Mutações do financismo na era digital, por Paulo Kliass

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Com inovações tecnológicas, fintechs abalam a hegemonia dos bancos tradicionais. Mas comungam da mesma essência: relações incestuosas entre o privado e o público. Tanto que BTG tem grande interlocução com Haddad e ex-presidente do BC ganhou alto cargo no Nubank

Paulo Kliass – OUTRAS PALAVRAS – 23/09/2025

Os impactos provocados pelo desenvolvimento tecnológico sempre impuseram transformações efetivas na organização das forças produtivas. Os novos patamares alcançados na capacidade de produzir bens e serviços provocam mudanças na forma de se produzir e na definição daquilo que passa a ser manufaturado. Esse processo implica em alteração também nas formas de organização das empresas e em sua composição societária. Tais inovações acompanham a evolução da humanidade muito antes do advento do próprio capitalismo. Assim foi com a introdução de técnicas de manufatura em substituição ao artesanato. O mesmo ocorreu com a chegada da mecanização nos mais variados processos vinculados à agricultura.

A evolução na obtenção de novas fontes de energia, por outro lado, também contribuiu sobremaneira para mudanças estruturais na forma de produção. A máquina a vapor e depois a energia elétrica revolucionaram os processos produtivos. A capacidade de navegação para atravessar oceanos, a inovação das ferrovias, o transporte por veículos e depois a aviação proporcionaram transformações profundas na circulação e nas trocas mercantis. Foram criadas novas formas de capital e de mercadorias, bem como surgiram ramos, setores e empresas até então inexistentes.

O ingresso no terceiro milênio teve o significado de um profundo salto nesse longo processo de transformações. A era digital e a economia do conhecimento estão promovendo alterações de qualidade substancial em nossa forma de organização social e econômica. Dentre as inúmeras mutações observadas, salta aos olhos o que se verifica no âmbito do sistema financeiro. No que se refere à dimensão monetária, por exemplo, parece ter sido enterrado de uma vez por todas o uso do papel moeda e das moedas metálicas como instrumentos de troca. Em um primeiro momento, o avanço nos processos da financeirização e da internacionalização colocou em destaque o uso crescente dos cartões de crédito nas operações de compra e venda de mercadorias e de serviços.

Inovação tecnológica e mudança no sistema financeiro

No entanto, uma quase-revolução surge na sequência com a generalização do uso dos chamados dispositivos móveis. Nem mesmo a tendência anterior foi respeitada: o dinheiro de plástico representado pelos cartões foi sendo substituído em larga escala por meros impulsos digitais, quando os valores monetários são então transferidos de um titular de recursos a outro por simples comandos nos instrumentos utilizados. A tendência à digitalização completa de nossa vida social passou a incluir também a concentração dos serviços bancários e financeiros nos computadores pessoais ou nos aparelhos de telefonia celular.

A ideia de instituições bancárias como um sistema amplo e complexo, ostentando uma extensa rede de agências para oferecer todo o tipo de serviços aos clientes e correntistas, passa a ser, com o passar do tempo, um conceito tão desnecessário quanto ultrapassado. Como dizia uma campanha de marketing pouco tempo atrás, “você passa a ter o seu banco ao alcance de suas mãos”. A grande maioria dos usuários do sistema quase não se dirige mais fisicamente a uma unidade de atendimento presencial de seu banco. Tudo se resolve digitalmente por meio de comandos no aparelho celular ou no computador pessoal.

Essa transformação radical no modelo de uso de tais serviços levou a uma mudança igualmente profunda nas empresas do setor. As chamadas “fintech” e os bancos digitais passaram a competir com os bancos tradicionais, oferecendo soluções mais ágeis, mais rápidas, menos burocráticas e com menores custos para os clientes. Esse processo de metamorfose do sistema bancário e financeiro continua em pleno movimento atualmente. Inovações tecnológicas específicas realizadas no Brasil, como o sistema de transferência e pagamento PIX, estão operando como catalisadores de tal processo de aceleração da obsolescência dos bancos que operaram no modelo até então vigente.

Oligopólio financeiro mudando de perfil

O sistema bancário brasileiro tem suas origens na constituição de alguns poucos conglomerados de origem nacional, com forte influência de patrimônio de famílias tradicionais. O poder econômico derivado da concentração bancária e financeira proporcionou o crescimento do poder político de tais grupos. Alguns exemplos podem ser listados para ilustrar um determinado período da história brasileira, onde a associação do núcleo familiar e o respectivo banco e sua origem de atuação regional eram muito evidentes. Peguem-se os seguintes casos: i) família Magalhães Pinto (Banco Nacional-MG); ii) família Safra (Banco Safra-SP); iii) família Aguiar (Banco Bradesco-SP); iv) família Setúbal (Banco Itaú-SP); v) família Calmon de Sá (Banco Econômico-BA); dentre tantos outros casos.

Esse oligopólio bancário privado sofreu alterações em sua composição interna ao longo das últimas décadas, mas sempre marcou a sua existência por uma convivência relativamente harmoniosa com a estrutura existente dos bancos estatais. Até a década de 1990, havia um importante sistema de bancos pertencentes a cada uma das 27 unidades subnacionais, os bancos estaduais. Esse conjunto foi privatizado e a rede de bancos públicos se restringiu aos bancos comerciais federais — Banco do Brasil (BB), Caixa Econômica Federal (CEF), Banco do Nordeste e Banco da Amazônia. Além disso, havia o Banco Nacional da Habitação (BNH — que foi extinto em 1986 e incorporado à CEF) e permanece bem atuante o BNDES, como banco de investimento.

A longa tradição sempre foi marcada pela presença dos dois grandes bancos federais (BB e CEF) se revezando com alguns dos grandes conglomerados privados na disputa pela posição dos cinco maiores gigantes do sistema bancário e financeiro. O grupo multinacional de origem espanhola Santander penetrou no mercado brasileiro a partir da privatização do banco estadual de São Paulo, o Banespa. O desenho do oligopólio da banca privada foi se redefinindo por meio de aquisições e fusões, com a presença sempre marcante de Itaú/Unibanco e do Bradesco.

No entanto, o fenômeno da digitalização e das novas empresas de natureza bancária e financeira promovem uma reviravolta no sistema. Um levantamento realizado pelo jornal Valor Econômico aponta para o ingresso do Banco BTG e do Nubank nesse seleto grupo das maiores empresas bancárias e financeiras atuando no Brasil. De acordo com o estudo, o banco presidido por André Esteves ultrapassou, segundo dados do segundo trimestre de 2025, o BB e o Bradesco em termos de valor de seu ativo patrimonial a preços de mercado. Assim, o BTG teria se tornado o terceiro maior banco da América Latina, atrás somente do Nubank e do Itaú.

Empresas financeiras e bancos digitais na liderança

Esta informação, por outro lado, coloca em questão a presença de empresas no setor financeiro que não são consideradas juridicamente bancos pela nossa legislação. Esse é o caso do Nubank brasileiro, por exemplo. O Banco Central (BC) não o classifica como “banco”, apesar de que sua atuação seja muito similar à concorrência. Não obstante, o Nubank é classificado, segundo dados de setembro de 2025, como a segunda maior empresa de todos os ramos e setores operando no Brasil, com seu valor de mercado apenas superado pelo da Petrobrás. A própria empresa se apresenta como “uma das maiores plataformas de serviços financeiros digitais do mundo”.

É evidente que existem diferentes critérios para se avaliar o peso e a importância das empresas, em especial os bancos. Considerar apenas o valor de mercado delas, segundo a cotação das ações nas bolsas de valores, talvez não seja o mais indicado. Há outras variáveis relevantes que podem ser introduzidas na análise, a exemplo do número de clientes e correntistas, do valor patrimonial contabilmente apurado, do lucro realizado no exercício, dentre tantas outras possibilidades. No entanto, o que não pode ser deixado de lado é a confirmação da tendência de uma importância crescente a ser exercida pelas novas organizações empresariais.

Assim, com certeza não é coincidência o fato de que o ministro da Fazenda quase sempre escolhe os eventos organizados por grupos como o BTG ou a XP para realizar suas palestras direcionadas ao mercado. Ou ainda que o Nubank tenha trazido para exercer um estratégico cargo na direção do grupo ninguém mais nem menos do que o ex-presidente do BC, Roberto Campos Neto. Quer seja no passado do talão de cheque e da fila na agência física, quer seja no mundo atual das transações digitais, as instituições financeiras jamais deixaram de exercer seu poder efetivo junto aos tomadores de decisão no interior do aparelho de Estado.

As relações incestuosas entre o capital privado e o setor público não se alteraram em sua essência. Mudam apenas as faces de seus representantes, os sobrenomes dos dirigentes e as avenidas em que se localizam suas sedes suntuosas. Mas a influência do capital financeiro só aumenta com os novos tempos. A ponto de que o BTG construiu um teminal próprio no aeroporto internacional de Guarulhos (SP), justamente aquele que registra o maior movimento de passageiros em todo o país. Questão de oferecer comodidade, luxo e serviços exclusivos para sua seleta clientela, que sempre exige o melhor para satisfazer seus desejos e necessidades.

 

Inquietações

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O mundo contemporâneo nos traz grandes desafios e oportunidades, vivemos numa sociedade marcada por grandes desenvolvimentos tecnológicos, máquinas e novos equipamentos trouxeram grandes avanços para a sociedade global, doenças agressivas que foram responsáveis por milhões de mortes de indivíduos foram eliminadas. O sistema econômico passou por novos modelos de negócios, o marketing ganhou relevância e os seres humanos, para sobreviverem, passaram a desenvolver novas habilidades emocionais, construírem novos comportamentos e valores, estimulando novas formas de inovação, uma verdadeira revolução que impactou sobre as pessoas, os relacionamentos, as famílias, os valores e as necessidades humanas.

Os modelos econômicos e produtivos anteriores transformaram os comportamentos humanos, o estudo e a busca crescente pelos conhecimentos  abriam novos horizontes para a comunidade, a obtenção de um curso superior consolidava novas habilidades profissionais, as religiões ganhavam adeptos e os cultos eram espaços de fortalecimento dos laços sociais e comunitários, as famílias cresciam e se consolidavam como um ator central na sociedade, todos buscavam estabilidade econômica, emocional e espiritual, esperando uma aposentadoria digna e decente que pudessem consolidar uma vida de trabalho.

Nesta sociedade em constante transformação, percebemos grandes modificações, as gerações passaram por alterações crescentes de valores, novos comportamentos e novas motivações, anteriormente as pessoas por volta dos quarenta anos falavam em casa própria, estabilidade, relacionamentos sólidos e duradouros, buscando casamentos e, posteriormente os filhos, buscando uma formação e constituição familiar. Na atualidade, para pessoas da mesma idade, percebemos novos comportamentos e novas conversas, agora, estão falando sobre boletos, faturas atrasadas, dívidas acumuladas, qualificação profissional constante, valor do aluguel, ansiedades, depressão e uma sensação de que a vida está sempre atrasada. O cotidiano do indivíduo da meia idade passou por grandes alterações, essa geração percebe na pele que estão envelhecendo rapidamente, sem estabilidade, sem segurança profissional, aposentadoria precária, endividamento elevado ou, neste cenário preocupante, buscando se reinventar constantemente, para descobrir ou redescobrir o que é viver bem.

Pesquisas feitas pela revista Fortune mostram que essa geração ganha, em média, menos que seus pais recebiam em nossas idades, além do salário menor, percebemos que os custos de vida cresceram, o aluguel disparou sensivelmente, a previdência social nos parece inalcançável e o emprego, cada vez mais instável e incerto, marcados por fortes instabilidades, desta forma, é impossível que os indivíduos construam um planejamento futuro, com isso, percebemos o incremento das ansiedades, os medos e os ressentimentos.

Essa geração, chamada de millenials, está vivendo a crise da meia idade, uma sociedade centrada na volatilidade, no individualismo, no imediatismo, a cultura do sucesso se transformou em uma verdadeira tirania, convivendo constantemente com a exaustão física, exploração profissional, salários degradados, benefícios sendo reduzidos, aumento do burnout, reinvenções profissionais forçadas, dívidas acumuladas e o peso de não ter seguido o roteiro prometido pelo mercado, promessas e mais promessas, quando param para perceber, o tempo passou…

Neste ambiente, percebemos um choque constante entre as promessas do capitalismo contemporâneo e o que o mundo se tornou, um ambiente mais incerto e competitivo, onde foram prometidos estabilidade, ascensão profissional e prosperidade econômica e, ao invés disso, percebemos a perpetuação da instabilidade, da precariedade e do crescimento constante e sistemático das cobranças cotidianas. Neste cenário de degradação e instabilidades, percebemos que estamos envelhecendo, sem perspectivas, sem previdência e sem esperanças de dias melhores.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel de Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

 

 

Dívida, outra forma de explorar uberizados, por Salvagni, Festi e Valente

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Oprimidos por baixa remuneração, eles pagam muito pela compra, aluguel e manutenção dos veículos. Depois, corporações apresentam-se como “salvadoras”, concedendo empréstimos e cobrando juros, em nova modalidade de “escravidão por dívidas”

Julice Salvagni, Ricardo Festi e Jonas Valente – OUTRAS PALAVRAS – 23/09/2025

A financeirização da economia, marca do neoliberalismo no século XXI, atualizou os mecanismos de dominação colonial através das plataformas digitais. A lógica do capital financeiro, materializada na especulação, dataficação, rentismo e hiperexploração é o vetor desse processo. Isso passa a redesenhar o mapa global da exploração com o advento das plataformas digitais, dando ao capitalismo um novo fôlego até outra crise estrutural. Essas corporações transcendem fronteiras nacionais e atuam como agentes de um neocolonialismo digital, extraindo valor e mão de obra excedente de países periféricos de forma eficiente e desterritorializada.

O relatório do Fairwork Brasil 2025, evidencia a questão do endividamento dos trabalhadores de plataformas digitais no Brasil como um problema crescente e multifacetado. A pesquisa traz uma seção específica sobre o tema intitulado “Neocolonizadores digitais: plataformas pagam pouco e ainda lucram com empréstimos aos trabalhadores”, em que a lógica do endividamento é detalhada. A síntese sobre o endividamento pode ser organizada, basicamente, tendo por base dois principais pontos: o primeiro compõe as causas que levam ao endividamento e, o segundo, que coloca as plataformas como agentes financeiros.

No que diz respeito às causas do endividamento, a combinação de baixos salários com os altos custos de manutenção dos instrumentos de trabalho (veículo, combustível, pacotes de dados, etc.) cria um cenário onde os ganhos muitas vezes não cobrem as despesas. Isso força os trabalhadores a contraírem dívidas para conseguirem continuar trabalhando. Uma pesquisa citada no relatório aponta que cerca de 92% dos motoristas de plataformas digitais no Brasil estão endividados1.

A falta de cobertura em casos de acidentes ou problemas de saúde, que são comuns devido às jornadas exaustivas, contribui para o acúmulo de dívidas, pois os trabalhadores ficam impedidos de atuar e gerar renda. Ou seja, a ausência de proteção social ao trabalhador, embora seja um aspecto que passa na maior parte das vezes como despercebido, acaba sendo uma armadilha para quem trabalha nas plataformas. Isso porque elas simplesmente transferem todos os riscos da atividade para os trabalhadores.

Além disso, não só para o caso de acidentes, mas também para caso de multas ou manutenção com o veículo, são fontes de gastos que podem levar os trabalhadores a acumularem dívidas. Há ainda as situações de envolvimento direto com as empresas, como os casos de cancelamento de pedidos, extravio de produtos (mesmo por motivos de roubo) ou quando não conseguem localizar o cliente. Nestas todas, os trabalhadores costumam ser responsabilizados pelos custos do material que não foi entregue. Um trabalhador da Rappi relatou: “Quando o cliente cancelar um pedido em sua mão, ele já gera uma dívida para você”. Situações como esta são recorrentes nos relatos dos trabalhadores, sobretudo dando margem aos clientes que, porventura, querem agir de má fé, alegando que o produto não foi recebido, quando na verdade foi, por exemplo.

Outro aspecto central nas muitas camadas que envolvem a temática do endividamento é o amplo comércio de aluguel de carros, motos e bicicletas que se cria em torno e na relação direta com as plataformas. Frequentemente, essas locadoras são parceiras das plataformas, que autorizam o débito direto na conta do profissional. Isso faz com que os trabalhadores comecem o dia com um saldo negativo. Um motorista descreveu a situação: “sem ter trabalhado nada, já cheguei na segunda-feira para trabalhar endividado”.

No segundo ponto desta organização, está o papel das plataformas como agentes financeiros. O relatório do Fairwork 2025 revela que as empresas de plataforma têm atuado cada vez mais como provedoras financeiras, oferecendo empréstimos pré-aprovados diretamente aos trabalhadores através dos aplicativos. Plataformas como Uber (Banco Didio), 99 (com o serviço 99 Empresta), o iFood (com o iFood Pago) e Indrive (com a inDrive.Money) adotam essa prática.

Essa estratégia cria um ciclo vicioso: a plataforma paga pouco, gerando a necessidade de crédito e depois lucra com os juros dos empréstimos que ela mesma oferece. Um motorista da Uber relatou ter aceitado um empréstimo por desespero para pagar o que gastou com remédios para tratar doenças ocupacionais. Ou seja, a empresa cria o problema ao trabalhador, transfere a responsabilidade integralmente a ele que, na condição de não ter como pagar, acaba refém de um financiamento fornecido por essa mesma empresa. Ao final, a plataforma não só explora o trabalho dos sujeitos que dependem dela, como ainda ganha com juros do que ele foi obrigado a pagar por não ser responsável pelos custos da própria atividade.

Além de gerar lucro adicional, essa prática aumenta a probabilidade de o trabalhador permanecer vinculado à empresa para quitar a dívida. Tal contexto pode alimentar intimamente um ciclo de dependência do trabalhador à plataforma. Em suma, o relatório destaca que o endividamento não é uma consequência acidental, mas sim um elemento estrutural e estratégico do modelo de negócio das plataformas digitais no Brasil. Elas impõem condições precárias que levam ao endividamento e, em seguida, se posicionam como a “solução” financeira, lucrando duas vezes sobre a vulnerabilidade dos trabalhadores e aprofundando a sua dependência e exploração.

