Estaria a juventude desencantada com as esquerdas? por Pedro Marin

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Ela não tem um passado de avanços sociais para mirar. Votou, pela primeira vez, nas eras Temer e Bolsonaro. Viveu o desmonte do Estado. Se parte dela vira à direita é porque o horizonte tornou-se “vencer por conta própria”. E “arcabouço fiscal” só alimenta a angústia…

Pedro Marin – Revista Opera – 21/10/2024

A esquerda enfrenta um enigma: por que os jovens viram à direita? A questão já ressoava à sombra da popularidade de figuras como Milei, na Argentina, Bukele, em El Salvador, e em alguma medida Trump, nos Estados Unidos. Também já havia aparecido com a ascensão de vultos como o deputado federal Nikolas Ferreira (PL). Mas o terror parece ter se cristalizado, ou ao menos o problema apareceu com mais clareza, com o primeiro turno das eleições municipais de São Paulo, em que Pablo Marçal (PRTB) por pouco não foi para o segundo turno, se consolidando, de qualquer forma, como concorrente a líder da extrema-direita brasileira – e tudo com um apoio amplo entre jovens pobres de São Paulo.

De frente pra esfinge, a esquerda lança suas hipóteses: seriam as redes sociais? O celular? Os efeitos da pandemia? A supremacia do consumismo globalizado? O que é que explica que a juventude, outrora símbolo da rebeldia, esteja se voltando à direita? A esfinge não dá respostas definitivas, nem eu pretendo fazê-lo. Mas convém lembrar de algo primordial: o tempo passa.

Não repito o axioma para fixar outro enigma: é que o Brasil tem, de acordo com o último censo do IBGE, 29,8 milhões de habitantes entre 15 e 24 anos. Tomando o topo da pirâmide – aqueles que têm 24 anos –, haveremos de considerar que estes, quando puderam votar pela primeira vez, aos 16, tinham Michel Temer como presidente, e chegaram à maioridade com a eleição de Bolsonaro. Além destes, há outros 13,6 milhões entre 10 e 14 anos, que em breve passarão a formar suas visões políticas. Todo esse contingente não experimentou os governos petistas. A cena política que muitos deles conheceram na adolescência era recheada de militares; quando começavam a trabalhar ou pensavam em procurar um emprego, batiam-se com o pico da desregulamentação trabalhista e das políticas antissindicais; e quanto às políticas sociais, o que encontravam era um teto de gastos, com seus cortes na saúde, educação, habitação, etc. Em resumo: uma boa parte dos jovens que hoje viram à direita, ao contrário das gerações anteriores, não experimentaram sequer as restritas políticas sociais dos governos petistas, ao menos não “por conta própria”.

Certamente, todas as hipóteses lançadas à esfinge têm também sua parcela de culpa. Mas cada uma das hipóteses revela também, por sua parte, ausências: à liberalidade das redes sociais poderíamos opor a democratização da mídia, se tal coisa houvesse sido feita; à ampla popularização do celular, uma reforma educacional efetiva, uma política séria de estímulo à leitura, ou mesmo uma política de desenvolvimento tecnológico que casasse a inserção digital com a popularização dos computadores pessoais (cujo uso tem efeitos bastante diversos daqueles do celular, via real de acesso da maioria da população brasileira à internet); frente os lamentos quanto aos efeitos da pandemia, poderíamos nos perguntar o que estavam fazendo nossos partidos de esquerda enquanto Bolsonaro aplicava sua política genocida – protestavam contra o presidente ou protestavam contra os que protestavam? –; sobre a profusão do consumismo em escala global, deveríamos questionar o que nossas organizações e governos ofereceram como alternativa de sociabilidade, se houve algum tipo de política de nacionalização da produção desses produtos que tantos desejam, ou mesmo uma política cultural ampla que buscasse disputar tais desejos. Parece, portanto, que na ânsia de buscar respostas para explicar o comportamento da juventude, deixamos de lado os pressupostos mais simples: que esta juventude não viveu o melhor que a centro-esquerda pôde entregar; que o melhor que o petismo pôde entregar esfarelou-se como de um dia para o outro; e que aqueles que lideram a esquerda hoje sequer agem no sentido de entregar algo decisivamente melhor. O mais grave: que mesmo após a eleição de Lula em 2022, o melhor que se entrega é um melhorismo rebaixado; afinal, se comemora a criação de empregos de baixíssima qualidade como se estivéssemos testemunhando um crescimento chinês; o arcabouço fiscal de Haddad só se diferencia essencialmente do teto de Temer por sua maior aplicabilidade; os militares que invadiram a cena política em 2016 têm um ministro para chamar de seu dentro do governo Lula (um ministro que inclusive se orgulho disso); as reformas e as privatizações que avançaram ferozmente a partir de 2016 não foram desfeitas nem enfrentadas pelo atual governo. Se é verdade que os governos petistas até 2016, mesmo com todos seus limites, se diferenciavam das administrações Temer e Bolsonaro, também é verdade que o atual governo, até o momento, não se diferencia tanto destas; e tudo o que o jovem conheceu em primeira mão na política brasileira, mais uma vez, é isso.

O niilismo que afeta o Brasil, e particularmente sua juventude, deve ser tomado por inteiro: na ausência de algo que de antemão organize sua perspectiva de futuro, o homem toma o destino nas mãos, conferindo ele mesmo sentido à própria vida. Os que, como eu, foram jovens ao longo dos governos petistas, viviam, apesar de todos os poréns, uma sensação geral de que os governos organizavam um futuro. A melhoria das condições de vida presentes, somada às políticas de ampliação do ensino básico e superior, faziam crer que era possível ascender por meios habituais, como o estudo e o trabalho; e essa ascensão, mesmo que limitada e desorganizada – abrindo caminho para perspectivas individualistas (a famosa premissa de que milhões melhoraram de vida “por esforço próprio”) –, estava intrinsecamente ligada ao Estado.

A dilapidação do Estado a partir do ajuste fiscal do último governo Dilma e dos governos subsequentes de Temer e Bolsonaro criou uma geração de jovens que não experimentou tal clima: jovens que nasceram e cresceram sob a acertada suposição de que estavam sozinhos, e que seu futuro só poderia ser diferente por meios excepcionais: por uma jogada de sorte, por uma ideia genial ou um esforço descomunal no campo do “empreendedorismo”, etc. Não será tão difícil compreender o porquê este jovem, mesmo que pobre, tão facilmente tenha a percepção de que o Estado e a política só servem para atrapalhá-lo.

Voltando ao niilismo: os mais velhos podem buscar algum sentido no passado; e os mais jovens? Num País em que objetivamente a escassez define as maiorias e a riqueza é o que confere, mais do que a percepção da vitória, a realização dos direitos, o que se pode esperar da juventude? Vários jogam nas roletas, outros voltam-se ao crime, tantos jazem mortos, muitos viram à direita, a maioria sobrevive como pode em meio às opções anteriores, todos sonhando conquistar os direitos inscritos na Constituição pelo único meio que objetivamente é possível: enriquecer. Não há nada de incompreensível nisso tudo: jogam o jogo do mundo que conheceram e conhecem. Um jogo em que os que têm a coragem de ser bandidos têm o justo reconhecimento, e em que as mentiras de coachs ou pastores não são medidas pelo seu valor moral, mas pela sua utilidade prática – embora falsas, são úteis, ao contrário dos resmungos sobre “o que é possível fazer”; aquelas mobilizam as vontades, estes paralisam.

Os “heróis” de um ambiente tão desregulado, sem horizonte de futuro e em que o Estado, em meio às privatizações, cada vez faz menos, e em meio às reformas e ajustes, cada vez faz pior (a saúde e a educação são áreas evidentes) serão quais? Seria Marçal e congêneres tão inexplicáveis assim? Que outro ambiente o governo está oferecendo para que outros “heróis” possam aparecer? É verdade que essa dilapidação do Estado avançou por sobre o petismo: mas é hoje enfrentada de forma decidida por ele?

Parte da juventude vira à direita não por convicção de que lá se encontra uma alternativa; mas por não ver alternativa a não ser esta. O discurso individualista, em que as únicas entidades gregárias viáveis são a família ou a igreja, e no qual é necessário “vencer por contra própria” se populariza porque, no Brasil pós-2016, ele é absolutamente verdadeiro.

Caberia a um governo como o de Lula torná-lo falso. É verdade que em 2023, sob a PEC da Transição, aumentos nos investimentos em educação e programas como o Pé-de-Meia foram sinais, ainda que tímidos, neste sentido, mas a tendência de cortes para a manutenção do “arcabouço fiscal”, já demonstrada neste ano (em abril foram 4 bi cortados; agora, em outubro, já se discute um novo amplo pacote de cortes), tende a tornar o terceiro governo Lula uma reprise do que os jovens já viram. Por que optariam decididamente por ele em 2026?

​​Pedro Marin é fundador e editor-chefe da Revista Opera. É editor de Opinião de Opera Mundi, autor de “Aproximações sucessivas – O Partido Fardado nos governos Bolsonaro e Lula III”, “Golpe é Guerra – Teses para enterrar 2016”, e co-autor de “Carta no Coturno – a volta do Partido Fardado no Brasil”.

 

Nobel de Economia: uma lente para entender os desafios do Brasil, por Deborah Bizarria

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É evidente como nossas instituições com frequência são usadas para atender a grupos específicos

Deborah Bizarria, Economista pela UFPE, estudou economia comportamental na Warwick University (Reino Unido); evangélica e coordenadora de Políticas Públicas do Livres.

Folha de São Paulo, 21/10/2024

A concessão do Prêmio Nobel de Economia de 2024 a Daron Acemoglu, Simon Johnson e James A. Robinson destaca a importância das instituições na prosperidade das nações. Seus trabalhos mostram que instituições inclusivas —que promovem direitos de propriedade, Estado de Direito e oportunidades— são essenciais para o desenvolvimento econômico. Essa premiação nos oferece a oportunidade de refletir sobre os obstáculos que o Brasil enfrenta devido à captura institucional por interesses privados.

O arcabouço teórico dos laureados aborda por que algumas sociedades permanecem presas a instituições extrativas e a dificuldade de transformá-las. Instituições extrativas beneficiam uma pequena elite em detrimento da maioria, limitando o crescimento econômico ao restringir direitos políticos, corroer o Estado de Direito e concentrar recursos e poder. Isso cria uma armadilha que retarda o progresso econômico.

Independentemente das críticas e limitações apontadas por outros estudiosos, uma contribuição significativa dos laureados foi popularizar o debate sobre a qualidade das “regras do jogo” além dos círculos acadêmicos. Seus livros, especialmente “Porque as Nações Fracassam”, conseguiram “furar a bolha” econômica, sendo discutidos tanto por especialistas quanto pelo público em geral. O “Corredor Estreito” e “Poder e Progresso” também têm gerado debates, ainda que em menor grau.

No Brasil, é evidente como nossas instituições com frequência são usadas para atender a grupos específicos. A elite do funcionalismo público utiliza mecanismos legais para garantir salários desconectados da realidade, ultrapassando o teto constitucional. Enquanto a maioria dos servidores recebe remunerações modestas, uma pequena parcela acumula benefícios que distorcem a equidade salarial e drenam recursos que poderiam ser destinados a áreas essenciais.

Essa captura do Estado também se manifesta na alocação de recursos em setores como as indústrias naval e automobilística. Governos sucessivos investem pesadamente em subsídios e desonerações tributárias para essas áreas, sem retorno social proporcional. Essa abordagem privilegia grupos bem conectados ao poder, em vez de fortalecer as instituições que poderiam melhorar o ambiente de negócios e promover um crescimento mais inclusivo.

A preferência por projetos grandiosos, em vez de reformar as estruturas institucionais, reflete a falta de foco nas reformas necessárias para promover eficiência econômica. Enquanto isso, pouco se discute sobre a regulação econômica, a qualidade da gestão educacional e a necessidade de maior segurança jurídica. Essa estratégia perpetua a desigualdade e compromete o potencial de inovação e empreendedorismo do país.

Para reverter esse cenário, é fundamental que a sociedade civil se envolva em reformas institucionais que eliminem privilégios e direcionem recursos públicos para investimentos que realmente beneficiem a população. Fortalecer a democracia, promover a transparência e responsabilizar os tomadores de decisão são passos essenciais. A premiação desses economistas nos leva a repensar nossas prioridades: em vez de investir em setores que favorecem poucos, devemos criar um arcabouço institucional que promova inclusão social e geração de riqueza.

EUA estão se tornando mais parecidos com Brasil, diz Nobel de economia

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Em conversa com a Folha, Simon Johnson diz que Trump é maior desafio já visto às instituições americanas e critica populismo de propostas do republicano

Fernanda Perrin – Folha de São Paulo – 20/10/2024

Washington – “Maravilhoso. Estranho. Exaustivo. É uma semana complexa.”

É assim que se sente um vencedor de um Nobel quatro dias após o anúncio, segundo Simon Johnson.

Folha conversou na sexta-feira (18) com o economista, laureado com o prêmio junto a Daron Acemoglu, seu colega no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) e James A. Robinson, da Universidade de Chicago

Em seu trabalho, o trio investigou o que levou europeus a instalarem diferentes tipos de instituição em suas colônias e como isso contribui para explicar o desenvolvimento dessas sociedades, sua dinâmica econômica e política.

Apesar de Brasil e Estados Unidos terem passado por processos de colonização muito diferentes, resultando em arranjos institucionais mais inclusivos no segundo caso, ambos os países se veem hoje diante de desafios semelhantes. Questionado sobre isso, Johnson responde: “para ser honesto, acho que os EUA se tornaram mais parecidos com o Brasil”.

O sr. poderia começar explicando como Brasil e EUA ilustram sua pesquisa?
Claro. Embora eu deva dizer que não sou um especialista no Brasil e você deve ter muito cuidado com vencedores do Nobel que alegam ser especialistas em tudo [risos].

O ponto geral é que o que os europeus fizeram em diferentes partes do mundo foi determinado, em parte, pelas condições que encontraram para a transmissão de doenças tropicais, particularmente variantes da malária e da febre amarela. Digamos, se você enviasse mil europeus para a África Ocidental em 1800, cerca de 500 deles morreriam no primeiro ano. Se você enviasse mil para os EUA, alguns morreriam, mas menos do que se ficassem na Europa. Se você os enviasse ao Brasil, era um número intermediário. Talvez eu devesse escrever um artigo sobre o Brasil, porque há uma variação [do Norte ao Sul].

Quando havia mais europeus chegando, você tinha que oferecer a eles mais direitos econômicos e políticos. Caso contrário, eles iam para outro lugar. Eles podiam ir para a América do Norte, Austrália, Nova Zelândia. Você estava competindo por essas pessoas. Mas quando as taxas de mortalidade eram tão altas quanto na África Ocidental, você enviava algumas poucas pessoas e elas administravam instituições extrativistas, tráfico de escravos, extraíam ouro e assim por diante. Em casos intermediários, como o Brasil ou grande parte do Caribe, alguns europeus vinham, alguns morriam, alguns ficavam apenas sete anos.

Assim, por um lado, temos instituições extrativistas muito fortes e terríveis. Por outro, temos instituições relativamente boas, inclusivas –para os colonos europeus, não para os povos indígenas.

Como isso afeta o desenvolvimento dos países no longo prazo?

Há muita continuidade e influência duradoura dessas instituições coloniais.
Como se o DNA do lugar, por assim dizer, tivesse sido alterado pelos europeus. Isso não significa que as instituições sejam uma predestinação, que você não possa escapar delas. Você pode, mas é o contexto. E quando você tem uma herança mais extrativista, é mais difícil realmente estabelecer o desenvolvimento econômico porque você continua recaindo nesse padrão onde poucas pessoas têm todo o poder. Eles ficam ricos, compram propriedades em Miami e assim por diante.

Um conceito interessante da pesquisa de vocês é o do problema de compromisso, em que elites adotam instituições mais inclusivas por temor das massas. Mas quando olhamos para a história do Brasil, por exemplo, muitas das mudanças institucionais foram resultado de disputas internas à elite. Quando aparece esse temor das massas, como nos anos 1960, a elite passa o poder aos militares. Ela não abre as instituições, ela as fecha mais.

Sempre há potencial para conflitos dentro da elite. Uma implicação das nossas evidências é que não importa qual parte da elite vença, eles vão administrar o sistema da mesma maneira. Algumas pessoas chamam isso de lei de ferro da oligarquia. Você tem uma oligarquia, alguém a derruba, e eles se tornam uma oligarquia. Pense na Rússia antes de 1917, o czar, Lênin, Stálin… Há uma continuidade ali.

Acho que você está certa em dizer que o conflito interno é um problema, mas a questão do compromisso também é importante. Um problema que se tornou mais relevante, ou do qual estamos mais cientes agora, é o populismo. Em alguns casos na América Latina, os militares foram trazidos para conter as massas ou para liderar um regime mais populista. Existem muitas maneiras de impulsionar uma economia e obter bons resultados por alguns anos, incluindo uma grande dose de populismo. Essa é a história da Argentina ao longo dos últimos cem anos. Mas com o populismo, você começa a minar as instituições democráticas, a culpar a oposição, a reprimir as pessoas e assim por diante.

Mas o que dá origem ao populismo?
A forma clássica de populismo é, na verdade, Donald Trump. Ele está canalizando o descontentamento e a raiva, que são legítimos, mas está culpando os outros: a China, os imigrantes e assim por diante. Ele está aproveitando essa força, dizendo que não perdeu em 2020, que o 6 de Janeiro foi um dia de paz. Isso é exatamente como as democracias se deterioram. Vamos ver o quão forte são os EUA. A ameaça populista se tornou clara na última década. Essa é uma das maiores ameaças ao redor do mundo.

Apesar de Brasil e EUA terem históricos institucionais muito diferentes, vimos recentemente as democracias nos dois países enfrentando desafios semelhantes, com Trump e Jair Bolsonaro. Como explicar isso?
Para ser honesto, acho que os EUA se tornaram mais parecidos com o Brasil. Isso porque nossos resultados econômicos para a classe média têm sido muito decepcionantes ao longo dos últimos 40 anos, por causa da automação, da globalização e do declínio do comércio. Depois, tivemos a grande crise financeira em 2008. Há um sentimento de frustração em muitas partes do país, de que foram deixadas para trás pelas elites.

A maneira de resistir é criando mais bons empregos para mais pessoas. Há um problema profundo de emprego, oportunidade e renda em muitas partes dos EUA, somado a outros fatores.

O que você espera que aconteça com as instituições dos EUA, se Trump for eleito?
Quando escrevemos nosso primeiro artigo, em 1999, interpretamos que, naquele momento, os EUA tinham desenvolvido e construído instituições muito fortes e que não podiam ser derrotadas por acontecimentos. Elas ainda são fortes, mas os EUA estão enfrentando o maior teste de resistência de nossas vidas. O movimento pelos direitos civis nos anos 1950 e 1960 foi um grande teste, particularmente para o sul, mas acho que o desafio nacional agora vindo dos apoiadores de Trump é muito profundo.

Quando publicamos o artigo, ninguém disse que era um artigo partidário. As pessoas de direita gostaram do fato de enfatizarmos os direitos de propriedade e as pessoas de esquerda gostaram do fato de enfatizarmos a voz e a representação política. Mas algumas pessoas nesta semana disseram ‘oh, meu Deus, eles deram o prêmio a esses caras como uma forma de se posicionar politicamente nos EUA’.

O fato de que metade da elite, da liderança política, convenceu as pessoas [de uma mentira sobre fraude em 2020] é uma grande mudança. Isso não era como os EUA funcionavam há 20 anos. E esse é o efeito Donald Trump. Quão duradouro será isso, ainda está para ser visto. Sabe, quando Trump deixar a cena, em que circunstâncias, não temos ideia.

Muitos dizem que os democratas e Kamala também estão se tornando mais populistas. Qual a sua visão?
Eu diria que não. Claro, quando seu oponente diz que vai dar US$ 200 para todo mundo, você sente uma certa pressão para dizer ‘eu também vou dar’.

A responsabilidade fiscal é um pilar muito importante em muitos países, e os EUA perderam isso por causa do papel do dólar e da posição dos EUA na economia mundial e assim por diante, o que não vai durar para sempre. Portanto, há razões para se preocupar.

O que Trump está propondo em termos de tarifas não faz nenhum sentido. Há um artigo mostrando que o impacto sobre as pessoas mais pobres seria grande. Milhares de dólares. Essas são as pessoas que apoiam Trump, mas esse é o tipo de desconexão que você encontra na mentalidade populista.

