Emprego e desenvolvimento

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Vivemos momentos de grandes transformações na estrutura produtiva global, de um lado a concorrência entre os agentes econômicos e produtivos crescem de forma acelerada, alterando fortemente o mundo do trabalho, levando os indivíduos a novos comportamentos, novos valores e novas necessidades, levando as empresas e as organizações a transformarem suas estratégias, seu planejamento, como forma de sobrevivência, ainda mais, quando percebemos a inclusão de 1 bilhão de novos consumidores oriundo de nações asiáticas, com culturas, histórias e identidades, gerando desafios gigantescos para o setor produtivo.

O mundo industrial do início do século XX, grande gerador de empregos e influência nas políticas públicas governamentais, perdeu espaço na economia globalizada. Na contemporaneidade, encontramos novas relações entre capital e trabalho, o setor de serviços assumiu a dianteira na geração de empregos, fragilizando o setor industrial, revolucionando o mundo do trabalho, fragilizando os sindicatos, aumentando a competição entre os trabalhadores, fortalecendo o individualismo, estimulando a uberização, a economia de plataformas e o empreendedorismo.

Neste momento central da economia internacional, marcado por grandes desafios, medos e oportunidades, percebemos que os setores educacionais apresentam grandes dificuldades de compreenderem os desafios do capitalismo contemporâneo, as universidades perderam a relevância, a ciência vem perdendo espaço no debate atual, além do crescimento de uma visão negacionista e reacionária, inviabilizando as discussões nacionais, afastando reflexões racionais e postergando decisões fundamentais para os rumos da sociedade, levando a comunidade a perceber que, sem estes debates, caminhamos novamente para uma década de estagnação.

Nenhuma nação conseguiu historicamente seu desenvolvimento econômico, com melhores condições de vida de sua população, sem fortes investimentos em educação, em ciência, em pesquisa, em formação continuada de professores, com salários dignos e condições decentes de trabalho. Algumas nações conseguiram seu desenvolvimento econômico, sem recursos naturais, com população reduzida e geograficamente fragilizada, investindo maciçamente em capital humano, angariando espaços no comércio internacional, diversificando sua economia e fortalecendo a pesquisa científica, desenvolvendo vantagens comparativas e consolidando seu espaço no mercado global, produzindo tecnologias, novos conhecimentos, novos materiais e produtos sofisticados.

A geração de empregos é fundamental para movimentarmos os setores produtivos, ainda mais numa nação como o Brasil, marcada por grandes desigualdades, garantindo salário e renda para os trabalhadores, movimentando os recursos financeiros, aumentando a demanda, incrementando a arrecadação dos governos, incentivando políticas públicas que geram benefícios para a comunidade e trazendo novas esperanças para a sociedade, contrastando momentos de forte desesperança e degradação.

Nas últimas décadas o mundo do trabalho passou por grandes transformações em escala global, no Brasil fomos assolados por uma política de austeridade suicida que previa ambientes melhores e forte crescimento econômico no porvir, resultado imediato foi a degradação da indústria nacional, fomento da desindustrialização, incremento dos ganhos dos rentistas e dos financistas, além do desemprego elevado e piora das condições de vida da população, fomentando um ambiente marcado pela violência crescente e pela desesperança. Neste momento, as nações desenvolvidas estão se distanciando das políticas de austeridade, mas infelizmente, no Brasil, as ideias novas e os ventos de modernidade demoram muito tempo para chegar…

Ary Ramos da Silva Júnior, bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

China contemporânea — seis interpretações, por Maysa Torres dos Santos

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Maysa Torres dos Santos – A Terra é Redonda – 18/08/2024

Comentário sobre o livro organizado por Ricardo Musse

O livro China contemporânea: seis interpretações traz reflexões de alto nível teórico a respeito dos principais temas que envolvem o debate em torno da chamada China contemporânea. Tendo em vista a atualidade e a popularidade do tema, devido à ascensão da economia chinesa e ao destaque internacional que a China tem conquistado nas últimas décadas desde a abertura econômica e as reformas de 1978, a contribuição dos autores traz alguns pontos polêmicos e não consensuais, mas também fundamentais para o debate na teoria política marxista.

O primeiro texto, de Alexandre de Freitas Barbosa, intitulado “A ascensão chinesa e a economia-mundo capitalista: uma perspectiva histórica”, apresenta elementos introdutórios para o debate a respeito da China contemporânea. O autor faz um resgate histórico acerca do desenvolvimento da economia e da política chinesa. Nesse sentido, Alexandre de Freitas Barbosa expõe na primeira parte de seu texto as razões pelas quais considera que na China o capitalismo não se desenvolveu. Nota-se que há, desde a gênese do desenvolvimento econômico chinês, um forte controle estatal que, de acordo com Barbosa, é exercido por meio dos mandarins letrados — ou seja, o controle estatal é uma característica chinesa que antecede o modo de produção socialista.

Dentre os autores do livro, o diferencial de Alexandre de Freitas Barbosa se dá devido ao fato de o autor considerar que os modelos utilizados sobretudo pelos economistas ocidentais, como “capitalismo de Estado” e “socialismo de mercado”, têm reduzido potencial analítico para tratar da China, de modo que a principal dificuldade para a análise da economia chinesa, no ponto de vista do autor, residiria na esfera conceitual. Porém, a despeito dessa avaliação, o autor considera a China capitalista devido à sua conexão global, ainda que cercada pelo poder do Estado.

Apesar de desenvolvimentos teóricos distintos, os dois textos seguintes, intitulados respectivamente “Apontamentos sobre a geopolítica da China” (de Elias Jabbour e Alex Dantas) e “Comentários sobre a economia política chinesa” (de Wladimir Pomar), possuem conclusões similares, razão pela qual apresentarei as principais reflexões desses autores em conjunto. Como afirmado anteriormente, faz-se necessário desenvolver a análise histórica sobre o controle estatal na China para compreender esse país na atualidade. Nesse sentido, os autores trazem elementos pouco conhecidos da história chinesa para compreendermos as causalidades que a levaram à posição na qual a China se encontra na contemporaneidade.

Comecemos pelo ponto em que esses autores convergem com o texto de Alexandre de Freitas Barbosa: a abundância material chinesa e as origens do controle estatal na China. No texto de Elias Jabbour e Alex Dantas, assim como no texto de Alexandre de Freitas Barbosa, os autores demonstram que a abundância de água e solo fértil levaram a um rápido desenvolvimento das forças produtivas materiais — condição que, para os autores, conduziu ao surgimento de uma larga economia de mercado. Porém, Elias Jabbour e Alex Dantas introduzem um conceito presente no debate marxista sobre a transição socialista: o modo de produção asiático. Assim, os autores defendem que a China já surge como uma forma primitiva de Estado desenvolvimentista.

Enquanto Elias Jabbour e Alex Dantas demonstram, a partir do contexto de abundância material da China, o surgimento de um Estado de tipo desenvolvimentista, Wladimir Pomar, em seu texto “A economia política chinesa”, retoma a história da China para compreender as mudanças a partir das reformas econômicas de 1978. Contudo, Wladimir Pomar inicia sua apresentação a partir da Revolução Chinesa, defendendo que devido ao atraso das condições econômicas e sociais, o desenvolvimento econômico e social foi a diretriz fundamental da economia política marxista.

Com relação ao modelo político econômico da China, Elias Jabbour e Alex Dantas defendem o socialismo de mercado como mais aplicável à China contemporânea. Resumidamente, os autores mantêm essa posição, sobretudo devido à grande intervenção do Estado chinês na economia. O conceito de “Nova Economia de Projetamento”, então, é adotado pelos autores como resultado da planificação econômica, organização e racionalização da produção em grande escala e pelo fato de acreditarem que as teorias convencionais, tanto ortodoxas como heterodoxas, não seriam suficientes para explicar a China.

O texto de Bruno Hendler, intitulado “Crise de hegemonia e rivalidade EUA-China”,aprofunda e endossa a contribuição dos autores anteriores, pois o autor, embora não foque na discussão a respeito do modelo econômico chinês, demonstra, com base em alguns indicadores de desenvolvimento — o PIB chinês em comparação ao norte-americano, o índice de exportação, importação e o debate monetário —, como a China logrou disputar com os EUA a reorganização da economia mundial.

O texto de Bruno Hendler nos faz entender, ou ao menos questionar, a abrangência do desenvolvimento chinês nas últimas décadas. Se nos textos anteriores vimos o tipo de modelo econômico existente na China e, sobretudo, a forte presença estatal na economia e na política, nesse texto é possível compreender como o modelo político econômico, independente da denominação defendida pelos autores, pôde chegar ao ponto de disputar a hegemonia mundial. A exposição do autor, portanto, se opõe à argumentação de orientação ideológica liberal, segundo a qual a intervenção estatal e o planejamento econômico são típicos de economias atrasadas ou, também, não são capazes de gerar riqueza suficiente para competir no mercado internacional.

Em seu texto “Simultaneísmo e fusão na paisagem, na cultura e na literatura chinesa”, Francisco Hardman, diferentemente dos autores anteriores, traz a reflexão a respeito da cultura e da literatura chinesa. Dentre a vasta e sofisticada apresentação de Francisco Hardman, julguei relevante destacar o seguinte elemento trazido pelo autor, pois retoma uma característica ideológica presente na Revolução Cultural: o fato de ele colocar, de antemão, que não pretende nenhum tipo de dualismo geográfico-histórico na análise, mas se propõe a pesquisar as várias fusões ocorridas, considerando, também, as mudanças determinadas pelas relações de produção capitalistas.

Vê-se, portanto, que o autor faz um movimento muito importante para os estudos sobre China ao mobilizar aspectos oriundos da Revolução Cultural. O primeiro deles é considerar a questão camponesa como determinante na cultura chinesa e, em segundo lugar, a falibilidade do dualismo ocidental para tratar da China.

O texto de Luiz Enrique Vieira de Souza traz um tema que mobiliza estudiosos e, sobretudo, críticos ao modelo chinês: a questão ambiental. Apesar de o governo chinês defender a noção de “civilização ecológica”, Souza identifica os limites desse conceito na China. Inclusive, Luiz
Enrique Vieira de Souza faz um adendo necessário: o sentido atribuído à “civilização ecológica” configura um campo em disputa entre as elites políticas chinesas, apesar do seu relevo enquanto diretriz para a formulação de políticas públicas.

Segundo o autor, o conceito de civilização ecológica, nesse sentido, foi cunhado como uma alternativa aos modelos ocidentais de desenvolvimento sustentável. Souza conclui que a contradição desse conceito é que há analogias com as insuficiências dos projetos de modernização ecológica nos países capitalistas do Ocidente: o crescimento econômico permanece como dogma inquestionável, assim como os processos de reforma ambiental são negociados no interior do atual modelo de produção.

Apesar de o livro abordar diferentes temas, as preocupações e perspectivas compartilhadas por esse conjunto importante de autores contribuem para a compreensão da política econômica da China contemporânea, bem como da posição desse país com relação às principais questões que despertam o interesse e as críticas dos estudiosos do assunto.

*Maysa Torres dos Santos é mestranda em ciência política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Publicado originalmente na revista Crítica marxista, no. 56 [https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/cma/article/view/1880]
Referência
Ricardo Musse (org.). China contemporânea: seis interpretações. Belo Horizonte, Autêntica, 2021. 208 págs.

Venezuela em disputa, por Valério Arcary

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Valério Arcary – A Terra é Redonda – 10/08/2024

Os EUA não têm autoridade política ou moral alguma para denunciar o regime venezuelano como uma ditadura

“Não acendas um fogo que não podes apagar”
(Provérbio popular português).

