Economia brasileira está presa em círculo vicioso da quase estagnação, Bresser Pereira

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Juros altos e câmbio apreciado desestimulam investimentos, privilegiam rentistas e limitam o desenvolvimento do país

Luiz Carlos Bresser Pereira, Professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (1987, governo Sarney), da Administração e da Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (1995-1998 e 1999, governo FHC).

Folha de São Paulo, 10/12/2024

[RESUMO] Apesar de concessões e privatizações desde os anos 1970, os investimentos privados no país se mantêm em patamar muito baixo, desestimulados pelos juros exorbitantes que, junto à taxa de câmbio valorizada movem o círculo vicioso da quase estagnação que caracteriza a economia brasileira há 30 anos.

Um dia desses, um dos meus filhos me perguntou por que o governo Lula estava privatizando estradas de rodagem que são monopolistas e, por isso, não devem ser privatizadas. Não seria esse governo neoliberal? Ou neoliberal progressista, acrescentei parafraseando a filosofia americana Nancy Fraser.

Não, o presente governo é social-progressista e desenvolvimentista: defende uma diminuição da desigualdade e a intervenção do Estado na economia para aumentar o investimento público e promover o investimento privado. Não obstante, esse governo não tem alternativa senão privatizar as rodovias que exigem investimentos para os quais não tem recursos. O Brasil está preso no círculo vicioso da quase estagnação.

Entendo por quase estagnação o fato de um país não realizar o “catch-up” —o fato de seu crescimento per capita ser quase sempre inferior aos dos Estados Unidos, de forma que o padrão médio de vida dos brasileiros se afasta cada vez mais do padrão americano. Apesar de um desempenho econômico razoável neste ano e nos dois últimos anos, nada aconteceu de novo na economia brasileira que nos permita afirmar que escapamos da quase estagnação, inclusive porque a taxa de investimento continua muito baixa.

A economia brasileira está quase estagnada desde 1980. Hoje, a distância em relação aos Estados Unidos é maior do que era em 1980. A causa direta dessa quase estagnação é a taxa de investimento muito baixa. Tanto o investimento privado quanto o público é sistematicamente inferior a 17% quando deveria girar em torno de 25% do PIB. Oito pontos percentuais é uma diferença muito grande.

Se compararmos a presente situação com meados dos anos 1970 (a última década em que o Brasil cresceu satisfatoriamente e estava realizando o “catch-up”), veremos que o investimento privado, que naquela década estava em torno de 15% do PIB, se manteve nesse nível, embora devesse ter crescido devido às privatizações —deveria ter crescido para pelo menos 20% do PIB.

Já o investimento público, que deveria ter caído um pouco devido às mesmas privatizações, caiu muito; correspondia a aproximadamente 8% do PIB, agora está em torno de 2,5%. Em consequência, o investimento total caiu de 23% para aproximadamente 16% do PIB, e a taxa de crescimento caiu correspondentemente.

A primeira razão para isso é a taxa de juros exorbitante que existe no Brasil desde a abertura financeira (1992). A taxa de juros real vem sendo desde então em média cerca de 6% a 7% ao ano, quando deveria se manter em torno de 3% ao ano, ou seja, igual à taxa de juros real internacional mais um adicional que dê conta do risco dos brasileiros em investir no Brasil (não dos estrangeiros), que eu estimo ser de aproximadamente 1%.

Duas vezes menor, portanto, que a taxa real que o Banco Central pratica e, portanto, uma taxa que desestimula o investimento. Eu falei em risco dos brasileiros, que deve ser menor que o risco Brasil, calculado pelos mercados internacionais para potenciais investidores de fora do país, de cerca de 2,5%.

A segunda razão é a tendência de apreciação da taxa de câmbio no Brasil, que tem por trás quatro motivos: (1) porque a taxa de juros é alta para poder atrair capitais; (2) porque o Brasil incorre sistematicamente em déficits na conta corrente de aproximadamente 2% do PIB, quando deveria mantê-los em torno em zero; (3) porque o Brasil não reconhece e não neutraliza a doença holandesa, não tendo, portanto, uma política que evite que a taxa de câmbio se torne valorizada para as empresas industriais, a qual reduz a competitividade internacional dessas companhias; e (4) porque a taxa de poupança no Brasil é muito baixa, não sendo por isso compensada pelo recurso a financiamento interno ou externo.

Os atores

Para sabermos o porquê das três primeiras razões, precisamos considerar os atores que causam a baixa taxa de investimento e o círculo vicioso da quase estagnação. São eles os capitalistas rentistas e seus financistas, o agronegócio, o Norte Global ao qual os dois primeiros grupos estão associados, os empresários industriais, os eleitores e os políticos. Todos são responsáveis pela taxa de câmbio apreciada, a baixa taxa de investimento e a quase estagnação do Brasil.

Os rentistas e financistas, dominantes, querem uma taxa de juros real (descontada a inflação) alta e uma taxa de inflação baixa (para garantir o objetivo anterior). Os dois grupos são liberais: não querem que o Estado invista ou intervenha na economia; não querem, por exemplo, que o Estado tenha uma política cambial que estabilize a taxa de câmbio e evite que ela seja apreciada.

Assim, estão felizes com um déficit na conta corrente em torno de 2% do PIB e não querem saber da doença holandesa, embora esta surja quando o preço das commodities exportadas pelo Brasil sobe e torna as empresas industriais não competitivas, ainda que sejam competitivas no plano técnico.

Rentistas e financistas estão satisfeitos. Eles têm poder suficiente sobre a sociedade brasileira para capturar indevidamente cerca de 3% do PIB graças à diferença entre a taxa de juros média razoável (de 3% ao ano, como vimos acima) para a taxa praticada de 6% ao ano. Esses juros altos naturalmente desestimulam o investimento, a não ser que a taxa de lucro esperada seja alta e a desigualdade econômica, acentuada.

O agronegócio, embora recebendo altos subsídios do Estado, se afirma liberal e, como os dois grupos anteriores, não quer saber de uma política de neutralização da doença holandesa; quer realizar lucros extraordinários quando há um boom de commodities.

A doença holandesa é uma apreciação de longo prazo e cíclica da taxa de câmbio para a indústria causada por um substancial aumento de preços das commodities exportadas pelo país, que causa uma apreciação da taxa de câmbio geral ou corrente. Enquanto, para o setor exportador de bens primários (agronegócio e exportador de minérios e petróleo), essa taxa de câmbio mais apreciada é satisfatória porque o aumento de seus preços compensa a valorização da moeda nacional, para a indústria essa apreciação é desastrosa. É papel do Estado garantir uma taxa de câmbio competitiva para a indústria.

Nos países exportadores de commodities, a taxa de câmbio é cíclica porque os preços das commodities também tendem a ser cíclicos: ela se deprecia fortemente quando há uma crise financeira e depois se aprecia, chega à taxa de equilíbrio geral (que equilibra a conta corrente do país) e afinal se torna mais apreciada à medida que o déficit na conta corrente aumenta devido à política que os países adotam equivocadamente de incorrer em déficits na conta corrente (“poupança externa”). Começa então o endividamento externo que, afinal, levará o país a nova crise de balanço de pagamentos e a nova depreciação violenta da taxa de câmbio, encerrando-se assim o ciclo.

O Norte Global (o conjunto dos países ricos liderados pelos Estados Unidos) não tem qualquer interesse em uma taxa de investimento alta na sua periferia. Pelo contrário, visa evitar que os países em desenvolvimento se industrializem, porque não querem concorrência no futuro.

Para isso, além de nos recomendarem que tenhamos déficits na conta corrente desde que esses não levem o país a uma crise de balanço de pagamentos, buscam manter economicamente abertos os países em desenvolvimento para a exportar capitais (investimentos diretos e empréstimos) e para manter a troca desigual —a troca entre bens tecnologicamente sofisticados, que pagam bons salários e lucros, e bens pouco sofisticados que se caracterizam por baixo valor adicionado per capita.

As empresas industriais, que não precisam de proteção com base no argumento da indústria infante, precisam dramaticamente de proteção contra a doença holandesa que, em boom de commodities, as tornam não competitivas. Não obstante, seus dirigentes ou empresários não sabem ou não querem saber o que é a doença holandesa, que pode ser mortal para eles.

O setor interno de serviços, muito amplo e diversificado, quer que a taxa de juros seja baixa, mas seus dirigentes não têm poder político capaz de influenciar o Banco Central. Ao contrário, eles acabam sendo corresponsáveis pelos altos juros porque as associações que os representam são ocupadas por economistas neoliberais.

Os eleitores, principalmente a classe trabalhadora e de empregados, criticam a taxa de juros elevada, mas estão satisfeitos com uma taxa de câmbio apreciada que aumenta o poder aquisitivo de seus salários e demais rendimentos.

Os políticos, finalmente, acompanham seus eleitores e estão felizes com uma taxa de câmbio apreciada que facilita sua reeleição.

Os déficits na conta corrente e os investimentos privados

Os liberais afirmam que o principal problema da economia brasileira é o déficit público que causa aumento da dívida pública em relação ao PIB e causaria inflação. De fato, manter o equilíbrio fiscal é importante, mas mais importante é manter a conta corrente do país (a conta externa comercial mais os serviços) equilibrada, algo que só acontece raramente.

Na verdade, rentistas, financistas, agronegócio, interesses estrangeiros, eleitores e os políticos estão todos satisfeitos com um déficit na conta corrente moderado, porque esses déficits aumentam o poder aquisitivo dos seus rendimentos e mantêm tudo como está, inclusive a quase estagnação.

Ora, uma das características do populismo é procurar dar rendimentos artificiais aos eleitores que são, afinal, prejudiciais ao país. Ao aceitarem como bons os déficits na conta corrente (porque implicam acesso à poupança externa), nossos atores são todos populistas. Mas não teriam eles razão? Afinal, seria mais que natural que os países ricos em capitais transfiram seus capitais para países pobres em capitais como é o Brasil.

Não, a política de crescimento com poupança externa ou de déficits na conta corrente é uma política que contém a causa do seu fracasso). Ao incorrer em déficit na conta corrente, as entradas de capitais são maiores que as saídas, a taxa de câmbio se aprecia e, além de estimular indevidamente o consumo, desencoraja o investimento.

Esse caráter autofracassante da política de crescimento com endividamento externo deixa de sê-lo se o país adota uma política cambial capaz de compensar o excesso de entradas de capitais. Tudo, portanto, parece desestimular o investimento privado que, por isso, não aumentou sua participação no PIB como seria de se esperar.

Finalmente, é preciso considerar que a poupança brasileira é muito baixa e, ainda que esse fato possa ser superado pelo recurso ao financiamento interno (por isso keynes e Kalecki disseram nos anos 1930 que o investimento precede a poupança), ela precisa ser considerada. A poupança deveria ser, em princípio, quase igual aos lucros, os quais, para os empresários industriais, são necessariamente baixos, dada a taxa de juros alta e a taxa de câmbio apreciada.

Eles, portanto, não têm recursos necessários para financiar os investimentos de modernização de suas fábricas e de expandir sua produção, o que leva à desindustrialização. Além disso, ao não investirem, ficam atrasados tecnologicamente e a produtividade da economia permanece estagnada.

Já o agronegócio realiza lucros elevados, mas seus empresários investem na própria agricultura e pecuária e se opõem a qualquer política industrial e de neutralização da doença holandesa. Os rentistas e financistas, por sua vez, recebem juros e aluguéis elevados, mas não investem na indústria porque ela não dá o retorno que desejam. Preferem investir seu dinheiro no mercado financeiro e seus altos juros ou em imóveis que rendem bons aluguéis e se valorizam.

Em síntese, a taxa de investimento na indústria em relação ao PIB não aumentou apesar das privatizações que ocorreram desde os anos 1970. Em todo o período, os investimentos foram fortemente desestimulados porque apresentaram uma taxa esperada de lucro insatisfatória, incapaz de motivar os investimentos, dada a taxa elevada de juros que desde 1992 caracteriza a economia brasileira. Foram, portanto, claramente insuficientes para que o país retome o desenvolvimento e volte a realizar o “catch-up”.

A cultura dos juros altos

Além de rentistas e financistas defenderem juros altos e estes serem necessários para atrair capitais que financiem um déficit na conta corrente que não deveria existir, há uma causa subjacente para os juros serem altos: a cultura de juros altos, a acomodação de todos com os juros altos, que decorre do poder estrutural do capital e de um hábito cultural existente há muitos anos.

Duas indicações desse fato. Em 1964, já no quadro do regime militar, garantiu-se para as cadernetas de poupança, além da correção monetária, uma taxa de juros real de 6% ao ano. Em 1988, a nova Constituição limitou a 12% a taxa de juros real. Um limite muito alto, mas foi tanta a pressão do capital contra esse dispositivo que o STF decidiu depender de lei complementar do sistema financeiro internacional. Assim, a Constituição se tornou letra-morta nesse ponto, enquanto o Congresso não se move para discutir a lei necessária.

A falta de poupança pública e o investimento público

Voltando à comparação entre os anos 1970 (a última década em que o crescimento foi satisfatório no Brasil) e o presente, foram os investimentos do setor público que mais sofreram na virada dos anos 1970 para os anos 1980. A poupança pública que girava em torno de 4% do PIB caiu de repente para -2%, uma diferença de seis pontos percentuais.

Dois fatores foram determinantes da queda da poupança pública e do investimento público: a crise da dívida externa e a crise fiscal do Estado, que estudei bastante naquela época. Pergunto agora: seria possível o Estado voltar a realizar uma poupança pública e recuperar pelo menos uma parte daqueles seis pontos percentuais? Isto não parece provável. O Brasil continua com uma poupança pública negativa e a possibilidade de voltar a ter uma poupança pública positiva parece impossível.

Para aumentar a poupança pública, a maneira mais óbvia seria aumentar impostos para, assim, compensar o excesso de juros que são pagos aos rentistas locais e aos do Norte Global. Como vimos que esse excesso é de 3% do PIB, a carga tributária em relação ao PIB deveria aumentar na mesma proporção, mas ninguém quer pagar mais impostos.

A solução dada por rentistas e financistas ou, mais amplamente pelos, neoliberais é reduzir as despesas do Estado exceto os juros. Vimos que os investimentos públicos já foram reduzidos ao mínimo. Quanto às despesas sociais, é impossível reduzi-las. Seria, sim, possível reduzir os penduricalhos que a burocracia pública logra incluir em seus salários. O atual governo vem tentando fazer alguma coisa em relação a esse problema.

Seria também possível reduzir os incríveis e absurdos subsídios e isenções de impostos, como vem tentando o atual ministro da Fazenda, mas além de ter de neutralizar o lobby dos interessados nos subsídios e nas isenções, o Ministério da Fazenda tem que convencer muitos dos próprios membros do governo, que se julgam representantes dos interesses de suas áreas, e o próprio presidente da República que deve ser reeleito. Nessa área, como na dos juros, há bilhões a ser economizados, mas os interesses contrários são poderosos.

Demitir funcionários? No plano federal, não há excesso de servidores públicos. Nos governos estaduais e municipais, o excesso deve ser pequeno e o problema precisa ser enfrentado, mas não fará grande diferença. Onde faria uma grande diferença seria a redução da despesa com juros, que se obteria com a baixa da taxa para um nível civilizado e perfeitamente compatível com o controle da inflação. Mas quem será capaz de dobrar os rentistas e os financistas?

Assim, sem poder reduzir significativamente as despesas e sem conseguir aumentar os impostos para financiar essas despesas, o Estado não consegue realizar a poupança pública que seria necessária para financiar os investimentos públicos, que compensariam o não aumento do investimento do setor privado. Na verdade, o país não consegue zerar seu déficit público, que lhe permitiria realizar alguma poupança pública, a qual permanece negativa.

Os rentistas e financistas, porém, estão satisfeitos, porque não querem que o Estado invista —o que eles denominam “estatização”. Os rentistas e financistas (o “mercado financeiro”) querem que o Estado realize o superávit primário, uma métrica que lhes agrada porque exclui (esconde) os juros e, não obstante, garante que a dívida pública em relação ao PIB não aumente. Mas mesmo esse superávit o governo tem grande dificuldade de conseguir.

O círculo vicioso se fecha

Em consequência de tudo isso, o Brasil está preso no círculo vicioso da quase estagnação. Um círculo que tem alguma semelhança com o fluxo secular de Schumpeter, definido em 1911. Nesse fluxo circular, que decorre da lógica da teoria econômica neoclássica ou ortodoxa e do seu ideal de concorrência perfeita, não há lucros (existe apenas o lucro normal, igual à taxa de juros), os investimentos são iguais à depreciação efetivamente ocorrida e não há crescimento.

Já no caso do círculo vicioso da quase estagnação brasileira, há lucros, mas são baixos para a indústria de transformação; há investimentos e há crescimento porque setores do agronegócio, da indústria e o setor de serviços investem, mas esses são poucos, insuficientes para que o país saia da quase estagnação em que está mergulhado desde os anos 1980.

Por outro lado, o Estado não tem recursos para complementar o setor privado. Nos anos 1970, investia cerca de 8% do PIB. Hoje, investe apenas cerca de 2%. Não consegue nem sequer financiar os investimentos públicos em infraestrutura que são necessários para o país crescer. A solução proposta pela ortodoxia liberal é privatizar. Os governos vêm seguindo essa trilha, mas os resultados são parcos. O apetite e as possibilidades do setor privado são restritos.

Entretanto, alguns investimentos em infraestrutura, cujos lucros são certos, como nas concessões de rodovias, atraem muitos os rentistas e financistas e são relativamente necessários. O governo Lula, portanto, avança nas concessões por falta de alternativa.