Acho que há um consenso de que há muita imigração ilegal. Eles precisam mudar o sistema, não podemos absorver tantos. Acho que todos concordam com isso. Mas Trump realmente diz que quer prendê-las e deportá-las. Isso seria um grande choque econômico para o sistema. A maioria dessas pessoas está trabalhando.

Você também estaria criando uma espécie de estado policial como nunca vimos nos EUA, ter que mostrar identidade na rua. Você pode dizer ‘isso não é real, é retórica’, mas é algo muito populista, muito grande. Não é ‘vou te dar um pequeno corte de impostos para isso ou para aquilo’.

Não há dúvida de que Trump está fazendo o máximo para se eleger, deslegitimando princípios de longa data da democracia americana, como a forma como realizamos eleições. Acho que muitos danos já foram causados. Se esses danos vão durar muito tempo, se vamos repará-los e assim por diante, ainda está por ser visto. A política americana é muito fluida, flexível, efervescente, mas Trump danificou as instituições de uma maneira muito semelhante ao que vimos populistas fazerem em muitos outros países, incluindo partes da América Latina, em vários episódios.

RAIO-X – Simon Johnson, 61

Nascido no Reino Unido, é professor de empreendedorismo na MIT Sloan School of Management. Foi economista-chefe do FMI (Fundo Monetário Internacional) em 2007 e 2008. Seu livro mais recente, “Power and Progress”, escrito com Daron Acemoglu, explora a história e a economia das transformações tecnológicas. Anteriormente, foi pesquisador sênior no Instituto Peterson de Economia Internacional e participou de diversos conselhos e comitês ligados à economia e política financeira dos EUA.

 

Um Nobel para o desenvolvimento institucional, por Samuel Pessoa.

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Prêmio sugere que Caio Prado envelheceu melhor que a teoria da dependência

Samuel Pessoa, Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP.

Folha de São Paulo, 20/10/2024

Na segunda-feira (14), a trinca Daron Acemoglu, Simon Johnson e James Robinson, foi agraciada com o Prêmio Nobel de Economia, “pelos seus estudos de como as instituições são formadas e afetam a prosperidade”.

Acemoglu, Johnson e Robinson (muitas vezes referidos pela sigla AJR) têm importantes predecessores. Em 1997, quatro anos antes de a trinca agora premiada publicar seu artigo mais influente sobre instituições e desenvolvimento, uma dupla de historiadores americanos — Stanley Engerman e Kenneth Sokoloff — escreveu um texto que em certos aspectos antecipava o argumento básico de AJR.

A ideia de Engerman e de Sokoloff é a de que, nas colônias tropicais das Américas, a possibilidade de produzir bens com ganhos de escala na agricultura (o que tornava os latifúndios rentáveis) gerou especialização na produção de commodities de exportação com uso de trabalho escravo. Nas regiões temperadas, não havia ganho de escala na produção agrícola (propriedades pequenas eram proporcionalmente tão rentáveis quanto as grandes), o que estimulou a pequena unidade familiar e a absorção de excedentes populacionais europeus.

A dotação inicial de fatores (terra e mão de obra) gerou escolhas tecnológicas e de organização produtiva que consolidaram, nos trópicos, sociedades muito desiguais, tanto na distribuição de renda e riqueza quanto na distribuição do poder político. Isso traria consequências negativas bem depois de terminado o período colonial.

É que o desenvolvimento do capitalismo, em seguida à Revolução Industrial, foi crescentemente demandante de dois recursos. Pouco a pouco, passou-se a valorizar o trabalho qualificado. A escolarização foi adquirindo centralidade para o desenvolvimento econômico.

Adicionalmente, processos produtivos mais complexos demandam muito da capacidade das instituições de garantir o cumprimento de contratos. A eficiência do marco legal e institucional tem importância maior em sociedades complexas.

Ocorreu então uma “reversão de fortunas”: as colônias tropicais, inicialmente mais ricas, pois produziam produtos de luxo para a metrópole, ficaram para trás. Hoje são subdesenvolvidas.

O leitor pode achar essa narrativa bem parecida com a história que o professor do ensino médio de história nos contava, ao tratar da diferença entre colônia de exploração e colônia de povoamento.

A percepção é corretíssima. No Brasil, essa explicação tomou dois caminhos. Na obra de Caio Prado Júnior, temos uma versão que se aproxima muito do neoinstitucionalismo recente, inclusive o de AJR. No pensamento Cepalino, enfatiza-se a especialização na produção de commodities de exportação e a relação comercial com o resto do mundo como uma das causas do subdesenvolvimento.

O Nobel da semana passada sugere que Caio Prado envelheceu melhor do que a teoria da dependência.

Imperdível o artigo de Leonardo Monastério e Philipp Ehrl  “Colônias de povoamento versus colônias de exploração: de Heeren a Acemoglu”, de 2019. Os autores contam a história da evolução desta díade no pensamento desde o alemão Heeren (1817), passando pelo francês Leroy-Beaulieu, (1902), citado por Caio Prado, até AJR.

 

Afinal, quem é responsável pelo aumento de juros? por Ricardo Alban

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Às vezes é preciso dizer o óbvio: taxa mais racional, como em economias emergentes, incentivaria investimentos, reduzindo a pressão inflacionária

Ricardo Alban, Empresário, é presidente da CNI (Confederação Nacional da Indústria).

Folha de São Paulo, 20/10/2024

A recente alta da taxa básica de juros tem provocado discussões entre especialistas econômicos e líderes empresariais. É preocupante que o aumento da capacidade instalada na indústria seja usado como justificativa para a elevação da Selic. Afinal, por que tantas narrativas são criadas para justificar algo que muitos consideram irracional? Qual é o verdadeiro papel do mercado financeiro nesse cenário, e por que ele parece ditar os rumos da política monetária nacional? Até quando?

A pressão sobre a capacidade instalada da indústria brasileira tem origem no histórico de juros astronômicos praticados no Brasil. O alto custo de crédito impede o investimento na expansão das plantas e o aumento da produção, agravando o gargalo da oferta e a inflação. A solução para a equação parece óbvia: uma taxa de juros mais racional, alinhada às praticadas em outras economias emergentes, incentivaria investimentos produtivos, reduzindo a pressão inflacionária, além de criar mais empregos e desenvolvimento. Às vezes é preciso dizer o óbvio.

Economias como a da China, que recentemente adotaram medidas de estímulo ao crescimento industrial, reforçam a tese de que o equilíbrio na política de juros alavanca o desenvolvimento. Nosso cenário atual bloqueia a expansão industrial, justo quando a economia brasileira está se recuperando, com a ajuda do desempenho da indústria. Enquanto presidente do G20, o Brasil só se soma à Índia e à Rússia em política monetária. Enquanto os três subiram juros, os outros 14 integrantes do G20 cortaram a taxa básica.

Atualmente, a Selic está em 10,75%. Já os custos para a indústria podem chegar a taxas entre 25% e 30% ao ano. O impacto nas cadeias produtivas, que são longas, é devastador. O custo financeiro embutido no produto final pode chegar a 25% do preço ao consumidor, situação insustentável para a competitividade da indústria

Outro ponto controverso é a narrativa que orienta a política monetária no país, inclinada a se basear na pesquisa Focus, respondida por 170 empresas e instituições, sendo que apenas oito não são diretamente ligadas ao setor financeiro. Até que ponto as perspectivas da economia real, especialmente da indústria, comércio e serviços, são efetivamente consideradas na formulação das políticas econômicas?

A crítica que emerge é clara: a política de juros no Brasil parece estar moldada em benefício do mercado especulativo, em detrimento da economia produtiva. O setor agropecuário e o sistema financeiro têm vozes fortes —e levadas em consideração— no debate econômico. Nada mais justo que a indústria também tenha suas demandas ouvidas e consideradas.

Se o Brasil quer evitar perder mais oportunidades de crescimento, deve rever o papel dos juros na política econômica. O país precisa de uma política industrial consistente e de visão de longo prazo, onde o incentivo ao investimento produtivo ocupe lugar central. Assim, construiremos um país que privilegia o desenvolvimento e o bem-estar social, em vez de manter o foco no lucro especulativo de curto prazo.

Luiz Carlos Bresser-Pereira – 90 anos, por Leda Maria Paulani

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Leda Maria Paulani – A Terra é Redonda – 19/10/2024 

Discurso na homenagem aos 90 anos do economista, na Fundação Getútio Vargas (FGV-SP)

Inicialmente agradeço o convite Nelson Marconi para proferir algumas palavras sobre o nosso homenageado.

No roteiro que ele preparou para esta cerimônia fui designada para prestar a homenagem ao professor Bresser em nome dos “economistas em geral”.

A primeira observação que faço é sobre a pertinência desta específica homenagem de que fui incumbida. No caso de Luiz Carlos Bresser-Pereira ela não está aqui apenas em função de exigências protocolares. O respeito e a admiração que desfruta o professor atravessa os vários grupos e tribos que, com seus diversos credos e approachs teóricos, constituem a comunidade sempre em guerra dos economistas.

Era preciso, portanto, no caso do Luiz Carlos Bresser-Pereira mais do que em qualquer outro, que alguém falasse em nome dos “economistas em geral”. Mas evidentemente vou falar aqui apenas a partir da minha praia, que é a academia – pois Luiz Carlos Bresser-Pereira, como se sabe, sempre atuou em várias frentes.

A segunda observação é que penso que o Nelson Marconi acertou na escolha do meu nome, não por conta de méritos meus, que não os tenho tantos, mas porque sou a prova viva da notável capacidade de Luiz Carlos Bresser-Pereira de conviver cordialmente e respeitar sinceramente diferentes pontos de vista e posições teóricas. Nós nunca pensamos exatamente do mesmo modo.

Nossas visadas são distintas, objetiva e teoricamente, mas sempre fui tratada por ele não só com a devida consideração, mas também com um interesse genuíno pelo meu trabalho, que ele sempre buscou valorizar, o que muito me honrou e tem me honrado ao longo de todos esses anos de convivência acadêmica.

Luiz Carlos Bresser-Pereira fez parte da minha trajetória acadêmica em momentos muito importantes. Foi membro da banca examinadora na defesa de minha tese de doutorado sobre o conceito de dinheiro em 1992 e, quinze anos mais tarde, participou da banca do concurso em que me tornei titular na FEA-USP. Soube depois, porque essas coisas a gente sempre acaba sabendo, que ele, apesar de todas as nossas diferenças, teve papel decisivo na defesa de meu nome como candidata à única vaga então existente.

Eis, portanto, o primeiro mérito de Luiz Carlos Bresser-Pereira que queria destacar, esse ecumenismo praticante que sempre caracterizou sua conduta no mundo acadêmico.

O segundo mérito que destacaria é sua honestidade intelectual e sua capacidade de reconhecer e valorizar os mais jovens. No primeiro contato que tive com Luiz Carlos Bresser-Pereira, levei um susto. Três semanas depois de lançado o Plano Cruzado, eu, à época estudante da pós-graduação do IPE-USP, publiquei na Folha de S. Paulo um artiguinho onde procurava mostrar as diferentes posições teóricas que estavam por trás daquele experimento heterodoxo.

Fui almoçar poucos dias depois na casa de meus pais e meu pai me disse: ligou aqui em casa um professor atrás de você; primeiro perguntou se tinha aqui alguma Leda Paulani; eu disse que sim, que era minha filha, mas que não morava mais aqui. Ele então disse que era professor, se chamava Luiz Carlos e queria conversar com você sobre o artigo da Folha. Pediu que te dissesse isso.

Fiquei intrigada, matutei, matutei, e não atinei com quem poderia ser. Dois ou três dias depois, nos encontramos no Cebrap – era então estudante da primeira turma do programa de formação de quadros daquela instituição e Luiz Carlos Bresser-Pereira fora lá para um seminário. Vendo meu nome como uma das estudantes do programa ali presente, veio me procurar. Foi só assim que descobri quem era o professor Luiz Carlos e quase caí de costas.

Era eu uma ilustre desconhecida estudante de pós-graduação. E ele, do alto de seu renome, naquele tempo sem internet nem smartphones, tinha se dado ao trabalho de ir à lista telefônica para tentar entrar em contato comigo e podermos conversar sobre o artigo e sobre toda aquela controvérsia teórica que o longo período de alta inflação acabou por gerar no Brasil. Fiquei admirada. Como desde então nunca mais perdemos o contato, fui percebendo que esse era um comportamento usual de Luiz Carlos Bresser-Pereira, mais uma prova de seu espírito aberto, de sua disposição de ouvir e de sua generosidade.

Por fim, não posso deixar de mencionar, e agora saindo da esfera stricto sensu acadêmica, o papel crucial que Luiz Carlos Bresser-Pereira teve nestes politicamente conturbados anos desde o início do segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff. Em todos os momentos decisivos deste triste período, ele foi apoiador, defensor e companheiro de primeira hora daqueles que tinham sido seus adversários políticos anos antes, o que, dada sua estatura moral e intelectual, fez enorme diferença para quem lutava para o leite não derramar. Diria mesmo que foi fundamental para a vitória de Lula em 2022 e o alívio que a vitória trouxe ao derrotar o protofascismo de Jair Bolsonaro – apesar de esse espectro hediondo ainda continuar por aí, fungando em nosso cangote.

Vejam que, para falar um pouco de Luiz Carlos Bresser-Pereira, que o tempo é curto, não precisei fazer referência aos 53 livros, 89 capítulos de livros e 257 artigos em revistas acadêmicas que ele publicou no Brasil e no exterior, onde, diga-se, é igualmente respeitado e admirado. São números frios, que falam de sua capacidade intelectual, mas incapazes de traduzir de modo humano e verdadeiro quem ele de fato é.

Para concluir, afirmo que se tivéssemos 1% dos economistas/ professores/ pesquisadores/ executivos/ homens públicos com a dignidade e a capacidade de Luiz Carlos Bresser-Pereira, o Brasil seria, certamente, um país muito melhor.

Parabéns, professor, pelos seus 90 anos e por tão iluminada trajetória.

*Leda Maria Paulani é professora titular sênior da FEA-USP. Autora, entre outros livros, de Modernidade e discurso econômico (Boitempo).

 

“O pobre de direita”. Entrevista com Jessé Souza

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“O pobre de direita: a vingança dos bastardos. O que explica a adesão dos ressentidos à extrema direita?”. Entrevista com Jessé Souza

 Instituto Humanitas Unisinos – 08/10/2024

O pobre de direita: a vingança dos bastardos (Civilização Brasileira) é o mais novo livro de Jessé Souza, doutor em Sociologia pela Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg (Alemanha), autor de best-sellers como A elite do atraso (Leya) e A ralé brasileira (Civilização Brasileira), e um dos mais importantes sociólogos brasileiros da atualidade.

Nesta entrevista ao Extra Classe, Jessé discute como o ressentimento social, originado na humilhação e na exclusão, tem sido explorado por figuras como Jair Bolsonaro, que manipula as fragilidades de populações vulneráveis.

Independente de ganho econômico ou pauta de costumes, o novo trabalho do sociólogo indica que é o racismo que está na raiz da virada moralista que impulsionou a extrema direita no Brasil.

Para ele, de fato – em conexão a histórias de racismo e desigualdade no Brasil – há sentimentos que perpetuam a dominação por meio da manutenção de estruturas de poder que limitam o desenvolvimento de uma verdadeira democracia social.

Na conversa, Souza aprofunda o conceito de pobre de direita e revela como indivíduos desprivilegiados, tanto brancos quanto negros e mestiços, são seduzidos por discursos que prometem reconhecimento e dignidade, mesmo que isso signifique apoiar políticas que perpetuam sua própria opressão.

A entrevista é de Marcelo Menna Barreto, publicada por Extra Classe, 30-09-2024.

Confira a entrevista.

Você tem dito que o pobre de direita é o fenômeno mais importante do país hoje. Como assim?

Lembra que os pobres votavam em uníssono com o PT até 2016? O que foi que aconteceu para que, agora, metade dos pobres, pelo menos, votem em partidos elitistas e na extrema-direita? Aquela história da barata votando no chinelo, contra seus melhores interesses. As explicações que existem para isso não são boas. Uma diz que essas pessoas são burras, o que não é verdade; os seres humanos são inteligentes. Outra resposta, mais acadêmica, diz que é uma mera filiação religiosa. Como se não tivesse que explicar por que as pessoas procuram e escolhem uma certa orientação religiosa. A causa é muito mais profunda.

Chama a atenção no seu livro O Pobre de Direita o subtítulo: A Vingança dos Bastardos. Imagino que isto tenha relação ao comportamento chave que diversos estudiosos sobre a extrema-direita identificam, o ressentimento. É por aí?

Exatamente, é por aí. Mas esse ressentimento precisa ser explicado. Ressentimento é uma palavra que precisa ser definida; mas, obviamente, tem a ver com o quê? Tem a ver com o sentimento de humilhação que as parcelas mais econômicas das classes populares sofrem, ainda que as classes populares não sejam a mesma coisa. No Brasil, 80% do povo que ganha abaixo de cinco salários – metade ganha entre 2 e 5 salários e a outra metade abaixo de dois salários mínimos -, você teria duas classes. Uma classe que eu chamo provocativamente de ralé, a de oprimidos, de odiados, de abandonados, é 40%. Estão abaixo, ficam de zero a dois salários mínimos. E a que eu já chamei em outro livro de batalhadora, uma espécie de classe trabalhadora precária entre nós. Estes são bastardos de quê? Eles são os bastardos da nação brasileira, do projeto da nação brasileira. Desde Getúlio Vargas se tem a ideia de que isso aqui pode ser um país rico para todos, não apenas para uma pequena minoria, o 0,1% que tem toda a propriedade relevante e explora todo o mundo.

E a, digamos, classe média real?

É comparável a uma classe média europeia ou americana. Não chega nunca aqui, em nenhum lugar, a 20% da população. Esses 80% que estão abaixo de 5 salários, sofrem uma humilhação objetivamente. Não tem dinheiro, nem conhecimento incorporado. Assim, vão ser expostos à vergonha, a obrigações, etc., etc., etc. Ou seja, vão ser bastardos de um projeto de desenvolvimento que foi abortado.

Mas, o conceito não é novo, não? Tim Maia nos anos 1980 já dizia, entre outras coisas, que o Brasil não podia dar certo porque pobre é de direita (risos). Além de um contraponto ao socialista de iPhone, a que você atribui a popularização do termo pobre de direita?

A popularização do termo pobre de direita parece estar diretamente ligada à figura de Jair Bolsonaro. Ele conseguiu transformar vulnerabilidades sociais em algo perigoso. Manipulou as fragilidades do povo contra o próprio povo mesmo. Foi esse cenário que me levou a escrever sobre o tema. Acho que a questão central no Brasil hoje é justamente essa: como alguém, que tem seus direitos e dignidade tolhidos, pode defender formas de opressão que perpetuam sua condição?

No início da nossa conversa você falou de respostas e que há complexidade para a origem desse fenômeno. Qual a sua conclusão?

A resposta mais comum tende a ser racionalista ou simplista, atribuindo a explicação a fatores como a mentalidade conservadora ou religiosa, especialmente entre a população evangélica. No entanto, essa abordagem me parece insuficiente. Para entender de fato esse fenômeno, é preciso conectar os erros do passado ao presente e tentar projetar para o futuro. A compreensão não pode ser fragmentada; ela exige uma visão integrada. O que Bolsonaro fez foi explorar exatamente as vulnerabilidades dessas pessoas. Ele se dirigiu a uma parcela da população que trabalha em condições precárias, seja em empregos de nível técnico ou em ocupações que desumanizam o trabalhador. E essa parcela da população, muitas vezes privada de acesso ao conhecimento – o que explica os ataques de Bolsonaro às universidades, artes e cultura – reage com raiva, mas sem direcionar essa raiva à fonte real de seus problemas.

Parece que também temos aí outros exemplos na história, não?

Essa situação lembra os trabalhadores ingleses do início do século 19, que, sem entender as causas de sua opressão, quebravam as máquinas nas fábricas. Da mesma forma, muitos hoje atacam as expressões culturais e intelectuais, sem perceber que estão lutando contra os efeitos, e não contra a origem de sua marginalização. No fundo, o que essas pessoas buscam é reconhecimento, algo fundamental na modernidade. Esse reconhecimento pode vir tanto do trabalho, que, quando valorizado, traz respeito e autoestima, quanto das relações pessoais e da construção de uma identidade moral. Ao escolher uma denominação religiosa ou adotar valores conservadores, muitos encontram uma forma de se sentirem superiores ou moralmente distintos, o que faz parte do mecanismo de uma sociedade hierarquizada.

Um ponto muito interessante foi a sua ideia em jogar luz sobre a parte majoritariamente branca do país (São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul) e a “majoritariamente negra e mestiça – de São Paulo ‘para cima’ no mapa”. Como se deu a metodologia para a coleta de dados que culminou em sua análise e a produção do livro?