A polêmica sobre o resultado das eleições venezuelanas divide a esquerda brasileira e internacional. Mas a disputa não é sobre democracia. “Quem brinca com o fogo pode se queimar”, ensina a sabedoria popular. Se a oposição de extrema direita prevalecer, ninguém se engane, não hesitará em usar o poder para garantir um programa de choque de privatizações e perseguições. O conflito não deveria ser resumido, tampouco, a uma luta entre chavistas e antichavistas.
Há quem não se identifique como chavista, mas denuncia que a campanha para derrubar o governo é reacionária, portanto, que a vitória do PSUV deve ser reconhecida. Uma imensa maioria daqueles que denunciam que Nicolás Maduro arquitetou uma fraude, e deve aceitar uma derrota não é nem remotamente de esquerda. A questão de fundo é o petróleo.

A Venezuela é um país independente, ou o mais próximo disso que é possível no mundo contemporâneo, o que é intolerável para os EUA. A alternativa real é soberania nacional ou recolonização. Aqueles na esquerda que estão convencidos que houve fraude, seja pela razão que for, deveriam se perguntar sobre as consequências de um governo da extrema direita.

Não há uma ditadura, strictu sensu na Venezuela, mas tampouco há um regime democrático-liberal. O que é incontornável é que a alternativa a Nicolás Maduro é a oposição neofascista. Edmundo González é uma marionete de Maria Corina. Ela é, por sua vez, uma marionete dos EUA. Se chegarem ao poder o destino da Venezuela será semelhante ao do Iraque, vinte anos atrás: um protetorado norte-americano.

Aí, sim, o mais provável será uma ditadura e, possivelmente, uma guerra civil, porque o cenário de resistência armada diante da promessa de privatização da PDVSA e prisão dos líderes chavistas parece inescapável. A disputa não é por transparência eleitoral, mas por controle da PDVSA. Não é sobre lisura eleitoral. A extrema direita não tem compromisso algum com a democracia-liberal.

Tem uma inviolável aliança com os EUA e, em especial, com Donald Trump. Atrás de Maria Corina, estão Jair Bolsonaro no Brasil, José Antonio Kast no Chile, Javier Milei na Argentina, e Álvaro Uribe na Colômbia.

Depois de vinte e cinco anos de conspirações políticas e cerco econômico, a despeito de uma aposta estratégica duvidosa, ou muito arriscada, como preservar uma economia capitalista para não antagonizar os EUA frontalmente, como Cuba fez em 1961, o regime não foi derrotado. Tomou decisões perigosamente, erradas, como a suspensão da liberdade de organização de outras correntes de esquerda, uma política de choque fiscal para conter a superinflação, o favorecimento de uma casta civil-militar que detém grandes privilégios, mas o governo não caiu.

Realizou mais de vinte pleitos pelo critério do sufrágio universal, apesar das sanções e de um criminoso cerco que chegou ao absurdo da apropriação das reservas nos bancos dos EUA, e de toneladas de ouro depositadas em Londres, mas perdeu somente uma delas, o que levou Guaidó a se autoproclamar presidente. Não é razoável concluir que Nicolás Maduro não tem qualquer legitimidade, e seria um “caudilho grotesco” apoiado numa “cleptocracia” militar.

O regime político endureceu e assumiu formas bonapartistas autoritárias. Não se sustenta, todavia, somente no controle das Forças Armadas e da polícia, porque disputa a hegemonia política. Aceitou a realização de eleições depois do acordo de Barbados, para sair do isolamento, facilitar o fim das sanções, e abrir um caminho para sua reintegração no mercado mundial.

Preserva uma implantação entre setores dos trabalhadores e das camadas populares, apesar do peso social, também, da oposição de extrema-direita, em especial, nas camadas médias. O país está fraturado e dividido. Não há um processo revolucionário ininterrupto, desde 2002, quando o golpe contra Hugo Chávez foi derrotado. Mas o país preservou sua independência, e isso não é pouco.

A estratégia dos Estados Unidos para a América Latina foi, durante o intervalo entre 1948 e a queda do Muro de Berlim, a restauração capitalista e o fim da URSS (1989/1991) defender regimes e governos que tivessem uma lealdade incondicional com seus interesses contra o que interpretavam como o “perigo comunista”. Árbenz na Guatemala em 1952, Getúlio no Brasil em 1954,

Péron na Argentina em 1955, Jango em 1964, entre muitos outros, foram deslocados por campanhas golpistas. Regimes ditatoriais foram defendidos, tanto por republicanos como Eisenhower ou Nixon ou democratas como Kennedy ou Lindon Jhonson. Monstros como Trujillo, Somoza, Stroessner, Médici, Pinochet e Videla foram protegidos.

A possibilidade de regimes democrático-liberais só veio a ser admitida a partir do final dos anos oitenta, depois dos pactos com Mikhail Gorbatchev. Os EUA não têm autoridade política ou moral alguma para denunciar o regime venezuelano como uma ditadura. Washington é uma fortaleza do capitalismo imperialista. Os EUA, mesmo quando a gestão é do partido democrata, só defendem a democracia-liberal enquanto estão seguros de que os seus interesses não serão prejudicados.

Não é possível soberania nacional nos países dependentes da periferia sem ruptura anti-imperialista. Nem uma só nação periférica da Ásia ou África, que eram colônias sob ocupação militar até o final da Segunda Guerra Mundial, saiu da condição periférica, ou até da extrema periferia aceitando, pacientemente, o seu lugar no mundo. Nem mesmo na América Latina, onde as independências nacionais ocorreram há duzentos anos, foi possível uma inserção independente no mercado mundial. Nem sequer o Brasil, o maior e mais complexo país.

Nenhuma nação conseguiu nivelar as suas condições econômicas e sociais com o padrão dos países centrais aceitando as imposições da ordem mundial. As que se emanciparam, ainda que parcialmente, o fizeram através de revoluções. A ordem imperialista nunca aceitou, pacificamente, que uma ex-colônia se libertasse sem terríveis represálias.

A experiência atual da Venezuela – o país com as maiores reservas de petróleo confirmadas – é somente mais um exemplo. Mesmo tendo sido, incomparavelmente, mais moderados ocorreram golpes militares ou institucionais contra os governos de Dilma Rousseff no Brasil em 2016, Evo Morales
na Bolívia em 2019, e Pedro Castillo no Peru em 2022.

Romper com os limites da ordem imperialista pode não ser o bastante nos países periféricos, no intervalo de uma geração, para uma elevação da qualitativa das condições de vida da maioria do povo aos níveis dos países que estão no centro, mas demonstrou-se uma condição para a redução acelerada da pobreza extrema e das desigualdades sociais. A frio, evolutivamente, sem desafiar os centros imperialistas, nunca foi possível. A Venezuela foi o país latino-americano que foi mais longe e paga o preço por isso. Subestimar a estratégia da contrarrevolução é uma ingenuidade.

A luta pela independência nacional no mundo contemporâneo é o ápice da luta democrática. Todas as nações têm o direito de ter o domínio sobre os seus destinos. Nada é mais democrático do que libertar um povo dominado e oprimido por Estados muito mais ricos e poderosos. Ainda que a maioria dos países na periferia seja, formalmente, independentes, não têm plena soberania.

Porque se construiu um mercado mundial: um espaço onde se movimentam capital, força de trabalho, recursos naturais, tecnologias em uma escala que a humanidade nunca conheceu antes.
Nenhuma nação pode existir fora deste mercado mundial. Qualquer ilusão sobre a possibilidade de uma “autarquia” no mundo contemporâneo é uma ilusão perigosa. Sem integração não há possibilidade de desenvolvimento e, portanto, de redução da pobreza. Mas há um obstáculo intransponível no acesso a este mercado mundial. Não há “governo” mundial, mas há uma ordem internacional muito rígida e injusta. No seu centro está a Troika, a aliança da União Europeia, Reino Unido e Japão com a liderança inviolável dos EUA. Quem não se submete, incondicionalmente, à sua supremacia será perseguido.

As relações de comércio no mercado mundial são desiguais. Os países periféricos, mesmo os mais fortes, como o Brasil, uma nação em grau mais avançado de industrialização, são dependentes da exportação de matérias-primas de pouco valor agregado e precisam, desesperadamente, de acesso a mercadorias que incorporam tecnologias de ponta como máquinas de última geração e, sobretudo de capitais. As relações de troca são assimétricas e injustas. A periferia vende suas commodities por preços que são estabelecidos em Bolsas, como em Chicago, por exemplo.

Os países centrais são exportadores de capital e credores, e os periféricos importadores e endividados. Ao bloquear o acesso ao mercado mundial, como punição pela ousadia de independência nacional, os países centrais condenam as nações rebeldes à asfixia econômica.

O estrangulamento econômico produz crise social porque a vida das massas populares, que já era muito precária, se torna insustentável. Nestas condições terríveis, a realização de eleições ocorre em condições dramaticamente desfavoráveis. Os países em que triunfaram revoluções anti-imperialistas descobriram-se, sem exceções, diante do dilema de estender suas revoluções no entorno, uma dinâmica de revolução permanente, ou enrijecer os seus regimes.

A China enfrentou uma guerra civil e a revolução venceu, mas ficou bloqueada. A Coreia do Norte foi invadida pelos EUA, o Vietnã resistiu em guerra por três décadas, Cuba permanece, dramaticamente, isolada, cercada, bloqueada. Todos foram além do capitalismo, mas qualquer possibilidade de iniciar uma transição ao socialismo foi interrompida. O capitalismo foi restaurado, ou está em dinâmica de restauração, com a possível exceção de Cuba, talvez. As lutas para mudar o mundo são brutais e impiedosas. Têm uma beleza heroica, mas são violentas.

*Valerio Arcary é professor de história aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de Ninguém disse que seria fácil (Boitempo).

Liberdade e mercado, por Luiz Marques

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Luiz Marques – A Terra é Redonda – 14/08/2024

Os neoliberais creem que o reino da liberdade coincide com o livre mercado para os objetivos da acumulação

O conceito de liberdade está presente nas revoluções que fundam a modernidade: (a) a Revolução Inglesa, em 1642, para derrotar o absolutismo rumo à monarquia constitucional para submeter o rei ao Parlamento; (b) a Revolução dos Estados Unidos, em 1776, cuja Declaração de Independência põe fim ao exógeno domínio anglo-saxônico sobre as treze colônias e; (c) a Revolução Francesa, em 1789, que derruba a monarquia absolutista em nome da República e da própria humanidade.

As liberdades individuais são decisivas para a consecução da tríplice soberania — a representativa, a nacional e a popular. Historicamente os direitos civis precederam os direitos políticos e sociais. A liberdade então tinha vetor revolucionário, abria horizontes, não se confinava em shopping centers.

David Harvey, em Crônicas anticapitalistas, retoma os temas de feições anarquistas com ênfase no autoritarismo ao sugerir que os ideais libertários são a marca do Maio de 1968, pelas demandas por: (i) liberdade da coerção estatal; (ii) liberdade da coerção do mercado; (iii) liberdade da coerção do capital corporativo e; (iv) liberdade da coerção moral e dos costumes. Tudo temperado na igualdade.

A resposta do neoliberalismo para absorver e neutralizar a alta tensão nas instituições é canalizar o legítimo desejo de autonomia dos indivíduos para as aspirações mercadológicas. O transformismo burguês joga no liquidificador as pautas dos enfants terribles para misturar e redirecionar as baterias contra os órgãos de regulamentação estatais, jogando toda energia disponível no moinho do capital.

O eclipse da liberdade

A arte de fazer as cabeças eclipsa a liberdade e deflagra uma “guerra cultural”. Por paradoxal, para tachar de autoritário o Partido dos Trabalhadores (PT) que emula o Orçamento Participativo (OP) e o Fórum Social Mundial (FSM), o movimento dos movimentos. Nesta realidade paralela, fabrica idolatrias tipo Viktor Orbán (Hungria), Benjamin Netanyahu (Israel) e Donald Trump (EUA) para os quais o Estado de direito democrático é um instrumento para configurar regimes de exceção. A nova razão do mundo submete a democracia e a liberdade às desregulamentações, às privatizações e aos ajustes fiscais para barrar gastos sociais. A demagogia e as fake news fazem parte do cardápio.