Já outros investimentos muito necessários em infraestrutura não atraem o setor privado, a não ser que o Estado subsidie seus investimentos (parcerias públicas privadas). A potencialidade dessas parcerias, porém, é limitada porque envolve gastos do Estado, o qual é mantido no nível de subsistência.

Há 20 anos, afirmo que a economia brasileira está presa na armadilha dos juros altos e do câmbio apreciado. Hoje, apoiado na teoria novo-desenvolvimentista, posso acrescentar que o Brasil está preso ao círculo vicioso da quase estagnação. Um círculo que se fecha com a impotência do Estado de rompê-la.

Ao apresentar o Brasil, sua economia e sua política de uma maneira nova, na qual podemos ver como os diversos atores tratam de manter a economia brasileira presa a esse círculo, sou obrigado a me mostrar pessimista quanto ao futuro do Brasil e do seu povo.

 

Volta da ultradireita é tragédia contratada, por Maria Hermínia Tavares

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Trump do segundo mandato é muito mais radical do que o do primeiro

Maria Hermínia Tavares, Professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, é pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap)

Folha de São Paula, 10/04/2025

Notável pensador alemão do século 19 fraseou que, na história, a tragédia só se repetia como farsa. No caso dos governos populistas de extrema direita dá-se o oposto: seu primeiro mandato é farsa; o segundo, tragédia.

Donald Trump é prova acabada disso. Desde que voltou à Casa Branca tem produzido destruição inigualável. Na mesma semana em que a imposição de tarifas arbitrárias a uma lista enorme de países virou de ponta-cabeça o sistema de comércio mundial, agentes do Doge (sigla em inglês para Departamento de Eficiência Governamental), comandado por Elon Musk, invadiram o Woodrow Wilson Center.

Seu diretor foi forçado a renunciar e no seu lugar foi instalada uma jovem líder da torcida organizada de Trump; chefias e altos executivos foram demitidos; seus funcionários federais colocados em disponibilidade; o reputado programa internacional de pesquisadores visitantes, desativado.

O Wilson Center, como é conhecido, foi criado pelo Congresso dos EUA —e, até a semana passada, era o mais respeitado think thank de política exterior do país. O ataque ao centro de excelência é mais um episódio da investida trumpista para garrotear as instituições que produzem conhecimento, ou financiam a sua produção, ou promovem o debate livre de ideias —universidades, agências públicas de financiamento da ciência, além dos citados think thanks.

Não há dúvida alguma: o Trump do segundo mandato é muito mais radical do que o do primeiro; tem mais clareza sobre os inimigos que quer destruir; forjou instrumentos mais afiados e cevou novos apoios para fazê-lo. E, até agora, seus desígnios não tiveram de se haver com a resistência das instituições democráticas que poderiam freá-los.

A volta da extrema direita a Washington põe em dúvida teorias caras aos cientistas políticos. A primeira sustenta que a participação no jogo democrático tende a moderar partidos e líderes extremados. A segunda supõe que instituições políticas sólidas —e robustecidas com o passar do tempo— criam freios e contrapesos eficazes à ambição de poder dos governantes. Nada disso parece estar acontecendo nos EUA. Até agora, diria um otimista.

São poucos os casos de populistas de extrema direita bem-sucedidos a ponto de se reeleger ou voltar ao governo em pouco tempo. Assim, são escassos os casos que permitam aceitar ou rejeitar aquelas teorias. Por via das dúvidas, é melhor tentar evitar que o retorno ocorra. Para tanto, levem-se a sério tanto as propostas extremistas como a intenção dos proponentes de cumpri-las.

No Brasil, as instituições democráticas formaram barreira eficaz aos intentos golpistas de Jair Bolsonaro. Mas convém não apostar só nelas. Isolar politicamente o ex-capitão é medida necessária —e urgente— nesta quadra que antecede seu julgamento por crimes contra o Estado de Direito e quando, segundo Datafolha, 52% dos brasileiros acham que deveria ser preso por cometê-los.

Eis porque chega a assustar que no último domingo (6), na avenida Paulista, todos os pré-candidatos da direita tenham decidido, pouco importa se por convicção ou cálculo eleitoral, curvar-se à liderança de quem tem Trump como ídolo e o autoritarismo como propósito.

Por que o capitalismo precisa da guerra? por Andreo Zhok

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Andreo Zhok – A Terra é Redonda – 09/04/2025

 A essência do capitalismo consiste em um único ponto. É um sistema social idealmente acéfalo, desprovido de uma liderança política, guiado por um único imperativo categórico: o aumento do capital a cada ciclo produtivo

A essência do capitalismo

A ligação entre capitalismo e guerra não é acidental, mas sim estrutural e inevitável. Apesar da literatura de autopromoção do liberalismo ter sempre tentado argumentar que o capitalismo, traduzido como “doce comércio”, seria uma via preferencial para a pacificação internacional, na realidade isso sempre foi uma evidente falsidade. E isso não porque o comércio não possa ser um caminho para a paz – ele pode ser –, mas porque a essência do capitalismo não é o comércio, que é apenas um de seus possíveis aspectos.

A essência do capitalismo consiste em um único ponto. Trata-se de um sistema social idealmente acéfalo, ou seja, idealmente desprovido de uma liderança política, mas guiado por um único imperativo categórico: o aumento do capital a cada ciclo produtivo. O núcleo ideal do capitalismo é a necessidade de que o capital gere retorno, quer dizer, que aumente continuamente. A condução desse processo não é atribuída à política – muito menos à política democrática –, mas sim aos detentores de capital, os sujeitos que personificam as exigências do sistema financeiro.

É importante compreender que o ponto crucial para o sistema capitalista não é que “haja cada vez mais capital” em termos objetivos, isto é, que a quantidade total de dinheiro aumente continuamente; em determinados momentos, essa quantidade pode até se contrair. O ponto essencial é que deve existir sempre a perspectiva geral de um aumento do capital disponível. Na ausência dessa perspectiva – por exemplo, em uma condição prolongada de “estado estacionário” da economia –, o capitalismo deixa de existir como sistema social, pois perde-se o “piloto automático” representado pela busca constante por oportunidades de investimento.

O ponto deve ser entendido estritamente em termos de poder. No capitalismo, uma determinada classe detém o poder por ser responsável por conduzir o capital em direção ao crescimento. Se a perspectiva de crescimento desaparece, o resultado é tecnicamente revolucionário, no sentido específico de que a classe que detém o poder precisa cedê-lo a outros – por exemplo, a uma liderança política movida por princípios ou ideais, como ocorreu em maior ou menor medida ao longo da história (perspectivas religiosas, nacionais, visões históricas). O capitalismo é o primeiro e único sistema de vida na história humana que não busca encarnar nenhum ideal e não tende a seguir nenhuma direção específica. Isso abriria uma discussão interessante sobre a relação entre capitalismo e niilismo, mas o objetivo aqui é focar em outro aspecto.

A “queda tendencial da taxa de lucro”

Na natureza do sistema, está implícita uma tendência que foi analisada pela primeira vez por Karl Marx sob o nome de “queda tendencial da taxa de lucro”. Trata-se de um processo intuitivo. Por um lado, como já vimos, o sistema exige a busca constante pelo crescimento, transformando o capital em investimento que gera mais capital. Por outro lado, a competição interna ao sistema tende a saturar todas as opções disponíveis para aumentar o capital, consumindo-as. Quanto mais eficiente é a competição, mais rápido ocorre a saturação dos espaços onde é possível obter margem de lucro. Isso significa que, com o passar do tempo, o sistema capitalista gera estruturalmente um problema de sobrevivência para si mesmo.

O capital disponível cresce constantemente e busca aplicações “produtivas”, ou seja, capazes de gerar retorno. O crescimento do capital está vinculado ao aumento das perspectivas de crescimento futuro desse mesmo capital, em um mecanismo que se autoalimenta. É com base nessa dinâmica que surgem situações como a anterior à crise do subprime, quando a capitalização nos mercados financeiros globais equivalia a 14 vezes o PIB mundial. Esse mecanismo produz a constante tendência a “bolhas especulativa”. E esse mesmo mecanismo produz a tendência às chamadas “crises de superprodução”, termo comum, mas inadequado, pois sugere excesso de bens disponíveis, quando na realidade o problema é o descompasso entre produção e capacidade de consumo.

De modo constante e inevitável, o sistema capitalista enfrenta crises geradas por essa tendência: massas crescentes de capital pressionam para serem aproveitadas produtivamente, em um processo exponencial, enquanto as capacidades de crescimento permanecem limitadas. Para que uma crise se manifeste, não é necessário que o crescimento pare — basta que ele não corresponda à demanda crescente por margens de lucro. Quando isso ocorre, o capital — quer dizer, seus detentores ou gestores — começa a se agitar progressivamente, pois sua própria sobrevivência como detentor de poder é colocada em risco.

A busca frenética por soluções

Quando a compressão das margens de lucro se aproxima, inicia-se uma busca frenética por soluções. Na versão autopromocional do capitalismo, a solução principal seria a “revolução tecnológica”, ou seja, a criação de uma nova perspectiva promissora de geração de lucro por meio de inovação tecnológica. A tecnologia realmente é um fator que aumenta a produção e a produtividade. Se aumenta também as margens de lucro é uma questão mais complexa, pois não basta haver mais produtos disponíveis para que o capital cresça, mas é necessário que haja mais produtos comprados.

Isso significa que as margens podem realmente crescer em presença de uma revolução tecnológica apenas se o aumento da produtividade também se refletir em um aumento geral do poder de compra (salários), o que não é algo garantido. Contudo, mesmo quando isso ocorre, as “revoluções tecnológicas” capazes de aumentar a produtividade e as margens não são tão comuns. Muitas vezes, aquilo que é apresentado como uma “revolução tecnológica” é amplamente superestimado em sua capacidade de gerar riqueza e acaba sendo apenas um redirecionamento de investimentos que gera uma bolha especulativa.

Enquanto se aguardam eventuais revoluções tecnológicas que reabram a possibilidade de ampliação das margens, a segunda direção na qual se busca uma solução para recuperar margens de lucro é a pressão sobre a força de trabalho. Essa pressão pode se manifestar por meio da compressão salarial e de muitas outras formas que ampliam as áreas de exploração do trabalho. A redução direta dos salários nominais é uma medida adotada apenas em casos excepcionais; mais frequentes e fáceis de implementar são práticas como o não reajuste salarial para compensar a inflação, a “flexibilização” do trabalho para reduzir os “tempos mortos”, o “endurecimento” das condições de trabalho, a demissão de trabalhadores, entre outras.

Esse horizonte de pressão apresenta dois problemas. Por um lado, gera insatisfação, com a possibilidade de que isso resulte em protestos, revoltas etc. Por outro lado, a pressão sobre a força de trabalho, especialmente na dimensão salarial, reduz o poder de compra médio, correndo, assim, o risco de desencadear uma espiral recessiva (menores vendas, menores lucros, maior pressão sobre a massa salarial para recuperar margens, consequente redução nas vendas de produtos, e assim por diante).

Uma forma colateral de conquista de margens ocorre por meio das “racionalizações” do sistema produtivo, que conceitualmente se situam em um meio-termo entre inovação tecnológica e exploração da força de trabalho. As “racionalizações” são reorganizações que, por assim dizer, eliminam as relativas “ineficiências” do sistema. Essa dimensão reorganizativa, na prática, quase sempre resulta em um agravamento das condições de trabalho, que se tornam cada vez mais dependentes das exigências impessoais dos mecanismos do capital.

Um último horizonte de soluções surge quando na equação entra a esfera do comércio exterior. Embora, em princípio, os pontos anteriores esgotem os locais nos quais as margens de lucro podem crescer, ao considerar a esfera externa, as mesmas oportunidades de lucro se multiplicam devido às diferenças entre os países. Em vez de um incremento tecnológico interno, pode-se ter acesso a um incremento tecnológico externo por meio do comércio. Em vez de uma compressão da força de trabalho interna, pode-se obter acesso a mão de obra estrangeira de baixo custo, entre outras possibilidades.

O declínio do lucro

A fase atual da breve e violenta história do capitalismo que estamos vivendo é caracterizada pelo progressivo desaparecimento de todas as principais perspectivas de lucro. Sempre haverá espaço para “revoluções tecnológicas”, mas não com a frequência que possa estar por trás das massas infinitamente crescentes de capital que pressionam para serem utilizadas de forma lucrativa. Sempre haverá espaço para novas compressões sobre a força de trabalho, mas o risco de gerar condições de revolta ou reduzir o poder de compra geral impõe limites claros.

Quanto ao processo de globalização, ele atingiu seus limites e iniciou um movimento de relativo recuo; a possibilidade de encontrar oportunidades externas, completamente diferentes e mais vantajosas do que as internas, foi drasticamente reduzida (deve-se considerar que, quanto mais as cadeias de produção se expandem, mais frágeis elas se tornam, aumentando, também, os custos adicionais de transação.

A crise do subprime (2007-2008) marcou um momento decisivo, levando todo o sistema financeiro mundial à beira do colapso. Para sair dessa crise, foram utilizadas duas alavancas. Por um lado, houve uma pressão elevada sobre a esfera do trabalho, resultando na perda de poder de compra e no agravamento das condições de trabalho em nível global. Por outro lado, houve um aumento das dívidas públicas — que, por sua vez, representam uma imposição indireta sobre os cidadãos e a força de trabalho, sendo apresentadas como um ônus a ser compensado.

A crise da Covid (2020-2021) marcou um segundo momento de virada, com características semelhantes à crise do subprime. Também nesse caso, os resultados da crise foram uma perda média do poder econômico das classes trabalhadoras e um aumento das dívidas públicas.

Tanto na crise do subprime quanto na crise da Covid, o sistema aceitou uma redução temporária das capitalizações totais para reabrir novas áreas de lucro. No conjunto, o sistema financeiro saiu de ambas as crises em uma posição comparativamente mais forte em relação à população que vive de seu trabalho. O aumento das dívidas públicas, na prática, representa uma transferência de dinheiro da disponibilidade da cidadania média para os rendimentos dos detentores de capital.

É importante notar que, para neutralizar os espaços de contestação e oposição entre trabalho e capital, o capitalismo contemporâneo tem se empenhado com todas as suas forças para criar uma coparticipação em certos estratos da população, que são relativamente abastados, mas estão longe de exercer qualquer influência no plano do poder capitalista. Forçando as pessoas a adquirirem aposentadorias privadas, apólices de seguro rentáveis e incentivando-as a investir suas economias em algum tipo de título público, busca-se (e consegue-se) criar uma camada da população que se sente “parte interessada” no destino do grande capital. Esses estratos da população funcionam como uma “zona-tampão”, reduzindo a disposição média de se revoltar contra os mecanismos do capital.

A situação atual, especialmente no mundo ocidental, é a seguinte: o grande capital necessita, para sobreviver, acessar continuamente novas áreas de lucro. As populações dos países ocidentais têm visto suas condições de vida serem progressivamente deterioradas, tanto em termos de poder de compra quanto em sua capacidade de autodeterminação, ficando cada vez mais vinculadas a uma multiplicidade de restrições financeiras, trabalhistas e legislativas, todas justificadas pelas necessidades de “racionalização” do sistema.

As possibilidades de encontrar novas áreas de lucro no exterior foram drasticamente reduzidas devido ao alcance dos limites do processo de globalização. Essa é a realidade que os grandes detentores de capital enfrentam hoje. Em sua perspectiva, é urgente encontrar uma solução. Mas qual seria essa solução?

“Uma palavra assustadora e fascinante: guerra!”

Quando, no cânone ocidental, são apresentadas as guerras mundiais – os dois maiores eventos de destruição bélica da história humana –, elas geralmente são associadas a culpados bem definidos: o “nacionalismo” (especialmente o alemão) na Primeira Guerra Mundial e as “ditaduras” na Segunda Guerra Mundial. Raramente se reflete sobre o fato de que esses eventos têm como epicentro o ponto mais avançado de desenvolvimento do capitalismo mundial e que a Primeira Guerra Mundial ocorre no auge do primeiro processo de “globalização capitalista” da história.

Sem entrar aqui em uma análise detalhada das origens da Primeira Guerra Mundial, é útil lembrar que a fase que a antecede e prepara pode ser perfeitamente enquadrada em uma moldura que somos capazes de reconhecer. Por volta de 1872, inicia-se uma fase de estagnação na economia europeia. Essa fase impulsiona decisivamente a busca por recursos e força de trabalho no exterior, principalmente nas formas de imperialismo e colonialismo.

Todos os principais momentos de crise internacional que antecedem a Primeira Guerra Mundial, como o incidente de Fachoda (1898), são tensões decorrentes da disputa internacional pela apropriação de áreas de exploração. A primeira grande iniciativa de rearmamento na Alemanha guilhermina ocorre com o objetivo de criar uma frota capaz de contestar o domínio marítimo (que é domínio comercial) da Inglaterra.

Mas por que a guerra deveria representar um horizonte de solução para as crises geradas pelo capital? A resposta, neste ponto, é bastante simples. A guerra representa uma solução ideal para as crises de “queda da taxa de lucro” sob quatro aspectos principais.

Em primeiro lugar, a guerra surge como uma força não negociável para investimentos massivos, capazes de revitalizar uma indústria enfraquecida. Grandes encomendas públicas, justificadas pelo “sagrado dever da defesa”, conseguem extrair os últimos recursos disponíveis no setor público e direcioná-los para encomendas privadas.