Vários autores têm destacado que o capital tem atuado não apenas por meio da exploração, mas também da espoliação e da expropriação do trabalho (Antunes, 2018). Harvey (2024) define esse atual contexto como “novo imperialismo”, já que é marcado crescentemente pela “acumulação por espoliação”, na qual o capital busca lucros por meio de práticas predatórias e não pela reprodução ampliada. Lazzarato (2010) evidencia que a política de dívidas constitui uma das características fundamentais da financeirização. Para ele, a sujeição e a servidão trabalham em conjunto para capturar o desejo e a força produtiva do social, exigindo uma nova abordagem para a ação política que vise a dessubjetivação. Nesse contexto, a financeirização configura-se como um mecanismo central para a plataformização do trabalho, operando como um modo de acumulação de riqueza das plataformas (Grohmann; Salvagni, 2023). Para os autores, esse mecanismo atua de forma articulada com o gerenciamento algorítmico e a dataficação, incluindo suas dimensões ideológicas da racionalidade neoliberal como uma etapa crucial nesse processo.

A exploração é o caso clássico da extração de mais valor no processo de trabalho. Trata-se, portanto, de uma forma de acumulação de capital por meio de uma relação no âmbito econômico. Em teoria, os trabalhadores são “livres” para oferecer a sua força de trabalho para o capital. A expropriação e a espoliação eram conceitos até então vinculados à formas não capitalistas de produção, como o feudalismo e o escravagismo. No entanto, no século XXI, tem-se visto cada vez mais a utilização pelo capital de recursos extra-econômicos, muitos no campo político e coercitivo, para impor seus regimes de trabalho e avançar na acumulação do capital.

A retirada de direitos protetivos do trabalho e de cidadania é um exemplo disso, constituindo-se fenômenos sociais como é o caso do precariado (assalariados que recebem rendas abaixo do necessário para sua reprodução social e está destituído ou limitado de seus direitos como cidadãos). Antigamente, a dívida como recurso de espoliação e expropriação da renda de um trabalhador esteve vinculada às atividades do meio rural. O lavrador acabava assumindo uma dívida com o fazendeiro (por conta do aluguel da moradia, da dívida na mercearia da fazenda, da viagem gasta pela migração etc.) e, apesar de não ser um escravo, era impedido de fugir por meio de capatazes. O próprio isolamento das propriedades rurais, longe dos grandes centros urbanos, dificultava qualquer tentativa de se libertar desta dívida injusta. No caso da dívida moderna, como é o caso da verificada entre entregadores de aplicativos, os mecanismos de dependência e coerção são mais sofisticados. As condições de vida foram erodidas ao longo dos anos e direitos protetivos foram retirados (tais como o poder de fiscalização e o reconhecimento do vínculo de emprego), deixando-se ainda mais vulneráveis frente ao poder do capital. Dessa forma, esses trabalhadores acabam se subjugando à condição das dívidas, sobretudo porque o contexto não lhes apresenta outra alternativa.

Esse contexto demonstra que a alegada autonomia no trabalho plataformizado é ilusória. A transferência dos riscos empresariais para o trabalhador resulta em uma posição de subserviência. A opção por empréstimos não decorre de uma escolha livre, mas de uma realidade marcada pelo endividamento e pela escassez de opções. As experiências narradas evidenciam as nuances de uma significativa reestruturação do mundo do trabalho, impulsionada pela tecnologia. O trabalho nas plataformas digitais, portanto, aprofunda a exploração e pode acabar estabelecendo uma relação de dependência direta para com a empresa.

Referências

Antunes, R. (2018). O privilégio da servidão: O novo proletariado de serviços na era digital. Boitempo.

Grohmann, R., & Salvagni, J. (2023). Trabalho por plataformas digitais: do aprofundamento da precarização à busca por alternativas democráticas. Edições Sesc SP.

Harvey, D. (2004). O “novo” imperialismo: acumulação por espoliação. Socialist register, 40(1), 95-126.

Lazzarato, M. (2010). Sujeição e servidão no capitalismo contemporâneo. Cadernos de subjetividade, (12), 168-179.

Sobre os autores:

Julice Salvagni – Professora da Escola de Administração e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Ricardo Festi – Professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília e pesquisador convidado do Institut de recherches interdisciplinar en sciences sociales (Irisso) da Université Paris Dauphine.

Jonas Chagas Lucio Valente – Pesquisador no Oxford Internet Institute.

1 Zem, R. (2025) Os motoristas de aplicativos trabalham até 60 horas semanais, ganham menos de R$ 4 mil e acumulam dívidas; diz pesquisa. Em G1, 26/07/2025. Pode ser encontrado em https://g1.globo.com/trabalho-e-carreira/noticia/2025/07/26/motoristas-de-app-faturamento-trabalho-horas-pesquisa.ghtml.

 

A reforma administrativa, por Sérgio Botton Barcellos

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Sérgio Botton Barcellos – A Terra é Redonda – 06/09/2025

A reforma administrativa não é apenas uma questão de gestão tecnocrática ou de ajuste fiscal, mas um projeto que toca diretamente na estrutura do Estado brasileiro e o modo como ele pode garantir direitos sociais

O debate sobre a reforma administrativa (PEC 32/2020) que estava em voga, em um período histórico mais recente, entre os anos de 2019 e 2022, voltou com força em 2025, por meio de um grupo de trabalho (GT) no Congresso que avança com baixa clareza, diálogo público restrito e indefinições sobre vínculos, estabilidade e carreiras.

Conforme noticiado amplamente na mídia no dia 25 de agosto é anunciado que a reforma administrativa entra na pauta prioritária da Câmara, afirma Hugo Motta, presidente da Câmara dos Deputados. Ou seja, é reforçado o status central dessa agenda política no Congresso e sinaliza um avanço pressionado, mesmo diante das diversas críticas na atual conjuntura vivida no Brasil, o que agrava os riscos de avanços legislativos de caráter austero e tecnobutrocrático, apressados e feitos sem a discussão apropriada e igualitária com todos os atores envolvidos.

Não nos enganemos, sobretudo a reforma administrativa, sob a ótica do mercado e da iniciativa privada, representa um esforço para reconfigurar o Estado brasileiro em função de interesses econômicos dominantes. Digamos que é uma entrega que determinados setores da elite vinculados ao setor empresarial e financeiro estão pedindo ao governo e ao congresso.

A proposta de reduzir a presença do Estado como executor direto de políticas sociais e aumentar a sua função reguladora mínima está em consonância com a lógica neoliberal consolidada desde os anos 1990. Bresser-Pereira, ao discutir a Reforma Gerencial do Estado, já apontava que a noção de eficiência e a ideia de administração pública orientada por resultados se tornaram centrais em um momento de ajuste estrutural e de pressão de organismos internacionais como Banco Mundial (BM), Fundo Monetário Internacional (FMI) etc.

Essa lógica de eficiência, no entanto, se traduziu em redução da estrutura estatal, flexibilização de vínculos de trabalho e abertura de espaços de mercado para empresas privadas em setores tradicionalmente públicos como a educação, saúde, ambiente etc.

David Harvey, em sua análise sobre o neoliberalismo destacou que esse modelo não se limita a um conjunto de medidas econômicas, mas corresponde a um projeto político de redistribuição de poder e de riqueza em favor de elites políticas e econômicas. A reforma administrativa brasileira está sendo construída porque, ao flexibilizar – o quê na verdade é precarizar – a estabilidade e as formas de acesso ao serviço público, amplia as condições de captura do Estado por interesses privados e reduz a autonomia técnica de servidores(as). Esse movimento tem como fim, apesar dos discursos e malabarismos semânticos, o enfraquecimento da capacidade estatal de regular mercados, manter e fiscalizar atividades estratégicas e garantir direitos universais a sociedade.

Em Souza (2017) há uma dimensão sociológica a ser considerada nessa discussão que é o pacto das elites brasileiras em torno da manutenção de privilégios e da reprodução de desigualdades históricas e estruturais. Supostas reformas como a administrativa não atacam os privilégios localizados no topo do funcionalismo e nos mecanismos de reprodução das classes dominantes, nem mesmo os(as) servidores(as) que não cumprem suas responsabilidades e obrigações funcionais.

Se concentram na base, onde estão a maioria dos(as) servidores(as) que garantem direitos sociais fundamentais. Assim, a narrativa da modernização e do combate a supostos privilégios se revela, na prática, um mecanismo de precarização do serviço público e de transferência de funções para o setor privado, reforçando a desigualdade e aprofundando a dependência do Estado em relação a interesses empresariais e alheios ao conjunto da sociedade que mais necessita de serviços públicos.

O mercado e a iniciativa privada objetivam na reforma administrativa uma oportunidade de expandir a terceirização e as parcerias público-privadas, capturar fatias do orçamento público e obter maior influência sobre políticas e regulações. A estabilidade e os concursos, que funcionam como barreiras republicanas contra o clientelismo, são mais enfraquecidos, abrindo caminho para contratações temporárias para as carreiras que não são consideradas típicas de Estado.

Isso tornará nomeações e seleções no serviço público tendencialmente mais suscetíveis a pressões políticas e econômicas. Nesse cenário, o Estado se torna menos capaz de coordenar políticas de longo prazo, mais vulnerável a ciclos eleitorais, interesses de famílias tradicionais na política para nomeação em cargos e a interesses privados nacionais e internacionais de curto prazo, e mais dependente de soluções privadas que, longe de serem universais, são orientadas pela lógica da lucratividade, eficiência alheia aos interesses da maioria da sociedade e a manutenção da desigualdade estrutural.

Ou seja, a reforma administrativa que está em pauta no Congresso não é algo apenas de interesse do funcionalismo público, mas da sociedade brasileira no que tange a acesso e garantia a direitos sociais básicos e a construção de direitos universais.

Notas técnicas de sindicatos, organizações e movimentos sociais

Além disso, de imediato o que se percebe é que a justificativa para fazer a reforma o ponto de vista fiscal, a promessa de “economia estrutural”, que está alicerçado no projeto do governo Lula 3 que é o arcabouço fiscal, carece de base consistente: a Nota Técnica n° 69/2021 da Consultoria de Orçamento do Senado apontou que os efeitos da PEC 32 eram, na melhor das hipóteses, incertos e limitados, e sugeriu medidas alternativas mais eficazes para qualificar os gastos com pessoal.

A ANFIP reforçou à crítica, alertando que a proposta poderia agravar o panorama fiscal ao desorganizar capacidades essenciais de arrecadação, fiscalização e planejamento.

As análises do DIEESE apontam que a reforma desloca o foco da gestão pública consolidada para a precarização dos vínculos e o enfraquecimento de garantias republicanas. A Nota Técnica número 254/2021 demonstrou que a combinação de novas contratações, instabilidade e discricionariedade em carreiras compromete acesso e qualidade dos serviços, sobretudo nas áreas de saúde, educação e assistência.

Dois artigos recentes aprofundam essa crítica. Primeiro, o texto “A quem interessa a Reforma Administrativa?” expõe que o discurso de que o serviço público seria “inchado” e ineficiente é um mito que, repetido insistentemente, legitima cortes e flexibilizações, embora os desperdícios de fato estejam em segmentos mais privilegiados e não na base do funcionalismo. No outro artigo “Os riscos da Reforma Administrativa” ainda há o alerta “A reforma de que o Brasil precisa é aquela que serve à maioria da população, especialmente às pessoas que dependem de bens e serviços públicos de qualidade. Em outras palavras, o Brasil necessita de um Estado de bem-estar social, uma economia verde e digital e uma democracia resiliente.”

Um outro vetor de preocupação está no uso da remuneração por produtividade como solução simplista. Em outra análise alerta-se que, ao tentar medir produtividade em serviços públicos complexos, incentiva-se o “jogo de indicadores”, priorizam-se tarefas mensuráveis em detrimento do essencial, corroem-se as cooperações e fomentam-se práticas de curto prazo. Essas medidas tendem a deslocar prioridades públicas, aprofundar desigualdades territoriais e prejudicar a eficácia do serviço público.

Ou seja, somando-se esses elementos, a contradição se torna clara: a proposta de reforma reflete um ideal de eficiência e economia, mas destrói capacidades estatais, sem enfrentar privilégios factuais, históricos e estruturais, oferecendo na prática um Estado desmantelado e menos capaz de coordenar políticas de longo prazo em um momento em que o país carece de planejamento para enfrentar crises geopolíticas, sociais, econômicas e climáticas.

Isto é, não faz sentido para a maioria da sociedade brasileira uma reforma administrativa que não seja no sentido de fortalecer o Estado em suas diretrizes para promover práticas de gestão administrativa e de pessoas com foco na resolução de gargalos reais como políticas públicas orientadas por dados e indicadores sociais públicos, não por interesses de deputados(as) e senadores(as) via emendas, por investimento em tecnologia, nos processos, na execução orçamentária, coordenação e na gestão com base na soberania popular.

O governo Lula 3 diante da Reforma administrativa

A posição do governo Lula 3 diante da reforma administrativa é marcada por ambiguidade e contradições, o que pode ser visto na recente entrevista concedida por Esther Dweck, ministra do MGI. Desde a transição em 2023, o governo adotou um discurso de que não retomaria a PEC 32 apresentada no governo anterior, considerada uma proposta abertamente hostil ao serviço público.

O discurso oficial afirmava que qualquer debate sobre modernização da gestão pública deveria ser construído com diálogo e com foco na valorização do servidor. No entanto, com o avanço das negociações no Congresso em 2025, o Planalto não se colocou frontalmente contra a retomada da reforma e, em diferentes momentos, ministros da área econômica e da Casa Civil sinalizaram disposição em negociar pontos com a base congressual.

Esse movimento revela uma tática para demonstrar compromisso com o projeto de governo que é o arcabouço fiscal e com a agenda de responsabilidade exigida pelo mercado, mas cria uma posição ambígua: de um lado, o governo nega a reforma nos termos originais da PEC 32, de outro aceita discuti-la para atender pressões políticas e fiscais.

Essa postura coloca em evidência a contradição entre a base social e a base política do governo. Os sindicatos, as centrais e os movimentos sociais que foram pilares históricos de apoio a Lula se manifestam de forma contundente contra a reforma, denunciando riscos de precarização do serviço público. Por outro lado, os partidos que compõem o centrão e setores empresariais, fundamentais para a carcomida governabilidade, pressionam pela aprovação de uma pauta de modernização do Estado e tratam a reforma administrativa como prioridade.

Essa tensão revela o dilema do governo que já está em modo campanha eleitoral: se assumir a defesa plena de sua base social pode enfrentar custos no Congresso, mas se ceder à pressão congressual corre o risco de se distanciar de sindicatos e movimentos.

O discurso oficial de modernização busca suavizar o debate, enfatizando termos como digitalização de processos, carreiras mais atrativas e racionalização administrativa. A ambivalência atual repete contradições já observadas em outras agendas do Lula 3, como na política ambiental, na questão agrária e na política fiscal, com a promessa de priorizar direitos sociais ao mesmo tempo em que se mantém um arcabouço fiscal restritivo que engessa o orçamento.

As consequências dessa postura podem ser múltiplas. Para os(as) servidores(as) públicos(as), o governo pode perder legitimidade relativa ao assumir posturas ambíguas e contraditórias ao não ter um projeto estratégico de país, inclusive para o serviço público, além do arcabouço fiscal.

Para a governabilidade, a concessão a pressões do centrão pode garantir vitórias momentâneas, tende a enfraquecer o capital político diante de sua base social tradicional. Para o nosso esboço de democracia, há o risco de que um governo eleito com a promessa de recompor o Estado, após o desmonte bolsonarista, acabe por entregar uma agenda que mantém e amplia a lógica neoliberal de austeridade e desmonte institucional.

Chama-se atenção que os aspectos que têm respaldo da sociedade para mudanças, como as assimetrias de remuneração entre os três poderes e a aposentadoria dos militares não são pautados por parte do discurso oficial do governo e muito menos na relatoria da PEC.

Bom, a ver os próximos desdobramentos das articulações do governo Lula 3 junto as bancadas do Congresso Nacional, com a Faria Lima e demais setores privados interessados na reforma administrativa.

As centrais sindicais

Um aspecto fundamental do atual debate até o momento pode ser a mobilização sindical. A oportunidade e o espaço estão aí para serem ocupados. Diferentes entidades têm se articulado debates e formas de barrar a reforma administrativa. O Fórum Nacional dos Servidores Públicos Federais (Fonasefe), a Conferência dos Trabalhadores no Serviço Público Federal (Condsef), o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES-SN), a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e a Federação Nacional dos Sindicatos de Trabalhadores em Saúde, Trabalho, Previdência e Assistência Social (Fenasps), entre outros, têm organizado agendas para discutir a proposta.

Além da mobilização de base, os sindicatos têm investido em pressão parlamentar. Centrais sindicais como a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) e a Intersindical têm promovido campanhas, a seu jeito e com suas limitações conjunturais e políticas, debatendo os mitos de que o Estado brasileiro estaria “inchado” ou que os servidores “ganham muito”. Dados sistematizados mostram que o número de servidores no Brasil é proporcionalmente menor que a média da OCDE e que a maioria das carreiras de base recebe salários abaixo da média das ocupações de nível superior.

O desafio de construir mobilizações de grande lastro, contudo, permanece no sentido de: (i) superar a fragmentação e as contradições internas entre categorias e entidades sindicais devido à proximidade ou distanciamento político e partidário com o governo; (ii) disputar a opinião pública contra o discurso de modernização e privilégios generalizados propagado pela mídia hegemônica; e (iii) enfrentar a pressão de setores privados que colocam a reforma como prioridade imediata no Congresso.

O que fazer?

Parece que a conjuntura impõe que precisamos nos mobilizar o quanto antes diante da reforma administrativa porque o processo legislativo relativo a essa proposta tende a ser rápido, marcado por negociações intensas no Congresso e com baixo nível de participação popular. A experiência recente com outras reformas estruturais, como a previdenciária em 2019 e a trabalhista em 2017, mostra que, quando a mobilização social ocorre apenas depois do avanço do texto, as possibilidades de barrar retrocessos ou de introduzir mudanças significativas e de interesse popular ficam muito reduzidas.