Os neoliberais creem que o reino da liberdade coincide com o livre mercado para os objetivos da acumulação. A visão economicista relega ao segundo plano a realização dos seres humanos. É fácil identificar os think tanks da mais-valia. “Todos têm o pensamento de dono”, nas palavras de um membro exponencial do Instituto de Estudos Empresariais (IEE). Do charmoso Mont Pèlerin, os neocolonizadores projetam a globalização da hierarquia de mando e obediência sobre o mundo.
“O planejamento econômico e o controle vêm sendo atacados como negação da liberdade, enquanto a empresa livre e a propriedade privada são consideradas essenciais à liberdade”, frisa Karl Polanyi, em A grande transformação. Com efeito, a meta não é construir a igualdade, mas a desigualdade. O desemprego é premeditado para enfraquecer o aparato sindical e legitimar os arrochos salariais, apresentados como modernização das relações de trabalho com o aval classista do judiciário. Assim, o distopismo conservador converte a meta do Estado de bem-estar em um grave desequilíbrio fiscal.

Os avanços políticos alcançados na geração de emprego e na distribuição de renda são denunciados “como camuflagem da escravidão”. Não são permitidas as transgressões ao laissez-faire do deus-mercado. Medidas para curar as dores das iniquidades frustram os lucros. A insensatez prefere os indicadores, para baixo, no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Sociedades erguidas sobre alicerces distintos não merecem o batismo de “livres”, ainda que possam contemplar mais e melhor a população. O individualismo e a indiferença com o sofrimento do povo injeta a narrativa, na veia, que evoca a praga de Margaret Thatcher: “Não há alternativa”. Resta apenas a servidão voluntária.

Na dialética desse paredão, o capitalista pode: (a) maximizar as taxas de exploração com o aumento da produtividade e a diminuição dos predicados trabalhistas e; (b) impedir a quebra de patentes das inovações tecnológicas em favor das comunidades. Enquanto o trabalhador pode: (i) escolher o emprego e; (ii) resistir com base na liberdade de consciência e de associação, que compõem o rol de prerrogativas cívicas no programa do socialismo democrático. Tal é o “pode-pode” sistêmico atual.

Para resgatar a liberdade

O acesso universal à moradia e à esfera de sociabilidade pública são trocados pelo “totalitarismo da mercadoria”. O Consenso de Washington é apresentado como panaceia. Londres contabilizava 60% de moradias sociais não avaliadas pelo valor de troca, mas pelo valor de uso; hoje fruto da metódica especulação dispõe de menos de 20%. No Brasil, o Minha Casa, Minha Vida procura se precaver no faroeste imobiliário que dinamita a gramática comunitária para tratar tudo como uma mercadoria.

A democracia de proprietários confronta o construto histórico da cidadania e a constitucionalidade das nações modernas. Azar dos perdedores se Nova York soma 65 mil pessoas em situação de rua, em 2023, e São Paulo lidera o ranking brasileiro do desamparo com 55 mil entregues ao coração do padre Júlio Lancellotti. O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) é um antídoto contra as tendências desagregadoras do mercado. “A verdade é que estamos construindo cidades para que as pessoas especulem, e não cidades para que as pessoas vivam”, arremata David Harvey. Moradas a preços acessíveis são volatizadas com a explosão de imóveis para o consumo dos endinheirados.

Esse é o obstáculo estrutural às iniciativas para a reconstrução do Rio Grande do Sul, pelo governo federal. A inaptidão das autoridades em nível estadual e local combinada com a inexistência de domicílios suficientes, ao custo de até R$ 200 mil, são os empecilhos que se apresentam contra o saneamento do desastre. As megaconstrutoras preferem investir em arranha-céus e prédios de luxo. Democratizar o processo de habitação é reinstalá-lo na condição de bem social. Barcelona proibiu dez mil alugueis tipo Airbnb. Nenhum Plano Diretor municipal deve proteger o lucro dos rentistas.

Vale para o transporte de massas, o abastecimento hídrico e a energia elétrica. Serviços privatizados agravam tragédias “naturais” e desculpam desgovernos incompetentes, sem transparência. Práticas governamentais terceirizadas contribuem para a destruição material e simbólica do comunitarismo. A financeirização usa eventos socioambientais para desmilinguir os entes públicos e aprofundar o eugenismo. Cabe à esquerda desfraldar as bandeiras pelo caminho: “En la lucha de classes / todas las armas son buenas / piedras / noches / poemas”, conforme o poeta samurai Paulo Leminski.

É urgente romper os grilhões da desumanização. A possibilidade de uma existência autêntica, com a ampliação radical da liberdade, supõe a superação do reino da necessidade e do trabalho alienado. A consolidação de um patamar de dignidade mínima propicia a socialização dos novíssimos valores. Com a subsistência assegurada, a sociedade usufrui de cada qual segundo sua capacidade. Mas para não incorrer em um utopismo estéril, é mister fixar os elementos políticos do período de transição.

Em um debate com Rahel Jaeggi, Nancy Fraser sublinha: “É inconcebível uma sociedade desejável, capitalista ou pós-capitalista, que não conceda papel importante ao planejamento. O planejamento pode e deve ser democrático. Ele não requer a nomenklatura ou o governo de técnicos especialistas. Poderíamos lidar com uma questão como a mudança climática sem algum planejamento de grande escala? Um bloqueio sistêmico dessa escala não pode ser feito por pequenos coletivos”.

A atual crise ecológica põe em destaque a urgência das articulações transnacionais. Somente a democracia global garante vida longa ao Homo sapiens e ao locavorismo, para a produção local de alimentos.

Só com o planejamento e o controle democrático sobre o excedente social, com regulação (de fora) da economia e as modificações (por dentro), é possível sedimentar os conteúdos emancipadores. A interrupção da mudança no clima do planeta para fruição da vida pessoal depende de uma cultura da solidariedade e da participação. As posições paliativas subestimam o perigo na esquina. A virtude não está no centro, senão na luta coletiva real para derrotar o neofascismo e o neoliberalismo e seu apêndice conservador. A rapina semeia a infelicidade, a atomização. Arruína a sociabilidade plural. Já a práxis transformadora fortalece os lemas da Idade Moderna: liberdade, igualdade, fraternidade.

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.

A Venezuela contra o império, por Paulo Nogueira Batista Júnior

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Paulo Nogueira Batista Júnior – A Terra é Redonda – 09/08/2024

Os Estados Unidos e a oposição venezuelana fantoche dificilmente derrubarão Nicolás Maduro
Uma coisa me parece certa, leitor ou leitora: é fundamental entender que a Venezuela sofre a cobiça dos Estados Unidos e outras nações imperiais. Para elas, o que interessa é o acesso o mais livre possível aos imensos recursos naturais venezuelanos, petróleo e gás destacadamente. E para esse fim nada melhor, nada mais eficaz do que ter em Caracas fantoches e títeres, como os da oposição a Nicolás Maduro.

Estou sendo repetitivo? Talvez. Mas, como dizia Nelson Rodrigues, o que não é repetido com insistência permanece rigorosamente inédito (frase que já repeti, aliás, centenas de vezes).

Cabe reconhecer, claro, que o presidente Nicolás Maduro às vezes toma decisões duvidosas, para dizer o mínimo. Um exemplo marcante: a pretensão de incorporar à Venezuela mais da metade do território da Guiana. Isso criaria uma confusão na América do Sul e, mais amplamente, nos outros países da América Latina e do Caribe. A América do Sul é uma região de paz desde a Guerra das Malvinas em 1982 e precisa continuar assim. Desde a guerra do Paraguai contra a Tríplice Aliança, de 1864 a 1870, não houve um conflito envolvendo diversos países no nosso continente.

Uma guerra entre a Venezuela e a Guiana não abriria caminho para uma intervenção americana direta? Não é exatamente isso que queremos evitar? Nicolás Maduro agredir a Guiana equivaleria à decisão fatídica de Saddam Hussein de invadir o Kuwait em 1990. O Brasil nunca poderia endossar um avanço da Venezuela sobre outro vizinho nosso. Isso não interessa ao Brasil, não interessa a ninguém. Observo, de passagem, que a Guiana faz parte do grupo de países que representei na diretoria executiva do FMI. Tenho um fraco por ela, pois desenvolvi uma relação de afeto (pouco profissional, reconheço) com quase todos os países do nosso grupo.

Contudo, isso não influi sobre o que vai escrito aqui e nem interessa agora. O que queria dizer é que, à distância, no meio de uma guerra de informações, é muito difícil determinar quem está mentindo e quem, dizendo a verdade sobre o resultado das eleições venezuelanas. Alguém tem credibilidade para falar sobre isso? A oposição provou algo? O governo provou?
Quem tem moral para falar em democracia?

Não vamos perder de vista que diversos países que se arvoram a opinar não têm moral nenhuma para interferir nas eleições da Venezuela – ou de qualquer outro país for that matter. Onde existem eleições realmente confiáveis? Nos Estados Unidos? Francamente! Para começo de conversa: alguém entende o sistema eleitoral americano? Parece que havia por lá uma dúzia de sujeitos que o compreendiam perfeitamente e sabiam explicá-lo, mas estão todos mortos ou entrevados.

A complexidade do sistema americano favorece manipulações. Há suspeitas recorrentes e até evidências de eleições fraudadas. E o sistema ainda produz absurdos arrematados – como a vitória na eleição presidencial de um candidato com menos votos do que o adversário. Foi o que aconteceu, por exemplo, em 2016, quando Hillary Clinton venceu no voto popular e perdeu para Donald Trump no colégio eleitoral onde votam delegados. Poucos no exterior sabem que não há eleição direta nos Estados Unidos.

Sem falar no nível estarrecedor de corrupção política. O que eles têm nos Estados Unidos, como dizem os próprios americanos, é the best Congress that money can buy (o melhor Congresso que o dinheiro pode comprar). Uma plutocracia, portanto, não uma democracia. Se o leitor ou leitora me permite o lugar-comum, direi que as acusações americanas à Venezuela devem suscitar o famoso bordão: “macaco olha o teu rabo!”.

Vou mais longe e entro aqui, por um instante, em terreno pantanoso. Afinal, a democracia é mesmo um valor universal, como se afirma com frequência? Ou está entre aqueles conceitos gerais e vazios que Nietzsche chamava de “a última fumaça da realidade evaporada”? O risco de recorrer a essa noção de universalidade é o de conduzir à ideia de que existe um modelo único de democracia – provavelmente aquele que os países do Ocidente Político (ou Norte Global) praticam ou dizem praticar e querem exportar para todos os cantos do planeta.

Não estamos diante de mais um embuste da chamada “comunidade internacional” – o grupo formado por Estados Unidos, Canadá, União Europeia, mais alguns países europeus, Japão, Coreia do Sul, Austrália e outros penduricalhos? Comunidade que inclui apenas cerca de 15% da população mundial!

Deixem, portanto, a Venezuela resolver sem interferência estrangeira os seus problemas políticos e econômicos! Problemas esses que foram criados, recorde-se, em larga medida pelas sanções aplicadas há muito tempo por Estados Unidos e seus satélites europeus. Menciono um só exemplo: as reservas internacionais e os ativos líquidos da petroleira estatal venezuelana foram congelados e roubados por americanos, ingleses e outros. Pirataria, não há outra palavra!

As dificuldades da economia da Venezuela refletem, também, má gestão por parte dos governos de Hugo Chávez e Nicolás Maduro, não há dúvida. Mas um peso enorme, talvez preponderante, deve ser atribuído às numerosas e sistemáticas sanções impostas à Venezuela. Na verdade, é grande a lista de países que foram ou estão sendo sancionados pelos Estados Unidos junto e seus satélites – entre muitos: Irã, Síria, Afeganistão, Iraque, Líbia, Cuba e, mais recentemente, Rússia e China.