A metodologia que resultou no livro não foi apenas técnica, baseada em dados frios, mas também se formou a partir das minhas vivências e experiências pessoais. Quando me mudei para São Paulo em 2017, isso foi crucial para entender o Brasil de uma forma diferente. Percebi que São Paulo é o centro das decisões do país. As elites paulistas, com toda sua diversidade, concentram um poder que é difícil encontrar paralelo em outro lugar. São Paulo é o coração do Brasil decisório, um espaço onde florescem todas as influências, e essa realidade me permitiu enxergar as dinâmicas regionais de forma mais profunda. Ao mesmo tempo, por meio de viagens ao Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, fui conhecendo melhor a história e o orgulho dos descendentes de imigrantes europeus. Há, nessas regiões, uma continuidade histórica muito clara, um orgulho de sangue que, em muitos casos, impede que esses grupos se vejam como parte integral do povo brasileiro. Existe uma distinção simbólica e social que é mantida até hoje, especialmente em relação aos nordestinos. E essa visão se expressa em preconceitos que ecoam ideias absurdas, como a de que nordestinos “vivem de graça”, quando, na realidade, são trabalhadores incansáveis.

O que está por trás disso?

A grande questão por trás dessa dinâmica é que o comportamento humano, em sua essência, não é ditado exclusivamente por fatores econômicos. Ao contrário do que muitos afirmam, nunca foi apenas sobre economia. A economia é, na verdade, uma construção moral. Toda estrutura de produção e distribuição de bens carrega consigo uma teoria implícita de justiça e moralidade, definindo quem fica com a melhor ou a pior parte. Assim, o racismo no Brasil não pode ser explicado apenas pela dimensão econômica, mas sim pela forma como a moralidade e as hierarquias sociais foram moldadas ao longo da história.

O racismo sempre presente, então?

Sim. E é justamente aí que entra o racismo. A ideia de um Brasil cordial, onde não se fala abertamente sobre racismo, é enganosa. O racismo continua existindo, mas agora sob máscaras, disfarçado em preconceitos regionais e culturais. O racismo racial foi transformado em racismo cordial, o que faz com que as pessoas não se identifiquem mais como racistas, mas reproduzam comportamentos e narrativas que perpetuam as mesmas desigualdades.

Racismo racial?

Sim. Porque, agora, temos o racismo regional. Esse racismo se manifesta de forma particularmente evidente no preconceito contra os nordestinos. É uma continuidade do racismo racial, apenas sob diferentes formas. Os descendentes de imigrantes no Sul do Brasil, por exemplo, muitas vezes se orgulham de sua disciplina, de seu “amor ao trabalho”, como se isso fosse uma característica exclusiva e superior. É, em essência, uma forma de racismo. E isso afeta as mesmas pessoas que o racismo racial atinge. O ponto crucial é que o racismo regional não é algo menor, como pode parecer à primeira vista.

Explique.

Ele é uma variação do mesmo racismo estrutural que molda as relações de poder no Brasil. E é nesse contexto que o fenômeno do pobre de direita pode ser melhor compreendido. Uma grande parte da população branca pobre do Sul e de São Paulo, que corresponde a cerca de 60% dessas regiões, compartilha dessa visão pobre de direita, enquanto os 20% que são ricos acabam por não contar tanto na dinâmica social. Esse racismo, sob suas diversas formas, é fundamental para entender como essas pessoas classificam e avaliam o mundo, e ele está no cerne das divisões sociais e políticas do país.

Fora o ressentimento, o que você identificou como similar entre esses pobres de direita brancos e negros ou mestiços?

A semelhança entre os pobres de direita, sejam eles brancos, negros ou mestiços, está profundamente relacionada com uma necessidade essencial de reconhecimento, algo que a literatura neohegeliana explora bastante. A necessidade de ser reconhecido é uma das mais prementes, especialmente para aqueles que vivem à margem. Nós, da classe média, não experimentamos esse tipo de humilhação constante. Para entendê-los, é preciso se colocar no lugar deles, e isso significa compreender o sofrimento diário que essas pessoas enfrentam. A humilhação, para essas pessoas, não é algo pontual – é uma constante, algo que molda sua vida 24 horas por dia. É como se até nos sonhos a humilhação continuasse, porque o material dos sonhos é o que vivemos durante o dia. Imagine alguém que precisa passar três horas em um ônibus para chegar em casa. Isso é um exemplo claro de uma experiência diária de humilhação. Essas pessoas estão imersas nesse ciclo de desvalorização e dor.

E o que alguém que vive assim deseja?

Escapar. Nem que seja por um momento, dessa condenação. Aí entra o papel de um líder ou de uma ideologia que oferece uma saída simbólica. Alguém chega e diz: “Você é melhor porque é hétero, porque não é gay.” Isso, de repente, se transforma em uma boia de salvação. Por um instante, aquela pessoa que se sente constantemente humilhada encontra algo que a faz se sentir digna, respeitada. Isso é o que chamo de manipulação das vulnerabilidades do pobre. Quando você explora essa necessidade de reconhecimento, você está oferecendo uma fuga temporária da humilhação. A extrema-direita entendeu isso há muito tempo e usa esse conhecimento para captar essas pessoas, jogando com seus anseios e frustrações de maneira calculada.

O que diferencia os pobres de direita brancos, negros e mestiços?

O que diferencia é que a situação do negro é muito pior. A diferença está no nível de exclusão que cada um enfrenta. No caso do negro, a situação é significativamente pior. Para entender isso, é preciso lembrar que a hierarquia social que discutimos coloca as pessoas em diferentes níveis de reconhecimento, especialmente no trabalho. Algumas, geralmente da classe média ou da parte superior da classe trabalhadora, conseguem um certo reconhecimento, uma sensação de que seu trabalho é valorizado, que têm um papel na sociedade. No entanto, há aqueles que ficam para trás – seja por razões de classe, de família, ou ambos.

Por exemplo?

O branco pobre, por exemplo, pode perceber sua exclusão como uma diminuição de seu valor. Ele vê outros brancos que têm acesso à educação, aos cargos mais altos e ao capital, e essa comparação o fere, porque ele acredita que, como branco, ele deveria estar num patamar melhor. Seu ressentimento nasce dessa crença: ele se vê como alguém que deveria ocupar um lugar de destaque, mas não consegue. Agora, o caso do negro é muito mais grave. A luta dele não é apenas por melhores oportunidades econômicas ou sociais; é uma luta para ser reconhecido como humano, algo básico. O negro enfrenta uma negação constante de sua própria humanidade, de seu direito de existir no mundo. Ele precisa lutar, diariamente, para afirmar que tem o direito à vida, algo que o branco pobre já presume ter. A base do ressentimento do branco pobre é a perda de um status que ele acredita que deveria ter, enquanto o negro nem sequer é considerado parte da estrutura de poder e reconhecimento desde o início.

Em outras palavras?

O branco pobre se sente deslocado de um lugar que acha que deveria ocupar, enquanto o negro luta para ser minimamente reconhecido como parte da sociedade. Esse é o nível mais profundo da exclusão racial no Brasil: o branco pobre ainda tem um lugar presumido no mundo, mesmo que inferior ao de outros brancos. Já o negro é constantemente negado, em múltiplas esferas, de seu direito de existir com dignidade.

Você afirma “Nunca foi a economia, tolinho!”, em contraste com a famosa frase “É a economia, estúpido!”. Como dizer isso, considerando que governos caíram por causa de mau desempenho econômico (Collor e Dilma), ao mesmo tempo que Lula, mesmo com a questão do Mensalão, conseguiu se reeleger e terminar seu segundo mandato com altíssima popularidade?

Isso é uma questão filosófica fundamental. Eu entendo a economia como economia política. Quando você pensa em economia política, já está envolvendo moralidade. A forma como se distribui e produz bens tem uma dimensão moral que geralmente não é visível. O que as pessoas enxergam é a economia como um conjunto de números e fatos isolados, mas isso não é a verdade completa. Por exemplo, a Dilma começou a ser atacada em 2012, quando a economia ainda estava indo bem, porque ela tentou cortar pela metade a taxa de juros e vinha reduzindo a taxa há anos. Isso não é sobre economia pura, é política. E política sempre está ligada à moralidade, questões éticas, sociais. Então, quando digo “nunca foi a economia”, é porque a economia em si, como algo neutro e imutável, não existe. Isso é uma ilusão criada para manter o sistema de dominação, para parecer que há uma ordem econômica natural que não pode ser questionada. A economia é política, e é por isso que tentar formalizá-la em equações e números não dá conta da realidade.

Você diz no livro que este extrato da população que hoje é identificada como pobres de direita já elegeu quatro vezes seguidas um partido de esquerda para presidir o Brasil. Três vezes, sob a pecha do Mensalão. Você identifica a Operação Lava Jato como um dos pontos de inflexão?

Sim. A Lava Jato foi o golpe que conseguiram consolidar. Tentaram antes, com o Mensalão, e não conseguiram. Naquela época, faltava organização, mas depois, os americanos decidiram treinar o pessoal. Surgiu em um pretexto de estudar e combater lavagem de dinheiro, mas, na verdade, era uma forma de capacitar agentes no Estado para enfraquecer governos de esquerda, que os Estados Unidos não queriam ver prosperar. Os Estados Unidos nunca toleraram projetos de democracia soberana na América Latina. Aí entra a aliança entre a elite norte-americana e a elite brasileira, que também tinha seus interesses. O governo estava começando a redistribuir uma parte mínima da renda e do orçamento público, o que, para essas elites, já era intolerável. A Lava Jato começou a ser gestada em 2007 e culminou em 2014, com a dobradinha entre o juiz Moro e o procurador Dallagnol. Ambos foram endeusados pela mídia, especialmente pela Rede Globo.

Não foi pela corrupção, foi pela política?

Como não conseguiram no voto, a Lava Jato foi o caminho encontrado para remover o PT do poder. Por meios extraeleitorais, usando o sistema jurídico como arma política. No Brasil, a Lava Jato teve o objetivo de desmantelar o projeto de desenvolvimento iniciado por Getúlio Vargas e retomado por Lula, a construção de uma indústria nacional, baseada em petróleo, gás e infraestrutura. Refinarias foram abandonadas, passamos a exportar o petróleo cru e depender dos produtos refinados de fora. A Lava Jato foi o mensageiro desse pacto entre a elite nacional anti-industrial e os interesses americanos, que não queriam ver o Brasil se industrializar. E, quando o objetivo foi cumprido, a operação praticamente se extinguiu.

Fale sobre esta elite brasileira anti-industrial.

A elite brasileira é anti-industrial no sentido de que nunca foi realmente empreendedora. Nunca foi elite. A questão dessa gente sempre foi roubar o Estado. É subsídios para quem não precisa; é o rentismo. Em vez de promover investimentos que impulsionem a economia, o foco é “mamar” o orçamento público. Mais da metade dos recursos do governo vai para uma pequena elite que detém os títulos da dívida pública, uma dívida que, na verdade, é obscura e nunca foi aplicada em benefícios concretos para o país.

Uma dívida, aliás, que todo mundo paga.

O grande problema é que a população paga por algo que nem entende. É uma dívida que, em boa parte, pode ser fraude. O Equador, por exemplo, fez uma auditoria e descobriu que 70% da sua dívida era fraudulenta. Quem estuda a dívida pública brasileira sugere que essa fraude pode chegar a 90% aqui. É uma estrutura de saque montada pela elite que tem o controle do Banco Central, o apoio de figuras políticas como o presidente da Câmara, Arthur Lira, e a imprensa sob seu domínio. Ou seja, ou eles são donos dos veículos de mídia, ou são seus maiores anunciantes. Assim, controlam o discurso que chega à maioria da população. Com o Banco Central nas mãos, com políticos e a mídia no bolso, a elite faz o que quer, manipulando a economia de acordo com seus próprios interesses.

Você vê formas de sair desta armadilha que acabou criando o pobre de direita?

Essa questão é a de um bilhão de dólares. Para sair dessa armadilha, é preciso criar uma contra-hegemonia, como diria o velho Gramsci. Ele percebeu que o poder não é apenas material, mas fundamentalmente ideológico. São as ideias que moldam o comportamento e tornam certas realidades aceitáveis. Nesse sentido, a mudança não vem apenas por confrontar a estrutura material, mas por disputar a narrativa, o controle das ideias. Hoje, o problema é que não há um esforço coordenado para apresentar uma visão alternativa da sociedade. As publicações, os meios de comunicação, são tratados como se não fossem tão importantes. Falta uma estratégia clara para fazer com que essas ideias alternativas cheguem às pessoas. Pode ser por rádios comunitárias, iniciativas locais, qualquer meio que agregue. O grande drama é que parece que as pessoas nem percebem a urgência disso.

Qual a dimensão desse drama?

Quando as ideias dominantes se tornam naturalizadas, quase não há questionamento. A religião fundamentalista, por exemplo, entra nesse jogo e, podendo até se diferenciar de figuras como Bolsonaro, no fundo, continua apoiando interesses de privatização, juros altos e políticas que beneficiam uma minoria. E quem vai desmascarar essa realidade para as pessoas? Quando o mundo é falseado e essa falsa realidade se impõe como a única possível, as barreiras ficam quase que intransponíveis.

 

Como os Brics podem desafiar o dólar, por Paulo Nogueira Batista Junior

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Sistema monetário comandado pelos EUA tornou-se obsoleto e disfuncional; além de injusto, é claro. Mas substituí-lo exige determinação e criatividade políticas. Quais os obstáculos. Como superá-los. Por que a transição é imprescindível

Paulo Nogueira Batista Junior – 18/10/2024 – OUTRAS PALAVRAS –

Os BRICS vêm discutindo há algum tempo a possibilidade de construir arranjos alternativos ao dólar norte-americano e ao sistema de pagamentos ocidentais. A atual ordem – mais correto seria dizer desordem – monetária e financeira internacional, dominada pelos Estados Unidos e seus aliados, se mostra crescentemente disfuncional e insegura. O sistema foi transformado em arma geopolítica para aplicação de sanções, punições e confiscos.

Nas últimas semanas, estive em Moscou e participei de três debates sobre essa temática, em eventos precursores da cúpula dos líderes dos BRICS, que ocorrerá em Kazan, na Rússia, de 22 a 24 de outubro. Tento fazer aqui um resumo das conclusões a que cheguei.

O desafio para os BRICS é, antes de tudo, político. Os americanos sempre foram apegados ao que De Gaulle, nos anos 1960, chamava de “privilégio exorbitante” dos Estados Unidos – entendido, em resumo, como a capacidade de pagar suas contas e dívidas simplesmente emitindo moeda. Os EUA não hesitam em acionar os aliados e clientes que possuem em outros países para minar iniciativas desse tipo.

China, Rússia e Irã não são provavelmente muito vulneráveis a esse tipo de pressão. Mas o mesmo não pode ser dito de outros países dos BRICS. Até Beijing pode hesitar em comprar essa briga com Washington.

O desafio também é técnico. Construir um sistema monetário e financeiro alternativo requer trabalho árduo e especializado, bem como negociações prolongadas e difíceis. Somos capazes de realizar isso? Acredito que sim. Mas será que fizemos progresso desde que o assunto ganhou as manchetes? Algum progresso foi feito, mas menos do que se poderia esperar.

Sob a presidência russa dos BRICS, em 2024, houve tentativas parcialmente bem-sucedidas de avançar. Por exemplo, foi criado um grupo de especialistas independentes, do qual faço parte, que discutiu a reforma do sistema monetário internacional e a possibilidade de uma moeda dos BRICS. O conhecido economista americano Jeffrey Sachs é parte desse grupo. Mais importante do que isso: a Rússia preparou uma proposta detalhada para um sistema alternativo de pagamentos transfronteiriços baseado em moedas nacionais – um passo importante na direção de um novo arranjo monetário e financeiro internacional.

Até agora, no entanto, poucos avanços foram feitos no que diz respeito à questão mais fundamental, que seria criação de uma nova moeda como alternativa ao dólar. E mesmo a discussão da proposta russa de um novo sistema de pagamentos ainda é incipiente. O Brasil exercerá a próxima presidência dos BRICS em 2025 e terá a oportunidade de coordenar a discussão, aprofundar a proposta da Rússia e preparar novos passos.

 Limites às transações em moedas nacionais e sistemas de pagamento alternativos

O sistema de pagamentos SWIFT, controlado pelos EUA e aliados, é usado sistematicamente como instrumento para punir e ameaçar países e entidades vistas como hostis ou pouco amigáveis. Bancos desses países são sumariamente excluídos do sistema, como aconteceu com a Rússia. Mesmo outros países podem sofrer sanções secundárias, quando procuram transacionar com países ou entidades sancionadas. Por isso, o progresso feito durante a presidência russa na elaboração de alternativas ao SWIFT é, sem dúvida, uma iniciativa muito bem-vinda, que avança na direção de nos livrar da dependência excessiva das moedas e dos sistemas de pagamento ocidentais. Também vêm avançando as transações bilaterais em moedas nacionais entre os BRICS e entre os BRICS e outros países. Crescem, além disso, os swaps bilaterais em moedas nacionais entre bancos centrais, primordialmente com o banco central da China.

Contudo, deve-se reconhecer que transações em moedas nacionais e as alternativas ao SWIFT têm suas limitações. A questão essencial, nem sempre bem compreendida, é que a existência de uma moeda de reserva alternativa constitui, em última análise, uma pré-condição para que a desdolarização funcione plenamente. A razão reside no fato de que apenas acidentalmente haverá um equilíbrio nas transações bilaterais em moedas nacionais. Uma moeda de reserva internacional alternativa é necessária para permitir que os países registrem superávits e déficits ao longo do tempo. Na ausência disso, os países têm que recorrer a esquemas custosos equivalentes a escambo – ou então voltar ao dólar americano e outras moedas tradicionais, o que derrotaria todo o propósito do exercício.

Um exemplo. A Rússia tem um superávit substancial com a Índia. O comércio e outras transações são realizados principalmente em moeda nacional. Portanto, a Rússia vem acumulando grandes estoques de rúpias. O banco central russo pode não querer manter essa moeda permanentemente em suas reservas, talvez porque a rúpia não seja totalmente conversível e haja dúvidas sobre sua estabilidade. Quais são as suas opções? A Rússia pode tentar dispor desses excedentes em rúpias buscando oportunidades de investimento na Índia ou fazendo um esforço adicional para comprar bens e serviços indianos. Mas isso pode ser difícil e demorado. Ela também pode usar essas rúpias em terceiros países que tenham interesse em obter moeda indiana devido a proximidade econômica com a Índia. Mas isso também pode ser difícil, levando a vendas de rúpias com desconto. Essas alternativas são claramente second-best ou third-best e remetem ao sistema antiquado de escambo, no qual os agentes econômicos trocavam bens e serviços bilateralmente e saíam à cata de terceiros para se desfazer de mercadorias indesejadas e obter em troca mercadorias desejadas. Foi precisamente para evitar esse sistema ineficiente que o dinheiro foi criado para servir como meio de pagamento, padrão comum de valor e instrumento para manutenção de reservas. Pelas mesmas razões, os BRICS precisam de uma nova moeda de reserva como alternativa ao dólar dos EUA e outras moedas tradicionais de reserva.

Uma nova moeda de reserva – a NMR

Como poderia ser essa nova moeda? Existem várias possibilidades. Vou tentar apresentar, de maneira sintética, um caminho que me parece promissor. Para uma explicação um pouco mais completa, remeto ao trabalho que preparei para um dos eventos em Moscou (“BRICS: Geopolitics and monetary iniciatives in a multipolar world – how could a new internacional reserve corrency look like? 23 de setembro de 2024 (https://www.nogueirabatista.com.br/).

Vamos chamar essa nova moeda de NMR, sigla para “nova moeda de reserva”. Um nome anterior interessante era R5, proposto por economistas russos quando eram cinco os países membros dos BRICS e todas as suas moedas começavam com a letra R. No entanto, esse nome ficou prejudicado, pois alguns dos quatro novos membros possuem moedas cujos nomes não começam com a letra R. Não é algo tão importante, claro. Poderíamos chamá-la então de moeda BRICS ou BRICS+? Infelizmente, não. E esse ponto é importante: alguns dos países dos BRICS parecem se opor à ideia, sendo a Índia um exemplo notável. Isso representa uma grande barreira, mas pode ser contornada, como veremos mais adiante.

