As instituições e o Prêmio Nobel, por Luiz Carlos Bresser Pereira

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Faz sentido usar as instituições para explicar o atraso sem considerar as estruturas sociais?

Luiz Carlos Bresser Pereira, Professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (1987, governo Sarney), da Administração e da Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (1995-1998 e 1999, governo FHC)

Folha de São Paulo – 07/11/2024

Acemoglu, Robinson e Johnson ganharam o Prêmio Nobel de Economia neste ano. Em 2001, eles explicaram o atraso dos países em relação aos países ricos com a tese de que os países que se atrasaram não foram colônias de povoamento como foram os Estados Unidos ou a Australia. Estavam em parte corretos, porque essa foi a tese clássica de Caio Prado Júnior. Não discutirei aqui esse trabalho.

Em 2005, eles “descobriram” que o atraso dos países periféricos em relação aos países centrais poderia ser explicado pelo fato de suas instituições não terem garantido suficientemente a propriedade e os contratos e, assim, haverem desestimulado os empresários a investir. Estavam, neste caso, errados.

Afirmar a importância de boas instituições para o desenvolvimento é a mesma coisa que dizer que a água é importante. É óbvio que as instituições —as normas que organizam a vida social— são fundamentais.
A questão real não é essa, mas sim se faz sentido usar as instituições para explicar o atraso em vez de considerar as estruturas sociais, como eles fizeram sem saber no trabalho anterior. Elas nos dizem, no caso do atraso, se o país teve uma colonização de povoamento ou de exploração mercantil, como nos países latino-americanos.

Nos primeiros, formou-se logo uma classe média e a evolução para o capitalismo foi quase natural, enquanto nos países periféricos o caráter tradicional da sociedade e a condição colonial ou dependente se mantiveram por muito tempo; no caso da dependência, até agora. Nos dizem qual foi o peso do escravismo em cada sociedade.

O que os novos nóbeis de Economia —ou a escola novo-institucionalista à qual pertencem— subestimam é que as instituições são endógenas. Elas dependem das estruturas sociais; elas mudam conforme mudam essas estruturas.

A partir do livro de 1990 de Douglas North, “Instituições, Mudança Institucional e Desempenho Econômico”, o institucionalismo se transformou em uma teoria de desenvolvimento. Surgiu, não por acaso, em torno de 1980.

Foi nesse momento que os Estados Unidos e os demais países ricos fizeram a “virada neoliberal” e perceberam que as instituições eram uma forma muito mais cômoda de explicar o atraso da periferia. Dessa maneira, a nova escola livrava-se não apenas de questões estruturais mais difíceis de mudar mas também do imperialismo ao qual os países periféricos foram e continuam sendo submetidos.

A tese novo-institucionalista da propriedade e dos contratos parece verdadeira à primeira vista, mas realmente não faz sentido.

Tomando-se como referência os primeiros anos do século 19: como seria possível comparar países em que a estrutura social era tradicional e a população em grande parte indígena ou descendente de escravos com a estrutura social de países como os Estados Unidos ou a Austrália?

Dar importância às instituições sem considerar as estruturas tornou mais fácil para o centro neoliberal definir o que os países periféricos deveriam fazer. Bastaria fazer as reformas institucionais —privatizar, desregular, liberalizar— e tudo seria resolvido.

Há ainda a considerar que em países de renda média é comum haver instituições mais modernas e adequadas do que nos países em desenvolvimento. Nós, por exemplo, temos a regulamentação dos medicamentos genéricos que poucos países ricos têm. Na Grã-Bretanha, a obtenção de documentos é mais demorada do que no Brasil. Nos Estados Unidos, o uso de armas de fogo é permitido senão incentivado.

Mudar as instituições é fácil, mudar as estruturas é mais difícil, e o país se livrar do imperialismo é mais difícil ainda. Muito mais fácil é realizar as reformas neoliberais, principalmente a completa liberalização comercial e financeira. O centro não quer o desenvolvimento da periferia; ele não quer que esta produza bens com mão de obra barata para com ele concorrer e quer manter a troca desigual entre manufaturas e commodities.

Sim, as instituições, assim como a água, são importantes. É impossível viver sem elas, mas assim como por trás da água estão as nascentes, por trás das instituições estão as estruturas econômicas e sociais.

 

Ajuste fiscal: impacto ao SUS pode ser trágico, por Guilherme Arruda

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Manifesto com forte adesão entre sanitaristas critica proposta de impor mais limites ao gasto social. Alerta é claro: abandonar investimento em áreas essenciais pode ser destrutivo para Saúde e Previdência – e abrir caminho para grande frustração popular

Guilherme Arruda – OUTRA SAÚDE – 01/11/2024

O momento pode ser um divisor de águas. Após um mês de sinais indiretos e especulações na imprensa, ministros como Fernando Haddad (Fazenda) e Simone Tebet (Planejamento) agora afirmam abertamente que o Governo Federal deve promover cortes nas políticas sociais para cumprir com os rígidos controles de gastos impostos pelo Arcabouço Fiscal e acalmar a chamada “tensão no mercado”. Na quarta-feira (30/10), Haddad confirmou que uma Proposta de Emenda Constitucional contendo um mecanismo de limitação das despesas obrigatórias será apresentada “no mês de novembro”.

A movimentação não ficou sem resposta na sociedade: um manifesto divulgado no mesmo dia se posicionou firmemente contra a proposta de ajuste fiscal, alertando que “ceder a essa lógica de cortes e restrições não é apenas um erro econômico; é um ataque frontal aos direitos sociais e à dignidade da população”. Notavelmente, o documento teve adesão expressiva na área da Saúde, a exemplo do ex-ministro José Gomes Temporão, o diretor do Instituto de Saúde Coletiva da UFF Túlio Batista Franco, o presidente da Associação Brasileira de Economia em Saúde (ABrES) Francisco Funcia e os sanitaristas Ana Maria Costa e Itamar Lages. “O Estado brasileiro tem uma enorme dívida com a sua população e não pode, na sua política fiscal, cortar nos gastos sociais. Pelo contrário, eles devem ser uma prioridade”, afirmou Túlio a Outra Saúde.

Para muitos, a assinatura no manifesto não consiste em uma ação “contra o governo” – mas uma cobrança para que ele se atenha aos compromissos de reconstrução nacional e retomada do investimento social e no SUS que firmou ainda em 2022 com o movimento sanitário, além de todo o povo brasileiro, durante a batalha contra as forças obscurantistas que conduziam o país. “Esse é o tom necessário hoje, porque essa decisão pode levar a uma regressão muito forte das políticas sociais e do direito à saúde. Recuar frente à pressão hegemônica da direita e do mercado? Não dá”, avaliou Ana Maria Costa.

A este boletim, uma dezena de especialistas, acadêmicos de diversas áreas e parlamentares alertaram para o retrocesso que os cortes anunciados podem significar para políticas tão diversas quanto o piso constitucional da saúde e o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Os riscos, como ilustra o próprio manifesto, são claros: “Ao abandonar investimentos em áreas essenciais, o governo abre caminho para o avanço de discursos autoritários e reacionários que se alimentam do desespero e da frustração popular”.

Uma tese fiscal questionável

No âmbito da Saúde, a discussão em torno do orçamento não é nova. A nível histórico, o movimento sanitário sempre frisou a necessidade de amplos recursos para que o projeto do SUS se materializasse em toda sua potência – assim como alertou sobre o risco mortal que o subfinanciamento acarreta para a concretização dos princípios da universalidade, integralidade e equidade. Mais recentemente, como sempre relembra a própria ministra Nísia Trindade, a PEC de Transição articulada antes da posse de Lula foi decisiva para que o orçamento da Saúde fosse “o maior da história” em 2023. Porém, um terceiro fato é o que realmente faz o tema pairar no ar há mais de um ano: desde a aprovação do Arcabouço Fiscal – e Outra Saúde cobriu o imbróglio em profundidade –, o Ministério da Fazenda lança “balões de ensaio” para testar a viabilidade de flexibilizar o piso constitucional de investimentos na saúde, que prevê que 15% da Receita Corrente Líquida (RCL) anual deve ir para a área.

No raciocínio da pasta, a flexibilização do piso da saúde – ou outra das medidas atualmente em discussão, como mudanças no BPC e no seguro-desemprego – poderia garantir o espaço fiscal necessário para que o orçamento não fique estrangulado e o “equilíbrio fiscal” seja alcançado. Contudo, na avaliação do economista e presidente da ABrES, Francisco Funcia, essa hipótese é imprecisa: “O que está comprovado desde a pandemia é que aumento do gasto público não inviabiliza em hipótese alguma as contas do governo. Cortar gastos não vai trazer qualquer avanço na busca pelo equilíbrio fiscal. Pelo contrário, a teoria econômica mostra que os gastos sociais, como parte dos gastos públicos, têm um efeito dinâmico na atividade econômica. Não dá para pensar na questão do equilíbrio das contas públicas com um olhar de economia doméstica, como tem sido feito pela mídia e também por alguns setores do governo”.

Funcia aponta que os próprios recursos que o governo garantiu para o orçamento da Saúde em 2023 e 2024 “têm tido um efeito positivo para a dinâmica econômica, além de terem sido uma iniciativa importante na linha da garantia dos direitos da cidadania”, depois da tragédia que o governo Bolsonaro representou para o SUS. Isto é, a nova iniciativa de contenção dos gastos estaria em contradição com os resultados concretos da destinação de recursos para a Saúde até aqui. “Eu acho muito importante destacar que o governo começou resgatando os investimentos sociais e a nova proposta vai na contramão desse resgate”, ele ressalta.

Se é mesmo preciso que uma fatia do Orçamento federal sofra cortes drásticos, como defende a equipe econômica, o manifesto propõe outro alvo: as despesas financeiras, especialmente o pagamento de juros que beneficiam os grandes rentistas. “Nós estamos em uma situação em que a única fatia do orçamento público nacional em que não se mexe é o serviço da dívida”, critica a sanitarista Ana Maria Costa.

Impacto mortal?

Por enquanto, não foi anunciado pelo Governo se os cortes impactarão áreas específicas dos investimentos sociais ou se haverá um mecanismo geral de contenção dos gastos. Contudo, onde quer que recaiam, os prognósticos apresentados por especialistas ouvidos por Outra Saúde são de uma tragédia para a população mais pobre.

Se recair sobre a Saúde, seja na forma da flexibilização do piso de investimentos ou outra, o corte de gastos “vai acabar gerando definitivamente um SUS ruim, de baixa qualidade e insuficiente para a população. A saúde que a Constituição prometeu, que é direito de todos, já não é possível com o atual gasto de 4,2% do PIB, imagine se for menos”, avalia Ana Maria Costa. Em sua visão, o próprio projeto do SUS pode estar em jogo com a futura PEC: “É essencial que se faça essa discussão agora para salvar o projeto político da saúde como um direito universal”, defende a signatária do manifesto.

Por sua vez, caso recaiam sobre a Previdência Social, os cortes “sem dúvida vão fazer com que a velhice e a pobreza voltem a ser sinônimos”, pontua Jorge Félix, professor da EACH-USP dedicado às pesquisas sobre o envelhecimento e a economia. Se as conquistas da Constituição de 1988 tiveram o mérito de melhorar a qualidade da vida dos idosos do Brasil, a “desumana desvinculação do salário mínimo da seguridade social e a estigmatização do BPC” que vem sendo aventadas pelo Governo seriam comparáveis a uma nova Reforma da Previdência em seus efeitos para os mais velhos – gerando empobrecimento e miséria em grande escala.

Parlamentares signatários do manifesto que foram ouvidos por Outra Saúde também concentraram suas críticas nos possíveis efeitos dos cortes sobre os direitos dos brasileiros mais vulneráveis. “As suspeitas de que a busca do equilíbrio fiscal recairia na revisão ou restrição de benefícios socioassistenciais têm que ser logo afastadas. Não se pode buscar ajuste fiscal sobre os mais pobres, mas sobre os mais ricos”, opinou o deputado estadual Renato Roseno (PSOL-CE).

“A previdência pública e direitos como BPC, aposentadoria, FGTS e seguro-desemprego foram duramente conquistados e são muito importantes para garantir um mínimo de dignidade para o povo brasileiro. Para mim, a importância da mobilização em torno desse manifesto é deixar bem claro que a posição de grande parte das pessoas do campo democrático é contrária a qualquer tipo de retrocesso na assistência social e nos direitos”, complementou Luana Alves (PSOL-SP), vereadora de São Paulo e trabalhadora da saúde.

Bandeiras históricas sob ameaça

Estratégico para o clima de inevitabilidade dos cortes sociais, avaliam muitos dos entrevistados, é o bombardeio midiático intenso em prol do fiscalismo. Para a professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e estudiosa da Economia Política de Comunicação, Helena Martins, “a mídia dominante tem exercido um papel fundamental de legitimar essas ações que são restritivas de direitos e apresentá-las como única saída econômica”. Contudo, ela relembra que “em todo o mundo, já se mostrou que o ajuste fiscal pavimenta o caminho da extrema-direita e o governo comete um erro grave ao seguir nessa direção”.

No mesmo sentido, a professora da UFRJ Lena Lavinas destaca que “não é verdade que solapar direitos em nome de um regime monetário e fiscal inadequado seja a única medida ao alcance do governo para promover o desenvolvimento de uma sociedade radicalmente democrática, igualitária e comprometida com a preservação do planeta. Fazer ajustes em cima de direitos essenciais é causa de sofrimento e não caminho para o progresso. Esse governo precisa ouvir e dialogar, para não comprometer o futuro”.

“A política tem sido esvaziada do seu sentido mais pleno, alimentando a descrença e não a esperança. O exercício da cidadania exige mobilização e expressão das demandas populares, tal como faz agora este manifesto, rompendo, portanto, com o marasmo e a apatia que se abateram sobre a sociedade brasileira frustrada crescentemente nas suas expectativas pela manutenção das regras de austeridade”, continua Lavinas.

O sentimento foi ecoado por outros signatários do texto, que o tomam como o alerta definitivo para que o Governo Federal tenha clareza da temeridade que representa a decisão de dar seguimento aos cortes de gastos, pondo em risco conquistas históricas dos trabalhadores. “Se nós não tivermos o tom do manifesto daqui pra frente, vamos perder nosso papel histórico enquanto movimento sanitário. Nós saímos da pandemia com o SUS valorizado pelo povo, não é hora do medo e do recuo”, afirma Ana Costa.

“O abaixo-assinado é um ato amoroso, embora duro e contundente, de solidariedade crítica. Assim, não é o manifesto que expõe e fragiliza o governo, são as medidas que o governo diz que quer adotar”, completa Itamar Lages, professor de Enfermagem da UPE e membro do Cebes Recife.

 

A força do SUS e as lutas por vir, por Túlio Batista Franco

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Embates na saúde pública tem sido duros – mas não é preciso desespero ou derrotismo. Construção coletiva e comunitária, de onde o SUS sempre tirou sua força, será mais uma vez a resposta para os desafios

Túlio Batista Franco Outra Saúde – 05/11/2024

O Brasil debate o Brasil. As eleições municipais recentes estão sendo amplamente discutidas. Independente das opiniões circulantes, estamos vivendo um momento de intensa disputa pelos rumos do país, que poderá conhecer contornos dramáticos no futuro próximo. Urge produzir um engajamento orgânico entre uma proposta política para o futuro e a maioria da população. Um país que seja libertário, livre de todo tipo de preconceito, que admita a diferença como constitutiva da paisagem humana, socialmente justo. Um mundo que caiba todos os mundos dignamente.

O movimento sanitário, que tem a Frente pela Vida como núcleo aglutinador, há 4 anos e meio assume um importante protagonismo na vida nacional. Após o enfrentamento intenso e cotidiano na pandemia, elaborou uma política de saúde para disputar as eleições em 2022, mobilizou entidades e movimentos do país inteiro em apoio à candidatura do presidente Lula e discutiu com a então Comissão de Transição do Governo, na área da saúde, soluções para o SUS. Foi contra incluir o orçamento da saúde no “arcabouço fiscal”, e vê com imensa preocupação propostas de retirada do piso constitucional da saúde, ou qualquer redução do financiamento do setor, bem como da educação, ciência & tecnologia. O que vale para qualquer política social.

E isto tem polarizado as atenções do momento. Há uma ofensiva do capital financeiro que chantageia o país com especulações, uma forma nefasta de tentar influenciar a política fiscal, notadamente com cortes em gastos sociais. Ao mesmo tempo, entramos na dinâmica da disputa eleitoral de 2026, que vai eleger o novo presidente, governadores e o Congresso Nacional. O país está em questão. O que fazer para que o muito feito até aqui seja intensificado para potencializar as forças progressistas na luta por vir?