Justamente daí é que vêm a desdolarização e os planos, ainda embrionários, de criação de uma moeda de referência dos BRICS como alternativa ao dólar.
Papel do Brasil

Qual o papel do Brasil nesta quadra? Muitos, na direita bolsonarista, na direita neoliberal e até na esquerda, querem que o governo brasileiro se intrometa, condene as eleições venezuelanas e se distancie ou mesmo rompa com o “ditador” Nicolás Maduro – epíteto raramente aplicado aos ditadores ou autocratas de países simpáticos ao Ocidente. Um exemplo: Arábia Saudita. Outro: Ucrânia. Volodymir Zelensky suspendeu as eleições em razão da guerra, o que supostamente legitimaria a decisão. Ora, o que enfrenta a Venezuela, há muitos anos, senão uma guerra econômica e financeira patrocinada pelo Ocidente?

O Brasil dar palpites sobre a Venezuela seria um grande erro, no meu modesto entendimento. A Venezuela é um dos principais países latino-americanos, tem extensa fronteira conosco e importantes laços econômicos. Esses laços só não são maiores, recorde-se, porque a Venezuela foi suspensa do Mercosul, em 2017, no tempo de Michel Temer no Brasil e Maurício Macri na Argentina.

Vejam como foi escandalosa a decisão: o governo golpista de Temer teve a cara-de-pau de invocar a “cláusula de democrática” do Mercosul (um dos muitos legados sofríveis do tempo de Fernando Henrique Cardoso) para suspender a participação da Venezuela no bloco. No governo Lula, as relações diplomáticas foram retomadas. Porém, que se saiba, nada se fez até agora para readmitir o país no Mercosul. Seria mais importante trazer a Venezuela de volta do que ficar promovendo acordos neoliberais e danosos do Mercosul, herdados do governo de Jair Bolsonaro, como os acordos com a União Europeia, com a área de livre comércio do resto da Europa, com a Coréia do Sul e com o Canadá.

Uma palavra final sobre um aspecto central da questão. Posso estar enganado, mas até onde se pode perceber os Estados Unidos e a oposição venezuelana fantoche dificilmente derrubarão Nicolás Maduro. O Brasil vai permitir que a Venezuela caia nos braços da China e da Rússia? Pragmaticamente, não nos cabe ao Brasil reconhecer a continuação do governo de Nicolás Maduro?

Opinião controvertida, bem sei. Mas questões decisivas não são sempre objeto de controvérsias?
*Paulo Nogueira Batista Jr. é economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS. Autor, entre outros livros, de O Brasil não cabe no quintal de ninguém (LeYa)

Conceição Tavares e Delfim Netto, por Daniel Afonso da Silva

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Daniel Afonso da Silva – A Terra é Redonda -16/08/2024

Nem clichê nem ilusão: a passagem de Antônio Delfim Netto (1928-2024) de par com a passagem de Maria da Conceição Tavares (1930-2024) causou um vazio imenso na vida nacional brasileira. Foi um choque, sinceramente, sem precedentes. Um sinistro, evidentemente, de difícil remediação. A ausência deles dois, por ser assim, inaugura um mal-estar que nada parece conseguir conter nem superar.

Conceição Tavares e Delfim Netto, cada um com o seu jeitão, deixaram marcas profundas,
indeléveis, positivas e superlativas na história do país e na vida de quem conviveu, muito ou pouco, com eles. Marcas tão perenes e constitutivas que, seguramente, quase ninguém, nos últimos cinquenta, sessenta ou setenta anos, conseguiu comparar. Marcas que, portanto, vão ficar. Como patrimônio imaterial do Brasil. Feito de vivência singular. Paradigma de savoir faire. Modelo.

Muitos observadores – não raramente envenenados por ideologias confusas e rasteiras – tentam afastá-los, Conceição Tavares e Delfim Netto, um do outro. Mas isso, por lógica e verdade, é impossível. Eles sempre foram complementares. E todos sabem.

Os, hoje em dia, autodeclarados analistas, tentam reduzi-los, Conceição Tavares e Delfim Netto, à condição de economistas. Sim, eles atuaram nessa nobre área, a economia. Mas, claramente, não foram convencionais. Foram, em contrário, sempre e em tudo, outiliers. Fora da cursa, excepcionais, extraordinários. Geralmente emulando os clássicos. Sendo, assim, antes de tudo, filósofos. Filósofos morais.

Como foram seus mestres atemporais Adam Smith, David Ricardo, Karl
Marx, Joseph Schumpeter e o próprio John Maynard Keynes. Praticantes, portanto, de Political Economy. Sem, nesses termos, jamais se render às simplificações da Economics.

Faziam, desse modo, Conceição Tavares e Delfim Netto, assim porque sabiam que o mundo é real independentemente das ilusões manifestas sobre ele. E, fazendo dessa maneira, eram, para além de tudo, humanistas no sentido mais agudo da expressão. Eram, portanto, verdadeiros eruditos. Mestres em seu ofício. Mas profundos entendedores do fluxo da vida.

De modo que eram práticos por devoção, pragmáticos por convicção e realistas por vocação. Isso, neles, era sempre líquido e certo.

E, vendo assim, poucos de verdadeiros seus pares – dos quais, entre os brasileiros, por idade e geração, talvez apenas Eugênio Gudin (1886-1986), Roberto Campos (1917-2001), Celso Furtado (1920-2004), Mário Henrique Simonsen (1935-1997) e Luiz Carlos Bresser-Pereira (nascido em 1934 e vivo entre nós) mereçam menção – foram, assim, tão dignos, fidedignos e completos.

Com acertos e erros. Mas sempre envoltos em honestidade e convicção.
Honestidade e convicção que impuseram a Conceição Tavares e Delfim Netto o imperativo da transmissão.

Pois eles, intimamente, sabiam que o verão necessita de muitas andorinhas. Não feitas em seguidores nem discípulos. Mas, continuadores. Gente competente para receber, carregar e legar o bastão. E, visto assim e recompondo todos os seus tempos, é possível dizer que eles dois, Conceição Tavares e Delfim Netto, foram, antes de tudo, professores/transmissores. E, por serem quem eram, dos melhores. E, salvo melhor juízo, foi nessa condição e persona que mais cada um deles mais gostou de estar e ser. De modo que, não ao acaso, a história da consolidação da universidade brasileira se confunde com a trajetória pessoal e profissional deles dois: professor Antônio Delfim Netto e professora Maria da Conceição Tavares.

Digam o que quiser dizer, mas, sim: esses dois professores, Conceição Tavares e Delfim Netto, foram, ao longo da vida, sobretudo, construtores e formadores. Construtores de instituições e formadores de quadros.

E, justamente por isso, a USP, a Unicamp e a UFRJ, onde Conceição Tavares e Delfim Netto estiveram mais longa, duradoura e diretamente, lamentaram e lamentam tanto a ausência de seus mestres. Uma ausência que, para muito além da USP, a Unicamp e a UFRJ, deixou tudo muito triste e muito gris.

Triste e gris porque, ao fim das contas, Conceição Tavares e Delfim Netto eram, em si, instituições. Instituições que, curiosamente, retroalimentavam o ethos de um tempo que, por variadas razões, parece, naturalmente, não existir mais. Um tempo que mesclava inteligência, honestidade intelectual, ideias e elegância somadas a sinceridade, honestidade pessoal e convicções. Um tempo em que, claro, os idiotas, dos quais tanto Nelson Rodrigues (1912-1980) se referia, ainda possuíam alguma modéstia e estavam longe, muito de dominar o mundo, a sociedade no Brasil e a universidade brasileira.

Dito assim e sem pudor, Conceição e Delfim eram, por assim dizer, um obstáculo moral à afirmação da indigência cultural e intelectual no país. Tanto que todas as suas manifestações públicas – em gestos, palavras, presenças e olhares –, mesmo quando controversas e imperfeitas, sempre foram convictas e rigorosas. Sempre ensejando conscientemente impedir o espraiamento do asqueroso vale tudo que, pouco a pouco, foi tomando conta dos espaços de produção e difusão de conhecimento e saber no Brasil – sendo universidade o maior alvo – nos últimos vinte, trinta ou quarenta anos.

Mas, agora, com a sua ausência, a ausência de Conceição e Delfim, esse sustentáculo – desde muito, esmaecido e cansado de guerra – tende a ficar ainda mais frágil. E frágil sim porque, sem Conceição e sem Delfim, uma certa ideia de compromisso moral com o trabalho intelectual vai perdendo a sua condição de existir. Consequentemente, a produção de conhecimento e saber tende a singrar inocuamente irrelevante. E a universidade – especialmente a pública – tende a seguir estagnada, estrangulada e esmagada.

A idiotia moral, todos sabem, galopa por todas as frentes. A indigência intelectual, todos veem, avança para conquistar a sua plenitude. E a sinergia desses dois fenômenos – o da cretinice moral e da indigência intelectual – acentua a conhecida entropia do cotidiano intramuros das universidades no Brasil de modo a acelerar a sua deformação rumo à sua destruição.

E, sobre isso, Darcy Ribeiro (1922-1997) já disse muito. Em seu entender, trata-se de algo que vem de longe. Que foi bem pensado e bem cosido. E, com o tempo, foi se revelando no nefando projeto de se fazer do atraso da universidade (e da educação em geral) uma missão.

O problema geral é que esse projeto – inaugurado no regime militar, acelerado depois dele e afirmado neste quarto de século XXI – foi escancarado greve dos docentes das federais deste ano de 2024 e afirmado como uma cruel e inequívoca realidade. Basta lembrar pra ver. Mas quem desejar, de fato, tudo comprovar, que retorne à ambiência da paralisação deste ano.

Fazendo isso, desde que feito com paciência e sem parti pris, o cético observador vai rápido notar que, no frigir das questões, pelo menos, três reflexos alimentaram as discussões e inundaram os espíritos.

Um primeiro, de cunha afoita e majoritariamente sindical, em defesa da greve. Um segundo, de franca mistura governista, em recusa e negação da greve. E um terceiro, assentado em questões de ordem e princípios, sugerindo o caminho do meio; ou seja, o caminho da reflexão e da meditação sobre o sentido da universidade, a natureza da atuação de seus frequentadores e o lugar dessa instituição multissecular no interior da sociedade brasileira.

Foi isso e não mais que isso o que se teve. A saber, posições a favor, contra e nem a favor nem contra a greve. E, sendo assim, esses três reflexos produziram uma massa crítica e analítica impressionantemente inédita e rica. Parte disso, é válido reconhecer, pelo papel decisivo exercido pelo site A Terra é redonda.

Observando todo o debate com calma, publicou-se, nos mais de oitenta dias da greve, perto de duas centenas de artigos sobre o assunto. E, sinceramente, não foram quaisquer artigos. Foram artigos, em geral, muito bem informados e intencionados. Produzidos por docentes de todas as regiões e sub-regiões do Brasil. Das mais remotas às mais centralmente situadas. Reunindo-se, assim, impressões e sensibilidades oriundas de praticamente todas as realidades universitárias.

Das instituições federais, universidades e institutos, mais antigas às mais recentes e às novíssimas. E, realizando-se, assim, a melhor e mais densa fotografia do ofício docente nas federais hoje.

De minha parte, inaugurei uma modesta colaboração com um singelo artigo, muito gentilmente publicado aqui, no início da greve, no dia 15 de abril, dia 1 da paralização, sob o título de “A greve dos professores das universidades federais”, onde se podia ler que, em minha compreensão,

“Não vem, assim, ao caso defender ou não a greve dos professores das federais por merecidas, constitucionais e morais reposições salariais. O fundamental é se recobrar nas forças para se reconhecer com honestidade a brutalidade do peso derrota de cunho existencial dos últimos anos e enfim voltar a meditar com seriedade sobre pra quê todos nós professores das federais e das demais universidades brasileiras efetivamente servimos”.