A NMR poderia ter as seguintes características. Não seria uma moeda única, que substituiria as moedas nacionais dos países participantes. Não seria, portanto, uma moeda semelhante ao euro, emitida por um banco central comum. Seria uma moeda paralela, projetada para transações internacionais. As moedas nacionais e os bancos centrais continuariam a existir em seus formatos atuais. Não haveria perda de soberania e nem mesmo necessidade de coordenar as políticas monetárias.

A NMR não teria existência física na forma de papel-moeda ou moeda metálica. Seria uma moeda digital, análoga às MDBCs (moedas digitais de bancos centrais – CDBCs em inglês) que estão sendo criadas em vários países.

Vale notar, de passagem, que o formato digital substitui em grande parte o papel tradicional dos bancos como intermediários e criadores de meios de pagamento. As MDBCs e a NMR reduziriam o papel dos bancos, desde que não se estabeleça que seu uso ficaria vinculado à posse de uma conta bancária.

Os países participantes poderiam constituir um banco emissor – vamos chamá-lo de NAMR, a Nova Autoridade Monetária de Reserva – que seria responsável por criar NMRs e também por emitir títulos – podemos chamá-los de NTRs, novos títulos de reserva – nos quais a nova moeda seria livremente conversível. Os NTRs seriam por sua vez integralmente garantidos pelos Tesouros nacionais dos participantes.

Um primeiro passo na direção da NMR poderia ser a criação de uma unidade de conta na forma de uma cesta de moedas em que o peso das moedas dos países participantes corresponderia à sua participação no PIB do grupo. O renminbi da China teria o maior peso na cesta, digamos 40%; Brasil, Rússia e Índia, 10% cada; e os 30% restantes poderiam ser divididos entre a África do Sul, Egito, Etiópia, Irã e Emirados Árabes Unidos – admitindo-se que todos os BRICS venham a participar. Essa nova unidade de conta seria uma ponte para a nova moeda.

Bem, esse passo relativamente simples, aventado há muitos anos por economistas russos, já poderia ter sido dado. A razão para o lento progresso parece ser a falta de consenso. Há relatos de que a Índia e a África do Sul, presumivelmente por razões políticas, são contra a ideia. A Índia – e isso é apenas uma conjectura – pode não querer desagradar aos EUA em uma questão tão crucial. Talvez porque sinta que pode precisar do apoio americano caso haja uma deterioração nas já tensas relações com a China. O Brasil, ressalto de passagem, também não é invulnerável a dificuldades análogas. Na sociedade brasileira, inclusive dentro do governo Lula, há muitos que se identificam com os EUA e têm laços com círculos empresariais e governamentais americanos.

Espero que essas vulnerabilidades e as tensões entre China e Índia sejam superadas. Enquanto isso, cabe perguntar se não poderíamos avançar com base em uma coalizão de países aptos e dispostos. A NMR poderia perfeitamente ser criada por um subconjunto dos BRICS. Os outros se juntariam mais tarde. Isso é recomendável, na minha opinião, mas esbarra na arraigada tradição de consenso dos BRICS, que marca a atuação do grupo desde o seu início em 2008. No entanto, se nos apegarmos a essa tradição, o meu receio é que não se chegue a lugar algum.

A alternativa a algo como a NMR seria a substituição gradual do dólar americano pelo renminbi chinês, a moeda da potência emergente. Isso já está acontecendo, em certa medida. Mas parece duvidoso que se possa avançar muito por essa via. Não se deve perder de vista que a potência emergente é um país de renda média. Tem vulnerabilidades e preocupações não necessariamente presentes nos EUA e em outras nações de alta renda.

O que quero dizer é que, no caso da China, o “privilégio exorbitante” poderia se tornar um “fardo exorbitante”. Em outras palavras, ela teria provavelmente dificuldade de atender certos pré-requisitos para que o renminbi possa se estabelecer como moeda internacional em grande escala. A China estaria disposta, por exemplo, a tornar o renminbi plenamente conversível? Consideraria abandonar as restrições à conta de capital e os controles cambiais que protegem a economia chinesa da instabilidade das finanças internacionais? Aceitaria a apreciação cambial decorrente do aumento da demanda por renminbi como ativo internacional? Essa apreciação não prejudicaria a competitividade internacional e o dinamismo da economia chinesa? É claro que a tendência à apreciação poderia ser contida pela venda de renminbi e acumulação de reservas internacionais adicionais. Mas onde a China aplicaria essas reservas adicionais? Em ativos denominados em dólar, euro ou iene? De volta à estaca zero.

Portanto, os BRICS. ou um subconjunto de países dos BRICS, devem se preparar para criar uma nova moeda de reserva, que poderia ser um divisor de águas nos assuntos monetários e financeiros globais. Paralelamente, deveriam continuar com a expansão das transações internacionais em moedas nacionais e iniciar a construção de um sistema de pagamento alternativo ao SWIFT.

Os BRICS causarão decepção em todo o Sul Global se permanecerem no reino dos discursos, comunicados e proclamações sem avançar em iniciativas práticas inovadoras.

Paulo Nogueira Batista Júnior, Economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora Leya, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata.

 

Marx e a financeirização, por Renildo Souza.

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Renildo Souza – A Terra é Redonda – 27/08/2024

A ancestralidade teórica marxiana da finança

Introdução

Nas três últimas décadas, o tema da financeirização tem sido abordado insistentemente, sobretudo por autores marxistas.  Mas quais são algumas pistas da financeirização da lavra do próprio Marx? O objetivo deste artigo é escavar a ancestralidade teórica marxiana da finança. A análise se restringirá à Seção V do livro III d’O capital. Marx, no caso desse livro, explica o nível concreto da distribuição da mais-valia, nos marcos da enormidade e variedade de fenômenos e contingências da vida social em seu conjunto no capitalismo.

Problemas diversos como a crise de 2008, as políticas de austeridade fiscal, as ameaças neofascistas, as catástrofes ambientais e a espoliação social, bem como a reestruturação tecnológica e produtiva das cadeias de valor, intensificaram o debate sobre a financeirização. As finanças tornaram-se onipresentes na contemporaneidade. Essa constatação, com ares de consenso entre marxistas, é, porém, desafiada pelas dificuldades teóricas em se apreender a natureza e o alcance do fenômeno.

Como explicar a financeirização, como superar seus desafios de sua interpretação? A financeirização é mero aumento, mudança quantitativa nos ativos financeiros, mais do mesmo, sobretudo por conta dos volumes exponenciais do capital fictício atualmente? A mencionada onipresença e o seu próprio processo de transformações aceleradas dificultam a consolidação interpretativa sobre a financeirização.

A partir da tautologia de que tudo faz parte de tudo e tudo importa, corre-se o risco de se embaralhar a compreensão de fenômenos distintos. A aproximação de alguns traços estruturais comuns entre diferentes objetos do capitalismo contemporâneo tende a confundir, de certa forma, o caráter da financeirização, uma lógica transformada de acumulação de capital, com o neoliberalismo, uma doutrina política e ideológica. Nesse mesmo sentido, as abordagens conceituais sobre a digitalização da economia, uma transformação tecnológica contemporânea central, podem também dificultar a identificação da qualidade própria das finanças hoje.

Do muito que Marx elaborou, o traço mais distintivo é a acumulação de mais-valor. Lênin disse que o principal traço distintivo da fase imperialista do capitalismo, desde o fim do século XIX, eram os monopólios. E agora, sem prejuízo da centralidade do pensamento de Marx e de Lênin, o que dizer? Na arena das interpretações gerais, mais globais, não faltam exemplares na praça. A qualificação de capitalismo neoliberal é centrada na crítica à desregulação institucional e desestatização, na denúncia da voracidade do mercado. A noção de capitalismo especulativo parasitário reflete aspectos cruciais e verdadeiros, mas especulação e parasitismo são as entranhas da lógica e da vida do capital. A proposição do tecnofeudalismo parece ser uma fetichização dos monopólios tecnológicos.

Centralidade financeira

Em outro âmbito, a abordagem do tema do capital financeiro é também sobrecarregada de problemas, cuja fonte é a economia vulgar, como protestava Marx. A finança é embrulhada nas mais variadas visões e justificativas. É um campo minado de interesses do capital. Tem impacto apologético avassalador propagado pelos meios de comunicação de massas. A má-fé dos banqueiros, como dizia Marx, é uma cavalaria de assalto permanente sobre as mentes e os corações da população, através da mídia e dos governos.

A época atual, marcada pela centralidade financeira, enseja estímulos adicionais para a confusão e a falsidade das ideias acerca do dinheiro e do capital. Diante da maré montante de mistificação neoliberal, torna-se necessário aguçar a crítica e repisar a compreensão da economia monetária do capitalismo. Voltar ao básico, o qual, em vez de negado, está sendo reafirmado, sob transformações, pelo capitalismo financeirizado. E voltar à história. Neste sentido, Marx tem algo de fundamental a nos dizer neste século XXI.

As explicações de Marx sobre o capital portador de juros e o capital fictício estão concentradas na mencionada seção V. Cabe ressalvar, desde logo, que há uma inestimável contribuição de Friedrich Engels, responsável pela edição do livro III (também do livro II), 11 anos depois da morte de Marx, o qual tinha deixado esboços, como se sabe.

Engels lamentou: “A dificuldade principal se deu na seção V, que também trata do assunto mais intricado de todo o livro. (…) Não temos aqui, portanto, uma primeira versão acabada nem sequer um esquema cujos contornos se pudessem completar, mas apenas um começo de elaboração que, em mais de uma oportunidade, desemboca num amontoado caótico de notas, observações e materiais em forma de extratos”. Após três tentativas fracassadas de preencher lacunas e desenvolver fragmentos apenas indicados, Engels decidiu apenas “ordenar o máximo possível o material existente e fazer os acréscimos mais imprescindíveis”.

Apesar de todos os percalços, a mencionada seção V, com seus 16 capítulos, fornece o ponto de partida e algumas pistas tanto teóricas quanto metodológicas para a abordagem do capitalismo financeirizado dos nossos dias. Marx expõe e critica as falsas teorias monetárias, recorrendo às disputas entre os autores (muitos deles, banqueiros) do currency principle (escola das contrapartidas metálicas) quanto do banking principle (escola bancária). A elaboração de Marx, desde a Inglaterra, baseia-se tanto nos fatos econômicos, nas fases do ciclo industrial e nas crises, quanto na crítica ao discurso de banqueiros e economistas em depoimentos nas Comissões de Inquérito do Parlamento.

Na citada seção V, Marx discute as relações e a unidade entre as esferas da circulação e da produção. Esclarece os aspectos imanentes e os externos do processo de valorização no capitalismo. Faz, em referência às partes e ao todo, as distinções entre transações individuais e isoladas e as situações globais, coletivas, inclusive para os ganhos e perdas de valor. Esclarece a importância e as implicações das distintas formas de valor. Demonstra a evolução, as contradições e as tendências do sistema de crédito. Insiste sempre na análise centrada nas circunstâncias históricas, identificando etapas e fases.

Explica, considerando a aparência e a essência da realidade, o fetichismo do dinheiro e a natureza capitalista do modo de produção. Expõe, pela interação e desdobramento dos fenômenos, como o capital portador de juros impulsiona tanto a acumulação quanto a especulação e as crises. Elabora, dialeticamente, o conceito do capital fictício como ilusão e existência. Reafirma, com toda força, sem tergiversar: apenas o trabalho vivo cria valor e mais-valor.

A financeirização tornou a relação capitalista ainda mais exterior e mais fetichista, além do que Marx já se assombrava com a forma capital portador de juros. Em vez de relação social, o capital aparece ainda mais despudoramente como simples coisa. O conceito de capital fictício, especialmente, alcançou relevância extrema nas condições em que se configura o capital desde as duas últimas décadas do século XX.

Capital portador de juros

Se o dinheiro é convertido em capital portador de juros, ele passa a ser uma mercadoria especial, que é emprestada, em vez de vendida por um valor equivalente, ao capitalista em função. Essa mercadoria sui generis tem o valor de uso de permitir, como capital, a geração de lucro decorrente da mais-valia. Com o capital portador de juros, a forma dinheiro corresponde ao conteúdo de capital. Ele teve que ser desembolsado como capital em funcionamento na compra de meios de produção ou de mercadoria, respectivamente pelo capital industrial ou comercial. Pelas mãos do prestamista, não há metamorfose de mercadoria nem reprodução do capital.

Esses processos dependem do prestatário do capital portador de juros, ou seja, o capitalista em atividade comercial, em um caso, ou industrial, em outro. Quando passa a ser capital realizado, o dinheiro já rendeu mais-valor ao seu proprietário, porque houve apropriação de uma parte do lucro, a qual é batizada com o nome de juros. Contudo, Marx adverte de que o empréstimo pode “servir também para transações sem qualquer relação com o processo capitalista de reprodução”. É no sentido desta advertência que o capitalismo financeirizado do século XXI exacerbou a autonomia da finança em relação à reprodução do capital.

A forma externa e apartada do refluxo do capital, em face do processo efetivo de mediação no ciclo do capital, é a peculiaridade do capital portador de juros. Aparentemente, dinheiro multiplica dinheiro. Desconsidera-se a mediação, a unidade e o conjunto do movimento real e imanente do capital em seu ciclo completo D – M – D’. O capital portador de juros toma a forma de uma transação jurídica. Como um contrato, aparenta não ser determinado pelo processo de produção.

Assim, a mera forma do capital portador de juros, como D – D’, “é apenas a forma sem conceito do movimento efetivo do capital”. Essa forma do capital denuncia a natureza irracional em que consiste o capitalismo. A forma D – D’ é a “coisificação das relações de produção elevadas à máxima potência”, “mistificação capitalista em sua forma mais descarada”, “forma fetichista mais pura”, nas palavras de Marx.

Determinação do lucro e casualidade dos juros

A compreensão sobre o simples intercâmbio de mercadorias ordinárias não serve para a abordagem dessa mercadoria especial, a forma capital portador de juros. O que é o preço dessa mercadoria? Os juros são preço de quê? Para responder a isso, é preciso tratar das origens do lucro e dos juros e sua interação.

Marx aponta a irracionalidade, contradição e absurdo dos juros como preço do capital, como se vê na superfície e normalidade das transações de mercado. Uma determinada grandeza de capital portador de juros é uma mercadoria em certa magnitude, que tem seu valor e daí o seu preço de mercado. Mas, ao mesmo tempo, aqui no capital portador de juros, há um outro preço, de qualidade distinta, que se chama juros? Como? Por quê? Se é um outro preço, então não é expressão daquele valor do mesmo capital portador de juros. É como se houvesse duplicidade de valor e de preço. Na verdade, ao se impor, o valor de uso deste capital monetário tem esse segundo preço chamado de juros.

O lucro engendrado pelo valor de uso desse capital é repartido, de modo arbitrário e casual, entre ganho empresarial e juros. Aqui, não há qualquer lei econômica para regular essa distribuição, a não ser a concorrência entre os prestamistas e prestatários no mercado monetário. No âmbito dessa forma de transação jurídica, não existem taxa natural de juros, limites naturais de juros, subordinação a prazo de rotação efetiva do capital etc.

Mas a grandeza, o limite máximo e os possíveis cursos dos juros estão condicionados pelo lucro, determinados pela sua taxa geral, em vez de taxas de lucros de ramos específicos ou lucro extra de um capitalista. A taxa geral de lucro, por sua vez, depende da relação entre o mais-valor e o valor do capital total em razão da concorrência, mobilidade e magnitude dos capitais nos diferentes ramos e composições orgânicas.

Os juros não podem ter suas próprias leis gerais de determinação, porque são derivação do lucro médio, conforme o referido incessante movimento de equalização das taxas de lucro particulares. O capitalismo financeirizado do século XXI exacerba a casualidade dos juros, bem como preserva a tendência à taxa geral de lucro, a partir do mais-valor do capital total, conforme a teoria de Marx.

“Portanto, a taxa geral de lucro é determinada por causas totalmente diversas e muito mais complicadas do que a taxa de juros de mercado, que se deve direta e imediatamente à relação entre oferta e demanda (…)”. A graça disso tudo é que os financistas enxergam tangibilidade, inteligibilidade e racionalidade no assim chamado preço do dinheiro, apesar da volatilidade e bolhas, enquanto titubeiam, perplexos, diante do curso da taxa geral de lucro, uma matéria nebulosa aos seus olhos, como já notava Marx.

Condenação meramente moral

Capital portador de juros, como capital usurário, já era a forma, e os juros, já eram a sua subforma, antes do capitalismo. Capital de empréstimo e capital comercial fazem parte da história antediluviana do capital. Marx, para discutir sua época, sentiu necessidade de relembrar a origem antiga do capital dinheiro, bem como de sua condenação moral. As épocas e as formas e a natureza do comércio do dinheiro são muito diferentes na comparação entre os modos de produção.

Entretanto, sempre houve e há uma propensão muito fácil para a condenação meramente moral do negócio com o dinheiro, em face dos privilégios reais desse tipo de negociante. Na Idade Média, é bem conhecida a condenação da usura pela Igreja Católica. Martinho Lutero indignava-se: “Tal usura não haverá de devorar o mundo em poucos anos?”

Os imensos juros usurários arruinaram os donos de terra, ajudaram a expropriar os pequenos produtores – camponeses e artesãos – e levaram à forte concentração de capital monetário. Para Marx, no capitalismo, o sistema de crédito desenvolvido, por meio dos bancos, foi uma resposta, sem conotação moral, contra a usura. Constituiu-se a subordinação do capital portador de juros às exigências das condições do modo de produção capitalista. Já não havia espaço para a voracidade dos juros usurários sobre o mais-valor inteiro. A destinação do dinheiro era para o capitalista explorar o trabalho alheio na produção.

E hoje? A financeirização, correspondente à produção capitalista avançada, já pode expropriar quem já está expropriado, os assalariados. Para isso, criou-se um tipo novo de escravidão por dívida através dos cartões de crédito, das hipotecas, do crédito estudantil, do crédito para o consumo individual, inclusive alimentos etc. Marx reconhecia que a classe trabalhadora era extorquida escandalosamente, por exemplo nos empréstimos para suas casas, mas ele avaliava que essa era uma exploração secundária, ao lado da exploração original, localizada no processo de produção. A usura empobrecia, mas conservava o modo de produção pré-capitalista. A financeirização preserva o capitalismo ao acumular gigantescas massas de riqueza financeira para uma ínfima minoria, englobando, pelo mercado, a tudo e a todos em transações financeiras.

Capitalismo sem juros

Marx, em sua época, criticava a fundamentação equivocada de Proudhon sobre o empréstimo de dinheiro. Os juros eram sobrepostos ao valor da mercadoria, para além dos salários, julgava Proudhon. Ele não atinava para o conceito de preço de produção no processo de concorrência e transferência de valor em função da tendência de formação da taxa média de lucro entre os capitais diversos em composição orgânica, dentro de uma economia em que já existia normalmente o capital portador de juros. Para ele, tratava-se de um acréscimo postiço dos juros. Ele pensava que isso que interditava o acesso dos operários aos frutos do seu trabalho. Era desse modo, ele supunha, que o preço da mercadoria ultrapassava a grandeza dos salários.

Proudhon não percebia que os juros já eram derivação do lucro, decorrente do mais-valor criado pelos trabalhadores na produção das mercadorias. Esse capital de empréstimo já participava do adiantamento para a compra de capital produtivo no processo de reprodução. Proudhon não compreendia o lugar dos salários na forma valor da mercadoria. Ademais, sem entender a forma do capital portador de juros, Proudhon protestava porque o capital emprestado retornava ao seu proprietário e, ainda para piorar, refluía acrescido de juros. Em sua comparação com o comércio de mercadorias, ele não percebia que, no caso do capital portador de juros, o prestamista faz a cessão (temporária) de uma soma de valor, sem a contrapartida do recebimento de seu equivalente, explicou Marx.

Capitalismo sem juros? Produção de mercadorias, mas com crédito gratuito, como queria Proudhon? Capitalismo maduro hoje, sem financeirização? Essa polêmica de Marx com Proudhon ensina muito sobre os desejos piedosos neste século XXI por um tipo de regulação da finança que conduza ao projeto ilusório de um capitalismo humanizado e produtivo.

*Renildo Souza é professor de economia e de relações internacionais na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Autor, entre outros livros, de A China de Mao e Xi Jinping (Editora da UFBA).

 

Prosperidade e pobreza

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Nesta semana foi divulgado os nomes dos laureados com o Prêmio Nobel de Economia, Daron Acemoglu, Simon Johnson e James A. Robinson receberam o prêmio “por seus estudos sobre a formação das instituições e sobre como elas afetam a prosperidade”. Os dois primeiros ganhadores da láurea são professores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts. James Robinson é professor da Universidade de Chicago, também nos Estados Unidos.