“Se muito vale o já feito, mais vale o que será”1, nos aconselha o poeta. Então, recomenda-se haver um esforço adicional na construção mais intensiva das políticas sociais de alargamento de direitos, que faça a população perceber mudanças expressivas na sua vida cotidiana. Uma mobilização que fortaleça os vínculos comunitários nos territórios. É necessário formar uma identidade corpórea com as comunidades. Laços orgânicos de confiança, que produzam uma subjetividade solidária, e sejam capazes de organizar uma resposta coletiva contrária à ofensiva neoliberal, que propõe o empreendedor de si mesmo e o sujeito da concorrência para polarizar a base da sociedade.

Há luta por vir! E para ela contamos com um enorme ativo político, o SUS, que traz a marca da generosidade desde os momentos iniciais da sua constituição, e hoje mobiliza milhares de pessoas nas Conferências de Saúde, além de uma imensa capilaridade que o coloca em relação com a população no seu dia-a-dia. Por exempl: ele se move sobre uma rede assistencial que, só na Atenção Básica, tem 61.262 equipes de Saúde da Família, atingindo uma cobertura de 79,6% do território nacional2. São mais de 3 milhões de pessoas trabalhadoras em exercício no SUS. Destes, 403 mil são Agentes Comunitários de Saúde e Agentes de Endemias3, que têm uma relação cotidiana com os territórios e suas comunidades, sendo uma importante referência de cuidado, vínculo, e participação comunitária. É algo absolutamente extraordinário.

À experiência de participação social soma-se a iniciativa do Mapa Colaborativo dos Movimentos Sociais em Saúde. Este é um projeto lançado em 2024, liderado pelo Ministério da Saúde, Fiocruz e Conselho Nacional de Saúde, para dar visibilidade, mobilizar, e promover a interação entre entidades e movimentos no âmbito da saúde.

A participação comunitária ganha contornos mais amplos no governo através do Conselho de Participação Social da Presidência da República, do qual a Frente pela Vida participa representando o movimento sanitário. Aqui se constrói uma avançada proposta de participação social, com base nos territórios, e na educação popular como um dispositivo de construção. Esta iniciativa levou a uma ampla participação social na discussão do Plano Plurianual em 2023, que orienta a política econômica e social do Brasil até 2027. Também promoveu o amplo debate do Plano Clima que define as estratégias nacionais para reduzir as emissões de gases de efeito estufa, que causam o aquecimento global, e avançar na adaptação aos impactos das mudanças climáticas. Neste momento, organiza a participação social na Cúpula do G20 Social, que ocorrerá no Rio de Janeiro entre 14 e 16 de novembro de 2024. Por tudo isto, a perspectiva de uma política de saúde promissora na sua missão humanitária continua muito forte no cenário atual, construção que deverá ser coletiva e comunitária.

 

 

Segurança Pública — 21 anos depois, por Soares & Domingos Neto.

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Luiz Eduardo Soares & Manuel Domingos Neto

A Terra é Redonda – 04/11/2024

Hoje, associar-se ao discurso hegemônico e às práticas usuais das corporações policiais tornou-se um ativo político na guerra contra a democracia e os direitos humanos

Na quinta-feira passada (31.10.2024), deu-se uma reunião marcada há 21 anos. A convite de Lula, governadores e o ministro da Justiça encontraram-se no Planalto para discutir a Segurança Pública. Essa reunião foi agendada e postergada, depois cancelada, no início do primeiro mandato de Lula, em 2003. O atraso de 21 anos diz muito sobre as dificuldades de enfrentar o problema.

Em 2001, Lula presidia o Instituto Cidadania e era pré-candidato a presidente. Um grupo de trabalho formulou, então, seu programa de Segurança Pública. Profissionais de origens, experiências e perspectivas variadas debateram em audiências públicas, visitas e seminários. A proposição resultante foi entregue por Lula às casas congressuais e ao ministro da Justiça em 27 de fevereiro de 2002.

No ambiente ouriçado de hoje, é difícil imaginar que o então líder da oposição ao governo FHC fosse respeitosamente recebido por dirigentes da situação, todos valorizando a qualidade da proposta.

A edição do jornal O globo em 28.02.2002 destacava: “Tucanos elogiam plano anticrime do PT”. O ministro da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira, admitiu adotar medidas. “Não posso deixar de louvar essa iniciativa”, afirmou o presidente do Senado, Ramez Tebet. “Este documento é até agora o mais sério e completo sobre segurança pública já elaborado e apresentado à sociedade”, disse Aécio Neves, presidente da Câmara.

Com debilidades decorrentes, sobretudo, da falta de dados internos às corporações, a iniciativa mudou o debate. Descartou clichês e bordões puídos. Agentes públicos não mais arguiriam o “sempre foi assim”. Parecia chegar ao cabo a reatividade inercial e a falta de crítica aos padrões estabelecidos. Tornar-se-iam necessários diagnósticos e planejamento para a ação pública, que passaria a ser avaliada para que erros fossem monitorados e corrigidos.

O Plano não idealizava a racionalidade técnica e apontava para ajustes de instituições públicas às determinações constitucionais. A democracia seria reforçada. Visava-se o controle da chamada criminalidade, da brutalidade letal das polícias e do sistema de Justiça criminal, do racismo e do viés de classe que encarcera jovens pobres e negros, reproduzindo iniquidades e violências. Instituições refratárias à soberania popular seriam contidas.

Lula venceu as eleições. Em janeiro de 2003, o novo secretário nacional de Segurança Pública[i] e seus colegas tocariam o programa — aperfeiçoado com a ajuda de voluntários de distintas especializações e regiões, graças ao apoio da Firjan.

Era fundamental a adesão dos 27 governadores à tese central, a criação do SUSP, sistema único de segurança pública, inspirado na arquitetura do SUS. Em junho, o endosso unânime foi obtido. O presidente convidou os governadores para celebrar o “pacto pela paz”, como o projeto foi batizado, perante autoridades dos três poderes. A proposta seria entregue ao Congresso, posto que demandava alteração constitucional. Havia otimismo. Lula detinha respaldo popular e o consenso dos governadores fortalecia a proposta.

Os governadores não acataram por entusiasmo com uma segurança cidadã, afinada com os direitos humanos. A negociação individualizada mostrara que lhes interessava dividir o desgaste político com o governo federal. Uma reestruturação que importasse em compartilhamentos e deslocamento de autoridade para a União seria bem-vinda. A insegurança era fonte inesgotável de fragilização política. O acatamento era pragmático e lógico.

Paralelamente, o governo federal encarava o dilema: valeria a pena assumir mais responsabilidades em área tão desgastante? Dizia Leonel Brizola: chamar para si a segurança é abraçar afogado. Por que, então, o secretário nacional de segurança visitaria todos os governadores? A missão espinhosa foi testemunhada pelas mídias locais. Talvez porque não fosse crível o êxito da jornada quixotesca.

O governo federal viu-se subitamente com a batata quente na mão. Como deter a iniciativa evitando constrangimentos? A resposta fica para outro momento. O gabinete presidencial estipulara data para a reunião que seria suspensa. O passar do tempo silenciaria o “pacto pela paz”. O secretário foi afastado e o plano, engavetado. O governo investiu em prisões matutinas espetaculares de suspeitos de colarinho branco.

Mas a semente do SUSP fora lançada. Cedo ou tarde, por exigência histórica, resultaria em algo. Diante de crises, projetos embolorados, devidamente lustrados, circulariam na praça. O SUSP renasceu com sotaque diferente e inegável legitimidade e coerência quando Tarso Genro foi ministro da Justiça. Seu projeto nacional de segurança com cidadania (PRONASCI) incorporava elementos do SUSP, especialmente sua face preventiva. Mas Tarso passou, assim como a reativação indireta do SUSP.

Veio o golpe parlamentar contra Dilma Rousseff. A dramaticidade da insegurança pública crescia e a história aprontou ironia oblíqua, típica das tragédias: coube a Temer ressuscitar o SUSP e criar o ministério da Segurança previsto no plano original, de 2002 (por sugestão de Lula, então candidato, foi convertido em secretaria com status ministerial).

Mas a repetição deu-se como farsa: o SUSP, aprovado pelo Congresso em 2018, foi promulgado para não funcionar. Baseava-se em legislação infraconstitucional. Destinava-se a fazer crer em comprometimento dos governantes com mudanças profundas na Segurança. As novas regras jamais seriam aplicadas porque gerariam conflitos federativos; calculadamente, não tratavam de processos decisórios, de definição da autoridade coordenadora de ações. Tampouco foi casual que a ouvidoria fosse estabelecida como uma agência desprovida de poder.

A vida prosseguiu e o país foi empurrado à beira do abismo neofascista. Os golpistas instrumentalizaram as instituições armadas. A gigantesca e ativa “família militar” açambarcou os contingentes policiais de todas as esferas da União. Escapamos por um triz com a vitória de Lula, em 2022.

Retornando ao Planalto, Lula encontrou-se novamente com a dramática insegurança pública. Durante meses, flertou com o SUSP, reinscrevendo a necessidade de coordenação nacional no centro da agenda. Mas temeu mostrar a nudez do rei: o SUSP infraconstitucional colidiria com a Carta. Só fazia sentido ressuscitá-lo se figurasse na Constituição.

Finalmente, o ministro Ricardo Lewandowski, intimorato, pronunciou palavras banidas do léxico governamental: afirmou que para tratar da Segurança Pública caberia reformar a Carta. Realizou-se, enfim, a reunião marcada há 21 anos.

Neste interregno, regredimos de uma democracia limitada e contraditória para uma institucionalidade deteriorada. A sociedade viu-se acossada pela difusão de valores antidemocráticos, pelo ativismo reacionário de organismos do Estado e por organizações à margem da lei.

A PEC apresentada por Ricardo Lewandowski, embora menos ambiciosa, contém elementos fundamentais da proposta original. Aponta para o estabelecimento de uma coordenação nacional das estratégias da Segurança. Pressupõe uma linha de autoridade indispensável, mesmo que isso não seja enfatizado no discurso público. Enfrenta problema real: a refratariedade das corporações policiais, verdadeiros enclaves institucionais, à autoridade civil e política.

Mesmo que a aparência sugira o contrário, especialmente quando governadores de direita aplaudem práticas policiais condenáveis, o fato é que os executivos estaduais não comandam as organizações policiais. A ampla autonomia viabilizou-se com a omissão do Ministério Público, que deveria exercer o controle externo das polícias, e ameaça o Estado democrático, como demonstramos insistentemente em artigos, livros e entrevistas.

Integrantes de corporações armadas se alinham ostensivamente à extrema direita. Firmam-se como atores independentes, negando a hierarquia e as determinações constitucionais. Os enclaves corporativos instauram poderes rebeldes na medida em que se atribuem autoridade alheia à soberania popular e às mediações institucionais.

Esse quadro ruinoso é mais visível nas Forças Armadas. Comandantes se apresentam impunemente como representantes de um “poder moderador” e condicionam autoridades constituídas. Buscam respaldo no que nomeiam “família militar”, cuja composição inclui componentes das corporações policiais.

A PEC do ministro Ricardo Lewandowski possibilita restringir a disfuncionalidade da segurança pública; oferece amparo mínimo para o enfrentamento da criminalidade e da corrosão da autoridade fundada nos princípios democráticos. Propondo a coordenação nacional, enseja a possibilidade de reduzir o insulamento dos baronatos armados, organizados com ou sem máscara institucional (sob a forma de milícias).

O ministro e o presidente devem saber que a proposta não será aprovada. Mas enseja sinalização importante: tira o governo da defensiva e, pela primeira vez em muitos anos, aponta rumo para deter a barafunda institucional que impede o Estado de garantir segurança à cidadania. Livra a autoridade federal de exibir impotência e de absorver pautas conservadoras de governadores. No mais, deixa com a oposição o ônus da defesa do status quo.

A reação dos governadores tende a ser inversa a de 21 anos atrás porque a luta ideológica se interpôs ao velho cálculo de utilidade. Se a Segurança era somente causa de desgaste político e valia a pena sacrificar parte do suposto poder em benefício da divisão de responsabilidades com a União, hoje, associar-se ao discurso hegemônico e às práticas usuais das corporações policiais tornou-se um ativo político na guerra contra a democracia e os direitos humanos.

Há muito a ponderar. Por exemplo: a omissão na iniciativa governamental quanto à ouvidoria e ao papel do MP. Mas cabe saudar a coragem política, mesmo moderada, quando ela retorna à cena.

Falta aplicar essa disposição à Defesa Nacional. As Forças Armadas persistem essencialmente voltadas para o controle da sociedade e nunca abdicaram de se imiscuir na Segurança Pública.

*Luiz Eduardo Soares é antropólogo, cientista político e escritor. Ex-secretário nacional de segurança pública. Autor, entre outros livros, de Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos. (Boitempo)

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). Autor, entre outros livros de O que fazer com o militar — Anotações para uma nova Defesa Nacional (Gabinete de Leitura)

 

Nações falham ao escolher o jogo errado, por Álvaro Machado Dias.

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Para vencedores do Nobel de Economia, EUA são modelo para o mundo, mas índices de qualidade de vida dizem o contrário.

Álvaro Machado Dias, Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind.

Folha de São Paulo – 05/11/2024

Três raciocínios de interesse nacional emergem dos papers dos nobelistas de economia de 2024.

(1) Uma vez que instituições inclusivas são a base da prosperidade, o golpe militar pode ser descrito como um dos eventos mais danosos da República, posto que as suspendeu por décadas.

(2) Conforme a institucionalidade leva à prosperidade pela via da destruição criativa, segue que o agronegócio monocultor está nas antípodas do enriquecimento nacional. Sendo ou não pop, tech e yellow, o horizonte criativo da banana é bem menor que o da IA.

(3) Mudanças institucionais, como a reforma tributária, tendem a ser ainda mais importantes do que intuímos, porém exceções acumuladas costumam tornar arranjos novos tão ruins quanto os anteriores. Descontos atualmente negociados farão parte de teses futuras sobre as nossas falhas.

Essas perspectivas dão uma medida do grande poder translacional do paradigma dos autores, que em diferentes ocasiões apresentam os Estados Unidos como modelo de institucionalidade.

Aí o caldo entorna: tendo imigrado para lá aos 9 anos de idade, sinto que isso dialoga pouco com o campo. Um país em que é comum crianças invadirem a escola para matar os colegas de fuzil enquanto seus pais se engalfinham em lutas profissionais ferinas não me parece desenhado para revelar o melhor de nós. Do mais, no índice Edelman de confiança nas instituições de 2024, os Estados Unidos estão no fim da fila, abaixo da Colômbia, onde as Farc viraram partido.

A questão é profunda: a riqueza individual, norteadora das teses dos laureados sobre ganhadores e perdedores, não é fim, mas meio, para a realização em ato dos valores fundamentais humanos, os quais Thomas Jefferson acreditava serem “vida, liberdade e a busca da felicidade”.

No Relatório de Felicidade Global de 2024, os EUA aparecem na 23ª posição, empatados com o México, exemplo de falência institucional preferido de Acemoglu. A Costa Rica, que foi colônia extrativista, está na 12ª colocação. Mesmo onde as instituições são sólidas e a cultura próxima, a lógica da prosperidade como desfecho absoluto pede um grão de sal. A Finlândia é o país mais feliz, a Noruega é o 7º, com um PIB per capita 65% maior.

É fato que a pesquisa de felicidade global é limitada pela necessidade de só utilizar dimensões amplamente disponível. A alternativa é o conceito de bem-estar, que inclui o PIB per capita, mas também saúde, desigualdade e outros. Em saúde, os EUA estão mais perto da Arábia Saudita que do europeu menos saudável, a Alemanha (Ray Dalio, 2024). Em desigualdade, são lanterninhas entre as nações avançadas, tensionando a hipótese distributiva pela via da inovação institucionalizada. O Haiti, país das instituições mais frágeis do mundo, é menos desigual.

O que importa não é só considerar que a prosperidade numérica não passa de uma via para a vivencial e que, na vida das pessoas, instituições incluem educação, saúde, estruturas políticas de orientação dialógica e outros determinantes do bem-estar alheios à régua das patentes.

O ponto é que, para elevar a qualidade da vida levada no Brasil, a gente não precisa virar uma Coréia do Sul com PIB per capita de Luxemburgo. Se resolvermos questões mais modestas, como moradia digna e violência, é possível que nos juntemos à Costa Rica e outros exemplos de que, na prática, a teoria pode ser outra.

 

A revisão dos gastos é uma agenda inevitável, por Cecilia Machado;

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Não é possível alcançar crescimento de gastos quando diversas despesas crescem em maior velocidade

Cecília Machado, Economista-chefe do Banco BoCom BBM, é doutora em economia pela Universidade Columbia

Folha de São Paulo – 05/11/2024

Era um tanto quanto esperado que o descompasso entre o limite da expansão dos gastos e o crescimento das despesas obrigatórias trouxesse desconfiança com relação à sustentabilidade do novo arcabouço fiscal. Não é possível alcançar crescimento de gastos de até 2,5% (reais) quando diversas despesas crescem em maior velocidade. Esta inconsistência torna a revisão dos gastos uma agenda inevitável do ponto de vista fiscal.

