicalmente transformada pela primeira tecnologia que nossos antepassados criaram, que foi o uso de pedras lapidadas na forma de ferramentas para modificar o que comiam, é a história da evolução biológica da nossa espécie.

A história sobre como nos tornamos os humanos que somos hoje é outra coisa: uma história de progresso. Evolução é apenas mudança ao longo do tempo, nem para pior, nem para melhor. Progresso, agora sim, é mudança que melhora a situação: que traz mais possibilidades, que abre portas, que gera complexidade que torna a vida mais interessante.

Na visão panorâmica da história da humanidade, progresso tem sido o produto do uso de mais e mais novas tecnologias, que geram oportunidades até então inexistentes e mudam a maneira de fazer e pensar. Cordas e machados, depois barro, cimento, concreto e aço transformaram onde vivemos; barro, depois papel e tinta, e então computadores e agora a internet mudaram como estendemos nossos pensamentos e memórias a repositórios externos que podemos consultar à vontade.

Mas esse tempo todo, cabia a nós, humanos, pensar. Juntar coisa com coisa e virar ideias na cabeça, com um problema em mente, até elas fazerem sentido. Usar a tecnologia não como um fim, mas como um meio. As tecnologias armazenavam e traziam informação —mas tornar informação em conhecimento sempre dependeu de humanos usarem a tal informação para melhorar sua vida. O progresso da humanidade não está simplesmente em dispor de mais informação, mas em transformá-la em conhecimento, acumulado e mantido vivo conforme geração após geração aprende a pensar, sintetizar, usar e transmitir.

Donde minha dificuldade, que vem de olhar ao redor e ver minha espécie fazendo muita, mas muita força para automatizar e terceirizar a geração de conhecimento, efetivamente excluindo-se da história. É sério que nós construímos toda uma riqueza de conhecimentos e civilizações diferentes para então gerarmos uma maneira de tornar o cérebro e a experiência humana… obsoletos?

Estou falando, é claro, da tecnologia dita “inteligência artificial” e do seu uso para direcionar a experiência humana. Já escrevi aqui que tecnologias que são apenas algoritmos repetitivos, mesmo que produzam à força de muito treino algo que é indistinguível de linguagem, não têm nada de inteligente, pois inteligência é flexibilidade. Tecnologias não são inteligentes; o uso que fazemos delas é que pode ou não ser.

Mas pior do que confundir algoritmo e automação com inteligência é pensar que todo e qualquer uso dessas tecnologias é inteligente e inevitavelmente traz progresso. Não é, e não traz. A história mostra que automação, sozinha, só enche os bolsos da elite que detém o poder, enquanto acentua a desigualdade.

Meu medo é que a humanidade, encantada com o brinquedo novo, não nota que ele rouba suas oportunidades para parar, pensar, e aprender, e se faz cada vez mais à mercê de uma elite pensante cada vez menor e mais rica.

 

 

Vitória de Trump significa rejeição do liberalismo clássico e inaugura nova era nos EUA e no mundo, por Fukuyama

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Resta saber se republicanos conseguirá cumprir promessas autoritárias e aprofundar degradação das instituições.

Francis Fukuyama, Filósofo e economista americano, é professor da Universidade Stanford e autor dos livros ‘O Fim da História e o Último Homem’ e ‘Liberalism and Its Discontents’ [O Mal-Estar no Liberalismo, em tradução livre].

Folha de São Paulo – 12/11/2024

A vitória esmagadora de Donald Trump e do Partido Republicano no último dia 5 levará a grandes mudanças em áreas importantes na política dos Estados Unidos, desde a imigração até a Ucrânia. Mas o significado da eleição vai muito além dessas questões específicas e representa uma rejeição decisiva dos eleitores americanos al liberalismo e à maneira particular como a compreensão de uma “sociedade livre” evoluiu desde os anos 1980.

Quando Trump foi eleito pela primeira vez em 2016, era fácil acreditar que esse evento era uma aberração. Ele estava concorrendo contra uma oponente fraca que não o levava a sério e, de qualquer frma, Trump não venceu no voto popular. Quando Biden conquistou a Casa Branca quatro anos depois, parecia que as coisas tinham voltado ao normal após uma desastrosa Presidência de um mandato só.

Após a votação do dia 5, agora parece que a anomalia foi a Presidência de Biden, e que Trump está inaugurando uma nova era na política dos EUA e talvez no mundo como um todo. Os americanos votaram nele com pleito conhecimento de quem Trump era e o que ele representava. Não só ele ganhou a maioria dos votos e todos os estados-pêndulo mas os republicanos retomaram o Senado e parecem que vão manter a maioria da Câmara dos Representantes. Dada a sua já existente dominância na Suprema Corte, eles agora estão prontos para controlar todos os Três Poderes do governo.

Mas qual é a natureza desta nova fase da história americana?

O liberalismo clássico é uma doutrina construída em torno do respeito pela dignidade dos indivíduos por meio de um Estado de Direito que protege seus direitos e de controles constitucionais sobre a capacidade do Estado de interferir nesses direitos.

Mas, ao longo do último meio século, esse impulso básico sofreu duas grandes distorções. A primeira foi a ascensão do neoliberalismo, uma doutrina econômica que canonizou os mercados e reduziu a capacidade dos governos de proteger aqueles prejudicados por mudanças econômicas. O mundo ficou muito mais rico ao todo, enquanto a classe trabalhadora perdeu empregos e oportunidades. O poder se deslocou dos lugares onde nasceu a Revolução Industrial para a Ásia e outras partes do mundo em desenvolvimento.

A segunda distorção foi a ascensão do identitarismo ou do que se poderia chamar de liberalismo “woke” (forma como é chamado o discurso de pautas identitárias nos EUA), em que a preocupação progressista com a classe trabalhadora foi substituída por proteções direcionadas para um conjunto mais restrito de grupos marginalizados: minorias raciais, imigrantes, minorias sexuais e afins. O poder do Estado foi cada vez mais usado não a serviço da justiça imparcial, mas sim para promover resultados sociais específicos para esses grupos.

Enquanto isso, os mercados de trabalho estavam mudando para uma economia da informação. Em um mundo em que a maioria dos trabalhadores se senta em frente a uma tela de computador em vez de levantar objetos pesados do chão da fábrica, as mulheres têm uma posição mais igualitária. Isso transformou o poder dentro das famílias e levou a percepção de uma celebração aparentemente constante das conquistas femininas.

A ascensão desses entendimentos distorcidos a respeito do que é o liberalismo impulsionou uma grande mudança na base social do poder político. A classe trabalhadora sentiu que os partidos políticos de esquerda não estavam mais defendendo seus interesses e começou a votar em partidos de direita.

Assim, o Partido Democrata perdeu o contato com sua base da classe trabalhadora e se tornou um partido dominado por profissionais urbanos escolarizados. Os trabalhadores escolheram votar nos republicanos. Na Europa, eleitores do partido comunista na França e na Itália desertaram para Marine Le Pen e Giorgia Meloni.

Todos esses grupos estavam insatisfeitos com um sistema de livre comércio que eliminou seus meios de subsistência, ao mesmo tempo em que criou uma nova classe de super-ricos, e também estavam insatisfeitos com partidos progressistas que aparentemente se importavam mais com estrangeiros e o meio ambiente do que com sua própria condição econômica.

Essas grandes mudanças sociológicas foram refletidas nos padrões de votação na terça-feira. A vitória republicana foi construída em torno de eleitores brancos da classe trabalhadora, mas Trump conseguiu atrair significativamente mais eleitores negros e hispânicos em comparação com a eleição de 2020. Isso foi especialmente verdadeiro para os homens dentro desses grupos. Para eles, a classe importava mais do que raça ou etnia. Não há razão particular para que um latino da classe trabalhadora, por exemplo, deva se sentir particularmente atraído por um liberalismo woke que favorece imigrantes recentes e se concentra em avançar os interesses das mulheres.

Também está claro que a grande maioria dos eleitores da classe trabalhadora simplesmente não se importava com a ameaça à ordem liberal, tanto doméstica quanto internacional, representada por Trump.

Donald Trump não quer apenas reverter o neoliberalismo e o liberalismo woke, mas é uma grande ameaça ao próprio liberalismo clássico. Essa ameaça é visível em várias questões políticas; uma nova Presidência de Trump não se parecerá em nada com seu primeiro mandato. A verdadeira questão neste ponto não é se suas intenções são malignas, mas sim sua capacidade de verdadeiramente cumprir o que ameaça.

Muitos eleitores simplesmente não levam sua retórica a sério, enquanto republicanos tradicionais argumentam que os freios e contrapesos do sistema americano o impedirão de fazer o pior. Isso é um erro: devemos levar suas intenções declaradas muito a sério.

Trump é um protecionista autoproclamado, que diz que tarifa é a palavra mais bonita da língua inglesa. Ele propôs tarifas de 10% ou 20% contra todos os bens produzidos no exterior, por nações amigas ou inimigas, e não precisa do aval do Congresso para fazê-lo.

Como um grande número de economistas apontou, esse nível de protecionismo terá efeitos extremamente negativos sobre a inflação, produtividade e emprego. Será extremamente prejudicial para as cadeias de suprimentos, o que levará os produtores domésticos a solicitar isenções. Isso então proporciona a oportunidade para altos níveis de corrupção e favoritismo, à medida que as empresas correm para agradar o presidente.

Tarifas nesse nível também convidam a retaliações igualmente massivas por outros países, criando uma situação em que o comércio (e, portanto, a renda) colapsa. Talvez Trump recue diante disso; ele também pode responder como a ex-presidente argentina Cristina Kirchner, corrompendo a agência estatística que reporta as más notícias econômicas.

Com relação à imigração, Trump não quer mais simplesmente fechar a fronteira; ele quer deportar o máximo possível dos 11 milhões de imigrantes em situação irregular lá no país. Essa é uma tarefa administrativa tão grande que exigirá anos de investimento na infraestrutura necessária para realizá-la — centros de detenção, agentes de controle de imigração, tribunais e assim por diante.

Terá efeitos devastadores em vários setores que dependem da mão de obra imigrante, particularmente construção civil e agricultura. Também será enormemente desafiador em termos morais, à medida que pais são separados de seus filhos americanos, e criaria o cenário para um conflito civil, já que muitos dos imigrantes vivem em jurisdições democratas que farão o que puderem para impedir que Trump consiga o que quer.