Em segundo lugar, a guerra representa uma grande destruição de recursos materiais, infraestruturas e vidas humanas. Tudo isso, que do ponto de vista do senso comum humano é uma tragédia, do ponto de vista das perspectivas de investimento é uma oportunidade magnífica. De fato, trata-se de um evento que “recarrega o relógio da história econômica”, eliminando a saturação das possibilidades de investimento que ameaça a própria existência do capitalismo.

Após uma grande destruição, abrem-se vastas oportunidades para investimentos fáceis, que não exigem nenhuma inovação tecnológica: estradas, ferrovias, sistemas de abastecimento de água, habitações e todo o setor de serviços associado. Não é por acaso que, há muito tempo, enquanto uma guerra ainda está em curso – do Iraque à Ucrânia –, já se observa uma corrida preliminar para garantir contratos para a futura reconstrução. A maior destruição de recursos de todos os tempos – a Segunda Guerra Mundial – foi seguida pelo maior boom econômico desde a Revolução Industrial.

Em terceiro lugar, os grandes detentores de capital, especialmente o capital financeiro, consolidam comparativamente seu poder sobre o restante da sociedade. O dinheiro, por ter uma natureza virtual, permanece intocado por qualquer grande destruição material (desde que não seja um aniquilamento planetário).

Em quarto e último lugar, a guerra congela e interrompe todos os processos potenciais de revolta e todas as manifestações de descontentamento das classes mais baixas. A guerra é o mecanismo definitivo, o mais poderoso de todos, para “disciplinar as massas”, colocando-as em uma condição de submissão da qual não podem escapar, sob pena de serem identificadas como cúmplices do “inimigo”.

Por todas essas razões, o horizonte bélico, embora atualmente distante dos sentimentos predominantes nas populações europeias, é uma perspectiva que deve ser levada extremamente a sério. Quando hoje alguns afirmam – com razão – que não existem as bases culturais e antropológicas para que a sociedade europeia se predisponha seriamente à guerra, gosto de lembrar o momento em que Benito Mussolini, captando os humores das massas, passou em poucos anos do pacifismo socialista ao famoso encerramento de seu artigo no Il Popolo d’Italia, em 15 de novembro de 1914: “O grito é uma palavra que eu jamais teria pronunciado em tempos normais e que agora elevo forte, em alta voz, sem disfarces, hoje, com fé segura: uma palavra assustadora e fascinante: guerra!”.

*Andrea Zhok é professor de filosofia na Universidade de Milão. Autor, entre outros livros, de Critica della ragione liberale: Una

 

Crise Global

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A economia internacional vem passando, nos últimos dias, por momentos de grande apreensão e dificuldades, levando os governos nacionais a repensarem suas estratégias construídas anteriormente, empresas nacionais e organizações globais buscam a reestruturação de suas variadas atuações em seus mercados e os trabalhadores aguardam, assustados e ansiosos, o desenrolar das movimentações do mundo contemporâneo, que geram preocupações, medos e constrangimentos financeiros.

Neste momento, estamos nos aproximando rapidamente de uma grande crise global, cujos impactos são impossíveis de serem mensurados, afetando a estrutura do comércio internacional, impactando sobre todas as regiões do mundo, afetando governos nacionais, atores globais e gerando incertezas crescentes, que tendem a afugentar os investimentos produtivos e obrigando os Bancos Centrais a atuarem para impedir uma crise global, cujo potencial destrutivo é elevado para a economia mundial.

Na economia contemporânea, marcada pelo desenvolvimento tecnológico, crescimento da integração e da interdependência entre empresas e governos nacionais, é fundamental ter previsibilidade, credibilidade e confiança, onde os atores econômicos e produtivos constroem estratégias para garantir novos mercados e encarar os concorrentes, motivando fortes investimentos em inovação, em pesquisa científica e desenvolvimento de novos produtos, garantindo lucros em ascensão.

As políticas protecionistas adotadas pelo governo dos Estados Unidos têm impactos generalizados para todas as nações e para todos os setores produtivos. Como destacou a revista inglesa The Economist, as medidas adotadas pelo governo norte-americano aumentaram a alíquota comercial de 2% para 24%, algo impensável numa sociedade que sempre estimulou e propagandeou o livre comércio, o liberalismo e a redução das intervenções estatais nos setores produtivos.

Neste momento, percebemos que a adoção de medidas unilaterais por parte do governo norte-americano, políticas estas que impactam sobre as nações e empresas locais e estrangeiras, enterram toda a estrutura econômica e produtiva mundial inaugurada no pós segunda guerra mundial, quando foram criadas instituições mundiais, com regras comerciais e financeiras, com instrumentos de regulação e fiscalização, diante disso, os atores econômicos globais estão assustados com os ventos futuros e as medidas protecionistas que podem criar mais incertezas, volatilidades e constrangimentos variados.

Vivemos num momento de preocupações crescentes na economia internacional, as Bolsas globais apresentam grandes desvalorizações, ações de grandes conglomerados apresentam perdas históricas, setores inteiros vivem momentos de medos e desesperanças, que podem culminar no aumento do desemprego, degradação da renda agregada e perda de poder de compra dos trabalhadores e, ao mesmo tempo, mais injustiças, pobrezas e desigualdades, afinal, como aconteceu na última crise global, ocorrida em 2007/2008, os grandes capitalistas, agentes maiores da crise financeira, foram salvos com injeção de trilhões de dólares dos recursos governamentais, lembrando-os que os mesmos governos que alardeavam o neoliberalismo e a defesa contumaz da redução do papel do Estado na economia e, no clamor da crise financeira, adotaram práticas corruptas e  patrimonialistas para salvar seus apaniguados.

Neste instante, podemos estar às portas de uma crise global, cujos impactos financeiros são impossíveis de serem mensurados, empresas entrarão em bancarrota, desempregos tendem a aumentar, o medo e a desesperança devem crescer e os donos do poder, novamente, demandarão um cheque mais polpudo para evitar perdas financeiras homéricas e a conta, mais uma vez, sabemos quem vai arcar com o prejuízo de mais uma crise financeira global.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

 

Incerteza no comércio internacional, por Cecília Machado

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Com ou sem negociações de tarifas, maiores incertezas sobre o comércio internacional já trouxeram consequências adversas para a economia global

Cecília Machado, Economista-chefe do Banco BoCom BBM, é doutora em economia pela Universidade Columbia

Folha de São Paulo, 08/04/2025

Há pouco menos de uma década, o referendo do brexit –que pôs fim a uma parceria comercial de muitos anos do Reino Unido com demais países da Europa– e as tarifas impostas sobre a China no primeiro governo de Donald Trump sinalizaram uma importante reversão no apoio ao livre comércio. Recentemente, o segundo governo Trump confirmou essa tendência, impondo tarifas de reciprocidade de pelo menos 10% a todos os países.

Por mais que os prejuízos da restrição ao comércio sejam todos bem conhecidos –incluindo redução da inovação, dos ganhos com economias de escala na produção, da competição de mercado, do acesso a novos produtos e da ampliação das possibilidades de consumo–, mudanças tão drásticas como as que estão sendo vistas trazem consequências econômicas adicionais, que vão além da restrição ao comércio em si.

Desde 2016, a incerteza com relação ao comércio global aumentou substancialmente, conforme revelam os indicadores construídos com base em notícias de jornais e na cobertura da mídia sobre o assunto (Caldara et al., 2020). O índice, gerado com base em textos que possuem palavras como “risco”, “ameaça” e “incerteza” relacionados a termos como “tarifas”, “impostos de importação” e “barreiras alfandegárias”, está fortemente associado a menção dessa incerteza na divulgação de resultados das empresas, mostrando aderência do indicador ao contexto econômico.

Quando as empresas tomam decisões de investimentos que são irreversíveis, incertezas sobre a economia, sobre o ambiente de negócios ou sobre a demanda por seus produtos as fazem adiar essas decisões. Há valor na espera. Uma incerteza elevada cria fortes incentivos para que as empresas esperem para ampliar seus negócios, realizar novas contratações e fazer inúmeras outras grandes decisões de gastos cuja reversão, caso o cenário se revele adverso, se mostre custosa.

É nesse sentido que aumentos no índice de incerteza de política comercial influenciam a decisão das firmas que envolvem custos elevados e irrecuperáveis. Tais efeitos foram estudados na guerra comercial de 2018, contexto no qual o aumento da incerteza resultou em queda de investimentos e em menor crescimento econômico.

Após a recente divulgação das novas políticas comerciais do segundo governo Trump, o indicador de incerteza de política comercial alcançou o maior valor da série histórica, em patamar que chega a ser quase quatro vezes maior ao máximo observado na guerra comercial de 2018. Esta, que é a mudança mais expressiva da política comercial americana das últimas décadas, deixa no ar ainda mais dúvidas sobre o futuro do comércio internacional. Os países atingidos pelas novas tarifas irão retaliar? Os Estados Unidos recuarão? Ou aplicarão medidas protecionistas ainda mais extremas?

Com ou sem negociações sobre as tarifas, o fato é que o futuro se tornou mais incerto. São empresas investindo menos, mas também pessoas mais cautelosas, consumindo menos e poupando mais.

Reconquistar a confiança em momentos de mudanças tão radicais pode se mostrar extremamente difícil, especialmente quando as mudanças de política econômica não se limitam apenas ao comércio e abarcam também mudanças regulatórias, nas finanças públicas, nas políticas de imigração.

A incerteza deixa todos em modo de espera, trazendo menos dinamismo e menos crescimento para a economia, o contrário do que se pretendia.

 

Tarifas são como um retrocesso tecnológico, por Bernardo Guimarães

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Elas visam substituir cadeias de produção produtivas por um processo menos eficiente

Bernardo Guimarães, Doutor em economia por Yale, foi professor da London School of Economics (2004-2010) e é professor titular da FGV EESP

Folha de São Paulo, 09/04/2025

Na semana passada, o rei da confusão, Donald Trump, fez história ao anunciar sua insana política comercial com sua patética tabela de tarifas.

Para entender por que essas tarifas são um tiro no pé e uma facada no mundo, pense em como é feita uma simples caneta. Ela custa 12 segundos de trabalho de quem recebe o salário médio nos Estados Unidos. Doze segundos! Esse valor paga todo o processo de produzir a caneta, desde a extração dos minerais usados até a montagem do produto, incluindo o custo de usar as máquinas e equipamentos.

A caneta custa tão pouco porque o processo de produção é dividido em várias etapas, executadas por empresas diferentes. Da extração da matéria-prima à montagem, incluindo a produção dos equipamentos, o processo vai incluir dezenas de países.

Crucialmente, esse processo de produção não foi arquitetado por um planejador: cada empresa foi buscando fornecedores mais baratos, encontrando maneiras mais eficientes de produzir, e assim, com o tempo, chegamos a uma altíssima produtividade, que faz a caneta custar 12 segundos do trabalho de um norte-americano médio.

As tarifas vêm para matar esse processo produtivo. Trump quer que a produção de bens consumidos nos Estados Unidos aconteça no país. Esse é o maior erro.

Substituir cadeias de produção altamente produtivas, escolhidas pela mão do mercado, por um processo que não aproveitará as vantagens comparativas de cada país tem efeito similar ao de um retrocesso tecnológico. Caem a produção e a renda.

O argumento usual para proteger a indústria é que essas perdas são compensadas por algum aprendizado que estimulará uma indústria nascente e gerará ganhos futuros. Mesmo quem é simpático a esse argumento deve concordar que os Estados Unidos não precisam aprender a fazer meias e bicicletas.

Os Estados Unidos podem produzir camisetas, telefones e carros sem negociar com o exterior. Só que os salários seriam muito menores ou os preços dos bens seriam muito maiores (dá no mesmo).

E para quê?

O segundo problema, como explicou a coluna de Cecília Machado desta semana, é que ninguém vai investir para montar esse novo processo de produção 100% americano se ninguém sabe como serão as tarifas no ano que vem.

A parte patética é que as tarifas foram calculadas para punir países com os quais os Estados Unidos têm déficit comercial mais alto. Isso faz tanto sentido quanto o dono da pizzaria querer punir o produtor de tomates porque compra mais tomates do que vende pizzas para ele. A conclusão inescapável é que Trump tem uma visão mercantilista extremamente rudimentar da economia.

Em retrospectiva, é fácil ver que mercados foram excessivamente otimistas ou benevolentes com Trump. Talvez ainda estejam sendo.

É ridícula a crença de que Trump impôs essas tarifas para forçar outros países a eliminarem barreiras comerciais. Quem entende os benefícios do comércio internacional jamais tomaria essa medida, por entender o enorme custo que as tarifas impõem à própria economia americana.

Agora o mundo quer saber se Trump vai voltar atrás. O problema é que Trump não vai dizer que errou, era brincadeira. Ele precisa cantar vitória. A resposta da China –impor mais tarifas aos Estados Unidos– atrapalha demais esse caminho.

 

As tarifas de Trump vão prejudicar o mundo, por Martin Wolf

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Os déficits comerciais permanecerão praticamente inalterados, e o mundo apenas acabará mais pobre

Martin Wolf, Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

Folha de São Paulo/ Financial Times – 08/04/2025

Agora sabemos qual economia é a maior ameaça aos Estados Unidos depois da China: Lesoto. Atualmente, a China tem uma tarifa combinada de 54% sob o novo plano de Donald Trump. Mas, aparentemente, Lesoto merece uma tarifa “recíproca” de 50% sobre suas exportações para os EUA, logo à frente dos 49% sobre o Camboja e 46% sobre o Vietnã, seguidos por 32% sobre a Indonésia e Taiwan, 26% sobre a Índia e 20% sobre a UE. O Reino Unido escapa com 10%.

O que talvez seja mais extraordinário sobre a derrubada de quase um século de política comercial é que ninguém, aparentemente, informou ao presidente que um procedimento que coloca Lesoto no degrau mais alto faria os EUA parecerem ridículos. Mas fez —e fez isso porque esse procedimento era ridículo.

Não houve uma análise sutil de todas aquelas supostas barreiras tarifárias e não tarifárias das quais, diz Peter Navarro, ecoando seu chefe, os EUA explorados têm sofrido tão terrivelmente. Não, foi muito mais simples e estúpido. As tarifas propostas são proporcionais ao déficit comercial bilateral dividido pelas importações bilaterais.

A suposição implícita é que, em um mundo justo, o comércio se equilibraria com cada parceiro individual. Isso é uma completa loucura. No entanto, agora se tornou a base intelectual da política comercial do país mais poderoso do mundo —infelizmente, pobre coitado, aparentemente vítima de uma conspiração comercial global.

Não é apenas loucura. É perversidade. Pense na história do envolvimento dos EUA no Vietnã. No entanto, agora, os EUA decidiram tentar interromper seu desenvolvimento econômico. O Vietnã não está sozinho em buscar explorar os benefícios da abertura. De fato, a política comercial convergiu para o liberalismo nas economias emergentes de forma bastante ampla. Eles estavam respondendo a uma promessa que os EUA agora retiraram.

Isso não é nem mesmo todo o trabalho de Trump. Canadá e México ainda são vítimas de suas “tarifas de fentanil”. Há uma tarifa de 25% sobre automóveis e as tarifas sobre aço e alumínio também foram aumentadas.

No entanto, as tarifas não fecharão os déficits comerciais. Nos anos 1970, trabalhei na economia indiana, então uma das economias mais protegidas do mundo. Ela tinha grandes superávits comerciais? Não. Sim, tinha uma proporção pequena de importações em relação ao PIB. Mas tinha uma renda ainda menor de exportações. Isso se devia ao impacto adverso da proteção na competitividade das exportações.

Isso agora acontecerá com os EUA: as importações encolherão, mas as exportações também. Os déficits, determinados pela renda e pelo gasto, permanecerão praticamente inalterados. O mundo apenas acabará mais pobre. Como argumenta o Instituto Kiel da Alemanha, os maiores efeitos negativos provavelmente recairão sobre os EUA: a proteção geralmente [e um tiro no próprio pé.

As pessoas que fundaram o sistema de comércio global nas décadas de 1930 e 1940 experimentaram os resultados do protecionismo empobrecedor nas décadas de 1920 e 1930. O sistema que criaram foi baseado, por boas razões, nos princípios de não discriminação, liberalização através de negociações recíprocas, vinculação de tarifas e adjudicação imparcial de qualquer uso das cláusulas de escape no sistema.

Tudo isso foi projetado para criar um regime comercial previsível, transparente e liberal. Ao longo de oito rodadas de negociações concluídas, o resultado se tornou uma economia mundial aberta e dinâmica. Isso foi um produto da diplomacia dos EUA. Trump não apenas trouxe a proteção dos EUA a níveis não vistos em um século, mas destruiu tudo o que seus predecessores buscaram alcançar. Isso é um ato de guerra contra o mundo inteiro.

O debate sobre se devemos levar Trump a sério acabou. Ele agora aprendeu a ser o tirano que sempre desejou ser, isso levou um tempo. Mas, com a ajuda que recebeu, ele chegou lá. Sua administração está engajada em um ataque abrangente à república americana e à ordem global que ela criou. Sob ataque doméstico estão o Estado, o Estado de direito, o papel do Legislativo, o papel dos tribunais, o compromisso com a ciência e a independência das universidades.

Todos esses eram os pilares sobre os quais a liberdade e a prosperidade dos EUA repousavam. Agora, ele está destruindo a ordem internacional liberal. Em breve, presumo,  Trump estará invadindo países enquanto prossegue para restaurar a era dos impérios.