Mas mesmo antes das inconsistências do arcabouço, já existiam bons motivos para que alguns programas fossem reavaliados. A revisão dos gastos permite ajustar as políticas públicas para que se tornem mais eficazes, além de abrir espaço para novos prioridades do governo.

No contexto atual, são inúmeras as oportunidades. Entre elas, programas como o BPC (Benefício de Prestação Continuada), o abono e o seguro-desemprego podem ser reformulados não apenas para melhorar o resultado fiscal, mas principalmente para corrigir distorções e ampliar a produtividade da economia.

O BPC —que transfere um salário mínimo para o idoso ou pessoa com deficiência que é pobre— é um híbrido de assistência e previdência que faz pouco sentido sob a ótica de qualquer um desses dois programas.

Como assistência, por qual razão um idoso pobre recebe uma transferência cerca duas vezes maior que uma criança pobre do Bolsa Família, considerando que os investimentos feitos nas crianças trazem benefícios que se manifestam ao longo de toda sua vida? Como previdência, faz sentido garantir que uma pessoa que nunca contribuiu para a seguridade social receba a mesma aposentadoria que aqueles que contribuíram a vida toda sob um salário mínimo?

Não menos importante é a influência do desenho destes programas sobre o comportamento das pessoas e as suas implicações para o funcionamento da economia. Por exemplo, a possibilidade de aposentadoria sem contribuição, como no caso do BPC, faz com que muitos trabalhadores de baixo salário prefiram empregos informais, onde não há desconto das contribuições em folha.

Na mesma direção, programas como o seguro-desemprego estimulam a rotatividade em um mercado de trabalho que acomoda arranjos informais. Pois é possível receber o seguro-desemprego em um trabalho informal, já que este tipo de vínculo não é observado pelo governo. Funcionasse apenas como um seguro para a perda de emprego —que se verifica com mais frequência quando a economia não vai bem— não deveríamos estar vendo um crescimento tão grande dos gastos direcionados a este programa quando o mercado de trabalho exibe bom desempenho, como agora.

Sob a ótica redistributiva, o abono não incide onde a pobreza está. Apenas 16% da incidência do abono se dá entre o terço mais pobre da população, enquanto 39% incide sobre o terço mais rico. Além disto, é um benefício oferecido apenas aos trabalhadores formais, que se encontram em melhores condições de renda e proteção social que aqueles informalizados. O abono não atende cerca de 40% dos trabalhadores sem carteira assinada.

É impressionante que as regras correntes do BPC, do seguro-desemprego e do abono salarial tenham sobrevivido tanto tempo apesar das falhas óbvias de desenho. Por mais custosa que seja, a crise fiscal de agora pode ser a única oportunidade possível para introduzir racionalidade e bom senso no redesenho destes programas sociais.

 

EUA: Democracia sem escolha, por Tatiana Carlotti.

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Crônica em Washington, às vésperas de uma eleição em que não há saída real. Vencerá a candidata da guerra perpétua ou o da ameaça fascista? Nas ruas, poucos parecem se importar. Mas os bilionários tomaram partido, e evita-se o voto negro

Tatiana Carlotti – OUTRAS PALAVRAS – 31/10/2024

No próximo 5 de novembro, a maior potência militar (US$ 886 bi para gastos militares), econômica (PIB de US$ 28,6 tri) e cultural (US$ 9 bi só em bilheterias) vai eleger “o seu” ou “a sua” presidenta em uma das mais acirradas e imprevisíveis disputas eleitorais nos Estados Unidos. Frente aos empates técnicos de cada sondagem registrada desde que Kamala Harris entrou no páreo contra Donald Trump, ninguém ousa cravar um resultado.

Com a aproximação das eleições, os republicanos apelam para um perigoso neofascismo, vide o comício de Trump na Madison Square Garden, domingo passado (27), promovendo uma agenda que reverbera um individualismo extremo, um profundo ódio à esquerda, uma misoginia escancarada e o racismo incrustado contra os “não-brancos”, além da xenofobia de carga explosiva. Em suma: a “sopa de ódios” que aquece as frustrações em meio “cada um por si” de um sistema mais e mais disfuncional, pelo menos, para a imensa massa ‘não-bilionária” do planeta.

Os democratas, por sua vez, apoiam-se nos argumentos e prometem a generalização de oportunidades hoje (e nem sempre) restritas à classe média e acesso a direitos básicos como saúde e moradia. Também apelam para “o bom senso” enquanto financiam um inominável genocídio de crianças e famílias inteiras em Gaza, que se expande aos demais países do “eixo do mal” no Oriente Médio; além de acenarem para a continuidade da guerra contra a Rússia na Ucrânia.

Em meio ao belicismo democrata e ao neofascismo republicano, a população estadunidense que se autodenomina “americana”, encontra-se profundamente polarizada, como mostrou na última sexta-feira, dez dias antes do pleito, a pesquisa divulgada pelo New York Times cravando exatos 48% em ambos os candidatos. A sondagem também apontava um contingente de 15% de indecisos e, após esta pesquisa, as demais que saíram, com pequenas variações, também indicam empate técnico.

Considerando, também, que as pesquisas são apenas acenam tendências, na medida em que a definição do presidente é realizada por uma maioria de delegados, a única certeza até agora, ante a impossibilidade de se cravar um resultado, é de confusão e judicialização do processo eleitoral pela turba republicana caso perca as eleições.

Vale lembrar que, em 2020, quando Trump se negou a aceitar a derrota (a primeira desde 1992 de um candidato-presidente à reeleição nos EUA), Joe Biden o vencia com uma margem expressiva: 81 milhões de votos e com o apoio de 306 delegados do Colégio Eleitoral. Na época, Trump obteve 74 milhões de votos e contou com apoio de 232 delegados.

Naquele ano, houve uma participação considerada recorde nas urnas – a maior desde 1900! – em um país onde o voto é facultativo. Neste ano, a considerar os votos já encaminhados pelo correio e os números da votação antecipada, a expectativa é de uma alta participação. Em Michigan, por exemplo, 1,5 milhões de eleitores já anteciparam seu voto em uma semana, e a soma dos que enviaram sua decisão pelo correio ultrapassa (a uma semana do pleito) vinte e três milhões.

Inversamente, a movimentação eleitoral não acontece nas ruas. O clima eleitoral, em particular nos estados como Nova York e na própria Whashington (D.C.), é ameno onde as colorações partidárias estão mais definidas, nos dois casos com a prevalência do azul (democrata) sobre o vermelho (republicano).

Por aqui, por exemplo, apesar da polarização, da ameaça trumpista e da possibilidade de muita gente simplesmente deixar de votar, ninguém usa adesivos de campanha, não há santinhos distribuídos nas ruas e muito menos aquele xingamento acalorado no cruzamento das grandes avenidas. Com Harris na liderança em pelo menos 18 pontos à frente de Trump, na “Big Apple” (NY) pelo menos, as caveiras de Halloween ganham – e de longe – das plaquinhas eleitorais.

Estados pêndulos, onde a eleição acontece

As eleições, no entanto, acontecem com força nos chamados estados pêndulos, ou swing states, onde permanecem indefinidas as tendências de votação num ou noutro partido, porque o sistema eleitoral da considerada “maior democracia do mundo”, além de não direto e facultativo, também é essencialmente bipartidário. É nestes estados – Nevada, Arizona, Wisconsin, Michigan, Pensilvânia, Carolina do Norte e Georgia – que estão acontecendo investimentos milionários e onde, de fato, a campanha eleitoral ganha as ruas.

Os democratas estão mobilizando mais de 2.500 pessoas em 353 escritórios nessas regiões para, entre outras atividades, bater de porta em porta e ajudar as pessoas a votarem. A tarefa é crucial, em particular, após os estados republicanos terem proposto uma série de medidas de restrição de votos, cerca de 400 leis estaduais em 47 estados, segundo a União Americana pelas Liberdades Civils (ALCU).

A ideia dos republicanos foi conter o boom da participação dos eleitores, em particular os mais pobres e, portanto, de tendência democrata, registrada durante as eleições presidenciais de 2020. Boa parte dessas leis foram implementadas em 2022, durante as eleições de meio de mandato para o Congresso, as midterms; e como nos EUA, cada estado tem a sua própria legislação eleitoral, por aqui inexiste um Tribunal Superior Eleitoral (TSE) regendo e coordenando todo o processo, a possibilidade do governo Biden de conter esse movimento foi nula. O que não o impediu de reclamar.

De modo geral, são pequenas medidas, porém mortais para a participação popular em um país onde o voto não é obrigatório. Obrigar as pessoas a entregarem os votos presencialmente ou somente aceitar que familiares o façam, por exemplo, atrapalhou a participação dos eleitores cadeirantes, de idosos moradores em abrigos, da população de rua. Exigir documentos com fotos para votar pelo Correio. Reduzir o tempo para a votação e até os locais de depósito das cédulas, contribuindo para o aumento das filas. Todas essas medidas aconteceram na Georgia, onde Trump perdeu por pouco para Biden, em 2020.

Além dos democratas, os republicanos estão investindo pesado nestes estados, criando comitês – Super Political Action Committees (SuperPAC), que vêm recebendo investimento graúdo de instituições privadas como o Future Coalition PAC, o Duty to America PAC ou o America PAC, criado pelo “mega-bilionário” Elon Musk com um fundo de US$ 75 milhões.

Segundo apuração do The Guardian, entre julho e outubro, o herdeiro sul-africano, publicamente convidado para participar de um eventual governo Trump, somente em anúncios para a campanha do magnata já investiu: US$ 201 mil no X, mais de 3 milhões na META (Facebook e Instagram) e US$ 1,5 milhões no Google. Todos esses anúncios são dirigidos para as populações e às necessidades destes estados decisivos.

Musk, que tão bem sabemos o que pensa da Justiça brasileira, vem participando como cabo-eleitoral de Trump e se divertindo, como uma espécie turbinada de Silvio Santos, em ofertar cheques gigantescos em comícios e anunciar sorteios de US$ 1 milhão por dia, até a eleição, para quem assinar a petição do American PAC. Sua presença, embora não tenha dito nada com nada, foi um dos pontos altos do comício de Trump.

Foram muitas horas de fila, em meio à turbe trumpista e sob a vigilância dos “snipers” – dois em cada um dos prédios que circundavam o Madison Square Garden – antes de começar o palavrório republicano. Não, não foi no mesmo Madison Square Garden que, em 1939, abrigou o desfile nazista em solo americano (as imagens são chocantes, confira aqui). O nome é o mesmo, o prédio o novo, mas o fascismo, com seu discurso de ódio, a substituição do argumento pelo slogan, a performática da testosterona e a perigosa tese do “inimigo interno” estavam sim por lá.

E a massa, que acompanhei tão proximamente na fila, aplaudiu para valer os animadores do circo trumpista – um misto de humoristas, coachings, bilionários dopados – e os políticos republicanos, além de funcionários e familiares do magnata, que tentaram cravar o slogan “New York is Trump country” no coração de um estado essencialmente democrata e que há 40 anos não elege nenhum presidente republicano.

Tirando uma ou outra figura com toda a tarimba de animador partidário, dentro do cercadinho trumpista onde passei a tarde e a noite no domingo passado, o que vi foi o povo e, em particular, um povo de imigrantes: indianos (todos homens contra Kamala), hispânicos (muitas mulheres – acima dos 40 – fãs de Trump), mais rapazes do que moças (em particular, judeus, brancos e negros).

Pelo menos onde fiquei, a incidência de homens prevaleceu sobre as mulheres. Nenhum bilionário no cercadinho, só gente que trabalha e que bateu efusivas palmas com os slogans de coaching durante o evento. Ao me pedir para desligar o gravador, um rapaz alto, branco e de óculos grossos me disse que Trump vai alavancar a economia em vez de ficar gastando dinheiro com os imigrantes miseráveis que entram pelas fronteiras.

Outro rapaz, negro e estudante de Direito, garantiu que com Trump, os Estados Unidos terão mais empregos, porque ele cortará as taxas pagas pelos empregadores, o que vem dificultando a abertura de trabalho. “Biden só cobra impostos”, frisou. Um pouco mais adiante, num grupo de simpáticas senhoras hispânicas, uma delas me disse que certamente “seria muito bom para os EUA ter uma mulher presidente, mas não Kamala. “Não gosto dela, eu gosto dele e ponto”.

Também poderia comentar sobre um casal de americanos, os dois com o boné MAGA na cabeça, que me disseram, em meio a tantas guerras, que nunca mais votarão nos democratas. A mesma questão veio forte de um estudante de economia, os cabelos de fogo, egresso da Dinamarca. Ele também me esperou desligar o gravador, para dizer que o governo Biden é assassino. E quando o questionei se o fascismo de Trump também não era, ele respondeu: “é tudo bobagem para conseguir voto”.

Infelizmente, não me pareceu bobagem a fala contra as minorias que consegui observar tão de perto naquela fila. Tampouco a agonia que, confesso, foi crescendo conforme as pessoas riam das piadas preconceituosas de Tony Hinchcliffe, que chamou Porto Rico de “ilha flutuante de lixo no meio do oceano” e disse que nós, latinos, gostamos de fazer bebês.

Ou quando o amigo evangélico de Trump, David Rem, chamou Kamala de “anticristo” e “diabo”. Quando Grant Cardone, investidor imobiliário, criticou as taxas de Biden e afirmou que Kamala e seus “cafetões” destruirão a América, sim, ele a chamou de “prostituta”. Ou diante da forma misógina como J.D.Vince, senador de Ohio, referiu-se à inteligência de Kamala, que cursou a Howard University e a Universidade da Califórnia, foi procuradora-geral da Califórnia, senadora da República, vice-presidente da República e está prestes a se tornar a primeira mulher presidenta dos Estados Unidos.

A agonia aumentou diante do inacreditável aplauso da plateia repleta de imigrantes depois que Trump – que divagou um bocado em suas considerações – prometer o maior programa de deportação da história dos Estados Unidos para deixar o país mais seguro, batendo na tecla perigosa do inimigo interno.

Como não pensar em Modi, o taxista indiano de riso fácil e sobrancelhas grossas que me ajudou a chegar até o estádio?

Há cinco anos em Nova York, ele aguarda a liberação do green card para poder trabalhar, sem pressão e sem medo, no país. Só depois de muita insistência, ele me disse que preferia Trump a Kamala, não por causa dela, filha de mãe indiana, mas por causa do Biden, “os dois são a mesma coisa”.

Modi acredita piamente que com Trump, o documento sai. “Biden atrapalhou muito”, balança a cabeça, “Trump não, ele faz. É um empresário”.

Enquanto isso, na Pensilvânia…

No corpo a corpo com os eleitores da Filadélfia, na Pensilvânia, onde disputa o voto dos indecisos no estado, Kamala apresentava para o eleitorado hispânico e negro, um programa de redução das desigualdades, prometendo oportunidades, emprego e ajuda ao pequeno comerciante.

“Sei que famílias negras têm 40% menos probabilidade de serem donas de uma casa. Parte da minha política beneficiará a todos, mas estou ciente de que precisamos dar às pessoas a oportunidade de ter uma casa própria, que é a oportunidade de construir riqueza intergeracional. Meu plano inclui uma assistência para os compradores pela primeira vez de um imóvel de US$ 25.000, para ajudá-los a dar o primeiro passo para a casa própria”.

Ela prometeu, também, um crédito tributário infantil de US$ 6.000. “É o que vai ajudar os pais jovens que desejam criar seus filhos, mas nem sempre possuem os recursos. Vai ajudá-los a pagar pelos cuidados infantis, comprar um berço, uma cadeirinha para as crianças no carro. Quando fizemos o Crédito Tributário Infantil pela última vez, reduzimos a pobreza infantil negra pela metade. São essas coisas que pretendo fazer, com foco no que podemos fazer e que comprovadamente funciona”, disse a uma rádio local.

A ver o apelo que mais moverá a escolha dos americanos. Enquanto a incerteza paira, um breve compilado, publicado pela Forbes nesta terça-feira (29), de várias pesquisas locais nos estados pêndulos. Os números correspondem às primeiras sondagens citadas pela reportagem:

Pennsylvania
Harris 48%, Trump, 48%

Michigan
Harris 51%, Trump 46%

Wisconsin
Harris 50%, Trump 47%

Nevada
Harris 51%, Trump 47%

Arizona
Trump 51%, Harris 47%

Georgia
Trump 51%, Harris 46%

North Carolina
Trump 50%, Harris 48%

Tatiana Carlotti, Doutora em Semiótica pelo Departamento da Linguística da Universidade de São Paulo (USP).