Com relação ao Estado de Direito, Trump se concentrou, durante a campanha, em buscar vingança pelas injustiças que acredita ter sofrido nas mãos de seus adversários. Ele prometeu usar o sistema de justiça para perseguir de Liz Cheney e Joe Biden ao ex-presidente do Estado-Maior Mark Milley e Barack Obama. Ele quer silenciar críticos da mídia retirando suas concessões ou impondo penalidades.

Se Trump terá o poder de fazer qualquer uma dessas coisas é incerto: o sistema judicial foi uma das barreiras mais resilientes aos seus excessos durante o primeiro mandato. Mas os republicanos têm trabalhado consistentemente para inserir juízes trumpistas no sistema, como a juíza Aileen Cannon na Flórida, que rejeitou o forte caso dos documentos confidenciais contra Trump.

Algumas das mudanças mais importantes virão na política externa e na natureza da ordem internacional. A Ucrânia é de longe a maior perdedora; sua luta militar contra a Rússia estava enfraquecendo mesmo antes da eleição, e Trump pode forçá-la a se render nos termos da Rússia ao reter armas, como a Câmara Republicana fez por seis meses no inverno passado.

Trump ameaçou reservadamente sair da Otan, mas mesmo que não o faça, ele pode enfraquecer gravemente a aliança ao não cumprir sua garantia de defesa mútua do Artigo 5. Não há líderes europeus que possam substituir os Estados Unidos como líder da aliança, então sua futura capacidade de enfrentar a Rússia e a China está em grave perigo. Pelo contrário, a vitória de Trump inspirará outros populistas europeus, como a Alternativa para a Alemanha e a Reunião Nacional na França.

Aliados e amigos dos EUA no Leste Asiático não estão em posição melhor. Embora Trump tenha falado duramente sobre a China, ele também admira muito Xi Jinping por suas características autocráticas e pode estar disposto a fazer um acordo com ele sobre Taiwan. Trump parece avesso por natureza ao uso do poder militar e é facilmente manipulado, mas uma exceção pode ser o Oriente Médio , onde ele provavelmente apoiará completamente as guerras de Benjamin Netanyahu contra o Hamas, o Hezbollah e o Irã.

Há fortes razões para pensar que Trump será muito mais eficaz em cumprir essa agenda do que foi durante seu primeiro mandato. Ele e os republicanos reconheceram que a implementação de políticas depende da equipe. Quando foi eleito pela primeira vez em 2016, ele não entrou no cargo cercado por um grupo de assessores leais; em vez disso, teve que contar com republicanos do establishment.

Em muitos casos, eles bloquearam ou retardaram suas ordens. No final de seu mandato, ele emitiu uma ordem executiva que retiraria todas as proteções de estabilidade dos servidores federais e permitiria que ele demitisse qualquer burocrata que quisesse. Um renascimento dessa medida está no cerne dos planos para um segundo mandato de Trump, e os conservadores têm estado ocupados compilando listas de potenciais funcionários cuja principal qualificação é a lealdade pessoal a Trump. É por isso que ele tem mais chances de executar seus planos desta vez.

Antes da eleição, críticos, incluindo Kamala Harris, acusaram Trump de ser um fascista. Isso foi equivocado na medida em que ele não estava prestes a implementar um regime totalitário nos EUA. Em vez disso, haveria uma decadência gradual das instituições liberais, assim como ocorreu na Hungria após o retorno de Viktor Orbán ao poder em 2010.

Essa decadência já começou, e Trump causou danos substanciais. Ele aprofundou uma polarização já significativa e transformou os EUA de uma sociedade de alta confiança para uma de baixa confiança; ele demonizou o governo e enfraqueceu a crença de que ele representa os interesses coletivos dos americanos; ele tornou o discurso político mais grosseiro e deu permissão para expressões abertas de intolerância e misoginia; e ele convenceu a maioria dos republicanos de que seu antecessor foi um presidente ilegítimo que fraudou a eleição de 2020.

A amplitude da vitória republicana, estendendo-se da Presidência ao Senado e provavelmente à Câmara dos Representantes também, será interpretada como um forte mandato político confirmando essas ideias e permitindo que Trump aja como quiser. Só podemos esperar que algumas das barreiras institucionais restantes sigam de pé. Mas pode ser que as coisas tenham de piorar muito antes de melhorarem.

 

Incertezas crescentes

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A sociedade mundial vem passando por grandes alterações econômicas e produtivas, com impactos generalizados sobre todas as regiões, alterando comportamentos arraigados, alterando a agenda das comunidades, com o incremento de desenvolvimentos científico e tecnológico que transformaram os  modelos de negócios, reconfigurando o mercado de trabalho, aumentando as exigências para todos os trabalhadores, movimentando as estruturas políticas e democráticas dos Estados Nacionais e gerando novos desafios para toda a comunidade global.

Diante destes desafios contemporâneos que agitam a sociedade internacional, percebemos ventos de mais protecionismos dentro das comunidades locais, nações que pregavam enfaticamente o livre comércio, que eram árduos defensores de mais concorrência como forma de alavancar o crescimento econômico e estimulavam a diminuição do Estado na economia estão revendo princípios e valores que eram vistos como intocáveis.

Neste cenário, percebemos o crescimento de políticas protecionistas para proteger suas estruturas econômicas e produtivas, com fortes investimentos subsidiados pelos governos nacionais, além do incremento de tarifas de importação para reduzir a entrada de produtos estrangeiros, desta forma, garantem a sobrevida de setores nacionais que perderam espaço no comércio global e foram substituídos por concorrentes estrangeiros mais eficientes, mas produtivos e detentores de tecnologias mais modernas e mais sofisticadas.

Com a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, percebemos o renascimento de um discurso fortemente protecionista e messiânico, centrado nos interesses norte-americanos, com forte teor protecionista e imediatista, com o incremento de políticas anti-imigração e de deportação em massa, além da intensificação do conflito comercial entre EUA e China, reversão de políticas adotados no governo atual que estimulavam os conflitos militares em curso na sociedade mundial e o afastamento dos tratados internacionais, principalmente os vinculados ao Meio Ambiente.

Internamente, percebemos que o novo governo Donald Trump deve adotar políticas protecionistas para fortalecer estados e regiões inteiras que foram fortemente desindustrializadas nos momentos de ascensão da chamada globalização. Estados que sempre se caracterizaram por forte desenvolvimento industrial, pela pujança econômica, por uma classe média consolidada e que perderam a capacidade de competição global, levando uma massa gigantesca de empresas nacionais a fecharem suas unidades locais e abrirem filiais em outras regiões, notadamente na Ásia, onde a mão de obra era mais barata, mais abundante, com os custos de produção imensamente menores.

O protecionismo estadunidense pode gerar graves constrangimentos internos e externos, deportar imigrantes, sobretaxar produtos estrangeiros, adotar políticas agressivas contra os interesses de empresas chinesas e pressionar empresas transnacionais para incrementar novos investimentos internos, tais políticas podem gerar graves constrangimentos inflacionários, levando as Autoridades Monetários ao incremento das taxas de juros e levando nações a desequilíbrios nas contas externas.

Vivemos momentos de grandes incertezas e instabilidades. Depois dos problemas ambientais, dos desequilíbrios energéticos, das guerras fratricidas que crescem em escalas ascendentes, dos desajustes do mercado de trabalho, das desesperanças que crescem em todas as regiões do globo, percebemos que mais desequilíbrios e intolerâncias crescem todos os momentos na comunidade global. A eleição nos Estados Unidos nos traz uma grande lição, a melhora econômica e os bons indicadores da economia são insuficientes para garantir a manutenção do poder…abram os olhos!

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Qual fantasia subjaz à reeleição de Trump? por Vera Iaconelli

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Os americanos votaram e o fizeram sabendo qual produto estavam comprando

Vera Iaconelli, Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “Manifesto Antimaternalista” e “Felicidade Ordinária”. É doutora em psicologia pela USP

Folha de São Paulo – 12/11/2024

Embora ninguém pudesse afirmar de antemão que a gata Harris estava morta dentro da caixa, a notícia de sua derrota foi recebida com surpreendente conformismo. A que se deve tal reação, ou a falta dela? A reeleição de Trump implicou uma escolha que não foi feita às cegas, que não se justifica apenas pelas fake news e na qual a narrativa de outsider não existe mais. Os americanos votaram e o fizeram sabendo qual produto estavam comprando. Como bem resumiu Oliver Stuenkel, haveria quatro “is” envolvidos nessa escolha: inflação, imigração, instabilidade global e insegurança masculina. Além dos bilhões de dólares investidos na campanha, claro.

Mais do que se debruçar sobre a infindável —e imprescindível— investigação das razões pelas quais essa figura execrável foi reeleita para governar o país mais poderoso da atualidade, há que se pensar também sobre a desrazão, tema crucial da psicanálise. Embora hoje tenhamos que conviver com o ultraje de ver associado ao nome da psicanálise as palavras “positiva”, “evangélica”, “de direita”, “certificada” ou ainda “certificada pelo MEC”, nosso trabalho é de outra ordem.

O analista convive com uma rotina nada glamourosa de escutar a repetição da queixa do paciente, por vezes, ao longo de anos. Alguns sintomas podem até ceder, mas a mudança da posição do sujeito diante da vida, que o leva a um sofrimento insistente, requer um trabalho mais radical. Não raro, o paciente troca de trabalho, sexo, marido/esposa ou casa sem que isso o faça sair da posição que o mantém numa existência miserável.

O prazer inconfesso que se obtém com a repetição de certos padrões de comportamento está recalcado sob a queixa. Daí a importância de ajudá-lo a reconhecer sua parte naquilo do qual se queixa. O analista não tem a pretensão de modificar a escolha do paciente, mas de fazê-lo assumir sobre que bases se dá essa escolha. A atitude aqui é ética, de responsabilização, e não moral, de dever a ser cumprido.

A escolha por Trump —o exterminador do futuro das mulheres, dos negros, dos pobres e, por fim, do próprio planeta— se revela como renovação na aposta na objetificação do outro, a quem, a depender da posição relativa na escala social, poderemos continuar explorando. Trata-se, enfim, da renovação da aposta capitalista em sua versão turbinada, neoliberal. Algo como: sofro, mas não me privo de fazer o outro sofrer, alucinando a possibilidade de um dia estar na posição mais alta da hierarquia social. Aquela na qual roubar, abusar, matar não seriam atos passíveis de responsabilização. Lembremos da pilha de condenações ligadas ao candidato em questão.