Adiante, como desdobramentos de reafirmação de minha convicção, apareceriam “Muito além das relvas verdejantes dos vizinhos” e “Navegando a contravento”. Dois artigos produzidos em diálogo, sempre sincero e respeitoso, com argumentos contrários aos meus. Onde pude ressaltar que “A greve dos docentes das federais enseja decorrer de desconforto muito mais profundo, fundamental e quase existencial”.

E, de modo mais detalhado, ainda acentuar que “Afinando o debate nesse tom do diapasão, apoiar ou denegar a greve vira uma estranha navegação. Navegação a contravento. Sem bússolas e sem direção. O que, por certo, não retira a legitimidade de todas as ações de paralisação ou de negação da paralisação nas federais. Entretanto, infelizmente, simplesmente, sinceramente, indireta, mas insistentemente, vai jogando água nos moinhos daqueles, notadamente extramuros, que consideram que ‘A universidade brasileira, salvo raros quadros, é inofensiva, inócua. Mesmo assim, alguns estão debatendo o que a greve poderá fazer com o governo (desgoverno) Lula’”.

Essas singelas manifestações – em linha com um artigo anterior, “Alicerces desertificados” –, como se pode, de saída, notar advogavam pelo caminho do meio. Aquele da meditação e da reflexão.

Um caminho, sinceramente, perigoso. Sobretudo quando se circula sem armaduras pelo interior do sistema. Um sistema, como bem sabido, preenchido de armadilhas e eivado de terrenos movediços que, não raramente, mostram a sua face na forma de represálias e admoestações. Esse habitat, todos sabem, detesta divergentes.

Mas, desta vez, não singrei sozinho tampouco arei o mar. Bem do contrário. Tão logo a greve foi se afirmando, vários docentes da mais alta qualidade intelectual, competência técnica e valores morais e espirituais adentraram a trincheira em comum e, sinceramente, sofisticaram a globalidade dos argumentos que impõe a todos o caminho do meio.

Para ficar apenas em alguns, vale fortemente acentuar que a professora Marilena Chaui subiu indelevelmente o nível da discussão com o seu precioso “A universidade operacional”. Em seguida, o antigo reitor da UFBA, João Carlos Salles, alargou a senda guiada de sua colega de ofício da USP com o seu sugestivo “Mão de Oza”. Mais à frente, foi a vez do professor Roberto Leher, antigo reitor da UFRJ, ampliar ainda mais a complexidade cognitiva do debate mobilizando evidências contundentes que quase ninguém sabiam ou, ao menos, ainda não tinha observado em perspectiva.

Desse modo, eles três – para ficar apenas neles, Chaui, Salles e Leher – estraçalharam a mesquinhez da discussão varejista sobre apoiar ou não a greve dos docentes em 2024 e lançavam a discussão em um, verdadeiro, outro patamar. Um patamar que, sinceramente, teve o mérito de avivar o único debate urgente, necessário e válido sobre a universidade brasileira que diz respeito à permanente perquirição de seu sentido, natureza e dignidade. Trocando em miúdos, qual universidade, universidade pra quê e universidade pra quem.

É curioso, mas foi assim. E fazendo assim eles se reataram ao elo perdido das batalhas de Conceição Tavares e Delfim Netto, que sempre foi a educação.

Conceição Tavares e Delfim Netto sempre singraram os mares agitados e controversos da excelência do ensino superior brasileiro. E, nesse sentido, eles sempre foram defensores implacáveis de uma universidade pública, digna e honesta. Um espaço intelectualmente decente, culturalmente relevante e politicamente engajado no aperfeiçoamento da sociedade brasileira – leia-se: na redução de suas aporias, desigualdades e injustiças. E, portanto, uma universidade avessa ao atraso, à estagnação, à indigência, ao ensimesmamento e à mediocrização.

Conceição Tavares e Delfim Netto, nesse propósito, foram, sim, teóricos, mas também práticos. Veja-se, como exemplos, os departamentos de Economia que eles, com seu suor, criaram. Mas, no plano mais geral, foi no início da redemocratização, na viragem dos anos de 1970 para os de 1980, que eles – e todos – começaram a notar que a deriva da universidade brasileira em geral ao encontro do atraso era grave, crônica e acelerada. Mas, depois do Muro e sob a mondialisation heureuse, essa primeira apreensão virou pesadelo.

Os ingênuos dilemas que envolviam provincianismo versus cosmopolitismo tornaram-se mais acentuados. As inconsequentes reações que aplacavam complexos de interioridade versus receios dos grandes centros, com o início da expansão da interiorização da malha universitária pelos interiores do país, produziram verdadeiras deformações e dramas – alguns deles, ainda hoje, não superados. Mas, pior que tudo isso, os ventos daqueles tempos depois do Muro inebriaram os olhares, taparam os ouvidos e soterraram a quase totalidade do ensino superior público brasileiro nas ilusões do utilitarismo técnico frente aos imperativos do pensamento complexo.

Como resultado, como bem notou Marilena Chaui, abriu-se caminhos para o surgimento dessa excrescência denominada “universidade operacional.”

De todo modo, vale bem marcar, por aqueles tempos, in real time, sob as tormentas dos anos de 1990, Conceição Tavares e Delfim Netto militavam em outras paragens. Estavam no Parlamento. Eram deputados. Acreditavam na política e entendiam-na como salvação.

Enquanto isso, no chão de terra do cotidiano intramuros das universidades, vozes inquietas vocalizavam o mal-estar. Mas uma delas, francamente, destoou e desconcertou. Destoou pela força, pela presença e pela estridência. E desconcertou pelo seu tom, visto hoje e em perspectiva, macabramente profético.

Tratava-se da voz de um brasileiro peculiar, de inteligência superior, conhecido e afamado – como seus pares Florestan Fernandes (1920-1995), César Lattes (1924-2005) e Mário Schenberg (1914-1990) – no mundo inteiro. Era a voz de um sujeito baiano, crescido em Brotas, formado, inicialmente, em Salvador e que atendia pelo nome de Milton de Almeida Santos (1926-2001). Mestre incontornável e inesquecível de todos nós.

Milton Santos, como tantos outros brasileiros ilustres, foi cassado, perseguido, preso, humilhado e maltratado pelos militares após 1964. Mas, diferente de muitos, jamais perdeu a esperança tampouco a dignidade. Milton Santos não se vendeu nem abandonou as suas convicções.
E, talvez, também por isso, o seu retorno ao Brasil e a sua reintegração – após martírios – ao sistema universitário brasileiro foram, para dizer pouco, experiências, nitidamente, complexas, ruidosas e tortuosas.

Para fazer curto, ele não foi aceito no arranjo CEBRAP, teve dificuldades na UFRJ e viveu uma rude novela para ser integrado à USP.

Mas, uma vez integrado à mais importante universidade do país, ele expandiu a sua diferença.
Não é o caso de aqui se esmiuçar o impacto político, moral, intelectual e estético de obras suas como Por uma Geografia Nova (1978), O trabalho do geógrafo no terceiro mundo (1978), O espaço dividido (1978), O espaço do cidadão (1987), A natureza do espaço (1996) e Por uma outra globalização (2000). Qualquer geógrafo – ou qualquer pessoa minimamente academicamente bem formada – sabe do se trata.

Também não é o caso de muito se rememorar nem de muito se acentuar que esse ilustre baiano e cidadão de Brotas recebeu o Prêmio Vautrin Lud, espécie de prêmio Nobel em sua área exclusiva de atuação, em 1994. Mas, para quem alimenta dúvidas ou, quem sabe, complexos de vira-lata ao encontro da genialidade desse distinto brasileiro, vale simplesmente ressaltar que os mundialmente conhecidos e afamados David Harvey, Paul Claval, Yves Lacoste e Edward Soja – para ficar apenas em alguns dos mais célebres de métier comum – receberiam o mesmo prêmio só tempos depois ou bem depois.

Dito, portanto, assim e sem pudor, Milton Santos foi, sim, genial e singular.
E, por tudo isso, os seus pares na USP decidiram conceder-lhe, em 1997, o honroso título de Professor Emérito da USP. Ao que, Milton Santos recebeu, por claro, com muito gosto.

Mas, diferente de muitos de seus pares em situação similar, ele usou o momento para realizar uma alentada denúncia sobre a situação da universidade brasileira.

Quem viveu, pode lembrar. Quem simplesmente ouvir falar, que acredite: a sua manifestação não foi nada amena.

O intelectual e a universidade estagnada era o seu título. O ano era 1997. O mês, agosto. O dia, o 28.

Milton Santos iniciou a sua manifestação com uma curiosa ode aos obstáculos e derrotas vida intelectual acentuando que “um homem que pensa, e que por isso mesmo quase sempre se encontra isolado no seu pensar, deve saber que os chamados obstáculos e derrotas são a única rota para as possíveis vitórias, porque as ideias, quando genuínas, unicamente triunfam após um caminho espinhoso”.

Mas, logo adiante, chamou a atenção para o fato desse “caminho espinhoso” estar sendo solapado pelo carreirismo universitário imposto pelo modelo de universidade em vigência. Um carreirismo, ao seu ver, só podia conduzir ao conformismo e ao silenciamento do pensar. E, ao fim, fazia entender que, claro: uma universidade que não pensa nem deixa pensar não é bem uma universidade.

E seguia o discurso. Onde, adiante, vaticinou que “acreditar no futuro é também estar seguro de que o papel de uma Faculdade de Filosofia é o papel da crítica, isto é, da construção de uma visão abrangente e dinâmica do que é o mundo, do que é o país, do que é o lugar e o papel de denúncia, isto é, de proclamação clara do que é o mundo, o país e o lugar, dizendo tudo isso em voz alta”.

E continuou dizendo que “essa crítica é o próprio trabalho do intelectual”.

Um trabalho, anteriormente, praticado, genuinamente, por filósofos. Mas, em tempos hodiernos, depositário dos artífices das Humanidades. Ou seja, da gente que, por ofício, vai metida seriamente com Artes, Filosofia, Geografia, História, Letras e afins. Gente que, ao fim das contas, possui formação e disposição para navegar pelas encruzilhadas da incomensurabilidade da complexidade da transversalidade do processo de construção do conhecimento. Gente sem a qual, fazia novamente entender, a universidade simplesmente não existe. Ou, quando insistem em subsistir, na melhor das hipóteses, vai fadada à indigência.

Sim: duro assim. Mas contundente e veraz. E, sinceramente por isso, O intelectual e a universidade estagnada, merece ser lido e relido, meditado e entendido.

Seguramente ninguém foi mais direto, honesto e preciso no diagnóstico sobre o sinistro da universidade brasileira que Milton Santos. Lá atrás, em 1997 e até a sua morte em 2001, ele chamava a atenção para essa crise crônica. Que, ao fim e ao cabo, era uma de sentido e de identidade. Crise essa que, com o passar dos anos, só fez piorar.

E vem sendo assim, sobretudo, porque a indigência intelectual, cultural e moral tomou, efetivamente, de tudo conta. De modo que, hoje em dia, parte majoritária dos frequentadores das universidades se tornou indiferente ao problema. Parte por não dispor de competência cognitiva para adentrar a discussão. Parte por, sinceramente, nem saber do que se trata.

Desse modo, sim: leia-se Milton Santos. E, ao se fazer, vai-se perceber o óbvio: não existe universidade sem Humanidades. Mas, como tudo na vida, pode-se apreender isso de modo diferente e contemporizador. Quem saber numa fórmula mais amena que sugere, simplesmente, que o destino da universidade depende do destino que se der às Humanidades.

Quando Milton Santos clarificou essa compreensão, vivia-se, no Brasil, o imediatamente após o regime militar, Muro de Berlim, fim do bloco soviético e início da ubiquidade da globalização. Pois, depois disso e século XXI adentro, todo esse quadro ficou mais complexo e, com ele, a situação da universidade.