Neste espaço, gostaria de comentar o livro “Porque as nações fracassam: As origens do poder, da prosperidade e da pobreza”, escrito pelos economistas do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, que investigou profundamente as causas da prosperidade e da pobreza entre diferentes países, centrada na importância das instituições políticas e econômicas.

O conceito central do livro de Daron Acemoglu e Simon Johnson é a distinção entre instituições inclusivas e extrativas, onde as primeiras são aquelas que promovem a participação ampla dos cidadãos na economia e na política, com ampla garantia de direitos de propriedade, justiça e oportunidades econômicas. Com isso, cria-se incentivos para inovação, educação, empreendedorismo e o desenvolvimento econômico. Já as instituições extrativas concentram o poder político e os benefícios econômicos em uma elite, explorando a maioria da população e inibindo o crescimento econômico de longo prazo.

Uma vez que um país é dominado por instituições extrativas, como exemplo, os autores analisam a América Latina, é difícil romper esse ciclo. As elites políticas e econômicas têm pouco incentivo para mudar as regras que lhes permitem manter o controle, garantindo grandes retornos econômicos e financeiros, o que perpetua a desigualdade e a pobreza. Neste cenário, as revoluções políticas ou grandes crises às vezes podem proporcionar novas oportunidades de reformas que criam instituições mais inclusivas. No entanto, essas mudanças não são garantidas e dependem de forças políticas específicas que sejam capazes de redistribuir o poder.

As instituições políticas são o alicerce das instituições econômicas. Para que uma economia floresça, é necessário que as instituições políticas garantam distribuição de poder e representatividade. Quando o poder está concentrado nas mãos de poucos, como regimes autoritários, ditaduras ou sistemas oligárquicos, as instituições econômicas tendem a ser extrativas, impedindo o desenvolvimento econômico, perpetuando uma situação de degradação social, desigualdades crescentes e o incremento da desesperança.

Para construir suas hipóteses, os autores da obra fizeram uma grande reflexão histórica, pesquisando várias regiões, analisando modelos de desenvolvimento econômico entre a Coréia do Sul e a Coréia do Norte, além de um mergulho numa comparação crítica entre os Estados Unidos e a América Latina, desta forma demonstraram como as instituições moldaram o sucesso ou o fracasso das nações, enriquecendo países ou perpetuando as desigualdades.

Outro assunto muito discutido na obra está relacionado as questões geográficas e culturais das nações, vistas como insuficientes para o desenvolvimento econômico, ou seja, os países que possuem boa geografia e cultura consistente podem auxiliar, mas não leva uma nação ao desenvolvimento econômico, para isso, faz-se necessário a construção de instituições sólidas e consistentes. Quem sabe está na hora da elite nacional ler obras como essa e compreender a importância de instituições sólidas e consistentes para alcançarmos o desenvolvimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

 

 

 

 

 

 

Dominação e desigualdade, por Fernando Rugitsky

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 Fernando Rugitsky – A terra é Redonda – Introdução à reedição do livro de Paul Singer 16/10/2024

Paul Paul Singer, a desigualdade e o subproletariado

O livro Dominação e desigualdade tem lugar de honra entre os clássicos do pensamento crítico brasileiro. Publicado originalmente em 1981, é um dos grandes marcos da revisão crítica do desenvolvimentismo deflagrada pela ruptura histórica de 1964. Ao mesmo tempo, o livro inaugurou uma tradição de interpretação que ainda pode dar muitos frutos. Combinando uma meticulosa análise crítica das estatísticas socioeconômicas brasileiras com um esforço de renovar a interpretação marxista sobre as transformações do capitalismo no Brasil, Paul Singer produziu uma obra que merece ser amplamente lida e discutida. A presente reedição vem, assim, a calhar.

Para situar Dominação e desigualdade convém recuar um pouco no tempo e reconstituir, ainda que brevemente, o que estava em jogo quando Paul Singer foi convidado, em meados dos anos 1970, a contribuir com um capítulo para a célebre coletânea A controvérsia sobre distribuição de renda e desenvolvimento, organizada por Ricardo Tolipan e Arthur Carlos Tinelli. O capítulo lançou o autor em um percurso intelectual que o ocuparia por mais de uma década e resultaria em dois livros, reunidos na presente edição: Dominação e desigualdade, já mencionado, e Repartição de renda, publicado pela primeira vez em 1985.

Assim, estão reunidas aqui algumas das respostas de Paul Singer aos desafios ao pensamento crítico nacional colocados pela década de 1970: compreender a derrota de 1964 e a o “milagre econômico” que o sucedeu. Respostas que ainda podem, quase meio século depois, nos guiar no enfrentamento de novos problemas e velhos dilemas.

A controvérsia sobre a distribuição de renda

Na década de 1950, o desenvolvimento econômico consolidou-se como uma das subdisciplinas do campo da economia.2 Os debates na época, oscilando entre conceitos abstratos e análises detalhadas de experiências concretas, foram marcados por uma difusa confiança de que a superação do subdesenvolvimento estava no horizonte. O entusiasmo que permeava o campo era baseado na “ideia implícita de que [a subdisciplina] poderia matar virtualmente sozinha o dragão do atraso”.

A América Latina foi, sem dúvida, uma das regiões que assumiu protagonismo nessas discussões. As teorias formuladas na Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) ocupavam lugar de destaque no debate.4 Mesmo economistas do desenvolvimento de fora da região faziam questão de visitá-la para apresentar suas ideias e discutir com seus pares latino-americanos.

Nesse período, a fronteira entre o debate acadêmico e a formulação das políticas econômicas era pouco definida e as teorias eram transformadas pelos governos em projetos de país. No Brasil, caso exemplar de um fenômeno mais geral, o principal economista do desenvolvimento, Celso Furtado, egresso da Cepal, foi convocado para contribuir com o plano de desenvolvimento do governo Juscelino Kubitschek e, alguns anos depois, foi alçado à posição de Ministro do Planejamento no governo João Goulart. A transformação econômica acelerada, estimulada pelo governo, era acompanhada da urbanização vertiginosa da sociedade, ebulição cultural e organização crescente das classes trabalhadoras, no campo e nas cidades.

Contudo, em abril de 1964, o golpe civil-militar representou uma inflexão, desconectando o avanço da acumulação capitalista no Brasil dos sonhos modernos dos desenvolvimentistas. Não se podia mais identificar o crescimento econômico acelerado com a superação do subdesenvolvimento. Nesse sentido, Maria da Conceição Tavares e José Serra afirmaram em 1970 que “enquanto o capitalismo brasileiro desenvolve-se de maneira satisfatória, a nação, a maioria da população, permanece em condições de grande privação econômica”. O próprio Furtado formularia um argumento similar: “taxas mais elevadas de crescimento, longe de reduzir o subdesenvolvimento, tendem a agravá-lo, uma vez que ensejam desigualdades sociais crescentes”.

O golpe no Brasil foi parte de uma série de golpes militares que instauraram ditaduras violentas na América Latina, desde o início dos anos 1960 até meados dos anos 1970, em geral com apoio dos Estados Unidos no contexto da Guerra Fria. Hirschman argumenta que tais “desastres políticos” marcaram o início do declínio do pensamento sobre desenvolvimento econômico que passaria, a partir de então, por um intenso processo de autorreflexão. “Ganhou-se em maturidade o que se perdeu em entusiasmo.”

Um dos principais debates que mobilizou os economistas brasileiros durante esse período tratou da questão da desigualdade. Com a publicação dos dados do Censo de 1970, Rodolfo Hoffmann e João Carlos Duarte mostraram que, entre 1960 e 1970, a desigualdade havia aumentado no Brasil. A pujança então em curso, do tal “milagre econômico”, estava sendo distribuída de forma muito desigual. O argumento poderia ter passado despercebido se não fosse pela publicação pelo economista norte-americano Albert Fishlow, no mesmo ano, de estimativa similar que chamou a atenção de Robert McNamara, então presidente do Banco Mundial.

Em um discurso na UNCTAD (United Nations Conference on Trade and Development), em 1972, McNamara destacou o caso brasileiro como motivo de preocupação e mencionou os dados de Fishlow: “[e]m termos de pnb [produto nacional bruto], o país foi bem. Os muito ricos foram muito bem. Mas, ao longo da década, os 40 por cento mais pobres beneficiaram-se apenas marginalmente.”

O governo brasileiro, em especial os economistas palacianos (Antônio Delfim Netto, Roberto Campos e Mário Henrique Simonsen), reagiram prontamente, denunciando o que se apressaram em qualificar como fragilidade dos dados e espúrias motivações por trás das estimativas. Seu incômodo era evidente, e as razões por trás dele, também. O caso brasileiro ocupava as páginas das revistas econômicas internacionais, em um debate que realçava a natureza política das decisões econômicas. Segundo Fishlow, o aumento da desigualdade “indicava precisamente as prioridades [do governo Castello Branco]: a destruição do proletariado urbano enquanto ameaça política e o restabelecimento de uma ordem econômica orientada para a acumulação privada de capital.”

Como resposta, o então Ministro da Fazendo, Delfim Netto, encomendou oficialmente um estudo sobre o assunto a ser realizado por Carlos Langoni, egresso da Universidade de Chicago. Assessorado por funcionários do governo federal, Carlos Langoni publicou em 1973 o livro Distribuição de renda e desenvolvimento econômico no Brasil. Por trás de um aparato estatístico elaborado e uma profusão de tabelas, o livro buscou interpretar o aumento da desigualdade recorrendo à teoria neoclássica do capital humano.

A mensagem principal servia aos interesses do governo: “Numa economia como a brasileira, com altas taxas de crescimento, principalmente no setor industrial, é razoável antecipar-se a existência de desequilíbrios no mercado de trabalho, pois a expansão da demanda tende a beneficiar justamente as categorias mais qualificadas cuja oferta é relativamente mais inelástica a médio prazo. Assim é natural encontrar-se várias categorias profissionais percebendo salários acima do valor de sua produtividade marginal. Nesse sentido pode-se dizer que o grau de desigualdade da distribuição atual é maior do que o grau esperado a longo prazo, quando será possível eliminar-se esses ganhos extras através da expansão apropriada da oferta”.

O aumento da desigualdade seria assim “razoável” e “natural”, um efeito incontornável do crescimento acelerado, ao invés de um resultado das políticas adotadas. Seria, ainda, transitório, uma vez que o próprio mercado cuidaria de corrigi-lo no “longo prazo”. Carlos Langoni deu um passo a mais e colocou em questão a própria relação de causalidade entre distribuição de renda e bem-estar, sugerindo que talvez o objetivo principal deveria ser a eliminação da pobreza, sem que fosse necessário tratar de reduzir a desigualdade.

A resposta não tardou. O trabalho de Langoni foi objeto de análise minuciosa acompanhada de crítica contundente por parte de inúmeros economistas brasileiros. Uma das primeiras reações apareceu em uma resenha do livro escrita por Pedro Malan e John Wells, ainda em 1973. No mesmo ano, o primeiro encontro da Anpec (Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Economia) incluiu uma sessão sobre distribuição de renda, em que foram apresentados outros textos críticos ao trabalho de Langoni. O esforço de responder à defesa “oficial” do regime uniria Edmar Bacha, Luiz Gonzaga Belluzzo, Maria da Conceição Tavares, além de Fishlow, Hoffmann, Duarte, Malan, Wells e Paul Singer.

O debate foi travado em diversas frentes. Alguns, como Wells, buscaram utilizar dados anuais para argumentar que o aumento da desigualdade teria ocorrido sobretudo nos anos de ajuste contracionista, isto é, entre 1964 e 1966, e não no período de crescimento, de modo que o mecanismo sugerido por Langoni não seria plausível. Outros priorizaram criticar a própria base teórica adotada por Langoni, a teoria do capital humano. Houve ainda tentativas de reforçar as evidências que conectavam o aumento da desigualdade às políticas de repressão salarial e à redução do salário-mínimo.

O debate promoveu um florescimento de arcabouços conceituais e esforços empíricos que resultaram em uma leitura complexa e abrangente das transformações em curso no capitalismo brasileiro e suas repercussões sobre a distribuição de renda. Foi sem dúvida um dos pontos altos da história do debate econômico nacional. O livro organizado por Tolipan e Tinelli, que reuniria em 1975 os economistas citados acima, incluindo Paul Singer, ainda é um marco.

Entra Paul Singer

A crítica direta de Paul Singer a Langoni conta com dois elementos principais: (i) o argumento de que a teoria marginalista da repartição de renda, adotada por Carlos Langoni, é baseada em um pressuposto falso segundo o qual é possível identificar produtividades marginais individuais e (ii) o questionamento do significado da correlação entre nível de renda e grau de escolaridade (evidência principal utilizada por Carlos Langoni para sustentar sua interpretação). Em relação ao primeiro ponto, Paul Singer argumentou que a renda apropriada pelos distintos grupos sociais não é um mero resultado das características técnicas do processo produtivo, mas é influenciada por determinantes políticos e sociais. Em contraste, a teoria marginalista (que permanece dominante no pensamento econômico nos dias atuais) assume que as remunerações são determinadas pelas produtividades marginais dos diferentes fatores de produção, o que “[se] baseia, por sua vez, na suposição da infinita divisibilidade dos fatores de produção, ou seja, que é possível determinar a produtividade na margem de cada indivíduo que trabalha na empresa. Ora, essa suposição é falsa. A divisão do trabalho em qualquer empresa moderna acarreta uma estreita interdependência de todos os integrantes de amplas equipes de produção. Não tem sentido, portanto, considerar a produtividade de um engenheiro ou de um operário isoladamente. A produtividade do engenheiro é nula se ele não puder contar com a colaboração de outros especialistas e de numerosos operários”.

Trata-se, é verdade, de um debate recorrente, opondo defensores e críticos dos níveis observados de desigualdade em diferentes sociedades e em diferentes períodos. Mais recentemente, o economista francês Thomas Piketty utilizou-se de um argumento análogo ao de Paul Singer para rejeitar a visão segundo a qual a explosão observada nas últimas décadas dos salários dos executivos das grandes corporações deveu-se ao extraordinário crescimento de sua produtividade.

Voltando ao caso brasileiro, Paul Singer complementa a crítica à teoria marginalista da repartição com uma interpretação alternativa à principal evidência utilizada por Carlos Langoni. Segundo ele, “a correlação entre escolaridade e renda não indica uma simples relação de causa e efeito”, mas, “[n]a verdade, a pirâmide educacional reflete, com poucas distorções, a pirâmide de estratificação social e econômica.” Ao contrário do que argumentava Carlos Langoni, a crescente disparidade de salários entre trabalhadores com diferentes graus de escolaridade não era um resultado inevitável de desequilíbrios temporários entre a oferta e a demanda por trabalhadores com diferentes níveis de qualificação.

Na realidade, tratava-se de uma disparidade instituída politicamente, uma vez que as remunerações observadas não seguiam critérios “econômicos”, mas resultavam das políticas governamentais (em especial, a determinação do salário-mínimo e as regras de reajustamento salarial) e suas repercussões na estrutura social brasileira.

Restava, então, investigar essa estrutura e sua transformação desde os anos 1960. Como revela Paul Singer no prefácio de Dominação e desigualdade, aqui estaria sua principal contribuição à controvérsia sobre a desigualdade: “Como já não tinha sentido meramente reafirmar as denúncias da política do regime, propus-me então desenvolver uma interpretação histórica da repartição da renda no Brasil, procurando mostrar como as transformações estruturais, ocasionadas pelo processo de desenvolvimento, produziam mudanças na repartição da renda. Essa postura metodológica obrigava-me, obviamente, a encarar a questão das classes sociais”.

A controvérsia sobre a desigualdade convergia, dessa maneira, com outro desenvolvimento intelectual em curso no Brasil, também crucial para a revisão crítica do desenvolvimentismo: a reinterpretação do nosso percurso histórico com base em uma leitura crítica do marxismo. O aparato crítico herdado de Marx oferecia instrumentos para examinar as ilusões do desenvolvimentismo e interpretar a derrota havida em 1964. Ao eleger a estrutura de classes como foco da sua investigação, Paul Singer mobilizou a retomada em curso do pensamento marxista para intervir no debate em torno do livro de Carlos Langoni.

Junto com José Arthur Giannotti, Fernando Henrique Cardoso, Ruth Cardoso e Fernando Novais, Paul Singer havia feito parte do núcleo original de intelectuais que decidiram se debruçar de modo crítico e interdisciplinar sobre O capital, nos célebres seminários realizados na Universidade de São Paulo (USP), que duraram do final dos anos 1950 até meados dos anos 1960. Tendo tomado contato com a obra de Marx ainda na juventude, quando era operário e dirigente sindical, Paul Singer retomou a leitura do pensador alemão já na sua trajetória acadêmica, combinando múltiplas experiências que lhe permitiram assumir um papel não apenas central como único nos debates intelectuais que se seguiram ao golpe de 1964.

A minifundiarização e o subproletariado

Na ocasião, um dos alvos da retomada do marxismo na periferia era examinar a natureza do processo de proletarização e das transformações das relações sociais de produção no Sul Global. Buscava-se aprofundar o diagnóstico da transição que o desenvolvimentismo descrevia como uma mera realocação da força de trabalho, do setor de subsistência para o setor capitalista, trazendo à tona suas implicações para a acumulação de capital e para o conflito de classes. Em outras palavras, críticos marxistas repensavam o dualismo difundido principalmente pelos trabalhos do economista caribenho Arthur Lewis.

No caso brasileiro, a formulação de Franscisco de Oliveira, em Crítica à razão dualista, sem dúvida trouxe para o primeiro plano a discussão sobre a especificidade do capitalismo periférico e a natureza da acumulação primitiva no Brasil, oferecendo uma série de hipóteses instigantes. Mas foi Paul Singer, em Dominação e desigualdade, quem propôs a análise mais sistemática e de fôlego do processo de proletarização brasileiro.

O livro contém uma investigação inédita da estrutura de classes brasileira e de sua transformação em meados do século XX, com base em um exame rigoroso de uma série de fontes estatísticas, em especial os Censos, os Censos Agropecuários e as Pesquisas Nacionais por Amostras de Domicílio (PNAD). Paul Singer nos traz um diagnóstico sofisticado da especificidade da experiência histórica brasileira, e situa com enorme precisão os contornos estruturais dos conflitos de classe.

No debate clássico sobre a transição do feudalismo para o capitalismo na Europa, a chave para a compreensão do processo de proletarização foi encontrada na transformação da agricultura. Para desvendar o caso brasileiro, Paul Singer opta pela mesma estratégia Afinal, mais da metade da população econômica ativa (PEA) brasileira estava ocupada nas atividades agrícolas até ao menos 1970. 26 Desde os anos 1930, com a crise da produção agrícola voltada à exportação (especialmente a cafeicultura) e a aceleração da urbanização e da industrialização, a demanda por alimentos e outros produtos agrícolas nos centros urbanos brasileiros aumenta substancialmente.

Esse aumento, por sua vez, resulta em uma expansão da agricultura comercial voltada ao mercado interno. No entanto, essa parte da produção agrícola ainda se sustenta, em larga medida, em trabalho familiar, e não em trabalho assalariado.

A situação mudaria apenas na segunda metade da década de 1950, quando, segundo Paul Singer, “a expansão do capitalismo, acelerada pelo influxo de capital estrangeiro, ultrapassa o limite das atividades urbanas e começa a penetrar na agricultura”. Ainda que a maior parte da expansão da força de trabalho no campo, entre 1950 e 1960, tenha ficado à margem das relações sociais capitalistas, o número de trabalhadores assalariados nas atividades agrícolas cresce, de cerca de 5 para 5,8 milhões de pessoas. Contudo, a despeito desse crescimento absoluto, os empregados agrícolas representam uma parcela em declínio da força de trabalho total.

Entre 1960 e 1970, no entanto, observa-se uma notável inflexão: o número de assalariados nas atividades agrícolas cai para menos de 3,5 milhões (pouco mais de dez por cento da PEA), ao mesmo tempo que há um aumento do número de pessoas ocupadas na agricultura. O percentual de trabalhadores assalariados na força de trabalho rural brasileira é reduzido quase à metade em dez anos, de 37% para 20%. A penetração do capitalismo na agricultura não generaliza o assalariamento, mas sim o campesinato.

O paradoxo é apenas aparente, contudo. Assim como ocorrera em tantas outras experiências anteriores de avanço do capitalismo sobre o campo, o capital repeliu o trabalho com uma intensidade muito maior do que o atraiu. Ao longo dos anos 1960, a agricultura capitalista expandiu seu domínio sobre a produção agrícola brasileira, recorrendo a intensa mecanização e expulsando a força de trabalho. As páginas dedicadas por Paul Singer à análise do papel crescente desempenhado pelos tratores são especialmente interessantes.