Embora a guilhotina tenha feito seu papel, nunca superamos inteiramente o sonho monarquista, no qual o presidente-rei paira incólume sobre os pobres mortais. Como acabar com esse jogo perverso se não conseguimos abrir mão da esperança de um dia ser nossa vez de brincar de todo-poderoso?

Psicanalistas se orientam pelo que repete incessantemente na clínica porque é a partir da identificação da repetição que se pode localizar a fantasia inconsciente que nos move. No caso de Trump, a fantasia é de delírio de grandeza e de gozar impunemente. Temos nosso exemplar no Brasil, que não deveria sequer voltar às capas desse jornal.

Direita vai bem, Bolsonaro vai mal e Trump não pode salvá-lo, por Christian Lynch

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Nova configuração de poder emerge no Brasil, com controle do centrão e conservadorismo mais pragmático que radical

Christian Lynch, Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), editor da revista Insight Inteligência, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa

Folha de São Paulo – 11/11/2024

[RESUMO] O domínio do centrão nas eleições deste ano, sustenta o autor, aponta que o sistema político brasileiro, depois de um período de forte instabilidade e polarização extrema, passa por um processo de reequilíbrio, marcado por um presidencialismo de coalizão fraco e níveis menores de radicalidade ideológica. Partidos de centro-direita têm interesse em manter a inelegibilidade de Bolsonaro, e a esquerda, sem novos líderes, depende cada vez mais de Lula.

Os resultados das eleições municipais deste ano confirmam que o sistema político brasileiro passa por um processo de reequilíbrio em torno de novas bases ideológicas e de governabilidade. Bases distintas daquelas que definiram o período de estabilização do regime democrático entre os anos 1990 e 2010, assentadas sobre um eixo ideológico de centro-esquerda e do presidencialismo de coalizão forte ou imperial como modelo de governabilidade, que levava a reboque o chamado centrão.

Há cerca de dez anos, o eixo ideológico começou a se deslocar para a centro-direita, sustentado por partidos de centro-direita e direita, que deixaram a periferia do sistema para se tornar seu núcleo de estabilidade e controle. O modelo de governabilidade, perdido ou desarranjado durante aqueles anos de transição, parece agora se estabilizar na forma de um presidencialismo de coalizão fraco ou, conforme seus críticos, um “parlamentarismo bastardo”.

Essas mudanças decorrem de uma crise de legitimidade do sistema representativo, que estalou nas jornadas de 2013, se aprofundou com o impeachment de Dilma Rousseff (PT) em 2015 e culminou, em 2018, na eleição de Jair Bolsonaro (à época no PSL). Crise gerada pela emergência de uma nova direita que não se percebia no sistema político da República de 1988 e o hostilizava.

Embora Bolsonaro representasse a nova direita radical, que canalizava o ressentimento popular contra o sistema e o suposto establishment, o centrão renovado pela mesma eleição se adaptou à nova conjuntura, assumindo uma postura conservadora pragmática e reforçando seu papel como pilar de estabilidade. Passou a agir para limitar tanto as prerrogativas da Presidência quanto do STF.

Tudo aponta para uma tendência em direção a um novo equilíbrio sistêmico e ao afrouxamento da polarização para níveis menores de radicalidade.

A Constituição de 1988 foi concebida em um contexto progressista, em que havia um consenso de que o país deveria se afastar das práticas autoritárias da ditadura militar e se comprometer com um projeto de inclusão social e liberdades públicas. Esse espírito se refletiu nas primeiras décadas de democracia, em que o eixo ideológico predominante esteve à esquerda, sustentado por uma Constituição com fortes valores social-democratas.

Entre os anos 1990 e 2010, o sistema político se estabilizou em torno do chamado presidencialismo de coalizão, um arranjo em que o presidente, mesmo minoritário no Congresso, usava seu vasto poder sobre o Orçamento e a máquina governamental para construir maiorias legislativas e garantir a governabilidade.

Esse modelo se consolidou a partir do Plano Real, que gerou estabilidade econômica e legitimidade para Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Tanto ele quanto Lula e Dilma Rousseff, seus sucessores, governaram formando coalizões com partidos mais conservadores que se alinhavam pragmaticamente ao governo em troca de cargos e influência.

Era esse um presidencialismo forte ou imperial, marcado pelo poder de agenda do chefe de Estado na definição de políticas progressistas, voltadas para promover um ambiente de maior liberdade política, civil e econômica, mas também maior igualdade social, racial e de gênero.

No entanto, a partir dos anos 2010, o consenso progressista começou a dar sinais de desgaste. O contexto político e social havia mudado: a sociedade brasileira, transformada por décadas de políticas sociais e de inclusão, se tornou mais complexa e polarizada. Em paralelo, denúncias de corrupção e o colapso do modelo de presidencialismo alimentaram uma crise de legitimidade.

As manifestações de 2013 expressaram o descontentamento generalizado com a classe política e marcaram o início de um período de grande instabilidade. Bancado pela PGR (Procuradoria-Geral da República) e pelo STF, a “revolução judiciarista” pautou a Operação Lava Jato, derrubou Dilma Rousseff, quase derrubou Michel Temer (MDB), além de prender e condenar dezenas de figuras do establishment a título de purgá-lo da corrupção.

Esse processo abriu espaço para que o centrão reagisse em busca de sobrevivência. Para alcançar esse fim, precisaria deixar de ser apenas um grupo de apoio pragmático e passasse a atuar de forma mais autônoma e ativa, buscando consolidar sua hegemonia.

Nesse contexto, o centrão se adaptou para sobreviver e fortalecer sua influência. Até então, seus partidos haviam operado pragmaticamente, compondo com presidentes de diversos espectros políticos. Entretanto, após o impeachment de Dilma e com a ascensão de figuras mais conservadoras, assumiu sua posição conservadora sem perder o pragmatismo, perseguindo primazia sobre os demais Poderes.

Na impossibilidade de aprovar o semipresidencialismo, esse processo culminou em uma nova forma de presidencialismo de coalizão, agora fraco, menos centralizado na Presidência e mais ancorado no Legislativo. Uma espécie de parlamentarismo bastardo.

Por meio de estratégias como o uso de emendas parlamentares (como as emendas Pix e o orçamento secreto), o centrão passou a controlar a distribuição de recursos e fortalecer suas bases locais, garantindo seu domínio sobre a política nacional, o que contribuiu para a vitória de seus candidatos na última eleição municipal e fortaleceu sua influência. Essa apropriação do Orçamento e da máquina pública se tornou um mecanismo de autossustentação, tornando tais partidos cada vez mais independentes do presidente, seja ele de direita ou de esquerda.

O resultado foi um conservadorismo inercial que garante estabilidade ao sistema político ao custo de fazê-lo rodar muito mais lentamente.

As ideologias passaram a ocupar um lugar mais central na organização e na definição das identidades políticas do centrão. Seu conservadorismo sempre existiu, mas estava adormecido pelo consenso progressista. Findo este, saiu da incubadora.

Mas se trata de um conservadorismo moderado, mais pragmático que doutrinário, voltado principalmente para a proteção dos mecanismos de sua autorreprodução com pouca interferência do governo e do Judiciário. Daí a defesa daquilo que eufemisticamente chamam de prerrogativas do Congresso.

A crise de legitimidade vivida pela democracia brasileira e, em paralelo, o avanço da nova direita na década passada deram força política, em estilo abertamente populista, a ideologias radicais que antes estavam à margem, como o reacionarismo e o libertarianismo. A social-democracia identificada com o PT entrou em crise.

No entanto, o pacto pragmático do liberalismo democrático centrista com o conservadorismo tradicional da direita moderada tem garantido que o sistema permaneça estável, coibindo o avanço de pautas progressistas, ora decadentes, mas, também e principalmente, o avanço do populismo autoritário.

Essa relação entre ideologia e pragmatismo se revela na ambiguidade de líderes da direita do centrão, como Ciro Nogueira (PP) e Valdemar Costa Neto (PL). Querem o estoque eleitoral do populismo radical, mas submetendo-o à disciplina partidária tradicional e, assim, podando seus efeitos antissistêmicos.

Mesma ambiguidade visível em Tarsício de Freitas (Republicanos), que representa no governo de São Paulo o impossível “bolsonarismo moderado”, com que busca atrair eleitores de centro-direita acenando periodicamente para o radicalismo. Na centro-direita, Gilberto Kassab (PSD) segura Tarcísio com a mão direita e Lula com a esquerda, estabelecendo as alianças amplas que elegeram o maior número de prefeitos neste ano.

A direita brasileira está consolidada, e seu sucesso cria novos problemas. O maior reside na oposição entre moderados ou sistêmicos, identificados, de um lado, com Kassab e Eduardo Paes (PSD), e radicais antissistêmicos, como Bolsonaro e Pablo Marçal (PRTB).

A liderança de Bolsonaro, inelegível e sem expectativa de poder, está francamente decadente. Egoísta e inábil, o ex-presidente confia sempre e unicamente na sua camarilha de bajuladores e pretende submeter toda a direita ao seu objetivo particular de fugir da cadeia por meio de uma anistia que reverta sua inelegibilidade ou lhe permita lançar à Presidência um candidato subserviente.

Por essas e outras razões, com toda a sua ambiguidade, a própria direita moderada centrônica o percebe como um estorvo e não vê a hora de se livrar dele definitivamente. Prefere gente como Tarcísio e Ronaldo Caiado (União Brasil), este em rota de colisão com Bolsonaro.

A decadência de Bolsonaro se dá também no campo da direita radical. Aparentemente, a apologia da tortura, da ditadura e do golpe militar saíram de moda. Nesse contexto, a figura de Marçal emergiu como um populista neoliberal, camaleão que busca capitalizar o sentimento anti-establishment de gerações mais novas, mais preocupadas com enriquecimento rápido e que veem a religião como terapêutica para problemas pessoais e familiares.

Em termos eleitorais, Bolsonaro também se engajou pessoalmente em campanhas municipais, não só contra a esquerda, mas contra gente da própria direita, e saiu derrotado em quase todas. Muitas igrejas evangélicas também já desinvestem do radicalismo, pregando a despartidarização da religião ou mudando de lado.

