Governo alemão deporta refugiados, por Flávio Aguiar

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Flávio Aguiar – A Terra é Redonda – 04/09/2024

Há na Alemanha mais de 50 mil ordens de deportação contra refugiados que tiveram negados seus pedidos de asilo

O governo alemão decidiu endurecer sua política em relação a refugiados considerados como em situação ilegal no país. Na semana passada já houve a deportação de um primeiro grupo para seu país de origem, o Afeganistão.

A decisão aconteceu na sequência de um atentado a facadas na cidade de Solingen, perto de Colônia e Bonn, a antiga capital da Alemanha Ocidental. O atentado deixou um saldo trágico de três mortos e vários feridos, alguns com gravidade. A polícia deteve um suspeito, um cidadão sírio que pedira asilo no país e o tivera negado. O acusado desapareceu, só reaparecendo no trágico incidente em Solingen.

Ele fora admitido na Bulgária, e deste país passou para a Alemanha. O governo alemão aprovara sua deportação para aquele país, de onde viera. A Bulgária concordou com a deportação, mas ela acabou não acontecendo devido a desaparição de acusado.

A organização Estado Islâmico divulgou um vídeo em que reivindicava a autoria de atentado como uma “vingança” pelo que estava acontecendo com os palestinos na Faixa de Gaza.

Seguiu-se um tumulto político, em que o líder do principal partido de oposição, Friedrich Merz, da União Democrata Cristã, acusou o governo do chanceler Olaf Scholz, do SPD, Partido Social Democrata, de negligência, e propôs uma ação conjunta para solucionar o problema.

Surpreendentemente o chanceler aceitou a proposta, o que levantou receios de que sua coalizão de governo, formada também pelo Partido Verde e o liberal FDP, rachasse. Isto não aconteceu, pois os líderes deste partido apoiaram a decisão de Olaf Scholz.

Há na Alemanha mais de 50 mil ordens de deportação contra refugiados que tiveram negados seus pedidos de asilo. Entretanto destas, até o momento, somente pouco mais de 20 mil foram efetivadas. A esmagadora maioria delas atinge originários de países africanos ou do Oriente Médio, muitos dos quais entraram na União Europeia através de outros países, dirigindo-se depois para a Alemanha. Olaf Scholz comprometeu-se a restringir essa possibilidade de acesso, além de agilizar as deportações já aprovadas e o julgamento dos casos pendentes.

O debate e as medidas restritivas ocorrem num momento em que aconteceram eleições regionais em estados do antigo Leste alemão, a Turíngia e a Saxônia, e o governo federal se vê acossado pelo crescimento das votações da oposição tradicional – a União Democrata Cristã – e da extrema direita, no partido Alternative für Deutschland, Alternativa para a Alemanha. Este, radicalmente voltado contra imigrantes e refugiados, vem ditando a pauta sobre esta questão na Alemanha, assim como acontece em outros países do continente.

Para complicar o cenário, a economia alemã vem se retraindo nos últimos tempos, num processo de desindustrialização, apesar dos esforços por parte do governo de revitalizar a indústria bélica alemã.

Neste quadro, à beira do abismo de uma recessão prolongada, a busca de bodes expiatórios prospera, e os candidatos mais cotados para esta função são os emigrados provenientes do chamado Terceiro Mundo, em particular os muçulmanos, sobre os quais sempre paira a suspeita, no mais das vezes indevida, de adesão a grupos terroristas.

Organizações de defesa dos direitos humanos, como a Caritas, vêm manifestando preocupação de que esta circunstância possa desandar num quadro de discriminação generalizada.

Estes últimos desenvolvimentos na Alemanha se dão num contexto continental de crescimento das discriminações contra estrangeiros não europeus, como aconteceu recentemente no Reino Unido, onde um ataque fatal contra crianças, também a facadas, deflagrou uma série de vandalismos contra mesquitas e centros de acolhimento de imigrantes, insuflados por mensagens mentirosas, de extrema direita, sobre a identidade do assaltante, divulgadas na internet.

Durante a década e meia do governo da chanceler Angela Merkel, da União Democrata Cristã, a Alemanha destacou-se por uma política generosa de acolhimento de imigrantes e refugiados de todas as partes do mundo. Agora está abertura vem se fechando gradativamente, em parte por pressões de seu próprio partido, que, em disputa com o Alternative für Deutschland, arrisca voltar-se, também como a coalizão governamental, para políticas que revigoram o fantasma da xenofobia e da discriminação.

Da Rádio França Internacional especialmente para a Agência Rádio Web, Flávio Aguiar, direto de Berlim.

*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo)

Apostas estratégicas

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A sociedade vem passando por grandes transformações nas últimas décadas, novas oportunidades e novos desafios surgem diariamente, levando as nações, as empresas e os seres humanos à tomada de decisões estratégicas, sob pena de perder espaço na economia internacional, perderem competitividade e serem ultrapassados pelos concorrentes diretos e indiretos.

Num ambiente de constantes transformações, todos os agentes econômicos e produtivos são impulsionados a escolhas e apostas cotidianas, levando-os a tomada de decisões urgentes e imprescindíveis, traçando horizontes, desenvolver conhecimentos, compreendendo as movimentações corporativas, aprendendo com os novos modelos de negócios e fazendo apostas estratégicas.

Os indivíduos apresentam desafios generalizados, tanto profissionais como pessoais e emocionais, muitas profissões que sempre atraíram muitas pessoas estão perdendo relevância, gerando imensas massas de profissionais desempregados ou na informalidade, criando uma desesperança, aumentando o medo e os ressentimentos que podem culminar em depressão e desequilíbrios emocionais. Neste cenário, percebemos a importância de se capacitar constantemente, uma constante atualização profissional, novas experiências intelectuais e culturais contribuem muito para a formação do profissional. Anteriormente os trabalhadores competiam localmente, em muitos casos até nacionalmente, agora a competição é global, encontramos pessoas nas mais variadas regiões do mundo, com suas especificidades, seus comportamentos, suas identidades, seus valores e suas variadas culturas.

As organizações precisam construir novas estratégias organizacionais como forma de qualificar seus sistemas produtivos, capacitar fortemente seus trabalhadores, criando estímulos constantes, além de uma grande capacidade de motivação e de liderança, além de satisfazer os anseios variados de seus consumidores, que mudam constantemente seus desejos, suas vontades e suas necessidades, desta forma, as empresas precisam construir uma cultura de constante movimentação, criatividade, agilidade e flexibilidade.

As nações precisam se atentar para os grandes desafios contemporâneos, num momento de grandes transformações geopolíticas e comerciais as oportunidades crescem, exigindo posicionamentos estratégicos, fortes investimentos em capital humano, capacitando seus cidadãos para compreenderem as oportunidades crescentes da sociedade globalizada, centradas no desenvolvimento tecnológico e pela maior competição, exigindo transferências de tecnologias dos parceiros comerciais estratégicos, além de forte solidariedade nos momentos de instabilidades e de incertezas da economia mundial.

Vivemos numa sociedade marcada por grandes desafios e oportunidades, além de inúmeras possibilidades, com variadas escolhas, levando os atores econômicos e produtivos a aumentarem as suas apostas cotidianas, gerando ganhos elevados, altos retornos ou, muitas vezes, inúmeras frustrações, além de prejuízos que podem trazer graves constrangimentos.

Neste momento de constantes transformações da sociedade internacional, marcada pelo incremento da competição e pelo desenvolvimento de novas tecnologias, percebemos que todos os atores produtivos precisam adotar estratégias arriscadas, que podem influenciar e vislumbrar novos horizontes, muitas organizações que lideraram seus mercados e foram referências em suas épocas fizeram escolhas equivocadas, apostando em caminhos errados, perdendo espaços e foram ultrapassados pelos concorrentes, lembremos de empresas como Xerox, Yahoo, Nokia, Kodak, dentre outras.

Vivemos momentos de grandes transformações, mas o que caracteriza este momento da comunidade internacional é a rapidez destas transformações, que exigem mudanças cotidianas, rapidez de raciocínio e agilidades constantes, levando os indivíduos e as organizações a uma sensação de constante exaustão, estresse, ansiedade e desequilíbrios emocionais.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário

Em busca de maior Autonomia Tecnológica, por Fernando Nogueira da Costa

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A Terra é Redonda – 02/09/2024

Alcançar autonomia tecnológica no Brasil requer uma abordagem multidisciplinar e integrada, envolvendo educação, infraestrutura, políticas públicas, incentivos financeiros e colaboração internacional

A economia brasileira, apesar de ser uma das maiores do mundo (8ª.) e possuir avanços superiores em setores como agricultura, mineração, extração de petróleo e aviação, ainda apresenta lacunas tecnológicas em várias indústrias estratégicas. Nestas áreas, o Brasil depende de multinacionais para atrair investimentos, transferir tecnologia, ou precisa importar produtos e tecnologias avançadas para suprir as demandas do mercado interno.

Por exemplo, em Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), embora o país tenha uma indústria de software crescente e um setor de startups em expansão, ainda depende de multinacionais para o fornecimento de hardware, semicondutores, e tecnologias avançadas de comunicação, como equipamentos para redes 5G. Grande parte dos equipamentos de telecomunicações, componentes eletrônicos e sistemas de computação avançada são importados, com destaque para países como Estados Unidos, China, e Taiwan, dominantes do mercado global de semicondutores.

O Brasil tem uma indústria farmacêutica especializada na produção de medicamentos genéricos, mas ainda dependente de multinacionais para o desenvolvimento de medicamentos inovadores, vacinas, e biotecnologias avançadas. O país importa grande parte dos insumos farmacêuticos ativos (IFAs) e tecnologias para a produção de biomedicamentos. A pandemia de COVID-19 ressaltou essa dependência, quando o Brasil teve de importar vacinas e materiais para sua produção.

A produção de semicondutores é crucial para várias indústrias, incluindo eletrônicos, automotiva e telecomunicações. O Brasil não possui uma indústria relevante de semicondutores e depende de importações para suprir a demanda.

Semicondutores são importados principalmente de países asiáticos dominantes da produção mundial. O Brasil precisa atrair multinacionais ou desenvolver capacidades locais para reduzir essa dependência.

Quanto às Tecnologias de Energia Renovável Avançada, embora o Brasil seja um líder mundial em energia hidrelétrica e tenha uma base crescente de energia eólica e solar, a produção de equipamentos de alta tecnologia para esses setores, como turbinas eólicas e painéis solares de última geração, depende de empresas multinacionais. Equipamentos e tecnologias avançadas, como inversores solares, turbinas de alta eficiência, e tecnologias de armazenamento de energia, são importados de países como Alemanha, China e Estados Unidos.

A Embraer é um destaque na aviação regional, mas o Brasil depende de multinacionais para tecnologias de ponta na Indústria de Defesa Aeroespacial, como sistemas de radar, mísseis, satélites, e aeronaves de combate avançadas. Para desenvolver capacidades mais avançadas, o Brasil precisa importar ou firmar parcerias com empresas de países como Estados Unidos, Israel e Rússia. Têm tecnologias mais avançadas nesses setores.

A indústria automotiva brasileira é de grande porte, mas a produção de veículos elétricos, híbridos e autônomos, requerem tecnologias avançadas. Aqui está em estágio inicial. A maioria das tecnologias relacionadas a baterias de lítio, motores elétricos, e sistemas de inteligência artificial para veículos autônomos são importadas de países como China, Alemanha e Japão.

A nanotecnologia é uma área emergente com aplicações em setores como medicina, eletrônicos e materiais avançados. No entanto, o Brasil não desenvolveu plenamente essa indústria e depende de importações e parcerias para avançar. Equipamentos, materiais e know-how em nanotecnologia são importados, com destaque para parcerias com empresas e instituições de pesquisa de países como Estados Unidos, Japão e Alemanha.

O Brasil tem feito avanços em inteligência artificial, principalmente em setores de serviços e fintechs, mas depende de tecnologias estrangeiras para aplicações mais avançadas em robótica, automação industrial, e inteligência artificial aplicada. A maioria dos sistemas avançados de robótica e plataformas de IA utilizadas em indústrias brasileiras são desenvolvidas por empresas estrangeiras, em geral, dos mesmos países antes citados.

A economia brasileira, apesar de seus avanços em várias indústrias, depende de tecnologias estrangeiras e da presença de multinacionais em setores estratégicos. A importação de produtos e a atração de empresas globais são essenciais para preencher essas lacunas, enquanto o país trabalha para desenvolver suas capacidades tecnológicas e reduzir a dependência externa a longo prazo. Iniciativas de políticas públicas voltadas para inovação, pesquisa e desenvolvimento, assim como parcerias internacionais, serão cruciais para fortalecer a base tecnológica brasileira nessas áreas.

Para o Brasil alcançar certa autonomia tecnológica, é necessário implementar uma série de ações coordenadas e políticas estratégicas desde a formação de capital humano até o desenvolvimento de infraestrutura e fomento à inovação.

A base para qualquer desenvolvimento tecnológico é educação e capacitação de capital humano em quantidade e qualidade. É crucial investir na qualidade da Educação Básica, especialmente em áreas como Matemática e Ciências Exatas, além da alfabetização digital. A Educação Superior também deve ser fortalecida, com ênfase em Engenharia, Ciências da Computação, Biotecnologia, e outras áreas técnicas críticas.

É essencial expandir a formação de pesquisadores, engenheiros e técnicos especializados. Programas de pós-graduação devem ser ampliados e alinhados com as demandas tecnológicas estratégicas do país.

Com o avanço rápido da tecnologia, é necessário promover programas de educação continuada e requalificação profissional para garantir a força de trabalho se manter atualizada e capaz de lidar com novas tecnologias.

O governo deve oferecer incentivos fiscais e subsídios para empresas investirem em Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PD&I), criando um ambiente favorável para a inovação. Políticas públicas (como a Lei do Bem: Lei 11.196/2005) oferecem benefícios fiscais para empresas investidoras em pesquisa.

Cabe promover colaborações entre universidades, centros de pesquisa e o setor privado para desenvolver tecnologias e soluções inovadoras. As Parcerias Público-Privadas (PPPs) ajudam a transformar descobertas científicas em produtos e serviços comercializáveis. Necessita desenvolver e expandir parques tecnológicos, incubadoras e aceleradoras de startups para apoiar a criação e crescimento de empresas de base tecnológica.

Um objetivo chave é ampliar e modernizar a infraestrutura de telecomunicações, garantindo acesso universal à internet de alta velocidade e expandindo as redes de fibra óptica, 5G e outras tecnologias de comunicação essenciais. Investir na criação e modernização de centros de pesquisa e laboratórios com infraestrutura avançada propicia apoiar pesquisas em áreas estratégicas, como biotecnologia, nanotecnologia, inteligência artificial, e energia renovável.

A Nova Indústria Brasil, isto é, a política de reindustrialização), é norteada por metas aspiracionais relacionadas a cada uma de suas seis missões.

1 – A garantia da segurança alimentar e nutricional dos brasileiros passa pelo fortalecimento das cadeias agroindustriais (missão 1).

2 – Na área da saúde (missão 2), a meta é ampliar a participação da produção no país de 42% para 70% das necessidades nacionais em medicamentos, vacinas, equipamentos e dispositivos médicos.

3 – Para melhoria do bem-estar das pessoas nas cidades (missão 3), investirá em infraestrutura, saneamento, moradia e mobilidade sustentáveis.

4 – Para tornar a indústria mais moderna e disruptiva, há a meta de transformar digitalmente (missão 4) 90% do total das empresas industriais brasileiras (hoje são 23,5%) digitalizadas e triplicar a participação da produção nacional nos segmentos de novas tecnologias.

5 – Entre as metas estabelecidas com foco na bieconomia, descarbonização e transição e segurança energéticas (missão 5) está a de ampliar em 50% a participação dos biocombustíveis na matriz energética de transportes — atualmente os combustíveis verdes representam 21,4% dessa matriz.

6 – Por fim, na área da defesa (missão 6), pretende-se alcançar autonomia na produção de 50% das tecnologias críticas de maneira a fortalecer a soberania nacional.

Em síntese, alcançar autonomia tecnológica no Brasil requer uma abordagem multidisciplinar e integrada, envolvendo educação, infraestrutura, políticas públicas, incentivos financeiros e colaboração internacional. A construção de um ambiente favorável à inovação, combinado com o desenvolvimento de capacidades internas em áreas estratégicas, permitirá ao país não apenas reduzir sua dependência de tecnologias estrangeiras, mas também posicionar-se como um líder global em setores chave.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP)

Informação não é conhecimento, e IA é a tecnologia mais poderosa da história, diz Yuval Harari

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Em entrevista à Folha sobre seu novo livro que aborda o assunto, autor de ‘Sapiens’ defende que ferramenta seja regulada como carros e remédios
Patrícia Campos Mello – Folha de São Paulo – 03/09/2024

São Paulo – O israelense Yuval Noan Harari, um dos autores mais populares da atualidade, alerta para um futuro aterrador em seu novo livro, “Nexus: Uma Breve História das Redes de Informação, da Idade da Pedra à inteligência artificial”, cujo lançamento mundial ocorre nesta terça-feira (3).

Segundo ele, a humanidade está pisando no acelerador do desenvolvimento da inteligência artificial, mas não sabe como freá-la.

“A IA é a tecnologia mais poderosa já criada pela humanidade, porque é a primeira que pode tomar decisões: uma bomba atômica não pode decidir quem atacar, nem pode inventar novas bombas ou novas estratégias militares. Uma IA, ao contrário, pode decidir sozinha atacar um alvo específico e pode inventar novas bombas”, diz à Folha o historiador, que vendeu 45 milhões de exemplares com “Sapiens”, “Homo Deus” e “21 Lições para o Século 21″.

Para Harari, o primeiro passo é concordar que precisamos regular a IA da mesma forma que regulamos produtos, medicamentos e carros”. Leia a seguir a entrevista, feita por e-mail.

Por que o sr. decidiu escrever um livro sobre tecnologia e inteligência artificial?
Este não é um livro apenas sobre IA. Ele explora a história das redes de informação desde a Idade da Pedra. A ideia é ter uma perspectiva histórica sobre a revolução da IA estudando o impacto das revoluções de informação anteriores.

Por exemplo, como a invenção do livro levou à Bíblia e ao cristianismo. Como a invenção da imprensa levou a uma onda de teorias da conspiração, caça às bruxas e guerras religiosas na Europa do século 16. E como os soviéticos usaram a tecnologia da informação moderna para criar sua polícia secreta.

O objetivo é entender a interação entre tecnologia e seres humanos. Especialistas em IA acham difícil entender como uma nova tecnologia influenciará a religião, a cultura e a política. Especialistas em computação tendem a ter visões ingênuas sobre a história.

Quando a internet surgiu, os gigantes da tecnologia prometeram que ela espalharia a verdade e a liberdade e levaria à queda de ditadores e ao fortalecimento da democracia. Isso não aconteceu.
Hoje temos a tecnologia de informação mais sofisticada da história, mas as pessoas estão perdendo a capacidade de conversar umas com as outras. Democracias em todo o mundo estão sendo minadas. Um conhecimento da história pode nos ajudar a entender o porquê.