O resultado foi um processo intenso de minifundiarização. Entre 1960 e 1970, a população ocupada nos menores estabelecimentos rurais (com até 10 hectares) aumentou vertiginosamente. Sua participação na PEA agrícola total saltou de 31% para 41%. Ademais, esse enorme contingente populacional não apenas se via aprisionado em áreas de dimensão reduzida, mas também havia sido deslocado para regiões mais distantes dos mercados urbanos pela concentração das terras sob domínio da agricultura capitalista. Sua capacidade de garantir a própria subsistência era cada vez mais limitada.

A minifundiarização foi decisiva para criar as bases da proletarização em grande escala, ao constituir um enorme “exército agrícola de reserva” disponível para o capital: “a grande maioria dos trabalhadores agrícolas vive em tal pobreza que, em relação ao capital, ela forma uma única classe de expropriados, cuja força de trabalho está disponível para ser adquirida pelo custo mínimo legal e socialmente estabelecido”.

A minifundiarização não apenas reserva um estoque de mão de obra potencial como também, ao pressionar as condições de subsistência da população minifundiária, acelera o êxodo rural. Em outra passagem, Paul Singer refere-se à “‘urbanização’ forçada dos trabalhadores agrícolas” para descrever esse processo. Na década de 1960, observou-se ao mesmo tempo o crescimento da população ocupada nos minifúndios e a redução da população rural, de 55% para 44,1%.

Acentuando a especificidade do caso brasileiro, Paul Singer notou que esse vasto exército industrial de reserva tornou dispensável “uma fase de acumulação primitiva”, no sentido de que o acesso à terra era limitado já há muito tempo no Brasil. Ou seja, o período decisivo para a proletarização não foi marcado predominantemente por expropriação de terras, como no caso clássico inglês, mas pela acentuação do desequilíbrio estrutural entre os restritos meios de produção à disposição dos produtores e os requisitos de subsistência.

A minifundiarização consistiu no pressuposto da proletarização por ter sido indissociável da formação de uma enorme superpopulação relativa, tomando emprestado a expressão de Marx. No mapeamento da estrutura de classes brasileira (tanto a urbana quanto a rural), Paul Singer optou por dividir as classes trabalhadoras em dois grupos, o proletariado e o subproletariado. O segundo grupo, que o autor vinculou explicitamente ao conceito de exército de reserva, é composto por aqueles “que de fato ou potencialmente oferecem sua força de trabalho no mercado sem encontrar quem esteja disposto a adquiri-la por um preço que assegure sua reprodução em condições normais”.

A partir da interpretação histórica das transformações das relações sociais de produção, Paul Singer ofereceu uma explicação original para o fenômeno que vinha desafiando os observadores do desenvolvimento periférico: a urbanização acelerada sem a contrapartida da criação de empregos urbanos, com a resultante “marginalização em massa” dos subproletários: “[a] origem desse subproletariado se liga à dissolução, pelo capitalismo, de partes da economia de subsistência, sem que a acumulação de capital gere uma demanda por força de trabalho suficiente para absorver – nas condições normais – a mão de obra assim liberada”.

Leitor atento de O capital, Paul Singer sabia que o processo clássico de proletarização na Europa tampouco foi capaz de absorver a população expulsa do campo.42 Seria, então, o caso de dizer que o Brasil repetia, com mais de um século de atraso, os passos trilhados por outros países? Não haveria, então, algo específico ao capitalismo periférico?

Paul Singer enfrentou essas questões de forma explícita, ressaltando duas diferenças entre o desenvolvimento brasileiro e o caso clássico europeu:

(i) tendo-se iniciado muito mais tarde, o nosso processo de desenvolvimento é contemporâneo de economias capitalistas maduras, que nele intervêm pesadamente, dando-lhe características próprias; (ii) dada a grande extensão territorial do país, o excedente de população criado pela expansão capitalista, em vez de ser exportado (como ocorreu na Europa do século XIX), tende a reproduzir, no interior do país, as formas pré-capitalistas que estão sendo aniquiladas nos centros mais dinâmicos da economia.43

O primeiro ponto sem dúvida merece análise que não cabe nessas linhas, mas aqui quero destacar que a segunda diferença apontada é um dos achados críticos decisivos de Dominação e desigualdade. Ao interpretar a origem do subproletariado brasileiro e quantificá-lo, Paul Singer ofereceu uma das principais pistas para entender as especificidades dos conflitos de classe no Brasil.

E aqui retomo meu ponto de partida: quais lições Dominação e desigualdade ofereceu para a controvérsia sobre a desigualdade?

Ao jogar luz sobre a imbricação entre a minifundiarização e a frmação de um enorme subproletariado, em especial ao longo da década de 1960, Paul Singer explicitou como os mecanismos que reproduziam a concentração de renda e levavam a um aumento da desigualdade poderiam ser identificados na estrutura de classes brasileira e na dinâmica de transformação das relações sociais de produção. Em outras palavras, o crescimento excludente do milagre econômico, marcado por taxas extraordinariamente altas de crescimento do pib e por estagnação salarial, não teria sido possível sem a formação prévia da enorme superpopulação relativa. O braço violento das políticas repressoras do governo militar combinava-se assim com o também violento processo de minifundiarização, e de urbanização forçada das populações rurais, engendrado pelo capital em expansão.

Ao incorporar dados posteriores, Paul Singer mostrou ainda que era possível identificar a partir desse momento ciclos de absorção e reconstituição do exército industrial de reserva no Brasil, ainda que com características específicas e temporalidade própria. Valeu-se do capítulo de Marx sobre a “lei geral da acumulação capitalista” para elucidar, em certa medida, os ciclos distributivos brasileiros.

Concretamente, a expansão acelerada ocorrida durante o milagre econômico, a despeito das políticas de repressão salarial, levou a uma notável redução do subproletariado com correspondente crescimento do proletariado e da pequena burguesia. Certas teorias do desenvolvimento, enredadas em seus esquemas lineares, poderiam identificar em tal transição um passo na superação do subdesenvolvimento.

Mas Paul Singer não perdia de vista a natureza cíclica da dinâmica capitalista. Como ele nota, em A formação da classe operária, “[e]ntre 1980 e 1983, a produção caiu no campo e nas cidades, o desemprego se agigantou e parcelas significativas tanto da pequena burguesia quanto do proletariado foram lançadas no subproletariado”. Lançadas de volta às fileiras do subproletariado, ouso acrescentar.

Retomar o fio da meada

Há muito mais nas páginas a seguir do que pode sugerir esse breve sobrevoo. Mas o exame dos argumentos mencionados permite que se apontem alguns preciosos legados das investigações de Paul Singer sobre a estrutura de classes brasileira. O debate sobre a distribuição de renda no Brasil, que ofereceu o impulso inicial para os trabalhos de Paul Singer reunidos nesta edição, foi retomado no Brasil em meados dos anos 2000. Buscou-se, nos esforços recentes, compreender a queda então em curso na desigualdade salarial. No entanto, a ambição teórica da controvérsia dos anos 1970 foi, em grande medida, deixada de lado e substituída por métodos estatísticos sofisticados. O que se ganhou em precisão, contudo, foi perdido em capacidade interpretativa.

A maior parte dos esforços recentes para estudar a trajetória da desigualdade resigna-se a descrever o movimento, sem ousar interpretá-lo. Ricardo Paes de Barros, que além de ser protagonista do debate econômico brasileiro sobre desigualdade ocupou cargos de alto escalão no governo federal no período do lulismo, “declarou ter encontrado o método que buscava para analisar com rigor a desigualdade brasileira ao se deparar, já na segunda metade dos anos 1980, com o livro que Carlos Langoni publicara em 1973”.

A retomada da perspectiva adotada por Carlos Langoni é, na realidade, um fenômeno mais geral, isto é, não apenas restrito ao debate brasileiro. Segundo argumenta Pedro Ferreira de Souza, nas décadas que se seguiram à controvérsia dos anos 1970, “a abordagem de Carlos Langoni tornou-se dominante” no Brasil e em outros países.47 É preciso, porém, que recuperemos a potência e a percuciência de seus críticos para compreender por que a redução recente da desigualdade salarial acentuou conflitos políticos e dinâmicas estruturais que acabaram levando à sua reversão.

Retomar apenas um lado da controvérsia dos anos 1970 tornou o debate recente deficiente e incompleto, na medida em que se furtou em pautar de forma explícita os limites da queda da desigualdade salarial. Como aprendemos com Paul Singer e seus contemporâneos, tais limites não são dados pela própria trajetória da desigualdade, mas por sua conexão com a dinâmica estrutural da economia e as mudanças da estrutura de classes, temas que precisam urgentemente retomar centralidade.

Os poucos trabalhos que se debruçaram sobre as relações entre a dinâmica estrutural da economia e a distribuição de renda trazem uma constatação inconveniente: a redução das desigualdades se alimentou da regressão da estrutura produtiva, aumentando a vulnerabilidade externa da economia brasileira e criando barreiras ao seu prosseguimento..

A perspectiva sugerida por Paul Singer em Dominação e desigualdade é mais frutífera para elucidar a trajetória recente da distribuição de renda no Brasil. Isso porque as crises econômica, política e social que se combinaram de forma devastadora no Brasil, a partir de 2014, têm sua origem no agravamento dos conflitos de classe. Lembremo-nos de que foram detonadas antes que a vulnerabilidade externa freasse a economia brasileira e, portanto, não podem ser creditadas a restrições de balanço de pagamentos. Mas qual é o vínculo entre a redução das desigualdades e o agravamento dos conflitos de classe? A resposta passa pela retomada do estudo do subproletariado brasileiro, inaugurado por Paul Singer.

Esforços recentes de mapear a estrutura de classes brasileira, quando interpretados à luz dos conceitos de Paul Singer, sugerem que o período do lulismo foi caracterizado por um novo processo de ampliação do proletariado com correspondente redução do subproletariado. Ou, para usar os termos de Marx, de absorção do exército industrial de reserva. A despeito da inclinação conciliatória dos governos Lula, que justamente implantaram um programa focado no subproletariado, evitando o confronto com o capital, as classes antagônicas reorganizaram-se para disputar os contornos da exploração.

A razão de fundo é que as políticas lulistas, combinadas à bonança externa na forma do boom de commodities, reduziram substancialmente a superpopulação relativa, pressionando – à revelia do governo – as condições estruturais para a reprodução ampliada do capital.

Tais tensões de fundo vêm à tona nos anos 2010 com uma onda grevista que não se via desde a emergência do novo sindicalismo no final dos anos 1970. Não é coincidência que a onda anterior também tenha ocorrido após um ciclo de redução da superpopulação relativa. No período recente, ocorreu também um expressivo achatamento cíclico dos lucros, associado à agitação sindical. Esses dois elementos, combinados, contribuem para explicar o acirramento da luta de classes visível no período, que desembocou em uma violenta regressão política e econômica.

Não será fácil para a sociedade brasileira recuperar-se do retrocesso ocorrido. Mas seria ainda mais difícil se não dispusesse de instrumentos que lhe permitissem compreender o que se passou. Uma parte importante desses instrumentos, teóricos e empíricos, foram forjados por Paul Singer nos debates dos anos 1970, nos textos que podem ser lidos nas páginas de seus dois livros que acabaram de ser republicados conjuntamente, Dominação e desigualdade e Repartição de renda. Cabe à geração atual apropriar-se deles e levar adiante o legado de seu autor.

*Fernando Rugitsky é professor de economia na University of the West of England, em Bristol, e co-diretor do Bristol Research in Economics.

Referência

Paul Singer. Dominação e desigualdade. Estudos sobre a desigualdade da Renda. Organização: André Singer, Helena Singer e Suzana Singer. São Paulo, Unesp/Fundação Perseu Abramo, 2024, 304 págs.

O prêmio Nobel de economia, por Michael Roberts

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Michael Roberts – A Terra é Redonda – 16/10/2024

É preciso dizer que as teorias que avançam para a “recuperação do atraso” são vagas e, como tais, pouco convincentes

Daron Acemoglu, Simon Johnson e James A. Robinson receberam, agora em 2024, o prêmio Nobel (que, na verdade, é o prêmio Riksbank) de Economia “por seus estudos sobre a formação das instituições e sobre como elas afetam a prosperidade”. Daron Acemoglu e Simon Johnson são professores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts. James Robinson é professor da Universidade de Chicago, também nos Estados Unidos.

Eis o que os árbitros do Nobel dizem sobre o motivo da premiação: “Hoje, 20% dos países considerados mais ricos são cerca de 30 vezes mais ricos do que os 20% tomados como os mais pobres. As disparidades de renda entre os países têm sido fortemente persistentes nos últimos 75 anos. Os dados disponíveis também mostram que as disparidades de renda entre os países cresceram nos últimos 200 anos. Por que as diferenças de renda entre os países são tão grandes e por que elas são tão persistentes?”

“Os laureados deste ano foram pioneiros em uma nova abordagem que se mostrou capaz de fornecer respostas quantitativas e confiáveis para essa questão, que é obviamente importante para a humanidade. Eles examinaram empiricamente o impacto e a persistência das estratégias de desenvolvimento econômico adotadas por muitos países de baixa renda após a libertação do colonialismo. Verificaram, desse modo, que muitos deles criaram ambientes institucionais que classificaram de extrativistas. A ênfase no uso de dados históricos para apreender os experimentos institucionais, deu início a uma nova tradição de pesquisa que continua a ajudar a descobrir os impulsionadores históricos da prosperidade – ou de sua falta”.

“As pesquisas desses economistas se concentram na ideia de que as instituições políticas moldam de modo fundamental as condições que permitem a geração da riqueza das nações. Mas o que molda essas instituições? Empregando o saber existente no campo da ciência política sobre a reforma democrática, largamente baseado na teoria dos jogos, Acemoglu e Robinson desenvolveram um modelo dinâmico no qual a elite dominante toma decisões estratégicas sobre instituições políticas – particularmente sobre os processos eleitorais – em resposta às ameaças emergentes periodicamente. Essa estrutura teórica agora é padrão para analisar a reforma institucional política. E ela tem impactado significativamente no desenvolvimento da pesquisa nesse campo. Ora, as evidências estão aumentando em apoio a uma das principais implicações do modelo: governos mais inclusivos promovem o desenvolvimento econômico”.

Ora, o que eu mesmo descobri examinando os ganhadores anteriores é que o vencedor ou a vencedora (mais raramente) – qualquer que seja a qualidade de seu trabalho – recebeu o prêmio não pelo melhor, mas geralmente pela pior parte de sua pesquisa. Eis que os trabalhos ganhadores sempre confirmavam a visão dominante sobre o mundo econômico atualmente existente, mesmo se não ia muito longe na compreensão das suas contradições inerentes.

Acho que essa conclusão se aplica aos últimos vencedores acima referidos. O trabalho pelo qual eles receberam o prêmio de um milhão de dólares consiste em pesquisas cujo sentido foi mostrar que os países que alcançaram a prosperidade e acabaram com a pobreza são aqueles que adotaram a “democracia”. Por democracia, entenda-se a democracia liberal de estilo ocidental, onde as pessoas podem falar (principalmente), podem votar em políticos profissionais, esperando que as leis protejam as suas vidas e propriedades (isso é bem esperado).

Nessa perspectiva, as sociedades que são controladas por elites que não tem qualquer responsabilidade democrática, que promovem a mera extração de recursos, que não respeitam a propriedade e o valor gerado na passagem do tempo, não prosperam. Os ganhadores do Nobel provaram essa tese por meio de uma série de artigos em que são apresentadas análises empíricas, as quais mostram a existência de correlação entre democracia (conforme definida) com os níveis de prosperidade.

De fato, os ganhadores do Nobel argumentam que a colonização do Sul Global nos séculos XVIII e XIX poderia ter sido “inclusiva”. Os países da América do Norte, por terem sido “inclusivos” se transformaram em nações prósperas (nessa prosperidade deve ser excluída, obviamente, a população indígena). Já os países do Sul, por terem sido “extrativistas”, permaneceram na pobreza (América Central e do Sul) ou mesmo na extrema pobreza (África). Para eles, tudo depende das instituições assim classificadas. Essa é a teoria que defendem.

Esse tipo de análise econômica é dito institucionalista. Ela prega que não são as forças cegas do mercado e da acumulação de capital que impulsionam o crescimento (e as desigualdades), mas as decisões e as superestruturas construídas pelos atores sociais. Com apoio nesse tipo de modelo, os atuais vencedores afirmam que as revoluções precedem as mudanças econômicas; para eles, não são as mudanças econômicas (ou a falta delas antes que um novo ambiente econômico seja criado) que precedem as revoluções.

Dois pontos decorrem dessa análise. Eis o primeiro deles: se o crescimento e a prosperidade andam de mãos dadas com a “democracia”, como explicar o sucesso de países como a União Soviética, China e Vietnã se eles têm supostamente elites “extrativistas” e/ou antidemocráticas? Como esses nobres ganhadores de prêmios Nobel explicam tais desempenhos econômicos indubitáveis?

Aparentemente, eles o explicam pelo fato de que saíram de uma condição de extrema pobreza copiando tecnologia dos países mais desenvolvidos; contudo, após os primeiros saltos, o caráter extrativista de seus governos passa a fazer com que percam força? Bom, talvez acreditem que o hipercrescimento da China vai perder força logo. Talvez, isso esteja ocorrendo agora!

Em segundo lugar, é correto dizer que revoluções ou reformas políticas são necessárias para colocar as coisas no caminho da prosperidade? Bem, pode haver alguma verdade nisso: a Rússia do início do século XX chegaria aonde está hoje sem a revolução de 1917; a China, explorada pelo imperialismo britânico, chegaria ao ponto em que chegou, agora em 2024, sem a revolução de 1949. Ora, esses nobres ganhadores de prêmios Nobel não se referem a tais exemplos: eles preferem a Grã-Bretanha e os Estados Unidos como exemplos de países vencedores.

Contudo, o estado da economia, a forma como funciona, o investimento e a produtividade da força de trabalho também têm um efeito no progresso das nações. O capitalismo e a revolução industrial na Grã-Bretanha precederam a mudança em direção sufrágio universal, que só veio depois, após muita luta. A Guerra Civil Inglesa da década de 1640 lançou as bases políticas para a hegemonia da classe capitalista na Grã-Bretanha, mas foi a expansão do comércio (inclusive de escravos) e a colonização no século seguinte que produziram a prosperidade econômica.

A ironia deste prêmio é que o melhor trabalho de Acemoglu e Johnson veio somente mais recentemente. Mas os avaliadores do prêmio se concentraram em trabalhos mais antigos desses pesquisadores. Apenas no ano passado, os autores publicaram o livro Poder e progresso (Objetiva) (Power and Progress), no qual apresentam a contradição presente nas economias modernas entre a tecnologia que aumenta a produtividade do trabalho, mas também tende a elevar a desigualdade e a pobreza. É claro que as soluções políticas que propõem não tocam na questão da mudança nas relações de propriedade, mesmo se recomendam que precisa haver um maior equilíbrio distributivo entre o capital e o trabalho.

A favor dos vencedores deste ano vem o fato de que as suas pesquisas tentam entender o mundo econômico e o seu modo de desenvolvimento, ao invés de estabelecer algum teorema misterioso de equilíbrio, tal como já ocorreu. Muitos vencedores anteriores foram homenageados por tal tipo de contribuição esotérica. Contudo, é preciso dizer que as teorias que avançam para a “recuperação do atraso” são vagas (ou “contingentes” como eles próprios se referem) e, como tais, pouco convincentes.

Acho que há explicação muito melhor e bem mais persuasiva sobre o processo de recuperação do atraso econômico (ou do fracasso em obtê-lo) no recente livro dos economistas marxistas brasileiros Adalmir Antônio Marquetti, Alessandro Miebach e Henrique Morrone. Eis que eles produziram um livro importante e muito perspicaz sobre o desenvolvimento capitalista global. Criaram inclusive uma maneira inovadora de medir o progresso da maioria da humanidade no chamado Sul Global que almeja, sem poder, “recuperar o atraso” em relação aos padrões de vida em vigor no “Norte Global”.

O livro deles, Desenvolvimento desigual e capitalismo – Alçando ou ficando para trás na economia global (Unequal Development and Capitalism – Catching Up and Falling Behind in the Global Economy, Routledge), lida com várias variáveis que os atuais ganhadores do Nobel ignoram, ou seja, produtividade do trabalho e do capital, taxa de acumulação, troca desigual, taxa de exploração – bem como com o fator institucional mais importante, isto é, aquele que define quem controla o excedente, se esse controlador é de dentro ou de fora.