Em outras palavras: a direita vai bem, Bolsonaro vai mal. A direita populista, a despeito de sua força eleitoral e histrionismo, continua longe de ameaçar os centrônicos. A eles interessa manter a inelegibilidade de Bolsonaro, fingindo ajudá-lo a escapar quando, na verdade, mais o aproximam do abismo. Mas também lhes interessa a inelegibilidade de Marçal.

Ao mesmo tempo, é improvável que a própria Justiça Eleitoral declare a inelegibilidade de Tarcísio pela declaração que fez a respeito de Guilherme Boulos (PSOL) no dia do segundo turno. Tarcísio pode dar suas “bolsonaradas” à vontade: o sistema o percebe como um dos seus.

Já a esquerda, que historicamente liderou o processo de redemocratização, enfrenta uma situação complexa. Com seu declínio e a falta de renovação de suas lideranças, o PT perdeu o protagonismo e depende cada vez mais da figura de Lula para se manter relevante.

Se Bolsonaro não consegue ser maior que a direita, Lula consegue ser maior que a esquerda. Ele se reinventou como piloto de uma frente democrática ou ampla e se comportou assim nas eleições, se afastando o tanto quanto possível da imagem de partidário.

Em outras palavras: a esquerda vai mal, mas Lula vai relativamente bem. Ao mesmo tempo que a esquerda se torna cada vez mais “lulodependente”, o presidente se vê obrigado a se mover cada vez mais para o centro para preservar e aumentar seu arco de alianças. Enquanto o governo vai se tornando cada vez menos de esquerda, a fissura entre os socialistas se aprofunda. Alguns acham que falta pragmatismo, outros acham ser preciso recuperar as bandeiras históricas do socialismo.

O retorno de Donald Trump à Presidência dos EUA, um reacionário golpista, condenado criminalmente e movido pelo desejo de vingança e de escapar da cadeia, põe a democracia americana em uma posição frágil. Sua influência direta sobre o Brasil, contudo, encontra limites importantes.

Primeiro, o Brasil não enfrenta uma crise de decadência geopolítica ou de imigração para catalisar o tipo de ressentimento e identidade nacionalista que Trump mobiliza.

Segundo, o sistema político brasileiro, embora tenha falhas, possui mecanismos institucionais que oferecem resistência a investidas autoritárias, como a independência do STF e um sistema constitucional mais recente e adaptado às necessidades de uma sociedade democrática.

O sistema bipartidário, que permite que todos os setores conservadores se aglutinem em torno de um radical como Trump, tampouco existe no Brasil. Bolsonaro não consegue ascendência nem sequer sobre Valdemar Costa Neto. Além disso, o centrão não possui interesse em uma ruptura autoritária que abale o equilíbrio de poder do qual depende para manter influência e controle sobre o governo.

Assim, apesar de uma possível pressão da internacional reacionária liderada por Trump e das tentativas de importar mais uma vez sua retórica e seu messianismo, nada indica que ele abalará o atual modelo de governabilidade de tendência conservadora, mas pragmática do Brasil. Bolsonaro, que tentou sempre emular Trump, está cada vez mais isolado.

Da mesma forma, nenhuma das alternativas conservadoras à Presidência se mostra disposta a romper o presidencialismo de coalizão fraco. Aparentemente, querem todas ser apenas um Michel Temer com votos. Nem a Justiça Eleitoral, nem o governo, nem o STF parecem dispostos a anistiar Bolsonaro para que ele volte a se candidatar.

Nesse quadro, o que Trump poderá efetivamente fazer de útil para Bolsonaro? Bolsonaro quer, claro, explorar em benefício de sua anistia a tese delirante de que Trump mandará fuzileiros navais prenderem Alexandre de Moraes.

Trump estará ocupado redesenhando as instituições e a sociedade norte-americana à sua feição. Está interessado em reduzir a presença militar dos EUA no mundo, não em aumentá-la. Se precisar de um bajulador sul-americano, já tem à mão um Milei para posar ao seu lado. Mais provável são tuítes destemperados apoiados por Elon Musk ou a concessão de asilo diplomático na calada da noite.

As eleições municipais de 2024, ao consolidar o controle do centrão e do conservadorismo pragmático sobre a política local, indicam que o Brasil está caminhando para uma nova configuração de poder. Esse processo de normalização do sistema, que agora gira em torno da centro-direita, sugere que a polarização política extrema dos últimos anos pode estar cedendo lugar para uma moderação pragmática.

No entanto, essa normalização enfrenta desafios, especialmente no que diz respeito à convivência com o STF, visto por muitos como o último bastião de um sistema democrático e liberal. Há arestas entre o tribunal e o centrão, decorrentes da tentativa de preservar o avanço feito pelo Congresso sobre o Orçamento.

Sabe-se que, no quadro de fraqueza imposta ao governo pelo “parlamentarismo bastardo”, o governo também conta com a maioria do STF como parceiro para restabelecer alguma paridade de armas. É o “judiciarismo de coalizão”, identificado principalmente com o ministro Flávio Dino.

Enfim, tudo indica uma tendência ao reequilíbrio sistêmico em torno do centro-direita e um afrouxamento da radicalização ideológica.

É cedo para discutir as eleições de 2026. Não se sabe se Lula passará o bastão a Fernando Haddad (PT) ou se será candidato à reeleição, opção que parece cada vez mais provável. Nem se sabe para que lado penderia a centro-direita de Kassab, apoiando um candidato como Tarcísio, mais seguro à reeleição em São Paulo, ou Caiado. A reversão da inelegibilidade de Bolsonaro é remota, e Marçal deve ser declarado inelegível pela falsidade assacada contra Boulos durante a campanha em São Paulo.

Do ponto de vista sistêmico, porém, a depender do resultado das eleições de 2026, saberemos se o sistema político absorveu definitivamente, como parece, as tensões subversivas da direita radical ou se sofrerá o ataque de um populista apoiado por cerca de um quarto do eleitorado e, talvez, pela internacional reacionária.

 

Efeito dominó do desmatamento na Amazônia, por Márcia Castro

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Danos acumulados não são revertidos apenas com a redução das taxas anuais

Márcia Castro, Professora de Demografia e Chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard.

Folha de São Paulo – 08/11/2024

Na última quarta-feira (6), o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inep) divulgou dados do desmatamento. De agosto de 2023 a julho de 2024, o desmatamento na amazônia caiu 30,6% comparado ao período anterior.

Um dia depois, dados do Observatório de Clima mostram que o Brasil reduziu em 12% a emissão de gases de efeito estufa em 2023. Na amazônia, as emissões devido ao desmatamento tiveram uma queda de 37%.

Os dois indicadores são positivos e estão relacionados. Mas muito ainda precisa ser feito.

Os efeitos acumulados em função do histórico de desmatamento não são revertidos apenas com a redução das taxas anuais. Além da contínua redução das perdas ambientais, são necessários programas efetivos, de larga escala e sustentáveis de recuperação ambiental.

A equação é simples: menos árvores resultam em menos umidade do ar, o que reduz a potência dos rios voadores, resultando em menos chuvas e, portanto, redução do nível de água dos rios. Esse efeito dominó acelera o processo de mudanças climáticas.

Além disso, afeta a segurança energética do país, já que a energia hidrelétrica, em 2023, responde por 48,6% da capacidade instalada e 60,2% da geração total.

Um estudo da PUC-Rio mostra que 17 das 20 maiores hidrelétricas do Brasil estão na rota dos rios voadores e, portanto, são afetadas pelo desmatamento na amazônia. Destas, apenas oito estão localizadas na amazônia.

Fica claro que os efeitos do desmatamento não respeitam fronteiras. O estudo mostra que o desmatamento na amazônia entre 2002 e 2022 resultou em uma perda de geração de cerca de 3% nas hidrelétricas localizadas na bacia do Paraná.

A redução da geração de energia hidrelétrica em momentos de seca demanda o uso de usinas térmicas que, além de terem um custo maior, são emissoras de gases de efeito estufa, acelerando as mudanças climáticas.

Cabe relembrar que os possíveis efeitos das mudanças ambientais e climáticas na futura capacidade de geração de energia hidrelétrica no Brasil já haviam sido ressaltados no Projeto Brasil 2024 que, infelizmente, foi ignorado.

Os efeitos do desmatamento também são sentidos na saúde. Um estudo recente mostra que, entre 2003 e 2022, a cada aumento de 1% na área mensal desmatada houve, em média, um aumento de 6,3% nos casos de malária na amazônia no mês seguinte ao desmatamento. Esse efeito varia por estado e chega a 10,6% de aumento da malária no Amazonas.

Esses e tantos outros efeitos do desmatamento ressaltam a necessidade da recuperação ambiental.

Imagine que a amazônia é um órgão do corpo humano. Os rios são as artérias. As árvores são as veias. Não é preciso remover todas as árvores ou contaminar todos os rios com o mercúrio usado no garimpo para que amazônia deixe de existir.

A falência do órgão acontece quando o estrago chega a um ponto que compromete o seu funcionamento. Essa é a ideia do ponto de não retorno. Evitá-lo demanda redução do desmatamento e recuperação de áreas degradadas.

Estamos a um ano da COP 30 em Belém. O Brasil pode, deve e precisa assumir o protagonismo na agenda ambiental. Precisa fazê-lo pelo Brasil e pela humanidade. Afinal, após a eleição de Trump, esse protagonismo é de extrema importância.

 

Alunos de Gestão Empresarial da Fatec Catanduva – 2024

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Trump: promessas e perspectivas

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Nesta semana Donald Trump ganhou a eleição para a Presidência dos Estados Unidos, neste percebemos que as nações estão todos alvoroçadas, afinal a presença de Trump na presidência dos EUA gera incertezas e instabilidades de todas as regiões.

Governos nos mais diferentes matizes ideológicos estão preocupados, mas destacamos as nações que mais geram preocupações da sociedade norte-americana, como a China, a Rússia, o Irã, o México, a Coréia do Norte e o México, países que, de uma forma ou outra, ameaçam a liderança estadunidense.

Neste cenário, onde a sociedade estadunidense perde a sua hegemonia global e percebe ainda, o crescimento de novos atores econômicos, políticos e sociais, as reações do governo Donald Trump podem alavancar constrangimentos para a sociedade mundial, como a adoção de fortes políticas protecionistas, limitação da atuação de agências multilaterais, tais como a ONU, a OMC, a OMS, dentre outras, que podem culminar no refluxo da globalização.