Hoje, há uma quantidade recorde de informações em circulação, e a tecnologia nunca foi tão avançada. Mesmo assim, a humanidade nunca esteve tão próxima do autoextermínio por causa do aquecimento global e das guerras. Os luditas [trabalhadores têxteis que se opunham à introdução de novas máquinas durante a Revolução Industrial] estavam corretos?

Informação não é conhecimento. A maior parte da informação é lixo. Conhecimento é um tipo raro e caro de informação.

Por exemplo, é fácil inventar uma fake news atraente —você simplesmente escreve o que quiser.

Mas é difícil escrever uma reportagem verdadeira, porque pesquisar e apurar é caro. E a notícia verdadeira que você produz provavelmente atrairá menos atenção do que a fake news, porque a verdade tende a ser complicada, e as pessoas não gostam de histórias complicadas.

Podemos comparar informação com comida. Há cem anos, a comida era escassa. Então os humanos comiam qualquer coisa que encontrassem, gostavam especialmente de comida com muita gordura e açúcar. Hoje, a comida é abundante, e somos inundados por “comida lixo”, artificialmente rica em gordura e açúcar. Se as pessoas comem muito lixo, ficam doentes.

O mesmo vale para a informação, que é o alimento da mente. Estamos inundados por muita informação lixo. A informação lixo é artificialmente cheia de ganância, ódio e medo —coisas que atraem nossa atenção. Toda essa informação lixo deixa nossas mentes e sociedades doentes. Precisamos de uma dieta de informação.

O sr. chama de conceito ingênuo de informação a ideia de que quanto mais informação, melhor, e que as melhores ideias e a verdade prevalecerão naturalmente. Mas também rejeita a ideia de o governo atuar como um Ministério da Verdade. Qual é o meio-termo?

Devemos partir do pressuposto de que todos são falíveis. As corporações são falíveis, assim como o governo. Portanto, nunca devemos dar autoridade absoluta a uma única entidade.

O poder de regular a tecnologia da informação deve ser distribuído entre o governo, as corporações, os tribunais, a mídia, a academia e as ONGs. Isso é complicado, mas a complexidade é uma característica da democracia. A ditadura é simples —uma única pessoa manda em tudo e nunca admite nenhum erro. A democracia é complicada —muitas pessoas conversando e corrigindo os erros uns dos outros.

O primeiro passo crucial, no entanto, é concordar que precisamos regular a tecnologia da informação da mesma forma que regulamos produtos, medicamentos e carros.

Quando uma empresa automobilística decide produzir um novo modelo de carro, ela investe uma parte significativa de seu orçamento em segurança. Se uma empresa automobilística negligência a segurança, os clientes podem processá-la em busca de indenizações, e o governo pode impedi-la de vender seus carros.

Existem muitas leis que limitam aonde os carros podem ir, quem pode dirigir e a velocidade que podem atingir. Exatamente os mesmos padrões devem ser aplicados aos algoritmos.

Em um ensaio de junho de 2023, o bilionário Marc Andreessen disse que a inteligência artificial não destruirá o mundo; na verdade, pode salvá-lo. Faz sentido?

Andreessen está certo ao dizer que a IA pode melhorar muito nossas vidas. Ela pode criar o melhor sistema de saúde da história e ajudar a prevenir o colapso ecológico. Mas não devemos ignorar suas ameaças.

É a tecnologia mais poderosa já criada pela humanidade porque é a primeira que pode tomar decisões. Uma bomba atômica não pode decidir quem atacar nem pode inventar novas bombas ou estratégias militares. Uma IA, ao contrário, pode decidir sozinha atacar um alvo específico e pode inventar novas bombas, estratégias e até novas IAs.

A coisa mais importante a saber sobre a IA é que ela não é uma ferramenta em nossas mãos —é um agente autônomo, fazendo coisas que não esperávamos. O que acontecerá conosco quando milhões de agentes não humanos começarem a tomar decisões sobre nós e a criar coisas novas —de novos medicamentos a novas armas, de novos textos religiosos a novos tipos de dinheiro?

No livro, o sr. menciona várias vezes o ex-presidente Jair Bolsonaro como exemplo de líder populista que usou a informação como arma. Por que lhe pareceu importante incluí-lo?

Muitos livros sobre a revolução da IA focam demais os Estados Unidos e ignoram o resto do mundo.

Mas alguns dos piores efeitos da IA podem ser sentidos em lugares como o Brasil antes dos EUA. Vimos isso anteriormente na história, por exemplo, com a Revolução Industrial.

O senhor fala sobre o perigo de a IA, sem mecanismos de autocorreção, ser usada por líderes autoritários. Qual seria o cenário no Brasil, com um líder autoritário governando com a ajuda da IA?

Um grande perigo é a criação de regimes de vigilância total.

Ao longo da história, ditadores quiseram monitorar toda a população 24 horas por dia para garantir que todos estavam obedecendo às suas ordens e ninguém estava resistindo ou mantendo opiniões dissidentes. No entanto, até agora os ditadores não conseguiam fazer isso.

Primeiro, faltavam espiões suficientes. Por exemplo, a ditadura militar no Brasil nos anos 1970 não conseguia seguir 100 milhões de cidadãos brasileiros 24 horas por dia. Isso teria exigido 200 milhões de agentes da polícia secreta (porque até mesmo os agentes do DOI-Codi precisavam dormir às vezes).

Em segundo lugar, a ditadura não tinha analistas suficientes. Se todos os dias os espiões coletassem informações sobre 100 milhões de brasileiros, de onde o regime poderia obter analistas suficientes para processar todas essas informações?

Com a IA, um futuro ditador não precisaria de milhões de agentes humanos para espionar todo mundo. Smartphones, computadores, câmeras, microfones e drones poderiam fazer isso. Nem precisaria de milhões de analistas humanos. A IA poderia processar a enorme quantidade de informações e punir qualquer dissidência.

Isso já está acontecendo em algumas partes do mundo. No Irã, por exemplo, existem leis rígidas que obrigam as mulheres a usarem o hijab sempre que saem de casa. Anteriormente, era difícil fazer cumprir essas leis. Mas o regime iraniano agora usa IA. Mesmo que uma mulher dirija seu próprio carro sem hijab, as câmeras de reconhecimento facial identificam esse crime.

Quais são os mecanismos de autocorreção essenciais para garantir que a IA seja segura?
Precisamos criar instituições que possam identificar rapidamente problemas e reagir a eles.

Serão novas instituições regulatórias que atrairão alguns dos maiores talentos e serão financiadas por um imposto sobre os lucros dos gigantes de tecnologia.

Criar apenas uma instituição regulatória será perigoso, porque ela terá poder demais. Precisamos aderir ao princípio democrático da divisão de poder.

Há entusiastas da IA que nos dizem que não precisamos dessas instituições no momento.

Regulamentações retardariam o desenvolvimento e talvez dessem vantagem a competidores em outros países. Eles dizem que, no futuro, se descobrirmos que a IA é perigosa, podemos focar nossos esforços na segurança. Mas isso é insano.

Quando você aprende a dirigir um carro, a primeira coisa que ensinam é como brecar. Só depois de saber como usar os freios é que ensinam como apertar o acelerador. Isso também se aplica à IA.

Quanto ao argumento de que investir em segurança daria vantagem a competidores —isso é um absurdo. Se seus concorrentes desenvolverem um carro sem freios, isso significa que você também deve desenvolver um carro tão perigoso?

RAIO-X | Yuval Noah Harari, 48
Nascido em Israel, é professor na Universidade Hebraica em Jerusalém e pesquisador na Universidade de Cambridge. Formado em história militar e medieval na Universidade Hebraica, tem doutorado pela Universidade de Oxford. Autor dos best-sellers mundiais “Sapiens – Uma Breve História da Humanidade”, “Homo Deus – Uma Breve História do Amanhã” e “21 Lições para o Século 21”, traduzidos para 65 idiomas.

Extrema direita fabrica mito do passado glorioso para avançar agenda reacionária, por Ana Luiza Albuquerque

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Estratégia usada pelo nazismo e fascismo italiano é reeditada no século 21 por movimentos populistas e pela ultradireita

Ana Luiza Albuquerque, Repórter de Política, é mestre em Jornalismo Político pela universidade Columbia (EUA) e autora do podcast Autoritários.

Folha de São Paulo, 01/09/2024

[RESUMO] A fabricação do mito de um passado glorioso, estratégia utilizada nas experiências fascistas do século 20, é reeditada no século 21 pela extrema direita e pela direita populista, com o mesmo intuito de implementar valores reacionários e fustigar o modelo de Estado de Direito liberal. No Brasil, percebe-se isso no movimento bolsonarista e na construção de um passado compartilhado judaico-cristão.

“Ele é o leão da tribo de Judá”, cantava a senhora com a mão direita ao alto e a mão esquerda no microfone. O animal aparecia no manto que ela carregava nos ombros, junto às bandeiras de Israel e do Brasil. “Oh, esperança de Israel”, a mulher repetia, entoando os versos de uma canção carimbada nos cultos evangélicos.

Naquele domingo, a reunião não era religiosa. O canto da senhora enchia a esvaziada casa de eventos que abrigou a convenção municipal do PRTB em São Paulo, confirmando a pré-candidatura do influenciador, empresário e ex-coach Pablo Marçal à prefeitura da capital.

Sem o apoio do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), Marçal ativou símbolos caros para a direita bolsonarista: Deus, família e os perigos do comunismo, das drogas e da “ideologia de gênero”. Israel foi mais um deles.

Cinco meses antes, as bandeiras do país judaico haviam tomado as ruas da avenida Paulista, no centro da cidade, em manifestação em defesa de Bolsonaro. Do alto do carro de som, a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro (PL) pregou que política e religião devem, sim, se misturar, e anunciou que o povo brasileiro é cristão.

Terminou seu discurso com um recado ao Senhor: “Que tua verdadeira shalom esteja dentro dos muros de Israel. Nós abençoamos o Brasil. Nós abençoamos Israel. Em nome de Jesus, amém”.

Lá embaixo, na avenida, três senhoras envoltas pela bandeira do país judaico gravaram uma entrevista que viralizaria nas redes. Questionadas por qual motivo usavam o adereço, uma delas respondeu: “Porque somos cristãs, assim como Israel”.

A defesa fervorosa de Israel é reflexo da construção de uma gramática judaico-cristã, com o estabelecimento de uma origem em comum —um passado de glória compartilhado. É o que afirma Michel Gherman, professor de sociologia na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e autor do livro “O Não Judeu Judeu: A Tentativa de Colonização do Judaísmo pelo Bolsonarismo”.

A história mostra que movimentos fascistas se empenharam na construção do mito de um passado vitorioso para fortalecer a identidade nacional, alavancar valores reacionários e promover mudanças alinhadas com esses valores. No século 21, a extrema direita e a direita populista seguem a mesma estratégia –um de seus instrumentos é a adoração a Israel.

Segundo o professor, a construção deste mito ajuda a ativar alguns símbolos importantes para movimentos reacionários. Primeiro, a imaginada civilização judaico-cristã se afasta dos vínculos com a África. “É o Oriente Médio que se vê como europeu”, diz.

Além disso, as referências aos reinos de Salomão e Davi exploram a violência como um elemento positivo, de resistência e reação ao inimigo. “Salomão e Davi como símbolos fundamentais da conquista e da expansão”, afirma Gherman.

Ele também menciona o vínculo deste mito com o empreendedorismo, considerando que o reino é independente do Estado. “Tem uma leitura ultraliberal, no sentido da ausência do estado. Tem a presença do rei, que é o representante de Deus.”

Mas se engana quem pensa que esse movimento de adoração a Israel é religioso, afirma Gherman. “Você pertence a uma comunidade política que já foi de vencedores. A religião é um detalhe. Não é um discurso religioso. É um discurso de pertencimento a um lugar que tem que ser resgatado”, diz.

“A questão do reino de Salomão não é religiosa. É militar, política, expansionista. É um erro a gente achar que está falando de religião. A gente está falando de política.”

Em 1922, no mesmo ano em que se tornou primeiro-ministro da Itália, Benito Mussolini discursava no congresso fascista em Nápoles: “Nós criamos o nosso mito. O mito é uma fé, uma paixão. Não precisa ser uma realidade. E a esse mito, a essa grandeza, nós subordinamos tudo”.

Dois anos depois, na Alemanha, o principal ideólogo do nacional socialismo, Alfred Rosenberg, escrevia: “A compreensão e o respeito pelo nosso próprio passado mitológico e pela nossa própria história constituirão a primeira condição para ancorar mais firmemente a próxima geração no solo da pátria original da Europa”.

As duas falas são lembradas no primeiro capítulo do livro “Como Funciona o Fascismo”, de Jason Stanley, professor de filosofia na Universidade Yale (EUA). Nele, o autor argumenta que o fascismo tem um objetivo claro ao invocar o mito de um passado puro, que foi tragicamente destruído pelos progressistas, pelo liberalismo e pelo globalismo. É na criação desse sentimento de nostalgia que os fascistas vão tentar realizar seus ideais no tempo em que vivem.

“A cultura fascista está centrada em torno de alguns mitos, e o maior deles é o de um passado patriarcal, no qual a nação era ótima, e que agora está sendo destruído pelo liberalismo. Está sendo destruído pelo feminismo, pelas pessoas LGBTQ. [Grupos] que desafiam as bases dessa nação e dessa civilização”, diz Stanley à Folha.

O professor defende que o nazismo estava fundamentado no que hoje se chama de teoria da Grande Substituição – a ideia conspiratória de que existe um plano das elites globais para substituir cidadãos brancos por imigrantes não brancos.

“[Para os nazistas] A Alemanha era ótima, mas então foi humilhada pela Primeira Guerra Mundial, e eles passaram a ser humilhados pela imigração. [A ideia nazista era que] Os judeus fizeram com que a Alemanha perdesse a Primeira Guerra. Que eles eram traidores que tinham esfaqueado a Alemanha pelas costas. E que passaram a abrir as fronteiras para trazer imigrantes e derrubar a raça branca, a raça ariana. [Para os nazistas] Então você precisava que Hitler parasse a destruição da nação”, afirma Stanley.

Se no século 20 o fascismo acusava os judeus de terem destruído o passado de glória, nos tempos atuais ganha corpo entre a extrema direita um filossemitismo deturpado, que submete os judeus a um determinado passado mítico.

“O que acontecia no fascismo histórico é que tinha um grupo muito importante na Europa que não tinha passado, ou que o passado era não europeu. Um passado desconhecido, de traição, de não reconhecimento do verdadeiro Deus”, diz Gherman.

Hoje, o professor continua, o passado ideal para a extrema direita não é mais, como no século 20, referente aos bárbaros arianos ou ao Império Romano. “A novidade é um elemento fundamentador desse passado: o reino de Salomão, o reino de Judá.”

Agora, ele argumenta, cria-se a ideia de um passado compartilhado, uma origem comum entre cristãos e judeus em um reino glorioso, de grandes conquistas, anterior a Cristo, no território israelense.

“Em vez de você perseguir um judeu sem passado, o que você faz agora é impor aos judeus um passado: o passado do reino. Os judeus existem para dar à luz a esse passado do reino de Salomão”, diz Gherman. “Esse modelo de passado vai ser compartilhado por todos da extrema direita. É isso que eu chamo de judeu imaginário.”

Apesar da construção desse passado comum com os cristãos, nem todo judeu agrada ao grupo, afirma o professor. Apenas aquele visto como descendente do reino.

“Você nunca vai ver, por exemplo, nas lógicas desse judeu imaginário, o judeu moderno. Nunca vai ver um judeu secular, um judeu progressista”, diz. “Não é que eles deixaram de ser antissemitas.

Eles refundam o antissemitismo, que passa a ser vinculado a um tipo de judeu e não a todos os judeus.”

Gherman faz uma analogia para explicar por que é efetiva a construção do passado mítico pela extrema direita. “Eu sempre brinco com a ideia de que todo mundo que vai fazer visita a vidas passadas acaba descobrindo que era rainha, rei, descendente de um grande assessor do rei.

Ninguém é simplesmente um operário, um camponês”, diz. “É mais ou menos isso que a extrema direita vende, que você é descendente de uma raça gloriosa.”

O professor lembra que a moeda do fascismo para reunir seguidores era vender a ideia do pertencimento a um grupo que foi soberano no passado. “Se eu pudesse resumir o que a extrema direita pensa em relação ao presente, passado e futuro, é essa ideia de que no passado você tinha alguma coisa muito importante. E que o progresso e a expansão dos direitos destituíram você dessa importância.”

O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, é um dos líderes da extrema direita mundial que entenderam e se aproveitam da utilidade do mito do passado glorioso.

Ele frequentemente se refere à bacia dos Cárpatos como uma terra de origem comum de todos os húngaros, dissolvida com o Tratado de Trianon, firmado após a derrota na Primeira Guerra. Mais de 100 anos depois, Orbán insufla na população o ressentimento com o tratado, que, segundo o governo, fez com que a Hungria perdesse dois terços de seu território e 3 milhões de habitantes.

Assim, o país sai como vítima de grandes potências do Ocidente. No passado, dos vencedores da guerra; hoje, da União Europeia, que alerta para o desmonte da democracia húngara e, por isso, é desafiada por Orbán.

As referências à bacia original do povo húngaro e às ameaças enfrentadas ao longo dos séculos sobre o território servem como sustentação para o nacionalismo cristão, ideologia que norteia as práticas do governo. Desde que assumiu em 2010 com uma maioria de dois terços do Parlamento, Orbán aprovou uma série de leis antiimigração e construiu um muro na fronteira com a Sérvia em 2015.

Em discurso em 2021, por exemplo, o primeiro-ministro afirmou que a missão dos húngaros por séculos foi defender a bacia dos Cárpatos contra a ocupação do Império Otomano, a superpotência muçulmana que durou mais de 500 anos.

Na ocasião, Orbán defendeu que a proteção do território e do cristianismo diante da ascensão do mundo muçulmano na Idade Média, da ocupação nazista, da ocupação soviética e da natureza anticristã dos anos de comunismo na Hungria se transformou em uma grande missão de importância nacional e europeia.

László Kövér, um deputado húngaro aliado do primeiro-ministro, foi mais direto ao relacionar o passado mítico com a defesa atual da ideologia nacionalista cristã. Segundo a Radio Free Europe, ao comparar o êxodo populacional pós-Trianon com a crise migratória contemporânea na Europa, Kover afirmou que houve um intercâmbio populacional planejado disfarçado de migração ilegal —acenando para a teoria conspiratória da Grande Substituição.

“Em 1920, nós, húngaros, fomos atacados por potências europeias e grupos de interesse fora da bacia dos Cárpatos. Mas, hoje em dia, potências estrangeiras e grupos de interesse fora do continente estão atacando e destruindo a Europa…. O que é isso, se não a Europa marchando em direção ao seu próprio Trianon?”, disse ele.

Assim como fez a gestão Bolsonaro, com a qual firmou estreitos laços, o governo Orbán também adota uma visão sobre o gênero ligada a um passado patriarcal, prática central nas experiências fascistas.