Fora que nos processos de votação nos plenários os textos são alterados e podem ser colocados “jabutis” passando por cima do acúmulo de discussões feitas anteriormente. Por isso da necessidade de constante articulação e vigilância popular junto ao Congresso antes que decisões de grande impacto nessa reforma sejam tomadas a portas fechadas.

A reforma administrativa não é apenas uma questão de gestão tecnocrática ou de ajuste fiscal, mas um projeto que toca diretamente na estrutura do Estado brasileiro e o modo como ele pode garantir direitos sociais. Até porque, diante da desigualdade social estrutural brutal que temos no Brasil, a máquina pública brasileira necessita ser ampliada para assegurar dignidade à população e direitos universais como educação, saúde, ambiente, moradia, transporte público etc.

Parece que o quanto antes sindicatos, movimentos sociais, entidades acadêmicas e organizações da sociedade civil se articularem, maior será a capacidade de disputar narrativas, de esclarecer a população sobre os efeitos concretos da reforma, de pressionar parlamentares e mobilizar manifestações de peso para que haja um amplo debate na sociedade sobre a reforma administrativa e os seus efeitos.

Sérgio Botton Barcellos é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Direita proibiu prender políticos, por Celso Rocha de Barros

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Celso Rocha de Barros, Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra) e autor de “PT, uma História”.

Folha de São Paulo, 21/09/2025

A direita brasileira aprovou um projeto de emenda constitucional, a PEC da Blindagem, que, na prática, proíbe prender políticos.

Não, não foi “o Congresso” que aprovou. Não foram “os políticos”. Foi a direita.

Sim, teve gente do PT que apoiou a PEC da Blindagem, mas 80% dos deputados petistas votaram contra. Somando todos os partidos de esquerda, mais de 70% dos deputados votaram contra a proibição de prender políticos.

Entre os partidos de centro (PSD, MDB, PSDB e Cidadania), a proporção é bem menor: 30% dos centristas votaram contra a PEC da blindagem.

Já entre os partidos de direita (Avante, Novo, PL, PP, PRD, Podemos, Republicanos, Solidariedade e União Brasil), o contraste é óbvio: só 6,7% dos deputados votaram contra a PEC da Blindagem.

Mais de 90% da direita votou a favor de proibir prender político.

Os números são esses. Mostrá-los não é ter viés de esquerda. Fingir que eles não existem é que é ter viés de direita.

Todos, absolutamente todos os deputados do partido de Bolsonaro e de seus principais seguidores, o PL, votaram a favor de proibir prender políticos. Cem por cento. Todo mundo. Nenhum contra.

O bolsonarista Nikolas Ferreira tentou argumentar que a PEC não proíbe prender parlamentares: basta que o Congresso aprove a abertura dos inquéritos criminais contra eles.

Você leu direito. Lembra dos bolsonaristas “contra o sistema”? Eles agora argumentam que os deputados são perfeitamente confiáveis para decidirem se podem ou não ser investigados.

O deputado Kim Kataguiri foi um dos poucos direitistas que votaram contra a PEC da Blindagem. Mais especificamente, 1 dos 4 entre os 57 deputados votantes de seu partido, o União Brasil.

Após a votação, Kataguiri gravou um vídeo aparentando desânimo com o fato de que os políticos que o haviam acompanhado na luta contra a corrupção durante a Lava Jato apoiaram com entusiasmo a PEC da Blindagem.

Deputado, com todo respeito, é hora de reconhecer o óbvio: a direita brasileira só foi contra a corrupção enquanto as acusações eram contra o PT. Os deputados que votaram pelo impeachment que o senhor defendeu votaram pensando no acordão prometido por Jucá e Temer. Embora a Lava Jato tenha acumulado derrotas depois do impeachment, o acordão só foi sacramentado definitivamente com Bolsonaro e Augusto Aras, quando já começava a farra do orçamento secreto. Seus colegas de direita votaram a favor da PEC da Blindagem com medo dessa roubalheira ser investigada.

Foi inclusive notável ver a oposição votar pela blindagem e o governo votar pela ética. Em geral, quem luta contra a corrupção é quem está na oposição: afinal, quem costuma ter acesso a dinheiro para roubar é quem está no governo.

Isso parece ter mudado com o aumento do controle do Congresso Nacional sobre o orçamento nos últimos dez anos. Agora quem está no Congresso já pode desviar dinheiro sem precisar do presidente da República.

A votação da PEC da Blindagem também nos dá uma ideia do que teria sido uma ditadura Bolsonaro. Se é esse o tipo de acordo que os golpistas fizeram na democracia, expostos à crítica da opinião pública, imaginem o quanto teriam roubado em uma ditadura sem imprensa livre ou judiciário independente.

 

O estertor do ‘sonho americano’ por Eduardo Giannetti

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Eduardo Giannetti, Economista, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras; seu mais recente livro é “Imortalidades” (Companhia das Letras).

Folha de São Paulo, 21/09/2025

Embora coetânea da cultura ianque, a expressão “sonho americano” demorou a nascer. Foi só em 1931 —no início da Grande Depressão— que ela ingressou no mundo letrado pelas mãos do historiador James Truslow Adams no epílogo do livro “O Épico da América”.

Ao cunhar a expressão, Adams definiu-a como “o sonho de uma ordem social na qual cada homem e cada mulher estejam aptos a alcançar a mais plena estatura da qual são congenitamente capazes, e de serem reconhecidos pelos demais por aquilo que são, independentemente das circunstâncias fortuitas de berço ou posição social”. Nos Estados Unidos, emendou, este sonho “tem se realizado de forma mais plena do que em qualquer outro lugar, embora muito imperfeitamente mesmo entre nós”.

Palavras edificantes, porém ocas. A omissão de Adams ao elencar o que via como entraves à plena realização do “sonho americano” é gritante.

Pois ele critica o sistema educacional, a disparidade de renda, a idolatria do dinheiro, mas é absolutamente omisso diante da mais grave injustiça da sociedade em que vivia: o apartheid racial que condenava 12 milhões de negros e mestiços (10% da população) a uma existência oprimida e humilhada pela segregação formal e informal.

Diante do silêncio do pai de batismo do “sonho americano”, não há como evitar a suspeita de um sinistro subtexto racialista —embutido na expressão “congenitamente capazes”— atrelado à noção que ele consagrou.

Quase um século depois, como anda o “sonho americano”? Começo por alguns fatos, antes de sugerir um esboço de interpretação:

1 – Para um jovem do sexo masculino de 18 anos, a probabilidade de morrer antes de chegar aos 50 é hoje maior nos EUA do que em Bangladesh. A causa são as “mortes de desespero”, provocadas por opioides, alcoolismo, abuso de drogas e suicídio (os opioides matam mais que os crimes violentos no Brasil);

2 – O número de presos nos EUA cresceu 700% desde 1970, atingindo cerca de 2 milhões de pessoas; nenhum outro país tem uma parcela maior da população encarcerada (a taxa é quatro vezes maior que na União Europeia). A chance de um afrodescendente ser preso nos EUA é seis vezes maior que a de um branco;

3 – O “transtorno do déficit de atenção” afeta cerca de 15% dos meninos americanos entre 3 e 17 anos, ao passo que na UE a cifra é um terço menor. O consumo per capita de antidepressivos e de ansiolíticos nos EUA é o dobro do verificado na União Europeia;

4 – Um cidadão americano com a renda mediana (US$ 83,7 mil/ano) pertence à elite dos 5% mais ricos do planeta; aos seus próprios olhos, porém, e aos olhos da sociedade onde vive, ele não passa de um “loser” fracassado na corrida por status e “sucesso”. Estima-se que um americano comum seja bombardeado por cerca de 3.000 mensagens publicitárias por dia;

5 – Os 400 americanos mais ricos possuem um patrimônio líquido (US$ 16,5 bilhões em ativos per capita) maior que toda a riqueza detida pelas 150 milhões de pessoas que estão entre os 60% mais pobres (US$ 21 mil per capita).

As peças se coadunam. Postiço na origem, o “sonho americano” dá sinais de falência múltipla.
Embora Donald Trump acelere o declínio estadunidense, ele não é a causa, mas antes sintoma, de uma sociedade adoecida e cindida por ódios e rancores intestinos, como as irrupções de fúria e a escalada da violência política ilustram.

O tecnoconsumismo americano promoveu uma aceleração do trabalho e do afã por riqueza como jamais o mundo conheceu. E tudo em nome do quê?

Tudo em nome de um mundo em que as pessoas esperam cada vez mais dos seus gadgets e pílulas miraculosas, mas cada vez menos umas das outras em suas relações pessoais e afetivas. Em que a ansiedade financeira, conjugada ao temor de colapso ambiental, só faz crescer.

E o Brasil com isso? Será desvairadamente utópico imaginar que temos tudo para não capitularmos à opressiva industriosidade ianque geradora de objetos demais, alegria de menos?

Que o Brasil, embora modesto nos meios, mantém viva sua aptidão para a arte da vida? Que podemos ousar modelos de economia e de convivência mais humanos e adequados ao que somos e sonhamos?

Dez teses sobre a extrema direita do século XXI, por Vijay Prashad

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A princípio, ela não está preocupada em derrubar a democracia liberal. É tentacular na sociedade, com o apoio das Big Techs. Capitaliza a solidão gerada pelo neoliberalismo. E se serve de um poder hediondo com a promessa de “salvar” o indivíduo

Por Vijay Prashad, com tradução no GGN – 22/08/2024 – OUTRAS MÍDIAS.

Desde 2016, verificamos uma consternação generalizada sobre como compreender o surgimento de Donald Trump como um candidato sério a presidente dos EUA. Longe de ser um fenômeno isolado, Trump chegou ao poder ao lado de outros “homens fortes” como Viktor Orbán (primeiro-ministro da Hungria desde 2010), Recep Tayyip Erdoğan (presidente da Turquia desde 2014) e Narendra Modi (primeiro-ministro da Índia desde 2014). Parece ser impossível que homens como esses, que chegaram ao poder e consolidaram seu governo por meio de instituições liberais, saiam de cena permanentemente por meio das urnas. Está claro que está ocorrendo um giro para a direita nos Estados democráticos liberais, cujas constituições enfatizam as eleições multipartidárias e, ao mesmo tempo, permitem que o espaço para o governo de um partido seja gradualmente estabelecido.

O conceito de democracia liberal foi e é um conceito altamente contestado que surgiu das potências coloniais da Europa e dos EUA nos séculos 18 e 19. Suas alegações de pluralismo e tolerância interna, o Estado de Direito e a separação dos poderes políticos surgiram ao mesmo tempo em que suas conquistas coloniais e seu uso do Estado para manter o poder de classe sobre suas próprias sociedades. É difícil conciliar o liberalismo atual com o fato de que os países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) são responsáveis por 74,3% dos gastos militares mundiais.

Países com constituições que enfatizam eleições multipartidárias têm visto cada vez mais o estabelecimento gradual do que é efetivamente um governo de partido único. Essa regra de partido único pode, às vezes, ser mascarada pela existência de dois ou até mesmo três partidos, ocultando a realidade de que a diferença entre esses partidos tem se tornado cada vez mais insignificantes.

Tornou-se evidente que um novo tipo de direita surgiu não apenas por meio de eleições, mas exercendo domínio nas arenas da cultura, da sociedade, da ideologia e da economia, e que esse novo tipo de direita não está necessariamente preocupado em derrubar as normas da democracia liberal, como debatemos no nosso mais recente dossiê, O avanço do neofascismo e os desafios da esquerda na América Latina. Isso é o que chamamos de “abraço íntimo entre o liberalismo e a extrema direita”, seguindo os escritos de nosso falecido membro sênior Aijaz Ahmad.

A formulação desse “abraço íntimo” nos permite entender que não há contradição necessária entre o liberalismo e a extrema direita e, de fato, que o liberalismo não é um escudo contra a extrema direita, e certamente não é seu antídoto. Quatro elementos teóricos são fundamentais para entender esse “abraço íntimo” e a ascensão dessa extrema direita de um tipo especial:

  1. As políticas de austeridade neoliberal em países com instituições eleitorais liberais destruíram os programas de bem-estar social que permitiam a existência de sensibilidades progressistas. O fracasso do Estado em cuidar dos pobres se transformou em severidade para com eles.
  2. Sem um compromisso sério com o bem-estar social e com os programas redistributivos, o próprio liberalismo entrou no mundo das políticas de extrema direita. Isso inclui o aumento dos gastos com o aparato repressivo que policia os bairros da classe trabalhadora e as fronteiras internacionais, juntamente com a distribuição cada vez mais avarenta de bens sociais, distribuídos somente se os beneficiários aceitarem a destituição de direitos humanos básicos (como “concordar” com a obrigatoriedade do controle de natalidade).
  3. Nesse terreno, a extrema direita de um tipo especial descobriu que se tornava cada vez mais aceita como uma força política, dado o giro dos partidos liberais em direção às políticas defendidas pela extrema direita. Em outras palavras, essa tendência de basear-se em políticas de extrema direita permitiu que esta ala se tornasse convencional.
  4. Por fim, as forças políticas liberais e de extrema direita se uniram em todos os setores para diminuir o alcance da esquerda sobre as instituições. A extrema direita e seus colegas liberais não possuem divergências econômicas fundamentais em relação à classe. Nos países imperialistas, há uma grande confluência de pontos de vista sobre a manutenção da hegemonia dos EUA, a hostilidade e o desprezo pelo Sul Global e o aumento do chauvinismo, conforme observado pelo apoio militar total ao genocídio que Israel está realizando contra os palestinos.

Após a derrota do fascismo italiano, alemão e japonês em 1945, os analistas do Ocidente se preocuparam com a incubação da extrema direita em suas sociedades. Enquanto isso, a maioria dos marxistas reconhecia que a extrema direita não havia surgido do nada, mas das contradições do próprio capitalismo. O colapso do Terceiro Reich foi apenas uma fase na história da extrema direita e do desenvolvimento do capitalismo; ela ressurgiria, talvez com roupas diferentes.

Em 1964, o marxista polonês Michał Kalecki escreveu o estimulante artigo “The Fascism of Our Times” [Faszyzm naszych czasów]. Nesse ensaio, Kalecki disse que os novos tipos de grupos fascistas que estavam surgindo na época apelavam “para os elementos reacionários das grandes massas da população” e eram “subsidiados pelos grupos mais reacionários dos grandes negócios”. No entanto, escreveu Kalecki, “a classe dominante como um todo, embora não aprecie a ideia de grupos fascistas tomarem o poder, não faz nenhum esforço para suprimi-los e se limita a reprimendas por excesso de zelo”. Essa atitude persiste até hoje: a classe dominante como um todo não teme a ascensão desses grupos fascistas, mas apenas seu comportamento “excessivo”, enquanto as seções mais reacionárias das grandes empresas apoiam financeiramente esses grupos.

Uma década e meia depois, quando Ronald Reagan parecia estar prestes a se tornar o presidente dos Estados Unidos, Bertram Gross publicou Friendly Fascism: The New Face of Power in America (1980) [A nova face do poder na América], que se baseou livremente em The Power Elite (1956) [A elite do poder] de C. Wright Mills e Monopoly Capital: An Essay on the American Economic and Social Order (1966), [Capital monopolista: um ensaio sobre a ordem econômica e social americana] de Paul A. Baran e Paul M. Sweezy. Gross argumentou que, como as grandes empresas monopolistas haviam estrangulado as instituições democráticas nos Estados Unidos, a extrema direita não precisava de botas e suásticas: essa orientação viria por meio das próprias instituições da democracia liberal. Quem precisa de tanques quando se tem os bancos para fazer o trabalho sujo?

As advertências de Kalecki e Gross nos lembram que a intimidade entre o liberalismo e a extrema direita não é um fenômeno novo, mas emerge das origens capitalistas do liberalismo: este nunca foi nada além da face amigável da brutalidade normal do capitalismo.

Os liberais estão usando a palavra “fascismo” para se distanciar da extrema direita. Esse uso do termo é mais moralista do que preciso, pois nega a intimidade entre os liberais e a extrema direita. Para isso, formulamos dez teses sobre essa extrema direita de um tipo especial, que esperamos que provoque discussões e debates. Esta é uma formulação provisória, um convite para o diálogo.

Tese um. A extrema direita de um tipo especial usa instrumentos democráticos até onde for possível. Ela acredita no processo conhecido como “longa marcha através das instituições”, por meio do qual constrói pacientemente o poder político e aparelha as instituições permanentes da democracia liberal com seus quadros, que depois levam seus pontos de vista para o pensamento dominante. As instituições educacionais também são fundamentais para a extrema direita de um tipo especial, pois determinam os programas de estudo para os alunos em seus respectivos países. Não é necessário que essa extrema direita de um tipo especial deixe de lado essas instituições democráticas, desde que elas ofereçam o caminho para o poder não apenas sobre o Estado, mas sobre a sociedade.

Tese dois. A extrema direita de um tipo especial está promovendo o desgaste do Estado e a transferência de suas funções para o setor privado. Nos Estados Unidos, por exemplo, sua propensão à austeridade está ajudando a reduzir a quantidade e a qualidade dos quadros em funções essenciais do Estado, como o Departamento de Estado dos EUA. Muitas das funções dessas instituições, agora privatizadas, são realizadas sob os auspícios de organizações não governamentais lideradas por capitalistas bilionários emergentes, como Charles Koch, George Soros, Pierre Omidyar e Bill Gates.

Tese três. A extrema direita de um tipo especial usa o aparato repressivo do Estado de modo a silenciar seus críticos e desmobilizar movimentos de oposição econômica e política. As constituições liberais oferecem ampla latitude para esse tipo de uso, do qual as forças políticas liberais se aproveitaram ao longo do tempo para reprimir qualquer resistência da classe trabalhadora, do campesinato e da esquerda.

Tese quatro. A extrema direita de um tipo especial incita uma dose homeopática de violência na sociedade por parte dos elementos mais fascistas de sua coalizão política para criar medo, mas não medo suficiente para que as pessoas se voltem contra ela. A maioria das pessoas de classe média em todo o mundo busca conforto e se incomoda com os inconvenientes (como os causados por manifestações, etc.). Mas, ocasionalmente, um assassinato de um líder trabalhista ou uma ameaça a mão armada feita a um jornalista não é atribuída à extrema direita de um tipo especial, que muitas vezes nega apressadamente qualquer associação direta com os grupos fascistas marginais (que, no entanto, estão organicamente ligados a ela).