 

 

Vivemos uma epidemia de solidão, por Ronaldo Lemos.

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Pesquisa mostra que 1 a cada 4 pessoas enfrenta solidão severa

Ronaldo Lemos, Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.

Folha de São Paulo – 04/11/2024

A cidade de Seul acaba de anunciar que vai investir US$ 327 milhões para combater a solidão. A capital sul-coreana é a mais nova integrante do clube de governos que estão combatendo isolamento social com política pública.

O dinheiro vai ser aplicado de várias formas. A cidade vai oferecer apoio psicológico gratuito para todos os residentes, além de um serviço emergencial chamado “Adeus, Solidão”. Fez parceria com os aplicativos de delivery para identificar as pessoas que vivem sozinhas. Vai dar incentivos a quem participar de atividades sociais, incluindo visitar bibliotecas, festivais, parques e restaurantes.

Em Seul, as “mortes por solidão” têm crescido ano a ano. O fenômeno afeta principalmente homens (84% dos casos) na faixa dos 50 e 60 anos (50% dos casos).

Seul não está sozinha no problema. O Japão enfrenta há anos a crise dos “hikikomori”, jovens que romperam vínculos e vivem isolados. Há 1,5 milhão deles, muitos vivendo no próprio quarto. O problema está em todas as idades. A onda agora são os “8050”. A expressão se refere a pessoas reclusas na faixa dos 50 anos que dependem da ajuda dos pais de 80. Para combater tudo isso, o Japão tem criado centros de apoio, excursões turísticas para promover vínculos e até ajuda financeira supervisionada para reintegração social.

Quem leu até aqui pode achar que o problema é maior na Ásia. Nada disso. Em 2018, a Inglaterra criou o seu Ministério da Solidão (o nome oficial é Subsecretaria de Estado para a Solidão), que já teve quatro integrantes. A solidão cresce no país em todos os segmentos, especialmente entre 16 e 29 anos.

Nos EUA, o problema é similar. Em 2023, o cirurgião-geral (porta-voz do governo para saúde) anunciou com todas as letras que o país vive uma epidemia de solidão. Criou um plano para “reparar o tecido social”, baseado na constatação que um a cada dois americanos alegam sofrer de isolamento social.

Para quem ainda não está convencido é só olhar para a OMS. Em 2023 a Organização Mundial de Saúde decretou a solidão como prioridade global de saúde. Criou inclusive a Comissão de Conexão Social para tratar o problema, com representantes de vários países como Chile, Japão, Suécia e EUA (o Brasil ficou de fora).

Os dados publicados pela OMS são chocantes. Em pesquisa global feita pelo Gallup em 142 países, uma a cada quatro pessoas enfrentam solidão severa e o mesmo número enfrenta solidão moderada. Curiosamente os menos solitários são os mais velhos (mais de 65 anos). Já os mais sozinhos são os jovens entre 19 e 29 anos. 27% deles com solidão severa e 30% moderada.

O dano da solidão acontece em várias camadas, físicas e mentais. Um estudo de 2022 apontou que o efeito de estar sozinho para a saúde equivale a fumar 15 cigarros por dia (o equivalente em nicotina a mascar 10 sachês de Zyn, a nova tendência do momento). O Brasil não está de fora. Pesquisa IPSOS de 2021 apontou que o país ocupava o 1º lugar entre entre os que mais sentem solidão. Está na hora de reparar o tecido social aqui também.

 

Esquerdas.

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Os partidos de esquerda ou de centro esquerda apresentaram resultados pouco vistosos na última eleição, em alguns locais seu crescimento foi marginal, na maioria das vezes os ganhos foram pouco e inconsistentes, trazendo preocupações para estes grupos políticos, enquanto os partidos vulgarmente chamados de centrão, foram os grandes ganhadores no pleito municipal, notadamente o MDB e o PSD, cacifando-os para voos mais estruturados. Uma parte central deste crescimento está atrelado aos efeitos perversos do orçamento secreto, que injetou bilhões de reais nos grupos políticos de direita ou extrema direita, garantindo um naco maior de poder e de legitimidade a partir do próximo ano, um momento central e fundamental para a construção dos próximos candidatos aos governos estaduais e o governo federal.

Neste cenário, destacamos os conflitos existenciais dos partidos de esquerda, mesmo sabendo que o conceito de esquerda no século XXI está marcado por grandes dificuldades analíticas, vivemos num momento de grandes incertezas e instabilidades políticas. No front da esquerda, partindo do conceito de uma esquerda mais tradicional, destacamos uma grande dificuldade de compreender as grandes transformações do mundo do trabalho, um momento de fragilização dos sindicatos, o crescimento de novas formas de trabalho, novos modelos de negócios e alterações nas organizações sociais e produtivas, tudo isso, contribui enormemente para desestruturar os modelos anteriores, gerando medos, rancores e ressentimentos.

Destacamos ainda, as dificuldades de compreender as mudanças no mundo religioso, onde a Igreja Católica perdeu espaço para novos modelos de organização religiosa, com o fortalecimento das igrejas evangélicas, que passaram a arrebatar uma grande parte dos fiéis, com novos conceitos de religião, novas formas de estruturação social e coletiva, tudo isso, contribui imensamente para que entendamos as dificuldades dos grupos políticos mais à esquerda da sociedade.

Destacamos questões ligadas às famílias, sempre vistas como um agente imprescindíveis para as organizações sociais e que, vem passando por grandes alterações estruturais, novas formas de organização familiar, novas formas de estruturação e novos modelos de negócios, tudo isso, levou a uma erosão dos grupos de esquerda na compreensão da chamada família tradicional.

São muitos os desafios, mas gostaria de acrescentar mais um, as esquerdas estão com grande dificuldade de compreender as questões ligadas à segurança pública, perdendo espaço nas narrativas políticas e perdendo força na construção dos diagnósticos feitos pelos grupos mais à direita ou de extrema-direita.

Os desafios contemporâneos são elevados e prescindem de grandes discussões políticas, neste momento, cabem aos grupos de esquerda e de centro esquerda uma ampla reflexão para voltarem a ter influência e relevância no debate político quando o assunto está relacionado com a segurança pública, a família contemporânea, as questões religiosas e as grandes transformações no mundo do trabalho.

Os grandes desafios são imensos e precisam de grande maturidade, olhar internamente suas dificuldades, os medos e os ressentimentos mais íntimos e pessoais.

Derrota e Descaminho, por Antônio Martins

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Fiasco eleitoral do governo é dramático e expõe necessidade de mudança de rumos. Porém, Fazenda insiste no erro e pode tornar Lula refém do rentismo e do Centrão. Há alternativas; mas presidente não tem muito o tempo para buscá-las

Antônio Martins, editor de OUTRAS PALAVRAS – 28/10/2024

Mesmo quando previstas, as derrotas graves são doídas. Embora Lula governe o país, os partidos de esquerda e centro esquerda fecharam, ontem, o pleito deste ano elegendo apenas três, de 26 prefeitos de capitais – uma queda abrupta frente aos 14, em 2012, e abaixo mesmo dos 6, em 2020, sob o mandato de Jair Bolsonaro. A esquerda perdeu redutos históricos como Diadema (SP), onde governou por 32 anos nas últimas quatro décadas e elegeu, em todo o país, um número de prefeitos menor de que o alcançado há quatro anos. No primeiro turno, o PL, de Jair Bolsonaro, foi o partido mais votado (com 13,95% dos votos), graças a sua ascensão nas grandes cidades; e o PT, apenas o sexto (com 7,79%).

Mas no cômputo geral dos municípios, prevaleceram os quatro partidos do Centrão – cujo compromisso com as pautas neoliberais, na economia, e conservadoras, nos costumes, é indisputado. PSD, MDB, PP e União Brasil venceram juntos em 3097 cidades, quase onze vezes mais que a federação formada por PT, PCdoB e PV. No Nordeste, tradicional reduto lulista, PT e PSB elegeram apenas duas prefeituras – contra sete do Centrão (5) e PL (2) somados. Em São Paulo, a coalizão formada em torno de Ricardo Nunes venceu em todos os distritos eleitorais da periferia, exceto dois. Em todo o país, as pesquisas sugerem que direita e Centrão avançaram sobre o eleitorado jovem, invertendo uma tendência histórica.

Embora muitos fatores (inclusive internacionais) devam ser elencados para buscar os motivos do fiasco, um parece claro. Em seus primeiros dois anos, o governo Lula foi incapaz de corresponder às esperanças de que iniciaria a reconstrução nacional, superando o interregno de retrocessos aberto pelo golpe de 2016 e ampliado por Bolsonaro. As condições eram difíceis desde o início, mas o Palácio do Planalto acomodou-se à correlação de forças existente – ao invés de tentar alterá-la. A mobilização popular, sua principal ferramenta para fazê-lo, foi sempre desprezada.

Disso advieram duas consequências, desastrosas e complementares. As instituições conservadoras, que atuam como barreiras das elites para manutenção dos privilégios e da desigualdade, jamais sentiram-se pressionadas a fazer concessões. Um exemplo típico é o Banco Central. Bem cedo seus dirigentes – nomeados por Bolsonaro e abertamente partidários do ex-presidente – perceberam que, embora esbravejasse contra as taxas de juros, Lula não os submeteria a constrangimentos reais; assim como não mobilizaria os bancos públicos para aliviar a inadimplência e captura dos tostões da população endividada. O mesmo ocorreu com as concessionárias privadas do setor elétrico ou, em muito maior escala, com o Congresso Nacional, onde as pautas antipopulares tramitam sem tensão.

O segundo efeito é que, ao não abrir disputa contra os conservadores, Lula é visto como mais um entre eles – ou seja: parte da minoria que enriquece enquanto o país definha. Num cenário de crise prolongada, esta identificação dá origem a fenômenos bizarros, pois entrega à direita a poderosíssima bandeira de “antissistema”. Como em São Paulo, onde parte expressiva do eleitorado atribuiu esta imagem a Pablo Marçal – um milionário que se identifica com o homem mais rico do mundo – e não a Guilherme Boulos, que associou sua figura à do chefe do governo…

A baixa potência de Lula 3 deveu-se especialmente à obsessão do ministro da Fazenda por um “ajuste fiscal”, materializado no “arcabouço” no “déficit primário zero”. Num país empobrecido e reprimarizado, o investimento público pode ser a principal alavanca do governo para melhorar a vida das maiorias, renovar a infraestrutura e criar milhões de ocupações dignas. Além disso, os conservadores têm enorme dificuldade para se opor. Imagine-se o impacto que teriam, na sociedade e no Congresso, propostas como a garantia de escola pública em período integral, a extensão de Equipes de Saúde da Família a todo o território nacional, a duplicação das redes de metrô, a despoluição dos rios urbanos e a contratação de todos os profissionais necessários a estas tarefas.

Ao invés de abraçar projetos como estes, a Fazenda optou por perseguir uma “disciplina” só benéfica aos rentistas (a China, por exemplo, mantém déficits fiscais de 3% ao ano há décadas e acaba de ampliá-las; a União Europeia debate neste exato momento o Plano Draghi, que pode elevar o déficit anual a 5% do PIB; os EUA registrarão déficit de 7,3% em 2024). A eleição escancarou os resultados políticos de tal escolha. Lula conserva popularidade mediana. Mas a capacidade que ele teve, nos dois primeiros mandatos, de sinalizar tempos novos para a maioria (“nunca antes na história deste país”) e mobilizar o eleitorado em favor de seu campo político esfumaçou-se. Sensível ao declínio, o presidente retraiu-se durante a campanha. E este encolhimento pode se consolidar caso prospere a movida que o próprio Fernando Haddad articulou, nas últimas semanas. Se concretizada, ela alterará, de forma definitiva, o próprio caráter do governo.

Por volta de 10 de outubro, quando o ministro da Fazenda deu inicio à fase crucial do movimento que deflagrara quatro meses antes, o resultado das urnas já estava delineado. Haddad sabia, portanto, que seus atos incidiriam sobre um cenário de derrota eleitoral do governo e de início das definições rumo a 2026. Decidiu ir adiante.

Em 15 de outubro, algumas das colunas jornalísticas mais prestigiadas do país – em especial, as de Mônica Bergamo e Míriam Leitão – publicaram entrevistas em que o ministro admitia publicamente, pela primeira vez, seu desejo de promover “cortes estruturais” no gasto social da União. As medidas exatas, disse ele às jornalistas, estavam sobre a mesa de Lula (ou chegariam, nos dias seguintes), depois de terem sido longamente arquitetadas por seu ministério e pelo Planejamento, de Simone Tebet. Seriam feitos após as eleições.

Mas os itens do cardápio eram claros. Fim dos dispositivos que asseguram à Saúde e Educação percentuais mínimos do Orçamento. Restrições ao Benefício de Prestação Continuada (BCP), a aposentadoria dos mais pobres. Cortes no seguro-desemprego. Em certas versões, fim da âncora que protege as aposentadorias, ligando-as à evolução do salário-mínimo. Caberia a Lula optar. Mas em todos os momentos o ministro frisou “ver razão” nas pressões da Faria Lima por mais apertos nos gastos públicos. Insinuou que, se fossem satisfeitas, o “interesse internacional” poderia manifestar-se em busca de “vantagens comparativas que têm a ver com nossa matriz produtiva e energética”. Um brinde à ENEL e suas correlatas…

A manobra, porém, ainda não estava completa. No dia seguinte, 16/10, Haddad conduziria ao encontro de Lula os maiores banqueiros do país, que se reuniram juntos com o presidente pela primeira vez. O acerto, conta a repórter e analista Maria Cristina Fernandes, no Valor, vinha sendo feito pelo ministro e pela Febraban desde junho. Ou seja: as entrevistas da véspera tinham a intenção de reforçá-lo, criando sinergia entre os dois eventos. E assim foi. A própria Maria Cristina reportou mais tarde que, embora tenham tratado também de temas laterais (como o efeito dos saques na poupança sobre o crédito imobiliário e a regulação das bets), os banqueiros quiseram frisar, acima de tudo, seu apoio à cruzada de Haddad pelo corte “estrutural” nos gastos públicos. [Ninguém tocou, decerto, num tema-tabu: o fato de os juros pagos pelo Estado a um punhado de rentistas corresponder, a cada ano, a 2,5 vezes todo o orçamento federal para a Saúde, que atende 210 milhões de pessoas em 5600 municípios…].

A Economia precisa encontrar-se com a Política. Em vista das eleições, qual será o perfil do governo Lula, caso ele aceite o sentido do pacote proposto pelo ministro da Fazenda? E que cenário está pressuposto nesta “conversão” do presidente?

À esquerda, as perdas de Lula serão inevitáveis. Nos grupos de internet ligados à defesa do SUS, por exemplo, já circulam manifestos contra o fim da garantia de verbas para a Saúde Pública – que contam com a simpatia, inclusive, de ex-ministros de Lula e Dilma. Porém, é possível que Haddad (e talvez seu superior) faça(m) outros cálculos. Nestas contas hipotéticas, a esquerda não terá outra alternativa: engolirá o corte de verbas e direitos, pois será forçada a apoiar Lula (ou seu eventual candidato sucessor…) contra a ultradireita, em 2026.

E o desenho da disputa presidencial, em dois anos, será muito diferente do vivido em 2022. De um lado estará a ultradireita. De outro, Lula (ou um sucessor…). A Frente ampla que o apoiará já não terá em sua espinha dorsal a esquerda e a centro-esquerda. Basta olhar para a composição do Congresso (e a das prefeituras recém-eleitas) para enxergar. Nesse novo arranjo, dará as cartas o Centrão. Gilberto Kassab (PSD) e Baleia Rossi (MDB) serão os ministros mais poderosos – ou as eminências pardas…

Caberá à esquerda coadjuvar, tanto no ministério quanto – muito mais importante – na definição dos planos de governo.

Estamos condenados a tão pouco? A primeira resposta cabe a Lula. Ele se conformará a tal conchavo? Aceitará – assim como Gabriel Boric no Chile, Emmanuel Macron na França, Alberto Fernandez na Argentina ou Olaf Sholz na Alemanhha – o papel de figura decorativa, a lembrar que houve vida e ousadia, onde então só restará subalternidade? Saberemos nas próximas semanas.

E caso ele sucumba? Estaremos dispostos a trocar nossos projetos e sonhos de um país reconstruído por um punhado de ministérios de consolação? Ou, pior ainda, a fazer parte de um projeto que não sobreviverá à onda de ultradireita, devido à sua própria claudicância?

Nas últimas semanas, têm surgido, entre personagens de uma esquerda insubmissa, considerações de que este destino não é digno, nem aceitável. As próximas semanas e meses dirão se esta ousadia tem futuro.