No livro “Como Funciona o Fascismo”, o professor Jason Stanley argumenta que a defesa do passado patriarcal também representa a defesa do conceito de hierarquia, necessário para a manutenção da própria forma de governo autoritária.

“Em uma sociedade fascista, o líder da nação é análogo ao pai na família patriarcal tradicional.

O líder é o pai de sua nação, e sua força e seu poder são a fonte de sua autoridade legal, assim como a força e o poder do pai de família no patriarcado devem ser a fonte de sua autoridade moral máxima sobre seus filhos e esposa”, escreve o professor. “Ao representar o passado da nação como um passado com uma estrutura familiar patriarcal, a política fascista conecta a nostalgia a uma estrutura autoritária hierárquica organizadora central.”

Na Constituição aprovada a toque de caixa depois que Orbán chegou ao poder, o Parlamento governista determinou que o casamento é a união de um homem com uma mulher, e que a família é a base da sobrevivência de uma nação.

Em setembro de 2022, o governo Orbán baixou um decreto obrigando mulheres grávidas que buscam aborto a primeiro obter relatório de um médico dizendo que elas foram confrontadas de forma clara com sinais de vida do feto —ou seja, que ouviram o batimento cardíaco.

O governo também aprovou políticas públicas para encorajar as famílias heterossexuais a terem filhos.

Se no nazismo mulheres eram estimuladas a procriar para aumentar o que se entendia como a população ariana, na Hungria de Orbán esse incentivo se dá em meio à crise demográfica do país e receios de que os imigrantes possam substituir os brancos europeus como maioria da população.

“[A ideia da extrema direita é que] imigrantes estão vindo e tornando o país não branco, no caso dos Estados Unidos, e não ariano, no caso da Alemanha [nazista]. Então as mulheres precisam ter mais bebês para restaurar a nação”, afirma Stanley.

Os acenos ao passado glorioso funcionam especialmente em um momento global de crise democrática, com os percalços das democracias liberais e capitalistas que, encaradas como o modelo político ideal e definitivo após a queda do Muro de Berlim, hoje não conseguem responder aos anseios de boa parte dos cidadãos.

“Grande parte da população em países democráticos está pessimista em relação ao futuro”, afirma à Folha Benjamin Teitelbaum, autor de “Guerra Pela Eternidade: O Retorno do Tradicionalismo e a Ascensão da Direita Populista”. “Cada vez mais eles rejeitam a promessa da democracia liberal de que a vida vai melhorar, de que a passagem do tempo equivale a uma vida melhor. Muita gente não acredita mais nisso. Então é poderoso, politicamente, usar esse sentimento.”

É desse sentimento que nasce o slogan do ex-presidente Donald Trump, o “Make America Great Again” (na tradução livre, algo como “Torne a América Grande Novamente”). “Essa frase pertence a uma visão reacionária do passado. É notável por quão pouco ela diz. A frase não diz o que é tão bom sobre a América. Não há conteúdo para o conceito de grandeza. O que importa é a filosofia do tempo que está embutida nessas quatro palavras”, diz o autor.

Conselheiro número 1 de Trump, Steve Bannon tem uma visão singular sobre o passado, na qual Teitelbaum mergulhou para escrever seu livro. Após mais de 20 horas de gravação com Bannon, ele afirma que o estrategista político, como também Olavo de Carvalho, o guru do bolsonarismo, é um seguidor do tradicionalismo.

Assim como os fascistas, os tradicionalistas condenam o presente. Há, porém, uma cisão importante entre os dois movimentos. Enquanto os primeiros acreditam que poderiam recuperar o passado e criar uma nova realidade ainda superior, os segundos avaliam que nada será melhor do que já foi.

“[Para os tradicionalistas] O caminho para retornar ao que era tão bom sobre o passado é por meio da destruição. Não é uma ideologia de criação, de futurismo. É mais sobre deixar a modernidade se esgotar, tentando derrubar todas as instituições da modernidade com a crença de que no seu lugar o passado dourado vai ressurgir”, afirma Teitelbaum.

Outro movimento de franja de exaltação do passado é o localismo —uma visão antiglobalista, antiliberal e nostálgica que defende que as pessoas deveriam voltar a viver em comunidades pequenas e unidas, centradas nas famílias. Entre seus defensores, estão o escritor conservador e católico Rod Dreher, que vive na Hungria e é um grande entusiasta de Orbán, e o professor, também católico, Patrick Deneen, autor do livro “Por que o Liberalismo Fracassou”.

Os dois já foram citados como influências intelectuais pelo senador J. D. Vance, escolhido para a vice de Trump, novamente em busca da Presidência.

A extrema direita e a direita populista sofreram reveses nos últimos anos, com derrotas importantes, como a de Trump em 2020 e a de Bolsonaro em 2022.

A vertente populista, porém, segue em cena —em junho, a ultradireita nacionalista teve avanços significativos no Parlamento Europeu e, no mês seguinte, assombrou a eleição na França, embora não tenha vencido. Em novembro, Trump tentará voltar à cadeira presidencial. Não só o presente ainda continuará em disputa: o passado também.

Por que tributar as bigs techs? por Adriana Fernandes

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Gigantes de tecnologia pagam tributo no Brasil, mas há um lado da capacidade econômica delas que não é tributado

Adriana Fernandes – Folha de São Paulo – 31/08/2024

O governo Lula tem pela frente um desafio enorme, mas absolutamente necessário, para conseguir que o Congresso Nacional aprove a taxação das big techs.

As gigantes de tecnologia pagam tributo no Brasil? Pagam. Mas há um lado da capacidade econômica dessas empresas que não é tributado.

Com a polarização política no Brasil em torno dos serviços prestados por algumas dessas big techs, o debate tributário tem sido deixado de lado. Não deveria.

A rota começou a mudar com a decisão do ministro Fernando Haddad (Fazenda) de vencer a primeira etapa dessa batalha ao decidir encaminhar ainda neste semestre um projeto para taxar as big techs, informação revelada por esta Folha e depois confirmada pelo secretário Dario Durigan, o número 2 do Ministério da Fazenda.

Durigan diz que há maturidade para fazer essa tributação e sinaliza que a elaboração do modelo de tributação está em fase avançada.

Muitos países já estão enfrentando os desafios de taxar essas companhias, que, segundo o fisco brasileiro, usam artifícios para fugir da tributação.

O secretário da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, há alguns meses, declarou à Folha que essa não seria uma discussão “se o Brasil quer ou não fazer”, mas uma necessidade de essas empresas pagarem por aqui um mínimo em relação aos seus resultados. “Temos de entrar nessa”, disse.

A forma mais simples de fazer essa cobrança é taxando as receitas das vendas, não o seu lucro, principalmente nos casos em que algumas delas, como a rede X (antigo Twitter), não têm representação no Brasil.

A Cide é o tributo federal que deverá ser usado para fazer a cobrança. Além de vantagens operacionais, por ser mais simples, o governo não precisará dividir o valor arrecadado com estados e municípios, como ocorre quando há aumento do Imposto de Renda ou IPI.

Da mesma forma que o governo Lula se movimenta para encaminhar o projeto, as big techs também já estão no Congresso fazendo lobby para barrar a investida tributária.

Elas temem que o Brasil adote várias frentes de taxação e buscam evitar em conversas com o governo que isso ocorra. Em público, seguem dizendo que não há nada a ser tributado, além do que já pagam.

Se a taxação não for aprovada neste ano, o debate no Congresso vai continuar no ano que vem, porque entrou de vez na pauta econômica do Ministério da Fazenda.

Na reta final do ano, após as eleições municipais, o governo quer negociar as medidas de alta de tributo (CSLL e JPC), que foram enviadas nesta sexta-feira (30) para o Congresso com o projeto de Orçamento de 2025, além do imposto mínimo global, que garante a cobrança de uma alíquota efetiva de 15% sobre o lucro das multinacionais. A taxação das big techs e o envio da reforma da renda estão também nessa agenda.

Não parece um tempo crível para aprovar tantas medidas de aumento de tributos ao mesmo tempo.

Mas Haddad e sua equipe vão seguindo com a estratégia de avançar, recuar e insistir de novo com medidas de recomposição da base tributária do país.

O político Haddad, ex-prefeito e presidenciável, não gosta de ser citado como Taxadd pelos críticos. Mas o ministro da Fazenda parece dar de ombros para o apelido ao sinalizar que não vai abandonar a sua estratégia.

Castells: por que o Ocidente não deve bulir com a China

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Lá, a flexibilidade da empresa privada combina-se com forte coordenação do Estado e seus bancos; e a inovação tecnológica alimenta serviços públicos avançados. Lá, não há democracia liberal, mas ampla coesão da sociedade. Enfrentar este país seria trágico

Manuel Castells – OUTRAS PALAVRAS – 19/08/2024

Hangzhou continua balançando às margens de seu belo lago, que se tornou um destino preferido para luas de mel. Antigo centro do comércio de seda facilitado pelo majestoso rio que a atravessa, tem uma significativa história cultural e política, que continua se renovando. Mas a cidade que conheci em 1987 desapareceu. Em seu lugar surgiu uma metrópole de 12 milhões de pessoas, um nó global do setor de comércio pela internet. Ali está a Alibaba, a maior empresa de e-commerce do mundo em número de usuários, maior que a Amazon, com 220 mil trabalhadores e tecnologia de ponta, baseada na nuvem e desenvolvida por seus engenheiros.

Em torno dessa companhia proliferaram empresas auxiliares e de serviços. Juntas, formam um complexo industrial altamente competitivo, com modelo de negócio próprio, baseado em combinar plataformas de entrega a domicílio com a conexão entre fornecedores, seus clientes e empresas financeiras que investiram em todos os mercados.

O fundador da Alibaba, o lendário inovador Jack Ma, tentou criar um império financeiro mediante oferta de ações no mercado internacional sem permissão de Pequim. Foi aí que percebeu que o capitalismo chinês não é como os outros; então, aposentou-se e vive em Tóquio.

Mas onde parece haver ser restrições ao crescimento empresarial está, na verdade, um fator de solidez da economia chinesa. Pois, após várias crises bancárias devidas a operações especulativas, o governo vigia de perto os movimentos do mercado para evitar que sejam ultrapassados limites razoáveis na ambição de expandir o capital sobre bases pouco sólidas.

De fato a China, indiscutivelmente o milagre econômico do século XXI, não é capitalista, mas desenvolveu um híbrido entre a competitividade de suas empresas no mercado global – necessariamente capitalista – e um sistema financeiro interno e serviços públicos geridos pelo Estado. A isso se acrescenta uma visão estratégica sobre onde devem estar os investimentos e os desenvolvimentos tecnológicos em um mundo em plena digitalização, que tem sua máxima expressão na China com o celular como gestor absoluto de toda a vida cotidiana e robôs, desenhados por estudantes, que entregam a comida.

No entanto, a verdadeira força da China reside na coesão social de sua sociedade, ancorada na família, que resiste aos impactos do desemprego juvenil e das aposentadorias insuficientes.

Junto à estabilidade proporcionada por um Partido Comunista onipresente, legitimado por uma ideologia nacionalista frente ao estrangeiro e que estrutura a sociedade. De democracia, nem sinal, mas nunca existiu na China, e a grande maioria das pessoas valoriza, acima de tudo, seu bem-estar material e sua estabilidade.

A sombra inquietante é que a China se sinta ameaçada pelos Estados Unidos e se prepare para a guerra comercial e para a outra. Enfrentar essa China, coesa, desenvolvida e tecnologicamente avançada, seria um gravíssimo erro histórico.

Crescimento Econômico

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A economia brasileira se caracterizou como a nação que mais cresceu economicamente no período entre 1900-1980, gerando uma verdadeira transformação na estrutura produtiva e grandes movimentações sociais e políticas, passando de um país atrasado, eminentemente rural, exportador de produtos primários de baixo valor agregado, com uma população marcada por grande analfabetismo e desprovido de saneamento básico e poucas políticas públicas, para uma nação industrializada, fortemente urbana, com redução do analfabetismo e a construção de inúmeras políticas públicas que contribuíram para a redução da pobreza e da desigualdade.

O crescimento econômico prescinde de uma grande capacidade de planejamento e organização da sociedade, integrando setores, atraindo atores econômico e social, além de um consenso entre os grupos detentores dos poderes políticos, consolidando instituições, utilizando uma constante integração entre governo, mercado e trabalhadores, vislumbrando uma melhoria substancial da qualidade de vida e do bem-estar da sociedade.

O crescimento econômico prescinde da construção e a consolidação do mercado interno como instrumento de desenvolvimento, como destacou o grande economista Celso Furtado, autor do clássico Formação Econômica do Brasil, obra de referência para compreender a formação da história econômica nacional, compreendendo os grandes imbróglios políticos e econômicos que restringem o potencial do desenvolvimento nacional, perpetuando desigualdades e condenando a nação para um papel de subserviência no cenário internacional, como produtor de produtos primários de baixo valor agregado.

Depois dos anos 1980, a economia brasileira perdeu seu dinamismo, estimulando uma acelerada abertura econômica, uma privatização atabalhoada, uma desregulamentação e o abraço do pensamento liberal, acreditando que a abertura econômica, a desnacionalização e a concorrência dos setores produtivos levariam ao desenvolvimento da economia e a redução das desigualdades abissais que caracterizam a sociedade brasileira. O resultado imediato foi uma forte desnacionalização da economia nacional, o aumento do desemprego e da informalidade, além da perda da capacidade de orientar o desenvolvimento econômico, transferindo para o centro do capitalismo mundial as decisões estratégicas do desenvolvimento nacional.

Precisamos resgatar a importância do investimento produtivo para impulsionarmos o crescimento da economia, gerando emprego de qualidade, renda e salários dignos para fomentar as estruturas produtivas, para isso, precisamos fazer um pacto para o desenvolvimento econômico, diminuindo as polarizações que dividem a nação, precisamos reduzir as taxas de juros escorchantes que degradam as estruturas produtivas, endividam as famílias e acabam com as perspectivas de melhorias sociais, gerando ressentimentos e rancores que culminam em políticos oportunistas que visam seus ganhos imediatos e seus asseclas que os financiam.

O crescimento econômico prescinde da circulação de recursos monetários e financeiros, com investimentos maciços em capital humano, com fomento da pesquisa científica e tecnológica, retomando o papel social das instituições, o sentido verdadeiro de coletividade, do planejamento e da busca de um porvir mais esperançosos, mais justo, sem isso, estaremos nos condenando para vivermos no paraíso do rentismo, do parasitismo e do financismo, que incrementam seus ganhos, enchendo seus bolsos, vivendo em ambientes nababescos enquanto a maioria da população sobrevive na degradação, na indignidade e no ressentimento, criando caldos visíveis de grandes violências e exclusão social.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Pior do que está não fica? por Jean Pierre Chauvin

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Por Jean Pierre Chauvin – A Terra é Redonda – 28/08/2024

Tiririca estava errado e sabia disso: pior do que estava ficou. E muito. Não demora o dia em que parte expressiva dos congressistas defenderá o fim do Estado laico

O senso comum brasileiro está bem familiarizado com chavões que denotam certo otimismo compulsório. Rifões como “é melhor pingar do que faltar”; “do chão não passa”; ou “pior do que está não fica” – este, transformado em slogan por um candidato do Paraná há alguns anos – exprimem um modo superficial, porventura ingênuo, de antever as consequências tenebrosas de incertas escolhas.

Seja por leviandade, seja por desilusão com o cenário nacional, o fato é que nos habituamos a conviver com candidatos sem qualquer relevância social, cultural e política, projetados por certas legendas partidárias (e financiados por grandes empresários), com o fito de obter votos graças à sua exposição na assim chamada grande mídia.

Votos irresponsáveis em figuras dessa estirpe já trouxeram consequências nefastas, tanto local quando federalmente. Não seria necessário recordar a fala grotesca de seres inomináveis que zombaram da morte; negaram a ciência; criaram uma lista de inimigos (contrários ao patriotismo de araque); fizeram pactos com facções criminosas; ofenderam pessoas (já vitimadas por variados preconceitos); estimularam violências físicas e simbólicas; articularam máquinas de produzir ódio; divulgaram fake news; participaram de esquemas de corrupção em todas as escalas (das rachadinhas à apropriação indébita de joias); privatizaram empresas lucrativas etc.

Um candidato em campanha para prefeitura da capital paulista, neste ano, reedita parte das estratégias da extrema direita, ao maldizer e disseminar pseudoinformações, sem respaldo em quaisquer dados verificáveis. Não bastassem os ataques infundados aos adversários, desferidos por esse candidato de ocasião, forrado de clichês do universo coaching, parte da imprensa corporativa age em direção parecida ao abrandar as responsabilidades do ex-presidente e daqueles que o tratam como “líder” ou “chefe”.

A despeito disso, neste momento, dezesseis por cento dos entrevistados paulistanos declaram apoio ao sujeito. Como alguém pode levar a sério as mentiras propaladas por um tipo investigado criminalmente (por conta de suas falas sem fundamento) pelo Ministério Público? Como alguém pode acreditar que os apaniguados do bolsonarismo, feito ele, ajam “contra o sistema”?

Tiririca estava errado e sabia disso: pior do que estava ficou. E muito. Não demora o dia em que parte expressiva dos congressistas defenderá o fim do Estado laico e naturalizará as falas delirantes de pseudorreligiosos que vivem às custas da boa-fé de seus fiéis.

*Jean Pierre Chauvin é professor de Cultura e literatura brasileira na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros de Sete Falas: ensaios sobre tipologias discursivas

Cidades são hostis para idosos e economia prateada é balela, diz Alexandre Kalache

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Projeção do IBGE de maioria da população com 60 anos ou mais não é novidade e preparação está atrasada, diz médico

Entrevista de Lucas Lacerda – Fola de São Paulo – 26/08/2024
São Paulo

O médico Alexandre Kalache viu com estranheza o burburinho causado pelos dados de projeção da população do Censo 2022 divulgados na última quinta-feira (22). Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a maior parcela da população brasileira em 2070 será de idosos. “Descobriram a pólvora. Já estou dizendo isso há muitos anos.”

Já em 2050, cerca de um terço da população do Brasil terá mais de 60 anos, diz o especialista, segundo dados do próprio IBGE. As condições atuais de preparação para o envelhecimento em saúde, educação, mobilidade e trabalho, para ele, são ruins.

As cidades são hostis a idosos, diz Kalache, e a economia prateada, nome para o mercado voltado ao grupo com mais de 60 anos, é uma balela. O retrato atual da velhice, para o médico, é moldado pela desigualdade e exibe grandes parcelas de idosos endividados, responsáveis pelo sustento da família e com problemas crônicos de saúde.

O enfrentamento desse quadro deve começar agora, não apenas com quem já atingiu a maioridade, mas ainda na escola, para que adultos e idosos do futuro ao menos retardem o acúmulo de problemas. Mas ele vê uma prioridade quase nula de governantes e candidatos com a questão.