Tese cinco. A extrema direita, de um tipo especial, oferece uma resposta parcial à solidão que está presente no tecido da sociedade capitalista avançada. Essa solidão decorre da alienação das condições precárias de trabalho e das longas jornadas, que corroem a possibilidade de construir uma comunidade e uma vida social vibrantes. Essa extrema direita não constrói uma comunidade real, exceto quando se trata de seu relacionamento parasitário com comunidades religiosas. Em vez disso, ela desenvolve a ideia de comunidade, comunidade pela Internet ou por meio de mobilizações ou comunidade por meio de símbolos e gestos compartilhados. A imensa fome de comunidade é aparentemente resolvida pela extrema direita, enquanto a essência da solidão se transforma em raiva, e não em amor.

Tese seis. A extrema direita de um tipo especial usa sua proximidade com conglomerados privados de mídia para normalizar seu discurso, e sua proximidade com os proprietários de mídias sociais para aumentar a aceitação social de suas ideias. Esse discurso de agitação cria um frenesi, mobilizando setores da população, seja on-line ou nas ruas, para participar de manifestações em que, no entanto, continuam sendo indivíduos e não membros de um coletivo. O sentimento de solidão gerado pela alienação capitalista é atenuado por um momento, mas não superado.

Tese sete. A extrema direita de um tipo especial é uma organização tentacular, com suas raízes espalhadas por vários setores da sociedade. Ela atua onde quer que as pessoas se reúnam, seja em clubes esportivos ou organizações beneficentes. Seu objetivo é construir uma base de massa na sociedade, enraizada na identidade da maioria em um determinado lugar (seja raça, religião ou senso de nacionalidade), marginalizando e demonizando qualquer minoria. Em muitos países, essa extrema direita se apoia em estruturas e redes religiosas para incorporar cada vez mais profundamente uma visão conservadora da sociedade e da família.

Tese oito. A extrema direita de um tipo especial ataca as instituições de poder que são o próprio alicerce de sua base sociopolítica. Ela cria a ilusão de ser plebéia em vez de patrícia, quando, na verdade, está nos bolsos da oligarquia. Ela cria a ilusão de plebeia ao desenvolver uma forma altamente masculina de hipernacionalismo, cuja decadência transparece em sua feia retórica. Essa extrema direita se aproveita do poder da testosterona desse hipernacionalismo e, ao mesmo tempo, joga com sua retratada vitimização diante do poder.

Tese nove. A extrema direita de um tipo especial é uma formação internacional, organizada por meio de várias plataformas, como o The Movement de Steve Bannon (com sede em Bruxelas), o partido Vox do Fórum de Madrid (com sede na Espanha) e a anti-LGBTQ+ Fundação Fellowship  (com sede em Seattle, EUA). Esses grupos estão enraizados em um projeto político no mundo atlântico que reforça o papel da direita no Sul Global e lhes fornece os recursos para aprofundar as ideias de direita onde elas têm pouco solo fértil. Eles criam novos “problemas” que antes não existiam nessa proporção, como a algazarra sobre sexualidade no leste da África. Esses novos “problemas” enfraquecem os movimentos populares e reforçam o controle da direita sobre a sociedade.

Tese dez. Embora a extrema direita de um tipo especial possa se apresentar como um fenômeno global, há diferenças entre a forma como ela se manifesta nos principais países imperialistas e no Sul Global. No Norte Global, tanto os liberais quanto a extrema direita defendem vigorosamente os privilégios que obtiveram por meio da pilhagem nos últimos 500 anos – por meio de seus meios militares e outros – enquanto no Sul Global a tendência geral entre todas as forças políticas é estabelecer a soberania.

A extrema direita de um tipo especial surge em um período definido pelo hiperimperialismo para mascarar a realidade do poder hediondo e fingir que se preocupa com os indivíduos isoladamente quando, na verdade, os prejudica.

Ela conhece bem a loucura humana e se aproveita dela.

 

Capitalismo Parasitário, por Luiz Guilherme de Besurepaire

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Luiz Guilherme de Besurepaire – 11/05/2020 .

O capitalismo tem uma incrível capacidade de se reinventar, de se regenerar. No entanto, após o tsunami financeiro de 2008, demonstrou a todos nós que a prosperidade não é algo para sempre e que os bancos capitalistas, através de seus métodos que se dizem “solucionadores de problemas”, na verdade se destacam por criar problemas, e não por solucioná-los. É assim que começa esse livro maravilhoso de Zygmunt Bauman chamado “Capitalismo Parasita”.

Bauman cita um artigo publicado na New York Books Review, em intitulado “The Crisis and What to Do About It”, em que George Soros apresenta as (des)venturas do capitalismo como um ciclo de bolhas que chegam ao seu limite de resistência. Quando a bolha em 2008 estourou, ocorreu de imediato a contração do crédito.

Alguns antecipavam o fim do capitalismo, mas na verdade tudo não passou de uma exaustão de mais um pasto. O Estado capitalista, através dos recursos públicos (usando impostos em vez do poder de sedução do mercado), buscará novas pastagens enquanto ficar fora de operação.

Rosa Luxemburgo, em seu livro chamado “Acumulação Capitalista”, diz que o capitalismo não pode viver sem as economias “não capitalistas”, ou seja, enquanto existirem “terras virgens” para expansão e houver capacidade de explorá-las até exaurirem as fontes de sua própria alimentação. Em outras palavras, o capitalismo é um sistema parasitário.

Como todos os parasitas, pode prosperar durante certo período, desde que encontre um organismo ainda não explorado que lhe forneça alimento. Mas só pode fazer isso destruindo o hospedeiro, destruindo as condições de sua prosperidade, ou mesmo de sua sobrevivência. Após uma exaustão completa ou quase completa de um organismo hospedeiro, um parasita procura encontrar outro, para supri-lo de sucos vitais por um período sucessivo, embora também limitado, de tempo.

Rosa Luxemburgo, quando escreveu o seu livro, não previa nem podia prever que os territórios pré-modernos cheios de continentes exóticos não eram os únicos “hospedeiros” potenciais dos quais o capitalismo poderia se nutrir para prolongar a própria existência e gerar uma série de períodos de prosperidade.

“Sem meias-palavras, o capitalismo é um sistema parasitário. Como todos os parasitas, pode prosperar durante certo período, desde que encontre um organismo ainda não explorado que lhe forneça alimento. Mas não pode fazer isso sem prejudicar o hospedeiro, destruindo assim, cedo ou tarde, as condições de sua prosperidade ou mesmo de sua sobrevivência.” (pg8, pg 9)

O parasita a que se refere Rosa Luxemburgo é a força do capitalismo que busca incessantemente novos lugares para se “hospedar”, ou seja, novos mercados. O capitalismo revelou desde então seu incrível talento para buscar e encontrar novas espécies de hospedeiro cada vez que a espécie explorada anteriormente diminuía em número.

Hoje, o capitalismo já alcançou a dimensão global ou, de qualquer forma, chegou muito perto de alcançá-la − uma façanha que para Luxemburgo ainda era uma perspectiva um tanto distante. O que aconteceu no último meio século mais ou menos é o capitalismo aprendendo a arte anteriormente desconhecida e inimaginável de produzir sempre novas “terras virgens”, em vez de limitar sua rapidez ao conjunto das já existentes. Milhões de homens e mulheres que se dedicavam antes a economizar em vez de viver do crédito foram transformados com astúcia em um desses territórios virgens ainda não explorados. Essa nova arte − possibilitada pela mudança da “sociedade de produtores” para a “sociedade de consumidores” e da reunião de capital e trabalho para a reunião de mercadorias e clientes como a principal fonte de “valor agregado” − lucro e acumulação consiste principalmente na mercantilização progressiva das funções da vida.

Com a sociedade de consumidores, o cartão de crédito foi o indício do aparecimento de um mercado sedutor. Nos velhos tempos, era preciso postergar as satisfações – que segundo Max Weber foi o princípio que tornou possível o capitalismo moderno –, apertar os cintos, negar outros prazeres, gastar de forma prudente, economizar dinheiro, que se podia separar com a esperança de que, com o devido cuidado e paciência, os sonhos seriam concretizados.

A expressão material deste parasitismo é o cartão de crédito, que, com seu slogan “não adie a realização dos seus sonhos”, induz o consumidor a gozar sem cessar, a consumir. A compra em débito não é boa para os emprestadores, os bancos em geral, porque não se paga juros.

O “devedor ideal” é aquele que jamais paga integralmente suas dívidas porque os juros são o alimento do “parasita”. Assim a contração do crédito decorrente da crise econômica mundial de 2008, para Bauman, não foi devido ao insucesso dos bancos; ao contrário, foi devido ao extraordinário sucesso destes porque introduziu a regra do “compre agora e pague depois”, produziu e produz em série indivíduos endividados. “Como poucas drogas, viver de crédito cria dependência”, diz Bauman.

O Estado teve um papel fundamental na criação desses “novos pastos” a explorar. Coube a Bill Clinton a iniciativa de introduzir nos Estados Unidos as hipotecas subprime. Elas foram vendidas aos mais pobres como solução dos problemas dos sem-tetos, mas na verdade multiplicou o número de pessoas sem casa com a epidemia de retomada dos imóveis, que ficou conhecida como subprime.

Elas foram garantidas pelo governo a fim de oferecer crédito para a compra da casa própria para pessoas desprovidas de meios de pagar a dívida assumida e, portanto, a fim de transformar setores da população até então inacessíveis à exploração creditícia em devedores.

A cooperação entre Estado e mercado no capitalismo é a regra; o conflito entre eles, quando acontece, é a exceção. O Estado e o mercado mantêm relações simbióticas, que é uma relação mutuamente vantajosa entre dois organismos vivos de espécies diferentes. No entanto, as políticas são construídas não contra o interesse dos mercados; seu objetivo natural é avalizar, permitir a segurança e a longevidade do domínio do mercado. Se a relação entre Estado e mercado é de vantagens mútuas, a relação entre mercado e o consumidor é de parasitismo.

“Se o Estado assistencial hoje vê seus recursos minguarem, cai aos pedaços ou é desmantelado de forma deliberada, é porque as fontes de lucro do capitalismo se deslocaram ou foram deslocadas da exploração da mão de obra operária para a exploração dos consumidores. E também porque os pobres, despojados dos recursos necessários para responder às seduções dos mercados de consumo, precisam de dinheiro − não dos tipos de serviço oferecidos pelo Estado assistencial − para se tornarem úteis segundo a concepção capitalista de “utilidade”. (pg 32)

Nossa sociedade deixou de ser de produtores para se transformar numa sociedade de consumidores. O mundo todo é visto e vivido como consumidores. A cultura também se transforma em um armazém de produto destinado ao consumo. Todos concorrendo contra todos para conquistar a atenção inconsciente dos potenciais consumidores, na esperança de atraí-la e conservá-la por pouco mais tempo.

Nosso mundo lembra cada vez mais Leônia, “a cidade invisível” de Italo Calvino, onde “mais do que pelas coisas que todos os dias são fabricadas vendidas compradas, a opulência… se mede pelas coisas que todos os dias são jogadas fora para dar lugar a novas”. (pg 41)

Numa sociedade consumidora como a nossa, as redes substituem as estruturas, em que o tabuleiro está estabelecido por um jogo de apego e desapego e uma infinita sucessão de conexões e desconexões. A cultura nos dias de hoje é feita de ofertas, para garantir que “a escolha continue a ser inevitável ou uma necessidade e, ainda, um dever de vida”. Ter não é mais suficiente. O sentimento que prevalece é o desejo de substituir o que se tem por bens novos e melhorados. Essa é a regra da sociedade líquida moderna. Trata-se da cultura da “obsolescência instantânea”, pois estimula o consumo.

A solidez dos vínculos é uma ameaça, pois um futuro com obrigações restringe a liberdade de movimento e a capacidade de vislumbrarmos novas oportunidades quando elas aparecerem e, por conseguinte, compromete a sociedade líquida moderna feita para o descartável. Relações duradouras não são consideradas boas.

As universidades não escapam a essa regra por uma razão bem simples: o mundo muda de uma forma que desafia o saber existente. Para Bauman, o mundo volátil da modernidade líquida “mais parece um mecanismo para esquecer do que um ambiente para aprender”. A memória, a longo prazo, cede lugar para os engajamentos flexíveis perante um vasto mundo de informações televisivas e virtuais, a tendência das notícias impressas é desaparecer, dando lugar a outros meios de informação.

Para Bauman, a antiga tarefa de representar o mundo para os alunos, por exemplo, o mundo tal como ele é, auxiliando a formação de uma personalidade adequada para viver em um mundo previsível, já não é mais possível. A massa de conhecimentos acumulados transformou-se no epítome contemporâneo da desordem e do caos. Bauman conclui que ainda não estamos preparados para este tipo de vida.

A parcela de conhecimento retirada para uso e consumo pessoal só pode ser avaliada com base na quantidade. Já não é mais possível utilizar o critério da qualidade com o restante, pois todas as informações se equivalem. Se no passado a educação adaptava-se às mutações, definia objetivos e projetava novas estratégias. Torna-se claro, para Bauman, que a arte de viver em um mundo hipersaturado de informação ainda não foi aprendida.

Fico por aqui. Apenas dizendo que Bauman mantém uma crítica ao mundo líquido, acrescentando o conceito de capitalismo parasitário em que o consumo desenfreado determina uma nova abordagem sobre alguns temas contemporâneos, desde os comportamentos da vida cotidiana. A utilização da metáfora da infestação, o conceito de parasita através de instituições como bancos e a exploração do crédito para o consumo desenfreado, somados a crises geracionais, e o modo de vida que vivemos.

Tudo isso fazem do livro “Capitalismo Parasitário”, de Zygmunt Bauman, um livro importantíssimo para os dias de hoje. Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.

Minha geração, por Francisco de Oliveira Barros Júnior

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Francisco de Oliveira Barros Júnior – A Terra é Redonda – 25/08/2025

O docente propõe um conjunto de interrogações com o objetivo de construir uma visão ampla e complexa sobre as novas gerações, representadas pelos alunos que participam das disciplinas

Refletir sobre o conceito de geração, a partir de textos musicais e fílmicos, é uma proposta metodológica a ser desenvolvida. Na sala de aula, do ensino fundamental ao superior, professores experimentam relações intergeracionais. Na exposição de um conteúdo, intitulado de “Intergeracionando”, o docente propõe um conjunto de interrogações com o objetivo de construir uma visão ampla e complexa sobre as novas gerações, representadas pelos alunos que participam das nossas disciplinas.

Estamos no campo universitário onde o professor vai projetar em uma tela, imagens e perguntas para serem pensadas. Uma metodologia dialogal, aberta para dar voz aos estudantes que têm, em média, 20 anos. Seguem as fotografias de nomes conhecidos do universo artístico nacional e internacional. Cada imagem vem acompanhada de uma interrogação.

Sigamos o roteiro da exposição: Com os Beatles, indago: “a que geração pertenço?” Estamos no ano de 2023, em tempos paradoxais, ambivalentes e incertos. Progressos e regressões. Em desassossego, propomos um exercício de contextualização histórica da sociedade na qual vive a juventude atual. Os jovens vivendo em riscos, conectados em redes, na cultura consumista das relações mercantilizadas. Companheiros dos avanços e retrocessos, eles fazem história, são de várias tribos e representam a diversidade.

Com os Rolling Stones, vem a seguinte questão: “quais as características da minha geração?” A sociabilidade juvenil encontra novos paradigmas nos espaços digitais ocupados pelos jovens. Munidos de aparelhos eletrônicos, na sociedade telânica, navegam nas redes sociais e constroem as suas cidadanias em movimentações políticas online. Movimentos sociais juvenis agitam o cenário político em um cyberativismo praticado na “sociedade em rede”. Na “era da informação”, sopram ventos sulistas e nortistas de uma mudança social na qual mentes articuladas contestam o poder.

Atitudes contestatórias em um contexto histórico de reinvenção democrática praticada por uma juventude que vive “uma revolução possibilitada pela internet”. “Indignação e esperança” em um mundo transformado, de reformas políticas e emergência de um padrão tecnologizado no modo de promover insurreições e discursos revolucionários (CASTELLS, 2013). No coletivo, indignados e esperançosos empunham a faixa com uma mensagem no plural: “somos a rede social”.

Com Roberto Carlos, pergunto: “que avanços e retrocessos acompanham a minha geração?” Progressos e regressões em um contexto de ambivalências e paradoxos. Longevidade populacional e altos índices de criminalidade. Notícias animadoras e sombrias. Novas barbáries e robótica presentes na sociedade do espetáculo. Inteligência artificial e pobreza dão matérias jornalísticas. Medos medievais são reatualizados. A covid-19 fez um strip-tease revelador das nossas vulnerabilidades e riscos. Como vivemos agora?

Uma jovem de 20 anos, nos dias de hoje, vive em sociedades paradoxais. Os brasis são exemplares. Um país de excluídos curtindo as viralizações das celebridades em suas pornográficas ostentações. “A galáxia da internet” convive com precários estados de bem-estar social. A pergunta antes feita necessita de um exercício de contextualização histórica. Mostrar as múltiplas faces da globalização, do capitalismo parasitário e do neoliberalismo. Quais as suas consequências humanas? Negócios e economia eletrônicos em movimentos milionários e os quadros de exclusão social correndo em paralelo.

Na “vida para consumo” e “a crédito”, “a geração jovem de hoje” conhece “uma sociedade de consumidores”. Nas redes sociais, a juventude é um terreno virginal a ser conquistado e explorado “pelo avanço das tropas consumistas”. “O jovem como lata de lixo da indústria de consumo”. Uma cultura consumista e “agorista”. Inquietos “e em perpétua mudança”, os jovens entram no “culto da novidade”. Em tempos excessivos e de descartabilidade, eles participam da “assombrosa velocidade dos novos objetos que chegam e dos antigos que se vão”. No império do efêmero, em suas curtições internéticas, a juventude navega nas compras virtuais e provoca a curiosidade: quantas horas por dia gasta com smartphones, computadores, telas diversas e outros instrumentos eletrônicos? (BAUMAN, 2013, p.34).