Ocorreu, de saída, uma desbragada expansão da malha de instituições de ensino superior no país.

O que, por claro, gerou uma ampliação do número de instituições. Mas, ao mesmo, curiosamente, não aumentou o número de universidades. Do contrário, quem sabe, até diminuiu. E diminuiu porque, aos poucos, o que se entendia por universidade foi virando outra coisa, que, sinceramente, não se sabe muito bem o que é.

Mas as razões, depois de se ler Milton Santos, ficam clarividentes. Basta-se retomar com calma o processo de aceleração da expansão de instituições de ensino superior desde o início do século.

Quem fizer isso vai rápido notar que, por mais incrível que se possa parecer, houve, em geral, pouco ou nenhum verdadeiro interesse em se valorar o lugar das Humanidades no interior das novas instituições. E isso, quer-se crer, não foi simples descuido nem mera desatenção. Trata-se do atraso como projeto. E, visto assim, virou o féretro da universidade como missão. Pois, claramente, as instituições que saíram do zero ou se emanciparam de outras a partir do ano 2003-2005 foram sendo, em geral, forjadas sem nenhum interesse na criação de cursos realmente consistentes e relevantes em campos essenciais do conhecimento e do saber como artes, filosofia, geografia, história, letras e afins.

Esse imperdoável despautério, levado às últimas consequências, violentou o próprio sentido da universidade no Brasil. Isso porque, sem a latência das Humanidades no interior dessas novas e novíssimas instituições, a formação de uma ou duas gerações de brasileiros foi integralmente deformada a ponto de se comprometer a “construção de uma visão abrangente e dinâmica do que é o mundo” no interior da sociedade.

Consequentemente, não adiante negar, a indigência intelectual virou norma em todas as partes e ajudou a pavimentar um caminho seguro para a ascensão de um verdadeiro estúpido à presidência da República. O leite foi derramado. Todos viram e todos sabem.

As agonias das noites de junho de 2013 ao 8 de janeiro de 2023 foram imensas. Mas, assim, não sem razão. E a greve dos docentes das federais em 2024 veio simplesmente ampliar a convicção do sinistro e evidenciar que a situação virou muito pior que a que Milton Santos imaginou.

O lapso de vinte ou vinte e cinco anos de expansão/deformação universitária brasileira, produziu entre os acadêmicos uma maioria sem nenhuma aptidão nem sensibilidade para notar as infinitas sutilidades no interior da variedade de campos de conhecimento e saber. Dito sem nenhum pudor, perdeu-se a noção de coisas básicas, como a distinção entre humanidades e ciências (humanas ou naturais).

Diante disso, sinceramente, o melhor é se calar. Mas com o silêncio, a universidade – sem as Humanidades – vai morrendo. Pois como vaticinou Milton Santos “A universidade, aliás, é, talvez, a única instituição que pode sobreviver apenas se aceitar críticas, de dentro dela própria de uma ou de outra forma. Se a universidade pede aos seus participantes que calem, ela está se condenando ao silêncio, isto é, à morte, pois seu destino é falar.”
Tudo, portanto, além de muito triste, é muito grave.

E, talvez, agora, vendo-se, assim, a gravidade de todo o quadro, perceba-se o quanto Conceição Tavares e Delfim Netto, sem clichê nem ilusão, fazem falta.

Conceição Tavares e Delfim Netto eram obsessivos no falar. Não no falar por falar. Mas no falar – agora, talvez, entenda-se – para adiar o silêncio do fim. Do fim da universidade e do fim do devir.

*Daniel Afonso da Silva é professor de história na Universidade Federal da Grande Dourados. Autor de Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas (APGIQ)

As torneiras abertas dos recursos naturais e um até logo! por André Roncaglia

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Países emergentes não podem cair na armadilha do neoextrativismo

André Roncaglia, Professor da Unifesp, pesquisador associado do Ibre-FGV e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo, 16/08/2024

A transição energética é altamente intensiva em recursos naturais. A reconfiguração da geopolítica e a guerra comercial entre as potências tecnológicas atuais, como EUA, Europa e China, acendem alertas de instabilidade global persistente. Enquanto isso, as economias emergentes lutam com dívidas pesadas em meio a demandas crescentes por gastos sociais e de adaptação climática.

A crescente demanda por recursos naturais impulsionada pela transição energética pode beneficiar os países emergentes. No entanto, é crucial que esses países não caiam na armadilha do neoextrativismo.

A América Latina, rica em minerais críticos e recursos naturais essenciais para essa transição, pode continuar a ser um mero exportador de matérias-primas ou tomar medidas para redefinir seu papel na economia global, promovendo o desenvolvimento sustentável e a soberania tecnológica. É preciso evitar o piloto automático do comércio internacional.

No prefácio à edição de 2010 do seu livro “As Veias Abertas da América Latina” (L&PM 2022), Eduardo Galeano indaga: “Exportamos produtos ou exportamos solos e subsolos? Salva-vidas de chumbo: em nome da modernização e do progresso, os bosques industriais, as explorações mineiras, as plantações gigantescas arrasam bosques naturais, envenenam a terra, esgotam a água e aniquilam pequenos plantios e as hortas familiares. (…) Os expulsos da terra vegetam nos subúrbios das grandes cidades, tentando consumir o que antes produziam. O êxodo rural é a agrária reforma… ao contrário”.

No artigo “Imperialist Appropriation” in the World Economy: Drain from the Global South through Unequal Exchange, 1990–2015″, Jason Hickel et al (Global Environmental Change, 73, 2022) usam a análise de balanço de recursos da economia ecológica para comprovar o receio presciente de Galeano. A dinâmica de troca desigual entre o Norte Global e o Sul Global implicou forte fluxo de recursos e de valor dos pobres para os ricos: entre 1990 e 2015, a drenagem do Sul totalizou US$ 242 trilhões (a preços constantes de 2010).

Tomando apenas o ano de 2015, o estudo mostra que o Norte apropriou do Sul 12 bilhões de toneladas de matérias-primas incorporadas aos bens e serviços importados do Sul, 822 milhões de hectares de terra incorporada, 21 exajoules de energia incorporada (o equivalente a 3,4 bilhões de barris de petróleo) e 188 milhões de pessoas-ano de trabalho incorporado, no valor de US$ 10,8 trilhões em preços do Norte. A soma é suficiente para acabar com a pobreza extrema 70 vezes.

A troca desigual é facilitada por mecanismos de preços no comércio internacional, onde os produtos primários e recursos naturais exportados pelo Sul são subvalorizados em comparação com os produtos manufaturados e serviços do Norte. O dreno em preços médios globais mostra que as perdas do Sul devido à troca desigual superam seus recebimentos totais de ajuda ao período por um fator de 30.

O artigo conclui com uma chamada para redesenhar as relações econômicas globais, por meio de uma reavaliação da dinâmica dos termos de troca, da implementação de políticas de comércio justo e da promoção de modelos de desenvolvimento que priorizem o bem-estar social e ambiental no Sul Global.

Os minerais críticos —como lítio e cobre— são fundamentais para a fabricação de baterias de veículos elétricos, turbinas eólicas, painéis solares e outras tecnologias verdes. No entanto, sem uma abordagem estratégica, esses países correm o risco de perpetuar um modelo econômico baseado no extrativismo, que historicamente tem gerado pouco valor agregado localmente, exacerbando desigualdades e causando danos ambientais significativos.

Ensino superior à distância: um debate inadiável, por Dyogo Patriota

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Multiplicam-se cursos EaD oferecidos por corporações privadas. Muitos são caça-níqueis, com até 2,6 mil alunos por professor. Portaria do governo Temer isentou-as de supervisão – e segue em vigor, produzindo precarização do ensino e do trabalho docente
Dyogo Patriota – OUTRAS PALAVRAS – 14/08/2024

O setor de educação superior, do modo como está constituído, dificilmente formará um consenso sobre o ensino a distância. Interessa entender se seu crescimento nos últimos anos foi ou não um erro e se tal modelo deve ser extinto. Dados concretos demonstram que o EaD está profundamente relacionado à precarização do trabalho dos professores. Uma parte dos integrantes do setor diz que o modelo serviu à captação de alunos pobres moradores de regiões nas quais não há IES próximas. Entretanto, tais localidades, no momento presente, são poucas e não justificam a difusão ingente dessa modalidade de ensino.

O ensino superior surgiu no país por uma necessidade de letramento dos filhos dos colonos e de religiosos em instituições, principalmente, confessionais. A estatização dessa política dependeu da chegada da família real ao Brasil em 1808. Houve a criação de faculdades isoladas de medicina e de direito, na Bahia, no Rio de Janeiro, em Pernambuco e em São Paulo. Com isso, o setor de educação superior foi engendrado para ser “não lucrativo ou não empresarial”, havendo uma forte similaridade entre as instituições públicas e as confessionais e comunitárias, que pareceram todas as demais.

No fim do século XX, a Constituição e a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) permitiram a exploração da atividade de educação pela iniciativa privada. O setor adquiriu conotações de livre mercado. Decorrente disso, porém de forma não previsível, houve a financeirização do ensino superior (principalmente nos últimos 20 anos), com a constituição de sociedades anônimas de capital aberto; criaram-se os grandes Conglomerados Empresariais Educacionais. Pode não ser claro, mas há poucas semelhanças entre uma empresa de educação comum e um Big Player Educacional, embora ambas trabalhem conforme a lógica do lucro.

Os Big Players Educacionais são produto da “financeirização da educação superior” e causam o maior tensionamento já visto com o Ministério da Educação, que tem sido constantemente fragilizado. O EaD, que é uma das premissas para compreender essa conjuntura, é hegemonicamente ofertado por essas sociedades anônimas. A Portaria MEC n.º 11/2017 (conhecida como “bônus regulatório”), permitiu a abertura de 50, 150 e 250 polos a distância sem supervisão prévia. Na prática, o MEC abriu mão de auditar essa atividade. O resultado disso foi auferido pela apresentação dos dados do “Censo da Educação Superior-INEP” (ano base 2022). Ali, há informações relevantes, como o fato de quatro IES reterem 23% dos alunos nessa modalidade e da proporção de professor por alunos, que chega a 1 para cada 2.594 graduando em alguns casos.

O setor de educação superior traz as entidades estatais, as comunitárias e as confessionais como líderes no ensino presencial. Já os Big Players dominam o ensino a distância. No ano 2000, havia 1.682 matrículas nessa modalidade. Foram necessários 10 anos para alcançar cerca de 1 milhão de alunos. Após o bônus regulatório o crescimento do EaD foi exponencial.

Mas, afinal, quem são os alunos do ensino a distância? São pessoas mais velhas, de classes sociais menos favorecidas, divididos entre a primeira e a segunda graduação. Isso explica a agressividade nos preços das mensalidades tendo em conta o público-alvo. No entanto, a redução da contraprestação financeira vem com cortes de custos em instalações físicas, monitorias, professores e materiais didáticos. A fórmula para isso é a padronização da educação e a autoaprendizagem superlativada.

Os EUA e Austrália têm amplos programas de financiamentos estudantis, com bilhões de dólares envolvidos; Israel financia quase 70% do custo das Universidades e de seus estudantes; o Tribunal Constitucional Alemão criou, ainda nos anos 1970, o instituto “a reserva do possível” para limitar o direito dos cidadãos de dispor do orçamento público para o ingresso ao ensino superior, já que não havia recursos suficientes para abarcar todos os pretendentes. Então, como é viável ofertar cursos de EaD com qualidade por R$ 49,99 ou R$ 99,99 no Brasil?