Médico gerontólogo, Kalache se diz um observador do envelhecimento. Essa foi a chave para um projeto que ele considera um legado dos anos como diretor de envelhecimento e saúde na OMS (Organização Mundial da Saúde).

Ele mapeou, a partir da visão dos porteiros de Copacabana, na zona sul do Rio de Janeiro, ações para tornar as cidades mais amigas dos idosos —e de habitantes de todas as idades, ele faz questão de destacar à Folha.

Qual a sua primeira impressão sobre a projeção do IBGE para 2070?

Quase um terço da população terá 60 anos ou mais já em 2050, são dados do próprio IBGE. Estranhei quando vi o barulho feito em relação a 2070, quando na verdade é logo ali. Vi com estranheza isso, descobriram a pólvora. Já digo há muitos anos: o grupo que mais cresce no Brasil é o de quem tem 60 anos ou mais, porque as taxas de fecundidade caíram abaixo do nível de reposição há 25 anos.

Como avalia a qualidade de vida rotineira de um idoso hoje no Brasil?

Os países hoje envelhecidos são os desenvolvidos, enriqueceram antes de envelhecer. Já o Brasil vai envelhecer muito antes de uma parcela substantiva da população ter recursos razoáveis. Pobreza e desigualdade são nossos principais problemas.

Temos uma ilusão de que o envelhecimento é cor-de-rosa, de que existe essa economia prateada.

Sim, o grupo “60+” consome, mas falamos de salário mínimo. Conseguem comer e até colocar comida na mesa para os netos. A pandemia mostrou isso: a cada vez que morria um velhinho, sua família ficava na miséria.

E como o senhor avalia isso daqui a 46 anos?

Só se pode examinar o envelhecimento sob a perspectiva do curso de vida. Os idosos de 2050 hoje são adultos com vidas pesadas, trabalho insatisfatório, serviço de transporte público massacrante e que não têm acesso a opções saudáveis de alimento, que não são baratas, nem acessíveis.

Precisamos investir primeiro em saúde e, em segundo, em conhecimento. Se este é o único grupo da população que cresce, precisamos fazer o possível e o impossível por ele. É disso que vão depender a produtividade e a competitividade do país.

Como está a qualidade de vida dos nonagenários, que serão 3% da população em 2070?

É difícil encontrar, a partir dos 80 anos, quem não tenha ao menos duas ou três condições de saúde que não matam, mas dificultam [a vida]. A pessoa chega aos 90 com nove décadas de má alimentação, sedentarismo e consumo de álcool. Estamos com uma massa de adultos que vai chegar à velhice de forma precária.

É difícil reverter algo aos 70 ou 80 anos, mas eu sempre digo “comece já”. Quanto mais cedo, melhor, mas nunca é tarde demais, sempre vai ter algum lucro. Quem vai ter 90 anos em 2070 tem 25 hoje e precisa caprichar para acumular um capital de saúde, de conhecimentos e financeiro, para chegar bem aos tais cem anos.

Os problemas nas cidades vão de gargalos no transporte ao padrão de calçadas. Como atendemos hoje os idosos, que são 10% da população?

Nossas zonas urbanas são hostis às pessoas idosas. Os ônibus, construídos em chassis de caminhão, são muito altos. Na maioria dos casos, a não ser que você esteja no Jardim Paulista [em São Paulo] ou no Alto Leblon [no Rio], eles não são adaptados, são difíceis de entrar, porque o degrau é muito alto e você já não tem mais aquela força que te empurra para a frente para subir.

Como enfrentar isso?

Desenvolvendo uma sociedade que seja —embora eu hesite em usar o termo— amiga do idoso, porque precisa ser amiga de todo mundo. Meu legado como diretor de envelhecimento e saúde na OMS foi exatamente esse. Comecei o projeto em Copacabana, bairro onde nasci e cresci, que tem a maior porcentagem de idosos da América Latina.

Em 2005, lancei um estudo improvisado, ouvindo as pessoas idosas. A resposta para “quem é seu melhor amigo” era o porteiro, que atende, monitora a região do prédio, avisa familiares da rotina. Treinamos 6.000 porteiros e disso saiu um livro com soluções criadas por eles. Além dos riscos com ônibus, vivemos numa sociedade violenta na qual o idoso é alvo fácil.
E tem a violência doméstica…

Só sabemos da pontinha do iceberg, porque a maioria dos casos sequer é relatada pelo medo de denunciar o próprio filho ou neto. Além disso, violência gera ansiedade, um mal para todo mundo, mesmo para o rico dentro do carro blindado, trancado em casa com medo de milícia e traficante.

Há muito mais ansiedade nos Estados Unidos do que em países mais pobres, mas menos desiguais, como Portugal, Grécia e Costa Rica, e isso é o segredo para envelhecer mal.

Algum exemplo nacional ou internacional que poderia ser replicado?

Lembra daquele estudo de Copacabana? Com apoio do governo do Canadá, reunimos pesquisadores, gerontólogos e planejadores urbanos e concebemos o protocolo de Vancouver para cidades amigas dos idosos, com dimensões como cidadania, transporte, moradia, participação na sociedade, acesso a serviços.

Oficialmente, segundo a OMS, 32 cidades brasileiras se arvoram como cidades amigas, mas a organização não tem meios de monitorar isso. Em Porto Alegre, por exemplo, nós vimos a tragédia de maio. O que havia de preparado para políticas municipais para idosos? Praticamente zero.

Se falarmos de bairro legal com bom transporte público, em São Paulo houve um avanço muito grande na mobilidade urbana. A rede de metrô é eficiente e é uma malha. Já a do Rio, depois que se entra, ok, mas é uma linha só. Mesmo assim não somos democráticos, privilegiamos a classe que tem mais influência no poder público.

Quanto à moradia, você tem exemplo ilhados de cohousing, que ajudam uma população envelhecida e muitas vezes isolada, sem família, que gostaria de viver junto a outras pessoas idosas. Mas há quem diga que não quer viver em um gueto, mas com todos os grupos etários. Tudo isso depende de de esforços públicos.

Estamos em ano de eleições municipais. Como vê o tema dos idosos entre candidatos de grandes cidades como São Paulo?

Políticos sofrem de idadismo internalizado. A maioria é do sexo masculino, e homem tem horror a envelhecimento. Acham que são para sempre ex-atletas. Não é, não, você é o velho de hoje. Fizemos no coletivo Velhices Cidadãs um levantamento com os partidos e, de cerca de 30, só 2 mencionam envelhecimento. Não querem saber, e isso pode vir a custar votos daqui a dois e quatro anos. Dos idosos e dos familiares deles.

Qual é a prioridade imediata?

Sou velho o suficiente para lembrar do final desastroso da guerra da Coreia. Na época, o Brasil tinha uma renda que era dez vezes a da Coreia do Sul. O que fizeram que nós não fizemos? Educação, educação e educação. É a chave, sobretudo no ensino público.

Entre os jovens que ainda temos estão os nem-nem, que não estudam nem trabalham. Nossa sociedade desigual deixa ao deus-dará este jovem, material humano que vai envelhecer. Mas também não há políticas adequadas para quem está mais perto da velhice, volto, a dizer, por causa do idadismo.

Essa ideologia perversa de não gostar do velho porque ele só dá trabalho

O idoso brasileiro em 2070 será parecido com os da geração atual?

Ele está sendo delineado hoje. Como eu disse, você envelhece de acordo com as oportunidades que está ou não tendo nas fases anteriores à velhice. Se não preveniu hipertensão, se não tem acesso a exames, a remédios, se mora mal, se tem um transporte inadequado, estamos perdendo tempo. O velho de 2070 já é adulto hoje. É um desafio global, e o século 21 será caracterizado pela revolução da longevidade.

Algo que não perguntamos?

O recado é: pare de reclamar que você e o país estão envelhecendo. Envelhecer é um marco civilizatório, é bom. Morrer cedo é que não presta.

Raio-X
Alexandre Kalache, 78
É médico gerontólogo, especializado em envelhecimento e políticas multissetoriais, pesquisador e professor universitário. Foi diretor do Departamento de Envelhecimento e Saúde da OMS entre 1994 e 2008, e é presidente do Centro Internacional de Longevidade Brasil. Vive entre o Rio de Janeiro, Londres, no Reino Unido, e Granada, na Espanha, onde leciona na Escola Nacional de Saúde Pública.

Declínio da democracia e avanço do neofascismo, por Liszt Vieira

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As análises de crises políticas de um país que focalizam apenas os aspectos internos ou externos, por mais brilhantes que sejam, serão sempre parciais

“Um espectro ronda o mundo, e desta vez não é o comunismo, mas uma nova direita que avança na Europa, nos EUA e América Latina”
(Enzo Traverso).

Liszt Vieira – A Terra é Redonda – 19/08/2024

Para analisar algum conflito político em qualquer país – como é o caso agora na Venezuela – não basta uma análise endógena, da situação eleitoral e da correlação de forças internas do país. É necessário levar em conta o fator exógeno, a pressão internacional que, hoje, é ainda mais forte do que outrora.

Analisar a crise política de um país ignorando os fatores externos que influenciam a situação política interna é um equívoco que vem sendo cometido por muitos que denunciam a fraude na eleição da Venezuela, considerada por eles como ditadura.

Os estudiosos da democracia e seu declínio sempre enfatizam que os governos autoritários, sejam ou não ditadura, acabam com os freios e contrapesos essenciais a uma democracia. E alertam: a democracia atualmente não termina com uma ruptura violenta de um golpe militar, ou de uma revolução. O autoritarismo se implanta com o enfraquecimento lento e constante das instituições, como o judiciário e a imprensa, e a destruição gradual das normas políticas tradicionais.

Mas essa visão tradicional de declínio da democracia também está em declínio. Muitas vezes, as instituições tradicionais, como o judiciário e a imprensa, apoiam o enfraquecimento da democracia e a implantação da ditadura. Essas instituições não estão suspensas no ar, fora e acima da luta de classes. No Brasil, por exemplo, o Judiciário condenou Lula sem provas, com o apoio da imprensa, para impedir sua candidatura a presidente em 2018. E parte do Judiciário e da imprensa demonstrava simpatia pelo golpe militar que Jair Bolsonaro tentou organizar e acabou não conseguindo.

Os diversos escritores e cientistas políticos que discutem o declínio da democracia no mundo nem sempre questionam os supostos básicos da democracia: a busca do bem comum, da justiça social, da igualdade, o voto livre e consciente do cidadão, sujeito de direitos, que escolhe – livre de pressões – quem representa seus interesses.

Numa sociedade de massas, tem peso enorme a manipulação do voto pela mídia, redes sociais, internet, e pelo uso e abuso de fake news que disputam e muitas vezes prevalecem sobre a realidade na conquista do voto. Isso leva grande número de eleitores a votarem contra seus próprios interesses. Pior ainda nos lugares, como o Rio de Janeiro e Baixada Fluminense, onde metade das cidades está controlada pelas milícias que impõem seus candidatos sob a ameaça de morte.

Na realidade, os regimes democráticos, dominados por uma elite política e econômica, foram em geral incapazes de atender às necessidades da maioria da população que se tornou presa fácil de fake news e do discurso religioso, principalmente evangélico. Nossa civilização, tributária do Iluminismo, está em crise. Muita gente não quer mais saber dos fatos da realidade. Quer ouvir o discurso que coincide com suas crenças. Hoje, os dogmas doutrinários rivalizam e às vezes superam os princípios científicos.

Neste segundo semestre de 2024, há quem preconize o fim da democracia no Brasil – e não só – com a vitória de Donald Trump na eleição presidencial de novembro próximo nos EUA. Em seu artigo no jornal GGN, Luis Nassif lembrou o jornalista Pedro Costa Júnior, segundo o qual “o Brasil passa a depender diretamente do resultado das eleições dos Estados Unidos. Uma vitória de Donald Trump selará o destino da democracia brasileira. Por isso mesmo, o movimento contra Alexandre de Moraes é apenas o primeiro lance dessa conspirata. E os mesmos grupos de mídia, que atuaram decisivamente para a ascensão de Jair Bolsonaro, repetem o mesmo movimento”.

O fascismo clássico destruiu a democracia de fora pra dentro. O neofascismo usa a democracia, faz o jogo da democracia para ganhar a eleição e destruir a democracia a partir de dentro. É exatamente o que Jair Bolsonaro tentou no Brasil. Só não conseguiu porque o governo de Joe Biden pressionou contra, enviou diversas vezes altos diplomatas ao Brasil para dizer que confiava no sistema eleitoral e dar recado aos militares: Nada de golpe! Não interessava a Joe Biden um ditador aliado de Donald Trump. Não fora isso, talvez o golpe militar houvesse prosperado. Tinha o apoio de diversos generais – Villas Boas, Braga Netto, Pazuello etc. – e muitos coronéis e outros oficiais, principalmente da Marinha.

Mesmo com a derrota de Donald Trump, a política externa beligerante dos EUA não deve mudar muito. É verdade que um governo Kamala Harris não vai fortalecer o movimento mundial de extrema direita, e terá importantes diferenças na política interna. Mas, quando se trata de ir ou não à guerra, o presidente dos EUA, seja quem for, não apita muito. Isso é decisão do complexo industrial-militar.

Há um elemento importante a ser considerado quando falamos de regimes autoritários neofascistas.

Não se trata apenas de restrições à liberdade individual e política, de censura à imprensa e à cultura, de repressão aos partidos, às organizações populares e aos movimentos sociais. O neofascismo é negativista no que se refere às mudanças climáticas e suas desastrosas consequências.

Em todo o mundo, os princípios do desenvolvimento sustentável, para usar um eufemismo, nem sempre são observados – desenvolvimento econômico com proteção ambiental, diversidade cultural e redução drástica da desigualdade social. A crise climática ameaça a possibilidade de sobrevivência da humanidade no planeta. Mas os grandes interesses econômicos ligados ao combustível fóssil – petróleo, gás, carvão – continuam predominando sobre a transição energética, que acabará sendo adotada depois de grandes desastres e catástrofes climáticas levando à morte e ao empobrecimento de grande parte da população mundial.

Outro ponto importante a ser considerado é o fato de o neofascismo se alimentar da crise do neoliberalismo e seus dogmas de Estado mínimo, privatização de serviços públicos, transformação de direitos em mercadoria. O neoliberalismo entrou em crise em todo o mundo capitalista. A crise é menor nos países que não abriram mão do investimento público do Estado, como ocorre nos próprios EUA, onde o governo investe principalmente em infraestrutura e tecnologia.

Mas já se tornou evidente que o neoliberalismo começa a se despedir da democracia liberal em favor de governos autoritários de índole neofascista, levando consigo as instituições liberais que, como sói acontecer, apoiam ditaduras quando seus interesses econômicos estão ameaçados.

Estamos no alvorecer de um novo período histórico em que a hegemonia unilateral dos EUA perde força em favor de um multilateralismo, principalmente com a ascensão econômica da China. Como ocorreu no passado, essa passagem não se dá sem guerras. Já há quem fale em nova guerra mundial que estaria sendo estimulada por alguns governos, como os EUA provocando a Rússia com o cerco da OTAN – que levou Moscou a invadir a Ucrânia alegando defesa própria – e Israel, provocando guerra no Oriente Médio.

Esse pano de fundo internacional não pode ser ignorado quando analisamos a crise política de um país, por mais complexa que seja a situação. No caso da Venezuela, o petróleo tem sido negligenciado na discussão sobre a crise de legitimidade e a fraude eleitoral. Afinal, os EUA vão tão longe buscar petróleo, na Arábia Saudita, considerada a ditadura mais sangrenta do mundo, mas ignorada ou até mesmo tratada muitas vezes pela imprensa como democracia. Se os militares venezuelanos, vizinhos dos EUA, resolvessem deixar todo o petróleo nas mãos de empresas americanas, na mesma hora a mídia diria que a Venezuela é um exemplo de democracia.

Assim, as análises de crises políticas de um país que focalizam apenas os aspectos internos ou externos, por mais brilhantes que sejam, serão sempre parciais. Afinal, como reconhecia Marx, leitor de Hegel, a verdade está na totalidade.

*Liszt Vieira é professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond).

Crises políticas prenunciam mutações constitucionais, por Oscar Vilhena Vieira

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O resultado das batalhas entre Poderes é que alguns ampliam suas prerrogativas e outros perdem

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023)

Folha de São Paulo – 24/08/2024

O acordo apalavrado entre as cúpulas do Judiciário, do Legislativo e do Executivo em torno das emendas parlamentares foi saudado pelo presidente Lula como um sinal de que e “Brasil voltou a normalidade”. Difícil prever se a conciliação irá interromper a batalha entre Poderes em que ingressamos na última década. Se alguma normalidade advier dessa conciliação, será muita distinta daquela em que vivíamos até 2013.

O arranjo constitucional brasileiro era marcado por uma relação de dominância do Executivo sobre o Legislativo, que ficou conhecido como “presidencialismo de coalizão”. O presidente eleito, dotado de uma série de prerrogativas legislativas e orçamentárias, montava uma coalizão partidária para governar, que competia na próxima eleição.

Os sucessivos escândalos de corrupção política, associados a uma perda de capacidade de construir consensos sobre questões relevantes, sobrecarregaram o sistema de Justiça e levaram o Supremo assumir um papel de dominância em muitas circunstâncias.

A reação à “supremocracia” veio primeiro dos partidos políticos depois do bolsonarismo. O alinhamento da Lava Jato com Bolsonaro e a capitulação da Procuradoria-Geral da República levaram o Supremo a recuar no combate a corrupção e a reestabelecer o diálogo com a classe política.

Paralelamente, o Congresso se beneficiou da fragilidade dos governos Dilma, Temer e Bolsonaro, para extrair prerrogativas do Executivo. Foi se assenhorando de parcelas cada vez maiores do orçamento. Também aproveitou para ampliar o financiamento público dos partidos. Com emendas vinculantes e dinheiro no bolso, os parlamentares assumiram a posição de dominância, ao menos em relação ao Executivo.

O fato de a democracia constitucional brasileira ter sobrevivido às diversas crises que se sucederam a partir de 2013, e, sobretudo, aos ataques da extrema direita, não significa, entretanto, que o sistema constitucional tenha saído ileso da refrega.

Crises políticas prenunciam transformações no arranjo constitucional. O resultado das batalhas institucionais é que alguns ampliam suas prerrogativas e outros perdem. Algumas dessas transformações vêm acompanhadas de alterações formais da letra da Constituição, entrincheirando vitórias, como a transferência para o Legislativo do controle sobre parcelas do Orçamento.

Outras decorrem de mudanças na postura de cortes constitucionais, como as que vêm fragilizando os direitos dos trabalhadores e dos povos indígenas, sem qualquer alteração do texto constitucional.

A nova normalidade chancelada pela reunião entre os Poderes aponta para preocupantes mudanças no arranjo constitucional. O Legislativo consolida avanços sobre funções de governo, sem assumir as responsabilidades decorrentes dessas funções. Surge, assim, uma espécie de regime de coabitação no poder, sem que o Parlamento esteja submetido a um sistema de responsabilização política, como nos regimes parlamentaristas.