Com Gilberto Gil, indago: “quais os valores que conduzem a minha geração?” De que matrizes procedem? Estão sendo invertidos? No foco, os princípios que norteiam as nossas existências em uma sociedade de mercado, competitiva e violenta. Em termos necropolíticos, injusta, cruel e outros adjetivos desumanos. Um campo de conflitos. O que é valorizado nas relações capitalistas? O nosso pensamento tem sido crítico em relação às ações desumanizadoras observadas no cotidiano? A mercantilização de todas as relações expõe os homens transformados em mercadorias.

Todos os campos, destacando a saúde, a educação, a religião e outras esferas, são atravessadas pela lógica mercadológica, objetiva, calculista e voltada para o máximo de lucratividade. Números, quantidade de viralizações, vendas da bilheteria e audiência numérica são critérios prioritários. A qualidade do que é produzido e promovido está abaixo do objetivo número um: vender. Em termos mais sintonizados com a época atual, viralizar. Noticiário policial, fofocas e ti ti tis envolvendo celebridades, em especial, viralizam e geram milionários negócios.

Glamour, ostentações ao som de funk, badalações e chacinas telanizadas. “A civilização do espetáculo”, seus ópios, tragédias e frivolidades. Janelas indiscretas. Exposição da intimidade e privacidade pessoal desconhecem os limites entre o público e o privado. “Sou visto, logo existo”. Aparecer de qualquer jeito. Os olhos do poder e os seus plantonistas. Vamos ler “1984”, de George Orwell? Nas telas, o “grande irmão” vê o jogo do “vale-tudo”, o time dos que “topam tudo por dinheiro”.

Francisco de Oliveira Barros Júnior é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí (UFPI).

Referência

BAUMAN, Zygmunt. Sobre educação e juventude: conversas com Riccardo Mazzeo. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

O dilema silencioso da geração X, por Rodolfo Damiano

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Rodolfo Damiano – A Terra é Redonda – 18/09/2025

A resiliência da Geração X, forjada na adversidade, tornou-se sua própria armadilha. O verdadeiro legado que precisam construir não é mais de resistência silenciosa, mas de aprender a finalmente cuidar de quem sempre cuidou de todos – inclusive de si mesmos

1.

A geração X, formada por aqueles que nasceram entre 1965 e 1980, vive hoje um dos maiores desafios geracionais da história contemporânea. Criados sob a promessa de que estudo, trabalho e disciplina garantiriam estabilidade, muitos chegaram à vida adulta em um cenário que desmentiu essas expectativas. As últimas quatro décadas foram marcadas por crises econômicas sucessivas, mudanças tecnológicas radicais e um mercado de trabalho cada vez mais instável. O resultado é um grupo que, apesar de resiliente, enfrenta pressões simultâneas que afetam profundamente não apenas sua saúde física, mas sobretudo sua saúde mental.

Um dos dilemas mais marcantes é a chamada “geração sanduíche”, expressão usada para descrever adultos que cuidam, ao mesmo tempo, de filhos que ainda não conquistaram independência e de pais que envelhecem com crescente necessidade de apoio. No Brasil, quase metade dos jovens adultos ainda mora com os pais por dificuldades financeiras, desemprego ou salários insuficientes para manter uma vida autônoma (IBGE, 2023).

Ao mesmo tempo, a longevidade aumenta, mas nem sempre é acompanhada de autonomia: cresce o número de idosos dependentes de cuidados diários, exigindo tempo, energia e recursos. Para a geração X, isso significa viver em permanente estado de alerta, equilibrando responsabilidades múltiplas sem espaço para si.

Essa sobrecarga tem repercussões claras na saúde mental. Sintomas de ansiedade generalizada, depressão e burnout são cada vez mais comuns nessa faixa etária, frequentemente mascaradas pelo discurso da “resiliência”. Estudos mostram que o bem-estar subjetivo costuma atingir seu ponto mais baixo na meia-idade, fenômeno conhecido como a “curva em U da felicidade” (Blanchflower & Oswald, 2008). É exatamente nesse período, entre os 45 e 55 anos, que muitos gen xers enfrentam crises de identidade, frustrações profissionais e sobrecarga familiar, fatores sabidamente associados a maior risco de transtornos mentais (WHO, 2022).

2.

No campo do trabalho, os impactos psíquicos são evidentes. Muitos acreditaram que a ascensão social seria consequência natural do esforço, mas se depararam com um mercado hostil, instável e acelerado. A recessão de 2008, a pandemia de Covid-19 e as sucessivas transformações tecnológicas trouxeram perdas salariais, insegurança crônica e necessidade de reinvenção constante. Esse cenário alimenta sentimentos de inadequação, fadiga emocional e desesperança – todos reconhecidos pela psiquiatria como gatilhos importantes para quadros depressivos e transtornos de ansiedade (APA, 2019).

No plano cultural, a geração X enfrenta ainda a sensação de não pertencer. São jovens demais para se aposentar e velhos demais para se integrar plenamente ao universo digital dominado por TikTok e influenciadores. Suas referências culturais são tachadas de “vintage”, enquanto seus filhos navegam com naturalidade em ambientes virtuais que eles apenas decifram superficialmente. Essa experiência de deslocamento cultural reforça a sensação de isolamento e pode agravar quadros de solidão – hoje reconhecida pela OMS como um fator de risco comparável ao tabagismo para a saúde mental e física (WHO, 2022).

Apesar de tudo, a geração X desenvolveu notável capacidade de adaptação. Aprendeu a lidar com mudanças, a sobreviver em cenários de incerteza e a encontrar soluções criativas. No entanto, é urgente quebrar o mito de que resiliência significa suportar indefinidamente. A literatura em saúde mental mostra que essa geração apresenta níveis elevados de estresse crônico e desgaste emocional, especialmente entre aqueles que conciliam múltiplas funções familiares e profissionais (APA, 2019). Cuidar de si, nesse contexto, é não apenas legítimo: é uma necessidade de saúde pública.

Estratégias individuais e coletivas são fundamentais. No nível pessoal, buscar apoio psicológico, praticar autocuidado e aprender a compartilhar responsabilidades são passos importantes. No nível social, políticas públicas que ampliem o acesso à saúde mental, incentivem o envelhecimento ativo e apoiem financeiramente famílias cuidadoras são urgentes.

O Brasil já ultrapassa os 15% de população idosa, mas o investimento em saúde mental segue abaixo das recomendações internacionais (The Lancet Commission, 2018). Sem uma rede sólida de apoio, o peso recai desproporcionalmente sobre essa geração.

No fim, a geração X está redefinindo o que significa “meia-idade” em um mundo de transformações aceleradas. Ao equilibrar cuidado com os outros e cuidado consigo mesmo, pode inaugurar uma forma mais honesta e sustentável de atravessar esse período da vida. Porque, afinal, quem cuida de todos também merece ser cuidado – inclusive por si próprio. Essa talvez seja a principal lição silenciosa que a geração X pode deixar: resiliência não se mede pela capacidade de resistir sozinho, mas pela coragem de reconhecer os próprios limites e buscar apoio.

Rodolfo Damianomédico psiquiatra, é pós-doutorando na USP. Autor, entre outros livros, de Compreendendo o suicídio (Editora Manole).

Referências

American Psychological Association (APA). Stress in America™: Stress and Current Events. Washington, DC: APA, 2019.

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

BLANCHFLOWER, D.G.; OSWALD, A.J. Is well-being U-shaped over the life cycle? Social Science & Medicine. 2008;66(8):1733-1749.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNAD Contínua. Rio de Janeiro: IBGE, 2023.

The Lancet Commission. Global Mental Health and Sustainable DevelopmentThe Lancet. 2018;392(10157):1553-1598.

World Health Organization (WHO). World Mental Health Report: Transforming mental health for all. Geneva: WHO, 2022.

 

 

O que é saúde mental? por Maria Rita Kehl

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Quais os fatores que nos satisfazem psíquica e emocionalmente? Freud pode chocar, ao dizer: a incompletude. Impulso que cria desejo, desloca-nos e gera a busca de sentido no amor e no trabalho. Força que nos afronta a encarar insuficiências e permite o arriscar

Por Maria Rita Kehl, no Blog da Boitempo. OUTRAS MÍDIAS

Começo com Freud, que era médico mas não tratava da saúde física. A definição de Freud quanto a esse tema é sucinta e (a meu ver), certeira. A saúde mental de uma pessoa pode ser resumida como a sua capacidade de amar e trabalhar. São duas ações muito diferentes, não acham? Mas entre elas há um ponto em comum: Tanto no amor quanto no trabalho, o sujeito, forçosamente, sai um pouco de si mesmo — de sua solidão, de suas ruminações estéreis, de sua vã vaidade — e se entrega a predisposições psíquicas que transcendem o ego.

Não que o ego seja supérfluo em nossas aventuras amorosas ou em nosso empenho profissional. O ego é nosso sustentáculo. Mas amor e trabalho nos forçam a ceder espaço psíquico para além dele. O ego nos estrutura, enquanto sujeitos, mas não é tão soberano quanto gostaríamos de acreditar. Quando amamos alguém, por exemplo: uma parte da satisfação que sentimos ao sermos correspondidos no amor é puramente egóica. A proposta freudiana, de que a saúde mental se define pela capacidade de amar e trabalhar, pode ser entendida também desta forma: amor e trabalho produzem saúde mental. Tanto um quanto o outro nos ajudam a dar sentido à vida porque forçosamente abrem brechas no rochedo que nos protege da castração.

Para os leigos em psicanálise (o que não é vergonha pra ninguém) vale esclarecer que “castração” é a metáfora com que Freud tenta explicar nossa incompletude — a qual, aliás, é condição para a saúde mental. A incompletude humana pode ser traduzida como “a falta que move”. É o que nos faz desejantes. Somos sujeitos, por definição, incompletos — por isso mesmo, a falta nos move. Nos move a quê? A criar. E a amar.

Em contrapartida, quando o outro deixa de nos amar, o ego, frequentemente, fica mais ferido do que o “coração”. Nessas horas, para quem for capaz disso, vale a pena entregar-se novamente a algum projeto de trabalho que talvez não traga de volta o ser amado, mas, sim, renova a autoestima.

Além disso, tanto o amor quanto o labor exigem que saibamos encarar nossas insuficiências: tanto um quanto o outro são incompatíveis com excessos narcísicos. Explico: o sujeito que se considera perfeito, ou completo, dificilmente vai conseguir abrir mão dessa agradável fantasia para se arriscar em alguma empreitada na qual pode tanto ter sucesso quanto fracassar. Por outro lado… se não nos arriscamos em empreitadas interessantes (e, se possível, bem-sucedidas), nosso ego se empobrece e deixa de atender a nossos ideais narcísicos.

Sim: algum narcisismo (vale simplificar aqui e traduzir por autoestima) é necessário. Quem não tem nenhum amor por si mesmo tende à depressão. Em situações em que o sujeito não encontra — ou não produz — nada que alimente sua autoestima, ele se deprime. Deixa de amar a si mesmo. Em casos extremos, essa falta de autoestima pode levar a tentativas de suicídio. Eu diria que o bom amor de si mesmo — que nada tem a ver com exageros de vaidade — se alimenta tanto das realizações que o sujeito se empenha em conquistar quanto da estima e do reconhecimento do outro. Mais, ainda: nossa autoestima também é acionada quando, além de receber admiração do outro, somos também capazes de dar o que ele necessita. Sermos solidários nos faz bem. Isso nada tem a ver com uma tendência sacrifical: quem se sacrifica por vaidade (“vejam como sou bom!”) corre o risco de se tornar ressentido: “fiz tanto por ele, mas ele não me agradeceu à altura”… Se você quer fazer algo pelo outro, faça de coração aberto, não como quem investe em uma futura medalha de bom comportamento. Fazer pelo outro, com gosto, nos alegra. “Saúde mental” (o tema desta coluna) tem mais a ver com alegria do que com vaidade.

Se for o caso de sacrificar alguma coisa, sacrifiquemos nosso egoísmo… mas não todo, ok? Vale guardar um pouco de egoísmo para conquistar, e desfrutar de coisas que nos fazem bem!

Maria Rita Kehl é doutora em psicanálise pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e atua, desde 1981, como psicanalista em São Paulo. Entre 2006 e 2011, atendeu na Escola Nacional Florestan Fernandes do MST, em Guararema (SP). Integrou a Comissão Nacional da Verdade (2012-2014). Foi jornalista de 1974 a 1981 e segue publicando artigos em diversos jornais e revistas de São Paulo e do Rio de Janeiro. Em 2010, ganhou o prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção, com a obra O tempo e o cão, a atualidade das depressões, publicada por nossa casa. Também pela Boitempo, publicou Tempo esquisito, Videologias: ensaios sobre televisão (em coautoria com Eugênio Bucci), 18 crônicas e mais algumas, Deslocamentos e o feminino, Bovarismo brasileiro e ressentimento. Pela Boitatá publicou, em parceria com Laerte Coutinho, Neném outra vez! E disco-pizza. 

A engenharia do eu na era das redes sociais, por José Alberto Roza

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Reflexões desde o Orkut como fenômeno cultural até as novas formas de existir no mundo hiperconectado atual. Hoje, a tecnologia é integrada ao corpo. E o sujeito é um curador de narrativas e imagens para a apreciação alheia, autopromoção, pertencimento e validação.

Por José Alberto Roza, na Cult – OUTRAS MÍDIAS – 19/09/2025

Do Orkut à hiperconectividade: o nascer da subjetividade digital

Há um eco recorrente nas redes sociais brasileiras: o burburinho sobre a possível volta do Orkut, marcado por nostalgia de uma era digital de comunidades vibrantes e autodescoberta. Para mim, esse tema tem um significado especial. Em 2009, quando o Orkut começava seu declínio frente ao Facebook, ele foi objeto central da minha dissertação de mestrado em Psicologia, que buscava entender as inter-relações adolescentes daquele tempo. Observei ali, mais que dinâmicas de uma rede social, o início de novas formas de existir e se relacionar que hoje são a essência da nossa hiperconectividade, ou dos tempos apressados e hipermodernos
propostos por Lipovetsky.

O Orkut foi, para o Brasil, mais que um site de relacionamentos – foi um fenômeno cultural inédito, reunindo cerca de 35 milhões de usuários e oferecendo aos adolescentes um palco para definir a própria identidade, colecionar validações, expressar sentimentos e pertencer a comunidades. Era uma experimentação em massa da vida mediada por telas, que à época dependia dos computadores de mesa, antes da onipresença dos celulares. Naquele ambiente efervescente, era possível perceber ainda restavam certos limites entre identidade digital e offline, mas já se notava a tendência à fusão. Atualmente, esses limites praticamente desapareceram: o real e o virtual se mesclam de forma quase indissociável, com o “estar conectado” tornando-se condição permanente da subjetividade contemporânea.

Minha pesquisa aconteceu nesse cenário de transição, centrada na adolescência imersa no ciberespaço nascente. Não era uma análise tecnológica, mas sim um esforço para desvendar como a presença crescente das redes e dispositivos poderia reconfigurar a psique humana. O Orkut serviu de laboratório aberto, onde pude testemunhar as primeiras manifestações do que hoje é comum: a ansiedade da desconexão, a curadoria da imagem e a fluidez dos relacionamentos.

A Psicanálise acompanhou-me ao longo dessas duas décadas de mudanças. Três adolescentes, protagonistas da minha pesquisa, forneceram as primeiras pistas das subjetividades emergentes: uma conectada e ansiosa, outra indiferente aos ditames digitais, uma terceira adaptando-se com leveza surpreendente. Suas vozes, angústias e esperanças, revisitadas hoje, convidam a uma reflexão mais humana e psicanalítica sobre nossa relação com o mundo conectado.

Máquina In-corporada: Tecnologia, Corpo e Vínculos

Com o passar dos anos, já era visível que a tecnologia deixava de ser apenas uma ferramenta externa, passando a se integrar ao próprio ser humano. O que antes era um simples artefato se transformava em uma extensão quase orgânica do corpo. Em meus estudos daquele período, propunha-se que a tecnologia não estivesse mais “diante” do homem, mas se situasse “dentro” do corpo contemporâneo. O conceito de “máquina in-corporada” — aprofundado sob o olhar psicanalítico — sugere que o dispositivo, ao ser internalizado, transforma nossa percepção, desejos e corporalidade, dissolvendo fronteiras entre o “eu” e a tecnologia. Ela deixa de ser algo externo e passa a moldar profundamente nossas formas de sentir, relacionar-se e existir.

O imperativo de “estar conectado” deixava de ser mera escolha social e tornava-se o início de uma simbiose. Comunidades, “scraps” e depoimentos operavam como mecanismos de validação e demandavam a curadoria de identidades digitais cada vez mais relevantes que a pessoa offline. Cada atualização e interação era direcionada a um público amplo, exigindo performance contínua e auto-observação intensa, antecipando o ciclo de validação social que hoje nos atravessa.

Além disso, nos últimos anos, a inteligência artificial passou a influenciar fortemente as redes sociais, otimizando a criação de conteúdo e a análise de dados do comportamento dos usuários. Ferramentas automatizadas ajudam desde a sugestão de temas à edição de imagens, moldando novas formas de interação e autoexpressão.

Nos relatos dos jovens, a urgência da conexão digital se manifestava nitidamente. Uma frase emblemática: “Eu tô incomunicável, daí dá desespero, parece que você não faz parte do mundo, sabe?”. Isso revela o medo profundo de exclusão e esquecimento: a tecnologia, que antes era meio, havia sido elevada a condição fundamental de pertencimento, quase uma prótese existencial. Para alguns, desconectar equivalia a perder uma parte de si, uma ameaça à integridade psíquica e social.