O Ministério da Educação é outro dos sujeitos centrais que compõem essa equação. Existem indícios de que esse órgão tenha tido uma forte perda de credibilidade. Um dos motivos para isso está no fato de que diversas matérias de sua competência foram levadas ao Supremo Tribunal Federal em controle de constitucionalidade, isso é um indício da perda de capacidade dele de resolver os temas educacionais de modo administrativo e definitivo. Entre os casos mais recentes que podem ser citados estão a redução compulsória de mensalidades (ADPF n.º 706-DF), a discussão sobre o total de bolsas que podem ser concedidas via PROUNI (Reclamação Constitucional 57.525-DF) e as autorizações de cursos de graduação em medicina (ADC n.º 81-DF e ADI n.º 7.187-DF).

A intenção é conclamar o Ministério da Educação a proporcionar igualdade aos sujeitos dessa relação. Não há, aqui, uma condenação a priori do EaD. Mas a maneira pela qual está sendo desenvolvido o ensino a distância não atende aos interesses nacionais do Brasil. O país não se desenvolve, o PIB cresce aos solavancos e não há influência relevante no processo de letramento de seu povo.

Dyogo Patriota é assessor jurídico do Crub e da Abruc

Como reduzir a pegada material do crescimento, por Ricardo Abramovay

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Embora mais “eficiente”, extrativismo cresceu 3,5 vezes desde anos 1970. Apostar na tecnologia não bastará. Transição justa inclui novos padrões de produção e consumo e outra agenda global, que não penalize o desenvolvimento do Sul global

Ricardo Abramovay – OUTRAS PALAVRAS – 08/08/2024

O mundo não está conseguindo desacoplar o crescimento econômico dos impactos provocados pela insaciável sede de recursos naturais dos quais depende a oferta de bens e serviços. Mudanças climáticas, erosão da biodiversidade e poluição (o que as Nações Unidas chamam de “tríplice crise planetária”) não serão enfrentadas com seriedade se a riqueza continuar se apoiando na extração crescente dos materiais que hoje estão na base do próprio crescimento econômico.

Segundo o Painel Internacional de Recursos do Programa Meio Ambiente das Nações Unidas (IRP/UNEP, na sigla em inglês) há quatro materiais básicos cujo ritmo de obtenção sinaliza a qualidade da relação entre a sociedade e os recursos em que está assentada sua reprodução: biomassa, minerais metálicos (ferro, cobre, ouro, mas também produtos como alumínio, mercúrio, níquel, entre outros), minerais não metálicos (areia, argila, fundamentais para a construção) e combustíveis fósseis.

Foi em 2011 que o IRP/UNEP publicou o primeiro trabalho sobre o tema, cujo título já indica uma importante ambição: “desacoplar o uso dos recursos naturais e os impactos ambientais do crescimento econômico”. Do que se trata?

Em 1970, quando a população mundial era de 3,7 bilhões de habitantes e o PIB global (em valores de 2015) atingia US$ 18 trilhões, os quatro materiais somavam 30 bilhões de toneladas. O mais recente relatório sobre o tema do IRP/UNEP (Bend the trend. Pathways to a liveable planet as resource use spikes) mostra a explosão no uso dos recursos. Hoje, com uma população de 8,1 bilhões de habitantes e um PIB global de US$ 93 bilhões (em valores de 2015), o sistema econômico extrai anualmente o vertiginoso montante de 106 bilhões de toneladas destes quatro materiais. A população, desde 1970, foi multiplicada por pouco mais de 2, o PIB por 5 e o uso de materiais por 3,5.

Isso significa então que houve um progresso importante, pois cada unidade de riqueza, ao longo dos últimos cinquenta anos, foi alcançada com o uso de uma quantidade menor de materiais. Cinco vezes mais riqueza usando “apenas” 3,5 vezes mais materiais indica, à primeira vista, que o objetivo do desacoplamento entre riqueza e uso dos recursos está sendo atingido. Por que então a consigna Bend the Trend (Mudar a Tendência) do recente trabalho do IRP/UNEP? Da imensa riqueza deste relatório, podem-se extrair quatro respostas a esta pergunta.

A passagem de 30 para 106 bilhões de toneladas anuais na extração de biomassa, minerais metálicos, minerais não metálicos e combustíveis fósseis compromete, muitas vezes de forma irreversível, serviços ecossistêmicos essenciais como a oferta de água, o ar limpo, estabilidade climática e a biodiversidade.

A segunda resposta para a urgência de “mudar a tendência” refere-se às desigualdades. A pegada material per capita, que era de 8,4 toneladas anuais em 1970 cresce para 12,2 toneladas ao início da terceira década do milênio. Mas não poderiam ser mais chocantes as desigualdades que estas médias escondem: nos países de baixa renda a pegada material per capita em 2020 era de 4 toneladas. Já no segmento mais próspero dos países de renda média (onde estão China e Brasil) a pegada ultrapassa a média mundial e chega, em 2020, a 19 toneladas per capita, aproximando estes países da média dos países de alta renda que é de 24 toneladas per capita. É claro que tem que existir espaço para ampliar o uso de recursos por parte dos países mais pobres (para a construção de escolas, hospitais, meios de comunicação e transporte), mas isso supõe drástica redução na pegada material dos países ricos e mesmo no segmento mais próspero dos países de alta renda.

Daí decorre a terceira resposta sobre as razões para “mudar a tendência”, que se refere à interação dos fatores sociais, ecológicos, institucionais e tecnológicos com base nos quais se extraem e transformam recursos naturais para preencher demandas e necessidades sociais. O relatório examina quatro setores econômicos (alimentação, moradia, mobilidade e energia) mostrando que a premissa básica para reduzir as desigualdades e, ao mesmo tempo, as ameaças contidas no crescente uso de recursos é que haja mudanças drásticas nos padrões de produção e de consumo. E estas mudanças não podem depender de decisões individuais. Muito mais que carros elétricos, o essencial é incrementar a mobilidade coletiva e estimular o uso e o
reaproveitamento das áreas centrais para implementar iniciativas como as da “cidade de quinze minutos”. Na moradia, a ideia de cidades compactas e conectadas e o uso de materiais alternativos aos atualmente dominantes são os caminhos para reduzir a pegada material. Na alimentação, mais do que aumentar a produtividade das áreas em que predomina a monotonia dos grãos voltados à produção animal a prioridade é estimular a diversificação das dietas e a correlativa redução no consumo de produtos animais, hoje excessivo na maior parte do mundo.

A quarta resposta está na ligação que o relatório faz entre as noções de justiça e de suficiência, expressão que ganha força crescente na agenda das organizações multilaterais. É o conceito de suficiência que vincula a ideia de “transição justa” ao uso dos recursos. O trabalho do IRP/UNEP chega a propor que se altere o foco desta transição da eficiência para a suficiência. É que a eficiência no uso dos recursos, embora fundamental, tem como contrapartida padrões de consumo que estimulam sua extração crescente. Daí a ênfase do IRP/UNEP no vínculo entre justiça e suficiência.

É na luta contra as desigualdades, apoiada em padrões de consumo que fortaleçam os bens e os serviços de uma vida digna para todos, que está o cerne da conquista de uma sociedade capaz de impedir que os ganhos de eficiência continuem se exprimindo na destruição em larga escala das bases que dão sustentação à própria vida.

Novos consumidores globais

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Nos últimos trinta anos, a economia internacional incluiu mais de 1 bilhão de consumidores ávidos para consumir, grande parte deste contingente saíram das nações asiáticas, gerando uma verdadeira revolução global e silenciosa, levando as empresas e as organizações a transformarem suas estratégias de produção, de logística, de marketing e de comunicação, como forma de satisfazer as mais variadas necessidades deste exército de compradores, com suas vontades, com seus desejos e buscando valorizar seus recursos monetários e financeiros.

Desde os anos 1980, as economias asiáticas estão transformando o cenário internacional, suas empresas estão trazendo novos modelos de negócios, aumentando a concorrência global, incrementando a produtividade do trabalho e exigindo de todas as nações severas transformações nas formas de gestão e organização produtiva, como forma de sobreviverem ao crescimento da competição no comércio global.

Nações como a China, Coréia do Sul, Taiwan, Japão, Indonésia, Malásia, Singapura e Vietnã estão gerando uma verdadeira guerra comercial e produtiva, transformando valores arraigados dos países ocidentais, reconstruindo as estruturas produtivas, investindo somas elevadas em capital humano e incrementando os dispêndios em infraestrutura.

A inclusão de milhões de trabalhadores asiáticos no mercado de consumo global pressionou as nações ocidentais a novos investimentos produtivos, aumentando os gastos em tecnologia, novos dispêndios em pesquisa e inovação, pressionando mercados monopolizados ou oligopolizados como forma de sobreviver às invasões de produtos asiáticos, empresas orientais e novos modelos de organização do trabalho.

O mercado de trabalho ocidental sentiu na pele o incremento da concorrência asiática, a inclusão desse contingente de novos consumidores, com novos modelos de trabalho, com salários achatados, ausência de benefícios sociais e emprego degradante trouxe grandes impactos para os trabalhadores ocidentais, que passaram a sentir no contracheque uma redução salarial e uma degradação das condições de trabalho, levando os trabalhadores a um visível empobrecimento, com cargas de trabalho escorchantes, metas elevadíssimas, além do aumento dos desequilíbrios emocionais, estresse, ansiedades, suicídios e desajustes variados.

As nações asiáticas investiram grandes somas de recursos financeiros no setor educacional como forma de capacitar seus trabalhadores para alcançarem um espaço na economia globalizada, forçando as nações ocidentais a saírem da letargia que viviam a muitas décadas, neste cenário, as empresas ocidentais sentiram a competição com as organizações orientais, com seus novos valores organizacionais, com uma cultura milenar e arraigada, com ênfase na consciência e na imaterialidade.

O crescimento asiático está transformando o capitalismo mundial, as empresas ocidentais e os valores do Ocidente. A difusão de empresas asiáticas na sociedade internacional como Lenovo, KIA, BYD, Hyundai, Shopee, Shein, Samsung, LG, Huawei, Baidu, TSMC, Chery, dentre outros grandes atores e conglomerados empresariais estão revolucionando a economia mundial, exigindo uma maturidade maior das nações ocidentais, tanto as desenvolvidas e as em desenvolvimento, como forma de competir no mercado internacional, sem esta maturidade o capitalismo asiático tende a dominar a sociedade internacional, impondo valores, comportamentos e formas de organização produtiva.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

O extremismo enquanto fetiche, por Leonardo Goldberg

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O mais eficaz não é o lobo solitário radical, mas o mestre no jogo do cinismo

Leonardo Godberg, Psicanalista, é doutor em psicologia (USP).

Folha de São Paulo, 13/08/2024

Definir o que significa o extremismo político é importante para pensarmos nas discussões contemporâneas sobre os significados que orientam a vida pública, da macropolítica às batalhas culturais. Poderíamos pensar que os extremistas são aqueles que não apenas divergem do sistema vigente, mas se recusam a endossá-lo.

Em vez da figura do ermitão, do lobo solitário radical, o extremista mais eficaz é o mestre no jogo do cinismo. Por exemplo: ele pode defender radicalmente a democracia social se lhe convém, mas, ao mesmo tempo —e dependendo do grupo ao qual fala—, dizer que a democracia social, liberal ou dos pesos e contrapesos institucionais é apenas uma forma autocrática de manutenção do poder; e, por isso, deveria ser combatida. O cínico político é aquele que domina a artimanha de distanciar aquilo que diz do seu modo de viver, não apenas sem vergonha alguma, mas dotado de certa insolência com verniz.

De forma praticamente intuitiva, alinhamos tal modelo de cinismo às necessidades do jogo político. Porém, o cinismo político ancorado por uma recusa das instituições, do pluralismo, marcado pelo tom acusatório e policialesco e pela relativização da violência de acordo com o aliado político, talvez seja a forma contemporânea mais precisa da pulverização dos extremismos.