Me chamou a atenção na campanha eleitoral, as promessas, que são sempre muito interessantes, muitas delas bastante exóticas e irreais, onde o ganhador ameaçou aumentar a proteção tarifária da economia norte-americana, taxando as importações que geram constrangimentos para a economia e impacta fortemente os trabalhadores, principalmente das regiões industrializadas, essas regiões que antes eram fortes exportadores de produtos industrializados, perderam espaço no comércio global e, suas populações estão perdendo renda, empobrecendo e aumentando a degradação social e levando grande parte da população para votarem em candidatos de extrema-direita.

As tarifas alfandegárias podem reduzir as importações internas e acomodar a produção interna, mas sabemos que as outras nações não vão aceitar passivamente, que podem gerar um conflito comercial, cujos efeitos são assustadores, preocupantes e podem aumentar os confrontos entre as nações.

Outro ponto que devemos destacar neste ambiente, é que, a redução da importação global dos Estados Unidos, como forma de proteger a indústria americana, vai impactar fortemente sobre o consumo interno, com elevação dos preços dos produtos e gerando um incremento da inflação, cujo impacto imediato é a elevação das taxas de juros que tendem a reduzir os investimentos produtivos, diminuindo o crescimento dos empregos e a queda da renda agregada.

O mundo globalizado é muito mais complexo do que as pessoas imaginam, muitas promessas são impossíveis de serem implementadas, desta forma, muitos políticos eleitos perdem a legitimidade, com inúmeras promessas na campanha que são difíceis de serem colocadas em práticas, gerando o descrédito, a desesperança e a repulsa a todos os candidatos, para todos os partidos políticos e para todo o sistema democrático, gerando um verdadeiro retrocesso.

A ascensão de Donald Trump pode motivar uma nova agenda internacional, menos multilateralismo, crescimento da extrema direita, o incremento da turbulência e com a imigração perdendo espaço, já que a promessa de endurecer a entrada de pessoas de outras nações nos Estados Unidos podem contribuir para que o mundo fique, cada vez mais, centrado nas incertezas, nas instabilidades e nas crescentes volatilidades.

 

 

O economista de Donald Trump, por Alessandro Octaviani

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Alessandro Octaviani – A Terra é Redonda – 07/11/2024

É um erro tomar Peter Navarro, um dos raros economistas a quem Trump dá alguma credibilidade, como “excêntrico”, “retrato de um acidente”, ou “desvio, que em breve será arrumado”

Peter Navarro é atualmente diretor do Office of Trade and Manufacturing Policy, do Governo Federal dos EUA, e um dos raros economistas a quem Donald Trump dá alguma credibilidade. [1]

Durante a crise do Covid-19, sua atuação foi ainda mais marcante. Como noticiado, em 2 de abril de 2020, “Donald Trump recorreu (…) à Lei de Produção de Defesa para ajudar as empresas que fabricam respiradores (…). (…) General Electric, Hill-Rom Holdings Inc, Medtronic Plc, Resmed Inc, Royal Philips NV e Vyaire Medical Inc”. [2]

Esse reforço para as empresas nacionais norte-americanas ficou a cargo de Peter Navarro, que se incumbe da missão como um verdadeiro “Falcão Econômico”: “Sobre sua ‘nova autoridade sobre empresas e suas redes mundiais de suprimentos’, ele conta como a usou com a 3M, que tem fábricas na China: ‘A empresa não estava disposta a informar sobre a distribuição das máscaras que produz ao redor do mundo e a fornecê-las ao povo americano. Ela quer agir como uma nação soberana (…). E nesta crise existe apenas um país e apenas um presidente”. [3]

A imprensa noticiou recentemente o movimento jurídico de Donald Trump rumo à tentativa de monopolizar, para os EUA, a exploração mineral na Lua e em outros corpos celestes: “Em meio à pandemia do coronavírus, que já contaminou mais de 360 mil estadunidenses, o presidente dos EUA, Donald Trump, envolve-se em mais uma polêmica após publicar um decreto que dá ao país o direito à exploração dos recursos da Lua, contrariando o acordo feito sobre o satélite natural do planeta Terra. ‘Os americanos devem ter o direito de se envolver em exploração comercial, recuperação e uso de recursos no espaço sideral, de acordo com a lei aplicável. O espaço exterior é um domínio legal e fisicamente único da atividade humana, e os Estados Unidos não o veem como um bem comum global. (…)’, diz o decreto assinado por Trump, que foi rechaçado por Moscou”.[4]

Essa proposta também tem o dedo de Peter Navarro, como se lê em Death by China (escrito em parceria com Greg Autry, para ser uma espécie de programa de ação para o Estado capitalista norte-americano ante o perigo chinês e a ameaça à sua hegemonia global): dentre as proposições concretas para “confrontar o desafio espacial chinês” consta “reivindicar a Lua antes que a China o faça”. [5]

Para Peter Navarro, a China é uma ameaça aos EUA, em razão de sua ascensão industrial capitaneada pelo Estado chinês e suas políticas de cunho mercantilista, protecionista, imperialista, planejadas e agressivas.

Dentre os instrumentos chineses, estariam (i) a formação de uma rede complexa de subsídios ilegais à exportação; (ii) moeda astutamente manipulada e brutalmente desvalorizada; (iii) flagrante falsificação, pirataria e subtração descarada da propriedade intelectual norte-americana; (iv) envolvimento em degradação ambiental significativa; (v) padrões de saúde e segurança do trabalho excessivamente frouxos; (vi) tarifas e quotas de importação ilegais; (vii) fixação de preços e uso de demais práticas predatórias com vistas a expulsar rivais estrangeiros dos principais mercados de recursos para, então, cobrar excessivamente dos consumidores por meio de monopólio de preços; e (viii) impedimento de todos os competidores internacionais de estabelecerem seus negócios em solo chinês. [6]

As cinco partes de Death by China são nomeadas em termos militaristas, “preparando a guerra” (que viria de fato a se instalar alguns anos depois de sua publicação, quando suas formulações revelaram-se adequadas às concepções de Donald Trump): “‘Buyer beware’ on steroids”, “Weapons of job destruction”, “We will bury you, Chinese style”, “A hitchhiker’s guide to the Chinese gulag” e “A survival guide and call to action”.

São elencadas medidas estratégicas a serem modeladas, em caráter amplo e urgente, várias das quais atualmente em pleno curso: (i) evitar os produtos chineses; [7] (ii) desmantelar as armas de destruição de empregos da China; [8] (iii) fixar limites rígidos para a espionagem chinesa e guerra cibernética; [9] (iv) confrontar e combater a crescente ameaça militar chinesa; [10] (v) combater o colonialismo global chinês; [11] (vi) frear as mortes na China pela China; [12] (vii) enfrentar o desafio espacial chinês. [13]

É um erro tomar Peter Navarro ou Donald Trump como “excêntricos”, “retratos de um acidente”, ou “desvios, que em breve serão arrumados”. Eles representam a expressão arraigada do Estado capitalista norte-americano e sua disciplina jurídica, vertidos, sempre, à defesa radical de seus interesses e da manutenção de suas posições de poder.

Não se trata de “excepcionalismo”, mas de “estrutura profunda”, que ecoa a célebre modelagem da “Super 301” – instrumento jurídico dos EUA para punir unilateralmente países que os afetem comercialmente – e a atuação do deputado Richard Gephardt, que propunha a incidência do diploma automaticamente “contra países que tivessem saldos superavitários excessivos em suas balanças comerciais com os EUA. Segundo o projeto, seriam feitas duas exceções: países com dificuldades de balanços de pagamentos e casos em que a ação 301 pudesse significar dano aos interesses econômicos dos EUA. (…) Derrubada por veto do Presidente Reagan, sob a justificativa de que era ‘por demais draconiana para ser efetiva’, a chamada ‘emenda Gephardt’ deu lugar à Super 301, como seu dispositivo substituto”. [14] Substituiu-se a obrigação automática de sancionar outros países pela possibilidade discricionária de atacá-los…

*Alessandro Octaviani é professor de direito econômico da Faculdade de Direito da USP.

Notas

[1] Cf., entre outros, ROGIN, Josh. “How Peter Navarro got his groove back”. The Washington Post. Publicado em 27/02/2018.

[2] Publicado em 2/04/2020.

[3] Publicado em 8/4/2020.

[4] Publicado em 7/4/2020.

[5] NAVARRO, Peter; AUTRY, Greg. Death by China: Cronfronting the Dragon – A Global Call to Action. New Jersey: Pearson FT Press, 2011, p. 257-259.

[6] Ibidem, p. 1-11.

[7] Ibidem, p. 234-239. Algumas das proposições específicas: não comprar produtos “made in China”; leis mais duras contra a China e produtos chineses que prejudiquem os americanos.

[8] Ibidem, p. 239-245. Algumas proposições concretas: enviar emissário secreto à China para avisá-la sobre a intenção americana de estigmatizá-la como manipuladora de moeda; frear o sequestro dos trabalhos de pesquisas e desenvolvimento; proibir as empresas estatais chinesas de comprarem empresas privadas.

[9] Ibidem, p. 245-249. Algumas proposições concretas: penalizar de forma mais séria e agressiva os espiões chineses; declarar os ataques cibernéticos promovidos por Estados nacionais como atos de guerra.

[10] Ibidem, p. 249-252. Exemplos de propostas: reconhecer que os EUA precisam conseguir um maior retorno do complexo industrial militar, em vista da superioridade quantitativa crescente do armamento chinês; evitar uma corrida armamentista com a China, que está numa situação econômica e militar muito mais favorável do que os EUA.

[11] Ibidem, p. 252-255. Propostas: expandir e mensagem dos EUA pelo mundo, como forma de ganhar acesso a mercados e difundir os valores democráticos; substituir o ensino de francês e alemão nas escolas de ensino médio por mandarim, como forma de conhecer o inimigo.

[12] Ibidem, p. 255-257. Algumas proposições concretas: reinstituir os direitos humanos como elemento da política externa americana (os EUA devem continuar a exercer pressão sobre a China a fim de que ela respeite os direitos humanos); realização de investimentos em empresas e moedas de países ricos em recursos, como Austrália e Brasil, que se expandem tanto quanto a China.

[13] Ibidem, p. 257-259. Proposições concretas, como mencionado acima: reivindicar a Lua antes que a China o faça; concessão de bolsas, empréstimos estudantis e subsídios/financiamentos educacionais direcionados de forma desproporcional às áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática.