Hoje, o smartphone representa o ápice da máquina in-corporada. Nossas “próteses cognitivas” nos acompanham o tempo todo e já não estão restritas ao celular: relógios inteligentes e outros wearables monitoram e notificam em tempo real, tornando-se “extensões biométricas e comunicacionais”. O celular, antes posse, agora compõe um ecossistema de dispositivos que nos mantém constantemente conectados, inclusive em momentos antes reservados à introspecção ou à interação direta. A ansiedade da desconexão, que antes parecia traço isolado de alguns jovens, agora é uma neurose global, conhecida como FOMO (Fear of Missing Out). A vida sem celular soa inimaginável; a falta de internet pode desencadear angústia comparável a grandes perdas.

As consequências psíquicas dessa incorporação ainda estão sendo desvendadas. O tempo se fragmenta em microinterações, induzindo imediatismo. O espaço se desloca prioritariamente para o virtual, enquanto o entorno físico pode perder sentido. A linha entre “eu” físico e digital dissolve-se: autoestima frequentemente atrelada a números de curtidas e seguidores, performance que nunca cessa, e crescente dificuldade de aceitar vulnerabilidades. A máquina in-corporada não é só avanço técnico, mas agente reformador do psiquismo, dos laços sociais e da própria concepção do que é ser humano.

Ilha de Edição e Disfarce: A Curadoria e Performance da Identidade Digital

A profunda integração da tecnologia deu origem à “ilha de edição”, conceito que pode representar o indivíduo como curador de imagens e narrativas cuidadosamente selecionadas para apreciação alheia. Mais que espaço virtual, a ilha de edição é a sala de controle onde cada um edita sua própria presença. O
fenômeno antes restrito às celebridades agora se generalizou: redes sociais transformam todos em editores e promotores da própria imagem, tornando rotineira — e muitas vezes exaustiva — a prática da autopromoção.

Na época do Orkut, esse processo já se desenhava, embora de modo mais rudimentar. Perfis funcionavam como vitrines: exibiam as melhores fotos, textos idealizados e depoimentos estrategicamente selecionados. Os adolescentes, atentos aos mínimos detalhes desses espaços, buscavam pertencimento e validação pelo pertencimento a comunidades e pela curadoria quase instintiva de si mesmos. Esse exercício antecipava o que seria mais tarde necessidade existencial na hiperconectividade: a montagem de uma versão “aprimorada” do eu, em contínua busca por aceitação digital.

A “ilha de edição” é, portanto, um processo dinâmico, impulsionado por feedbacks constantes e novas tendências. Ela exige permanente vigilância sobre a própria performance, submetendo a pessoa a um ciclo de remodelação da identidade guiado pelo olhar externo. Tal liberdade de expressão, paradoxalmente, aprisiona na busca por perfeição, gerando divergência entre realidade e imagem digital, e pode acentuar a fragilidade do eu real por trás da tela.

O conceito de “Paixão do Disfarce”, trabalhado por Fábio Herrmann, torna-se central nesse contexto. O disfarce não é mera enganação, mas um comportamento social necessário: seguimos códigos implícitos de relacionamento, adaptando-nos e experimentando papéis diversos. No ambiente digital, a necessidade de disfarce se intensifica, tornando-se estratégia quase obrigatória para aceitação social. O palco digital potencializa a maleabilidade das identidades: o indivíduo adapta suas subjetividades conforme o ambiente e o público, não como falsidade, mas em resposta às demandas de adaptação e reconhecimento.

Além de aprimorar a exposição, o disfarce digital também serve como proteção diante da constante exposição e da busca por aprovação. Herrmann considera que o “eu” é em si uma “máscara inventada”, trabalhada ao longo da vida — e as redes são o espaço primordial dessa construção e revisão. A circulação da imagem de si torna-se permanente, impulsionada pelo imperativo de pertencer e de manter-se visível, instaurando um ideal de “autenticidade performada” que pode ser insustentável a longo prazo.

Conexão versus Vínculo: Relações, Mal-estar e Cultura Digital

A incorporação tecnológica não impactou apenas o modo como nos apresentamos, mas reformulou profundamente as formas de nos relacionarmos. A passagem do século XX para a era digital abriu espaço à “conexão”, que suplantou o vínculo como modelo dominante das interações. Profundidade e permanência foram substituídas pela instantaneidade e funcionalidade, alterando inclusive o significado dos próprios termos: “amigos” e “relacionamentos” passaram a dar lugar a “conexões”, “seguidores” e “contatos”. Essa incorporação pode ser pensada a partir Sherry Turkle, que analisa a fusão entre os dois mundos desde “Alone Together” e outros escritos sobre “vida nas telas”.

O padrão de descartabilidade, antes restrito ao ambiente virtual, agora influencia expectativas sobre relações offline, tornando o compromisso menos valorizado. Bloqueio, unfollow ou ghosting são práticas comuns, evidenciando a preferência por conveniência e menor exposição à vulnerabilidade. Relações caracterizadas pela busca de satisfação imediata, alimentadas pela ilusão de infinitas possibilidades, promovem impermanência e evitam investimento emocional profundo — menos investimento, menos insegurança.

Paradoxalmente, tal hiperconectividade intensifica a solidão: o volume de interações não garante qualidade, e a constante disponibilidade raramente se traduz em apoio significativo. A superficialidade dos contatos — mediada por telas, sem entonação ou contato humano direto — resulta em vazio relacional e dificulta a construção de laços autênticos. O resultado é uma solidão mascarada por notificações e conversas instantâneas, que estimula um ciclo vicioso de mais conexões em busca de preenchimento.

O espaço social também é redefinido: fronteiras entre físico e virtual se diluem, com conversas migrando para aplicativos e redes, onde predominam trocas utilitárias sobre o aprofundamento do diálogo. O custo da praticidade é ignorar recursos essenciais da comunicação — voz, olhar, presença corpórea— tornando o outro mais facilmente descartável e adaptável à nossa própria “edição” digital.

Essa lógica algorítmica permite hoje uma personalização cada vez maior das experiências digitais, aproximando conteúdos e pessoas segundo interesse compartilhados. Ainda que essa segmentação prometa conexões mais genuínas, ela reforça tanto comunidades quanto bolhas de convivência limitadas.

O fenômeno pode ser compreendido a partir dos pressupostos freudianos sobre o “mal-estar na civilização”. Freud observa que as exigências, normas e interdições culturais sempre entram em conflito com os desejos e impulsos individuais, gerando tensões constantes entre desejo, frustração e adaptação. Na era digital, essa dinâmica se potencializa: as redes sociais promovem uma promessa de felicidade e reconhecimento coletivo, que é rapidamente frustrada pela comparação contínua, busca de aprovação imediata e exposição a padrões inalcançáveis de sucesso e felicidade.

Esse fenômeno expande a repressão, já apontada por Freud como um dos “preços” da civilização: reprime-se, nas redes, não apenas o inaceitável socialmente, mas também tudo aquilo que diverge do ideal de felicidade e produtividade incessantes. Essa constante exposição e necessidade de validação levam muitos ao sofrimento psíquico, ansiedade e até quadros depressivos. O sujeito, submetido à aprovação social medida por curtidas, seguidores e comentários, muitas vezes renuncia aos próprios desejos e necessidades para se encaixar nas demandas externas.

Freud, ademais, definiu o desamparo psíquico como uma condição universal humana. Na contemporaneidade digital, esse sentimento é radicalizado: vivemos conectados, em permanente exposição, na fronteira cada vez mais difusa entre realidade e virtualidade. O excesso de estímulos, os “laços” frágeis e transitórios e o imperativo de pertencimento ampliam tanto a experiência de solidão quanto o desamparo, potencializando o mal-estar e a sensação de insuficiência diante dos padrões impostos pelas plataformas sociais.

Bauman aponta que essa liquidez dos vínculos —relações rápidas e potentes, porém frágeis e prontas para o descarte — é amplificada pelas mídias digitais. Goffman, por sua vez, poderia entender as redes como palcos de encenações múltiplas, onde a gestão da impressão se torna exaustiva e central.

Assim, o mal-estar na civilização adquire contornos digitais: as novas formas de sofrimento emergem do choque entre o ideal de plenitude produzido pela cultura das redes e a impossibilidade de sua realização concreta. O sintoma social contemporâneo manifesta-se no ciclo de performance, ansiedade, solidão e busca incessante por reconhecimento.

A era digital exige reflexão: ampliar conexões não significa qualidade relacional. A valorização da superfície em detrimento da profundidade, o medo constante de perder o lugar no ciclo de visibilidade digital, e o predomínio do disfarce como instrumento de relação impõem desafios inéditos à saúde mental e à construção do eu. O desafio hoje é cultivar vínculos genuínos num universo que estimula a circulação veloz de imagens e a performance exaustiva, afetando perigosamente aquilo que realmente somos.

O Eco Digital na Psique e Caminhos para (Re)Humanização

A profunda remodelação de nosso psiquismo pelas “máquinas in-corporadas” e “ilhas de edição” produz efeitos complexos na saúde mental. O ideal de performance ininterrupta nas redes sociais, sustentado pelo desejo de validação, impõe ansiedade crescente, dependência de aprovação externa e um ciclo de autocrítica e comparação constante. O eu digital, ao buscar aceitação, pode se aprisionar em narrativas editadas, minando espontaneidade e autenticidade.

Neste ambiente de hiperconectividade, a solidão se manifesta paradoxalmente: ampliam-se as possibilidades de comunicação, mas a qualidade das interações se dilui. Relações intermediadas por telas — sem contato direto, sem o corpo, sem a tridimensionalidade das trocas — facilitam vínculos frágeis e dificultam o suporte emocional real, agravando a sensação de desamparo e o medo do esquecimento ou do isolamento. Pesquisas recentes apontam que essa “neurose de ansiedade digital” apresenta sintomas próprios: preocupação crônica com avaliação social, medo constante de exclusão e manutenção de uma vigilância inquieta sobre a própria imagem digital.

Recentemente, os vídeos curtos e dinâmicos tornaram-se o formato dominante, favorecendo a busca por engajamento emocional imediato. Plataformas priorizam conteúdos visuais rápidos, ampliando tanto o potencial criativo quanto a superficialidade das trocas. Comparar-se continuamente a vidas editadas intensifica sentimentos de inadequação, especialmente entre jovens, cuja identidade está em construção e que buscam aprovação para consolidar autoestima e autovalor. O tédio, antes estímulo para criatividade e reflexão, se torna experiência aversiva — combatida com mais estímulos digitais, reforçando o ciclo de superficialidade e fuga da própria interioridade.

Diante desse quadro, a (re)humanização da experiência digital é imperativa. A Psicanálise propõe autoconhecimento crítico: podemos reconhecer a “ilha de edição” e o papel do disfarce como construções sociais, e não verdades sobre o eu; estabelecer limites de uso, cultivar interações presenciais, valorizar vínculos autênticos e a escuta mútua. O autocuidado digital, que inclui o “detox”, a contemplação do presente e a priorização da vida “não editada”, é cada vez mais essencial para o bem-estar psíquico.

A liberdade na era digital exige agência. O desafio não está em negar a tecnologia, mas utilizá-la como aliada, não como ditadora de nossa subjetividade. Cabe-nos buscar autenticidade e profundidade nos vínculos, discernir entre performance e verdade e encontrar espaços de silêncio para que a psique floresça além do algoritmo e do ruído. Mesmo diante da predominância da edição e da performance digital, cresce o discurso da valorização da autenticidade. Os usuários e influenciadores buscam se mostrar ‘reais’, expondo vulnerabilidades e cotidiano, numa tentativa de criar laços mais sinceros e diferenciados no meio virtual. Neste cenário, uma engenharia do eu consciente e crítica é essencial: optar pela qualidade do vínculo em vez da quantidade de conexões, reconhecer limites, acolher vulnerabilidades e cultivar a riqueza de experiências reais — restaurando, assim, o valor do humano diante da máquina e das imagens.

Os males da desindustrialização, por Marcio Pochmann

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 Marcio Pochmann – A Terra é Redonda – 16/09/2025

O abandono da industrialização madura condenou o país a uma reprimarização da economia, fragmentando o tecido social e espalhando a pobreza urbana para o interior. O fim da metropolização industrial não significou desenvolvimento, mas a multiplicação de favelas em novos polos de commodities, onde a riqueza exportadora convive com a informalidade e a violência organizada

De forma prematura, o processo de industrialização nacional promovido pela Revolução de 1930 foi interrompido pelas regressivas reformas neoliberais instaladas a partir de 1990. Com isso, as características principais da sociedade urbana e industrial – ainda incompleta – que havia sucedido o longevo e primitivo agrarismo há cem anos passou a dar lugar a outra estrutura social dos serviços hiperconectada por tecnologias de informação e comunicação.

Concomitante com a ruína da sociedade industrial, o fenômeno da metropolização, outrora promovida pela dinâmica da industrialização mais concentrada nas cidades litorâneas, terminou sendo embargado. Com o esvaziamento da importância da indústria, os empregos de qualidade e maior remuneração foram sucedidos por ocupações nos serviços associados, em geral, mais à circulação do que a produção, estimulando o inédito processo da desmetropolização nas regiões litorâneas.

Simultaneamente, a retomada do modelo econômico primário exportador passou a promover – mais distante da convencional rede urbana nacional – a emergência de enclaves nos espaços urbanos no interior do país face à expansão da renda nos negócios, em geral, voltados ao comércio exterior. Dessa forma, o fenômeno da urbanização periférica do capitalismo que estava praticamente concentrado nas antigas metrópoles litorâneas brasileiras passou rapidamente a ser interiorizado com outro tipo de dinâmica urbana em cidades de médio porte.

Os males da desindustrialização

O declínio da atividade industrial no conjunto da economia brasileira compreende, em geral, o processo antecipado da desindustrialização desde o final do século 20. Nos países do Norte Global com a industrialização considerada madura, a queda relativa da atividade industrial aconteceu em grande medida após o pleno atendimento da demanda populacional por bens manufaturados, favorecendo o maior deslocamento do consumo para serviços mediados pela elevação da renda per capita menos desigual.

No Brasil, contudo, a desindustrialização terminou ocorrendo precocemente, sem que o país tivesse ainda atingido o nível de industrialização madura. Assim, uma parcela significativa da população ficou distante do acesso pleno aos bens manufaturados, simultaneamente à estagnação relativa da renda per capita e à repartição desigual da riqueza sustentada no processo fictício da financeirização.

No ano de 2024, por exemplo, o setor industrial representou a metade da participação que havia sido registrada, em 1985, no Produto Interno Bruto nacional. No mesmo período de tempo, tanto a parcela do emprego industrial em relação ao total do emprego formal decaiu 44% como avançou parte dos postos de trabalhos mais qualificados na indústria foram substituídos pelos de serviços, em geral de menor produtividade e contida capacidade de geração de riqueza e desenvolvimento tecnológico.

Assim, o antigo projeto de avançar na direção nacional de uma economia complexa e diversificada foi sendo gradualmente superado pelo novo perfil da especialização produtiva ancorado em certo dinamismo regional assentado em commodities para exportação. Com a geração da renda exportadora, o Brasil passou a ter melhores condições de financiar o acesso aos bens e serviços de maior valor agregado por meio das importações, reposicionando-se na Divisão Internacional do Trabalho1.

A desmetropolização litorânea

A metropolização marca o processo de industrialização nacional concomitante com o enorme êxodo rural acontecido ao longo do século XX. Sem a realização da reforma agrária, comum nos países do Norte Global, o Brasil assistiu – concentrado no tempo – ao brutal deslocamento da população do campo no interior do país para poucas cidades litorâneos providas de intenso crescimento econômico industrial.

A cidade do Rio de Janeiro que até 1960 era a capital federal e economicamente uma das mais dinâmicas do país serve de exemplo da expansão desordenada ocorrida nos centros urbanos com base produtiva industrial. Entre os anos de 1950 e 1980, a intensa expansão populacional do município do Rio de Janeiro registrou o aumento de moradores em favelas que passou de 7,2% para 12,1% do total da população.2

Algo diferente da realidade das favelas que surgiram no final do século XIX no Brasil, quando muitos libertos sem recursos e excluídos de políticas públicas se deslocaram para áreas pouco povoadas, mais afastadas e precárias dos centros urbanos. A primeira favela brasileira teria surgido no ano de 1897 na cidade do Rio de Janeiro, em pleno Morro da Providência, com a chegada dos ex-combatentes da Guerra de Canudos (1897-1897) que lutaram na expectativa de receber uma moradia.

Uma especificidade da urbanização brasileira transcorrida durante o ciclo da industrialização nacional deveu-se, em geral, à ausência do planejamento nas cidades que diante da migração desenfreada produziu enorme desigualdade na ocupação do espaço urbano, sobretudo concentrado nas regiões litorâneas. De certa forma, a antiga pobreza rural terminou sendo transferida parcialmente para as grandes cidades, concomitante com o aparecimento de favelas em paralelo à ampliação da riqueza produzida pelo crescimento industrial do país.3

Toda essa transformação estrutural da sociedade brasileira imposta pela urbanização até a década de 1980 esteve submetida à elevação dos ganhos de produtividade do trabalho. Com isso, parte importante da pobreza advinda do campo foi sendo superada por empregos com salário superior ao nível de subsistência, sobretudo no segmento industrial.

Mas com a desindustrialização posta em marcha pelas reformas neoliberais regressivas desde 1990, a desmetropolização passou a se processar enquanto processo inverso da metropolização. Isso porque correspondeu ao afastamento da população, empresas e investimentos centrado nas grandes metrópoles na faixa litorânea para cidades de médio porte, seja em regiões metropolitanas, seja no interior do país.

Com a estagnação da produtividade do trabalho, especialmente nos antigos centros industriais do país, as grandes cidades litorâneas deixaram de ser atrativas à migração como anteriormente. Mesmo assim as favelas continuaram a se reproduzir com a presença de múltiplas gerações de moradores com antepassados, ainda que assistidos por avanços de urbanização.

Conforme revelado pelo Censo Demográfico de 2022, a população brasileira aumentou, diferentemente do conjunto dos residentes nas metrópoles litorâneas. As 27 capitais brasileiras mantiveram a participação no total da população entre os anos de 2010 e 2022, por exemplo, enquanto entre os censos demográficos de 1872 e 1980 foram as cidades com maior concentração de habitantes.