O espaço do Executivo ainda não está claro. Mas num país carente de políticas públicas estruturadas e consistentes, em campos fundamentais como educação, saúde, infraestrutura ou segurança, é muito preocupante vislumbrar a subordinação do governo à fragmentada alocação de recursos determinadas pelos parlamentares.

O Supremo, por sua vez, vem dando sinais de que pretende assumir uma função mais mediadora e conciliadora, em detrimento de sua custosa, mas indispensável, tarefa de guarda da Constituição. Como justificar democraticamente essa função que o Supremo vem se autoatribuindo?

Reencontrar a normalidade parece ser uma boa coisa. O risco, porém, é normalizarmos mais os vícios do que as virtudes de nosso arranjo constitucional, que já apresentava problemas.

70 anos da morte de Getúlio Vargas, por Paulo Batista Nogueira Júnior

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Paulo Nogueira Batista Júnior – A Terra é Redonda – 23/08/2024

Vargas deve ser considerado o maior presidente de todos os tempos por sua extraordinária quantidade de grandes feitos, que deixaram marcas indeléveis
À minha mãe, que acaba de morrer

No dia em que o maior presidente da nossa história se matou, em 24 de agosto de 1954, há 70 anos, eu estava exatamente dentro da barriga da mãe, que enfrentava uma gravidez difícil, com risco de perda da criança. Acamada, ela foi terminantemente proibida de se levantar. Porém, ao ouvir a notícia do suicídio do presidente da República, ela pulou da cama e saiu gritando pela casa: “Getúlio se matou!”. Por pouco, não fui desta para melhor (o que talvez não fosse mal, uma vez que, como escreveu Heine, “o sono é bom, a morte melhor, melhor mesmo seria nunca ter nascido”).

Dominada por getulistas, a família de minha mãe, os Pinheiros de Minas Gerais, ficou desolada, assim como a grande maioria do povo brasileiro. A morte de Getúlio Vargas desencadeou comoção popular sem precedentes e adiou por dez anos o golpe que militares e civis reacionários e entreguistas tramavam para derrubá-lo. Essa comoção é uma das muitas provas de que ele foi, de fato, o maior presidente da história do Brasil.

Os lulistas que me perdoem, mas o atual presidente seria um segundo lugar, no meu modesto entender, à frente de dois outros grandes presidentes que governaram o Brasil por menos tempo: Juscelino Kubitschek (1956-1961) e Ernesto Geisel (1974-1979), ambos por mandato de cinco anos. Lula já governou quase dez anos e, se reeleito em 2026, como esperamos que seja, terá completado 16 anos na Presidência ao final do seu quarto governo. Getúlio Vargas permanece, entretanto, o presidente mais longevo da história, com 19 anos no cargo (1930-1945 e 1951-1954).

Não é por duração no cargo, evidentemente, que Getúlio Vargas deve ser considerado o maior presidente de todos os tempos. O que importa é a sua extraordinária quantidade de grandes
feitos, que deixaram marcas indeléveis.

Antes de enumerá-los, faço duas rápidas digressões. Primeira: ninguém pode negar que Lula é um gigante, talvez hoje um dos principais líderes do planeta. Realizou muito nos seus dois primeiros mandatos, sobretudo no segundo. Resistiu heroicamente a uma perseguição implacável. Procura agora realizar mais ainda, defrontando-se, porém, com a pesadíssima herança recebida de Jair Bolsonaro e com a sabotagem permanente da turma da bufunfa.

Lula se destaca entre todos os presidentes, pelo que fez e está fazendo em termos de combate à pobreza e distribuição de renda. Pode ser considerado um sucessor de Getúlio Vargas, em que pese certa ambivalência dele e do PT em relação à era Vargas.

Segunda rápida digressão: os quatro presidentes mencionados têm pelo menos um ponto em comum: lideraram governos marcados pela combinação de desenvolvimento com nacionalismo e suscitaram a hostilidade dos setores mais conservadores da sociedade brasileira. Isso vale principalmente para os presidentes civis, mas até Ernesto Geisel teve que enfrentar a insubordinação do general Ednardo D’Ávila, comandante do Segundo Exército em São Paulo, antro de tortura e assassinatos políticos.

Teve, também que abortar uma tentativa de golpe comandada por seu ministro do Exército, Sílvio Frota, líder da linha dura. Foi o que permitiu a continuação da “distensão política lenta, segura e gradual” iniciada por Geisel e que daria fim à ditadura militar no início da década de 1980. Um parêntese: a inclusão de Ernesto Geisel entre os mais importantes presidentes pode causar estranheza; prometo explicar melhor em outra ocasião.

Realizações econômicas e sociais do Getúlio Vargas

Lula e Juscelino são presidentes democráticos, eleitos pelo voto direto. Getúlio Vargas só o foi na sua segunda fase como presidente, quando voltou ao poder por eleição direta com uma vitória estrondosa em 1950.

Mesmo assim, qualquer um sofre na comparação com Getúlio Vargas. Não sei se os brasileiros, mesmo os que tiveram a oportunidade de se educar, fazem uma ideia, ainda que remota, do que foram os seus governos. A lista de realizações é longa, vou procurar resumi-las, sem a pretensão de mencionar sequer todas as principais.

No campo econômico, Getúlio Vargas reagiu à grande depressão dos anos 1930 com uma política de intervenção econômica e defesa do preço do café, então nosso principal produto de exportação, o que permitiu suavizar e abreviar o impacto da crise internacional sobre a economia brasileira.

Praticou o que Celso Furtado denominou de “keynesianismo antes de Keynes”. Em consequência, a economia brasileira se recuperou antes da maioria das demais.

Já a Argentina, apegada ao grande sucesso da sua economia primário-exportadora até 1929, adotou uma linha econômica liberal e experimentou uma crise muito mais severa. Enquanto a Argentina naufragava, o Brasil de Getúlio Vargas deu partida à fase mais intensa de industrialização brasileira, com o centro dinâmico da economia se deslocando do setor agroexportador para o mercado interno, como destacou Celso Furtado.

Em 1941, Getúlio Vargas criou a Companhia Siderúrgica Nacional, explorando a rivalidade entre o Terceiro Reich e os Estados Unidos, e conseguindo assim o apoio americano para o estabelecimento da empresa. Em 1942, ele criou a Vale do Rio Doce, cujo primeiro presidente foi Israel Pinheiro, meu tio-avô e avô do economista André Lara Resende.

No seu segundo mandato, em 1952, Getúlio Vargas cria o BNDE (hoje BNDES). E a Petrobrás em 1953, sob forte resistência do capital estrangeiro e seus aliados domésticos. Só não conseguiu criar a Eletrobrás, que surgiria em 1961 com JK.

Boa parte das empresas estatais estratégicas para o desenvolvimento do Brasil remonta, portanto, à Era Vargas. Não por acaso, coube ao presidente Fernando Henrique Cardoso, neoliberal e entreguista, líder da “privataria”, anunciar pretensiosamente que poria “fim à Era Vargas”. O que FHC pôs no lugar estamos procurando até hoje. O que houve nos governos dele foi um processo acelerado e mal conduzido de privatização, de 1995 em diante, que desaguaria nas privatizações infames de Paulo Guedes no governo de Jair Bolsonaro.

Mas não foi só no terreno econômico que Getúlio Vargas trouxe mudanças fundamentais. Foi ele que instituiu as leis trabalhistas, em 1934, prevendo direitos para os trabalhadores, como salário mínimo, jornada de oito horas, férias remuneradas e liberdade sindical. Foi no seu governo que
se estabeleceu o voto da mulher, em 1932, realizando antiga reivindicação das lideranças femininas.

Não por acaso, Getúlio Vargas volta em 1951 à Presidência “nos braços do povo”, como ele diria na sua carta-testamento três anos depois. Não por acaso, as suas políticas suscitaram intensa hostilidade de grande parte, provavelmente da maior parte da retrógrada e predatória elite brasileira.

Os falsos democratas

Getúlio Vargas foi derrubado por um golpe militar em 1945. Veio então a presidência do marechal Eurico Gaspar Dutra, de triste memória, marcada pela implantação de uma política liberal desastrosa e pela subordinação aos interesses dos Estados Unidos. Em 1950, porém, retoma o desenvolvimentismo após derrotar o candidato da União Democrática Nacional (UDN), o brigadeiro Eduardo Gomes, cujo lema de campanha era “vote no brigadeiro, ele é bonito e é solteiro” e que chegara a dizer que “não necessitava dos votos dessa malta de desocupados, que apoia o ditador [Getúlio], para eleger-me presidente da República”.

A UDN só era democrática no nome. Tinha pouca competitividade eleitoral, perdia quase todas para o getulismo e logo ia bater nas portas dos quartéis, pedindo intervenção militar. Ela foi derrotada não só em 1950, mas em 1955 quando Juscelino se elegeu. E JK teria sido provavelmente eleito em 1965, não fosse o golpe militar de 1964, insuflado e liderado pelos “democratas” da UDN.

Diga-se de passagem que a direita brasileira só conseguiu vencer eleições presidenciais quando apelou para figuras exóticas e destrambelhadas, porém carismáticas – Jânio Quadros em 1960, Fernando Collor em 1989 e Jair Bolsonaro em 2018. A eleição e reeleição de Fernando Henrique Cardoso, um político sem carisma e até então sem grande projeção, um “presidente acidental”, como ele mesmo disse, só foram possíveis em circunstâncias muito especiais – com o Plano Real em 1994 e um gigantesco estelionato eleitoral em 1998.

O Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) de FHC, sucessor da velha UDN anti-Getúlio, também só era democrático e social-democrata no nome, tendo os seus integrantes e seguidores, em grande maioria, embarcado alegremente no golpe parlamentar contra Dilma Rousseff em 2016. Foi a UDN, comandada por Carlos Lacerda, um demagogo radical de direita, que arquitetou junto a militares entreguistas o golpe que seria abortado pelo suicídio de Getúlio Vargas há 70 anos.

Getúlio Vargas saiu da vida para entrar na história, como disse na sua carta-testamento, documento que merece ser lido até hoje, pois expressa magistralmente as aspirações de desenvolvimento e justiça social que continuamos buscando.

*Paulo Nogueira Batista Jr. é economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS. Autor, entre outros livros, de O Brasil não cabe no quintal de ninguém (LeYa).

Emprego e desenvolvimento

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Vivemos momentos de grandes transformações na estrutura produtiva global, de um lado a concorrência entre os agentes econômicos e produtivos crescem de forma acelerada, alterando fortemente o mundo do trabalho, levando os indivíduos a novos comportamentos, novos valores e novas necessidades, levando as empresas e as organizações a transformarem suas estratégias, seu planejamento, como forma de sobrevivência, ainda mais, quando percebemos a inclusão de 1 bilhão de novos consumidores oriundo de nações asiáticas, com culturas, histórias e identidades, gerando desafios gigantescos para o setor produtivo.

O mundo industrial do início do século XX, grande gerador de empregos e influência nas políticas públicas governamentais, perdeu espaço na economia globalizada. Na contemporaneidade, encontramos novas relações entre capital e trabalho, o setor de serviços assumiu a dianteira na geração de empregos, fragilizando o setor industrial, revolucionando o mundo do trabalho, fragilizando os sindicatos, aumentando a competição entre os trabalhadores, fortalecendo o individualismo, estimulando a uberização, a economia de plataformas e o empreendedorismo.

Neste momento central da economia internacional, marcado por grandes desafios, medos e oportunidades, percebemos que os setores educacionais apresentam grandes dificuldades de compreenderem os desafios do capitalismo contemporâneo, as universidades perderam a relevância, a ciência vem perdendo espaço no debate atual, além do crescimento de uma visão negacionista e reacionária, inviabilizando as discussões nacionais, afastando reflexões racionais e postergando decisões fundamentais para os rumos da sociedade, levando a comunidade a perceber que, sem estes debates, caminhamos novamente para uma década de estagnação.

Nenhuma nação conseguiu historicamente seu desenvolvimento econômico, com melhores condições de vida de sua população, sem fortes investimentos em educação, em ciência, em pesquisa, em formação continuada de professores, com salários dignos e condições decentes de trabalho. Algumas nações conseguiram seu desenvolvimento econômico, sem recursos naturais, com população reduzida e geograficamente fragilizada, investindo maciçamente em capital humano, angariando espaços no comércio internacional, diversificando sua economia e fortalecendo a pesquisa científica, desenvolvendo vantagens comparativas e consolidando seu espaço no mercado global, produzindo tecnologias, novos conhecimentos, novos materiais e produtos sofisticados.

A geração de empregos é fundamental para movimentarmos os setores produtivos, ainda mais numa nação como o Brasil, marcada por grandes desigualdades, garantindo salário e renda para os trabalhadores, movimentando os recursos financeiros, aumentando a demanda, incrementando a arrecadação dos governos, incentivando políticas públicas que geram benefícios para a comunidade e trazendo novas esperanças para a sociedade, contrastando momentos de forte desesperança e degradação.

Nas últimas décadas o mundo do trabalho passou por grandes transformações em escala global, no Brasil fomos assolados por uma política de austeridade suicida que previa ambientes melhores e forte crescimento econômico no porvir, resultado imediato foi a degradação da indústria nacional, fomento da desindustrialização, incremento dos ganhos dos rentistas e dos financistas, além do desemprego elevado e piora das condições de vida da população, fomentando um ambiente marcado pela violência crescente e pela desesperança. Neste momento, as nações desenvolvidas estão se distanciando das políticas de austeridade, mas infelizmente, no Brasil, as ideias novas e os ventos de modernidade demoram muito tempo para chegar…

Ary Ramos da Silva Júnior, bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

China contemporânea — seis interpretações, por Maysa Torres dos Santos

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Maysa Torres dos Santos – A Terra é Redonda – 18/08/2024

Comentário sobre o livro organizado por Ricardo Musse

O livro China contemporânea: seis interpretações traz reflexões de alto nível teórico a respeito dos principais temas que envolvem o debate em torno da chamada China contemporânea. Tendo em vista a atualidade e a popularidade do tema, devido à ascensão da economia chinesa e ao destaque internacional que a China tem conquistado nas últimas décadas desde a abertura econômica e as reformas de 1978, a contribuição dos autores traz alguns pontos polêmicos e não consensuais, mas também fundamentais para o debate na teoria política marxista.

O primeiro texto, de Alexandre de Freitas Barbosa, intitulado “A ascensão chinesa e a economia-mundo capitalista: uma perspectiva histórica”, apresenta elementos introdutórios para o debate a respeito da China contemporânea. O autor faz um resgate histórico acerca do desenvolvimento da economia e da política chinesa. Nesse sentido, Alexandre de Freitas Barbosa expõe na primeira parte de seu texto as razões pelas quais considera que na China o capitalismo não se desenvolveu. Nota-se que há, desde a gênese do desenvolvimento econômico chinês, um forte controle estatal que, de acordo com Barbosa, é exercido por meio dos mandarins letrados — ou seja, o controle estatal é uma característica chinesa que antecede o modo de produção socialista.

Dentre os autores do livro, o diferencial de Alexandre de Freitas Barbosa se dá devido ao fato de o autor considerar que os modelos utilizados sobretudo pelos economistas ocidentais, como “capitalismo de Estado” e “socialismo de mercado”, têm reduzido potencial analítico para tratar da China, de modo que a principal dificuldade para a análise da economia chinesa, no ponto de vista do autor, residiria na esfera conceitual. Porém, a despeito dessa avaliação, o autor considera a China capitalista devido à sua conexão global, ainda que cercada pelo poder do Estado.

Apesar de desenvolvimentos teóricos distintos, os dois textos seguintes, intitulados respectivamente “Apontamentos sobre a geopolítica da China” (de Elias Jabbour e Alex Dantas) e “Comentários sobre a economia política chinesa” (de Wladimir Pomar), possuem conclusões similares, razão pela qual apresentarei as principais reflexões desses autores em conjunto. Como afirmado anteriormente, faz-se necessário desenvolver a análise histórica sobre o controle estatal na China para compreender esse país na atualidade. Nesse sentido, os autores trazem elementos pouco conhecidos da história chinesa para compreendermos as causalidades que a levaram à posição na qual a China se encontra na contemporaneidade.

Comecemos pelo ponto em que esses autores convergem com o texto de Alexandre de Freitas Barbosa: a abundância material chinesa e as origens do controle estatal na China. No texto de Elias Jabbour e Alex Dantas, assim como no texto de Alexandre de Freitas Barbosa, os autores demonstram que a abundância de água e solo fértil levaram a um rápido desenvolvimento das forças produtivas materiais — condição que, para os autores, conduziu ao surgimento de uma larga economia de mercado. Porém, Elias Jabbour e Alex Dantas introduzem um conceito presente no debate marxista sobre a transição socialista: o modo de produção asiático. Assim, os autores defendem que a China já surge como uma forma primitiva de Estado desenvolvimentista.

Enquanto Elias Jabbour e Alex Dantas demonstram, a partir do contexto de abundância material da China, o surgimento de um Estado de tipo desenvolvimentista, Wladimir Pomar, em seu texto “A economia política chinesa”, retoma a história da China para compreender as mudanças a partir das reformas econômicas de 1978. Contudo, Wladimir Pomar inicia sua apresentação a partir da Revolução Chinesa, defendendo que devido ao atraso das condições econômicas e sociais, o desenvolvimento econômico e social foi a diretriz fundamental da economia política marxista.

Com relação ao modelo político econômico da China, Elias Jabbour e Alex Dantas defendem o socialismo de mercado como mais aplicável à China contemporânea. Resumidamente, os autores mantêm essa posição, sobretudo devido à grande intervenção do Estado chinês na economia. O conceito de “Nova Economia de Projetamento”, então, é adotado pelos autores como resultado da planificação econômica, organização e racionalização da produção em grande escala e pelo fato de acreditarem que as teorias convencionais, tanto ortodoxas como heterodoxas, não seriam suficientes para explicar a China.

O texto de Bruno Hendler, intitulado “Crise de hegemonia e rivalidade EUA-China”,aprofunda e endossa a contribuição dos autores anteriores, pois o autor, embora não foque na discussão a respeito do modelo econômico chinês, demonstra, com base em alguns indicadores de desenvolvimento — o PIB chinês em comparação ao norte-americano, o índice de exportação, importação e o debate monetário —, como a China logrou disputar com os EUA a reorganização da economia mundial.

O texto de Bruno Hendler nos faz entender, ou ao menos questionar, a abrangência do desenvolvimento chinês nas últimas décadas. Se nos textos anteriores vimos o tipo de modelo econômico existente na China e, sobretudo, a forte presença estatal na economia e na política, nesse texto é possível compreender como o modelo político econômico, independente da denominação defendida pelos autores, pôde chegar ao ponto de disputar a hegemonia mundial. A exposição do autor, portanto, se opõe à argumentação de orientação ideológica liberal, segundo a qual a intervenção estatal e o planejamento econômico são típicos de economias atrasadas ou, também, não são capazes de gerar riqueza suficiente para competir no mercado internacional.