[14] ARSLANIAN, Regis. O Recurso à Seção 301 da Legislação de Comércio Norte-Americana e a Aplicação de seus Dispositivos Contra oBrasil. Brasília: Instituto Rio Branco, 1994, p. 77.

 

Donald Trump — mais um prego no caixão da democracia liberal, por Luis Felipe Miguel

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Luis Felipe Miguel –  A Terra é Redonda – 07/11/2024

 Do mandato de Donald Trump, pelos sinais apresentados até agora, se pode esperar uma tentativa de orbanização do sistema político estadunidense

Evito fazer projeções bombásticas, mas é difícil resistir no calor no momento: a nova eleição Donald Trump bateu, não digo o último, mas um dos últimos pregos no caixão da democracia liberal tal como ela foi edificada ao longo do século XX.

A vitória de Donald Trump não é exatamente inesperada. O velho farsante alaranjado nunca perdeu o apoio de sua base original — operários e rednecks e empobrecidos, os que se sentem cada vez mais excluídos e sem perspectivas nos Estados Unidos de hoje. E cresceu tanto junto ao dinheiro grosso quanto ao eleitorado negro e latino.

Dos bilionários antes simpáticos aos democratas, Donald Trump ganhou o apoio declarado, a simpatia discreta ou no mínimo a neutralidade. Já entre negros e latinos há um crescente descrédito com o discurso do “neoliberalismo progressista” que é oferecido a eles pelo Partido Democrata.

De fato, o Partido Democrata parece não saber o que oferecer ao eleitorado. Em 2020, Joe Biden obteve uma vitória apertada — em um país mergulhado no caos da primeira gestão de Donald Trump, incluindo uma gestão da pandemia tão criminosa quanto a de Jair Bolsonaro.

Na presidência, ele pareceu julgar que a volta à “normalidade” (isto é, à velha política de sempre) era o que o povo queria. Esforçou-se por melhorar os indicadores econômicos, sem perceber que o efeito eleitoral deles já não era o mesmo.

No começo do mandato, em gesto ousado, Joe Biden apoiou a greve dos trabalhadores da Amazon, que reivindicavam o direito de se sindicalizar. Mas o saldo não foi angariar o apoio do vasto setor de precarizados (aqueles retratados no oscarizado Nomadland) e sim angariar a antipatia dos barões da “nova economia” — reforçado pelas tímidas tentativas de regular as big techs.

Não custa lembrar que Jeff Bezos, da Amazon, determinou que o Washington Post, o jornal do qual também é dono, rompesse a tradição de apoiar candidatos democratas e se declarasse neutro na eleição deste ano.

Quando a incapacidade física e mental de Joe Biden para concorrer à reeleição se tornou evidente demais e — após um longo e desgastante processo — ele teve que ser substituído, a opção por sua vice parecia “natural”, mas nem por isso menos equivocada.

Ela parecia ser a solução mais rápida, capaz de unir o partido. Mas, afora isso, reconhecidamente uma política pouco hábil, má oradora e desprovida de carisma, seu único trunfo era ser uma mulher com ascendência africana e indiana.

Com o apelo identitário se mostrando cada vez mais contraproducente, afastando mais eleitores do que congregava, e tendo que ser colocado em segundo plano, Kamala Harris fez uma campanha errática.

Era a mesma velha política morna, de fazer acenos em múltiplas direções para, no final das contas, manter tudo como está.

Do mandato de Donald Trump, pelos sinais apresentados até agora, se pode esperar uma tentativa de orbanização do sistema político estadunidense. Isto é: seguir os passos de Viktor Orbán, na Hungria, e suprimir todos os controles a seu poder pessoal.

Esse desfecho é o resultado da crise do modelo liberal democrático.

O segredo desse arranjo repousava na capacidade da classe trabalhadora de impor limites ao funcionamento da economia capitalista. Ou seja, as democracias históricas não se definem como um conjunto de regras do jogo abstratas, como frequentemente se apresenta na ciência política, mas como o resultado de uma determinada correlação de forças.

A acomodação da democracia liberal permite, por um lado, que os dominados tenham alguma voz no processo decisório e, por outro, que os dominantes saibam calibrar as concessões necessárias para garantir a reprodução de sua própria dominação.

Um componente necessário nessa equação é, obviamente, a capacidade regulatória do Estado. Outro é sua autonomia relativa em relação aos proprietários, a fim de que possam ser adotadas medidas que os contrariam no curto prazo.

A crise que ora se vê é marcada pela erosão de praticamente todos os pilares desse arranjo. O “populismo de direita” dá respostas a ela — ilusórias, mentirosas, mas ainda assim respostas. O centro e a esquerda eleitoral não chegam nem a isso. E, sem a retomada da capacidade de pressão de uma classe trabalhadora transformada, o modelo da democracia liberal fatalmente vai degringolar para uma oligarquia escancarada, com um frágil verniz eleitoral.

Estamos falando dos Estados Unidos. Mas, como disse Horácio (e Marx gostava de citar): de te fabula narratur.

*Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil (Autêntica)

 

 

A guerra civil psicótica de volta à Casa Branca, por Franco ‘Bifo’ Berardi

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Franco ‘Bifo’ Berardi – OUTRAS PALAVRAS – 06/11/2024

Entender Trump exige política e psicanálise. Ele sintetiza a desintegração do capitalismo em meio à miséria, violência e depressão. E mobiliza a psicose coletiva que aliena multidões em nome de um ideal: “vencer a qualquer preço”

Tal como as algas mutantes e monstruosas que invadem a lagoa de Veneza, as nossas telas de televisão estão povoadas, saturadas, de imagens e opiniões “degeneradas”. Outra espécie de algas que vale a pena ter em conta, desta vez relacionada com a ecologia social, consiste nesta liberdade de proliferação concedida a homens como Donald Trump, que se apoderam de bairros inteiros de Nova Iorque, Atlantic City, etc., para os “renová-los” no processo em que os alugueis sobem e expulsam milhares de famílias pobres, a grande maioria das quais estão condenadas a perder a sua casa, sendo este caso o equivalente, para os nossos propósitos, a peixes mortos na ecologia ambiental. (Félix Guattari: Les trois écologies, Paris, Éditions Galilée, 1989, p. 34.)

Nestas linhas, escritas quando Trump começava a ocupar a cena pública, Guattari prevê o que agora é mais claro que a luz do dia: a desregulação neoliberal permite que algas monstruosas contaminem as águas. Tudo se desenrolou pontualmente e agora o mar superaquecido desencadeia tempestades terríveis, que matam centenas de pessoas na costa espanhola. Além disso, a desregulação permite a proliferação de fontes de declarações destinadas a contaminar a mediosfera e, consequentemente, a psicosfera. Aconteceu pontualmente: turbas de psicoadictos votam num sem-vergonha, que promete a maior deportação de migrantes da história. Estas poucas linhas de Guattari descrevem a gênese de um ambiente venenoso, que gera violência e opressão, ao mesmo tempo que desencadeia a guerra de todos contra todos, gerando as condições para uma tirania cínica, barroca e destrutiva.

Reconsideremos as premissas distantes daquilo que chamamos de desregulação. No início está a criação tecnológica do paradigma rizomático. Graças à comercialização de tecnologias electrônicas durante as décadas de 1960 e 1970, tornou-se possível a difusão democrática de fontes autonomas de informação. Na Itália e na França criamos centenas de estações de rádio livres depois de travarmos uma batalha cultural contra o monopólio estatal da informação. Então, a criação da world wide web possibilitou a proliferação de inúmeros centros de netcultura ao redor do mundo. Mas pela fenda aberta pela criatividade difusa entraram grandes grupos econômicos e mafiosos (Berlusconi em Itália, Trump nos Estados Unidos e indivíduos semelhantes em todos e cada um dos países do mundo), cujo objetivo não era certamente a criação, a cultura ou a informação, mas a acumulação de capital e a aquisição de poder político ilimitado sobre as mentes de uma sociedade psiquicamente subjugada.

Zed is dead, baby

Vi The Apprentice (2024), filme de Ali Abbasi, que aborda o período de aprendizagem do candidato republicano das atuais eleições estadunidenses. O título é habilmente retirado do programa televisivo em que, há algumas décadas, Donald Trump submetia os candidatos a diversas humilhações, que apareciam diante dele para serem insultados, ridicularizados, questionados e, por fim, despedidos (“You’re fired”). Havia filas para serem ridicularizadas publicamente por aquele indivíduo loiro. Porque? O enigma de Trump demonstra que os instrumentos de análise política já não são úteis. Na verdade, para compreender tal monstruosidade ética, psíquica e política, é necessário falar em humilhação, tristeza epidêmica, autodepreciação, é necessário falar em liberdade ilimitada para escravocratas, tiranos psicóticos e fabricantes de armas. O filme de Abbasi consegue isso até certo ponto: pode ser não seja um grande filme, mas é útil para compreender alguns dos antecedentes psíquicos, existenciais e mafiosos em que Trump cresceu. É útil compreender as ferramentas de seu domínio sobre a psique de um povo miserável e imensamente ignorante.

O filme não é sobre o programa The Apprentice, do qual apropriadamente tira o título, mas na verdade sobre o aprendizado do próprio Trump. Como se tornou o que é? Para responder a esta questão, a psicanálise pode ser mais útil do que a teoria política. A sobrinha do homem laranja, Mary L. Trump, psicóloga de formação, escreveu um livro intitulado Too Much and Never Enough: How My Family Designed the World`s Most Dangerous Man (2020), no qual ela tenta entender seu tio de um ponto de vista psicanalítico. A primeira impressão que tive ao ler o livro é que a vida desse indivíduo foi (e é) imensamente triste. O pai de Trump era, na opinião de Mary, uma pessoa sociopata, mas eficiente. O filme de Abbasi também consegue mostrar como a relação com o pai foi decisiva. Donald viveu sua infância e adolescência com medo da humilhação a que seu pai o submeteu sistematicamente, o que lhe causou profundas feridas psicológicas. “A crença fundamental de Fred (o pai sociopata) é esta: na vida há sempre apenas um vencedor e todos os outros são perdedores; a amabilidade, por outro lado, significa apenas fraqueza”. “Ou você é um perdedor ou é uma pessoa que aposta tudo”, diz o pai ao pequeno Donald. Partindo de tais premissas, é impossível desfrutar das relações com os outros, pois essas relações só podem ser de competição, agressão ou submissão. Mas, infelizmente, não será este um traço decisivo da personalidade coletiva dos habitantes deste país, que não teria existido sem o genocídio dos nativos americanos e sem a deportação e a escravidão?