Os municípios de São Paulo e do Rio de Janeiro, as duas cidades mais populosas do país, exemplificam o processo da desmetropolização em regiões litorâneas. No ano de 2022, por exemplo, os dois municípios juntos responderam por 8,7% do total da população do país, enquanto em 1991 representavam 10,3%. Somente em 2025, quase 38% dos 5.571 municípios brasileiros tiveram redução no número de habitantes em relação ao ano de 2024.

Favelização no interior do país

O fenômeno da favelização ocorrido durante a urbanização processada no ciclo da industrialização nacional entre as décadas de 1930 e 1980 deixou de ser mais recentemente um problema exclusivo das metrópoles próximas da costa atlântica do país. Com a desindustrialização e a desmetropolização, a favelização tem avançado para algumas cidades do interior, compreendendo, por exemplo, os municípios que enriqueceram assentados, em geral, no modelo econômico primário-exportador.

Sejam estados com desindustrialização mais avançada como em São Paulo, exemplificado pelas cidades abastadas na produção sucroalcooleira (Ribeirão Preto e Sertãozinho), e no Rio de Janeiro, nas regiões petroleira (Macaé e Rio das Ostras) e da turística serrana (Petrópolis e Teresópolis), sejam estados com baixo graus de industrialização como nas regiões do Norte (Amazônia e Pará) e do Centro-Oeste (Distrito Federal e Goiás), a favelização da população no interior cresceu.4

A partir da década de 1990, justamente quando se tornou mais evidente no país a contenção do crescimento demográfico e a desaceleração da urbanização, ganhou impulso a parcela da população residindo em domicílios definidos como favela que saltou de 6,1 milhões (3,3% da população total), em 1991, para 16,4 milhões de pessoas (8,1% da população total), em 2022. Ainda que a comparação populacional não seja adequada diante de alterações metodológicas, percebe-se a aceleração tanto da quantidade de municípios com registros de população favelada, multiplicada por 3,1 vezes (de 209 para 656 cidades), como do número de favelas que passou de 2,7 mil para 12,3 mil (4,6 vezes maior).

De um lado, o Brasil segue concentrando população favelada nas metrópoles litorâneas diante do esvaziamento econômico provocado pela desindustrialização, violência e elevado custo da vida. Assim, a informalidade ocupacional em decréscimo nos antigos centros industriais passou a recuperar espaço urbano, tendo o destino das massas sobrantes aos novos requisitos do capitalismo rentista exposto a disputas entre o importantíssimo conjunto governamental dos programas de transferência de renda e o salto organizativo do banditismo social e/ou fanatismo religioso (sistema jagunço urbano).

De outro lado, as concentrações urbanas mais favelizadas revelam o deslocamento demográfico para municípios do interior que guardam alguma dinamicidade econômica a atrair população que vem, por exemplo, da floresta para se acumular ao longo de grandes rios da Amazônia. Também o fenômeno da favelização em cidades médias do interior do país que decorre do processo vinculado à dominância do modelo econômico primário-exportador.

Ao concentrar riqueza do comércio externo estimula localmente ocupações em atividades vinculadas ao comércio e serviços em geral. Dessa forma estimula a formação de quase enclaves locais que parecem repetir o passado da urbanização desigual ocorrida no passado sem planejamento nas regiões litorâneas, porém, agora, submetida à presença do novo sistema jagunço.

Marcio Pochmann, professor titular de economia na Unicamp, é o atual presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Autor, entre outros livros, de Novos horizontes do Brasil na quarta transformação estrutural (Editora da Unicamp).

Notas

  1. ARAUJO, E.; FEIJÓ, C. Industrialização e desindustrialização no Brasil.Curitiba: Appris, 2024; POCHMANN, M. Brasil sem industrialização: a herança renunciada. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2016; SAMPAIO, D. Desindustrialização e desenvolvimento regional (1985-2015). In: MONTEIRO NETO, A. et al. (orgs.) Desenvolvimento regional no Brasil: políticas, estratégias e perspectivasRio de Janeiro: Ipea, 2017.
  2. GUIMARÃES, A. As favelas do Distrito Federal e o Recenseamento de 1950. Revista Brasileira de Estatística. ano 14, n.55, jul./set., 1953; COSTA, V. Expansão e quantificação de favelas no município do Rio de Janeiro nas últimas décadas. Rio de Janeiro: Ippur/Ufrj, 1992.
  3. DA MATA, D. et alFavelas e dinâmica das cidades brasileiras. In: CARVALHO, A. et al. (orgs.) Ensaios sobre economia regional e urbana. Brasília: Ipea, 2007; SANTOS, M.  A urbanização brasileira. São Paulo: Editora HUCITEC, 1993; POCHMANN, M. A desmetropolização regressiva do Brasil. Outras palavras, 2022.
  4. PEQUENO, R. Expansão da favelização no Brasil.Observatório das Metrópoles, 2024; FREITAS, A. Favelas rurais e favelas urbanas no Brasil. Revista Políticas Públicas & Cidades, 13 (2), 2024; PÁDUA, J. Favelização na cidade média do agronegócio. Porto Alegre: UFRGS, 2020.

35 anos: o sistema que queremos e que precisamos ter, por Guimarães, Costa & Fernandes

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O SUS que almejamos e necessitamos passa inevitavelmente pela ampliação da Medicina de Família e Comunidade

Por Fabiano Guimarães, Brenda Costa e Arthur Fernandes

O Estado de São Paulo, 19/09/2025.

Em 2025, o Sistema Único de Saúde (SUS), um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde pública do mundo, celebra 35 anos de existência. Fundamentado a partir do artigo 196 da Constituição federal de 1988, o SUS é um pilar da cidadania brasileira, garantindo acesso integral à saúde, da prevenção e da atenção primária ao tratamento de alta complexidade, como câncer e transplantes, para milhões de pessoas, servindo como modelo e inspiração global por sua universalidade e abrangência, que contrastam com modelos fragmentados e de alto custo em outras nações.

Nessas três décadas e meia, o SUS impulsionou avanços notáveis: a drástica redução da mortalidade infantil, a erradicação da poliomielite e um calendário vacinal robusto e atualizado são testemunhos de sua eficácia e resiliência. Mais do que inspirar sistemas de saúde globais, o SUS alcança os locais mais remotos e as populações mais vulneráveis, oferecendo cuidado essencial sem custo direto ao paciente, um contraste marcante com a realidade de muitos países, onde o acesso à saúde é determinado pela capacidade de pagamento.

Mesmo com ampla atuação em diversas frentes, o SUS ainda está em processo de avanço em muitas áreas, principalmente na Atenção Primária à Saúde (APS) e no programa Estratégia Saúde da Família (ESF). Ambos são o ponto inicial de contato da população com o sistema, por meio das mais de 44 mil Unidades Básicas de Saúde espalhadas pelo País. Enquanto você lê este artigo, profissionais das mais de 50 mil equipes da ESF estão atuando nos mais diversos territórios do Brasil.

E qual seria o SUS que queremos e precisamos dentro da perspectiva real e futura da população brasileira? O SUS que almejamos e necessitamos, à luz das crescentes demandas futuras da população, como o envelhecimento demográfico e o aumento das doenças crônicas, passa inevitavelmente pela ampliação da Medicina de Família e Comunidade (MFC). Experiências bem-sucedidas em países como Canadá, Holanda e Reino Unido demonstram que investir massivamente na atenção integral e coordenada eleva a qualidade de vida da população e otimiza os recursos do sistema, gerando eficiência e sustentabilidade.

Na APS, o indivíduo é atendido de forma holística, considerando não apenas a doença, mas o contexto social, econômico e familiar do paciente, sendo encaminhado a especialistas apenas quando estritamente necessário. A presença de médicos e médicas de família e comunidade acessíveis, atuando como o profissional de referência para cada cidadão, é uma estratégia de saúde pública comprovadamente eficaz e custo-efetiva. Essa abordagem, alinhada às melhores práticas internacionais, é capaz de transformar o panorama da saúde no Brasil ao promover a saúde, prevenir doenças e gerenciar condições crônicas de forma mais eficiente.

A Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) corrobora: o investimento robusto na APS não só reduz custos operacionais, mas eleva a qualidade de vida e a eficiência global do sistema de saúde.

Ao centralizar os cuidados num único especialista que atua com a abordagem centrada na pessoa, o SUS oferta os princípios de longitudinalidade e integralidade. O acompanhamento ao longo da vida faz com que aquele médico ou médica conheça a pessoa com todos os seus determinantes sociais, inserida em seu contexto familiar e comunitário, e como tudo isso afeta a sua saúde, produzindo melhores tratamentos e prevenindo doenças, reduzindo excesso de exames e intervenções desnecessárias, promovendo assim uma economia ao sistema.

O SUS que existe já é grande, robusto e funcional, mas pode melhorar e estamos caminhando para isso. Novas políticas públicas estão sendo implementadas, assim como outras estão em discussão. Que o Sistema Único de Saúde, patrimônio do povo brasileiro, continue sua trajetória de sucesso, assegurando saúde e dignidade a todos. Vida longa ao SUS!

Fabiano Guimarães, Médico de família e comunidade, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, mestre em Saúde da Família Profsaude/UFJF, preceptor da Residência em Medicina de Família e Comunidade do HC-UFMG, é professor da Graduação em Medicina na Unifenas-BH

Brenda Costa, Médica de Família e Comunidade, diretora de Comunicação da Sbmfc, doutoranda em Saúde Pública na ENSP/Fiocruz, professora no departamento de Medicina Integral, Familiar e Comunitária, é preceptora do programa de residência em Medicina de Família e Comunidade da UERJ

Arthur Fernandes, Médico de família e comunidade, diretor do Departamento de Comunicação da Sbmfc, mestre em Cuidados Paliativos e Paliativista, preceptor da Residência em Medicina de Família e Comunidade da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF), é referência técnica distrital em MFC da SES-DF

Polarizações crescentes

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Vivemos numa comunidade internacional marcada por grandes confrontos políticos, discussões econômicas e desajustes sociais, com impactos generalizados para todos os indivíduos, empresas e governos nacionais, gerando constrangimentos para todos os setores sociais, conflitos bélicos e militares, crescimento tecnológico inimaginável e dificuldades crescentes de relacionamento interpessoal, além de grandes desequilíbrios emocionais e espirituais.

Neste ambiente de tantos desequilíbrios percebemos o aumento sistemático da polarização em todas as esferas e setores da comunidade global, cientistas renomados, responsáveis por pesquisas relevantes, se sentem ameaçados e perseguidos por movimentos negacionistas que renegam descobertas científicas importantes para a comunidade mundial, gerando incertezas, medos e instabilidades na população, contribuindo para a divulgação do pânico, da confusão e do descrédito das pesquisas científicas.

No front político, percebemos o incremento da polarização, embora percebamos que a discussão faz parte da lógica política para a construção dos ideais democráticos, os debates nos parlamentos são imprescindíveis, as conversações são fundamentais entre os atores sociais, políticos e econômicos para defenderem ideias e pensamentos com o intuito de fortalecer os laços sociais, aumentar e consolidar os consensos sociais, vislumbrando um bem-estar na comunidade. Infelizmente, as polarizações crescentes, em todas as regiões do mundo, nos trazem confrontos físicos, agressões constantes, violências verbais, cancelamentos, represálias e inverdades, que contribuem para a fragilização dos ideais democráticos, levando a sociedade a perder tempos preciosos com discussões estéreis e inapropriadas, onde cada grupo defende seus interesses imediatos.

No campo econômico, percebemos um conflito secular entre ortodoxos e desenvolvimentistas, com visões diferentes do comportamento econômico e da percepção política, um se deliciando com políticas de austeridade, juros altos e arrocho da renda da população mais fragilizada, defendendo a limitação dos gastos públicos e sociais, além de manterem os subsídios para grupos mais abonados da sociedade, muitos deles seus empregadores. De outro lado, percebemos que outros priorizam os investimentos produtivos, a geração de emprego, aumento da renda e salários melhores, sendo vistos, muitas vezes, como populistas e gastadores.

No campo ideológico, percebemos um conflito crescente e assustador, pessoas defendendo pensamentos e ideologias desconhecidas, bradando ideias e teorias conspiratórias supostamente defendidas por intelectuais e, pasmem, autores que não foram lidos e mesmo assim, se arvoram na condição de críticos travestidos de intelectuais e dotados de capacidade reflexiva. Neste cenário, percebemos, na sociedade global, uma visão binária, acreditando que um dos lados é o representante do bem e outros são representantes do mal, uma dualidade medíocre e limitadora da capacidade de reflexão crítica sobre os grandes desafios da comunidade internacional.

A polarização do mundo coloca os indivíduos em um grande conflito existencial, neste cenário ao encontrarmos pessoas com ideias e pensamentos diferentes são taxados de ignorantes e atrasados, limitando a capacidade cognitiva, gerando um conflito de todos contra todos, num momento fundamental para compreendermos os grandes desafios da humanidade. Esta polarização nos coloca em polos contrários, num momento imprescindível para unir forças em prol da humanidade, elencando desafios coletivos, tais como a degradação ambiental, a corrupção generalizada, a pobreza material que assola parte significativa da sociedade mundial, a concentração de riqueza que patrocina uma guerra fratricida entre ricos versus pobres, dentre outros. Será que estamos na hora de acabarmos com essa polarização equivocada e atrasada, que destroem os elos dos seres humanos e leva a sociedade global para uma desagregação civilizacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre e Doutor em Sociologia e Professor universitário

“Dilma foi derrubada pelos donos do PIB”, diz Leonardo Loureiro Nunes

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Economista afirma que um dos principais objetivos do golpe de 2016 foi elevar as margens de lucro de setores cartelizados da economia

Brasil 247 – 13/06/2025

247 – Em entrevista ao jornalista Leonardo Attuch na TV 247, o economista e administrador Leonardo Loureiro Nunes apresentou os principais argumentos de seu recém-lançado livro Dilma contra os donos do PIB (Editora Contracorrente, com prefácio de Luiz Gonzaga Belluzzo), que investiga o papel dos grandes grupos econômicos no golpe parlamentar que resultou no impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016.

Nunes sustenta que a ruptura institucional não se deu por colapso econômico, mas sim pela insatisfação da elite empresarial com políticas públicas que reduziram suas margens de lucro. “Houve uma queda generalizada da taxa de lucro da economia, e é isso que explica a rejeição ao governo Dilma”, afirmou. Segundo ele, Dilma foi “derrubada pelos donos do PIB” — os setores oligopolizados da economia que, ao verem seus lucros comprimidos, se aliaram para romper a institucionalidade democrática.

A tese central: lucros sob ataque

De acordo com o autor, a explicação para o impeachment deve ser buscada menos nas narrativas de crise ou corrupção, e mais na perda de rentabilidade de setores estratégicos da economia. “O que causou a insatisfação foi a queda nas taxas de lucro. Dilma tentou controlar preços estratégicos — como energia, combustíveis, juros e tarifas de concessões — e isso desagradou profundamente os grandes grupos econômicos”, explica.

Nunes argumenta que esses grupos, que ele chama de “donos do PIB”, não se confundem com a base industrial tradicional representada por federações como a Fiesp. São conglomerados atuando em setores como energia, logística, mineração e bancos, com forte interpenetração entre capital produtivo, rentista e internacional. “Hoje não há mais distinção entre capital nacional e internacional. Tudo está entrelaçado.”

Políticas que desagradam o topo

Entre as iniciativas que teriam despertado a ira do mercado financeiro, Nunes lista:

  • MP do Setor Elétrico, que visava baixar os preços da energia renovando concessões amortizadas com tarifas menores. “Muitos fundos de investimento têm posição em empresas de energia. Isso afetou diretamente sua rentabilidade.”
  • Redução dos spreads bancários, por meio do Banco do Brasil e da Caixa, pressionando a margem de lucro do setor financeiro.
  • Política de modicidade tarifária em concessões de infraestrutura, como no PIL (Programa de Investimento em Logística), estabelecendo que vencia o leilão quem oferecesse a menor tarifa.
  • Controle nos preços dos combustíveis e desonerações fiscais, que foram capturadas pelas empresas sem se traduzirem em aumento de investimento ou produção.

Todas essas medidas, segundo o economista, foram tentativas de elevar a competitividade da indústria brasileira, mas acabaram minando o apoio da elite empresarial.

Um projeto burguês sem a burguesia

Para Nunes, há um equívoco histórico recorrente na esquerda brasileira: a crença na existência de uma burguesia nacional desenvolvimentista. “Sou cético em relação à existência de uma burguesia nacional. O Brasil é um país periférico e essa classe empresarial olha apenas para seus interesses imediatos”, afirmou. “O PT tentou fazer um projeto reformista burguês à revelia da burguesia.”

Essa crítica remete à tradição de intelectuais como Florestan Fernandes e Celso Furtado, que analisaram a formação das classes médias e das elites brasileiras como profundamente conservadoras e avessas à mobilidade social ascendente das classes populares.

A classe média e o ressentimento social

Nunes também oferece uma explicação sociológica para o papel da classe média no processo de desestabilização do governo Dilma. “A classe média baixa foi uma das grandes bases do bolsonarismo. O andar de baixo subiu, e ela ficou estagnada. As pessoas são comparativas. E isso gerou ressentimento”, disse. “Programas sociais como o Bolsa Família criaram incômodos em setores que não se viam contemplados por políticas específicas.”

Essa frustração, combinada com o discurso anticorrupção promovido pela mídia e pelo Judiciário, criou um terreno fértil para manifestações e adesão a um projeto autoritário de ruptura institucional.

O legado do golpe e o desafio de Lula

Segundo o autor, o governo de Michel Temer — que sucedeu Dilma após o impeachment — recompôs as taxas de lucro da elite empresarial com medidas regressivas, como a reforma trabalhista, previdenciária e privatizações. “Mesmo com uma economia menos dinâmica, o governo Temer ampliou as margens de lucro.”

Já o presidente Lula, no terceiro mandato, enfrenta restrições herdadas desse processo. “Muito do que foi feito no pós-Dilma foi bem amarrado e impõe limites. A política de preços da Petrobras, por exemplo, engessou a capacidade do governo de atuar”, aponta.

Além disso, Nunes lembra que o Brasil de hoje é outro: polarizado, com instituições abaladas e sob a constante ameaça da extrema direita. “Não dá para esperar os mesmos índices de aprovação de 2010. O governo tenta normalizar a democracia após uma tentativa de golpe de Estado.”