A aplicação de todas essas tarifas é um símbolo perfeito do que Trump representa. Ele apelou para uma “emergência” inexistente, permitida por um Legislativo tolo, para impor um aumento de impostos altamente regressivo que pesará particularmente sobre sua própria base política, em parte para financiar uma extensão que estoura o orçamento de seu próprio corte de impostos altamente regressivo de 2017.

Parece inevitável que essas tarifas, além da incerteza criada pelo novo ambiente político não ancorado e, portanto, imprevisível, prejudicarão o mundo e os EUA tanto agora quanto a longo prazo. Nossas economias estão muito mais abertas do que nunca.

Aumentos enormes e repentinos na proteção terão efeitos econômicos correspondentes maiores do que antes. Os mercados de ações estão certamente certos ao supor que uma boa parte do estoque de capital produtivo de hoje se tornará sucata: a contínua turbulência do mercado é provável.

Isso oferece um tipo perverso de esperança. A tentativa de Trump e seus associados de minar a república levaria tempo. Agora é mais provável que ele fique sem tempo. Imagine que, como resultado de toda essa turbulência, a economia realmente vacile e, assim, os republicanos sejam derrotados nas eleições de meio de mandato. Isso tornaria o projeto Maga muito mais difícil de realizar. Quem sabe? As instituições dos EUA podem começar a mostrar um pouco de coragem. Acima de tudo, a próxima eleição presidencial pode realmente ser justa.

Enquanto Maga dominar a direita americana, o potencial dos EUA para um comportamento imprevisível, irracional e pernicioso permanecerá. Isso é, infelizmente, um grande presente para a China. Mas quanto pior ficar agora, mais provável é que Maga seja um interlúdio, não o destino da América. Isso é um consolo e uma esperança.

 

Como as tarifas de Trump jogam a favor da China, por Thomas Friedman

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Em vez de fazer uma batalha dos EUA contra o mundo todo, Trump deveria ter unido todas as democracias industriais, lideradas por Washington, contra Pequim

Thomas Friedman, Editorialista de política internacional do New York Times desde 1995, foi ganhador do prêmio Pulitzer em três oportunidades

Folha de São Paulo/The New York Times – 08/04/2025

Após duas viagens à China nos últimos quatro meses, tenho tentado dizer isso de todas as formas que posso: pessoal, vocês simplesmente não entendem.

A Covid teve efeitos terríveis na saúde humana e na mortalidade, mas também teve um efeito devastador na nossa capacidade de entender os chineses. Executivos americanos e europeus saíram da China em massa no início da pandemia. Muito, muito poucos deles voltaram depois. Eles confiaram seus negócios na China a gerentes locais. Enquanto estavam ausentes, Pequim deu um grande salto à frente na manufatura avançada que o mundo não tinha. Criou um motor de manufatura como talvez nunca foi visto na história.

A China já controla um terço de toda a manufatura global (em 2000, eram 6%) e, quer se fale de carros, robôs ou telefones, o que está saindo da China hoje não é apenas mais barato e rápido. É mais barato, mais rápido, melhor e mais inteligente — e tudo isso está prestes a ser dramaticamente potencializado pela corrida desenfreada de Pequim para colocar inteligência artificial em tudo o que fabrica.

Isso é produto de décadas de investimentos maciços do governo em educação, infraestrutura e pesquisa, por trás de muros de proteção — em uma sociedade onde as pessoas estão prontas para trabalhar das 9h às 21 horas sete dias por semana. Enquanto a China estava construindo isso, a maior nova indústria dos EUA era a polarização política e viciar seus filhos no TikTok e Instagram.

“Dados recentes do banco central da China mostram que bancos controlados pelo Estado emprestaram um adicional de US$ 1,9 trilhão a mutuários industriais nos últimos quatro anos. Nas periferias de cidades por toda a China, novas fábricas estão sendo construídas dia e noite, e fábricas existentes estão sendo atualizadas com robôs e automação. Os investimentos e avanços da China na manufatura estão produzindo uma onda de exportações que ameaça causar fechamentos de fábricas e demissões não apenas nos Estados Unidos, mas também ao redor do mundo. “O tsunami está vindo para todos”, disse Katherine Tai, que foi representante de Comércio dos Estados Unidos para o ex-presidente Joseph R. Biden Jr.”

É por isso que a estratégia do presidente Trump é tão insensata. Em vez de impor tarifas ao mundo inteiro, deveríamos estar buscando alinhar todos os nossos aliados industriais em uma frente unida para dizer à China: você não pode fazer tudo para todos. Enquanto a China é um terço da produção manufatureira global, ela representa apenas 13% do consumo global. Isso não é sustentável — e não está apenas assustando os EUA e a Europa, mas também o Brasil, a Indonésia, a Índia e outros; até mesmo a Rússia, de repente, reduziu as importações de automóveis da China.

Em vez de fazer nossa estratégia ser os EUA contra o mundo inteiro em tarifas, Trump deveria ter feito com que todas as democracias industriais, lideradas por Washington, se unissem contra Pequim. O objetivo seria negociar efetivamente um caminho a seguir que obrigasse a China a redirecionar suas energias para dentro — investindo em sua escassa rede de segurança social e sistema de saúde, estimulando sua demanda doméstica — enquanto convida a China a construir novas fábricas não em Hanói, mas em Hamtramck (Michigan), e a transferir suas tecnologias e cadeias de suprimentos para nós em joint ventures 50/50.

Infelizmente, nosso presidente e vice-presidente estavam tão ocupados exibindo seus músculos na Groenlândia, demitindo nossos principais generais por não serem suficientemente submissos ao nosso Querido Líder e insultando nossos aliados europeus por serem muito progressistas, que desperdiçaram a alavancagem de que precisávamos para lidar efetivamente com esse formidável mecanismo chinês.

Mas aqui está o que os líderes empresariais americanos realmente não entendem: Trump e J. D. Vance assustaram a China e a UE com seu comportamento errático. Quando veem um presidente dos EUA simplesmente ignorar um acordo comercial com o México e o Canadá que ele mesmo negociou, eles se perguntam: como podemos confiar em qualquer acordo que fizermos com ele? Isso pode aproximar a China e a União Europeia.

Ouço meus compatriotas americanos dizerem: só precisamos chegar às eleições de meio de mandato e fazer os democratas recuperarem a Câmara, e estaremos bem. Desculpem, pessoal, não podemos esperar tanto tempo. Mais 20 meses ou mais dessa liderança errática e nosso país estará irremediavelmente quebrado. Precisamos de um punhado de republicanos na Câmara e no Senado — agora mesmo — para cruzar o corredor e pôr fim a esse devastador desastre econômico feito pelo homem.

 

FHC supunha ser marxista nos anos 60, mas já era liberal, por Bresser Pereira

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Marxistas neoliberais se viam como revolucionários e combateram desenvolvimentismo, mas subordinaram Brasil ao império

Luiz Carlos Bresser Pereira, Professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (1987, governo Sarney), da Administração e da Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (1995-1998 e 1999, governo FHC)

Folha de São Paulo, 06/04/2025

[RESUMO] Autor, ministro no primeiro governo FHC, qualifica como marxistas neoliberais os líderes do seminário de “O Capital”, objeto de estudo do sociólogo Fábio Mascaro Querido em livro recente. Para Bresser-Pereira, FHC e intelectuais de seu entorno elegeram o desenvolvimentismo como adversário e abandonaram o marxismo ainda nos anos 1970 para, na década de 1990, se tornarem neoliberais, se associarem ao império e levarem a economia brasileira ao estado de quase estagnação.

Fábio Mascaro Querido acaba de publicar “Lugar Periférico: Ideias Modernas”, no qual estuda o que denomina marxismo acadêmico da USP —um grupo de sociólogos que, nos anos 1960, se aproximou do marxismo, que havia emergido com força na Europa no pós-guerra e alcançado o Brasil.

Esses sociólogos, sob a liderança de Fernando Henrique Cardoso, criaram um seminário para estudar Marx e “O Capital”. Quando Cardoso assumiu a Presidência em 1995, o seminário se tornou célebre, sempre citado pela imprensa conservadora de maneira simpática porque os autores envolvidos já haviam abandonado havia tempos o marxismo. Querido afirma que esse foi o mito fundador do grupo.

O núcleo do grupo —aqueles que proponho chamar de marxistas neoliberais— foi constituído por Fernando Henrique Cardoso, José Arthur Giannotti e Francisco Weffort.

Trata-se de um oximoro que se aplica bem a eles, que se encantaram com o marxismo nos anos 1960, quando ainda estava viva a esperança na revolução socialista, tornaram esse marxismo menos contraditório e revolucionário, definiram o desenvolvimentismo como o adversário e abandonaram o marxismo já nos anos 1970, enquanto Cardoso desenvolvia a teoria da dependência associada, que implicou a subordinação do Brasil ao império. Em síntese, nos anos 1960, eles supunham ser marxistas, mas já eram liberais; nos anos 1990, se tornaram neoliberais.

A denominação marxismo neoliberal naturalmente não se aplica a Roberto Schwarz e Francisco de Oliveira, que eram do grupo, nem a Octavio Ianni e Florestan Fernandes, que não eram realmente do grupo.

Florestan foi o mestre de todos, o maior sociólogo que a USP já teve. Inicialmente, se associou à sociologia da modernização e, depois, indignado com o que via no Brasil, se tornou um marxista revolucionário. Querido, naturalmente, não usa essa expressão, porque ele era antes um admirador que um crítico do marxismo neoliberal.

Querido distingue Roberto Schwarz dos demais, alguém que permaneceu marxista ao longo dos anos e, como escreve, “radicalizou a dimensão ‘negativa’ da crítica”. Como crítico literário e escritor, Schwarz não se preocupou em propor políticas nem fez concessões para ser aceito no seu entorno. Ao contrário do núcleo duro do grupo, Schwarz continuou nacionalista como havia sido antes dele seu grande mestre, Antonio Candido, e se associou a Paulo Arantes, um crítico do marxismo neoliberal.

Entre todos, Schwarz é o único que, no plano teórico, é reconhecido internacionalmente. (A teoria da dependência associada teve repercussão internacional, mas, além de ser equivocada, não pode ser considerada uma teoria —é apenas uma sofisticada e pouco clara justificação de subordinação.)

Querido usou o pensamento de Schwarz como referência ou fio condutor do livro e lhe dedicou dois excelentes capítulos. Salientou o amplo papel que teve Adorno em seu pensamento, como também a crítica da modernização realizada por Robert Kurz em 1991, um momento em que a União Soviética entrava em colapso.

Querido deu pouca importância ao nacionalismo do crítico, o que contradiz a sua perspectiva negativa, mas, no final do segundo ensaio, cita um texto significativo: “A última palavra não pertence à nação, nem à hegemonia ideológica internacional, mas pertence ao presente conflituado que as atravessa”. Este presente conflituado é o da luta de classes dos grupos de interesse específicos para esse ou aquele problema.

Nos anos 1960 e 1970, o núcleo neoliberal marxista e, mais amplamente, a esquerda antivarguista combateram o desenvolvimentismo nacionalista porque pretendiam ser revolucionários, enquanto o desenvolvimentismo implicava um compromisso da classe trabalhadora e da esquerda social-democrata com a burguesia.

O núcleo acadêmico neoliberal marxista seguiu o mesmo caminho: ao contrário da visão desenvolvimentista, pretendia não fazer concessões e acabou concedendo tudo nos anos 1990, quando se tornou neoliberal. A esquerda anti-Vargas o combateu porque definiu um “culpado interno” pela derrota: haviam sido os desenvolvimentistas, que, em vez de serem revolucionários, haviam apostado em um acordo da classe trabalhadora com a burguesia industrial intermediado pela burocracia pública.

O núcleo só passou a ter alguma relevância a partir do golpe militar de 1964, a grande derrota da social-democracia desenvolvimentista. Derrotados os adversários sem que fosse preciso lutar contra eles, estava agora na hora dos sociólogos da USP assumirem o comando intelectual da esquerda.

No capítulo “A revanche dos paulistas”, Querido relata a nova fase. Revanche por quê? Ele não explica, porque não foi realmente uma revanche. Na partida anterior, nossos amigos não tinham sido derrotados: eles estavam simplesmente fora do jogo. Em 1964, entraram no jogo e se tornaram bem conhecidos. Os que estavam no jogo até então eram os nacional-desenvolvimentistas social-democratas como Celso Furtado, Guerreiro Ramos, Helio Jaguaribe e Ignacio Rangel. Na época, eu já era desenvolvimentista, discípulo dos últimos.

Eles estavam fora do jogo, mas desesperados para entrar, especialmente para derrotar os dois mais importantes sociólogos dos anos 1950, Guerreiro Ramos e Gilberto Freyre. O golpe militar se encarregou de derrotar Guerreiro ao cassar seu mandato de deputado federal e seu direito de se recandidatar. Enquanto Celso Furtado foi exilado, ele e seus companheiros do Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) Jaguaribe e Rangel foram submetidos a intenso ataque pela esquerda alienada, para a qual o nacional-desenvolvimentismo associado a Getúlio Vargas era inaceitável. Isto além do ataque pela direita.

O próximo passo foi o livro de Cardoso e Enzo Faletto, “Dependência e Desenvolvimento na América Latina” (1969), no qual a dependência se torna a causa do desenvolvimento, em vez de obstáculo. Era a teoria da dependência associada que surgia. A nova verdade, que se espalhou rapidamente por toda a esquerda intelectual, afirmava taxativamente que uma coalizão de classes desenvolvimentista associando os empresários industriais às esquerdas e à classe trabalhadora era impossível.

A burguesia não existia nem poderia existir (na verdade, a burguesia industrial desenvolvimentista existiu no Brasil em dois breves períodos: 1950-1964 e 1967-1980), mas a falta de uma burguesia nacionalista não era problema, porque o chamado império era na verdade apenas um “hegemon” benevolente —suas empresas multinacionais estavam contribuindo para o desenvolvimento do país e bastava que o Brasil se associasse a ele que se desenvolveria.

Não foi isso que aconteceu: em 1990, a submissão aconteceu e, em 1995, se aprofundou. O país entrou em quase estagnação.

Não se imagine, porém, que os intelectuais nacionalistas e desenvolvimentistas tenham escapado do ataque de Cardoso e Faletto, ainda que esse ataque não fosse perfeitamente claro.

Em um primeiro momento, a Cepal de Raúl Prebisch e Furtado percebeu que estava sob ataque e não quis publicar o livro por meio do Ilpes (Instituto Latino-americano e do Caribe de Planejamento Econômico e Social). Mais tarde, porém, ela se adaptou à crítica, se acomodou ao império e perdeu qualquer relevância no plano das ideias.

A Cepal somente existiu como uma ideia —a do desenvolvimentismo estruturalista clássico voltado para a industrialização— entre 1949 e 1963, sob o comando de Raúl Prebisch. Em 1964, os desenvolvimentistas foram derrotados e obrigados a ficar em silêncio. No começo dos anos 1970, a Cepal abandonou o desenvolvimentismo.

Nos anos 1970, essa mesma esquerda, desprevenida, se deixou envolver pelas ideias propostas por Cardoso e Falleto. No plano econômico, essas ideias foram aceitas provavelmente porque a ideia de associação ao império não estava clara no livro e nos trabalhos que seguiram —e porque a esquerda estava ressentida com o golpe de 1964.

Por outro lado, a versão realmente marxista da teoria da dependência, a teoria de André Gunder Frank, Ruy Mauro Marini e Theotônio dos Santos, também era equivocada porque contava com a revolução socialista na América Latina a curto prazo.

Essa versão sofreu um ataque violento e injusto em artigo assinado por José Serra e o próprio Cardoso. Creio que a iniciativa tenha sido mais de Serra que de Fernando Henrique, porque este é um homem da melhor qualidade e cuja personalidade é incompatível com uma atitude como essa.

Em 1969, sob a liderança de Cardoso e com apoio da Fundação Ford, o Cebrap foi criado. Logo, ele se tornou o grande centro de estudos em defesa da democracia e de crítica à desigualdade.

Foi nessa época em que fui convidado a ser membro do conselho da nova entidade de pesquisa e me juntei a eles. Estava isolado na Fundação Getulio Vargas e precisava de diálogo. Percebia que minhas ideias desenvolvimentistas não eram ali bem-vistas, mas fui muito bem recebido e me associei à luta do Cebrap, onde, além dos intelectuais já citados, estavam figuras notáveis como Chico de Oliveira e Paul Singer. Lutávamos todos contra o regime militar.

Nessa época, porém, muitas das coisas que estou narrando aqui não estavam claras para mim. Entre 1995 e 1999, participei do governo FHC e, sob influência do que me envolvia, minhas convicções desenvolvimentistas e meu interesse pelo marxismo diminuíram por algum tempo.

Fiquei, porém, decepcionado com o caráter neoliberal que assumiu a direção da economia e, em 2003, revi minha posição em relação a meu amigo Fernando Henrique. Voltei a ler seu livro com Faletto e escrevi o ensaio “Do Iseb e da Cepal à teoria da dependência”, publicado em 2005, cuja primeira cópia entreguei a ele. Não era um rompimento pessoal, mas intelectual. Havia compreendido o sentido de sua obra e de seu pensamento.

Estimulado pelo excelente livro de Querido, decidi, nesta resenha, voltar agora ao tema da história intelectual. Uma resenha mais crítica do que fora o artigo de 2005, uma crítica ao marxismo neoliberal. Afinal, me pergunto: qual foi a contribuição ao Brasil desse grupo de sociólogos, cientistas políticos e filósofos? Como compará-la com a contribuição dos desenvolvimentistas social-democratas?