As três regras que Donald aprende com um advogado racista da máfia (Roy Cohn) são as seguintes:

1.Ataque, ataque, ataque.
2. Sempre minta.
3. Sempre declare vitória e nunca admita a derrota.

Como observa um personagem do filme, que é jornalista do The New York Times, esses três princípios descrevem muito bem a política externa estadunidense dos últimos 30 anos. Eu diria que eles definem o espírito público dos Estados Unidos da América, do princípio ao fim. O inconsciente coletivo dos estadunidenses brancos é um porão fétido de onde emergem monstros como aquele que Tarantino retratou em Pulp Fiction (1994). Você se lembra de quando Bruce Willis liberta Marcellus daquele porão, onde Zed, o torturador, o mantém amarrado para abusar dele? Não há melhor maneira de explicar os anos Trump, embora, infelizmente, me pareça que Zed está vivo e bem, preparando-se para pisotear um bando de pobres.

Nomen est omen

No início de 2021, logo após o ataque ridículo ao Capitólio pelas tropas do general Trump, publiquei um ensaio intitulado “The American Anyss” no e-flux. Quatro anos mais tarde, esse abismo está se tornando mais profundo e um perigo torna-se cada vez mais evidente: a desintegração da mente estadunidense pode desencadear uma reação em cadeia que acabará por aniquilar a vida humana na Terra. Às vezes penso no nome desse indivíduo: trump significa vencer, superar, subjugar, mas o substantivo trump também significa peido, peido fedorento. Se alguma vez a frase “nomen est omen” [o nome é tudo] foi verdade, é esse o caso. O homem laranja é um peido fedorento, que se propõe (e consegue) a empestear a atmosfera psíquica, humilhando e ameaçando. Se eu tivesse a infelicidade de ser cidadão estadunidense, não votaria em nenhum dos candidatos: a senhora Harris, que prometeu que os militares dos EUA estarão sempre equipados com a letalidade máxima, é mais perigosa do que o senhor Trump do ponto de vista europeu, porque com a senhora Harris como presidente, a guerra na Ucrânia se estenderia até o limiar atômico. Trump, que representa consciente e explicitamente os interesses da raça branca, seria uma catástrofe para os palestinos e, de forma mais geral, para os migrantes, a quem Trump e Vance prometeram “a maior deportação da história”. Mas é difícil imaginar como Trump poderia ser mais implacável do que Biden e Obama, que deportaram mais migrantes durante as suas presidências do que o homem peido. E é difícil imaginar como é que ele poderia ser mais implacável com os palestinos do que Biden, que nunca deixou de apoiar financeiramente ou de enviar armas aos exterminadores israelenses. Talvez eu fosse menos hipócrita.

Psicose memética

Em 6 de janeiro de 2021, enquanto o novo presidente democrata se preparava para assumir o seu lugar na Casa Branca e o Congresso se reunia para realizar os seus rituais institucionais, uma multidão heterogênea respondeu ao apelo de Trump para salvar a América e alguns milhares de perturbados marcharam em direção ao Capitólio. Sem encontrar qualquer resistência séria por parte da polícia, estes lunáticos entraram nas salas do Capitólio, quebraram os vidros das janelas, vociferando enquanto agitavam bandeiras confederadas e bandeiras com suásticas. Donald Trump incitou os alvorotados a recuperar o poder pela força. “Você nunca recuperará seu país com fraqueza. Devem mostrar força e ser forte. […]. Lutem, lutem como homens condenados. E se vocês não lutarem como condenados, não haverá país para vocês”. No final do dia a multidão voltou para casa, como faz depois de um belo passeio de domingo. Algumas pessoas ficaram feridas e uma foi morta após tiros de um policial. Os comentaristas democratas ficaram realmente indignados, como não compreendê-los, mas a indignação dos Democratas perante as falsidades contadas por Trump e nas quais os seus seguidores acreditam é pueril. Depois de 2008, os estadunidenses brancos, atolados em duas guerras insanas, humilhados pelo empobrecimento provocado pela crise financeira e aterrorizados pelo colapso demográfico, agarraram-se desesperadamente às suas armas, aos seus SUVs, ao seu direito de comer carne e ao seu direito de matar.

O que aconteceu em Washington no dia 6 de janeiro de 2021 não foi uma insurreição ou um golpe de Estado, mas sim um episódio ridículo e criminoso da guerra civil americana, que é o entrelaçamento de vários conflitos, ou seja, um conflito entre o nacionalismo branco e o globalismo liberal, um conflito entre a população branca e a população negra, latina e asiática, um conflito entre as metrópoles e as áreas rurais empobrecidas e um conflito cultural entre secularistas e fanáticos de algum Jeová sintético, mas esta guerra está diante de uma guerra civil psicótica guerra de lunáticos armados, que decidem matar a primeira pessoa que se coloque no caminho. Este é o abismo estadunidense, não a propagação de fake news. Em 2016 aconteceu o impensável: um nazista loiro tingido venceu as eleições. A partir desse momento ficou claro que a maior potência do mundo is running amok [está fora de controle], que perdeu a cabeça, enquanto tem 120 armas de fogo para cada cem habitantes. Os Democratas queixam-se de que as redes sociais produzem uma avalanche de falsidades, mas só uma pessoa ingênua não perceberia que as falsidades não podem ser erradicadas, porque os Estados Unidos são o reino da falsidade.

Entre 1º de janeiro e 31 de agosto de 2023, ocorreram 28.293 mortes por armas de fogo nos Estados Unidos. As mortes em ações de mass-shooting (como traduzir uma palavra tão ligada à língua dos pistoleiros?) foram 474. Os homicídios não intencionados por arma de fogo, ou seja, os mortos por acidente no manuseio de arma, foram 1.070.

Um pai estadunidense

Apesar de consumirem quatro vezes mais eletricidade e muito mais carne do que qualquer outra pessoa no planeta (ou talvez por causa disso), os cidadãos dos Estados Unidos levam vidas miseráveis. A expectativa média de vida na Espanha é de 83,3 anos, na Suécia 83,1, na Itália 82,7, na China 77,1. Nos Estados Unidos, a expectativa de vida nos últimos anos é de 76,1 anos. 65% dos habitantes não têm poupanças e, se adoecerem, têm boas chances de acabar nas ruas. Em 2022, se produziram 100 mil mortes por overdose de opiáceos. A maior potência militar do planeta está se desintegrando. A palavra “impensável” é recorrente no discurso público estadunidense nos últimos anos.“Precisamos pensar o impensável sobre o nosso país” é o título de um editorial do The New York Times publicado em 13 de janeiro de 2022, escrito por Jonathan Stevenson e Steven Simon:

As próximas eleições nacionais serão inevitavelmente disputadas sanha e talvez violência. É correto afirmar que a ameaça que a direita representa aos Estados Unidos – e o seu objetivo evidente de lançar as bases para tomar o poder ilegitimamente, se necessário, em 2024 – é politicamente existencial. […] O pior cenário é este: os Estados Unidos como conhecemos poderão desintegrar-se.

The Unthinkeble: Trauma, Truth, and the Trials of American Democracy por outro lado, é o título de um livro de Jamie Raskin, publicado em 6 de janeiro de 2022, no primeiro aniversário da insurreição psicótica. O autor não é apenas um escritor, mas um importante membro do Congresso, eleito em Maryland para as fileiras do Partido Democrata. Além disso, Jamie Raskin é professor de Direito Constitucional, autodenomina-se liberal e pai de três filhos na faixa dos vinte e trinta anos. Um deles, Tommy, de 25 anos, ativista político, apoiador de causas progressistas e defensor dos animais, morreu na noite do último dia do ano de 2020. Tommy escolheu morrer, suicidou-se como dizem. Fez isso depois de uma longa depressão, mas também como consequência da longa humilhação moral que o trumpismo infligiu aos seus sentimentos humanitários. Para Jaimie Raskin, a decisão final de Tommy não é apenas uma catástrofe emocional, mas o início de uma reconsideração radical das suas convicções. Ao ler este livro, partilhei a dor de um pai e o tormento de um intelectual, mas ao mesmo tempo foi revelada a profundidade da crise que está dilacerando o Ocidente e, em particular, obscurecendo o horizonte cultural da democracia liberal. O pai não tem mais nenhum mundo de valores para transmitir ao filho. No livro, três histórias diferentes se desenrolam simultaneamente e se alimentam reciprocamente: a primeira é a história do fascismo estadunidense emergente. A segunda é a vida de Tommy, a sua educação, os seus ideais e a constante humilhação da sua sensibilidade ética. A terceira é o efeito da covid-19 nas mentes da geração mais jovem, aquela que mais sofreu com as regras de distanciamento. Tommy sofria de depressão e, em sua última mensagem, fala sobre isso: “Perdoe-me, minha doença venceu”.

Jamie Raskin escreve:

Tal como muitos jovens da sua geração, Tommy foi arrastado pela covid-19 para uma espiral maligna. Com os centros educativos fechados, a sua vida social foi reduzida a um ponto frágil acompanhado da máscara, as viagens tornaram-se um pesadelo. As relações tornaram-se difíceis, forçadas a uma intimidade prematura e torpe ou de fato condenadas ao esquecimento virtual. Muitos jovens sofreram com o desemprego, a falta de oportunidades econômicas e uma profunda incerteza. Muitos, como Tommy, foram obrigados a voltar para a casa dos pais e ficar em uma sala cheia de livros de bacharelado […]. Tommy declarou-se antinatalista porque não podia aceitar a perspectiva de comprometer outro ser humano com uma vida destinada a ser dominada pela dor da tristeza e do sofrimento.

Por mais que Sarah e eu tentássemos descrever para ele a alegria de ter filhos, Tommy não renunciava a sua determinação, porque ninguém tem o direito de impor a outra pessoa a inevitável experiência de dor. Não me dá muito conforto saber que uma parcela enorme e crescente da sua geração sente o mesmo em relação à opção de não ter filhos.