Socialismo na periferia: limites e dilemas

Ao ser questionado sobre uma eventual ruptura socialista, Nunes expressou ceticismo quanto à viabilidade de experiências radicais nos países periféricos. “Não acredito em soluções de ruptura pela periferia do capitalismo. O centro — EUA e Europa — é que teria condições de promover mudanças estruturais.”

Para ele, o desafio da esquerda é formular respostas concretas aos problemas do trabalho, da renda e da desigualdade, sem cair nas armadilhas retóricas da extrema direita, que aponta inimigos fictícios (como imigrantes ou programas sociais), enquanto protege o capital.

Uma obra fundamental

Dilma contra os donos do PIB é resultado de uma tese de doutorado defendida na Universidade Paris 1 – Panthéon-Sorbonne. O livro reúne entrevistas com nomes como Nelson Barbosa, Esther Dweck, Arno Augustin, Luciano Coutinho e outros formuladores da política econômica dos governos do PT. Nunes também ouviu empresários e dirigentes da Fiesp, alguns sob anonimato, que revelaram perplexidade com as consequências políticas do golpe de 2016.

A obra é um marco na análise econômica e política do impeachment, conectando os interesses do topo da pirâmide econômica com a erosão da democracia brasileira. Como disse o próprio autor: “O vice-presidente transformou o impeachment numa eleição indireta para presidente. Se isso não é golpe, não sei o que é.”

Disponível pela Editora Contracorrente, o livro se impõe como leitura essencial para compreender o passado recente e os desafios presentes da democracia no Brasil.

O golpe impune no cerrado, por Marcelo Leite.

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Condenação é pouco para todo o mal que a boçalidade ruralista já causou

Marcelo Leite, Jornalista de ciência e ambiente, autor de “A Ciência Encantada de Jurema” (ed. Fósforo).

Folha de São Paulo, 15/09/2025

Sessenta e oito anos cumpridos neste domingo (14) é tempo suficiente para ver de tudo acontecer. Há 52 anos, a morte de Salvador Allende no golpe do Chile, sob as ordens de um Augusto Pinochet que matou 3.000 adversários políticos e é por isso admirado por aprendizes no Brasil.

Há 24 anos, a queda das torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York. Morreram outras 3.000 pessoas, um décimo do que o inelegível defendia matar numa guerra civil brasileira.

Há três dias, o sentenciamento a 27 anos de prisão do presidente que se mandou para os EUA, de onde pretendia assistir pela TV o golpe de seus kids pretos. O mesmo que sustenta lá o filho quinta-coluna conspirando contra o próprio país.

Vinte e sete anos é tempo insuficiente para punir alguém cujas ações e omissões causaram 95 mil dos mais de 700 mil óbitos por Covid sob seu governo. Brasileiros mortos por falta de oxigênio, de quem o covarde fez troça imitando-lhes a asfixia.

Mas justiça não é vingança, pontificam comentaristas com a razão. Cadeia serve para proteger a coletividade, impedindo o criminoso de voltar a delinquir. Sei.

O 11 de setembro marca também o Dia do Cerrado, agonizante sob os golpes do agronegócio que elegeu o condenado e pagou acampamentos, caminhões e ônibus de mínions marchando para a festa da Selma em 8 de janeiro de 2023. Haverá entre eles arrependidos, mas não pelos crimes ambientais continuados.

De 1985 a 2024, segundo o MapBiomas, o desmatamento do cerrado para cultivo de soja saltou de 6.200 km2 a 120 mil km2, incremento de 19 vezes. Em 2021, percorrendo essa savana mais biodiversa do planeta, chocava ver uma bandeira brasileira sequestrada em cada fazenda (patriotismo, o último refúgio dos vilões).

Vilões e também néscios: destruir a cobertura vegetal que regula o ciclo hidrológico perturba o regime de chuvas de que tanto depende a agricultura. Em meio século, desde a década de 1970, a precipitação recuou 21% no cerrado, da média de 680 mm para 539 mm anuais.

De acordo com relatório da Ambiental Média, desde a década de 1970 diminuiu 27% o volume de água nos rios do cerrado, manancial dos pivôs de irrigação que pontilham a paisagem. Os mesmos rios que alimentam 8 das 12 principais bacias hidrográficas do país, a tal de caixa d’água do Brasil, crucial para a geração de eletricidade.

Quarenta anos foram tempo suficiente para derrubar 405 mil km2 do cerrado, mais de um quarto (28,5%) de sua vegetação nativa. Desde o período colonial, a savana brasileira acumula devastação de pelo menos metade da área, vale dizer, uma perda de cerca de 1 milhão de km2, superfície comparável à do Egito.

No governo anterior, houve anos em que o cerrado teve mais desmatamento, em termos percentuais, que a amazônia, bioma que tem o dobro de seu tamanho e concentra as preocupações do mundo. Não as da bancada ruralista que lhe deu sustentação e engrossa o centrão ainda dando as cartas no Congresso, a ponto de aprovar um PL da Destruição.

Vinte e sete anos, à sombra da trevosa história do Brasil, até que não é muito. É tempo suficiente para ver de tudo acontecer, inclusive o pior.

 

Anistia a Bolsonaro jogaria estabilidade democrática no chão, por Leonardo Weller

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Perdão a golpistas é retrocesso que pode nos levar novamente ao chumbo da ditadura

Leonardo Weller, Folha de São Paulo, 14/09/2025

[RESUMO] Conceder indultos a golpistas e conspiradores tem sido uma tradição no Brasil do pós-guerra, o que só incentiva novas tentativas de tomada armada do poder. Se a anistia de 1979 revelou-se depois indispensável para pacificar o país, afinal os militares ainda estavam no poder, repetir agora o perdão judicial a Bolsonaro e demais réus condenaria a uma instabilidade política que já parecia superada, avaliar autor.

Vários políticos de direita defendem uma anistia aos réus envolvidos na trama golpista liderada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. Segundo reportagem da Folha, o grupo inclui cerca de 300 deputados, maioria na Câmara. Por detrás desta reação contra o julgamento do STF está o governador de São Paulo, Tercísio de Freitas (Republicanos), que se move com medo da família Bolsonaro e de olho nas eleições presidenciais do ano que vem.

Do ponto de vista histórico, a anistia não é uma ideia completamente abilolada. O Brasil foi diversas vezes sacudido por tentativas de golpe, cujos conspiradores acabaram sendo anistiados em indultos que, por sua vez, geravam incentivos para novas conspirações. Esta corrente de instabilidade marcou o sistema político do pós-guerra, a primeira experiência democrática brasileira.

Getúlio Vargas se suicidou em 1954 para evitar um golpe montado pela oposição e por setores das Forças Armadas. O vice-presidente Café Filho tomou o poder, mas se ausentou do cargo, dando lugar a Carlos Luz, o presidente da Câmara. Luz se mancomunou com militares com o objetivo de evitar a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek.

O ministro da Guerra, o general Lotti, um legalista, deu um golpe preventivo em Luz para garantir que JK assumisse a Presidência. Mesmo assim, em 1959 os militares pegaram em armas contra JK, já presidente, nas frustradas quarteladas de Jacareacanga e Aragarças.

Ninguém foi condenado pelas tentativas de golpe da década de 1950, e a conspiração só cresceu nas Forças Armadas, culminando em 1964. Os ditadores não mostraram benevolência enquanto estiveram no poder: o regime militar cassou, exilou, prendeu, torturou e assassinou oponentes ao longo de duas décadas.

O general Geisel iniciou um longo processo de abertura ao assumir a Presidência, em 1974. A distensão, contudo, suscitava uma série de questões ao governo. Se deixassem o poder, quem garantiria que os militares não seriam julgados e condenados por seus delitos?

O núcleo do regime tinha medo dos civis. Já os linha-dura, que haviam torturado e matado, tentaram armar um golpe contra Geisel. Como de praxe, os conspiradores saíram impunes, mas nem por isso pararam de explodir bombas e perseguir opositores à revelia do comando militar.

A redemocratização foi viabilizada por um acordo baseado na Lei de Anistia de 1979, que livrou políticos oposicionistas e os criminosos do regime de qualquer punição, apesar de excluir os guerrilheiros condenados pelos tribunais militares. A anistia era uma garantia sobretudo aos ditadores e agentes da repressão, não à oposição que havia seguido o caminho da luta armada.

O oposicionista moderado Tancredo Neves, do MDB, saiu candidato a presidente nas eleições indiretas de 1985, tendo como vice José Sarney, um homem do regime, egresso da Arena. Com apoio de diversos políticos da ditadura, a chapa Tancredo-Sarney bateu Paulo Maluf no Colégio Eleitoral.

A anistia e o novo governo civil deram as garantias necessárias para que os militares voltassem aos quarteis, inclusive os linha-dura, que submergiram na política nacional, ao menos até a vitória de Bolsonaro em 2018.

No livro “Democracia Negociada: Política Partidária no Brasil da Nova República”, Fernando Limongi e eu argumentamos que, sem as conciliações iniciadas na anistia de 1979, a ditadura teria durado mais, possivelmente sob o julgo da linha-dura.

Apesar de ter à época revoltado vários democratas, o arranjo que se concluiu na posse de Sarney foi necessário para a construção de uma democracia sólida e duradoura. Inédito na história do país, o regime em que vivemos não mais permite tentativas impunes de golpe; vem daí a importância do julgamento de Bolsonaro no STF.

Se a anistia era indispensável para pacificar o país há quatro décadas, ela terá agora efeito oposto, capaz de jogar por terra a estabilidade democrática conquistada na Nova República. Os militares estavam no poder em 1979, controlando tanto as armas quanto a caneta com a qual se aprovaria a abertura. Naquela época, ou a oposição negociava, ou seguiríamos em um regime de exceção.

A situação é hoje bem diversa: os militares não estão no poder, e a maior parte da cúpula das Forças Armadas opôs-se ao golpe de Bolsonaro.

Não há mais necessidade de negociar com golpistas. Se políticos de direita emplacarem a anistia, novas tentativas de golpe fatalmente virão, nos condenando ao retorno ao passado, à instabilidade da democracia do pós-guerra ou, pior, ao chumbo da ditadura militar.

 

 

Num mundo de múltiplas crises, precisamos de um Estado forte e inteligente, por Eliane Conceição

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Eliane Barbosa da Conceição, Professora da Unilab-CE e pesquisadora do FGV-CEAPG; doutora em administração de empresas (FGV-SP), mestra em administração geral (Ibmec-RJ) e parceira da Plataforma Justa;

Folha de São Paulo, 13/09/2025.

A Primeira Turma do STF deve concluir nesta semana o julgamento do primeiro núcleo da trama golpista, formado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e sete de seus aliados. Tudo indica que serão condenados a mais de 30 anos de prisão.

A inelegibilidade decretada pelo Tribunal Superior Eleitoral em 2023 já havia praticamente excluído Bolsonaro do pleito de 2026, salvo uma improvável reversão da pena —hipótese ainda acalentada por seus seguidores no Congresso. A condenação iminente no STF, contudo, se confirmada, agrava a situação, afastando de vez qualquer possibilidade de retorno relevante ao cenário político.

Nesse vácuo, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, surge como potencial herdeiro do espólio do, talvez, duplamente inelegível. Em 5 de setembro, celebrou a concessão em São Paulo e exaltou a iniciativa privada, reafirmando a centralidade da agenda de privatizações em sua gestão.

Esse discurso remete aos anos 1980, quando teve início a primeira onda de reformas administrativas, no bojo da crise do capitalismo após os “anos gloriosos” do pós-guerra. Reino Unido e Estados Unidos, sob Thatcher (1979-1990) e Reagan (1981-1989), foram pioneiros em experiências de redução do papel estatal, que logo seriam replicadas em outros países desenvolvidos.

Nos anos 1990, o receituário alcançou a América Latina, impulsionado pelos Estados Unidos e organismos internacionais.

O Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 1997, intitulado “O Estado num mundo em transformação”, recomendava que as reformas administrativas na região se dedicassem a privatizações, descentralização, enxugamento dos quadros e flexibilização na contratação de servidores.

Esse documento ecoava os princípios mais amplos do Consenso de Washington, que também defendia austeridade fiscal e redução do gasto público. Mantendo o núcleo duro inicial e se reorganizando em torno elementos ou narrativas periféricas, as reformas administrativas e fiscais proliferaram nas décadas seguintes, deixando legados bem diferente dos previstos.

Interessante perceber que o relatório de 1997, ao recomendar uma completa alteração do papel assumido pelo Estado no pós-guerra, ressaltava a dificuldade dessa redefinição, uma vez que o “terreno em que se assenta está sempre mudando”.

Hoje resta evidente que o terreno mudou —para pior. As reformas legaram desigualdades, concentração de renda e poder, precarização e enfraquecimento da ação pública. Enquanto a Europa, aprendendo com os erros, reestatiza serviços essenciais, o Brasil ainda insiste no mantra da privatização.

Num mundo de múltiplas crises, precisamos de um Estado forte e inteligente. Isso exige, sim, revisar privilégios imorais de segmentos do alto funcionalismo do Judiciário, Executivo e Legislativo.

Mas, sobretudo, requer valorizar o servidor que está na ponta —professores, médicos, enfermeiros, policiais, assistentes sociais, atendentes— os chamados “burocratas de nível de rua”, na expressão de Michael Lipsky (1980). São eles que garantem a efetividade da ação governamental.

É deles que precisamos falar ao pensar uma reforma administrativa à altura dos desafios do século 21.

“Imortalidades” do Giannetti

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Costumamos dizer que, no parto, a mãe “dá à luz” ao filho, mais exato seria dizer que ela “dá o tempo”, seu primeiro minuto: a luz conquistamos ao longo da vida — sempre em busca de não morrer cedo e de transcender à morte

Correio Braziliense – 25/06/2025

A história do pensamento mostra que os intelectuais brasileiros se dedicam aos problemas do Brasil, enquanto os europeus abordam grandes temas da humanidade. De tempos em tempos, surgem exceções, como Eduardo Giannetti, que eleva nossa contribuição ao debate universal. Em suas obras, já ofereceu reflexões sobre felicidade, ética e racionalidade. Agora, com o livro Imortalidades, Giannetti une beleza literária à sólida base da história do pensamento e da reflexão filosófica, para tratar de assunto essencial à condição humana: a ideia de que a vida possa transcender sua curta duração biológica.

Giannetti adota o estilo de ensaios curtos — 235 ao todo — cada um podendo ser lido independentemente ou em sequência, como um grande romance de ideias em torno da ânsia por imortalidade que caracteriza a única espécie com consciência da própria morte e que não se conforma com esse destino. Retoma anotações acumuladas ao longo de sua vida de leituras, desde muito jovem. Investiga as diversas formas de imortalidade que o ser humano busca incessantemente. Mergulha em mais de 150 obras de 116 autores, incluindo ele próprio, para pensar, especular, compreender e descrever como o desejo de permanência atravessa a história do pensamento, especialmente ocidental, ao longo de milênios.

O autor passa por obras orientais e antigas, como o Épico, de Gilgamesh, de 1.800 anos antes de Cristo, e textos de filósofos gregos de 2.500 anos atrás. Todos com a mesma inquietação: o que havia antes de nós e o que virá depois. A ideia de continuidade após a morte foi, talvez, o gesto de maior arrogância do homo sapiens: atribuir a cada um deles o privilégio que, antes, era reservado apenas aos deuses da mitologia clássica. Mesmo os mais materialistas encontram uma forma de sobrevida nos átomos do corpo que, depois da morte, se dispersam no universo. Não há, talvez, expressão mais materialista do que a ideia bíblica de que “viemos do pó e ao pó voltaremos”.

Costumamos dizer que, no parto, a mãe “dá à luz” o filho, mais exato seria dizer que ela “dá o tempo”, seu primeiro minuto: a luz conquistamos ao longo da vida — sempre em busca de não morrer cedo e de transcender à morte. A arrogância foi punida pelo medo da morte e do pós-morte. Personagens literários que tentaram ultrapassar a fronteira entre a mortalidade dos homens e a imortalidade dos deuses foram punidos com vidas vazias e trabalho insano. Usam a capacidade intelectual para não morrer — seja ampliando os dias de vida do corpo, seja apostando numa outra existência, seja deixando obras para ser lembrado, ainda que por poucas gerações — e se esquecem de viver. Ele ainda reconstrói a história do surgimento desse desejo de imortalidade e das múltiplas formas de buscá-la, e ainda explica como esse conceito foi gradualmente apropriado e transformado pelas religiões que adotaram a ideia de alma individual e imortal, que se desprende do corpo morto e vai para outra dimensão ou reencarna depois em outros corpos.

O livro Imortalidades é um belo e rigoroso estudo sobre a arrogância de querer ser imortal e a consequente tragédia de morrer pelo vazio existencial, inclusive decorrente da ilusão de uma alma eterna. O homo sapiens talvez seja resultado de um erro da evolução natural, ao criar um animal com racionalidade ilimitada, mas incapaz de controlar moralmente seu destino e, inclusive, de aceitar o destino de sua morte definitiva, tratada como fato natural e irreversível. Confundindo viver com produzir e consumir, acaba provocando entropia ecológica e civilizatória e, no limite, o suicídio da espécie.

De certo modo, é isso que ocorre com o ser humano moderno que, ao buscar a imortalidade de cada indivíduo, ameaça a própria espécie com suicídio coletivo. A ânsia neurótica de transformar, cada vez mais rapidamente, pedras, plantas e animais em produtos para serem consumidos, define o homem moderno. O cartão de crédito como a chave da imortalidade.

Em um trabalho de Sísifo, desperdiçando a curta vida com a ilusão de permanência por meio da riqueza material a ser consumida. Ao ponto de, na era do Antropoceno, destruir o equilíbrio ecológico e ameaçar a própria sobrevivência da espécie. Felizmente, graças, especialmente, aos filósofos existencialistas é possível vislumbrar imortalidade em cada minuto de vida vivido plenamente: “Cada minuto eterno enquanto dura”. Entre essas imortalidades transitórias está a leitura de livros que nos inspiram e deslumbram, fazendo-nos imortais enquanto os lemos: sentimento despertado pela leitura de Imortalidades, de Eduardo Giannetti.