Os desenvolvimentistas se associaram a Vargas, ainda que ele tenha sido um ditador entre 1937 e 1945, porque ele foi o grande estadista que promoveu a industrialização e o grande desenvolvimento econômico do Brasil. Os principais desenvolvimentistas tiveram uma influência significativa na realização da revolução capitalista brasileira, que aconteceu entre 1930 e 1980. Alguns deles eram socialistas, mas sabiam que a revolução socialista não era uma possibilidade realista.

Enquanto isso, nossos marxistas neoliberais flertaram com a revolução sem muito empenho e, mais tarde, se associaram ao império e se tornaram neoliberais.

Na conclusão de “Lugar Periférico, Ideias Modernas”, Querido afirma que, enquanto os intelectuais do ciclo nacional-desenvolvimentista popular das décadas de 1950 e 1960 estavam interessados em um projeto de modernização nacional (anti-imperialista, acrescentaria), “os acadêmicos paulistas expressavam a redefinição entre intelectuais e política ocorrida na esteira das transformações pelas quais passaram tanto a sociedade quanto a universidade brasileira, a partir dos anos 1970”.

Ou seja, eles lograram se adaptar à realidade social e política que os circundava em vez de tentar mudá-la. Algumas vezes, vi Fernando Henrique, enquanto presidente da República, agir procurando se adaptar em vez de procurar moldar o que estava acontecendo. Ele e seus companheiros eram mais sociólogos que agentes republicanos.

O livro de Querido é uma notável contribuição à história intelectual do Brasil.

Lugar Periférico, Ideias Modernas: aos Intelectuais Paulistas as Batatas. Preço R$ 64 (288 págs.); R$ 54,90 (ebook). Autoria Fabio Mascaro Querido. Editora Boitempo

 

 

É a segurança, estúpido! por Oscar Vilhena Vieira

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É fundamental que todos compreendam que a questão se tornou uma prioridade absoluta para a população

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023).

Folha de São Paulo, 05/04/2025

Os altos índices de criminalidade constituem o principal problema do país, conforme os dados da última pesquisa de opinião realizada pela Genial/Quest. Pela primeira vez, na série histórica, o tema da violência superou questões como desemprego, saúde ou a economia. O dado não surpreende. Milhões de brasileiros são expostos diariamente ao medo e à brutalidade da violência. Apesar da gravidade e persistência desse problema, os esforços para conter a criminalidade ao longo das últimas décadas foram insuficientes.

A responsabilidade pela violência endêmica que nos afeta deve ser atribuída a boa parte dos políticos, em especial aos governadores. Salvo louváveis exceções, pouco se fez para enfrentar os interesses corporativos e modernizar o sistema de segurança e justiça no Brasil. Governos de centro, de direita e de esquerda foram, no mínimo, omissos na promoção das necessárias reformas.

Nesta quinta-feira, o Supremo Tribunal Federal foi mais uma vez obrigado a suprir a omissão de sucessivos governos do Rio de Janeiro, que têm submetido a população ao persistente domínio do tráfico, das milícias e do arbítrio dos agentes públicos, proferindo decisão unânime sobre a condução de operações policiais nas favelas do estado.

As medidas cautelares, corajosamente proferidas pelo ministro Edson Fachin, contribuíram para a redução da violência policial, para a diminuição das mortes de policiais, assim como para o declínio nos índices de criminalidade. Ao corpo político, no entanto, cumpre a responsabilidade por corrigir os rumos do desastre.

Embora governantes do campo progressista ou liberal devam ser responsabilizados por não darem a devida atenção à questão da segurança, tem sido o “partido da bala” quem mais contribui para o desastre de nossa segurança pública. São os partidários do populismo penal que bloqueiam reformas e implementam as mais contraproducentes políticas, como temos testemunhado em São Paulo.

De acordo com o relatório da Unicef e do Fórum Brasileiro de Segurança, publicado também nesta semana, uma em cada três crianças ou adolescentes mortos em São Paulo foram assassinados pela polícia. Essa é apenas a face mais perversa de uma concepção de segurança, baseada na violência, no arbítrio e no descontrole dos agentes do Estado, que tem contribuído para o homicídio de cerca de 1 milhão de pessoas nos últimos 20 anos, no Brasil.

Essas políticas obtusas não apenas fomentaram o crime organizado e as milícias, como degradaram as instituições policiais e o sistema prisional, promovendo verdadeiras espirais de violência que afetam a vida de todos os brasileiros, em especial dos mais pobres e mais negros.

É fundamental que todos compreendam que a questão de segurança se tornou uma prioridade absoluta para a população. Que a omissão será punida pelo eleitor, intimidado pela violência. Que os únicos beneficiários serão os criminosos, além de políticos oportunistas, que ocupam o espaço deixado por liberais, progressistas e mesmo conservadores, para vender soluções mágicas que, no mais das vezes, apenas agravam a situação.

É urgente que o campo democrático conceba e implemente políticas consistentes de segurança. Que integre as esferas federal, estaduais e municipais; modernize as corporações policiais; valorize e capacite os profissionais de segurança; empregue intensivamente tecnologia e inteligência no combate ao crime organizado; reforme o sistema penitenciário; adote protocolos de conduta; além de submeter a ação dos agentes do Estado aos estritos parâmetros da lei.

Esse o desafio. A omissão custará muitas vidas. E, quem sabe, o próprio estado democrático de direito.

 

Alunos de Gestão Empresarial – Fatec Catanduva, 2025

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Incertezas

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 Numa sociedade global marcada por grandes mutações, onde os agentes econômicos se digladiam como forma de garantir novos espaços de crescimento, onde os modelos de negócios se transformam diuturnamente, onde as tradições estão em constante movimento, onde os seres humanos sofrem num ambiente de incertezas crescentes, onde os conflitos crescem de forma acelerada, tudo isso impulsiona as instabilidades emocionais, ansiedades e depressões.

As decisões econômicas impactam fortemente sobre os seres humanos, os investimentos produtivos impulsionam a geração de emprego, com melhoras substanciais da renda dos trabalhadores, aumentando o consumo e movimentando os setores produtivos, impactando fortemente para toda a comunidade. As decisões econômicas melhoram as condições de vida da coletividade, capacitando e qualificando os setores produtivos para aumentarem a produtividade do trabalho, preparando a economia para desafios e vislumbrando espaços valiosos de crescimento econômico e perspectivas de desenvolvimento.

Vivemos numa sociedade onde a economia ganhou uma relevância exagerada, a ciência econômica se restringe apenas a questões financeiras, todos os indivíduos pensam como empresas, se vendem como se fossem mercadorias, buscando apenas lucros imediatos, melhorando suas imagens externas como uma grande estratégia de marketing pessoal e transformando o networks em um espaço de novos negócios e ganhos monetários, estimulando uma concorrência crescente e exagerada, deixando de lado a ética e os valores em prol dos ganhos materiais, desta forma colhemos incertezas crescentes, amizades interesseiras, belas imagens externas, com corpos sarados e vazios emocionais, cultuando a ignorância e rechaçando a ciência.

Nesta sociedade, dominada pelos interesses do dinheiro, centrada no imediatismo, no individualismo e no narcisismo crescentes, percebemos que os ganhos materiais são a tona da organização social contemporânea, os valores democráticos perdem espaço quando os interesses do capital estão em risco, desta forma compram consciências, derrubam governantes, destroem reputações, contratam profissionais qualificados porém desprovidos de valores morais, adquirindo instituições e acreditando que o dinheiro domina a sociedade, rechaçando o pensamento crítico, usando o seu poderio econômico e sua força política para perpetuar seus privilégios e, se necessitar de força física para impor seus interesses, sem pestanejar, usam os aparatos repressivos do Estado para garantir seus benefícios.

Vivemos na sociedade contemporânea um conflito aberto e cada vez mais escancarado, governos que sempre adotaram políticas em prol dos interesses dos capitalistas não mais escondem suas escolhas imediatas, repassam grandes somas do orçamento público para seus financiadores e restringem recursos para políticas públicas dos setores mais vulneráveis da sociedade, aumentando os espaços de conflitos entre setores da sociedade, aumentando as polarizações, incrementando as desigualdades sociais e aumentado as incertezas, os medos e os ressentimentos, que podem culminar em graves desequilíbrios políticos.

Vivemos numa sociedade marcada pelo crescimento da degradação do meio ambiente, embora muitos grupos rechacem previsões catastróficas, percebemos claramente que o clima está diferente, as estações do ano mudaram, a temperatura aumentou sensivelmente e tudo isso está associado a um modelo econômico excludente, gerador de desigualdades e explorações constantes. A economia se faz imprescindível para a convivência social, mas nunca devemos nos esquecer, que esta ciência não é autônoma e está fortemente atrelada às questões políticas.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor un

A Era da Catástrofe, por José Raimundo Trindade

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José Raimundo Trindade, professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UFPA – A Terra é Redonda – 28/03/2025

Considerações a partir do livro de Eleutério Prado

Eric Hobsbawm foi bastante crítico da sua capacidade como historiador de analisar um período em que ele próprio foi um atuante ator. Mesmo assim, o historiador inglês nos deixou de herança uma magnifica exposição historiográfica do enredo do século XX. Nos interessa em particular aquele período que Eric Hosbsbawm (2000) denominou de “Era da catástrofe” e, muito especialmente, observou que apesar de duas guerras mundiais e duas bombas nucleares “a humanidade sobreviveu”, inclusive o capitalismo, somente que agora parcialmente remodelado.

Eleutério Prado nos presenteou muito recentemente (2023) com um pequeno opúsculo, Capitalismo no século 21: ocaso por meio de eventos catastróficos, que sob diversos aspectos retoma o fio histórico do autor inglês acima referenciado, mesmo que estabelecendo uma visão realista de como o capitalismo poderá encadear nas próximas décadas uma nova era catastrófica, cuja possibilidade de tornar a história civilizacional humana um interregno menor se mostra como um importante e necessário clamor por um novo projeto de reorganização da humanidade, encerrando o capitalismo como capítulo histórico de nossa sociedade.

A obra de Eleutério Prado está dividida em quatro pequenos capítulos, cuja leitura angustiante pode ser entendida como uma seção de continuidade do alerta que Eric Hobsbawm (2010, p. 562) no colocou ao final de seu trabalho de arqueólogo do século XX: “Se a humanidade quer ter um futuro reconhecível, não pode ser pelo prolongamento do passado e do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio nessa base, vamos fracassar. E o preço do fracasso, ou seja, a alternativa para uma mudança da sociedade, é a escuridão”.

O primeiro capítulo estabelece a primeira tese desenvolvida pelo autor, qual seja: “que o processo de globalização não só esteve sujeito a movimentos expansivos, como também passou por reversões muito significativas”. A análise da “globalização e desglobalização” constitui de fato um ponto chave para o entendimento da forma como o capitalismo processa sua expansão enquanto economia mundial, considerando que o fenômeno já foi visto por Marx e Engels (1848) enquanto condicionante existencial e estrutural de um modo de produção que busca criar “um mundo à sua imagem e semelhança”.

Eleutério Prado (p. 19) reforça as teses vinculadas as chamas ondas longas de Kondratiev observando que a “mundialização do capital se expandiu por meio de ondas que duraram sempre mais de duas décadas”, sendo que a produção capitalista tem uma “natureza fortemente espasmódica e turbulenta”, cujo caráter crítico dessas relações de produção não é resultante de “choques exógenos, mas fazem parte do próprio movimento da acumulação de capital”. Cabem quatro observações que nos parecem plenamente aderentes as análises do autor:

(i) O período da chamada “era dourada” do capitalismo (1950/1980) constituiu um período de exceção na história do capitalismo, sendo que o Estado capitalista constitui um ponto central para se pensar o referido período. O crescimento da intervenção estatal desde o final da década de 1930, primeiramente via o keynesianismo bélico, já aparecia como uma nova condição de existência do que se convencionou chamar de capitalismo keynesiano.

Porém, como nota Eleutério Prado, conforme se agudiza a crise capitalista nos anos 1970 a expansão da demanda agregada via Estado não conseguiria deter o declínio da taxa de lucro, ou seja, não há como equacionar permanentemente “as contradições inerentes ao modo de produção capitalista”.

As finanças públicas constituem parte da massa de mais-valia produzida anualmente, em termos esquemáticos o Estado constitui um “gerente” essencial da acumulação capitalista, nos termos clássicos marxianos, sendo sua manutenção uma necessidade do sistema. A essência deste Estado como forma social necessária a manutenção relativamente programada do capitalismo foi o centro da ampla visão chamada de “keynesiana”, uma construção ideológica fundamental para projeção do capitalismo no século XX, mas que se esgotou definitivamente, como mostra Eleutério Prado. [1]

(ii) O sistema imperialista, imputado em torno dos EUA a partir do final da Segunda Guerra, apresenta um “calcanhar de Aquiles” justamente centrado na manutenção de um poder bélico necessário a manutenção coercitiva das demais nações ao próprio poder estadunidense.

A indústria bélica produz mercadorias não reprodutivas, um chamado não-valor de uso (armamentos), como ponderava Lauro Campos (2016), assim a renda do Estado, como seu quase exclusivo demandante, desvia meios reprodutivos para produção de meios não reprodutivos, isso em função de que o Estado, como comprador de armamentos, exige parcela da renda da economia na forma de tributos, sendo que o que as indústrias bélicas produzem, vendem e lucram, nada mais é do que renda pretérita gerada na economia.

Na medida em que se expandem e, pior se mantém, os gastos bélicos, exigem-se crescentes parcelas do capital global da economia, levando a um potencial desorganização reprodutiva da economia. A destruição da base produtiva dos EUA é, também, fruto da lógica do Estado militar-industrial.

(iii) Eleutério Prado (p. 25) considera que “a fase da grande indústria é superada a partir de 1970”, sendo que desde então se estabelece o que o autor denomina de “pós-grande indústria”. Aspecto que considero importante observar refere-se as características conformativas das tuas formas de “subsunção do trabalho ao capital” e como suas características internas podem moldar o ciclo do capital.

O padrão atual além de apresentar uma composição orgânica do capital muito mais elevada, também se caracteriza por uma reprogramação tecnológica muito mais acelerada, fazendo com que a chamada “obsolescência programada” seja a tônica da disputa concorrencial entre os capitais.

(iv) A financeirização, compreendida pelo autor como o controle da pós-grande indústria “sob a égide do capital de finanças”, implica um vetor a mais de reorganização da sociabilidade capitalista, agora, predominantemente, sob formas neoliberais onde a política econômica e a economia como um todo serve aos “interesses do setor financeiro”.

No segundo capítulo, intitulado “Ocaso do capitalismo”, temos a apresentação de uma tese chave para atual conjuntura e para o devir da humanidade. Segundo o autor o capitalismo não garante mais a “sustentabilidade da civilização humana no planeta”, se tornando “insustentável” (p. 53).  As contradições crescentes do capitalismo, agora baseado em dominância financeira, aprofundam a crise climática, não havendo, por outro, uma opção sistêmica (socialista) colocada no horizonte, isso por conta da vitória obtida pelo capital sobre as grandes revoluções ocorridas no século XX, especialmente a destruição da URSS e a adesão da China a um tipo de capitalismo.

Os elementos críticos colocados nos levam ao texto principal da pequena grande obra oferecida por Eleutério Prado, a possibilidade colocada enquanto hipótese de uma “nova era catastrófica”. O autor trabalha com a economia marxista clássica para tratar da dinâmica de crise capitalista baseada no declínio secular da taxa de lucro e a conformação de superprodução que desorganiza progressivamente o sistema na sua totalidade.

Eleutério Prado (p. 48) observa que o “capitalismo é bipolar: depois dos períodos de euforia (…) vêm período recessivos ou mesmo depressivos”. A lógica do sistema vai no sentido de buscar soluções imediatas ou de curto prazo para suas crises, porém em diversos momentos se torna impossível soluções desse tipo, sendo que daí advém períodos longos de irracionalidade, como aquele que caracterizou a primeira era catastrófica tratada por Eric Hobsbawm.

Não podíamos deixar de concluir essa breve resenha sem referenciar três pontos que nos parecem chaves no texto do autor e que nos coloca enorme responsabilidade enquanto geração construtora do atual século:

(a) O primeiro aspecto refere-se a perda de racionalidade que o capitalismo do século XXI desenvolve. A lógica do ganho de curto prazo, próprio das condições de financeirização e da ideologia neoliberal estabelecem um sistema baseado em “empresas-zumbis”, com o sistema apresentando “uma tendência latente estagflacionária”, algo que o autor desenvolve mais detidamente em um apêndice baseado nos trabalhos de Shaikh. [2]

(b) Da mesma forma o capitalismo do século XXI caminha para um padrão crescentemente autoritário, sendo que o regime democrático burguês vai aos poucos cedendo espaço para formas autocráticas, mais adequadas a manutenção do neoliberalismo e ao sistema de “Elysium” [3] que caracterizam as regras dos super ricos da neofinanceirização.

(c) Por fim, temos a definitiva questão da ruptura metabólica com a natureza imposta pelo “desregramento do capital”. A questão ecológica e os limites críticos da relação humana com a natureza em permanente modificação sugeriam a Karl Marx o crescente agravamento da “falha metabólica” [4] impulsionada pelas relações de produção capitalistas, algo que se chega nos limites críticos e, talvez, de um ponto de um não retorno nesta terceira década do século XXI. Por todos esses aspectos e pela clareza do texto vale muito a leitura de Capitalismo no século 21.

 José Raimundo Trindade é professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UFPA.

Referência

Eleutério F. S. Prado. Capitalismo no século 21: ocaso por meio de eventos catastróficos. São Paulo, CEFA Editorial, 2023, 116 págs.