*Michael Roberts é economista. Autor, entre outros livros, de The great recession: a marxist view (Lulu Press)

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

 

Carta aberta ao Conselho Monetário Nacional, por Vários autores.

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Meta de inflação excessivamente baixa coloca pressão adicional sobre setores cujos preços não apresentam essa rigidez; propomos mudar de 3% para 4%

Folha de São Paulo, 16/10/2024

VÁRIOS AUTORES (nomes ao final do texto)

Nos anos de 2021 e 2022 a inflação anual atingiu, respectivamente, 10% e 5,8%, fazendo com que, em 2023, no início de um novo governo, houvesse grande cautela quanto à revisão da meta de inflação. O descontrole dos preços produz distorções econômicas e sociais.

Passados quase dois anos, porém, a meta de 3% está se mostrando disfuncional. Há no mundo um consenso de que o objetivo econômico de estabilidade de preços não corresponde a uma inflação zero, mas, sim, a uma inflação suficientemente baixa. A reflexão sobre qual número representa esse conceito deve ser encarada com naturalidade.

O saudável funcionamento de uma economia de mercado requer que exista flexibilidade para a variação de preços relativos. Entretanto diferentes países carregam diferentes legados de rigidez e indexação. Na economia brasileira ainda há muitos resquícios de indexação formais e informais, como no caso conhecido de aluguéis residenciais.

Em uma economia na qual os conjuntos de preços rígidos para baixo ou indexados à inflação passada correspondam a uma parcela importante dos índices de preços, uma meta de inflação excessivamente baixa coloca uma pressão adicional sobre os setores cujos preços não apresentem essa rigidez. Mais especificamente, para a inflação de serviços e preços monitorados cair de forma mais significativa, seria necessária uma economia mais desindexada.

A dificuldade em levar a inflação a 3% no Brasil consiste em que, mesmo com as taxas de juros reais elevadíssimas —atualmente entre 6% e 7%—, o consenso de mercado aponta que a inflação será de 4% em 2025, 3,6% em 2026 e 3,5% em 2027. Ou seja, não se trata de uma postura leniente do Banco Central, mas sim de uma resistência objetiva do sistema de preços do país.

Desde o início do regime de metas de inflação, em 1999, são raríssimos os períodos em que a inflação situou-se abaixo de 3%; em geral, isso só ocorreu quando o desemprego era bastante elevado. Soma-se a isso os efeitos da crise climática, com impactos sobre energia e alimentos, dificultando ainda mais a redução da inflação para este patamar.

A meta de inflação de 3% mostra-se assim excessivamente baixa para uma economia com as características da brasileira. Persistir com a atual meta requereria uma taxa de desemprego desnecessariamente elevada e manutenção de juros altos por tempo excessivo, com efeitos negativos sobre os indicadores sociais, o endividamento das famílias, a taxa de investimento e o crescimento econômico de longo prazo.

Assim, propomos que a meta de inflação passe de 3% para 4%, de modo a permitir um crescimento mais equilibrado da economia brasileira —sem abrir mão, todavia, do objetivo da estabilidade de preços.

As discussões sobre política monetária podem envolver diferenças teóricas e em relação a arcabouços de gestão monetária e mesmo quanto a prioridades dos objetivos de tal política. Esta carta não trata disso, mas propõe apenas um ajuste técnico dentro do arcabouço vigente; um ajuste pequeno e viável, mas necessário e de grande importância.

Luiz Gonzaga Belluzzo
IE/Unicamp

Carmem Feijó
UFF

Demian Fiocca
FEA/USP

Fernando Ferrari Filho
FCE/UFRGS

Gilberto Tadeu Lima
FEA/USP

Leda Paulani
FEA/USP

Lena Lavinas
IE/UFRJ

Luiz Fernando de Paula
IE/UFRJ

Nelson Marconi
Eaesp/FGV

 

O avesso da pele, de Jeferson Tenório

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 Por Marcos Rolim – Extra Classe – 15/03/2022

O Avesso da Pele permite compreender como é ser negro no Brasil, de uma forma como poucas vezes se conseguiu fazer. Nesse particular, talvez não estejamos apenas diante de um ótimo romance, mas de uma obra de importância histórica”

Desde o seu lançamento pela Companhia das Letras, em 2020, o livro O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, já recebeu várias resenhas elogiosas, além do reconhecimento nos meios literários brasileiros, tendo sido o grande vencedor do Prêmio Jabuti de 2021. Por que, então, retomar essa obra? Bem, os motivos são vários, mas o mais importante deles é que o tema do livro constitui um dos desafios centrais da civilização brasileira e, nesse sentido, podemos e devemos voltar a ele muitas vezes, para que mais pessoas descubram a prosa contundente e terna de Tenório, para que mais leitores possam ter o mesmo impacto de olhar o mundo pela perspectiva daqueles que são permanentemente deslocados do direito e do reconhecimento.

Avesso da Pele permite compreender como é ser negro no Brasil, de uma forma como poucas vezes se conseguiu fazer. Nesse particular, talvez não estejamos apenas diante de um ótimo romance, mas de uma obra de importância histórica, notadamente se tivermos presente a realidade cultural do Rio Grande do Sul, em que as contribuições das culturas de matriz africana têm sido sistematicamente desconsideradas, quando não apagadas pelo discurso oficial.

O romance reconstitui a trajetória de uma família negra, até a morte de Henrique, professor universitário, em uma estúpida ação policial. Nesse percurso, além das dificuldades vividas pelos personagens, temos o desvendamento de diferentes manifestações do racismo em situações do cotidiano, desde passagens que mostram o preconceito na linguagem, até a violência aberta, o que nos oferece um espelho dolorido onde é impossível não nos vermos. Nós, os leitores brancos, estamos ali o tempo todo; em cada comentário racista que já presenciamos e calamos; em cada ausência de pessoas negras que não nos perturbou; em cada surpresa diante de uma pessoa negra ocupando uma posição de destaque; em cada sentimento de medo diante dos riscos reais ou imaginários nas ruas; em cada desconhecimento sobre ações afirmativas e em cada idiotice repetida sobre “racismo reverso” e outros mitos que transitam pelos labirintos da irreflexão.

O racismo, ao contrário do que se consolidou no senso comum, não pode ser compreendido como a expressão de ações ou valores assumidos por “pessoas racistas”. Muito além do mal que, eventualmente, pessoas racistas podem produzir, o racismo é uma estrutura da sociedade brasileira, tão operante quanto outras como a desigualdade social, por exemplo. No centro do racismo estrutural, há a noção de “outridade”, como utilizada por Grada Kilomba, como materialização dos significados reprimidos da sociedade branca. Nesse processo, a pessoa negra é percebida como “a diferente”, como “a outra”, o que lhe assegura imediatamente o espaço da intrusa, como alguém “fora do lugar”. O negro/a negra são o outro da branquitude, sendo, na verdade, definidos por ela, porque as pessoas só se percebem negras quando nomeadas como tal, o que pressupõe relações sociais em que há o poder dessa designação. Chimamanda Ngozi Adichie, em Americanah, traduz essa noção pela protagonista do romance que só passou a se conceber como negra quando foi morar nos Estados Unidos. Antes disso, vivendo na Nigéria, era apenas uma pessoa como todas as demais. Nós, os brancos, não nos concebemos como brancos, porque vivemos em uma sociedade em que nossa cor nos assegura privilégios, e esse é um processo que dispensa pessoas racistas, porque se nutre de uma estrutura social racista.

Jeferson Tenório constrói seu enredo com uma linguagem cristalina, com a qual vai mostrando a saga de pessoas negras sempre em movimento e que, mesmo sendo parte do universo da inclusão social, como integrantes das classes médias, seguem expostas ao preconceito e às possibilidades trágicas da violência. O “avesso” diz respeito àquilo que o pai, Henrique, possui de substancialmente humano e, por extensão, àquilo que todas as pessoas negras – no lado inverso das características racializadas – são como pessoas.

Além da história, como ocorre com as grandes obras, o texto de Tenório agrega um potencial reflexivo autônomo a partir de determinadas “janelas”. Assim, por exemplo, na página 85, o narrador assinala: “Quando uma pessoa branca nos elogia, nunca saberemos se aquilo é sincero, ou apenas uma espécie de piedade, ou para não se sentir culpada, ou mesmo para não ser acusada de racismo. Não sabemos avaliar nosso fracasso. Porque é tentador atribuir todas as nossas fraquezas e nossas falhas ao racismo”. Para, logo adiante, concluir: “E essa é a perversidade do racismo. Porque ele simplesmente te impede de visitar os próprios infernos”. Há outros momentos luminosos como esse, em que a história respira para que o autor possa trançar suas próprias ferramentas teóricas.

No momento em que o Brasil testemunha a reiteração da brutalidade racial e a naturalização do assassinato de corpos negros e indígenas, resultados cada vez mais decorrentes de uma necropolítica, o livro de Tenório adquire um significado ainda maior, como arte transformadora, expressão do casamento da beleza com a promessa emancipatória.

Marcos Rolim é jornalista, doutor em Sociologia. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.

 

Equívocos da crítica à financeirização, por Fernando Nogueira da Costa

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 A Terra é Redonda – 14/10/2024

Uma crítica mais bem fundamentada requereria considerar não apenas aspectos negativos, mas também benefícios potenciais da dita “financeirização”

A literatura de denúncia crítica à “financeirização” — o processo pelo qual os mercados, as instituições e as motivações financeiras se tornariam predominantes na economia — questiona os efeitos do crescimento do classificado por ela como “setor” financeiro (e não um sistema econômico-financeiro emergente de interações entre todos os agentes econômicos) sobre a produção, distribuição de renda e desigualdade. Alguns equívocos ou simplificações são frequentes nas abordagens críticas à financeirização e merecem, por sua vez, ser criticados.

Um erro comum é supor a financeirização se referir simplesmente ao aumento do tamanho do setor (sic) financeiro em relação à economia real, isto é, o setor produtivo para os denunciantes. A crítica, demonstrando preconceito moralista ou religioso medieval (antes da Teologia da Prosperidade), trata qualquer crescimento nas atividades financeiras como inerentemente negativo.

Ora, desde quando foi emergindo o sistema capitalista, a partir de fundações de bancos para financiar o comércio – a Casa di San Giorgio, fundada em 1406 na cidade de Gênova, na Itália, um importante centro comercial no início da Renascença, é considerada a primeira instituição financeira dessa história ocidental –, houve a interpenetração do capital financeiro em outras atividades econômicas, incluindo empresas não financeiras, famílias, governos e o “exterior”.

O crescimento dos mercados financeiros e o recurso aos instrumentos financeiros não são, por si só, problemáticos. Eles produzem bons resultados econômicos ao permitir maior liquidez, diversificação e proteção (por exemplo, via hedge cambial) de riscos, além de financiamento para alavancagem financeira de investimentos produtivos. A soma de recursos de terceiros aos recursos próprios resulta em maior economia de escala. O novo lucro operacional, superando as despesas financeiras, propicia maior rentabilidade patrimonial sobre o capital próprio.

No entanto, os críticos contumazes acham a financeirização favorecer a acumulação de capital financeiro às custas da produção real. Essa visão subestima o papel crucial do sistema financeiro na intermediação de recursos entre poupadores e investidores. Ao mobilizar a poupança aplicada em investimentos financeiros (fontes de funding) em direção a crédito para empreendimentos produtivos, o sistema financeiro é fundamental para o crescimento econômico.

A financeirização, analisada em sua dimensão positiva, permite a mais segura alocação de capital, com a avaliação de riscos ao financiar inovações e o desenvolvimento de novas tecnologias. É necessário diferenciar entre a negociação de ativos existentes (estoque de patrimônios privados) e a criação de ativos novos, geradores de empregos e fluxos de renda. Ambos acontecem de maneira cíclica.

Quando o valor de mercado não bem fundamentado cai abaixo do custo de produzir novos ativos, o crescimento estanca, em depressão, devido a esse custo de oportunidade. Quando o valor de mercado de ativos existentes volta a superar o custo de produção de ativos novos, a economia retoma o crescimento. Atos voluntários de todos os agentes resultam nesse ciclo econômico.

Muitas análises críticas da financeirização tratam o fenômeno como algo autônomo, ignorando sua relação com o processo de globalização econômica. Na realidade, a financeirização está profundamente interligada com a globalização, por esta ter ampliado os fluxos de capital entre fronteiras e facilitado a participação acionária de estrangeiros, destacadamente investidores institucionais como fundos de pensão de trabalhadores ou fundos de investimentos de famílias.

Desconsiderar essa relação global resulta em uma visão limitada das causas e efeitos da financeirização na economia contemporânea. Parte dela é uma resposta à necessidade de gestão de riscos, em um ambiente globalizado, onde empresas e governos enfrentam pressões para se proteger diante flutuações cambiais, crises de crédito e volatilidade de mercados internacionais.

Um problema monetário difícil de superar é a dupla assimetria cambial: moeda nacional apreciada (barateadora de importação) diante outra moeda nacional depreciada (favorável à exportação) como a da China. Evita a inflação importada no Brasil, mas as indústrias transnacionais aqui instaladas não conseguem gerar aumentos de produtividade capazes de superar as vantagens de preço conferidas por altos diferenciais de câmbio entre as moedas dos países.

Outro equívoco recorrente é achar todas as empresas não financeiras adotarem a financeirização de maneira homogênea, supostamente priorizando a maximização de valor para os acionistas em detrimento de investimentos produtivos. Essa dinâmica varia amplamente entre setores produtivos e tipos de empresas, por exemplo, familiares fechadas ou sociedades abertas.

Empresas multinacionais utilizam estratégias financeiras avançadas como hedge cambial ou gestão de fluxo de caixa sem comprometer investimentos produtivos. Portanto, reduzir a financeirização corporativa à simples priorização de dividendos ou recompra de ações ignora as necessidades de complexas interações entre estratégias financeiras e decisões produtivas na economia globalizada como onde é vantajoso produzir máquinas e equipamentos e onde importá-los.

É comum a crítica atribuir à financeirização a um avanço no aumento da desigualdade socioeconômica. A pobreza (carência de fluxo de renda) é superável, mas a desigualdade em termos de acumulação de estoque de riqueza não é.

Esta desigualdade é resultado de múltiplos fatores, por exemplo, desigualdade educacional, mudanças tecnológicas, fases de vida com tempo de acumulação de juros compostos, heranças etc. A financeirização contribui para a concentração de riqueza entre os detentores de capital, mas é resultante do incentivo ao trabalho, em sociedade capitalista, ser o acúmulo de reservas financeiras para a aposentadoria e o pagamento de cuidadores da demência sofrida na velhice.

Além disso, a financeirização permite o acesso ao crédito para famílias adquirir moradias e veículos e/ou empreender em pequenas empresas. Oferece oportunidades de mobilidade social e desenvolvimento humano.

Muitas abordagens críticas focam apenas nos bancos e nas empresas, negligenciando o fato de a financeirização envolver famílias e consumidores como participantes ativos, especialmente, por meio do crédito ao consumo, financiamento imobiliário e investimentos pessoais. A conquista da cidadania financeira aumentou o acesso das famílias a crédito, gestão do dinheiro com produtos financeiros e sistemas de pagamentos, ampliando o bem-estar social.

A crítica muitas vezes simplifica o conceito de financeirização, associando-o exclusivamente à especulação e à criação de bolhas de ativos. Embora esses fenômenos ocorram, a financeirização também inclui a criação de mecanismos de gestão de risco, como derivativos, para estabilização dos fluxos de capital.

Focar apenas no aspecto especulativo ignora os avanços positivos em termos de inovação financeira para melhorar a capacidade de gestão de risco das empresas e governos. A visão puramente negativa da financeirização obscurece a razão.

As críticas à financeirização tratam o sistema financeiro como uma entidade monolítica. No entanto, ele é composto por uma variedade de instituições (bancos comerciais, bancos de investimento, fundos de pensão, seguradoras, fintechs etc.), cada qual operando de formas distintas e com diferentes incentivos. Essa diversidade é ignorada ao tratar tudo como fosse um único fenômeno.

Além disso, o comportamento financeiro varia de acordo com as estruturas regulatórias e culturais de diferentes países. Países com sistemas financeiros mais regulados, como Alemanha ou Japão, apresentam uma relação diferente entre o setor financeiro e a economia real, em comparação com economias mais liberalizadas, como a da economia de mercado de capitais dos Estados Unidos.

A crítica à financeirização fica perplexa diante os efeitos potencialmente desestabilizadores ou cíclicos de um sistema econômico-financeiro, especialmente quanto à especulação descolada de fundamentos, crises de inadimplência no crédito e aumento da desigualdade com enriquecimento financeiro.

Há vários equívocos recorrentes ao simplificar a complexidade do fenômeno, como confundir financeirização com a simples expansão do sistema financeiro, subestimar o papel positivo da intermediação financeira, e ignorar a diversidade de comportamentos entre empresas, famílias, governos, instituições financeiras e economia globalizada.

Uma crítica mais bem fundamentada requereria considerar não apenas aspectos negativos, mas também benefícios potenciais da dita “financeirização”, especialmente quando adequadamente regulada e supervisionada pelo Banco Central. Em economia capitalista, não é possível encontrar um equilíbrio contínuo entre inovação financeira e estabilidade econômica, mitigando os riscos sistêmicos, ao restringir o papel positivo dos instrumentos financeiros na economia. A vida financeira é cíclica e difícil. É necessário saber lidar com ela…

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP).

 

Dia dos professores!

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Nesta data comemoramos o Dia dos Professores.

Neste momento recebemos inúmeras homenagens pelas redes sociais, mensagens que mostram a importância e a centralidade da profissão dos professores na sociedade contemporânea.

Sabemos da relevância do profissional da educação e do conhecimento, vivemos numa sociedade que muitos especialistas descrevem como a Era do Conhecimento, onde a educação é fundamental para o desenvolvimento do ser humano, mas neste cenário, percebemos que entre o discurso e a prática encontramos um grande hiato.

As grandes descobertas do conhecimento pavimentaram espaços sagrados do desenvolvimento da tecnologia, novos produtos, mercadorias e bens estão circulando na sociedade mundial, com avanços da logística internacional, dos novos modelos de negócios e dos novos materiais que estão revolucionando as sociedades e as comunidades locais e regionais.

Vivemos numa sociedade em que poucos querem aprender, poucos querem encarar o desafio do conhecimento, poucos querem fazer esforços continuados para alçar novos espaços profissionais, na maioria os cidadãos querem colher sem esforço, querem uma boa condição financeira sem se debruçar na busca do conhecimento humano, da ciência e das reflexões críticas.

Invejamos os chamados empreendedores dotados de grande mérito e resiliência, que seus casos circulam todos os dias nos meios de comunicação, sendo estudo de caso de sucesso e de perseverança, mas nos esquecemos dos milhares de indivíduos que se esforçam cotidianamente e não conseguem acesso aos espaços do enriquecimento, de fama e de projeção social. Diante disso, para onde estamos caminhando com essas escolhas cotidianas….

Todas as nações que conseguiram alçar espaços de desenvolvimento econômico fizeram, antes de mais nada com fortes investimentos em educação e formação de mão-de-obra qualificada e altamente capacitada, neste momento que percebemos a relevância do professor, como educador, como exemplo e como instrumento de capacitação da sociedade, garantindo condições dignas e decentes para os cidadãos e novas formas perspectivas para um futuro imediato, marcado por incertezas crescentes e grandes instabilidades.

Algumas nações, infelizmente, não conseguiram compreender o papel central da educação e do professor neste cenário, como forma de construir cidadãos, adotando políticas de degradação dos salários dos profissionais da educação, afugentando profissionais altamente qualificados para outras atividades, criando bônus inatingíveis, cargas horárias de trabalhos escorchantes, situações inóspitas de trabalhos e condições indignas, com isso, a educação perde sua relevância social e contribuem ativamente para a perpetuação das desigualdades sociais.

Neste momento, embora recebamos inúmeras mensagens de estímulos e valorização, os professores se encontram num momento inóspito para a categoria, nosso sindicato perde relevância todos os momentos, o poder do capital destrói os instrumentos de solidariedade, transformando trabalhadores que brigam uns com os outros, deixando rastros de desesperança, de rancores e ressentimentos… Triste as nações que perdem as capacidades de construir sonhos e desenvolver esperanças, estamos caminhando a passos largos a degradações morais. A educação tem condição de melhorar o ambiente e criar novos espaços de desenvolvimento civilizacional, nunca esqueçamos disso!

Ary Ramos da Silva Júnior, Doutor em Sociologia e professor universitário a vinte sete anos.