 

A grande promessa das eleições, por Ana Paula Vescovi

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Resultados dos pleitos em diversos países neste ano apontam para mais juros e menor crescimento global, e o Brasil precisa se preparar para esse cenário

Ana Paulo Vescovi, Economista-chefe do Santander Brasil.

Folha de São Paulo, 03/11/2024

Um dos principais temas em 2024 é o aumento da incerteza com a agenda global tomada por eleições, majoritárias ou proporcionais. Economistas costumam não se aventurar no terreno da política, mas o amplo e inédito movimento eleitoral pode trazer sinais importantes para a economia nos próximos anos.

Segundo dados do Council on Foreign Relations, o mundo jamais se deparou com um número tão grande de eleitores votando como em 2024. São 2 bilhões em mais de 80 países, incluindo 8 entre os 10 mais populosos do mundo. A lista inclui Brasil, Índia e Estados Unidos, além da União Europeia e outros.

Globalmente, a polarização política e cenários eleitorais incertos dificultam consensos, aumentam gastos públicos e enfraquecem ações contra mudanças climáticas.  Em países emergentes, nota-se fragilidade institucional e menor apoio a reformas.

Nem todas as eleições foram realmente abertas e transparentes, havendo a recondução de incumbentes em países com regimes fechados. Na Venezuela, na Rússia ou em Bangladesh, o resultado das urnas gerou revoltas populares, seja nas ruas em conflitos conflagrados, seja por meio de elevado absenteísmo como forma de protesto silencioso, seja pela deposição do eleito poucos meses depois. É um pedaço do mundo que convive com tensões sociais aumentadas.

Entre as principais economias emergentes, Índia, México e África do Sul, os sinais foram mistos. Nos dois primeiros, os incumbentes mantiveram a sua força, se reelegendo ou elegendo sucessores. Na África do Sul, o partido de Nelson Mandela perdeu a sua força após 30 anos de hegemonia.

Entre as economias avançadas, os sinais são o aumento de gastos públicos e a ausência de ajuste fiscal, com dívidas soberanas mais altas e ainda crescentes. Isso implica juros mais altos por mais tempo, menos investimentos e pressões inflacionárias latentes.

As eleições para o Parlamento Europeu também surpreenderam, anos após o brexit e a invasão na Ucrânia. Os nacionalistas e a extrema direita aumentaram o número de cadeiras e, embora não tenham chegado à maioria, cresceram na Itália, em Portugal e na Alemanha, além de Áustria, Polônia e Holanda.

Na França, a governabilidade precisará ser bastante negociada. Foi surpreendente a convocação antecipada (em três anos) de eleições legislativas, a qual resultou em uma composição parlamentar fragmentada, com nenhuma das coalizões —Nova Frente Popular, de esquerda; a Aliança Centrista, do presidente Macron; a Reunião Nacional, da ultradireita— conseguindo maioria absoluta.

E, por fim, em poucos dias conheceremos o resultado das eleições presidenciais e congressuais nos Estados Unidos. Pesquisas denotam uma corrida bastante disputada, com os republicanos sinalizando leve vantagem nos estados que não têm a tradição de apoio persistente a um dos dois lados. O que mais atrai a atenção dos mercados são dois pontos: riscos de contestação do resultado, com atrasos na decisão final e mais fricções institucionais; e uma possível vitória majoritária —a Presidência e as duas Casas no Congresso— de um dos partidos, o que reduziria os freios e contrapesos nas discussões de medidas econômicas.

O que mais pesa são as propostas anunciadas na campanha. As estimativas de piora fiscal (aumento de gastos ou redução de impostos) giram em torno de 15% a 25% do PIB nos próximos dez anos. Espera-se ainda o acirramento do protecionismo, especialmente em relação a produtos chineses, com a imposição de tarifas, por parte dos republicanos, ou a aposta de mais subsídios para política industrial, no caso dos democratas.

Não bastasse, a questão geopolítica emerge com outros temas, que vão desde a influência para a redução do financiamento de guerras por meio do aumento de oferta e redução dos preços de petróleo até a retirada do suporte financeiro aos países envolvidos nelas (Israel e Ucrânia), passando pela rediscussão do papel das organizações multilaterais.

Ademais, o protecionismo e a fragmentação do comércio exterior retiram produtividade e crescimento da economia global. A eventual imposição de tarifas comerciais mais altas nos Estados Unidos concorre, com juros mais altos, para a valorização do dólar ao longo do tempo.

Assim, o quadro mais geral que emerge das mudanças políticas é um mundo que retrocede nos aspectos institucionais e na coordenação multilateral e, possivelmente, caminha para mais juros, menos crescimento e dólar mais valorizado, tal como nos anos 1980.

O Brasil abre novas oportunidades para escapar dessa tendência. As eleições municipais recentes sinalizaram um passo mais à direita, mas com ampliação do centro político, o que pode favorecer a busca por consensos e o equilíbrio de forças entre Poderes.

O eleitorado brasileiro indica redução da polarização, o que, se bem traduzido pelos representantes políticos, poderá nos levar para uma agenda mais pragmática. É urgente interromper o crescimento da dívida pública e do seu custo de financiamento, persistir na melhoria do ambiente de negócios (estamos próximos a uma reforma tributária), em políticas sociais mais efetivas e na promoção das vantagens comparativas.

Trata-se de um apelo para o senso de urgência que precisamos ter em relação à busca mais enfática pelo grau de investimento e pelo reposicionamento do Brasil nos mercados globais, com sustentação do seu processo de desenvolvimento.

 

Combate ao crime organizado é questão de Estado, por Oscar Vilhena Vieira.

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Sem paz não haverá prosperidade nem democracia

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023)

Folha de São Paulo, 02/11/2024

Debelar o crime organizado constitui hoje o principal desafio da democracia brasileira. Muitos dirão que temos desafios mais importantes. O fato, porém, é que dificilmente conseguiremos êxito em outras frentes sem que a criminalidade organizada seja contida.

A expansão da criminalidade organizada vem submetendo parcelas cada vez maiores da população brasileira à brutalidade e à exploração econômica. Estima-se que 23 milhões de brasileiros vivam hoje em áreas dominadas por milícias e facções. Nessas áreas não há lei nem direitos. A regra são a violência e o arbítrio. É um erro acreditar que o crime organizado se interesse apenas por atividades ilegais altamente lucrativas, como o narcotráfico, o garimpo ilegal, a grilagem, o desmatamento criminoso, o tráfico de seres humanos ou a prostituição. O crime tem expandido suas ações para a distribuição de combustíveis —e mesmo a produção de álcool—, o mercado imobiliário, de transporte coletivo e de apostas e a lavagem de dinheiro, para ficar apenas nos exemplos mais evidentes.

Milícias e facções têm se dedicado a controlar o acesso da população aos serviços públicos, ao mercado local, à liberdade básica de ir e vir e até mesmo o acesso à religião. O chamado “narcopentecostalismo” é hoje um fenômeno que vem ganhando força em muitas comunidades. São, portanto, milhões de brasileiros reféns de um estado cotidiano de exceção.

Particularmente preocupante é a expansão do crime organizado pela amazônia. Como aponta Marta Machado, secretária Nacional de Políticas sobre Drogas, há hoje uma forte conexão entre narcotráfico e degradação ambiental. Pistas clandestinas, rotas de escoamento, lavagem de dinheiro e prostituição fazem parte das mesmas redes. O enfrentamento da questão climática, no Brasil, está hoje umbilicalmente ligado ao combate ao crime organizado.

Múltiplos são os fatores que levaram a essa expansão do crime, que vão da ausência ou presença arbitrária do Estado à inexistência de oportunidades econômicas. Há, porém, uma dimensão institucional, que decorre de escolhas erradas no campo da segurança pública e da política criminal.

O primeiro desses erros tem sido apostar numa política de encarceramento indiscriminado e em massa. O Estado tem se tornado, assim, o principal parceiro do crime organizado. Nas prisões, as facções cresceram e se fortaleceram.

Um segundo erro tem sido negligenciar a profissionalização, a integração, as boas condições de trabalho, o investimento em inteligência e o controle das polícias, reduzindo sua eficiência e, em algumas circunstâncias, favorecendo a milicianização das forças de segurança.

Um terceiro erro foi flexibilizar o acesso a armas e munições, que têm migrado para as mãos de criminosos, aumentando o poder de fogo contra a população e mesmo contra a polícia.

O mais preocupante, neste momento, tem sido o avanço do crime organizado sobre a política partidária, o Legislativo, governos, polícias e mesmo a Justiça. É fundamental que medidas urgentes sejam tomadas antes que esse processo de captura do Estado se torne irreversível.

A PEC apresentada pelo Governo Federal aos governadores nesta semana pode representar um primeiro passo na criação de uma política de Estado de segurança pública. Conservadores e progressistas têm que se unir contra o crime.

 

A moda do pobre empreendedor, por Gonzalez, Barlach & Almeida Prado.

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Análises apressadas ignoram múltiplos perfis; compreender as nuances desse universo é essencial para aprimorar políticas públicas e modelos de negócio

Lauro Gonzalez, Breno Barlach e Mauricio de Almeida Prado

Respectivamente, coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão Financeira da FGV e diretores do instituto de pesquisas Plano CDE

Folha de São Paulo – 03/11/2024

Virou moda falar em pobre de direita, empreendedor, conservador etc. A hipótese aventada em diversos artigos de opinião conecta a desilusão desse grupo com governos de esquerda, que não estariam atentos às preferências pelo empreendedorismo e por formas mais flexíveis de trabalho. Esse argumento foi usado como explicação para o sucesso da candidatura de Pablo Marçal (PRTB) em São Paulo. Seu discurso, alinhado à teoria da prosperidade das igrejas evangélicas, soaria bem aos ouvidos de um estrato social que vive no “corre” diário, como autônomos, motoristas de aplicativos, entregadores etc.

De fato, muitos estudos mostram uma afinidade entre o ethos do trabalhador autônomo e políticas que preconizam a desconfiança de políticas públicas e colocam o Estado como entrave. Para esses trabalhadores, promessas de estabilidade ligadas ao regime celetista são vistas como obstáculos para oportunidades de aumento de renda.

Entretanto, no calor dos resultados eleitorais, análises apressadas ignoram os múltiplos perfis da população de baixa renda. Cria-se uma espécie de categoria analítica denominada “pobre” a qual se associa um bloco homogêneo de ideias, valores e preferências. Em um preconceito às avessas, a diversidade existente nas classes de renda mais elevada é ignorada quando se analisa essa população.

No tocante ao empreendedorismo, são claras as evidências de uma diversidade de perfis. Estudo de 2020 estimou que 23% dos empreendedores gostariam de ter um emprego formal. Ou seja, são empreendedores por necessidade. Outro estudo, mais recente, com jovens das classes CDE na escola pública, mostrou que apenas 18% tinham o empreendedorismo como objetivo profissional —os demais sonhavam com empregos formais. Estudo do Instituto Plano CDE em conjunto com o Centro de Estudos de Microfinanças e Inclusão Financeira da FGV sobre o uso de serviços financeiros por parte da população de baixa renda estimou a fração de empreendedores em torno de 20% dessa população.

O mesmo estudo mostrou a existência de múltiplos perfis atitudinais, com diferentes preferências por modos de trabalho. O mais comum destes perfis foi chamado de “conservador” (33% da população das classes C, D e E). O nome deriva não de preferências políticas, mas de uma predileção por segurança. São aqueles que temem se endividar, evitam o uso do cartão de crédito, controlam os gastos e tendem a preferir rendas estáveis.

Indo aos detalhes desse universo heterogêneo, é frequente uma variabilidade de perfis dentro do próprio domicílio. Isso porque muitas pessoas moram em domicílios com “famílias estendidas”, nas quais as composições familiares são mais complexas e contemplam múltiplas fontes de renda. É o avô que recebe a aposentadoria convivendo com o casal, ela CLT e ele empreendedor. Mas ela também faz bicos de manicure aos finais de semana, assim como o jovem que mora com eles e trabalha na feira alguns dias da semana. Portanto, em domicílios assim, coexistem múltiplos perfis comportamentais, vínculos de trabalho e, possivelmente, visões de mundo.

Vale dizer que os resultados dos estudos acima são condizentes com postulados da teoria econômica. Como destacou a ganhadora do Prêmio Nobel Esther Duflo, o empreendedorismo exige uma maior disposição para assumir riscos, sendo que o ser humano médio tende a exibir um grau de aversão ao risco elevado.

Em relação aos empreendedores por necessidade, outro Nobel, Amartya Sen, dizia que o bem-estar é alcançado pela liberdade de fazer o que se valoriza. Portanto, Sen diria que é possível aumentar o bem-estar real dessas pessoas através de outros tipos de vínculo de trabalho.

Em suma, a realidade do mundo do trabalho não só é diversa como apresenta uma dinâmica que dá os contornos das preferências por diferentes formas de trabalho. Muitas pessoas buscam flexibilidade e independência, enquanto outras preferem a segurança de um emprego formal. Compreender as nuances desse universo heterogêneo é essencial para aprimorar políticas públicas e modelos de negócio.

Por fim, talvez exista uma tendência de culpar os pobres em diversas situações. Durante a pandemia, jornalistas tarimbados não hesitaram em tacar pedra na Geni. Alguém escreveu que, ludibriado pelo pagamento do auxílio emergencial, o “rebanho de gente que precisa do governo para sobreviver, até para comer”, cairia no colo de Bolsonaro. Não foi o que aconteceu…

 

Brics +

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Vivemos momentos de grandes conturbações na economia internacional, confrontos econômicos que buscam novos espaços no comércio global, o aumento da tecnologia está moldando todas as bases da sociedade, as transformações no mundo do trabalho crescem de forma acelerada, os desequilíbrios climáticos assustam e geram preocupações palpáveis para todos os indivíduos, o incremento das desigualdades sociais gera calafrios e desesperanças. Neste cenário, encontramos embates de nações que vislumbram a hegemonia internacional, o aumento das guerras, novos padrões monetários e novas perspectivas para a economia mundial.

Diante de tantos desafios em curso na sociedade global, encontramos o fortalecimento do Brics + (inicialmente um espaço de integração entre Brasil, Rússia, Índia, China, África de Sul e países associados), que pode ser visto como uma grande transformação geopolítica mundial, com a entrada de novas nações, novas discussões geoestratégicas e novas perspectivas para o comércio internacional, o surgimento de novos projetos econômicos, comerciais e financeiros, tais como a costura de uma nova moeda para os países membros, um novo modelo monetário e financeiro, com o incremento da integração e a interdependência destas nações, estimulando a sinergia, o aumento das trocas comerciais e a maior solidariedade dentro do bloco.

Embora os analistas geopolíticos internacionais destaquem o caráter do Brics + como um modelo antiocidental, os países membros rechaçam essa definição, acreditando que o acordo vislumbra novos espaços comerciais e econômicos, com a construção de novos horizontes de integração e de interdependência. Embora acreditando que o crescimento e a consolidação, depois de muitas conversas e negociações, o Brics + tende a fortalecer as nações envolvidas, consolidando seus padrões de integração e reduzindo a dependência das nações ocidentais, impactando positivamente sobre o comércio internacional do sul global em detrimento dos países ocidentais que devem perder espaços comerciais construídos desde a expansão europeia.

Neste momento de grandes transformações na sociedade contemporânea, as nações estão buscando novas parcerias estratégicas para estimular o desenvolvimento de suas economias, novas formas de desenvolver suas estruturas produtivas, estimulando a transferência de novas tecnologias, consolidando apoios estratégicos e geopolíticos, maior autonomia econômica e soberania política nas relações internacionais, deixando de lado as nações que se comprazem com conflitos militares, estímulos crescentes da indústria bélica e da destruição, sendo verdadeiros mercadores da morte e da devastação.

Num momento de grandes incertezas e confrontos militares motivados e estimulados por nações ocidentais, onde a memória da colonização europeia, sempre marcada por pilhagens e devastações, o fortalecimento de um bloco de países do Sul Global pode gerar receios e preocupações das nações do norte, como destacou um alto integrante do governo alemão que demonstrou descontentamento com o crescimento e o fortalecimento do Brics + que podem criar constrangimentos para a manutenção da hegemonia. O Oceano Atlântico, desde a Revolução Industrial, dominou a economia internacional e garantiu a preponderância e a dominação das nações ocidentais, na sociedade contemporânea, os poderes e as hegemonias estão em franca movimentação, o Oceano Pacífico, nesta nova configuração geopolítica, tende a dominar e a controlar a economia internacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Haddad e o FMI, por Paulo Klias

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Desde Getúlio, a relação do Brasil com o Fundo alternou subordinação e conflito. Lula 1 alcançou certa independência. Agora, ministro mostra-se submisso diante das orientações da instituição que sempre levaram o Sul a privatizações e desmonte de direitos

Paulo Klias – OUTRAS PALAVRAS – 29/10/2024

As relações econômicas e financeiras formais entre o Brasil e o Fundo Monetário Internacional (FMI) sempre foram marcadas por algum grau de conflito e tensão. Afinal, apesar da motivação das negociações ser o ingresso de recursos externos para auxiliar a situação do balanço de pagamentos de nosso país, em geral os governos apresentavam divergência com relação às condições impostas pelas diferentes equipes do Fundo.