Bibliografia

Eric Hobsbawm. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1994). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

John Bellamy Foster. A ecologia de Marx: materialismo e natureza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

José Raimundo B. Trindade. Crítica da economia política da dívida pública e do sistema de crédito capitalista. Curitiba: CRV, 2017.

Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2010.

Lauro Campos. A crise da ideologia keynesiana. São Paulo: Boitempo, 2016.

Notas

[1] Sobre as finanças do Estado capitalista e dívida pública numa interpretação marxista conferir Trindade (2017).

[2] Prado (2023, p. 97) se utiliza do modelo desenvolvido por Shaikh (2016) que mantém a regra marxista clássica de que “o ponto de partida de uma compreensão da inflação contemporânea deve se assentar ainda na tese de que a lucratividade comanda a acumulação de capital”. A demonstração feita estabelece uma projeção de estagflação de longo prazo para o capitalismo do século 21.

[3] No filme “Elysium”, que se passa em um futuro capitalista distópico temos uma burguesia que vive em uma estação espacial, que dá o título ao filme, enquanto o resto da população mora em uma Terra arruinada.

[4] Para uma compreensão detida da falha metabólica e do pensamento ecológico de Marx conferir Bellamy Foster (2011).

 

 

 

Poderá a globalização nos livrar do capitalismo? Paulo Fleury

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Em crise profunda, os neoliberais contorcem-se, mordem o próprio rabo e adotam um protecionismo tacanho. Nos EUA, os magnatas já exercem o poder diretamente. Mas, em seu impulso de integração, talvez a humanidade já tenha encontrado uma alternativa

Paulo Fleury Teixeira, Médico e Filósofo – OUTRAS PALAVRAS – 28/03/2025

Os bilionários no poder nos EUA e o sentido desta mudança

No curso da grande crise econômica em que estamos mergulhados, era previsto que a ideologia liberal se radicalizasse em sua origem e condição de classe, e que redobrasse suas apostas na concentração de riqueza nas mãos dos capitalistas, em detrimento da população trabalhadora em geral. A ideologia, neste momento, apela ainda mais para “o espírito animal” do empresário, aumentando a ideia de valor e poder dos líderes empresariais vitoriosos na competição do mercado. Nada pode ter mais valor ideológico para o capitalismo do que a visão do vitorioso, os líderes empresariais, vistos como condutores natos da produção e, portanto, da vida social. Isso parece natural, no sentido de que, seja como for, tiveram o suposto mérito de vencer no cenário da mais intensa competição.

Existem muitas razões para que seja assim. Estamos em processo de socialização da produção e da vida social como um todo. Todas as grandes certezas do liberalismo ou, mais objetivamente, do capitalismo liberal, foram derrotadas na história. Porém os processos históricos não são lineares – mas desenvolvem-se em ondas. Podemos, portanto, reconhecer um processo histórico de socialização no sistema que, no entanto, tome, em alguns momentos, o sentido oposto: o da acentuação do liberalismo na economia, na vida real, no mundo todo. Estamos justamente no fim de um destes momentos de acentuação do capitalismo em sua essência.

Neste momento, os capitalistas e seus representantes, no que toca à distribuição da riqueza e do poder, redobram a aposta na liberdade e poder ilimitados do mercado, dos capitalistas e de seus líderes. É realmente peculiar que agora sejam os próprios capitalistas a exercer diretamente o poder nos EUA. Nada mais evidente. Estamos no ápice da crise e os atores principais não podem e não querem mais deixar o poder nas mãos de seus representantes profissionais. Acumularam tanto poder e estão tão ligados ao Estado americano que não precisam e não querem mais ocultá-lo.

A crise já se arrasta pelo menos desde 2007 – e o que fazem? Apostam em maior concentração de riqueza e poder para dar solução à crise que foi causada por maior acúmulo e concentração de riqueza e poder. Correlativamente, produzem empobrecimento, relativo e até mesmo absoluto, das massas trabalhadoras nos grandes países da economia ocidental, da Europa e dos EUA.

A necessidade econômica, por seu lado, indica que teremos que superar esta onda, que promoveu a intensa concentração das riquezas, no mundo todo, dos EUA à China. E, de fato, já estamos andando neste sentido. A desigualdade parou de crescer desde 2014 na China. E, recentemente, tínhamos alguma tendência positiva nos próprios EUA. No entanto, agora, Washington optou por guinada liberal extrema. Estão dispostos a fazer a massa trabalhadora aceitar, temporariamente, ainda mais perda de serviços e de renda, de recursos e de dignidade. Vão tomar recursos das classes médias e das já empobrecidas, enxugando ainda mais os serviços públicos e adotando medidas de proteção à indústria local, em detrimento da competição e da integração produtiva mundial. Isto, com certeza, aumenta as pressões inflacionárias e de desaceleramento da economia, nos EUA e mundo afora.

A guerra comercial que os EUA lançaram contra a China e que agora se intensifica, com grandes aumentos de tarifas de importação, é característica deste período de grande crise econômica e de grande mudança na hegemonia, no centro de poder capitalista mundial.

Em qualquer outra situação teríamos justamente o inverso, o centro do poder no sistema capitalista mundial deve ser expansivo e liberalizante; deve fazer o que for necessário, incluindo levar adiante guerras, em favor da liberdade de comércio e empreendimento, mas não impor-lhes barreiras e restrições. As guerras do ópio do século XIX foram realizadas para liberalizar o mercado da China para o comércio inglês. Já a guerra do ópio atual, a guerra do fentanil, que por enquanto ainda é apenas comercial, está sendo realizada para fechar o mercado americano para os produtos chineses. É um longo ciclo que se fecha. Em ambos os casos o ópio era e é apenas uma marca, um pretexto emblemático, para se abrir ou fechar mercados.

O liberalismo, chegado neste extremo da crise, vai negar de bom grado todos os seus dogmas, como já fez antes, vai defender o protecionismo, vai defender as restrições ao livre comércio e a expansão da integração econômica mundial, vai se tornar nacionalista e vai, ao fim, buscar a guerra como solução. Só um dogma não pode ser contestado pelo liberal, o ideal do livre exercício do poder econômico capitalista. Até o limite de tentar tomar, diretamente em suas mãos, o poder político do estado, como está acontecendo agora nos EUA.

A demonstração de que o planejamento precisa se impor à cegueira dos mercados

Mais empobrecimento, mais imperialismo e mais guerra ou desenvolvimento humano global?

Tudo isto já aconteceu antes na história do sistema capitalista contemporâneo.

A onda liberal atual, iniciada na transição dos anos 1970 para os 80, chegou ao seu limite e está em crise desde a segunda metade da primeira década deste século. A resposta é, como foi antes, redobrar a concentração de riqueza e poder nas mãos dos capitalistas e numa correspondente visão e atuação imperialista mais explícita no cenário mundial.

O sentido de paz com que os EUA acenam hoje para o caso da Ucrânia é circunstancial. O direcionamento dos EUA para a guerra será inevitável, na medida que a crise se aprofunde e ela só pode se aprofundar com o aprofundamento da receita liberal.

É até curioso e realmente absurdo que hoje sejam a Inglaterra, a França e outros países da Europa (os que mais perderam economicamente com o conflito, depois da própria Ucrânia) que defendam aguerridamente a continuidade da guerra. Mas basta olhar para os índices de crescimento econômico destas economias para termos uma pista de por que estão tomando decisões tão enlouquecidas. A crise econômica está atrás destas sandices, assim como na resposta muito disfuncional à pandemia, no mundo ocidental. Quando nada mais anda, fazer andar a economia da guerra, da destruição e da morte pode parecer um ótimo negócio para políticos e setores empresariais. É assim que pensam hoje os poderes nos grandes países da Europa, acreditando que vão pelo menos manter, pelo terror, parte do seu poder imperial no mundo, que, obviamente, decai a cada dia.

Não podemos tomar qualquer estágio da evolução histórica como um parâmetro preciso para os períodos seguintes, mas podemos reconhecer, na estrutura de um sistema, em sua dinâmica histórica, as ondulações que se repetem com certa regularidade. Do contrário, não poderíamos analisar os processos históricos, apenas narrá-los.

Pode-se reconhecer pelo menos duas tendências expansionistas evidentes, dentro do desenvolvimento histórico do sistema capitalista mundial. A tendência à expansão dos empreendimentos e do mercado; à mundialização do comércio, da finança e da produção e, reciprocamente, do consumo, da cultura, a integração mundial e, por conseguinte, a mundialização das pessoas e do próprio mundo. E a tendência ao desenvolvimento da produção em massa e da ciência produtiva em todas as áreas, sempre revolucionando a si mesma.

Obviamente, estas e outras grandes tendências estão interligadas e são interdependentes. É razoável dizer que a partir da revolução industrial estas características e tendências se mostraram tão vitoriosas, tão dominantes no mundo em geral, que vivemos todos, desde então, em um sistema capitalista mundial.

Estas forças são maiores que todas as contratendências do próprio capitalismo. A história mostrou, até agora, que não existe limite econômico absoluto para a reprodução da economia capitalista; e também parece ter mostrado que o proletariado industrial não é o condutor histórico da superação do sistema capitalista. Ao ponto, nas últimas décadas, ele ter perdido boa parte do seu grande papel político anterior, com o desenvolvimento inevitável e progressivo dos sistemas automatizados de produção.

O mundo anda por caminhos surpreendentes, o desenvolvimento tecnológico e a integração mundial continuarão. Isto está no cerne da lógica “cega” do sistema capitalista e também no cerne da evolução consciente, planejada, do socialismo. Estamos em uma encruzilhada extrema, onde o principal país socialista do mundo tem a economia de mercado mais florescente do mundo, enquanto aqueles que defendiam a liberalização da economia mundial voltam-se para a visão regressiva, imperialista e fascista, de defesa da economia e do Estado nacional autárquico

Seria inteligente que os anarquistas, os comunistas, os socialistas até mesmo os social-democratas assumíssemos fortemente estas duas tendências expansionistas como nossas bandeiras, nossos ideais imediatos e diretos, corrigindo assim alguns erros históricos. Quem quer o contínuo desenvolvimento e a expansão da ciência e da tecnologia, a integração da produção e da vida social em todo o mundo somos nós. Capitalismo e capitalistas podem apenas serem instrumentos, relativamente cegos, relativamente estúpidos e perversos, destes desígnios e escolhas.

Essa é a condição e a situação atual do socialismo na China. Dos anos 1980 para cá o país viveu um desenvolvimento econômico e social acelerado. Este desenvolvimento foi acompanhado por algo pouco conhecido: lá surgiram mais bilionários que em qualquer outro país nas últimas décadas. Mas, ao mesmo tempo, a China foi o país que mais prendeu, ou colocou em reformatórios, os seus bilionários. O sistema financeiro continua sob controle direto do governo e o desenvolvimento da economia atende a um “planejamento estratégico” público e não apenas às forças do mercado e ao poder dos ricos. Houve desenvolvimento social intenso, porque o desenvolvimento econômico foi acelerado e porque o poder público dirigiu a economia no sentido da melhora consistente da qualidade de vida das massas.

Na Europa em geral, e nos EUA, o aumento da desigualdade progrediu apesar da crise e continuou crescendo desde 2007, até pelo menos o período da pandemia. De lá para cá não existe uma tendência consistente ainda, mas podemos antever uma nova rodada de perda para os trabalhadores locais, com as ações protecionistas atuais dos EUA e com aumento dos gastos militares na Europa.

A grande crise econômica do sistema capitalista no século passado começou em 1913 e só foi se resolver a partir de 1945. Neste período ocorreu uma grande depressão econômica mundial e, também, duas grandes guerras “mundiais” e uma pandemia que resultaram em mais de 150 milhões de mortes, em uma população de 2 bilhões. A melhora, absoluta e relativa, da renda, dos recursos e serviços, em geral, nas mãos das classes trabalhadoras e médias marcou o fim dos anos 1940 e das três décadas seguintes. A social-democracia emergiu como a principal força política e ideológica do pós-guerra, até encontrar seus limites e ser superada pela nova onda liberal no começo dos anos 1980 do século passado.

A crise atual começou em 2007 e, até agora, só não se manifestou com o mesmo terror do século passado porque foi sabiamente contida com os recursos contracíclicos largamente utilizados, com trilhões e trilhões de dólares jogados nos mercados e nas mãos da população, para manter a economia em funcionamento. Mas, sem a redistribuição da riqueza esta crise está condenada a persistir, protraída, controlada, mas sempre aí, mordendo os calcanhares e os bolsos das classes médias e pobres.

Estamos no ápice da crise. Ainda teremos algumas décadas nesta etapa derradeira da onda neoliberal. Neste período a tendência à solução pela guerra, absurda e alucinante, jamais estará ausente ou distante. Continuará na ordem do dia por longos anos.

Uma grande depressão econômica e guerras mundiais são inevitáveis?

A grande crise econômica do sistema capitalista mundial está sendo controlada por mecanismos anticíclicos limitados e sob constante pressão. Esta crise coincide com o fim de uma grande hegemonia no sistema capitalista mundial. Em função da ascensão chinesa, estamos no fim do império e da grande aliança mundial de poder estabelecida pelos EUA.

A simples afirmação de que estes são processos capitalistas, do sistema capitalista mundial, já significa que são, inerentemente, muito violentos e irracionais. Isto é parte da própria lógica do sistema econômico operado pelo mercado.

O processo de socialização chinês mantém os capitais privados sob planejamento e controle públicos fortes. Define a distribuição dos recursos sociais, financeiros e materiais entre os diversos setores e classes da economia, permitindo que a empresa privada funcione “livremente” apenas dentro de marcos e limites estruturais socializados.

Se os indicadores atuais se mantiverem, tudo indica que a China já colocou foco no aumento do consumo das massas, com ganho relativo de renda para estas. E não parece haver qualquer questionamento ao sistema de planejamento estratégico público da economia socialista no país. Contudo, a ideologia liberal tem penetração na sociedade chinesa atual e o conflito em torno do controle do sistema financeiro e produtivo estará sempre em jogo nos próximos anos e décadas – tanto lá como aqui.

No entanto, continuaremos, por tempo relativamente longo, sob alto risco de grandes guerras mundiais, por estarmos na confluência de dois grandes movimentos histórico-sociais no sistema capitalista mundial – a crise de fim da onda neoliberal e a crise do fim da hegemonia norte-americana. Ambosmovimentos são costumeiramente acompanhados de grandes guerras e crises sociais no interior das nações.

O simples, no entanto, de se tratar de um sistema mundializado e muito mais integrado do que há 100 anos, nos protege da fatalidade de termos que repetir os mesmos processos da crise anterior, ainda que estejamos sob as mesmas pressões.

A integração da economia mundial torna mais difíceis e irracionais as grandes guerras. Sua absurda destrutividade mostra-se tanto mais inaceitável quanto mais o mundo estiver integrado produtiva socialmente. Parece mais irrazoável, agora, destruir o sistema mundial para não ceder parcelas do poder econômico e político, nacional e empresarial. Vamos ser levados, contudo, ao limite.

O fato da grande potência emergente ser a China socialista é ao mesmo tempo um resultado e uma providência dos processos históricos. A China tem sido seguramente, entre os países poderosos, o mais disciplinado e aderente às decisões e ao sentido geral do sistema ONU; e o que mais tem investido na transição energética. Não é de se estranhar, dada a convergência de princípios do socialismo com o internacionalismo e o desenvolvimento da consciência, da inteligência, da segurança e da governança mundiais. Isto é tranquilizador, quando sabemos que ela será a nação mais provocada e atacada pela aliança norte-americana nos próximos anos e décadas.

É improvável que o aprendizado histórico seja completamente inútil agora, permitindo que as grandes catástrofes econômicas e sociais das crises passadas se repitam. Ainda que muitos sinais e tendências neste sentido estejam presentes, eles parecem ser, ao fim, mais fracos do que os mecanismos regulatórios e de proteção social que já foram postos em movimento.

A solução será socializante, como no século passado. No cenário mundial, novas estruturas de decisão, organização e governança terão que ser desenvolvidas mais intensamente do que no século passado, correspondendo ao nível mais desenvolvido da economia mundial e da sociedade mundiais. Certamente precisaremos avançar muito além dos limites e das contradições do sistema das Nações Unidas e de Bretton Woods, rumo a uma verdadeira governança global.

Os EUA mostram reconhecer sua perda relativa de poder e reagem a isto violentamente, tentando resgatar seu império. Tudo isto ocorre tardiamente, quando um movimento econômico e social real já solapou as bases da hegemonia decadente. Tudo o que então se faça, em nome de preservar e restabelecer esta hegemonia, termina por ajudar a conduzir ao seu fim. Toda tentativa de demonstração de força por parte do império termina por revelar a sua verdadeira fraqueza. Exemplos categóricos são a derrota da OTAN na guerra da Ucrânia e o resultado, nulo, ou inverso, das sanções impostas à Rússia e à China. Certamente estão acelerando a superação do poder da aliança constituída em torno dos EUA, em vez de fortalecê-la. As forças econômicas e sociais já se desenvolveram e transformaram neste sentido, a ponto de não ter mais retorno. A hegemonia e o imperialismo dos EUA no sistema capitalista mundial terminará e levará junto consigo os resquícios coloniais do imperialismo europeu que persistem ainda hoje.