 

 

 

 

Riqueza é distribuída pelo mérito ou pelo privilégio? por Michael França

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Parte considerável da alocação dos recursos pouco tem a ver com o trabalho duro

Michael França, Ciclista, vencedor do Prêmio Jabuti Acadêmico, economista pela USP e pesquisador do Insper. Foi visiting scholar nas universidades de Columbia e Stanford

Folha de São Paulo, 15/10/2024

A vida não é apenas o que você faz, mas também de onde você começou. Imagine um jovem que cresceu em um bairro rico, com escolas de qualidade, desfrutando de bons contatos e amplo apoio financeiro.

Agora pense em outro que nasceu em uma família pobre, frequentou escolas ruins e está imerso em um ambiente que pouco contribui para seu desenvolvimento pessoal. Esses dois jovens podem ter os mesmos sonhos e a mesma capacidade, mas as probabilidades estão fundamentalmente a favor de um deles.

A questão é que esse tipo de vantagem não é conquistada, ela é herdada. Isso não significa que muitos daqueles que estão em uma posição favorecida não se esforçaram. No entanto, significa que eles tiveram um empurrãozinho a mais. E, enquanto chamarmos essa vantagem de “meritocracia”, estaremos negligenciando as verdadeiras forças das desigualdades que moldam nossas vidas.

Grande parte dos recursos não é distribuída com base no esforço individual. Ela é distribuída por um sistema que, por décadas e gerações, favoreceu alguns em detrimento de outros. A isso chamamos de privilégio.

Mas não me entendam mal. O mérito é importante. A ética do trabalho é importante. Contudo precisamos reconhecer que as portas do progresso nunca foram realmente abertas para os brasileiros que perderam na loteria do nascimento. Precisamos admitir que essas portas não dependem de o quão forte você bate, mas de quem segurava as chaves desde o começo.

Apesar disso, algumas vezes ouvimos histórias sobre pessoas que conseguiram superar adversidades e realizar grandes feitos. E não há dúvidas de que essas pessoas são admiráveis. Elas nos inspiram, mostrando o poder da resiliência e do esforço. No entanto, precisamos ser honestos e encarar a realidade.

A realidade é que, para cada história de sucesso que ouvimos, existem milhares que não tiveram a mesma sorte. Há milhares que deram o melhor de si e trabalharam duro, mas enfrentaram dificuldades que os deixaram pelo caminho.

Quando alguém consegue avançar, devemos celebrar. Porém também precisamos lembrar que essas pessoas são a exceção, não a regra. Quando olhamos apenas para as exceções, estamos nos enganando. E um país que se engana nunca conseguirá progredir.

Se focarmos apenas nas poucas histórias de sucesso, correremos o risco de ignorar os muitos que ficaram para trás. Estamos falando aqui de milhares de mulheres e homens talentosos, jovens cheios de sonhos, que não conseguiram alcançar seu potencial. E não foi por falta de vontade.

O verdadeiro desafio de uma nação não é produzir alguns exemplos para dizer que o sistema funciona. O desafio é reformar o sistema para que ele funcione para todos. Para que não precisemos mais nos contentar com as poucas histórias de exceção, mas possamos nos orgulhar da construção de um país onde qualquer um, independentemente do local de nascimento, tenha as mesmas chances de sucesso em suas escolhas.

 

China – qual socialismo? por Elias Jabbour

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 A Terra é Redonda – 20/07/2021

Considerações sobre a natureza da formação econômico-social chinesa.

A natureza do processo de desenvolvimento chinês por si é motivo de imensas e apaixonadas polêmicas, sendo a principal delas a que se refere à natureza de sua formação econômico-social. Socialismo ou capitalismo. Não seria demais advertir que a colocação da questão nestes termos não tem sentido marxista, pois se remete mais ao “princípio da identidade” de Kant do que à “correlação múltipla dos fenômenos”.

Uma realidade não é capitalista ou socialista à priori. Ela é fruto da combinação de diferentes modos de produção coetâneos, mas não contemporâneos dando forma e conteúdo a formações sociais específicas. O socialismo de mercado chinês, a nós, seria uma tipologia nova de formações econômico-sociais.

Tomar a realidade partindo deste nível de abstração demanda visão de processo histórico como antídoto aos famosos “check-lists” positivistas que encerram a velha mania da ciência social ocidental (incluindo os influenciados por Marx) de buscar classificar e organizar critérios para todo fenômeno diante de si. O contrário seria o correto: o conceito se realiza no movimento real. Neste sentido não seria nenhum exagero afirmar que a China, e o movimento que seu processo de desenvolvimento encerra, acumula material suficiente para voltarmos a problematizar o socialismo em termos dialéticos, por dentro do real e não como um ideal abstrato.

No fundo a questão não é refazer o que Marx (não) fez quando o assunto é socialismo. O problema é encontrarmos a forma histórica presente mais próxima daquilo que ele definiu um dia como socialismo (superação da divisão social do trabalho, abolição das classes e da propriedade privada). O preço a se pagar politicamente por se fixar em arquétipos é muito alto.

É o preço de se esquivar diante da realidade que devemos transformar. O que na verdade os comunistas chineses estão conseguindo com muita capacidade. De país mais pobre do mundo em 1949 ao fim da pobreza extrema em um país com as peculiaridades geográficas e diferenciais regionais de produtividade não é algo qualquer. Talvez seja o maior feito da história humana em séculos. Fruto de uma força política chamada Partido Comunista e que reivindica a si o comando de um processo que eles dão o nome de socialismo.

Voltando à questão da natureza da formação econômico-social chinesa. O critério primário para isso é o poder político. Encontrar alguma formação econômico-social onde o poder político está comprometido e dispõe dos elementos essenciais para alcançar determinados objetivos. Poder político não se exprime em “novas relações sociais de produção”. Poder político se exprime em novas relações de propriedade. O banimento de Hegel no ocidente levou a uma apropriação utopista do marxismo feita por acadêmicos e marxistas ocidentais. Ao colocar o pensamento à frente da matéria, percebe-se que uma nova sociedade já nasce sob bases próprias, ou relações sociais avançadas na primeira hora. Quando na verdade a grande questão é a base material que serve de suporte ao poder político.

Trata-se de uma forma sútil de negar a política e se refugiar no “ardil do conceito” hegeliano. Novas relações sociais não surgem fora dos marcos da propriedade pública e essa propriedade deve ter um grau de produtividade do trabalho maior que a propriedade privada. O próprio Marx nos adverte sobre o fato de novas relações sociais não surgirem sem antes as forças produtivas que a sustentam não terem se esgotado. Do ponto de vista político impor relações sociais novas em forças produtivas inexistentes abre campo à reação e ao fascismo. Mas esse é um outro ponto, do qual poderemos nos concentrar em outro momento tamanha a sua importância.

Muitos dos problemas do socialismo decorrem desta forma equivocada, tomando a nuvem por Juno. O papel do poder político de novo tipo é elevar o grau das forças produtivas, montar uma muralha de aço para sua autodefesa. As relações de produção têm relação de efeito a este movimento. Trata-se de pontos interessantes para começar a pensar a China como uma gigantesca experiência socialista.

Por exemplo, por que não pensar na grande empresa ou corporação empresarial estatal mediada e voltada para grandes tarefas postas pelo Partido Comunista como uma interessante forma histórica de propriedade? E como caracterizar uma formação econômico-social onde o núcleo da economia é este tipo de propriedade (no caso chinês, 96 conglomerados empresariais estatais)?

E onde é este tipo de propriedade a geradora dos ciclos de acumulação na economia em oposição às formações econômico-sociais de tipo capitalista onde o Estado induz, mas é o setor privado o gerador destes ciclos? As possibilidades abertas por um poder exercido pelo Partido Comunista baseado na grande produção e finanças estatais não seria uma forma histórica orientada a superação de antigas formas, baseadas na grande propriedade privada? Ou nos refugiaremos no “super-trunfo” para quem os problemas do socialismo se resolvem, à priori (nada positivista…) com “poder operário” e “democracia”?

Nos últimos 20 anos a China construiu cerca de 40 mil quilômetros de trens de alta velocidade. Ao lado disso tecnologias disruptivas (plataforma 5G, Big Data e Inteligência Artificial) surgidas no seio dos grandes conglomerados empresariais estatais elevaram em demasia a capacidade de planificação do Estado chinês. Em outras palavras: elevou-se a capacidade humana de intervir na natureza, o que significa mudança qualitativa no modo de produção dominante àquela formação econômico-social com o surgimento de novas regularidades a serem decifradas pela ciência social moderna. A China, literalmente, arrasta para frente a fronteira das ciências humanas e sociais.

Pensar em termos científicos a formação econômico-social chinesa passa necessariamente pela apreensão do fato de diferentes modos de produção coabitarem em uma verdadeira unidade de contrários. O socialismo enquanto forma histórica que se realiza na grande propriedade pública e na planificação em nível superior não está alheios às contradições de ordem capitalista que por ali coexistem. Fetiche da mercadoria, consumismo, surgimento de bilionários e precarização do trabalho são fenômenos reais, não imaginários.

Talvez são estas contradições que servem de motor ao surgimento de novas soluções políticas e econômicas a determinadas questões. A elevação da regulação estatal sobre as fintechs e a aceleração de compras de ativos de empresas privada pelo Estado não demonstra somente ação política. Em movimento significa o próprio surgimento de novas formas históricas de propriedade não previstas em nenhum manual.

Finalizando esta breve discussão, fica uma questão e uma breve resposta. Qual a forma histórica correspondente ao socialismo em nosso tempo apontada pela experiência chinesa? Não tenho dúvidas que a elevação da capacidade de planificar a economia e basear a planificação no sentido de elaborar e executar grandes projetos pode ser a chave que nos encaminhe para um socialismo que tem na razão uma forma histórica em oposição à irracionalidade capitalista. Não estaríamos ressuscitando o velho Ignacio Rangel e observando na China o surgimento de uma “Nova Economia do Projetamento”? O projeto de uma ponte, viaduto ou milhares de linhas de trens de alta velocidade não passam de uma operação contábil ou em sua essência não estaria a realização do socialismo enquanto transformação da razão em instrumento de governo?

O socialismo é uma ciência. E como ciência devemos encará-lo. Ou não?

*Elias Jabbour é professor dos Programas de pós-graduação em Ciências Econômicas e em Relações Internacionais da UERJ. Autor, entre outros livros, de China Hoje – Projeto Nacional Desenvolvimento e Socialismo de Mercado (Anita Garibaldi).

 

O mito do desenvolvimento econômico, por Luiz Carlos Bresser-Pereira

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A Terra é Redonda – 13/10/2024

Considerações sobre o livro de Celso Furtado.

Em 1974, quando Celso Furtado publicou O mito do desenvolvimento econômico, ele estava preocupado com o problema dos recursos naturais não-renováveis que estabeleciam um limite para o crescimento da renda e do consumo no mundo – preocupação que se apoiava no livro recém-publicado, The limits of growth, preparado por um grupo interdisciplinar do M.I.T. para o Clube de Roma.[i]

No primeiro ensaio, que é também o mais importante do livro, o autor discute as mudanças que vêm ocorrendo no capitalismo e, em particular, o papel das grandes empresas, as corporações, nesse capitalismo. Mas esta discussão tem como objetivo mostrar como o caminho do desenvolvimento capitalista estava se transformando em um mito.

Logo no início do livro, Celso Furtado cita mitos como o do bon sauvage de Rousseau, a ideia do desaparecimento do Estado de Marx, a concepção walrasiana do equilíbrio geral, e afirma que “os mitos operam como faróis que iluminam o campo de percepção do cientista social, permitindo-lhe ter uma visão clara de certos problemas e nada ver de outros, ao mesmo tempo que lhes proporciona conforto, pois as discriminações valorativas que realiza surgem ao seu espírito como um reflexo da realidade objetiva” (p. 15).

A questão que Celso Furtado se põe é o que acontecerá para e economia mundial se o desenvolvimento econômico, que desde a Segunda Guerra Mundial se tornou o objetivo para o qual se voltam todos os povos, vier a ser bem-sucedido e lograr estabelecer um padrão de vida semelhante ao existente no mundo rico para todos. E sua resposta é clara: “se tal acontecesse a pressão sobre os recursos não-renováveis e a poluição do meio ambiente seriam de tal ordem que o sistema econômico mundial entraria necessariamente em colapso” (p. 19). Bastaria substituir ‘poluição’ por ‘aquecimento global’ e o problema se agravaria muito.

Para ele, seria ingênuo acreditar que o progresso tecnológico resolveria o problema. Sua aceleração está antes o agravando do que o resolvendo.

Para Celso Furtado, o capitalismo que surgiu depois da Segunda Guerra Mundial caracterizou-se pela unificação do centro, sob o comando dos Estados Unidos. Já se esboçava então, pela ação persistente do GATT, o processo de liberalização comercial que ganharia força total com a virada neoliberal de 1980. Ele observa que “não pode se afirmar que as transformações estruturais que então aconteciam hajam sido desejadas e muito menos planejadas pelos centros econômicos e políticos dos Estados Unidos” (p. 36). Foram antes pensadas, acrescentaria eu, por economistas neoclássicos e da escola austríaca que haviam ficado fora do mainstream acadêmico em 1930, ansiavam pela volta ao poder nas universidades. Eles encontraram um espaço favorável criado pela crise dos anos 1970.

Celso Furtado dá grande importância ao surgimento das grandes empresas internacionais e suas novas relações com a periferia. Ele afirma que “a evolução do sistema capitalista, no último quarto de século, caracterizou-se pela homogeneização e integração do centro, um distanciamento crescente entre o centro e a periferia e uma ampliação considerável do fosso que, dentro da periferia, separa uma minoria privilegiada e as grandes massas da população” (p. 46).

O pós-guerra foi um período de crescimento no centro e na periferia. “A intensidade do crescimento no centro condiciona a orientação da industrialização na periferia, pois as minorias privilegiadas desta última procuram reproduzir o estilo de vida do centro” (p. 46). Esta é uma afirmação que Celso Furtado repetirá muitas vezes em toda a sua obra. Para conquistar e manter esse privilégio, estas minorias passarem a se associar antes com a maioria privilegiada do centro do que com seus concidadãos. Dessa maneira, perdido o apoio da classe média e mesmo dos empresários industriais, o nacionalismo econômico ou desenvolvimentismo, que caracterizara o Brasil desde os anos 1930, começava a ser ameaçado.

Mas Celso Furtado está então mais preocupado com a pressão que o desenvolvimento no centro e na periferia estava fazendo sobre os recursos não-renováveis. Esta pressão decorre principalmente do consumo crescente de toda a população. Ele faz, então, uma série de cálculos sobre o montante desse consumo nos anos 1970 – nos quais ele estava.

Preocupa-se com a tendência da minoria privilegiada na periferia que representava 5% da população de mudar para 10%, e preocupa-se muito mais com a hipótese da homogeneização do consumo para todo o mundo. “A hipótese de generalização, no conjunto do sistema capitalista, das formas de consumo hoje prevalescentes nos países cêntricos não tem cabimento dentro das possibilidades evolutivas aparentes desse sistema… O custo, em termos de depredação do mundo físico, desse estilo de vida é de tal forma elevado que toda tentativa de o generalizar levaria inexoravelmente ao colapso de toda uma civilização” (p. 75).

É a partir daí que Celso Furtado conclui que o desenvolvimento econômico é um mito. “Sabemos agora de forma irrefutável que as economias da periferia nunca serão desenvolvidas, no sentido de similares às economias que ia o atual centro do regime capitalista. Cabe, portanto, afirmar que a ideia do desenvolvimento econômico é um simples mito” (p. 75).

Note-se que o mito não é o próprio desenvolvimento econômico, mas a “ideia” de que o desenvolvimento incluindo o alcançamento possível para os países da periferia do capitalismo. Esta ideia é uma parte importante da ideologia neoliberal que o centro transfere para a periferia. Se o Sul Global adotar o liberalismo econômico e rejeitar o desenvolvimentismo, ele estaria no caminho do melhor dos mundos possíveis do Dr. Pangloss.

Não estaria Celso Furtado sendo pessimista nessa matéria? Creio que sim. Para chegar à sua conclusão, ele se baseou em uma hipótese que não está se realizando e não terá condições de se realizar. Um grande número de países não está realizando o alcançamento (o catching up) aos níveis de desenvolvimento do centro. Desta maneira, a ideia de que todos os países se desenvolveriam e alcançariam o nível dos mais desenvolvidos, que é a base do seu argumento sobre o mito, jamais se realizarão.

Não importa aqui discutir as causas desse fracasso; afirmo apenas que elas incluem o imperialismo do Norte Global e sua determinação de impedir que os países periféricos se industrializem e realizem o alcançamento. Além disso, é preciso considerar que, passados 50 anos, os recursos naturais reprodutivos não deram sinal de esgotamento não obstante os abusos a que foram submetidos.

O desenvolvimento econômico não é, portanto, um mito, mas uma ideia força que orienta os povos e os governos. Ele continua a ser possível – ou continuava na época em que Celso Furtado escreveu. Depois disso, porém, surgiu um novo e muito grave problema que talvez confirme o limite ao crescimento: o aquecimento global, que representa uma ameaça à sobrevivência da humanidade. Este problema surgiu do aumento da produção global por habitante – do desenvolvimento econômico, portanto.

E levou certo número de intelectuais a defender o decrescimento. Mas essa tese não encontrou nenhuma repercussão no mundo político. Porque mesmo nos países ricos há ainda muito pobres. E também por uma razão objetiva; para lutar contra o aquecimento global os indivíduos precisam mudar seus hábitos de consumo (comer menos carne, viajar menos, cultivar sobriedade no consumo), que não exigem investimentos.

Já os países precisam fazer grandes investimentos na transição energética na mudança das máquinas, equipamentos e imóveis para que consumam menos energia. O desenvolvimento econômico torna-se, assim, o instrumento para o problema – o aquecimento global – que ele próprio criou.

Celso Furtado foi o maior dos economistas brasileiros, ainda que suas ideias tenham deixado de coincidir com a política econômica que passou a ser praticada no Brasil a partir de 1990, no governo Collor, quando este promoveu a abertura econômica e a financeira. Seu protesto surgiu cedo, com seu livro de 1992, A construção interrompida.

Dez anos depois, para explicar como o desenvolvimento econômico foi então interrompido, eu e um grupo de economistas brasileiros começamos a definir o “novo desenvolvimentismo”, uma nova teoria econômica e economia política baseada no desenvolvimentismo estruturalista de Celso Furtado e na teoria econômica pós-keynesiana. Para nós o desenvolvimento econômico não é um mito; é algo que pode ser alcançado. Já a ideia do desenvolvimento é um mito porque o alcançamento que o mito propõe estar acontecendo não está na verdade se realizando, exceto em alguns países do Leste, Sudeste e Sul da Ásia.

*Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor Emérito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP). Autor, entre outros livros, de Em busca do desenvolvimento perdido: um projeto novo-desenvolvimentista para o Brasil (Ed. FGV)

 

Tributos, uma questão política.

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Neste momento, o governo brasileiro está preparando um projeto de lei para taxas os milionários, com alíquotas entre 12% a 15% que vai impactar fortemente no bolso dos detentores de grandes fortunas, algo em torno de 250 mil pessoas que conseguiram esta isenção tributária, isenção esta que contribuiu e contribui fortemente para aumentar seus ganhos e suas fortunas e, ao mesmo tempo, evitando que o governo nacional aumente sua arrecadação.

Especialistas em tributação calculam que mais de R$ 1,6 trilhão de pessoas físicas isentas de pagamentos de impostos, garantindo a poucos brasileiros esse benefício que não existe em nações civilizadas e que contribuem ativamente para que o sistema tributário nacional fosse regressivo, beneficiando poucos cidadãos em detrimento de uma grande massa da população do país.

O Brasil criou um instrumento legal, pouco original e imoral para garantir isenções tributárias que degradam o sistema tributário nacional, este benefício foi oficializado pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, gerando ganhos substanciais, garantindo aplausos dos donos do poder, que contribuiu ativamente para concentrar a renda e aumentar os índices de desigualdades sociais.

Embora, entendamos que esta medida é urgente e deveria ser tomada com urgência, acreditamos que o governo deveria ser mais ousado na defesa desta tese, usando toda sua força política para garantir que este projeto se transforme em realidade, angariando grandes somas monetárias e financeiras para investir num conjunto de medidas que melhorem as condições de vida dos grupos mais pauperizados, que infelizmente cresce de forma acelerada.

Vale destacar, que muito menos uma Presidenta da República, eleita e reeleita legitimamente foi impedida de governar, neste cenário, percebemos que se faz necessário conscientizar a população para proteger estas medidas tributárias que visam dar mais progressividade ao sistema tributário nacional e garantir melhoras substanciais para os desfavorecidos.