A primeira operação ocorreu em 1954, com a assinatura de um empréstimo para o governo presidido por Getúlio Vargas. Tratava-se de um aval concedido pelo FMI a um empréstimo, no valor de US$ 300 milhões, oferecido pelo Eximbank dos Estados Unidos ao governo brasileiro. Porém, cinco anos depois, em 1959, Juscelino Kubitschek rompe o acordo com a instituição multilateral em função dos compromissos assumidos em seu Plano de Metas. Tendo em vista a necessidade de promover uma flexibilização no rigor fiscal imposto pelo FMI, o presidente decide sair da austeridade para conseguir espaço orçamentário para projetos como a construção da nova capital em Brasília e outras medidas envolvendo despesas públicas elevadas, além de investimento estatal direto.

A relação só voltaria se normalizar após o golpe militar de 1964 e a consequente implementação de uma política econômica de natureza ortodoxa e conservadora. Entre 1965 e 1972 são assinados e renovados anualmente acordos classificados como “stand by”, cuja intenção era auxiliar em eventuais problemas de balanço de pagamentos. No entanto, como os governos da ditadura cívico-militar ofereciam benesses e atratividade ao capital internacional, tais acordos operavam mais como uma garantia de expectativas, uma vez que o fluxo de recursos externos não parava de crescer no período.

Brasil e FMI: décadas de tensão

A situação muda de figura a partir do final da década de 1970 com a crise do petróleo na esfera internacional. Logo na sequência tem início uma fase de grandes dificuldades nas contas externa dos países do chamado Terceiro Mundo – a chamada crise da dívida. Em 1982, durante a gestão de Delfim Neto como o superministro da área econômica do último governo dos generais, o Brasil assina um acordo com o Fundo para assegurar o ingresso de recursos externos para cumprir as obrigações com os credores. Delfim teria assinado seis cartas de intenção com o organismo e nunca cumpriu com as cláusulas ali constantes. Foram diversos anos de dificuldades em honrar os compromissos constantes nas cláusulas dos títulos de endividamento. É desta época a frase que ficou famosa proferida pelo ministro, quando afirmou que “dívida pública não se paga, dívida se rola”.

Com o início da transição política para superar a fase ditatorial, o governo Sarney promove algumas medidas importantes na área econômica. Dentre elas estava a formalização da moratória da dívida externa em 1987. Na sequência, com a eleição de Collor de Mello para a Presidência da República, as sucessivas equipes de economia buscam um acordo com o FMI entre 1990 e 1992, mas não obtêm resultado. Com o fracasso de tais negociações, a situação só volta a se “normalizar” no final do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso (FHC). O ministro da Fazenda Pedro Malan logra assinar um acordo com o Fundo em 1998, por meio do qual o Brasil recebe um total de US$ 41,5 bilhões.

O problema são as contrapartidas impostas pelo Fundo. Como sempre, trata-se da exigência de implementação das orientações previstas no Consenso de Washington, tais como a privatização de empresas estatais, a liberalização geral da economia e a imposição de regras rígidas de austeridade fiscal. Boa parte de tais iniciativas já estavam em curso desde a posse de Collor de Melo em 1990, mas FHC acelera em 1998 a venda do sistema público de telecomunicações e de energia elétrica. Além disso, o seu governo encaminha um projeto de lei ao Congresso Nacional que se converte na Lei de Responsabilidade Fiscal, a Lei Complementar nº 101 de 2000.

FMI e as recomendações conservadoras

Com a posse de Lula em 2003, houve uma melhoria sensível nas contas externas brasileiras. Com isso, em 2005, o País quitou sua dívida junto ao Fundo e em 2009 avançou ainda mais, comprando U$10 bi em bônus da instituição e tornando-se, pela primeira vez na História, credor do FMI. Apesar da falta de exigência formal de uma política econômica seguindo as regras da ortodoxia conservadora, a duplinha Antonio Palocci no Ministério da Fazenda e Henrique Meirelles no Banco Central (BC) mantiveram a essência do austericídio, com rigor fiscal de índices de superávit primário até então inéditos e taxas de juros também rolando na estratosfera.

Durante os 14 anos em que o Partido dos Trabalhadores esteve no governo federal, a presença do FMI sempre passou ao largo do debate e da subserviência explícita ao organismo. A existência de um estoque significativo de reservas cambiais e a manutenção de uma recorrente folga na Balança Comercial deixaram para um segundo plano a necessidade de eventual ajuda para solucionar eventuais problemas nas contas externas. Em 2003, elas estavam em US$ 39 bi. Em 2007 superam a marca dos US$ 100 bi. Em 2008, atingem US$ 200 bi. Em 2011, as reservas atingem e superam os US$ 300 bi. Atualmente estão na faixa de US$ 370 bi.

Ocorre que o “golpeachment” praticado contra Dilma Rousseff e a posterior eleição de Bolsonaro em 2018 institucionalizaram o conservadorismo na política econômica de forma escancarada. Sem nenhuma pressão formal do FMI, os governos recuperaram a pauta da privatização das estatais, da redução do Estado à sua dimensão mínima e do aprofundamento da pauta da austeridade fiscal.

Lula 3.0 e a esperança de mudança

No entanto, as esperanças depositadas na eleição de Lula para um terceiro mandato em 2022 começaram a se verem frustradas com a indicação de Fernando Haddad para o Ministério da Fazenda. O que se assistiu desde então foi a retomada da agenda conservadora de austeridade, com a troca do Teto de Gastos de Temer pelo Novo Arcabouço Fiscal (NAF). Com isso, manteve-se a essência da estratégia de redução do peso do Estado na economia e a preparação para que parte dos serviços públicos, das políticas públicas e da infraestrutura sejam assumidos pelo capital privado.

Nesse contexto de aproximação com os interesses do financismo local e global, Fernando Haddad acaba por incorporar de forma plena a pauta do povo da finança. A manutenção da austeridade fiscal como ponto essencial da política econômica termina por comprometer toda a capacidade de recuperação do protagonismo do Estado. O ministro da Fazenda busca se apresentar como representante do bom mocismo junto aos representantes do financismo e se concentra em obter bons resultados fiscais. Isso se concretiza, por exemplo, na obsessão em zerar o déficit fiscal primário em 2024.

Mas o aspecto recente mais impressionante foi a aceitação e a concordância passiva de Haddad com as orientações do FMI. O Fundo apresentou um novo relatório a respeito da situação da economia brasileira e realizou algumas projeções para os próximos períodos. Como era de se esperar, as conclusões apontam para uma suposta “explosão” da dívida pública brasileira. Esse é um dos principais argumentos em favor de um endurecimento ainda maior no controle dos gastos governamentais.

Haddad: conversão ao conservadorismo neoliberal

O documento do FMI faz coro às manifestações dos escribas do sistema financeiro nos grandes meios de comunicação: o governo estaria sendo conivente com o retorno ao espírito da “gastança generalizada”, uma vez que ele não se compromete seriamente com o rigor necessário na condução da política fiscal. Haddad assume esse sentimento de culpa e declara:

(…) “Estamos agora tendo que repensar essa estratégia para fortalecer o arcabouço fiscal. Mas do ponto de vista fiscal, eu penso que o fortalecimento do arcabouço fiscal é o remédio mais adequado para o momento que estamos vivendo” (…)

Além disso, o ministro avança em suas afirmações, cedendo às pressões para aprofundar ainda mais o extremismo fiscal. Indagado a respeito da suposta incapacidade em atingir as metas este ano e nos próximos exercícios, ele deixa aberta possibilidade de um maior rigor nas regras previstas atualmente no NAF. O dispositivo que se converteu na Lei Complementar 200 estabelece a obrigatoriedade de que as despesas só possam crescer a 70% do ritmo de elevação das receitas. Como existem algumas garantias constitucionais para saúde e educação, além do compromisso de Lula com a valorização do salário mínimo acima da inflação, é possível que as metas austerizadas não sejam efetivamente cumpridas. Mas o ministro, ao invés de defender a maioria da sociedade brasileira contra os intentos do financismo, termina por concordar com o diagnóstico conservador e sugere um aprofundamento ainda mais severo dos mecanismos de contenção. Segundo ele, o diferencial entre despesas e receitas poderia ser ainda mais elevado. Uma loucura!

(…) “é necessário manter os gastos entre 50% e 70% da receita para retomar a uma posição de equilíbrio” (…)

Se Lula quiser cumprir efetivamente com suas promessas de campanha e com as exigências de um país que precisa romper o círculo vicioso da pobreza e da desigualdade, é fundamental sair da camisa de força imposta pela austeridade fiscal. Não faz sentido um governo presidido pelo Partido dos Trabalhadores somar esforços junto ao FMI para completar a imposição da pauta neoliberal em nossas terras.

Paulo Klias, Doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal

 

 

Alunos do curso de Gestão Hospitalar da Fatec Barretos 2024.

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Alunos do curso de Gestão Hospitalar da Fatec Barretos 2024.

A disputa dos recursos públicos, por Luciano Fedozzi

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Luciano Fedozzi – A Terra é Redonda – 27/10/2024

A estratégia política do governo federal em não abrir a discussão do orçamento com a sociedade civil tem efeitos negativos, tanto em nível federal como nos demais níveis subnacionais de governo

O contexto de reconstrução nacional do Estado e das políticas públicas no Brasil, após a catástrofe autoritária e ultraliberal desencadeada desde 2016, exige a combinação do fortalecimento das instituições representativas da democracia e a reconstrução das instâncias da democracia participativa, criadas após a Constituição Federal de 1988.

A partir da vitória de Lula, o Governo Federal vem encaminhando, juntamente com atores da sociedade civil e as comunity politics, a reconstrução das esferas socioestatais de participação social que foram destruídas ou enfraquecidas desde 2016, e principalmente durante o governo de Jair Bolsonaro. Foram retomados conselhos nacionais e conferências, e institucionalizada a articulação interconselhos, todas instâncias importantes para a democratização da gestão governamental e a efetivação de políticas ligadas aos direitos da cidadania.

A instauração do Conselho de Participação Social (CPS), vinculado ao Gabinete de Transição, que funcionou como órgão de assessoria ao presidente eleito, indicou linhas gerais para a relação entre o novo governo e a sociedade civil, assim como as respectivas políticas de participação a serem efetivadas em nível federal.

No âmbito da estratégia de participação social, após a vitória democrática, o Orçamento Participativo Nacional (OPN) surgiu como uma possibilidade real, apesar da complexidade de funcionamento dessa modalidade na escala federal. O Observatório das Metrópoles e a Rede Brasileira dos Orçamentos Participativos (RBOP) [i] apresentaram uma proposta, no início de 2023, [ii] para implementá-lo, e veem promovendo atividades para a retomada dos Orçamentos Participativos na agenda política das cidades, já que é decrescente o número de municípios que adotam essa prática no país, um paradoxo em relação à expansão internacional, conforme aponta o Atlas Mundial dos Orçamentos Participativos. [iii]

O tema do Orçamento Participativo Nacional foi abordado na campanha eleitoral de 2022, quando Lula o apresentou em contraponto ao “orçamento secreto. A prática intransparente de congressistas deveria ser substituída pela abertura democrática de participação e controle da sociedade. Em 2023, sob o impacto da vitória democrática, a realização do Plano Plurianual Participativo (2024-2027), pelo Governo Federal, demonstrou que a escala nacional não impediu a participação social na elaboração da proposta orçamentária.

Foram 4 milhões de acessos no Brasil Participativo, na internet, sendo 34.310 participantes nas plenárias presenciais das 27 capitais, 1,4 milhão de inscritos na plataforma digital, 8.254 propostas e 1,5 milhão de votos. [IV] O Brasil deu mais uma demonstração de ousadia na invenção democrática, sendo o único país de grande escala geográfica a realizar esse tipo de prática para definir prioridades de políticas, em parceria com organizações e movimentos sociais e de governo estaduais.

Portanto, a negativa do Governo Federal em seguir adiante, a partir de 2024, no processo de elaboração participativa do Projeto de Lei Orçamentária (PLO) em nada tem a ver com as possíveis dificuldades do salto de escala (scaling-up) nas práticas dos Orçamentos Participativos. Ressalte-se, ainda, contra o argumento das dificuldades da big escala, as iniciativas inovadoras de Orçamentos Participativos que já ocorreram e vem ocorrendo hoje em estados da Região Nordeste, com destaque para o caso consolidado da Paraíba, desde 2011, sob direção e protagonismo do PSB, a partir da experiência de João Pessoa.

Essa iniciativa foi seguida pelos estados do Maranhão e do Piauí (ambos governados pelo PT), além do Rio Grande do Norte e de Pernambuco, que agora decidiram iniciar o processo. Todavia, não conta com o governo do Ceará, apesar da experiência do atual governador na coordenação do Orçamento Participativo de Fortaleza, há alguns anos. São modelos participativos distintos, em que a incidência popular nas decisões é ainda restrita a uma pequena parcela dos recursos, mas que demonstram o quanto a democracia participativa, seja presencial ou virtual (ou híbrida), é possível mesmo em escalas que vão além dos municípios, a exemplo do que já fez pioneiramente o Rio Grande do Sul durante o governo de Olívio Dutra (PT, 1999-2002).

A estratégia política do governo federal em não abrir a discussão do orçamento com a sociedade civil tem efeitos negativos, tanto em nível federal como nos demais níveis subnacionais de governo. Em primeiro lugar, porque a disputa dos recursos públicos vem ocorrendo de forma restrita à institucionalidade dos poderes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, campo em que o governo federal não tem relação de forças favoráveis.

Nessa situação, é claro que os setores dominantes do mercado, da mídia empresarial corporativa e no Congresso Nacional tem maior poder de influência. O campo popular está fora desse jogo de cartas marcadas. Trata-se de uma estratégia do governo Lula que repete o primeiro ciclo dos governos liderados pela esquerda, nos quais se optou pela inexistência de qualquer programa mobilizador da população e dos segmentos mais atuantes da sociedade civil. É necessário lembrar que apesar do Orçamento Participativo Nacional também constar do programa eleitoral na campanha de 2002, o ensaio participativo realizado em 2003 também foi abortado, baseado no falso argumento de que ele poderia incentivar o excesso de demandas populares que seriam frustradas pelas limitações orçamentárias.

Agora, mais uma vez, o projeto de governo da esquerda repete a estratégia que supõe a passividade dos setores subalternos. Ocorre que diferentemente do ciclo da década de 2000, quando o crescimento econômico garantiu apoio popular, o modelo tradicional de democracia aparece hoje aos olhos dos cidadãos/as fortemente desgastado e pouco confiável, legado também da década de crise econômica iniciada em 2014, dos episódios reais de corrupção, da demonização da política a partir de 2016, além da destruição das políticas provocada pelo neoliberalismo do qual se alimenta a extrema-direita.

É visível o crescimento dos sentimentos antipolítica e antissistema na sociedade brasileira. Nesse contexto, o Brasil caminha para o parlamentarismo, com passividade de atores progressistas da sociedade civil e dos movimentos sociais, que parecem alheios aos fatos.

Considerando a vasta experiência dos Orçamentos Participativos em centenas de metrópoles e cidades no país, durante as últimas três décadas, é possível afirmar que, se efetivada e bem conduzida, de forma transparente e em conjunto com atores da sociedade civil, a gestão orçamentária participativa poderá se constituir em importante contranarrativa no enfrentamento do retrocesso representado pela captura dos recursos públicos, pelas forças fisiológicas e patrimonialistas no Congresso Nacional, articuladas localmente.

Os cerca de R$ 50 bilhões das emendas impositivas já se fizeram sentir nas eleições municipais desse ano, provocando desequilíbrio na competição devido aos recursos disponibilizados às prefeituras, elos das redes conservadoras do Congresso Nacional.

Nesse contexto de retrocessos, um Orçamento Participativo bem conduzido poderá contribuir para a criação de uma arena pública de discussão sobre a geração e o uso dos recursos públicos, onde atores da sociedade civil possam se posicionar e participar ativamente da disputa concentrada nessa parte fundamental do coração do Estado. O Orçamento Participativo Nacional poderá ajudar uma parte da sociedade constituída por organizações e movimentos sociais a entrar nesse jogo de garroteamento e cerco do Governo Lula.