O antinatalismo é provavelmente um efeito da depressão – como não seria? – mas mostra que a depressão pode ser uma condição de sabedoria e não apenas uma doença. Torna-se uma doença quando não compreendemos a sua mensagem e tentamos desesperadamente conformar-nos com as normas dominantes de produtividade, eficácia e dinamismo. Rechaçar a mensagem da depressão, reafirmar a força de vontade contra a mensagem que ela nos envia, é uma forma de cair numa tendência suicida. Se formos capazes de compreender o significado e a sabedoria da depressão, é possível uma evolução consciente e partilhada da mesma. No caso de Tommy isto é evidente: o seu denatalismo é talvez mais sábio do que a decisão irresponsável de dar à luz a inocentes destinados a uma vida quase certamente infeliz.

Após a morte do filho, a percepção de Raskin muda: seu otimismo constitucionalista vacila diante da explosão da força bruta, que tende a anular a força da razão, enquanto suas certezas democráticas vacilam diante da proliferação da depressão.

De repente, meu otimismo constitucional me deixa numa situação difícil, como se fosse uma vergonha. Temo que o meu resplandecente optimismo político, que muitos dos meus amigos apreciaram em mim, se tenha se tornado uma armadilha de auto-engano massivo, uma fraqueza que pode ser explorada pelos nossos inimigos.

O otimismo político deste generoso professor de Direito Constitucional é abalado pela súbita constatação de que a democracia liberal está sentada em alicerces frágeis. De fato, ele escreve:

Sete dos nossos primeiros dez presidentes eram proprietários de escravos. Estes fatos não são acidentais, mas nascem da própria arquitetura das nossas instituições políticas.

A escravidão faz parte da bagagem psíquica da nação estadunidense. Como pode esta nação esperar servir de exemplo para as outras? Como podemos não pensar que esta nação é um perigo para a sobrevivência da humanidade?

A lei do pai não tem mais poder sobre o caos

Trump poderá voltar a ser presidente dos Estados Unidos da América [este texto foi escrito antes da vitória do ex-presidente estadunidense], enquanto o mundo entrou, por meio das instâncias estadunidenses, num ciclo de guerra civil psicótica, cujos resultados são imprevisíveis e, na verdade, verdadeiramente impensáveis. O pai não tem mais um mundo de significado para legar ao filho. A lei do pai não tem mais poder sobre o caos. Quem quer que ganhe estas eleições dopadas de bilhões de dólares, o caos está garantido.

 

Revisão dos gastos

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Vivemos momentos de grandes incertezas econômicas e financeiras que impactam sobre todo o sistema produtivo, com aumento nas taxas de juros, desvalorização cambial e preocupações crescentes sobre a inflação, desta forma, percebemos a piora dos indicadores econômicos e o incremento dos desequilíbrios políticos.

Neste cenário, os agentes econômicos e financeiros usam seus instrumentos de pressão para pressionar o governo federal para revisar os gastos públicos para evitar que a dívida pública cresça de forma acelerada, impactando fortemente sobre a economia nacional e melhore as perspectivas econômicas, estimulando o sistema produtivo e contribuindo para a recuperação nacional.

Desde a crise financeira internacional de 2008 e, principalmente, depois da pandemia os governos nacionais foram incentivados a adotarem uma política mais intervencionista, com aumento dos gastos públicos e uma visão mais protecionista com o objetivo de proteger seus setores produtivos, garantindo mais empregos e incremento dos salários, desta forma, a economia retomaria seu caminho de mais investimentos produtivos e uma maior geração de renda agregada.

Depois de grandes estímulos fiscais e financeiros, os governos nacionais buscam um maior equilíbrio fiscal, reduzindo os estímulos e reorganizando as contas públicas, reduzindo ineficiências e adotando medidas mais efetivas para melhorar a arrecadação nacional como forma de evitar o estouro da dívida pública. Neste ambiente, os mercados pressionam o governo nacional para uma maior racionalização das contas públicas, impedindo que a dívida pública cresça e a inflação impactem sobre taxas de juros maiores, refletindo negativamente sobre as atividades econômicas.

A revisão dos gastos públicos deve ser feita por todos os governos como forma de aumentar a eficiência e a melhor alocação de recursos públicos, objetivando uma melhora dos serviços públicos e evitando os desperdícios que acometem a gestão pública. Neste momento, percebemos a grande dificuldade do Estado Nacional para rever os gastos públicos e a racionalização dos recursos da comunidade, afinal rever gastos de grupos privilegiados pode ser visto como uma declaração de guerra. Todos falam a favor da redução dos gastos públicos, criticando os dispêndios governamentais, desde que a conta caia sobre os ombros de terceiros. Os grupos sociais mais bem organizados defendem seus privilégios, muitos deles “garantidos” a muitos séculos, mesmo sabendo que seus privilégios existem em detrimento de outros grupos sociais, que muitas vezes querem apenas garantir um direito essencial, gerando incertezas e instabilidades que desestabilizam os governos de plantão.

Neste momento, os palácios governamentais estão discutindo como fazer para restringir os gastos públicos e dar racionalidade ao arcabouço fiscal, reduzindo os recursos com o BPC (Benefício de Prestação Continuada), o Abono e os seguro-desemprego, que impacta fortemente sobre os grupos mais fragilizados da sociedade brasileira, tudo isso garantiria recursos adicionais para melhorar o ambiente econômico e uma melhora dos horizontes, principalmente dos financistas. Neste momento, a sociedade brasileira está perdendo tempo, devemos fazer uma revisão geral dos gastos públicos, adotando taxação de lucros e dividendos, revendo isenções fiscais e tributárias que consomem bilhões, acabando com penduricados que engordam salários elevados, além da tributação das grandes fortunas, desta forma, o ajuste  fiscal contribuirá para que o sistema tributário nacional seja menos regressistas e tão desigual.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Pragmatismo e desinteresse de Trump devem marcar relação com a América Latina, por Monica Hirst

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Apesar de sua condição periférica, regiao sofrerá impactos do novo governo na questão migratória; crise na Venezuela deve ser ponto de contato, mas sem visão coordenada.

Monica Hirst, Professora da Universidade Torquato di Tella (Buenos Aires) e pesquisadora-colaboradora do IESP-UERJ; autora de livros sobre a relação EUA-Brasil

Folha de São Paulo – 06/11/2024

A vitória de Donald Trump encontra uma América Latina prostrada, dividida e silenciosa. Mantendo-se fiel ao perfil de baixa prioridade estratégica para a grande potência do Norte, a região já não se projeta internacionalmente como um coletivo com voz política própria e difenciada. Trata-se de uma zona geográfica de poucas palavras, de peso decrescente na economia mundial, cobiçada por interesses extrarregionais em razão de suas riquezas minerais, de seu lugar como pulmão verde de um planeta que respira mal e de sua sistemática capacidade de oferta de delito organizado.

Independentemente de sua condição periférica, a região sofrerá o impacto do resultado das urnas americanas, particularmente com referência a três temas: questão migratória, democracia e geopolítica mundial.

Com certa ironia, a região deu seu aporte ao mote Faça a América Grande Outra Vez (“Make America Great again”), slogan que também vem sendo subentendido como Faça a América Branca Outra Vez. Durante toda sua campanha, o republicano mencionou o tema migratório de forma entrelaçada com os problemas causados pela porosidade em vários pontos dos 3,2 mil quilômetros de fronteira com o México.

De fato, trata-se de uma contribuição pelo avesso, já que ela se dá a partir de uma agenda negativa, a qual não só foi de enorme serventia para Trump como atuou como um estímulo de sentimentos que frequentam a agenda do ódio das massas que o apoiam. A menção constante do México e seus migrantes como os grandes responsáveis pela entrada do crime e da violência no país passou a legitimar sentimentos de xenofobia, racismo e agressividade.

A proposta do presidente eleito de uma maciça deportação (em 2022, 45% dos 11,3 milhões de imigrantes em situação irregular nos EUA eram mexicanos) seria uma “bukelização” das práticas migratórias do novo governo, a seguir o exemplo de crueldade de Nayib Bukele no tratamento da sua população carcerária em El Salvador. O sentido racista imbuído na proposta de Trump não deixa também de mostrar seu parentesco com programas de limpeza étnica tão conhecidos ao longo da história do século 20 em diferentes partes da Europa e atualmente posto em prática na Faixa de Gaza pelo governo de Israel.

O segundo tema, da democracia, ganhou um lugar privilegiado nos discursos de Kamala Harris. A inclusão desse ponto na agenda democrata fez eco em alguns países da América Latina, com menção especial ao Brasil. A articulação dos grupos de extrema direita nas redes sociais tornou-se especialmente veloz na região. O calendário eleitoral na década recente foi funcional para dar asas à regionalização de uma nova extrema direita com lideranças que atuam dentro e fora das instituições representativas, junto e dentro de organizações religiosas evangélicas, apoiadas por setores jovens de diversos segmentos sociais cativados pelo ideário libertário. Depois do período 2019-2022 do governo de Jair Bolsonaro, a chegada de Javier Milei ao poder na Argentina em 2023 deu continuidade a essa tendência.

De forma inusitada, o governo Lula se posicionou frente à disputa eleitoral a favor da candidata democrata. O resultado das urnas americanas terminou presenteando às forças opositoras no Brasil um lugar vencedor.

A retomada por Brasília de uma linha de atuação pragmática em seu bilateralismo com Washington, que dê destaque às agendas positivas em campos econômico-comerciais, poderá atenuar esse tipo de reflexo, mas não impedirá o fortalecimento dos laços políticos entre trumpistas e bolsonaristas, especialmente com a mira posta nas eleições de 2026. É de se esperar, portanto, uma via dupla de relacionamento bilateral nos próximos dois anos.

O terceiro ponto do impacto refere-se à geopolítica mundial e ao relacionamento de Trump com a região. O ponto de intersecção entre ambos deverá dar-se com respeito à Venezuela, em um mix de reedição da Doutrina Monroe e do uso de métodos esperados numa Guerra Fria 2.0. Neste caso, se aplicaria uma receita com três modos de atuação, possivelmente complementares: a coerção, com uma robusta e dolorosa aplicação de sanções econômicas; a transação, que implica um acerto amplo com Rússia sobre a Ucrânia e incluiria uma retirada de mãos (hands-off) da Venezuela; e a intervenção, instrumentalizada pelo Comando Sul e apoiado pela Guiana.

Retomando o início desta reflexão, é de se esperar que a América Latina manterá sua posição de “nada a declarar” diante de cada um desses cenários. Na América do Sul, o primado do pragmatismo e a preservação dos vínculos com a China compram o silêncio.