Em seu texto “Simultaneísmo e fusão na paisagem, na cultura e na literatura chinesa”, Francisco Hardman, diferentemente dos autores anteriores, traz a reflexão a respeito da cultura e da literatura chinesa. Dentre a vasta e sofisticada apresentação de Francisco Hardman, julguei relevante destacar o seguinte elemento trazido pelo autor, pois retoma uma característica ideológica presente na Revolução Cultural: o fato de ele colocar, de antemão, que não pretende nenhum tipo de dualismo geográfico-histórico na análise, mas se propõe a pesquisar as várias fusões ocorridas, considerando, também, as mudanças determinadas pelas relações de produção capitalistas.

Vê-se, portanto, que o autor faz um movimento muito importante para os estudos sobre China ao mobilizar aspectos oriundos da Revolução Cultural. O primeiro deles é considerar a questão camponesa como determinante na cultura chinesa e, em segundo lugar, a falibilidade do dualismo ocidental para tratar da China.

O texto de Luiz Enrique Vieira de Souza traz um tema que mobiliza estudiosos e, sobretudo, críticos ao modelo chinês: a questão ambiental. Apesar de o governo chinês defender a noção de “civilização ecológica”, Souza identifica os limites desse conceito na China. Inclusive, Luiz
Enrique Vieira de Souza faz um adendo necessário: o sentido atribuído à “civilização ecológica” configura um campo em disputa entre as elites políticas chinesas, apesar do seu relevo enquanto diretriz para a formulação de políticas públicas.

Segundo o autor, o conceito de civilização ecológica, nesse sentido, foi cunhado como uma alternativa aos modelos ocidentais de desenvolvimento sustentável. Souza conclui que a contradição desse conceito é que há analogias com as insuficiências dos projetos de modernização ecológica nos países capitalistas do Ocidente: o crescimento econômico permanece como dogma inquestionável, assim como os processos de reforma ambiental são negociados no interior do atual modelo de produção.

Apesar de o livro abordar diferentes temas, as preocupações e perspectivas compartilhadas por esse conjunto importante de autores contribuem para a compreensão da política econômica da China contemporânea, bem como da posição desse país com relação às principais questões que despertam o interesse e as críticas dos estudiosos do assunto.

*Maysa Torres dos Santos é mestranda em ciência política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Publicado originalmente na revista Crítica marxista, no. 56 [https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/cma/article/view/1880]
Referência
Ricardo Musse (org.). China contemporânea: seis interpretações. Belo Horizonte, Autêntica, 2021. 208 págs.

Venezuela em disputa, por Valério Arcary

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Valério Arcary – A Terra é Redonda – 10/08/2024

Os EUA não têm autoridade política ou moral alguma para denunciar o regime venezuelano como uma ditadura

“Não acendas um fogo que não podes apagar”
(Provérbio popular português).

A polêmica sobre o resultado das eleições venezuelanas divide a esquerda brasileira e internacional. Mas a disputa não é sobre democracia. “Quem brinca com o fogo pode se queimar”, ensina a sabedoria popular. Se a oposição de extrema direita prevalecer, ninguém se engane, não hesitará em usar o poder para garantir um programa de choque de privatizações e perseguições. O conflito não deveria ser resumido, tampouco, a uma luta entre chavistas e antichavistas.
Há quem não se identifique como chavista, mas denuncia que a campanha para derrubar o governo é reacionária, portanto, que a vitória do PSUV deve ser reconhecida. Uma imensa maioria daqueles que denunciam que Nicolás Maduro arquitetou uma fraude, e deve aceitar uma derrota não é nem remotamente de esquerda. A questão de fundo é o petróleo.

A Venezuela é um país independente, ou o mais próximo disso que é possível no mundo contemporâneo, o que é intolerável para os EUA. A alternativa real é soberania nacional ou recolonização. Aqueles na esquerda que estão convencidos que houve fraude, seja pela razão que for, deveriam se perguntar sobre as consequências de um governo da extrema direita.

Não há uma ditadura, strictu sensu na Venezuela, mas tampouco há um regime democrático-liberal. O que é incontornável é que a alternativa a Nicolás Maduro é a oposição neofascista. Edmundo González é uma marionete de Maria Corina. Ela é, por sua vez, uma marionete dos EUA. Se chegarem ao poder o destino da Venezuela será semelhante ao do Iraque, vinte anos atrás: um protetorado norte-americano.

Aí, sim, o mais provável será uma ditadura e, possivelmente, uma guerra civil, porque o cenário de resistência armada diante da promessa de privatização da PDVSA e prisão dos líderes chavistas parece inescapável. A disputa não é por transparência eleitoral, mas por controle da PDVSA. Não é sobre lisura eleitoral. A extrema direita não tem compromisso algum com a democracia-liberal.

Tem uma inviolável aliança com os EUA e, em especial, com Donald Trump. Atrás de Maria Corina, estão Jair Bolsonaro no Brasil, José Antonio Kast no Chile, Javier Milei na Argentina, e Álvaro Uribe na Colômbia.

Depois de vinte e cinco anos de conspirações políticas e cerco econômico, a despeito de uma aposta estratégica duvidosa, ou muito arriscada, como preservar uma economia capitalista para não antagonizar os EUA frontalmente, como Cuba fez em 1961, o regime não foi derrotado. Tomou decisões perigosamente, erradas, como a suspensão da liberdade de organização de outras correntes de esquerda, uma política de choque fiscal para conter a superinflação, o favorecimento de uma casta civil-militar que detém grandes privilégios, mas o governo não caiu.

Realizou mais de vinte pleitos pelo critério do sufrágio universal, apesar das sanções e de um criminoso cerco que chegou ao absurdo da apropriação das reservas nos bancos dos EUA, e de toneladas de ouro depositadas em Londres, mas perdeu somente uma delas, o que levou Guaidó a se autoproclamar presidente. Não é razoável concluir que Nicolás Maduro não tem qualquer legitimidade, e seria um “caudilho grotesco” apoiado numa “cleptocracia” militar.

O regime político endureceu e assumiu formas bonapartistas autoritárias. Não se sustenta, todavia, somente no controle das Forças Armadas e da polícia, porque disputa a hegemonia política. Aceitou a realização de eleições depois do acordo de Barbados, para sair do isolamento, facilitar o fim das sanções, e abrir um caminho para sua reintegração no mercado mundial.

Preserva uma implantação entre setores dos trabalhadores e das camadas populares, apesar do peso social, também, da oposição de extrema-direita, em especial, nas camadas médias. O país está fraturado e dividido. Não há um processo revolucionário ininterrupto, desde 2002, quando o golpe contra Hugo Chávez foi derrotado. Mas o país preservou sua independência, e isso não é pouco.

A estratégia dos Estados Unidos para a América Latina foi, durante o intervalo entre 1948 e a queda do Muro de Berlim, a restauração capitalista e o fim da URSS (1989/1991) defender regimes e governos que tivessem uma lealdade incondicional com seus interesses contra o que interpretavam como o “perigo comunista”. Árbenz na Guatemala em 1952, Getúlio no Brasil em 1954,

Péron na Argentina em 1955, Jango em 1964, entre muitos outros, foram deslocados por campanhas golpistas. Regimes ditatoriais foram defendidos, tanto por republicanos como Eisenhower ou Nixon ou democratas como Kennedy ou Lindon Jhonson. Monstros como Trujillo, Somoza, Stroessner, Médici, Pinochet e Videla foram protegidos.

A possibilidade de regimes democrático-liberais só veio a ser admitida a partir do final dos anos oitenta, depois dos pactos com Mikhail Gorbatchev. Os EUA não têm autoridade política ou moral alguma para denunciar o regime venezuelano como uma ditadura. Washington é uma fortaleza do capitalismo imperialista. Os EUA, mesmo quando a gestão é do partido democrata, só defendem a democracia-liberal enquanto estão seguros de que os seus interesses não serão prejudicados.

Não é possível soberania nacional nos países dependentes da periferia sem ruptura anti-imperialista. Nem uma só nação periférica da Ásia ou África, que eram colônias sob ocupação militar até o final da Segunda Guerra Mundial, saiu da condição periférica, ou até da extrema periferia aceitando, pacientemente, o seu lugar no mundo. Nem mesmo na América Latina, onde as independências nacionais ocorreram há duzentos anos, foi possível uma inserção independente no mercado mundial. Nem sequer o Brasil, o maior e mais complexo país.

Nenhuma nação conseguiu nivelar as suas condições econômicas e sociais com o padrão dos países centrais aceitando as imposições da ordem mundial. As que se emanciparam, ainda que parcialmente, o fizeram através de revoluções. A ordem imperialista nunca aceitou, pacificamente, que uma ex-colônia se libertasse sem terríveis represálias.

A experiência atual da Venezuela – o país com as maiores reservas de petróleo confirmadas – é somente mais um exemplo. Mesmo tendo sido, incomparavelmente, mais moderados ocorreram golpes militares ou institucionais contra os governos de Dilma Rousseff no Brasil em 2016, Evo Morales
na Bolívia em 2019, e Pedro Castillo no Peru em 2022.

Romper com os limites da ordem imperialista pode não ser o bastante nos países periféricos, no intervalo de uma geração, para uma elevação da qualitativa das condições de vida da maioria do povo aos níveis dos países que estão no centro, mas demonstrou-se uma condição para a redução acelerada da pobreza extrema e das desigualdades sociais. A frio, evolutivamente, sem desafiar os centros imperialistas, nunca foi possível. A Venezuela foi o país latino-americano que foi mais longe e paga o preço por isso. Subestimar a estratégia da contrarrevolução é uma ingenuidade.

A luta pela independência nacional no mundo contemporâneo é o ápice da luta democrática. Todas as nações têm o direito de ter o domínio sobre os seus destinos. Nada é mais democrático do que libertar um povo dominado e oprimido por Estados muito mais ricos e poderosos. Ainda que a maioria dos países na periferia seja, formalmente, independentes, não têm plena soberania.

Porque se construiu um mercado mundial: um espaço onde se movimentam capital, força de trabalho, recursos naturais, tecnologias em uma escala que a humanidade nunca conheceu antes.
Nenhuma nação pode existir fora deste mercado mundial. Qualquer ilusão sobre a possibilidade de uma “autarquia” no mundo contemporâneo é uma ilusão perigosa. Sem integração não há possibilidade de desenvolvimento e, portanto, de redução da pobreza. Mas há um obstáculo intransponível no acesso a este mercado mundial. Não há “governo” mundial, mas há uma ordem internacional muito rígida e injusta. No seu centro está a Troika, a aliança da União Europeia, Reino Unido e Japão com a liderança inviolável dos EUA. Quem não se submete, incondicionalmente, à sua supremacia será perseguido.

As relações de comércio no mercado mundial são desiguais. Os países periféricos, mesmo os mais fortes, como o Brasil, uma nação em grau mais avançado de industrialização, são dependentes da exportação de matérias-primas de pouco valor agregado e precisam, desesperadamente, de acesso a mercadorias que incorporam tecnologias de ponta como máquinas de última geração e, sobretudo de capitais. As relações de troca são assimétricas e injustas. A periferia vende suas commodities por preços que são estabelecidos em Bolsas, como em Chicago, por exemplo.

Os países centrais são exportadores de capital e credores, e os periféricos importadores e endividados. Ao bloquear o acesso ao mercado mundial, como punição pela ousadia de independência nacional, os países centrais condenam as nações rebeldes à asfixia econômica.

O estrangulamento econômico produz crise social porque a vida das massas populares, que já era muito precária, se torna insustentável. Nestas condições terríveis, a realização de eleições ocorre em condições dramaticamente desfavoráveis. Os países em que triunfaram revoluções anti-imperialistas descobriram-se, sem exceções, diante do dilema de estender suas revoluções no entorno, uma dinâmica de revolução permanente, ou enrijecer os seus regimes.

A China enfrentou uma guerra civil e a revolução venceu, mas ficou bloqueada. A Coreia do Norte foi invadida pelos EUA, o Vietnã resistiu em guerra por três décadas, Cuba permanece, dramaticamente, isolada, cercada, bloqueada. Todos foram além do capitalismo, mas qualquer possibilidade de iniciar uma transição ao socialismo foi interrompida. O capitalismo foi restaurado, ou está em dinâmica de restauração, com a possível exceção de Cuba, talvez. As lutas para mudar o mundo são brutais e impiedosas. Têm uma beleza heroica, mas são violentas.

*Valerio Arcary é professor de história aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de Ninguém disse que seria fácil (Boitempo).

Liberdade e mercado, por Luiz Marques

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Luiz Marques – A Terra é Redonda – 14/08/2024

Os neoliberais creem que o reino da liberdade coincide com o livre mercado para os objetivos da acumulação

O conceito de liberdade está presente nas revoluções que fundam a modernidade: (a) a Revolução Inglesa, em 1642, para derrotar o absolutismo rumo à monarquia constitucional para submeter o rei ao Parlamento; (b) a Revolução dos Estados Unidos, em 1776, cuja Declaração de Independência põe fim ao exógeno domínio anglo-saxônico sobre as treze colônias e; (c) a Revolução Francesa, em 1789, que derruba a monarquia absolutista em nome da República e da própria humanidade.

As liberdades individuais são decisivas para a consecução da tríplice soberania — a representativa, a nacional e a popular. Historicamente os direitos civis precederam os direitos políticos e sociais. A liberdade então tinha vetor revolucionário, abria horizontes, não se confinava em shopping centers.

David Harvey, em Crônicas anticapitalistas, retoma os temas de feições anarquistas com ênfase no autoritarismo ao sugerir que os ideais libertários são a marca do Maio de 1968, pelas demandas por: (i) liberdade da coerção estatal; (ii) liberdade da coerção do mercado; (iii) liberdade da coerção do capital corporativo e; (iv) liberdade da coerção moral e dos costumes. Tudo temperado na igualdade.

A resposta do neoliberalismo para absorver e neutralizar a alta tensão nas instituições é canalizar o legítimo desejo de autonomia dos indivíduos para as aspirações mercadológicas. O transformismo burguês joga no liquidificador as pautas dos enfants terribles para misturar e redirecionar as baterias contra os órgãos de regulamentação estatais, jogando toda energia disponível no moinho do capital.

O eclipse da liberdade

A arte de fazer as cabeças eclipsa a liberdade e deflagra uma “guerra cultural”. Por paradoxal, para tachar de autoritário o Partido dos Trabalhadores (PT) que emula o Orçamento Participativo (OP) e o Fórum Social Mundial (FSM), o movimento dos movimentos. Nesta realidade paralela, fabrica idolatrias tipo Viktor Orbán (Hungria), Benjamin Netanyahu (Israel) e Donald Trump (EUA) para os quais o Estado de direito democrático é um instrumento para configurar regimes de exceção. A nova razão do mundo submete a democracia e a liberdade às desregulamentações, às privatizações e aos ajustes fiscais para barrar gastos sociais. A demagogia e as fake news fazem parte do cardápio.

Os neoliberais creem que o reino da liberdade coincide com o livre mercado para os objetivos da acumulação. A visão economicista relega ao segundo plano a realização dos seres humanos. É fácil identificar os think tanks da mais-valia. “Todos têm o pensamento de dono”, nas palavras de um membro exponencial do Instituto de Estudos Empresariais (IEE). Do charmoso Mont Pèlerin, os neocolonizadores projetam a globalização da hierarquia de mando e obediência sobre o mundo.
“O planejamento econômico e o controle vêm sendo atacados como negação da liberdade, enquanto a empresa livre e a propriedade privada são consideradas essenciais à liberdade”, frisa Karl Polanyi, em A grande transformação. Com efeito, a meta não é construir a igualdade, mas a desigualdade. O desemprego é premeditado para enfraquecer o aparato sindical e legitimar os arrochos salariais, apresentados como modernização das relações de trabalho com o aval classista do judiciário. Assim, o distopismo conservador converte a meta do Estado de bem-estar em um grave desequilíbrio fiscal.

Os avanços políticos alcançados na geração de emprego e na distribuição de renda são denunciados “como camuflagem da escravidão”. Não são permitidas as transgressões ao laissez-faire do deus-mercado. Medidas para curar as dores das iniquidades frustram os lucros. A insensatez prefere os indicadores, para baixo, no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Sociedades erguidas sobre alicerces distintos não merecem o batismo de “livres”, ainda que possam contemplar mais e melhor a população. O individualismo e a indiferença com o sofrimento do povo injeta a narrativa, na veia, que evoca a praga de Margaret Thatcher: “Não há alternativa”. Resta apenas a servidão voluntária.

Na dialética desse paredão, o capitalista pode: (a) maximizar as taxas de exploração com o aumento da produtividade e a diminuição dos predicados trabalhistas e; (b) impedir a quebra de patentes das inovações tecnológicas em favor das comunidades. Enquanto o trabalhador pode: (i) escolher o emprego e; (ii) resistir com base na liberdade de consciência e de associação, que compõem o rol de prerrogativas cívicas no programa do socialismo democrático. Tal é o “pode-pode” sistêmico atual.

Para resgatar a liberdade

O acesso universal à moradia e à esfera de sociabilidade pública são trocados pelo “totalitarismo da mercadoria”. O Consenso de Washington é apresentado como panaceia. Londres contabilizava 60% de moradias sociais não avaliadas pelo valor de troca, mas pelo valor de uso; hoje fruto da metódica especulação dispõe de menos de 20%. No Brasil, o Minha Casa, Minha Vida procura se precaver no faroeste imobiliário que dinamita a gramática comunitária para tratar tudo como uma mercadoria.

A democracia de proprietários confronta o construto histórico da cidadania e a constitucionalidade das nações modernas. Azar dos perdedores se Nova York soma 65 mil pessoas em situação de rua, em 2023, e São Paulo lidera o ranking brasileiro do desamparo com 55 mil entregues ao coração do padre Júlio Lancellotti. O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) é um antídoto contra as tendências desagregadoras do mercado. “A verdade é que estamos construindo cidades para que as pessoas especulem, e não cidades para que as pessoas vivam”, arremata David Harvey. Moradas a preços acessíveis são volatizadas com a explosão de imóveis para o consumo dos endinheirados.

Esse é o obstáculo estrutural às iniciativas para a reconstrução do Rio Grande do Sul, pelo governo federal. A inaptidão das autoridades em nível estadual e local combinada com a inexistência de domicílios suficientes, ao custo de até R$ 200 mil, são os empecilhos que se apresentam contra o saneamento do desastre. As megaconstrutoras preferem investir em arranha-céus e prédios de luxo. Democratizar o processo de habitação é reinstalá-lo na condição de bem social. Barcelona proibiu dez mil alugueis tipo Airbnb. Nenhum Plano Diretor municipal deve proteger o lucro dos rentistas.

Vale para o transporte de massas, o abastecimento hídrico e a energia elétrica. Serviços privatizados agravam tragédias “naturais” e desculpam desgovernos incompetentes, sem transparência. Práticas governamentais terceirizadas contribuem para a destruição material e simbólica do comunitarismo. A financeirização usa eventos socioambientais para desmilinguir os entes públicos e aprofundar o eugenismo. Cabe à esquerda desfraldar as bandeiras pelo caminho: “En la lucha de classes / todas las armas son buenas / piedras / noches / poemas”, conforme o poeta samurai Paulo Leminski.