Veja-se que a ação justa e correta do STF – ao entrar nessa disputa estratégica das emendas – forneceu justificativas para ações no Congresso Nacional que pretendem retirar poder dessa instância da república, caminho utilizado pela extrema-direita nos processos de desdemocratização que estão em curso em vários lugares do mundo. Os Orçamentos Participativos não são panaceia para os males da democracia representativa, mas inegavelmente eles contêm enormes potenciais democratizantes na relação entre o Estado e a sociedade.

Como mostram pesquisas acadêmicas, nas últimas décadas, nenhum procedimento de inovação democrática no mundo contém maior potencial de inclusividade política e social do que os Orçamentos Participativos, quando eles são para valer, algo que também se aplica ao seu potencial redistributivo em bem-estar urbano. Eles permitem incluir os setores populares de modo ativo na decisão de políticas, reconfigurando as bases em que se dá o exercício do poder e a hegemonia de classes na sociedade.

Também permitem politizar questões que são aparentemente técnicas, como a política fiscal e as formas justas de financiamento das políticas públicas, tema de alto relevo para a eficácia da democracia na provisão de bem-estar, que em geral fica restrita aos meios técnicos governamentais e às elites de especialistas dos mercados, além dos parlamentares.

Uma segunda contribuição democratizante do Orçamento Participativo Nacional diz respeito ao seu provável efeito estimulante junto aos governos subnacionais, em especial os municípios, articulando o uso dos recursos federais repassados e induzindo o aumento da participação, da transparência e do controle social nas cidades, inclusive sobre as emendas impositivas, que se generalizaram nas casas legislativas do país.

Como mostrou o ciclo de expansão dos Orçamentos Participativos, nos anos 1990/2000, muitas prefeituras do campo progressista e mesmo liberal-conservador, assim como a atuação de atores civis locais, são incentivadas a adotar práticas mais democráticas e participativas quando outras instituições também o fazem. Sem dúvida, o Orçamento Participativo Nacional poderá exercer um efeito-demonstração de apoio à resistência democrática por meio do estímulo à disseminação de Orçamentos Participativos locais e estaduais, que precisam de apoio quando a própria democracia liberal se encontra ameaçada.

O possível temor de um Orçamento Participativo de “confronto” com o Congresso Nacional não se sustenta, haja vista a aprovação do PPA participativo, em 2023. Além do mais, renunciar de antemão às divergências naturais sobre as melhores formas de elaboração dos orçamentos pelos governos é renunciar à disputa de hegemonia dos projetos políticos. É capitular diante dos projetos autoritários, elitistas e neoliberais.

Por outro lado, no contexto em que se aprofunda o sequestro dos recursos para fins eleitorais e de poder, o quadro é de passividade dos movimentos sociais e atores civis do campo democrático e progressista, diminuindo sobremaneira a margem de manobra do governo federal. Esse quadro de fragilidade contrasta com o ativismo e a mobilização dos setores sociais e políticos da extrema-direita, que detém a iniciativa pública apesar da derrota eleitoral em 2022 e do fracasso do golpe em janeiro de 2023.

Nenhum ator civil relevante dos movimentos sociais apresentou até agora alguma iniciativa de mobilização em defesa dos recursos públicos em bases transparentes, constitucionais e republicanas. O golpe da captura dos recursos do Executivo parece ser apenas uma briga entre os poderes. Sem dúvida, a crise social, a precarização do trabalho e a fragmentação da sociedade de consumo reforçada pelo hiper individualismo digital está impactando a capacidade de ação coletiva dos movimentos e organizações sociais do campo progressista, mas isso não explica por si só a passividade observada diante do sequestro dos recursos que faltam às políticas públicas e que estão modificando o sistema político para o parlamentarismo, sem mudar a Constituição Federal.

Esse quadro exige que os atores civis do campo progressista e de esquerda reajam, sob pena de os retrocessos da democracia serem irreversíveis, amarrando estrategicamente o país na aliança do atraso fisiológico de direita – nas redes que unem prefeituras e congressistas – com o projeto neoliberal das elites sob a hegemonia ideológica da extrema-direita. Acreditamos que uma das formas possíveis dessa reação – sem panaceia – é o aprofundamento da democracia, utilizando o que o Brasil criou e exportou ao mundo, o Orçamento Participativo.

*Luciano Fedozzi é professor titular de sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Autor do livro Orçamento Participativo de Porto Alegre: 35 anos.

 

Plano Real – os moedeiros falsos, por José Luís Fiori

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José Luís Fiori

Artigo publicado por ocasião do lançamento do plano econômico de FHC, em julho de 1994

“Afinal é preciso admitir, meu caro, que há pessoas que sentem necessidade de agir contra seu próprio interesse…”
(André Gide).

“É importante para um ‘technopol’ vencer a próxima eleição para continuar a implementar sua agenda e não para manter-se no cargo. Vencer uma eleição abandonando suas posições é para ele uma vitória de Pirro”
(John Williamson).

A Terra é Redonda, 29/06/2024

Entre os dias 14 e 16 de janeiro de 1993, o Institute for International Economics, destacado “think tank” de Washington, tendo à frente Fred Bergsten, reuniu cerca de cem especialistas em torno do documento escrito por John Williamson, “In Search of a Manual for Technopols” (Em Busca de um Manual de ‘Tecnopolíticos’), num seminário internacional cujo tema foi: “The Political Economy of Policy Reform” (A Política Econômica da Reforma Política).

Durante dois dias de debates, executivos de governo, dos bancos multilaterais e de empresas privadas, junto com alguns acadêmicos, discutiram com representantes de 11 países da Ásia, África e América Latina “as circunstâncias mais favoráveis e as regras de ação que poderiam ajudar um ‘technopol’ a obter o apoio político que lhe permitisse levar a cabo com sucesso” o programa de estabilização e reforma econômica, que o próprio Williamson, alguns anos antes, havia chamado de “Washington Consensus” (Consenso de Washington).

Um plano único de ajustamento das economias periféricas, chancelado, hoje, pelo FMI e pelo Bird em mais de 60 países de todo mundo. Estratégia de homogeneização das políticas econômicas nacionais operada em alguns casos, como em boa parte da África (começando pela Somália no início dos anos 1980), diretamente pelos técnicos próprios daqueles bancos; em outros, como por exemplo na Bolívia, Polônia e mesmo na Rússia até bem pouco tempo atrás, com a ajuda de economistas universitários norte-americanos; e, finalmente, em países com corpos burocráticos mais estruturados, pelo que Williamson apelidou de “technopols“: economistas capazes de somar ao perfeito manejo do seu “mainstream” (evidentemente neoclássico e ortodoxo) à capacidade política de implementar nos seus países a mesma agenda e as mesmas políticas do “Consensus”, como é ou foi o caso, por exemplo, de Aspe e Salinas no México, de Cavallo na Argentina, de Yegor Gaidar na Rússia, de Lee Teng-hui em Taiwan, Manmohan Singh na Índia, ou mesmo Turgut Ozal na Turquia e, a despeito de tudo, Zélia e Kandir no Brasil.

Um programa ou estratégia sequencial em três fases: a primeira consagrada à estabilização macroeconômica, tendo como prioridade absoluta um superávit fiscal primário envolvendo invariavelmente a revisão das relações fiscais intergovernamentais e a reestruturação dos sistemas de previdência pública; a segunda, dedicada ao que o Banco Mundial vem chamando de “reformas estruturais”: liberalização financeira e comercial, desregulação dos mercados, e privatização das empresas estatais; e a terceira etapa, definida como a da retomada dos investimentos e do crescimento econômico.

Foi ainda nos anos 1980 que o reiterado insucesso das políticas monetaristas de estabilização introduziu nos debates econômicos a importância crucial para o sucesso no combate antiinflacionário do “fator credibilidade”, e teve como consequência a canonização de uma heterodoxia, a da re-regulação do câmbio ou “dolarização”. Logo à frente, já nos anos 1990, as novas avaliações pessimistas, tanto do FMI como do Bird, puseram em destaque a importância decisiva do “fator poder político” no sucesso ou fracasso de seu programa econômico.

Esta nova preocupação dos intelectuais e gestores do Consenso de Washington é que explica não só a realização do Seminário de Bergsten e Williamson, como a presença nele de dois cientistas políticos, Joan Nelson e Stephan Haggard, responsáveis por um dos mais abrangentes estudos comparativos já feitos sobre este assunto nos Estados Unidos.

No seu documento introdutório, Williamson resume as perguntas e hipóteses centrais relativas às dificuldades próprias de cada uma das etapas do plano e sobre as respostas alternativas encontradas pelos diferentes países. Porque reconhece os perversos efeitos sociais e econômicos das medidas de austeridade e liberalização sobre as economias e populações nacionais, o autor também entende, com este programa, como fica difícil eleger e sustentar um governo minimamente estável. De onde surgiram várias táticas ou artifícios políticos capazes de fazer os eleitores aceitarem os desastres sociais provocados em todo lugar pelo programa neoliberal como sendo transitórios ou necessários em nome de um bem maior e de longo prazo.

Listam-se ali, como condições mais favoráveis, quando o programa consegue ser ampliado depois de alguma grande catástrofe (guerra ou hiperinflação) capaz de minar toda e qualquer resistência; quando os “technopols” conseguem defrontar-se com uma oposição desacreditada ou desorganizada; quando, além disto, eles disponham de uma liderança forte capaz de “insularizá-los” com relação às demandas sociais.

Condições que não dispensaram, entretanto, em todas as situações conhecidas, a formação prévia de uma coalizão de poder suficientemente forte para aproveitar as condições favoráveis e assumir, por um longo período de tempo, o controle de governos sustentados por sólidas maiorias parlamentares. Esta, sim, uma condição considerada indispensável para poder transmitir “credibilidade” aos atores que realmente interessam, neste caso: os “analistas de risco” das grandes empresas de consultoria financeira, responsáveis, em última instância, pela direção em que se movem os capitais “globalizados”

Poucos ainda têm dúvidas de que o Plano Real, a despeito de sua originalidade operacional, integra a grande família dos planos de estabilização discutidos na reunião de Washington, onde o Brasil esteve representado pelo ex-ministro Bresser Pereira. E aí se inscreve não apenas por haver sido formulado por um grupo paradigmático de “technopols“, mas por sua concepção estratégica de longo prazo, anunciada por seus autores, desde a primeira hora, como condição inseparável de seu sucesso no curto prazo: ajuste fiscal, reforma monetária, reformas liberalizantes, desestatizações, etc., para que só depois de restaurada uma economia aberta de mercado possa dar-se então a retomada do crescimento.

Neste sentido, os seus “technopols“, como bons aprendizes, sabem que a dolarização inicial da economia será sempre um artifício inócuo se não estiver assegurada por condições de poder inalteráveis por um período prolongado de tempo.

Desde este seu ponto de vista, aliás, o Plano Real não foi concebido para eleger FHC, foi FHC que foi concebido para viabilizar no Brasil a coalizão de poder capaz de dar sustentação e permanência ao programa de estabilização do FMI, e dar viabilidade política ao que falta ser feito das reformas preconizadas pelo Banco Mundial.

Por isto, não surpreende a confusão popular frente à candidatura de FHC e suas relações sinergéticas com o Plano Real. O que surpreende, sim, é a confusão ainda maior que reina entre os intelectuais que criticam ou justificam emocional ou ideologicamente as suas atuais preferências políticas.

Erro que não cometeria o FHC professor, lógico e realista, se não estivesse impedido de recorrer a si mesmo e ao que ainda melhor explica suas preferências políticas atuais: os seus próprios ensaios sobre o empresariado industrial e a natureza associada e dependente do capitalismo brasileiro, datados dos anos 1960. Eles permitem entender e acompanhar de forma perfeitamente racional o caminho lógico que levou FHC à sua posição atual no xadrez político-ideológico brasileiro. Mas é verdade que, ao mesmo tempo, contêm o libelo mais duro, veemente e essencial contra a sua própria opção.

Em termos muito sintéticos: (a) O trabalho acadêmico de FHC pode ser todo ele definido como uma busca incansável dos “nexos científicos” entre os interesses e objetivos desenhados pelas situações “histórico-estruturais” e os caminhos possíveis que vão sendo construídos politicamente nas sociedades concretas pelos grupos sociais e suas coalizões de poder.

(b) Com esta perspectiva, FHC foi um dos pioneiros a investigar e concluir, de maneira implacável, já em 1963, que “a burguesia industrial nacional estava impedida, por motivos estruturais, de desempenhar o papel que a ideologia nacional-populista lhe atribuía” e que, por isto, “havia optado pela ordem, isto é, por abdicar de uma vez por todas de tentar a hegemonia plena da sociedade, satisfazendo-se com a condição de sócio-menor do capitalismo ocidental.”

Constatação que lhe permitiu redescobrir muito cedo no empresariado brasileiro uma condição universal do capitalismo: a de que pode estar associado, indiferentemente, segundo as circunstâncias, a um discurso ideológico protecionista ou livre-cambista, estatista ou anti-estatista, obedecendo apenas ao interesse maior da liberdade de movimento do capital e dos desdobramentos geoeconômicos e políticos da sua continuada internacionalização.

Esta descoberta foi responsável direta pelo seu passo seguinte e mais original: para FHC, se a condição periférica do capitalismo se definia pela ausência de moeda conversível e capacidade endógena de progresso tecnológico, a sua “condição dependente” se definia pela forma peculiar de associação econômica e política do empresariado nacional com os capitais internacionais e o Estado. Tripé de sustentação econômica da fase de “internacionalização do mercado interno” (em que as empresas multinacionais assumiram a liderança em quase todos os setores de ponta, responsabilizando-se por cerca de 40% do produto industrial) e de um tipo de “industrialização associada”, tão viável quanto inevitável do ponto de vista da “burguesia industrial brasileira.”

Durante os anos 1970, o trabalho intelectual de FHC consistiu em demonstrar que esta “situação estrutural” não impedia o crescimento econômico nem o associava necessariamente a um só modelo social e político. Concluindo, logo antes de entrar para a vida política, que o caráter predatório, excludente e autoritário do capitalismo brasileiro era a marca própria que a coalizão conservadora de poder imprimira ao Estado desenvolvimentista brasileiro.

Não é difícil estender e atualizar a análise de FHC à nova “situação estrutural”, definida por uma internacionalização mais avançada ou globalizada do capitalismo, associada ao aumento de nossa “sensibilidade” interna às mudanças da economia mundial. Sobretudo porque a nova realidade ultrapassa, mas não invalida, o que de essencial FHC escreveu nos anos 1960 e 1970. E a sua inteligência lhe impede repetir bobagens e lhe permite saber que o que interessa para o Brasil no novo contexto globalizado não tem nada a ver com a queda do Muro de Berlim nem tampouco com o esgotamento do modelo de substituição de importações que já ocorrera nos anos 60/70…

Nessa atualização, basta ter claro que a globalização não é um processo completamente apolítico, envolvendo desde os anos 1980 pressões crescentes de governos e organismos multilaterais sobre a condução doméstica das economias periféricas. Por isto, os ajustes nacionais tampouco são puramente econômicos. Os Estados nacionais têm que optar e decidir como se conectam à nova redefinição das coalizões interna e externa de poder.

No nosso caso, o velho tripé econômico e sua aliança com as elites políticas regionais entrou em crise e precisa ser refeito. Dos antigos aliados, a velha elite política está esfacelada regionalmente; o sócio internacional “financeirizou-se”; o empresariado local, que já se “ajustou” a nível microeconômico, mantém sua velha opção ainda quando tenha encontrado seu exato lugar enquanto “sócio menor associado”, e por isto já se alinhou plenamente com o livre-cambismo anti-estatista do “Washington Consensus“; e, por fim, o Estado, falido financeiramente, já foi além disto destruído de forma absolutamente irracional e ideológica pelo governo Collor.

FHC sabe como ninguém que mudar ou refazer esta articulação econômica e aliança política é o problema central que hoje está posto no cenário brasileiro. E, frente a esse desafio, tomou sua primeira e decisiva decisão: resolveu acompanhar a posição do seu velho objeto de estudo, o empresariado brasileiro, e assumiu como um fato irrecusável as atuais relações de poder e dependência internacionais. Deixou seu idealismo reformista e ficou com seu realismo analítico abdicando dos “nexos científicos” para se propor como “condottiere” da sua burguesia industrial, capaz de reconduzi-la a seu destino manifesto de sócia-menor e dependente do mesmo capitalismo associado, renovado pela terceira revolução tecnológica e pela globalização financeira.