Algo central neste processo de aprendizado e desenvolvimento histórico é que as medidas, as ações, as intervenções sociais que anteriormente foram adotadas apenas depois do pior, agora devem ser tomadas antes. Antes das grandes crises catastróficas, como foi a depressão mundial dos anos 1930, as medidas anticíclicas e de proteção social já estão, em parte ao menos, em jogo. Precisamos avançar, ainda mais decidida e intensivamente, no sentido da socialização do sistema econômico mundial. E, antes das grandes guerras mundiais, precisamos da reconstituição e desenvolvimento dos sistemas de decisão e governança mundiais.

É um processo que demorará tempo e se realizará com grande dificuldade. Imagine, por um minuto, como será custoso eliminar todas as bases militares internacionais dos EUA. São mais de 800 e continuam aumentando. O mundo é ocupado militarmente pelos EUA. Isso terá que ser eliminado ou submetido a uma verdadeira governança mundial. Será um processo longo e difícil. Enquanto isto, podemos reivindicar a ideia de cidadania mundial. Ainda que ela esteja, do mesmo modo, distante no horizonte atual, é certamente o que nos interessa, correspondendo à integração do sistema produtivo social mundial. Somos mundiais e queremos ser mundiais.

 

Trump põe as polícias nas ruas, por Luiz Francisco Carvalho Filho

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Mascarados, agentes do governo fizeram até sequestro de aluna de doutorado

Luiz Francisco Carvalho Filho, Advogado criminal, é autor de “Newton” e “Nada mais foi dito nem perguntado”

Folha de São Paulo, 29/03/2025

É aterrorizante a cena de prisão da estudante turca Rumeysa Ozturk, 30 anos, por agentes mascarados do Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos, captada por câmera de vigilância urbana, em Massachusetts.

A mulher é submetida a sequestro-relâmpago por homens que não se identificam. É suspeita de ser favorável a palestinos de Gaza e desfavorável ao governo de Israel, o que significaria, segundo autoridades migratórias, antissemitismo. Muçulmana e bolsista de prestígio no programa de pós-graduação da Universidade Tufts, tem o visto de permanência cassado.

Não é caso isolado. Trump põe as polícias nas ruas, persegue delitos de opinião e ambiciona instituir uma dinâmica política de limpeza étnica e ideológica nos campos universitários.

Com fundamento em lei de 1798, editada para tempos de guerra e nunca utilizada em tempos de paz, que permite deportar cidadãos de “países inimigos” sem garantias do devido processo legal, Trump avança contra venezuelanos que supostamente pertencem a gangues e a grupos criminosos. Convênio sinistro de colaboração totalitária, o governo de El Salvador faz a gentiliza remunerada de acolher presos dos EUA em suas gigantescas prisões. É a terceirização da violência e do abuso de poder.

Nas fronteiras, não se pronuncia a palavra “não”. Turistas são atingidos. Com base em “suspeita razoável” e sem mandado judicial, agentes dos órgãos de imigração encontram meios de invadir, em busca de informações sensíveis ou comprometedoras, a privacidade de telefones e computadores de quem viaja a passeio para Nova York ou para a Disney.

Ordens executivas de controle ideológico atingem escritórios de advocacia com histórico de patrocínio de causas contrárias ao que se convencionou chamar de pensamento trumpista. Não resistem pelo temor de perder a clientela para a concorrência.

Instituições museológicas e de pesquisa como o Smithsonian são acusadas de ideologia imprópria. Cientistas patrocinados pelo governo norte-americano estão impedidos de participar de encontros internacionais que discutem temas inoportunos, como clima, vacinação.

A resistência é pífia. Como mostra o jornalista Guga Chacra, em O Globo, a capitulação é geral. Não há mais vozes dissonantes no Partido Republicano como havia no primeiro mandato. O líder da minoria democrata no Senado a nada se opõe. A venerável Universidade Columbia sucumbe para não perder fundos federais de financiamento e admite restrições à liberdade acadêmica. A covardia e o oportunismo se espalham como fogo.

Muito além da guerra tarifária, o presidente dos Estados Unidos quer anexar a Groenlândia e intimidar países vizinhos. Aparece como chefe de uma polícia planetária e corrupta, pronta para agir, o que, no Brasil, dá ânimo para a famiglia Bolsonaro de criminosos políticos e para seus agregados de sempre, os golpistas silenciosos.

Ambicioso, o autocrata não tem limites. Trump ameaça com impeachment juízes que eventualmente criem embaraços judiciais para atos que violam a Constituição.

Os Estados Unidos, a despeito das suas guerras e da arrogância diplomática, têm tradição profunda de liberdades civis, que, agora, escorre como água pelos dedos.

A América está de ponta-cabeça.

 

Trumponomics é maquiagem para uma política problemática, por Martin Wolf

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Como os tecnocratas esperam que os ajustes macroeconômicos necessários ocorram?

Martin Wol, Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics

Financial Times/Folha de São Paulo, 25/03/2025

Na semana passada, questionei o que alguns condenam como a tentativa de minimizar as radicalidades das políticas econômicas internacionais de governos Trump.  Em outras palavras, perguntei se poderia haver lógica e evidências subjacentes ao que membros de sua administração, notavelmente Stephen Miran, presidente do conselho de assessores econômicos, argumentam.

O professor de Berkeley, Brad DeLong, contrapõe que isso é irrelevante: “Para fazer acordos, você precisa que suas contrapartes o considerem um cumpridor de acordos. Donald Trump demonstra, todos os dias, que não é.” Eu concordo —e disse isso.

No entanto, ainda é possível se perguntar se questões políticas significativas podem ser vistas aqui e, em caso afirmativo, o que se poderia fazer a respeito delas. Assim, Scott Bessent, secretário do Tesouro, argumentou no início deste mês que, além de fornecer segurança global, “Os [EUA]… fornecem ativos de reserva, servem como consumidor de primeira e última instância e absorvem o excesso de oferta diante da demanda insuficiente nos modelos domésticos de outros países. Este sistema não é sustentável.”

Da mesma forma, Miran argumenta que o dólar tem sido cronicamente supervalorizado, o que “tem pesado fortemente no setor manufatureiro americano enquanto beneficia setores financeiros da economia” em benefício dos americanos mais ricos.

O ponto de partida de Miran é o argumento de Robert Triffin dos anos 1960, de que a demanda por reservas de moeda estrangeira criou a supervalorização e os déficits comerciais e de conta corrente associados. No entanto, essa não é a única maneira de os países acumularem reservas de moeda.

Como Maurice Obstfeld, ex-economista-chefe do FMI, argumenta em um blog para o Peterson Institute for International Economics, os estrangeiros poderiam substituir outros ativos estrangeiros por participações nos EUA. Nem as reservas são a única razão para os estrangeiros comprarem ativos dos EUA. Como Paul Krugman observa, eles podem simplesmente querer ativos dos EUA.

No entanto, a demanda por reservas tem sido em alguns casos um fator importante no balanço de pagamentos global. Seu valor total saltou quase sete vezes de 1999 a 2014. Isso foi impulsionado em grande parte pelo desejo das economias emergentes de se protegerem de futuras crises financeiras.

Mas, no caso da China, o maior detentor individual, também foi causado pelo desejo de encontrar uma saída para suas economias excedentes e gerar crescimento manufatureiro liderado por exportações. Enquanto isso, a zona do euro um dos outros alvos de Trump, aumentou suas reservas em apenas US$ 72 bilhões (R$ 410,3 bi) entre o final de 1999 e o final de 2024.

Forças mais fundamentais do que o desejo de acumular reservas também estão em ação. Estas são diferenças nas propensões a poupar e investir. Alguns países têm excedentes de poupança sobre investimento e, portanto, terão superávits em conta corrente e déficits em conta de capital correspondentes —e vice-versa.

Isso não é necessariamente problemático. Mas problemas podem surgir. Um deles é que o sistema de intermediação de capital em todo o mundo gera crises. Os únicos países que podem gerenciar com segurança tais crises são aqueles cuja moeda doméstica também é uma moeda de reserva confiável. Essa tem sido uma boa razão pela qual os formuladores de políticas em países emergentes frequentemente buscam ter superávits em conta corrente.

Outra razão é que, se um país tiver tais superávits, também produzirá excedentes de bens e serviços comercializáveis sobre o consumo doméstico e vice-versa. Portanto, não é por acaso que economias com altas taxas de poupança, como China, Alemanha e Japão, têm setores manufatureiros relativamente grandes, enquanto os EUA e o Reino Unido estão na posição oposta (embora outro fator para estes últimos seja que são bons em produzir serviços exportáveis, o que então reduz as exportações manufatureiras).

Em geral, então, países obcecados com a manufatura tendem também a ser mercantilistas obcecados por superávits. Assim, os mercantilistas nesta administração, incluindo Trump, não estão errados: se os EUA tivessem um superávit em conta corrente, seu setor manufatureiro seria de fato maior. Mas estão completamente errados ao acreditar que isso se resume apenas a reservas. Eles também não abordam adequadamente as condições necessárias para tal reequilíbrio.

Se os EUA quiserem eliminar seu déficit em conta corrente sem sacrificar o investimento, precisarão aumentar sua taxa de poupança em pelo menos 3% do PIB (ou cerca de US$ 850 bilhões ou R$ 4,8 tri). Isso seria quase metade do déficit fiscal.

Acontece que, de acordo com Kimberly Clausing do Peterson Institute of International Economics, uma tarifa de 50% maximizada em receita poderia gerar US$ 780 bilhões (R$ 4,4 tri) por ano. Além disso, tal tarifa poderia também melhorar os termos de troca dos EUA, ao reduzir os preços relativos das importações. Mas seria regressiva e teria efeitos negativos na atividade econômica global e doméstica, incluindo prejuízo a exportadores competitivos dos EUA. De qualquer forma, Trump parece incuravelmente desinteressado em tal política abrangente.

Então, a grande questão permanece: como os tecnocratas de Trump esperam que os ajustes macroeconômicos necessários ocorram? As propostas que fizeram são mal elaboradas. Planos para conversão forçada da dívida pública externa e depreciação não fazem sentido, a menos que o objetivo seja usar o imposto inflacionário. Os EUA tentaram isso nos anos 1970: terminou mal!

Mais importante, para que serve isso? Sim, se o déficit em conta corrente pudesse ser eliminado, o setor manufatureiro seria um pouco maior. Mas as partes que importam para a segurança ou qualquer outro propósito mais profundo não seriam necessariamente as que cresceriam. Além disso, nada pode impedir um declínio de longo prazo na participação do emprego na manufatura. A manufatura está seguindo o caminho da agricultura: a produtividade crescente prevalecerá.

Mesmo em sua forma mais sofisticada, então, a Trumponomics é irrelevante e incoerente. A versão da vida real é pior.

 

 

40 anos de incertezas por Marcos Paulo Pereira Filho

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Marcos Paulo Pereira Filho – A Terra é Redonda – 27/03/2025

Com a ascensão dos movimentos de extrema direita, estamos diante de uma crise civilizacional que expressa o fracasso da Nova República de instaurar uma modernização com inclusão social

“Oito horas e danço de blusa amarela / Minha cabeça talvez faça as pazes assim / Quando ouvi a cidade de noite batendo as panelas / Eu pensei que era ela voltando pra / Minha cabeça de noite batendo panelas / Provavelmente não deixa a cidade dormir / Quando vi um bocado de gente descendo as favelas / Eu achei que era o povo que vinha pedir / A cabeça dum homem que olhava as favelas / Minha cabeça rolando no Maracanã / Quando vi a galera aplaudindo de pé as tabelas / Eu jurei que era ela que vinha chegando” (Chico Buarque, Pelas Tabelas).

Introdução

No meio da ebulição dos movimentos autoritários de extrema direita que buscam ejetar o sistema democrático da sociedade brasileira, a Nova República e, portanto, a redemocratização, fizeram seu quadragésimo aniversário nesse mês de março.

Em inúmeros jornais físicos e virtuais, a celebração do período democrático mais longo que o país já conheceu vem carimbado com as análises dos “avanços”, “retrocessos” e “desafios” que o Brasil enfrentou desde a posse de José Sarney. Para além de qualquer compreensão maniqueísta do processo social, é significativo para um país constituído pelo trabalho escravo a organização de uma sociedade de classes lastreada no voto popular.

Do jeitão brasileiro, seus arcaísmos continuaram a se combinar com seus aspectos modernos. Que venha a democracia! Mas parcelada, com anistia aos torturadores “do passado”; Que o povo trabalhe! Mas parcialmente, com metade da força de trabalho afundada na informalidade e nos ilegalismos do cotidiano.

A construção da Nova República, apesar de seus significativos avanços políticos e sociais, se caracteriza, no geral, pelo fracasso da tentativa de resolver os problemas da formação nacional de um país na periferia do capitalismo. A busca pela organização de um Estado nacional fundado na democracia de massas, característico dos países centrais no pós-guerra, foi suspenso pelo arranjo entre proprietários nacionais e as novas lógicas de reprodução do capitalismo globalizado.

O problema da formação nacional

Durante a segunda metade do século XX, parte importante da intelectualidade nacional estava preocupada em buscar compreender as particularidades da formação nacional na periferia do capitalismo. Partindo de um método de comparação com o desenvolvimento das forças produtivas nos países centrais, a dúvida girava em torno do por que não atingimos o nível de sociabilidade capitalista característico desses.

O problema da formação estava posto como resposta ao problema nacional. Desde sua criação como colônia, o país se estabelece pelo uso do trabalho escravo em uma economia agrário-exportadora associada ao desenvolvimento do capitalismo em escala mundial, servindo como produtora de valor que seria realizado externamente, nas metrópoles europeias. Aí, Caio Prado Jr., com seu sentido da colonização, e, posteriormente, Fernando Novais, complementando sua leitura, apresenta as origens do “atraso” brasileiro.

O uso do trabalho cativo no período colonial dificultava a formação de um mercado interno nos moldes clássicos de cisão entre campo e cidade. Se na realidade europeia a utilização do trabalho livre forjou uma sociedade baseada nos princípios da divisão social do trabalho industrial, com a substituição gradual da mais-valia absoluta pela mais-valia relativa, aqui a mão de obra escravizada condenava o país às suas características agrícolas fundamentadas na baixa mecanização do trabalho.

Com as transformações na acumulação capitalista mundial a partir do século XIX e sobretudo durante a primeira metade do século XX, a formação social brasileira passou por transformações que reorganizaram seu tecido produtivo. Se até meados da década de 1930 a produção agrícola voltada para exportação servia para formação das divisas internacionais que realizaria o pagamento das manufaturas importadas, a partir das transformações políticas ocorridas na época, o país inicia um processo modernizador que buscava, ao estimular a produção industrial interna, alcançar os padrões de consumo e infraestrutura da Europa e Estados Unidos.

O desenvolvimentismo, versão latino-americana do desenvolvimento capitalista fordista-keynesiano, foi a chave que impulsionou a modernização periférica no Brasil que buscava superar sua condição de subordinado para administrador do sistema mundial produtor de mercadorias.

Francisco de Oliveira, na década de 1970, no seu ensaio Crítica à razão dualista, entretanto, apresentou como esse período de modernização conservou o caráter periférico da sociedade brasileira. Para ele, o regime de acumulação determinado pela indústria, que intensificou a produção manufatureira no Brasil, pode se realizar exatamente pela associação do “atraso” com o “moderno”, com esse estruturalmente repondo aquele e vice-versa. A reprodução capitalista brasileira se determinaria por uma altíssima concentração de renda e por particularidades em relação ao modelo clássico, europeu, de desenvolvimento capitalista.

Aqui, a regulação dos fatores de produção, notadamente a formação do trabalho assalariado, seriam induzidos pelo Estado ditatorial varguista que buscava impulsionar uma acumulação industrial, formalizando os trabalhadores dentro de uma carta trabalhista e dessa maneira regulando o exército de reserva que permitiria uma dada acumulação. Para além disso, a associação entre produções realizadas pelos trabalhadores para seu autoconsumo levariam a diminuição dos custos da reprodução da sua força de trabalho.

Dentre elas, se caracterizaria a autoconstrução, na qual os operários, mediante mutirões, construíram suas próprias casas, retirando dos custos do salário a necessidade de se acessar a moradia urbana. O padrão de acumulação da indústria também demandava uma agricultura extensiva, que permitiria o rebaixamento dos salários urbanos, pelos custos baixíssimos de reprodução da força de trabalho na agricultura, proporcionando alimentos baratos que seriam consumidos pelos novos proletários. A agricultura, também, serviria como constante exército de reserva, pelas levas de migrantes que se amontoavam na cidade buscando acessar o trabalho industrial. Nesse sentido, para o sociólogo, o capitalismo no Brasil se reproduziria de forma anômala, seria um ornitorrinco, aquele que é moderno, mas não possui as qualidades deste.

A retomada da democracia

Com o esgotamento do modelo desenvolvimentista no começo da década de 1980 e as transformações na economia mundial, o regime ditatorial militar foi substituído, de maneira gradual e tutelada, pelo regime democrático que tinha sido suspenso pelos militares em 1964. Com as mobilizações populares das Diretas Já! e depois dos movimentos sociais durante a escrita da Constituição Cidadã promulgada em 1988, houve uma animação em torno da construção de um Estado de Bem-estar na periferia do capitalismo. Passados quarenta anos desde esse período, o estágio atual que se encontra os arranjos sociais e econômicos do país nos traz reflexões sobre as dificuldades da tentativa de formar uma sociedade coesa em torno dos princípios democráticos e cidadãos.

A Nova República surgiu com políticas adotadas durante o regime civil-militar brasileiro que foram intensificadas nos últimos anos e atualmente se apresentam na forma de crise. Durante a década de 1970, por exemplo, os militares possuíam um projeto de ocupação autoritário da região Norte do país que se revelava estar despreocupada com os processos ecológicos próprios do bioma amazônico e que nos trazem atualmente diversos conflitos fundiários e ecológicos que transformaram a Amazônia em uma região de ilegalidades de todos os tipos: garimpo ilegal, grilagem de terras, extração ilegal de madeira e rota para o tráfico de drogas.