É urgente romper os grilhões da desumanização. A possibilidade de uma existência autêntica, com a ampliação radical da liberdade, supõe a superação do reino da necessidade e do trabalho alienado. A consolidação de um patamar de dignidade mínima propicia a socialização dos novíssimos valores. Com a subsistência assegurada, a sociedade usufrui de cada qual segundo sua capacidade. Mas para não incorrer em um utopismo estéril, é mister fixar os elementos políticos do período de transição.

Em um debate com Rahel Jaeggi, Nancy Fraser sublinha: “É inconcebível uma sociedade desejável, capitalista ou pós-capitalista, que não conceda papel importante ao planejamento. O planejamento pode e deve ser democrático. Ele não requer a nomenklatura ou o governo de técnicos especialistas. Poderíamos lidar com uma questão como a mudança climática sem algum planejamento de grande escala? Um bloqueio sistêmico dessa escala não pode ser feito por pequenos coletivos”.

A atual crise ecológica põe em destaque a urgência das articulações transnacionais. Somente a democracia global garante vida longa ao Homo sapiens e ao locavorismo, para a produção local de alimentos.

Só com o planejamento e o controle democrático sobre o excedente social, com regulação (de fora) da economia e as modificações (por dentro), é possível sedimentar os conteúdos emancipadores. A interrupção da mudança no clima do planeta para fruição da vida pessoal depende de uma cultura da solidariedade e da participação. As posições paliativas subestimam o perigo na esquina. A virtude não está no centro, senão na luta coletiva real para derrotar o neofascismo e o neoliberalismo e seu apêndice conservador. A rapina semeia a infelicidade, a atomização. Arruína a sociabilidade plural. Já a práxis transformadora fortalece os lemas da Idade Moderna: liberdade, igualdade, fraternidade.

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.

A Venezuela contra o império, por Paulo Nogueira Batista Júnior

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Paulo Nogueira Batista Júnior – A Terra é Redonda – 09/08/2024

Os Estados Unidos e a oposição venezuelana fantoche dificilmente derrubarão Nicolás Maduro
Uma coisa me parece certa, leitor ou leitora: é fundamental entender que a Venezuela sofre a cobiça dos Estados Unidos e outras nações imperiais. Para elas, o que interessa é o acesso o mais livre possível aos imensos recursos naturais venezuelanos, petróleo e gás destacadamente. E para esse fim nada melhor, nada mais eficaz do que ter em Caracas fantoches e títeres, como os da oposição a Nicolás Maduro.

Estou sendo repetitivo? Talvez. Mas, como dizia Nelson Rodrigues, o que não é repetido com insistência permanece rigorosamente inédito (frase que já repeti, aliás, centenas de vezes).

Cabe reconhecer, claro, que o presidente Nicolás Maduro às vezes toma decisões duvidosas, para dizer o mínimo. Um exemplo marcante: a pretensão de incorporar à Venezuela mais da metade do território da Guiana. Isso criaria uma confusão na América do Sul e, mais amplamente, nos outros países da América Latina e do Caribe. A América do Sul é uma região de paz desde a Guerra das Malvinas em 1982 e precisa continuar assim. Desde a guerra do Paraguai contra a Tríplice Aliança, de 1864 a 1870, não houve um conflito envolvendo diversos países no nosso continente.

Uma guerra entre a Venezuela e a Guiana não abriria caminho para uma intervenção americana direta? Não é exatamente isso que queremos evitar? Nicolás Maduro agredir a Guiana equivaleria à decisão fatídica de Saddam Hussein de invadir o Kuwait em 1990. O Brasil nunca poderia endossar um avanço da Venezuela sobre outro vizinho nosso. Isso não interessa ao Brasil, não interessa a ninguém. Observo, de passagem, que a Guiana faz parte do grupo de países que representei na diretoria executiva do FMI. Tenho um fraco por ela, pois desenvolvi uma relação de afeto (pouco profissional, reconheço) com quase todos os países do nosso grupo.

Contudo, isso não influi sobre o que vai escrito aqui e nem interessa agora. O que queria dizer é que, à distância, no meio de uma guerra de informações, é muito difícil determinar quem está mentindo e quem, dizendo a verdade sobre o resultado das eleições venezuelanas. Alguém tem credibilidade para falar sobre isso? A oposição provou algo? O governo provou?
Quem tem moral para falar em democracia?

Não vamos perder de vista que diversos países que se arvoram a opinar não têm moral nenhuma para interferir nas eleições da Venezuela – ou de qualquer outro país for that matter. Onde existem eleições realmente confiáveis? Nos Estados Unidos? Francamente! Para começo de conversa: alguém entende o sistema eleitoral americano? Parece que havia por lá uma dúzia de sujeitos que o compreendiam perfeitamente e sabiam explicá-lo, mas estão todos mortos ou entrevados.

A complexidade do sistema americano favorece manipulações. Há suspeitas recorrentes e até evidências de eleições fraudadas. E o sistema ainda produz absurdos arrematados – como a vitória na eleição presidencial de um candidato com menos votos do que o adversário. Foi o que aconteceu, por exemplo, em 2016, quando Hillary Clinton venceu no voto popular e perdeu para Donald Trump no colégio eleitoral onde votam delegados. Poucos no exterior sabem que não há eleição direta nos Estados Unidos.

Sem falar no nível estarrecedor de corrupção política. O que eles têm nos Estados Unidos, como dizem os próprios americanos, é the best Congress that money can buy (o melhor Congresso que o dinheiro pode comprar). Uma plutocracia, portanto, não uma democracia. Se o leitor ou leitora me permite o lugar-comum, direi que as acusações americanas à Venezuela devem suscitar o famoso bordão: “macaco olha o teu rabo!”.

Vou mais longe e entro aqui, por um instante, em terreno pantanoso. Afinal, a democracia é mesmo um valor universal, como se afirma com frequência? Ou está entre aqueles conceitos gerais e vazios que Nietzsche chamava de “a última fumaça da realidade evaporada”? O risco de recorrer a essa noção de universalidade é o de conduzir à ideia de que existe um modelo único de democracia – provavelmente aquele que os países do Ocidente Político (ou Norte Global) praticam ou dizem praticar e querem exportar para todos os cantos do planeta.

Não estamos diante de mais um embuste da chamada “comunidade internacional” – o grupo formado por Estados Unidos, Canadá, União Europeia, mais alguns países europeus, Japão, Coreia do Sul, Austrália e outros penduricalhos? Comunidade que inclui apenas cerca de 15% da população mundial!

Deixem, portanto, a Venezuela resolver sem interferência estrangeira os seus problemas políticos e econômicos! Problemas esses que foram criados, recorde-se, em larga medida pelas sanções aplicadas há muito tempo por Estados Unidos e seus satélites europeus. Menciono um só exemplo: as reservas internacionais e os ativos líquidos da petroleira estatal venezuelana foram congelados e roubados por americanos, ingleses e outros. Pirataria, não há outra palavra!

As dificuldades da economia da Venezuela refletem, também, má gestão por parte dos governos de Hugo Chávez e Nicolás Maduro, não há dúvida. Mas um peso enorme, talvez preponderante, deve ser atribuído às numerosas e sistemáticas sanções impostas à Venezuela. Na verdade, é grande a lista de países que foram ou estão sendo sancionados pelos Estados Unidos junto e seus satélites – entre muitos: Irã, Síria, Afeganistão, Iraque, Líbia, Cuba e, mais recentemente, Rússia e China.

Justamente daí é que vêm a desdolarização e os planos, ainda embrionários, de criação de uma moeda de referência dos BRICS como alternativa ao dólar.
Papel do Brasil

Qual o papel do Brasil nesta quadra? Muitos, na direita bolsonarista, na direita neoliberal e até na esquerda, querem que o governo brasileiro se intrometa, condene as eleições venezuelanas e se distancie ou mesmo rompa com o “ditador” Nicolás Maduro – epíteto raramente aplicado aos ditadores ou autocratas de países simpáticos ao Ocidente. Um exemplo: Arábia Saudita. Outro: Ucrânia. Volodymir Zelensky suspendeu as eleições em razão da guerra, o que supostamente legitimaria a decisão. Ora, o que enfrenta a Venezuela, há muitos anos, senão uma guerra econômica e financeira patrocinada pelo Ocidente?

O Brasil dar palpites sobre a Venezuela seria um grande erro, no meu modesto entendimento. A Venezuela é um dos principais países latino-americanos, tem extensa fronteira conosco e importantes laços econômicos. Esses laços só não são maiores, recorde-se, porque a Venezuela foi suspensa do Mercosul, em 2017, no tempo de Michel Temer no Brasil e Maurício Macri na Argentina.

Vejam como foi escandalosa a decisão: o governo golpista de Temer teve a cara-de-pau de invocar a “cláusula de democrática” do Mercosul (um dos muitos legados sofríveis do tempo de Fernando Henrique Cardoso) para suspender a participação da Venezuela no bloco. No governo Lula, as relações diplomáticas foram retomadas. Porém, que se saiba, nada se fez até agora para readmitir o país no Mercosul. Seria mais importante trazer a Venezuela de volta do que ficar promovendo acordos neoliberais e danosos do Mercosul, herdados do governo de Jair Bolsonaro, como os acordos com a União Europeia, com a área de livre comércio do resto da Europa, com a Coréia do Sul e com o Canadá.

Uma palavra final sobre um aspecto central da questão. Posso estar enganado, mas até onde se pode perceber os Estados Unidos e a oposição venezuelana fantoche dificilmente derrubarão Nicolás Maduro. O Brasil vai permitir que a Venezuela caia nos braços da China e da Rússia? Pragmaticamente, não nos cabe ao Brasil reconhecer a continuação do governo de Nicolás Maduro?

Opinião controvertida, bem sei. Mas questões decisivas não são sempre objeto de controvérsias?
*Paulo Nogueira Batista Jr. é economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS. Autor, entre outros livros, de O Brasil não cabe no quintal de ninguém (LeYa)

Conceição Tavares e Delfim Netto, por Daniel Afonso da Silva

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Daniel Afonso da Silva – A Terra é Redonda -16/08/2024

Nem clichê nem ilusão: a passagem de Antônio Delfim Netto (1928-2024) de par com a passagem de Maria da Conceição Tavares (1930-2024) causou um vazio imenso na vida nacional brasileira. Foi um choque, sinceramente, sem precedentes. Um sinistro, evidentemente, de difícil remediação. A ausência deles dois, por ser assim, inaugura um mal-estar que nada parece conseguir conter nem superar.

Conceição Tavares e Delfim Netto, cada um com o seu jeitão, deixaram marcas profundas,
indeléveis, positivas e superlativas na história do país e na vida de quem conviveu, muito ou pouco, com eles. Marcas tão perenes e constitutivas que, seguramente, quase ninguém, nos últimos cinquenta, sessenta ou setenta anos, conseguiu comparar. Marcas que, portanto, vão ficar. Como patrimônio imaterial do Brasil. Feito de vivência singular. Paradigma de savoir faire. Modelo.

Muitos observadores – não raramente envenenados por ideologias confusas e rasteiras – tentam afastá-los, Conceição Tavares e Delfim Netto, um do outro. Mas isso, por lógica e verdade, é impossível. Eles sempre foram complementares. E todos sabem.

Os, hoje em dia, autodeclarados analistas, tentam reduzi-los, Conceição Tavares e Delfim Netto, à condição de economistas. Sim, eles atuaram nessa nobre área, a economia. Mas, claramente, não foram convencionais. Foram, em contrário, sempre e em tudo, outiliers. Fora da cursa, excepcionais, extraordinários. Geralmente emulando os clássicos. Sendo, assim, antes de tudo, filósofos. Filósofos morais.

Como foram seus mestres atemporais Adam Smith, David Ricardo, Karl
Marx, Joseph Schumpeter e o próprio John Maynard Keynes. Praticantes, portanto, de Political Economy. Sem, nesses termos, jamais se render às simplificações da Economics.

Faziam, desse modo, Conceição Tavares e Delfim Netto, assim porque sabiam que o mundo é real independentemente das ilusões manifestas sobre ele. E, fazendo dessa maneira, eram, para além de tudo, humanistas no sentido mais agudo da expressão. Eram, portanto, verdadeiros eruditos. Mestres em seu ofício. Mas profundos entendedores do fluxo da vida.

De modo que eram práticos por devoção, pragmáticos por convicção e realistas por vocação. Isso, neles, era sempre líquido e certo.

E, vendo assim, poucos de verdadeiros seus pares – dos quais, entre os brasileiros, por idade e geração, talvez apenas Eugênio Gudin (1886-1986), Roberto Campos (1917-2001), Celso Furtado (1920-2004), Mário Henrique Simonsen (1935-1997) e Luiz Carlos Bresser-Pereira (nascido em 1934 e vivo entre nós) mereçam menção – foram, assim, tão dignos, fidedignos e completos.

Com acertos e erros. Mas sempre envoltos em honestidade e convicção.
Honestidade e convicção que impuseram a Conceição Tavares e Delfim Netto o imperativo da transmissão.

Pois eles, intimamente, sabiam que o verão necessita de muitas andorinhas. Não feitas em seguidores nem discípulos. Mas, continuadores. Gente competente para receber, carregar e legar o bastão. E, visto assim e recompondo todos os seus tempos, é possível dizer que eles dois, Conceição Tavares e Delfim Netto, foram, antes de tudo, professores/transmissores. E, por serem quem eram, dos melhores. E, salvo melhor juízo, foi nessa condição e persona que mais cada um deles mais gostou de estar e ser. De modo que, não ao acaso, a história da consolidação da universidade brasileira se confunde com a trajetória pessoal e profissional deles dois: professor Antônio Delfim Netto e professora Maria da Conceição Tavares.

Digam o que quiser dizer, mas, sim: esses dois professores, Conceição Tavares e Delfim Netto, foram, ao longo da vida, sobretudo, construtores e formadores. Construtores de instituições e formadores de quadros.

E, justamente por isso, a USP, a Unicamp e a UFRJ, onde Conceição Tavares e Delfim Netto estiveram mais longa, duradoura e diretamente, lamentaram e lamentam tanto a ausência de seus mestres. Uma ausência que, para muito além da USP, a Unicamp e a UFRJ, deixou tudo muito triste e muito gris.

Triste e gris porque, ao fim das contas, Conceição Tavares e Delfim Netto eram, em si, instituições. Instituições que, curiosamente, retroalimentavam o ethos de um tempo que, por variadas razões, parece, naturalmente, não existir mais. Um tempo que mesclava inteligência, honestidade intelectual, ideias e elegância somadas a sinceridade, honestidade pessoal e convicções. Um tempo em que, claro, os idiotas, dos quais tanto Nelson Rodrigues (1912-1980) se referia, ainda possuíam alguma modéstia e estavam longe, muito de dominar o mundo, a sociedade no Brasil e a universidade brasileira.

Dito assim e sem pudor, Conceição e Delfim eram, por assim dizer, um obstáculo moral à afirmação da indigência cultural e intelectual no país. Tanto que todas as suas manifestações públicas – em gestos, palavras, presenças e olhares –, mesmo quando controversas e imperfeitas, sempre foram convictas e rigorosas. Sempre ensejando conscientemente impedir o espraiamento do asqueroso vale tudo que, pouco a pouco, foi tomando conta dos espaços de produção e difusão de conhecimento e saber no Brasil – sendo universidade o maior alvo – nos últimos vinte, trinta ou quarenta anos.

Mas, agora, com a sua ausência, a ausência de Conceição e Delfim, esse sustentáculo – desde muito, esmaecido e cansado de guerra – tende a ficar ainda mais frágil. E frágil sim porque, sem Conceição e sem Delfim, uma certa ideia de compromisso moral com o trabalho intelectual vai perdendo a sua condição de existir. Consequentemente, a produção de conhecimento e saber tende a singrar inocuamente irrelevante. E a universidade – especialmente a pública – tende a seguir estagnada, estrangulada e esmagada.

A idiotia moral, todos sabem, galopa por todas as frentes. A indigência intelectual, todos veem, avança para conquistar a sua plenitude. E a sinergia desses dois fenômenos – o da cretinice moral e da indigência intelectual – acentua a conhecida entropia do cotidiano intramuros das universidades no Brasil de modo a acelerar a sua deformação rumo à sua destruição.

E, sobre isso, Darcy Ribeiro (1922-1997) já disse muito. Em seu entender, trata-se de algo que vem de longe. Que foi bem pensado e bem cosido. E, com o tempo, foi se revelando no nefando projeto de se fazer do atraso da universidade (e da educação em geral) uma missão.

O problema geral é que esse projeto – inaugurado no regime militar, acelerado depois dele e afirmado neste quarto de século XXI – foi escancarado greve dos docentes das federais deste ano de 2024 e afirmado como uma cruel e inequívoca realidade. Basta lembrar pra ver. Mas quem desejar, de fato, tudo comprovar, que retorne à ambiência da paralisação deste ano.

Fazendo isso, desde que feito com paciência e sem parti pris, o cético observador vai rápido notar que, no frigir das questões, pelo menos, três reflexos alimentaram as discussões e inundaram os espíritos.

Um primeiro, de cunha afoita e majoritariamente sindical, em defesa da greve. Um segundo, de franca mistura governista, em recusa e negação da greve. E um terceiro, assentado em questões de ordem e princípios, sugerindo o caminho do meio; ou seja, o caminho da reflexão e da meditação sobre o sentido da universidade, a natureza da atuação de seus frequentadores e o lugar dessa instituição multissecular no interior da sociedade brasileira.

Foi isso e não mais que isso o que se teve. A saber, posições a favor, contra e nem a favor nem contra a greve. E, sendo assim, esses três reflexos produziram uma massa crítica e analítica impressionantemente inédita e rica. Parte disso, é válido reconhecer, pelo papel decisivo exercido pelo site A Terra é redonda.

Observando todo o debate com calma, publicou-se, nos mais de oitenta dias da greve, perto de duas centenas de artigos sobre o assunto. E, sinceramente, não foram quaisquer artigos. Foram artigos, em geral, muito bem informados e intencionados. Produzidos por docentes de todas as regiões e sub-regiões do Brasil. Das mais remotas às mais centralmente situadas. Reunindo-se, assim, impressões e sensibilidades oriundas de praticamente todas as realidades universitárias.

Das instituições federais, universidades e institutos, mais antigas às mais recentes e às novíssimas. E, realizando-se, assim, a melhor e mais densa fotografia do ofício docente nas federais hoje.

De minha parte, inaugurei uma modesta colaboração com um singelo artigo, muito gentilmente publicado aqui, no início da greve, no dia 15 de abril, dia 1 da paralização, sob o título de “A greve dos professores das universidades federais”, onde se podia ler que, em minha compreensão,

“Não vem, assim, ao caso defender ou não a greve dos professores das federais por merecidas, constitucionais e morais reposições salariais. O fundamental é se recobrar nas forças para se reconhecer com honestidade a brutalidade do peso derrota de cunho existencial dos últimos anos e enfim voltar a meditar com seriedade sobre pra quê todos nós professores das federais e das demais universidades brasileiras efetivamente servimos”.