Como consequência natural, aderiu à estratégia de ajustamento do FMI e do Banco Mundial. Mas sua opção mais importante não foi esta. Dispunha de um elenco de alternativas políticas para implementar essa mesma estratégia. Mas, diante da hipótese de uma aliança de centro-esquerda que poderia revolucionar o sistema político e social brasileiro aproximando-o do social-liberalismo de Felipe González, FHC preferiu o caminho de Oraxi, Vargas Llosa ou Mitsotakis, e decidiu-se por uma aliança de centro-direita com o PFL que lhe garante o apoio natural dos demais partidos conservadores num eventual segundo turno. Uma aliança que, obviamente, não se explica por razões puramente eleitorais, pois afinal Collor e Berlusconi já demonstraram que nesse campo é possível obter melhores resultados por caminhos mais diretos e “modernos”.

O que a nova aliança de FHC se propõe, na verdade, é algo mais sério e definitivo: remontar a tradicional coalizão em que se sustentou o poder conservador no Brasil. Este o verdadeiro significado direitista de sua decisão que, aliás, não é de hoje, mas data de maio de 1991, quando apoiou a reorganização do governo Collor em aliança com o próprio PFL de ACM e Bornhausen.

Se ali não teve sucesso, foi por obra do destino ou de Mário Covas, mas as cartas já estavam lançadas. Desde então, costurou de forma brilhante e eficiente a adesão de quase toda a grande imprensa e do empresariado, mas sobretudo os apoios internacionais que faltaram a Collor, haja vista, além das avaliações de risco das grandes consultoras financeiras publicadas pela imprensa internacional, o desfile recente de personalidades mundiais (públicas e privadas) do neoliberalismo que têm vindo dar apoio ao programa de estabilização e reformas de FHC. Faltam-lhe ainda, contudo, duas coisas: o apoio das lideranças políticas regionais que vêm negociando com imensa dificuldade a partir do PFL e, sobretudo, o dos eleitores que pretende obter através do sucesso instantâneo de seu Plano Real.

Em síntese, FHC optou por sustentar a estratégia do Consenso de Washington, valendo-se da mesma coalizão de poder que construiu e destruiu o estado desenvolvimentista de forma igualmente excludente e autoritária. E, com isto, em nome do seu realismo, na verdade está se propondo, ainda uma vez, a refundar a economia sem refundar o Estado brasileiro. E aqui sim, contradiz um ponto essencial de suas ideias e de seu passado reformista.

Não nos interessa discutir aqui porque o programa FMI/Bird pode ser virtuoso para o empresariado e catastrófico para um país continental e desigual como o Brasil, mas apenas nos ater aos dilemas internos e específicos de tal proposta, e de sua experimentação concreta, para assim esclarecer o significado mais radical da opção de FHC. Mas para isto devemos voltar brevemente a Washington.

Não mais às sugestões práticas do seminário de John Williamson, mas às conclusões do estudo comparativo de J. Nelson e S. Haggard, sobre um grupo de 25 países que antecederam o Brasil na adesão ao “Washington Consensus”. E aqui todas as experiências apontam numa mesma direção: se o projeto não avança sem “credibilidade”, não há credibilidade possível sem governos com autoridade centralizada e forte. Mas por que chegaram a esta conclusão de que era indispensável recorrer à política e a Estados fortes para alcançar o “mercado quase perfeito”?

Primeiro, porque na maioria dos países que já aplicaram as políticas e fizeram as reformas recomendadas não houve a esperada recuperação dos investimentos. E isso porque, em segundo lugar, o apoio empresarial, interno e externo, não passa do entusiasmo retórico para a cooperação ativa, indispensável inclusive para a primeira etapa da estabilização sem ter garantias sobre as reformas liberalizantes.

Em terceiro lugar, como consequência, aliás, todos os países que lograram vencer a etapa da estabilização contaram com uma ajuda externa politicamente orientada; no caso chileno, 3% do PIB durante cinco anos, de ajuda pública mais um aporte equivalente, durante três anos, por parte dos bancos comerciais; 5% do PIB durante cinco anos no caso da Bolívia; 2% do PIB durante seis anos no caso do México, etc.

Mas, em quarto lugar, mesmo quando obtiveram ajuda externa e se estabilizaram, estas economias “reformadas” atravessaram profundas recessões, perdas significativas da massa salarial e aumento geométrico do desemprego, os famosos “custos sociais” da estabilização.

Em quinto lugar, mesmo ali onde houve retomada do crescimento, esse tem sido lento e absolutamente incapaz de recuperar os empregos destruídos pela reestruturação e abertura das economias. Sendo que para culminar, em sexto lugar, no caso das experiências bem-comportadas, as etapas de estabilização e reformas tomaram de três a quatro anos cada uma, e até uma década para a retomada efetiva do crescimento.

Neste quadro, como é óbvio, fica difícil obter credibilidade para as políticas neoliberais junto ao empresariado, seu aliado indispensável, e pior ainda, junto aos trabalhadores. Segue-se daí a conclusão inevitável: a longa espera pelos eventuais resultados positivos das políticas e reformas preconizadas pelo FMI e Bird demandam uma estabilização prolongada da situação de poder favorável às reformas. Solução que desemboca, entretanto, num novo problema: o da viabilização eleitoral duradoura da coalizão “reformista”. Eis aí a questão: como fazer com que o povo compreenda e apoie por um longo período de tempo, e apesar de sua dura penalização, a verdade dos “technopols”? Ou em termos mais diretos: nestas condições, como ganhar eleições e manter tanto tempo uma sólida maioria no Congresso Nacional?

Frente a este desafio, descartada a “alternativa Menem” (usar um programa para a campanha eleitoral e outro no governo) defendida entusiasticamente no seminário de Washington por Nicolas Barlette do International Center for Economic Growth, os estudos apontam para três caminhos conhecidos: (a) o dos partidos capazes de assegurarem a vitória e a maioria parlamentar por mais de uma década, o que em geral se deu em sociedades com menores índices de inflação e/ou de desigualdade social; (b) o da existência de condições excepcionais, de guerra ou recuperação democrática, favoráveis ao logro de acordos sociais e políticos entre partidos, sindicatos e empresários; (c) ou então, como os estudos mencionados indicam em quase todos os casos dos países com economias de alta inflação, grande fragilidade externa e extrema desigualdade social, o apelo a regimes autoritários permanentes ou “cirúrgicos”, como foi o caso da Turquia no início dos 1980 e do Peru mais recentemente.

FHC, desde 1991, pelo menos, optou claramente por este projeto de modernização neoliberal e por um bloco de sustentação de centro-direita. Neste sentido, segundo nos relata a experiência, optou por uma estratégia socioeconômica que tem gerado ou aprofundado os níveis preexistentes de desigualdade e exclusão social. E além disto, para culminar, também optou para levar à frente este projeto anti-social e quase sempre autoritário, através de uma coalizão política que foi sempre autoritária e que já logrou forjar, antes e durante a era desenvolvimentista, esta nossa sociedade que ocupa hoje o penúltimo lugar mundial em termos de concentração de renda.

Neste sentido é que se pode concluir, sem ofender a lógica, que FHC realmente aderiu a um projeto de “aggiornamento” do autoritarismo anti-social de nossas elites.

Mas agora o jogo já começou e as coisas já evoluíram. Hoje, FHC se transformou em refém de seus próprios “technopols“. Como sua proposta neoliberal satisfaz o empresariado mas deixa pouca margem para costurar as alianças com as velhas elites políticas regionais, e como a situação dos eleitores piorou enormemente desde que assumiu o Ministério da Fazenda, só lhe resta esperar pelo milagre dos três meses prometidos pelas cabeças “iluminadas” de sua equipe econômica.

Neste ponto, aliás, o Brasil produz uma novidade que talvez possa ser relatada no próximo seminário de Washington: em vez de silenciar sobre os efeitos perversos do programa, faz-se de seu sucesso antecipado de curtíssimo prazo a grande arma para obter a vitória eleitoral… Mas é por isto também que neste caso o plano de estabilização já nasceu de forma autoritária, de tal forma que, desde agora, a condução independe do conhecido senso público do ministro Ricupero.

Lançado num período eleitoral quando, por definição, as escolhas são livres e os resultados indeterminados, o pré-anunciado sucesso do Plano supõe que só possa haver um ganhador, ou pior, supõe que, quem quer que seja o ganhador, terá que se submeter aos “technopols“, a menos que queira enfrentar uma hiperinflação explícita, com fuga de capitais, sobrevalorização cambial e desequilíbrio fiscal gerado pelas altas taxas de juros.

Para não falar que, nestes três meses de engodo, tudo o que faz parte normal de uma campanha eleitoral será considerado subversivo do ponto de vista do Plano… Sendo desnecessário acrescentar, neste momento, que mesmo que FHC ganhe as eleições dificilmente terá a maioria parlamentar de que falam, o que nos candidata fortemente, segundo a experiência relatada, a prolongarmos no tempo a concepção originariamente autoritária do Plano.

Neste sentido, ao contrário do que alguns defendem, FHC está dando uma nova e sofisticada colaboração para a irracionalidade da política brasileira.

E quanto à moeda que nasce, depois de chegar a Brasília protegida pelos tanques do Exército, seguirá sendo uma moeda virtual ancorada numa paridade cambial, que, por sua vez, está atrelada a futuro político impossível de ser assegurado de antemão. Sorte teríamos neste sentido se sobre ela pudéssemos apenas parafrasear Helmut Schmidt (quando disse aqui no Brasil, comentando a possibilidade de sucesso imediato das reformas liberais no Leste europeu): “Ter-se-ia que ser professor de Harvard para crer nestas tolices”. Nossa situação é ainda mais triste, porque temos que reconhecer que nossos “technopols” conseguem reunir à “tolice dos professores de Harvard” a irresponsabilidade dos moedeiros falsos do André Gide.

*José Luís Fiori é professor emérito da UFRJ. Autor, entre outros livros, de  Os   moedeiros falsos (Vozes).

Publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo, caderno mais! em 3 de julho de 1994.

 

Como pensam os chineses, por Luiz Carlos Bresser-Pereira.

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Como para eles não há teoria absolutamente verdadeira, a regra é fazer experimentações

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Folha de S. Paulo, 31/08/2024

A revista The Economist publicou em 11 julho artigo com o título “Xi Jinping inabalavelmente comprometido com o setor privado”. A publicação tem dificuldade de entender que um país possa estar ao mesmo tempo comprometido com o setor privado e com o setor público. Para a perspectiva neoliberal, da qual a revista é a principal representante no jornalismo, ou um país está comprometido com o mercado ou com o Estado, porque os dois seriam incompatíveis: o aumento de um setor implicaria a diminuição do outro.

A visão do desenvolvimentismo não é oposta, mas é muito diferente. Estado e mercado, setor público e setor privado são complementares. Em certos casos, o avanço do setor público pode expulsar (“crowd out”) o setor privado, mas isso é antes a exceção do que a regra. Geralmente, o investimento público cria demanda para o setor privado. Basta seguir a regra desenvolvimentista: os setores que são monopolistas e os que envolvem segurança nacional devem ser controlados pelo Estado, enquanto os setores competitivos devem ficar por conta do setor privado.

O mercado é uma instituição coordenadora do capitalismo insuperável quando há competição —quando, portanto, há mercado. Quando, porém, não há um mercado para coordenar o setor, é mais racional deixá-lo por conta do Estado. Mas vejamos o que nos diz The Economist. “Segundo a visão chinesa de fazer políticas públicas, a China adota políticas de cima para baixo, mas também abraça a experimentação de baixo para cima”.

Para os chineses, experimentar é sempre bom. Mais do que isso, como para eles não há teoria absolutamente verdadeira, não há uma política pública que possa ser deduzida da teoria, a regra é experimentar políticas diferentes —algo que é mais fácil quando se tem diferentes regiões para fazer as experiências.

Os chineses acreditam no poder das contradições; pensam, portanto, de forma dialética. Pensam o Estado e o mercado não apenas como complementares, mas também como mantendo entre si uma relação de atração e rechaço. Isso é pensar dialeticamente, compatível com a filosofia de Confúcio. Eles afirmam defender os dois princípios de coordenação econômica de forma “inabalável”, “inarredável” —em relação aos quais o governo não cederá.

A revista informa que na China existem 867 mil empresas que têm algum grau de propriedade estatal. Cito The Economist, resumindo: “A sorte das empresas privadas da China piorou. Sua participação no investimento atingiu 59% em 2014, de acordo com dados oficiais. Mas essa porcentagem caiu desde então. No final do ano passado, era de apenas 50%. Em vez de apoio, os empresários privados da China sofrem repressão. Três anos atrás, as empresas privadas representavam 55% do valor de mercado das 100 maiores listadas da China, de acordo com o Peterson Institute. No final do ano passado, esse número era de 37%”. Mas, reconhece a revista, os dois “inabaláveis” são mais compatíveis do que parecem. Segundo o diretor de um think tank em Pequim, “a economia privada não enfraqueceu a economia estatal, mas melhorou a eficiência das empresas estatais”. Continua a revista: “As empresas privadas temem que as empresas estatais as expulsem: ‘O Estado avança, o setor privado recua’, como os chineses às vezes dizem. Mas, desde a crise financeira global de 2007-9, o setor privado muitas vezes recuou por conta própria em resposta às desacelerações do mercado, não aos avanços do Estado.

Nesses casos, os investimentos de veículos estatais, inclusive das empresas de infraestrutura dos governos locais, preencheram a lacuna na demanda deixada por um setor privado intimidado. As ligações entre as indústrias são ‘como uma teia de aranha gigante’, aponta Xiaohuan Lan, da Universidade Fudan.

Funcionários do Partido Comunista disseram repetidamente que os empresários privados são ‘nosso próprio povo’. Os funcionários não são indiferentes à iniciativa privada. O compromisso inabalável do partido com o setor é sincero —mesmo que muitos empresários desejem que fosse menor”. Como se vê, The Economist fez suas críticas ao modelo desenvolvimentista chinês. Não poderia deixar de fazê-las, já que a forma de coordenação econômica alternativa ao liberalismo econômico é o desenvolvimentismo. E a revista teme a competição. Não obstante, parece haver aprendido com a China a pensar dialeticamente.

Contra a moral e os bons costumes? por Michael França.

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Não há virtude em resistir a mudanças que ampliem a dignidade humana

Michael França, Ciclista, vencedor do Prêmio Jabuti Acadêmico, economista pela USP e pesquisador do Insper. Foi visiting scholar nas universidades de Columbia e Stanford

Folha de São Paulo – 29/10/2024

É comum vermos aqueles considerados mais progressistas subestimando a visão de mundo dos mais conservadores. Mas, ao olharmos com alguma calma, perceberemos um valor em uma perspectiva que procura privilegiar a preservação das tradições e que adota um certo ceticismo diante de mudanças muito aceleradas.

Existe uma sabedoria acumulada nos valores que resistiram ao teste do tempo. Os costumes, os laços familiares e a reverência às instituições religiosas, por exemplo, são aspectos relevantes que moldaram a estrutura social ao longo da história. Ao proteger alguns valores do passado, estamos, de certo modo, preservando o que nos trouxe até aqui.

Essa proteção atua como um porto seguro diante das grandes incertezas de um mundo em transe e que está progressivamente sendo consumido pelas abruptas mudanças sociais, econômicas, tecnológicas e climáticas. Essa preservação oferece uma âncora no meio do agitado mar das incertezas, evitando que sejamos arrastados pelas ondas dos impulsos momentâneos ou modismos passageiros.

Entretanto, devemos ter em mente que essa proteção não deve se transformar em resistência. Diversas mudanças são não apenas inevitáveis mas necessárias. O conservadorismo perde seu propósito original quando é usado em discursos que justificam a exclusão ou mantêm a inércia das desiguais estruturas de poder. Nesse contexto, devemos reconhecer que não há virtude em resistir a mudanças que ampliem a liberdade e a dignidade humana.

Acabamos aprisionados em um mundo limitado quando não abrimos espaço para o questionamento daqueles valores que herdamos e que adotamos sem muita reflexão. Ficamos presos a um mundo pequeno que restringe nossas liberdades individuais e a capacidade de evolução. Esse apego inflexível ao passado não apenas limita nosso próprio crescimento mas também afeta toda a sociedade ao impedir que novas ideias surjam e floresçam.

Ainda assim, é importante ter uma postura de cautela diante do novo. O ceticismo é uma ferramenta poderosa quando nos leva a avaliar cuidadosamente as implicações de nossas escolhas. No entanto, essa cautela deve vir acompanhada de abertura para explorar o desconhecido. É preciso encontrar o equilíbrio que permita preservar aquilo que nos fortaleceu, sem sufocar o novo. É preciso equilibrar uma coexistência harmoniosa entre o passado e o futuro.

Nesse contexto, é necessário muito diálogo, disposição para ouvir e, mais que tudo, abrir-se ao contraditório. Precisamos de um diálogo que não tema as diferenças, mas que encontre nelas a base para reimaginar o futuro enquanto aprendemos com o passado. Pois o que a história nos ensina é que não avançamos abandonando nossos valores, mas revisitando-os e, quando necessário, reescrevendo-os.