Podemos pensar também nos projetos de transformação do Centro-oeste em uma grande extensão de lavouras de soja que contou com apoio de companhias de colonização, isenções fiscais e pesquisas públicas que serviram para o quadro de reprimarização da economia que nos encontramos atualmente. Nesse sentido, alguns setores de nossa crise atual estão relacionados com a administração territorial, econômica e política dos militares brasileiros.

Mas para além da herança dos militares, existe um cruzamento entre as transformações no capitalismo globalizado e as políticas adotadas durante os governos democráticos que generalizaram o caráter de crise e colapso na qual se encontra o Brasil atualmente.

A crise do trabalho no mundo ocidental, ocasionada pelo processo de desindustrialização causado tanto pela transferência de fábricas para Ásia quanto pela substituição do capital constante pelo capital variável, fez com que parte do trabalho assalariado passasse a transitar entre exército de reserva e população supérflua. Os novos sujeitos monetizados sem dinheiro que começaram a se enclavar nas periferias dos centros urbanos mundiais passaram a ter uma nova socialização que deixou de ser pautada pelos processos de valorização característicos da sociedade industrial – que agora está em crise – para novas formas de trabalho pautados pela desregulamentação dos direitos trabalhistas e sujeitos autônomos.

No caso brasileiro, o processo de desindustrialização alicerçado com a reprimarização da sua economia levou para uma organização produtiva pautada pelo consumo interno e não mais pelas inovações tecnológicas que permitiriam o aumento da capacidade produtiva instalada no país. O crescimento da economia brasileira não se dá a partir do aumento da produtividade da força de trabalho, mas pelos estímulos fiscais que fazem com que se aumente o consumo sem estar combinado com a complexificação produtiva.

As cifras bilionárias advindas das exportações de commodities servem para que o país tenha uma balança comercial superavitária com reservas internacionais que permitam o aumento da importação de certos produtos manufaturados que são demandados pelo aumento do consumo das famílias brasileiras. No tecido produtivo interno, entretanto, não se enxerga a qualificação da força de trabalho como força motriz para o desenvolvimento das suas forças produtivas.

Os governos democráticos percebendo a impossibilidade da superação da crise do trabalho, fizeram um acordo nacional que buscasse impedir com que houvesse uma explosão da miséria ao longo do território nacional. A criação de inúmeros programas de transferência de renda, apesar de sua inegável importância na possibilidade que milhões de brasileiros tenham a mínima dignidade, serviram como administradores da pobreza que mantiveram o caráter periférico da formação social brasileira.

Junto com isso, aqueles que continuaram regularmente no mercado formal de trabalho tem em sua grande maioria no horizonte apenas o setor de vendas que suscita no país quando existe um aumento dos valores dos programas de transferência de renda ou aumento real do salário-mínimo.

Quando analisamos as pesquisas mensais do Novo CAGED podemos observar esse fenômeno de perto. Durante os meses de janeiro e junho de 2024, dos 1,300,065 empregos formais gerados, 716,909 foram no setor de serviços não complexos, isto é, ligados às vendas, com salários que giram em torno de 2,230 reais e que demandam apenas o ensino médio completo.[i] Enquanto que cada mês, na média, 100 mil empregos com apenas o ensino médio completo eram gerados, apenas 5.000 tinham algum curso de graduação. Esses dados mostram como o tecido produtivo brasileiro está organizado em torno do trabalho precarizado que amplia as desigualdades sociais brasileiras.

Castelos de papel

A sociedade brasileira atual apresenta um caráter de crise que pode ser observado de qualquer ângulo econômico, social ou político. A crise do trabalho na sociedade mundial produtora de mercadorias modificou as estruturas produtivas e intensificaram o apartheid social nos países capitalistas. No nosso caso, a tentativa da construção de um Estado social veio de encontro com a petrificação das nossas condições periféricas, agora atualizadas para nova lógica globalizadora que busca desregulamentar qualquer tentativa de mínima proteção social dos trabalhadores e da classe média.

Se durante os governos tucanos e petistas houve uma tentativa frustrada de integração nacional[ii] que ocultaram a lógica de colapso presente em nosso país-ornitorrinco, atualmente, com a ascensão dos movimentos de extrema direita, estamos diante de uma crise civilizacional que expressa o fracasso da Nova República de instaurar uma modernização com inclusão social. Criamos castelos de papel que estão sendo tragados pelos movimentos autoritários que buscam mobilizar a sociedade para a barbárie.

Marcos Paulo Pereira Filho é graduado em geografia pela USP.

 

A financeirização da velhice, por Edson S. Moraes

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Risco de transformar longevidade em negócio é alto; bancos, empresas de assistência e seguradoras já fazem do medo do futuro uma opção lucrativa

Edson S. Moraes, Mestrando em ciências do envelhecimento, é consultor de estratégia e conselheiro empresarial.

Folha de São Paulo, 27/03/2025

O Brasil envelhece rapidamente, e o que deveria ser motivo de celebração se tornou uma preocupação. A longevidade, um dos maiores avanços da humanidade, passou a ser vista como um problema econômico. Em vez de garantir segurança e bem-estar às pessoas idosas, o mercado financeiro as transforma em oportunidades de lucro, explorando sua vulnerabilidade.

A financeirização da velhice ocorre quando serviços essenciais, como saúde, Previdência e moradia, deixam de ser direitos garantidos e se tornam produtos caros. Isso afeta a todos, inclusive os mais jovens, uma vez que o sistema previdenciário enfrenta desafios com a queda na taxa de natalidade e o aumento da expectativa de vida. Se nada for feito, cada aposentado dependerá de um número menor de trabalhadores, levando à promoção de planos privados e crédito consignado. O problema? A grande maioria dos brasileiros não consegue pagar por isso.

As pessoas idosas, que deveriam ser protegidas, tornam-se alvos fáceis. Bancos, seguradoras e empresas de assistência transformam o medo do futuro em um negócio lucrativo. Muitas recorrem a planos de saúde privados por desconfiança no SUS, mas os reajustes constantes as forçam a escolher entre pagar pelo plano ou cobrir despesas básicas.

Para complementar a renda, boa parte opta pelo crédito consignado, que, apesar dos juros abaixo da média de mercado, podem gerar um ciclo de endividamento, especialmente quando usado para ajudar familiares. Já as instituições de Longa Permanência para idosos (Ilpis), popularmente conhecidas como “casas de repouso”, passaram a ser tratadas como negócios lucrativos, tornando-se acessíveis apenas para uma parcela privilegiada da população.

Se essa lógica continuar, será impossível envelhecer com dignidade sem grandes investimentos individuais. Isso reforça a ideia de que a velhice é um problema econômico e não uma conquista social, abrindo espaço para políticas que reduzem direitos e ampliam desigualdades. Precisamos encarar o envelhecimento não como um fardo, mas como um desafio que exige soluções sustentáveis e justas.

Para isso, é essencial fortalecer políticas públicas, garantindo que as pessoas idosas não dependam exclusivamente do setor privado. Melhorar o SUS, ampliar programas sociais e promover a educação financeira desde a juventude são passos fundamentais para evitar dívidas desnecessárias e planejar melhor a velhice. Também é preciso regular o mercado financeiro, impedindo abusos em planos de saúde e crédito consignado, além de garantir a efetividade da Política Nacional de Cuidados, oferecendo uma rede de suporte acessível e de qualidade. O governo já trabalha para implementar essa política, buscando assegurar que o direito ao cuidado seja efetivado de forma justa e igualitária.

Se não enfrentarmos a financeirização da velhice agora, todos pagaremos o preço no futuro. Envelhecer faz parte da vida, e garantir que isso aconteça com dignidade é uma responsabilidade coletiva. O lucro não pode estar acima do direito de envelhecer com segurança. Afinal, se envelhecer é um privilégio, não deveria ser um peso financeiro.

Paraíso Fiscal

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Na sociedade brasileira percebemos o crescimento das discussões referentes a tributação e a reforma tributária, assuntos sempre desconhecidos para a grande maioria da população, principalmente para os mais pobres, atualmente observamos alguns ruídos para que o assunto volte à tona, embora uma pequena parte de abastados e endinheirados usem seus poderes monetários e financeiros para evitar uma discussão estrutural, afinal são eles os grandes ganhadores do sistema tributário nacional.

Somos uma nação marcada por grandes desigualdades sociais, econômicas e políticas, carecemos de uma educação mais consistente, necessitamos de um setor de saúde mais eficiente e serviços públicos mais qualificados para atenderem as demandas cotidianas da sociedade, ainda mais num mundo marcado por grandes transformações tecnológicas e movimentações geopolíticas e econômicas. Todos os cidadãos brasileiros sabem que temos inúmeros problemas estruturais que remontam a nossa independência, existem algumas medidas que devem trazer ganhos maiores para a sociedade e impedir que os indicadores degradantes de renda aumentem crescentemente, neste cenário, faz-se necessário uma verdadeira reforma tributária progressiva, onde os que ganham mais proporcionalmente deveriam pagar mais, evitando que se perpetuem uma situação tributária que se aproxime de um verdadeiro paraíso fiscal.

O sistema tributário é fundamental para alavancar o crescimento econômico, retirando recursos da economia para incrementar os serviços sociais, melhorando a infraestrutura e capacitando os sistemas econômicos e produtivos para gerar empregos de qualidade, melhorando as condições de vida da população e levando a nação ao tão sonhado desenvolvimento econômico.

No Brasil, percebemos uma situação chocante e assustadora, vivemos num país que isenta os grandes milionários e bilionários, donos do capital, isentando-os de pagarem dividendos estrondosos, com altas isenções fiscais e regimes especiais para pagamentos reduzidos e, erroneamente, tributando fortemente o consumo das classes mais empobrecidas e a chamada classe média que respira artificialmente à décadas, uma classe em extinção, empobrecida, dona de empregos precários e marcada pelo endividamento gerado por taxas juros escorchantes, uma das maiores da economia internacional, que remunera os privilégios de uma elite improdutiva, corrupta e que se define, falsamente como nacionalista.

Num momento de possíveis discussões tributárias, críticas crescentes nas questões fiscais, os grupos mais organizados e dotados de grandes recursos monetários usam seus poderes financeiros para perpetuarem seus ganhos escorchantes, fortalecendo suas isenções fiscais e tributárias e preservando seus ganhos num sistema fortemente regressivo e usam seus canais de comunicação para gritar contra os gastos elevados do governo, mas se “esquecem” de suas responsabilidades tributárias e perpetuam um sistema tributário regressivo que patrocina e perpetua uma desigualdade estrutural da sociedade.

A sociedade internacional está passando por grandes transformações, uma verdadeira mutação está em curso no mundo contemporâneo, neste momento esperamos medidas efetivas, consistentes e urgentes para avivar a esperança da coletividade, precisamos rever privilégios crescentes para poucos privilegiados, reduzir penduricalhos daqueles que se acreditem iluminados, além de taxar grupos que pouco pagam, concentrar isenções para grupos que trazem ganhos substanciais para a sociedade, criando parâmetros racionais e evitando interferências políticas, neste momento precisamos ter a coragem para favorecer a grande maioria da população em detrimento dos interesses mesquinhos e imediatistas que sempre extraíram recursos nacionais e canalizaram investimentos para os verdadeiros paraísos fiscais, garantindo a pecha de um dos países mais desiguais da comunidade internacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

 

 

Economia: o financismo segue no comando, por Paulo Kliass

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Governo acerta ao mudar Imposto de Renda mas país sofre, na mesma semana, três choques em sentido contrário: a nova alta da taxa Selic, a informação de que a despsa de juros cresceu 32% em um ano e um empréstimo consignado a gosto dos banqueiros;

Paulo Kliass, Doutor em Economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas e Gestão Governamental do governo federal.

OUTRS PALAVRAS – 25/03/2025

As notícias divulgadas ao longo do mês de março a respeito da política econômica infelizmente confirmam uma tendência que já vinha se manifestando antes mesmo da posse de Lula, em 1º de janeiro de 2023. Caminhando na direção contrária das expectativas geradas pela importante vitória em outubro de 2022 na disputa eleitoral contra Jair Bolsonaro, a delegação conferida a Fernando Haddad para conduzir a economia tem se revelado um desastre.

O Ministro da Fazenda parece ter incorporado o espírito do bom mocismo desde o início de sua missão, sempre em articulação com os interesses da Febraban e das instituições do sistema financeiro. Assim foi com a sugestão de que não fosse simplesmente revogado o teto de gastos, que havia sido introduzido por Michel Temer lá atrás em 2016. Haddad propôs a Lula que a emenda constitucional da austeridade absoluta só tivesse sua vigência interrompida quando o Congresso Nacional aprovasse uma lei complementar tratando do Novo Arcabouço Fiscal. E aí estamos sofrendo com as amarras da Lei Complementar nº 200/2023.

Além disso, Haddad conseguiu transformar sua obsessão com a redução das despesas orçamentárias em estratégia central do governo, colocando obstáculos para a retomada de políticas públicas nos níveis necessários para a maioria da população e impedindo a construção de um programa de desenvolvimento social, econômico e ambiental para o País. A meta de zerar o déficit primário e a tentativa de obter até mesmo saldo positivo nas contas públicas compromete qualquer projeto de mudar a qualidade do processo de crescimento da economia.

No que se refere à política monetária, a segunda reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) sob a presidência de Gabriel Galípolo sacramentou um novo aumento de 1% na SELIC. Sob a desculpa de ser obrigado a obedecer a “guidance” recomendada por Roberto Campos Neto em sua despedida do cargo, a nova direção do Banco Central (BC) nada mais faz do que dar continuidade ao arrocho da gestão anterior. O ex-Secretário Executivo de Haddad mantém, no comando do BC, o ritmo de elevação da taxa oficial de juros. Com a elevação para 14,25%, o país segue oferecendo aos operadores do financismo global uma das maiores rentabilidades reais no planeta.

Juros na estratosfera!

A decisão do Copom nada mais significa do que referendar os desejos da elite do sistema financeiro, que se manifesta semanalmente por meio da pesquisa Focus realizada pelo próprio BC. A enquete é realizada junto a pouco mais de uma centena de dirigentes de instituições do universo das finanças e funciona como uma espécie de profecia autorrealizada. O Copom sempre justifica suas decisões de promover elevações descabidas na Selic com base na necessidade de atender às expectativas do chamado “mercado”. Ocorre que tais informações são obtidas neste seleto grupo de empresários, cujo perfil pertence exclusivamente ao universo do parasitismo rentista.

Outra informação divulgada pelo BC refere-se ao volume de despesas realizadas pelo governo com o pagamento de juros da dívida pública. Por se tratar de gasto financeiro, ele é classificado como “não primário”. Assim não existe limite, corte ou contingenciamento para tais despesas. Ao contrário do esforço fiscal para reduzir as rubricas orçamentárias que recebem o carimbo de primárias, o dispêndio com o pagamento de juros tem crescido de forma sistemática e em valores e percentagens muito acima das demais despesas.

O ano de 2024 foi encerrado com um volume de gastos de R$ 950 bilhões a esse título. Com a divulgação dos dados relativos a janeiro de 2025, o total dos últimos 12 meses sofreu uma pequena redução para R$ 910 bi. De qualquer maneira, o total dos juros pagos cresceu 32% na comparação com 2023. Trata-se da rubrica do Orçamento que recebeu o maior aumento de um exercício para outro. Curiosamente, em nenhum momento se menciona nas declarações oficiais a necessidade de reduzir esse tipo de gasto para ajudar na responsabilidade fiscal. Todo o foco do ajuste permanece sobre contas de natureza social, a exemplo de saúde, previdência social, educação, assistência social, salários de servidores, segurança pública e outras.

Outro aspecto que confirma a hipótese de que o financismo segue no comando da agenda política econômica do governo pode ser identificado na recente divulgação do modelo de crédito consignado para os trabalhadores com carteira assinada. Ao se inspirar na prática já existente para os aposentados e pensionistas do INSS e para os servidores públicos, a equipe de Haddad construiu uma proposta também para os assalariados no regime da CLT. Com a desculpa de um elevado grau de endividamento existente no interior da maioria das famílias brasileiras, o sistema mantém o grau de dependência e vinculação dos indivíduos em relação ao sistema bancário e financeiro.

Crédito consignado: armadilha do financismo.

De acordo com o modelo proposto, será possível que os endividados deste novo universo negociem novos empréstimos com taxas de juros de juros mais baixas. Afinal, a proposta do Ministério da Fazenda oferece como garantia de eventual inadimplência os recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Assim, trata-se da mais completa deturpação dos propósitos iniciais do referido fundo. Ele foi concebido para operar como financiador da habitação para população de baixa renda e para atuar como refúgio temporário para os trabalhadores que tenham sido demitidos de seus empregos.

Apesar do flagrante baixo risco envolvido, o governo se recusou em estabelecer um teto para os juros a serem aplicados aos empréstimos desta nova modalidade. Assim, segue-se o mesmo modelito de favorecimento dos bancos, uma vez que a prática espoliadora também se verifica em empréstimo de risco ainda mais reduzido, quase inexistente. Esse é o caso de aposentados e servidores públicos, quando os bancos cobram um spread injustificável para tais modalidade.

Enfim, trata-se apenas de três exemplos recentes que comprovam a importância que o governo confere para as demandas do sistema financeiro quando da definição das políticas públicas no domínio da economia.