Adiante, como desdobramentos de reafirmação de minha convicção, apareceriam “Muito além das relvas verdejantes dos vizinhos” e “Navegando a contravento”. Dois artigos produzidos em diálogo, sempre sincero e respeitoso, com argumentos contrários aos meus. Onde pude ressaltar que “A greve dos docentes das federais enseja decorrer de desconforto muito mais profundo, fundamental e quase existencial”.

E, de modo mais detalhado, ainda acentuar que “Afinando o debate nesse tom do diapasão, apoiar ou denegar a greve vira uma estranha navegação. Navegação a contravento. Sem bússolas e sem direção. O que, por certo, não retira a legitimidade de todas as ações de paralisação ou de negação da paralisação nas federais. Entretanto, infelizmente, simplesmente, sinceramente, indireta, mas insistentemente, vai jogando água nos moinhos daqueles, notadamente extramuros, que consideram que ‘A universidade brasileira, salvo raros quadros, é inofensiva, inócua. Mesmo assim, alguns estão debatendo o que a greve poderá fazer com o governo (desgoverno) Lula’”.

Essas singelas manifestações – em linha com um artigo anterior, “Alicerces desertificados” –, como se pode, de saída, notar advogavam pelo caminho do meio. Aquele da meditação e da reflexão.

Um caminho, sinceramente, perigoso. Sobretudo quando se circula sem armaduras pelo interior do sistema. Um sistema, como bem sabido, preenchido de armadilhas e eivado de terrenos movediços que, não raramente, mostram a sua face na forma de represálias e admoestações. Esse habitat, todos sabem, detesta divergentes.

Mas, desta vez, não singrei sozinho tampouco arei o mar. Bem do contrário. Tão logo a greve foi se afirmando, vários docentes da mais alta qualidade intelectual, competência técnica e valores morais e espirituais adentraram a trincheira em comum e, sinceramente, sofisticaram a globalidade dos argumentos que impõe a todos o caminho do meio.

Para ficar apenas em alguns, vale fortemente acentuar que a professora Marilena Chaui subiu indelevelmente o nível da discussão com o seu precioso “A universidade operacional”. Em seguida, o antigo reitor da UFBA, João Carlos Salles, alargou a senda guiada de sua colega de ofício da USP com o seu sugestivo “Mão de Oza”. Mais à frente, foi a vez do professor Roberto Leher, antigo reitor da UFRJ, ampliar ainda mais a complexidade cognitiva do debate mobilizando evidências contundentes que quase ninguém sabiam ou, ao menos, ainda não tinha observado em perspectiva.

Desse modo, eles três – para ficar apenas neles, Chaui, Salles e Leher – estraçalharam a mesquinhez da discussão varejista sobre apoiar ou não a greve dos docentes em 2024 e lançavam a discussão em um, verdadeiro, outro patamar. Um patamar que, sinceramente, teve o mérito de avivar o único debate urgente, necessário e válido sobre a universidade brasileira que diz respeito à permanente perquirição de seu sentido, natureza e dignidade. Trocando em miúdos, qual universidade, universidade pra quê e universidade pra quem.

É curioso, mas foi assim. E fazendo assim eles se reataram ao elo perdido das batalhas de Conceição Tavares e Delfim Netto, que sempre foi a educação.

Conceição Tavares e Delfim Netto sempre singraram os mares agitados e controversos da excelência do ensino superior brasileiro. E, nesse sentido, eles sempre foram defensores implacáveis de uma universidade pública, digna e honesta. Um espaço intelectualmente decente, culturalmente relevante e politicamente engajado no aperfeiçoamento da sociedade brasileira – leia-se: na redução de suas aporias, desigualdades e injustiças. E, portanto, uma universidade avessa ao atraso, à estagnação, à indigência, ao ensimesmamento e à mediocrização.

Conceição Tavares e Delfim Netto, nesse propósito, foram, sim, teóricos, mas também práticos. Veja-se, como exemplos, os departamentos de Economia que eles, com seu suor, criaram. Mas, no plano mais geral, foi no início da redemocratização, na viragem dos anos de 1970 para os de 1980, que eles – e todos – começaram a notar que a deriva da universidade brasileira em geral ao encontro do atraso era grave, crônica e acelerada. Mas, depois do Muro e sob a mondialisation heureuse, essa primeira apreensão virou pesadelo.

Os ingênuos dilemas que envolviam provincianismo versus cosmopolitismo tornaram-se mais acentuados. As inconsequentes reações que aplacavam complexos de interioridade versus receios dos grandes centros, com o início da expansão da interiorização da malha universitária pelos interiores do país, produziram verdadeiras deformações e dramas – alguns deles, ainda hoje, não superados. Mas, pior que tudo isso, os ventos daqueles tempos depois do Muro inebriaram os olhares, taparam os ouvidos e soterraram a quase totalidade do ensino superior público brasileiro nas ilusões do utilitarismo técnico frente aos imperativos do pensamento complexo.

Como resultado, como bem notou Marilena Chaui, abriu-se caminhos para o surgimento dessa excrescência denominada “universidade operacional.”

De todo modo, vale bem marcar, por aqueles tempos, in real time, sob as tormentas dos anos de 1990, Conceição Tavares e Delfim Netto militavam em outras paragens. Estavam no Parlamento. Eram deputados. Acreditavam na política e entendiam-na como salvação.

Enquanto isso, no chão de terra do cotidiano intramuros das universidades, vozes inquietas vocalizavam o mal-estar. Mas uma delas, francamente, destoou e desconcertou. Destoou pela força, pela presença e pela estridência. E desconcertou pelo seu tom, visto hoje e em perspectiva, macabramente profético.

Tratava-se da voz de um brasileiro peculiar, de inteligência superior, conhecido e afamado – como seus pares Florestan Fernandes (1920-1995), César Lattes (1924-2005) e Mário Schenberg (1914-1990) – no mundo inteiro. Era a voz de um sujeito baiano, crescido em Brotas, formado, inicialmente, em Salvador e que atendia pelo nome de Milton de Almeida Santos (1926-2001). Mestre incontornável e inesquecível de todos nós.

Milton Santos, como tantos outros brasileiros ilustres, foi cassado, perseguido, preso, humilhado e maltratado pelos militares após 1964. Mas, diferente de muitos, jamais perdeu a esperança tampouco a dignidade. Milton Santos não se vendeu nem abandonou as suas convicções.
E, talvez, também por isso, o seu retorno ao Brasil e a sua reintegração – após martírios – ao sistema universitário brasileiro foram, para dizer pouco, experiências, nitidamente, complexas, ruidosas e tortuosas.

Para fazer curto, ele não foi aceito no arranjo CEBRAP, teve dificuldades na UFRJ e viveu uma rude novela para ser integrado à USP.

Mas, uma vez integrado à mais importante universidade do país, ele expandiu a sua diferença.
Não é o caso de aqui se esmiuçar o impacto político, moral, intelectual e estético de obras suas como Por uma Geografia Nova (1978), O trabalho do geógrafo no terceiro mundo (1978), O espaço dividido (1978), O espaço do cidadão (1987), A natureza do espaço (1996) e Por uma outra globalização (2000). Qualquer geógrafo – ou qualquer pessoa minimamente academicamente bem formada – sabe do se trata.

Também não é o caso de muito se rememorar nem de muito se acentuar que esse ilustre baiano e cidadão de Brotas recebeu o Prêmio Vautrin Lud, espécie de prêmio Nobel em sua área exclusiva de atuação, em 1994. Mas, para quem alimenta dúvidas ou, quem sabe, complexos de vira-lata ao encontro da genialidade desse distinto brasileiro, vale simplesmente ressaltar que os mundialmente conhecidos e afamados David Harvey, Paul Claval, Yves Lacoste e Edward Soja – para ficar apenas em alguns dos mais célebres de métier comum – receberiam o mesmo prêmio só tempos depois ou bem depois.

Dito, portanto, assim e sem pudor, Milton Santos foi, sim, genial e singular.
E, por tudo isso, os seus pares na USP decidiram conceder-lhe, em 1997, o honroso título de Professor Emérito da USP. Ao que, Milton Santos recebeu, por claro, com muito gosto.

Mas, diferente de muitos de seus pares em situação similar, ele usou o momento para realizar uma alentada denúncia sobre a situação da universidade brasileira.

Quem viveu, pode lembrar. Quem simplesmente ouvir falar, que acredite: a sua manifestação não foi nada amena.

O intelectual e a universidade estagnada era o seu título. O ano era 1997. O mês, agosto. O dia, o 28.

Milton Santos iniciou a sua manifestação com uma curiosa ode aos obstáculos e derrotas vida intelectual acentuando que “um homem que pensa, e que por isso mesmo quase sempre se encontra isolado no seu pensar, deve saber que os chamados obstáculos e derrotas são a única rota para as possíveis vitórias, porque as ideias, quando genuínas, unicamente triunfam após um caminho espinhoso”.

Mas, logo adiante, chamou a atenção para o fato desse “caminho espinhoso” estar sendo solapado pelo carreirismo universitário imposto pelo modelo de universidade em vigência. Um carreirismo, ao seu ver, só podia conduzir ao conformismo e ao silenciamento do pensar. E, ao fim, fazia entender que, claro: uma universidade que não pensa nem deixa pensar não é bem uma universidade.

E seguia o discurso. Onde, adiante, vaticinou que “acreditar no futuro é também estar seguro de que o papel de uma Faculdade de Filosofia é o papel da crítica, isto é, da construção de uma visão abrangente e dinâmica do que é o mundo, do que é o país, do que é o lugar e o papel de denúncia, isto é, de proclamação clara do que é o mundo, o país e o lugar, dizendo tudo isso em voz alta”.

E continuou dizendo que “essa crítica é o próprio trabalho do intelectual”.

Um trabalho, anteriormente, praticado, genuinamente, por filósofos. Mas, em tempos hodiernos, depositário dos artífices das Humanidades. Ou seja, da gente que, por ofício, vai metida seriamente com Artes, Filosofia, Geografia, História, Letras e afins. Gente que, ao fim das contas, possui formação e disposição para navegar pelas encruzilhadas da incomensurabilidade da complexidade da transversalidade do processo de construção do conhecimento. Gente sem a qual, fazia novamente entender, a universidade simplesmente não existe. Ou, quando insistem em subsistir, na melhor das hipóteses, vai fadada à indigência.

Sim: duro assim. Mas contundente e veraz. E, sinceramente por isso, O intelectual e a universidade estagnada, merece ser lido e relido, meditado e entendido.

Seguramente ninguém foi mais direto, honesto e preciso no diagnóstico sobre o sinistro da universidade brasileira que Milton Santos. Lá atrás, em 1997 e até a sua morte em 2001, ele chamava a atenção para essa crise crônica. Que, ao fim e ao cabo, era uma de sentido e de identidade. Crise essa que, com o passar dos anos, só fez piorar.

E vem sendo assim, sobretudo, porque a indigência intelectual, cultural e moral tomou, efetivamente, de tudo conta. De modo que, hoje em dia, parte majoritária dos frequentadores das universidades se tornou indiferente ao problema. Parte por não dispor de competência cognitiva para adentrar a discussão. Parte por, sinceramente, nem saber do que se trata.

Desse modo, sim: leia-se Milton Santos. E, ao se fazer, vai-se perceber o óbvio: não existe universidade sem Humanidades. Mas, como tudo na vida, pode-se apreender isso de modo diferente e contemporizador. Quem saber numa fórmula mais amena que sugere, simplesmente, que o destino da universidade depende do destino que se der às Humanidades.

Quando Milton Santos clarificou essa compreensão, vivia-se, no Brasil, o imediatamente após o regime militar, Muro de Berlim, fim do bloco soviético e início da ubiquidade da globalização. Pois, depois disso e século XXI adentro, todo esse quadro ficou mais complexo e, com ele, a situação da universidade.

Ocorreu, de saída, uma desbragada expansão da malha de instituições de ensino superior no país.

O que, por claro, gerou uma ampliação do número de instituições. Mas, ao mesmo, curiosamente, não aumentou o número de universidades. Do contrário, quem sabe, até diminuiu. E diminuiu porque, aos poucos, o que se entendia por universidade foi virando outra coisa, que, sinceramente, não se sabe muito bem o que é.

Mas as razões, depois de se ler Milton Santos, ficam clarividentes. Basta-se retomar com calma o processo de aceleração da expansão de instituições de ensino superior desde o início do século.

Quem fizer isso vai rápido notar que, por mais incrível que se possa parecer, houve, em geral, pouco ou nenhum verdadeiro interesse em se valorar o lugar das Humanidades no interior das novas instituições. E isso, quer-se crer, não foi simples descuido nem mera desatenção. Trata-se do atraso como projeto. E, visto assim, virou o féretro da universidade como missão. Pois, claramente, as instituições que saíram do zero ou se emanciparam de outras a partir do ano 2003-2005 foram sendo, em geral, forjadas sem nenhum interesse na criação de cursos realmente consistentes e relevantes em campos essenciais do conhecimento e do saber como artes, filosofia, geografia, história, letras e afins.

Esse imperdoável despautério, levado às últimas consequências, violentou o próprio sentido da universidade no Brasil. Isso porque, sem a latência das Humanidades no interior dessas novas e novíssimas instituições, a formação de uma ou duas gerações de brasileiros foi integralmente deformada a ponto de se comprometer a “construção de uma visão abrangente e dinâmica do que é o mundo” no interior da sociedade.

Consequentemente, não adiante negar, a indigência intelectual virou norma em todas as partes e ajudou a pavimentar um caminho seguro para a ascensão de um verdadeiro estúpido à presidência da República. O leite foi derramado. Todos viram e todos sabem.

As agonias das noites de junho de 2013 ao 8 de janeiro de 2023 foram imensas. Mas, assim, não sem razão. E a greve dos docentes das federais em 2024 veio simplesmente ampliar a convicção do sinistro e evidenciar que a situação virou muito pior que a que Milton Santos imaginou.

O lapso de vinte ou vinte e cinco anos de expansão/deformação universitária brasileira, produziu entre os acadêmicos uma maioria sem nenhuma aptidão nem sensibilidade para notar as infinitas sutilidades no interior da variedade de campos de conhecimento e saber. Dito sem nenhum pudor, perdeu-se a noção de coisas básicas, como a distinção entre humanidades e ciências (humanas ou naturais).

Diante disso, sinceramente, o melhor é se calar. Mas com o silêncio, a universidade – sem as Humanidades – vai morrendo. Pois como vaticinou Milton Santos “A universidade, aliás, é, talvez, a única instituição que pode sobreviver apenas se aceitar críticas, de dentro dela própria de uma ou de outra forma. Se a universidade pede aos seus participantes que calem, ela está se condenando ao silêncio, isto é, à morte, pois seu destino é falar.”
Tudo, portanto, além de muito triste, é muito grave.

E, talvez, agora, vendo-se, assim, a gravidade de todo o quadro, perceba-se o quanto Conceição Tavares e Delfim Netto, sem clichê nem ilusão, fazem falta.

Conceição Tavares e Delfim Netto eram obsessivos no falar. Não no falar por falar. Mas no falar – agora, talvez, entenda-se – para adiar o silêncio do fim. Do fim da universidade e do fim do devir.

*Daniel Afonso da Silva é professor de história na Universidade Federal da Grande Dourados. Autor de Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas (APGIQ)

As torneiras abertas dos recursos naturais e um até logo! por André Roncaglia

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Países emergentes não podem cair na armadilha do neoextrativismo

André Roncaglia, Professor da Unifesp, pesquisador associado do Ibre-FGV e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo, 16/08/2024

A transição energética é altamente intensiva em recursos naturais. A reconfiguração da geopolítica e a guerra comercial entre as potências tecnológicas atuais, como EUA, Europa e China, acendem alertas de instabilidade global persistente. Enquanto isso, as economias emergentes lutam com dívidas pesadas em meio a demandas crescentes por gastos sociais e de adaptação climática.

A crescente demanda por recursos naturais impulsionada pela transição energética pode beneficiar os países emergentes. No entanto, é crucial que esses países não caiam na armadilha do neoextrativismo.

A América Latina, rica em minerais críticos e recursos naturais essenciais para essa transição, pode continuar a ser um mero exportador de matérias-primas ou tomar medidas para redefinir seu papel na economia global, promovendo o desenvolvimento sustentável e a soberania tecnológica. É preciso evitar o piloto automático do comércio internacional.

No prefácio à edição de 2010 do seu livro “As Veias Abertas da América Latina” (L&PM 2022), Eduardo Galeano indaga: “Exportamos produtos ou exportamos solos e subsolos? Salva-vidas de chumbo: em nome da modernização e do progresso, os bosques industriais, as explorações mineiras, as plantações gigantescas arrasam bosques naturais, envenenam a terra, esgotam a água e aniquilam pequenos plantios e as hortas familiares. (…) Os expulsos da terra vegetam nos subúrbios das grandes cidades, tentando consumir o que antes produziam. O êxodo rural é a agrária reforma… ao contrário”.

No artigo “Imperialist Appropriation” in the World Economy: Drain from the Global South through Unequal Exchange, 1990–2015″, Jason Hickel et al (Global Environmental Change, 73, 2022) usam a análise de balanço de recursos da economia ecológica para comprovar o receio presciente de Galeano. A dinâmica de troca desigual entre o Norte Global e o Sul Global implicou forte fluxo de recursos e de valor dos pobres para os ricos: entre 1990 e 2015, a drenagem do Sul totalizou US$ 242 trilhões (a preços constantes de 2010).

Tomando apenas o ano de 2015, o estudo mostra que o Norte apropriou do Sul 12 bilhões de toneladas de matérias-primas incorporadas aos bens e serviços importados do Sul, 822 milhões de hectares de terra incorporada, 21 exajoules de energia incorporada (o equivalente a 3,4 bilhões de barris de petróleo) e 188 milhões de pessoas-ano de trabalho incorporado, no valor de US$ 10,8 trilhões em preços do Norte. A soma é suficiente para acabar com a pobreza extrema 70 vezes.

A troca desigual é facilitada por mecanismos de preços no comércio internacional, onde os produtos primários e recursos naturais exportados pelo Sul são subvalorizados em comparação com os produtos manufaturados e serviços do Norte. O dreno em preços médios globais mostra que as perdas do Sul devido à troca desigual superam seus recebimentos totais de ajuda ao período por um fator de 30.

O artigo conclui com uma chamada para redesenhar as relações econômicas globais, por meio de uma reavaliação da dinâmica dos termos de troca, da implementação de políticas de comércio justo e da promoção de modelos de desenvolvimento que priorizem o bem-estar social e ambiental no Sul Global.

Os minerais críticos —como lítio e cobre— são fundamentais para a fabricação de baterias de veículos elétricos, turbinas eólicas, painéis solares e outras tecnologias verdes. No entanto, sem uma abordagem estratégica, esses países correm o risco de perpetuar um modelo econômico baseado no extrativismo, que historicamente tem gerado pouco valor agregado localmente, exacerbando desigualdades e causando danos ambientais significativos.