Um caso paradigmático para pensarmos nessa figura do cínico político enquanto extremista é o de Adolf Eichmann (1902-62), um dos artífices do Holocausto. Eichmann foi imortalizado pela filósofa Hannah Arendt como aquele que incorporaria a banalidade do mal, através de uma espécie de sujeito cumpridor de ordens. No fundo, essa visão é confortável, pois coloca o mal ao lado de uma razão técnica mais ou menos ingênua.

Por outro lado, a filósofa e historiadora Bettina Stangneth esmiuçou a vida e gravações de Eichmann e mostrou que um dos principais organizadores do nazismo era um político astuto, ardiloso, eficiente, e que depois do nazismo articulou e participou ativamente de campanhas políticas de grupos extremistas na Argentina. Era, portanto, um animal político por excelência, sem banalidade alguma.

Um dos desafios mais importantes das democracias contemporâneas é identificar essa faceta do extremismo que está diluída em todos os espectros e amplificada pelas redes sociais, cuja estrutura reitera toda violência simbólica e física —vide os vídeos de guerra e de massacres que primeiro viralizam e depois são negados por seus autores (quando não chamados de método, por inconsequentes).

Se há uma psicopolítica do extremismo prenhe de certezas, a aposta das sociedades plurais deveria ser naquilo que o filósofo político Norberto Bobbio chamou de uma política da serenidade, essa virtude que, longe de se reduzir à “política do possível”, é justamente ancorada em uma ética que inclua visões opostas no campo do conflito, do debate público, para que a palavra “tolerância” não seja apenas título de livro de cabeceira ou mantra matutino, mas a base inegociável daquilo que chamamos de democracia.

Normalização da extrema direita encobre o mal em nossas ações, por Bernardo Carvalho

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Ryusuke Hamaguchi maneja com maestria, em ‘O Mal Não Existe’, a arte de contradizer valor nominal dos discursos

Bernardo Carvalho, Romancista, autor de ‘Nove Noites’ e ‘Os Substitutos’
Folha de São Paulo, 11/08/2024

Por ocasião da eleição presidencial de 2018, o escritor peruano Mario Vargas Lhosa, político de direita e prêmio Nobel de Literatura, sentenciou, em defesa de Jair Bolsonaro, que não poderia ser fascista um governo eleito por uma maioria de 57 milhões de votos.

A lógica peculiar e pueril foi reciclada recentemente por comentaristas que insistem em comprar a nova face da extrema direita mundo afora pelo valor nominal de seu programa de normalização, como se assumir e enfrentar as contradições da democracia (que, sim, o fascismo pode ser gestado dentro dela, contra ela, servindo-se de suas instituições) não fosse a única forma de defendê-la e preservá-la.

“O Mal Não Existe”, de Ryusuke Hamaguchi, não é uma resposta irônica à leviandade dessa lógica. Não diretamente. O filme também não é uma ilustração da “banalidade do mal” formulada por Hannah Arendt, embora possa ser visto como um desdobramento dela.

A história é simples, mas difícil de contar sem spoilers. Uma pequena comunidade nas montanhas, que vive em equilíbrio delicado com a natureza e da qual fazem parte o protagonista Takumi e sua filha, recebe a visita de uma dupla de produtores do showbiz, associados a um projeto que, com financiamento estatal, pretende instalar um “glamping” (camping com glamour) na região. Uma reunião é convocada com os habitantes, na qual ficam claros os efeitos deletérios e a insustentabilidade ambiental do empreendimento.

De volta a Tóquio, a dupla de produtores confronta o chefe com os problemas e os obstáculos levantados pelos membros da comunidade durante a reunião e é reenviada às montanhas para tentar uma conciliação. Não dá para adiar o projeto sem perder o prazo do financiamento para a revitalização da economia pós-pandêmica na região. Vão procurar convencer Takumi, o faz-tudo local, a participar do empreendimento. É o jeito de quebrar a resistência da comunidade.

No caminho, porém, o produtor dá a entender à colega que já não está tão convicto de seu trabalho e de sua missão. Gostaria de mudar de vida. Ao chegar à comunidade, passa a fazer esforços canhestros para se integrar às tarefas locais. Decide ficar.

Desde o início, diversos elementos vão dando conta da tensão e da precariedade do equilíbrio entre homens e natureza. Ouvem-se tiros de caçadores ao longe. Há carcaças de animais pelas trilhas nevadas. Os cervos alvejados, mas que conseguem escapar feridos, tornam-se violentos, invertendo a balança da ameaça. Tudo parece estar por um triz, de modo que a misantropia do protagonista e a antipatia da comunidade pelo empreendimento se explicam por um sentido urgente de sobrevivência. Qualquer novo elemento pode ser fatal.

A conclusão, entretanto, terá menos a ver com um elogio do conservadorismo e da imobilidade do que com a necessidade de resistência ao mecanismo de autoengano e normalização (essa combinação de narcisismo e ignorância com má-fé e oportunismo) que nunca nos permite reconhecer o mal em nossas próprias ações.

Há uma cadeia complexa de fenômenos, atos e decisões que não podem ser isolados. Querer fazer o bem sem considerar essa cadeia coletiva, sem se ver dentro dela, fazendo parte dela, produz o efeito inverso. É o que mostra a perspectiva trágica, capaz de desconstruir as ideias feitas por trás das premissas que levam ao oposto do que prometiam.

A divisa “ordem e progresso”, por exemplo, mesmo sendo falsa e equivocada, é palatável porque traduz uma ideia que não contradiz nossa autoimagem. Já “ordem e destruição”, mais verdadeira em vista das informações de que hoje dispomos sobre a ação do progresso humano, é insuportável, inconcebível. Ninguém quer se identificar com “ordem e destruição”. Melhor acreditar na normalização da extrema direita, já que teremos de conviver com ela.

É aí que entra o potencial de resistência da arte, ainda mais num momento de crise da consciência e da espécie: na contradição do valor nominal dos discursos, na capacidade de romper a membrana de normalização da autoimagem e fazer ver a complexidade contraditória dos fenômenos e das ações humanas.

Ryusuke Hamaguchi maneja com maestria essa arte crítica, da contracorrente e do dissenso, levando o espectador pela mão até onde ele não gostaria de ir, até a imagem enigmática com a qual ele não gostaria de se identificar. É o contrário da lógica de identificações e soluções fáceis que a cartilha “feel-good” do mercado cultural tem a nos oferecer como espelho, suposto remédio empoderador contra a crise.

Por que a democracia brasileira sobreviveu? por Celso Rocha de Barros

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Vale a pena discutir como o país se mostrou e e ainda se mostra pronto a acomodar golpistas

Celso Rocha de Barros, Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra) e autor de “PT, uma História”.

Folha de São Paulo, 11/08/2024

Em “Por que a democracia brasileira não morreu?”, os cientistas políticos Marcus André Melo e Carlos Pereira discutem por que a democracia brasileira sobreviveu à crise política que começou com os protestos de 2013 e durou até o fracasso da tentativa de golpe de Jair Bolsonaro.
O livro tem duas teses. Uma é muito mais bem demonstrada que a outra.

Os autores estão certos quando dizem que a culpa das últimas crises políticas não é do presidencialismo de coalizão. Aqui Melo e Pereira jogam em casa: são autores de um livro clássico sobre como o sistema político brasileiro funciona melhor do que se pensa (“Making Brazil Work”, de 2013).

Embora acertada, a análise merece um matiz: além dos choques externos, sofremos com legados históricos que enviesaram nosso sistema para a direita. Fizemos nossa transição à democracia com a classe política herdada da ditadura, fortemente conservadora (pois a esquerda foi perseguida) e bastante corrupta (pois na ditadura conviveram grandes projetos de desenvolvimento e ausência de controle institucional).

Por outro lado, em um país desigual como o Brasil, era de se esperar que a esquerda fosse bem-sucedida em eleições majoritárias (como a presidencial). Isso teria criado crises quando a esquerda chegasse ao poder em qualquer cenário.

Por outro lado, discordo dos autores quando dizem que, durante o bolsonarismo, a democracia nunca correu risco sério. Essa tese não é demonstrada pelo fracasso do golpe: se um investimento deu certo, isso não quer dizer que o capitalista nunca correu risco nenhum. Rebeca Andrade é uma heroína nacional exatamente porque derrotar Simone Biles era altamente improvável antes da prova.

Os autores apresentam bons argumentos sobre a complexidade institucional brasileira contemporânea, que tornaria uma centralização autoritária mais difícil. Entretanto, regimes autoritários podem lidar com alguma complexidade: a própria ditadura de 64 foi institucionalmente mais complexa que, por exemplo, o Estado Novo, sem deixar de ser autoritária.

Talvez uma ditadura Bolsonaro fosse só um passo além da complexidade do regime de 64; ou talvez fosse muito mais violenta, destruindo parte da complexidade institucional em que Melo e Pereira talvez apostem fichas demais.

De longe, a maior falha do livro é a análise muito apressada dos militares. As investigações da Polícia Federal sugerem que a luta interna nas Forças Armadas, sobre a qual ainda não sabemos o suficiente, foi muito importante para o fracasso dos extremistas. O livro não dedica muita atenção aos resultados dessas investigações.

Valeria a pena também discutir como a política brasileira mostrou-se —e ainda se mostra— pronta a acomodar golpistas. A bancada bolsonarista, que em 30 de novembro de 2022 pediu golpe dentro do Congresso Nacional, continua a ser tratada como parte legítima do jogo democrático. Há candidatos à Presidência do Senado negociando impeachment de ministro do STF para conseguir votos dos bolsonaristas.

Melo e Pereira conhecem o funcionamento do sistema político brasileiro de trás para frente, mas por vezes subestimam o peso de sua história, bem como as lutas que ocorrem fora dele (no Exército, por exemplo). De qualquer forma, é um livro que faz as perguntas grandes, e já vem suscitando boas conversas.

Como a extrema direita manipula rancores para obter ganhos políticos, por Bruno Boghossian

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Derrotada na eleição, ultradireita do Reino Unido tenta tirar proveito de um espetáculo de racismo

BRUNO BOGHOSSIAN – FOLHA DE SÃO PAULO – 11/08/2024

A extrema direita foi às ruas no Reino Unido para propagar uma onda de ódio contra imigrantes. O bando espalhou medo e fúria, mas não fez muito sucesso. Depois de invadir abrigos, incendiar carros e agredir policiais, a turma despertou grandes atos antirracistas que, na prática, frearam os ataques. A maioria da população condenou a violência.
Mesmo assim, os políticos que usam a xenofobia como língua corrente não acharam que era o caso de voltar para a toca. O desprezível Nigel Farage tentou convencer o público de que repudia a violência, mas aproveitou para dizer que os protestos exigiam uma iniciativa urgente para conter a imigração.

A ação política da extrema direita é uma aula do jogo baixo que é possível fazer para contaminar o debate público. Partido anti-imigração por natureza, o Reform UK de Larage foi derrotado na última eleição do Reino Unido e ficou com 1% das cadeiras do Parlamento. A legenda, no entanto, tenta explorar os ataques para fazer valer suas preferências.

A manipulação de rancores não é uma tarefa difícil quando ocorre num ambiente inflamável. No Reino Unido, grupos extremistas estimularam a perseguição a imigrantes depois que informações falsas nas redes deram conta de que um imigrante em situação ilegal teria sido o responsável por assassinar três crianças na cidade de Southport.

A ultradireita conhece bem esse território. Ainda que 85% da população tenha rejeitado protestos violentos, 42% dos britânicos disseram ao YouGov que as manifestações que ocorreram de forma pacífica eram justificadas —ainda que tenham sido convocadas por radicais, a partir de um estopim xenofóbico e mentiroso.

A violência pode até ser condenada, mas o espetáculo que ela produz é capaz de ampliar o alcance de um assunto e até amplificar a adesão à retórica de grupos que, em tempos de calmaria, são vistos como radicais. Em certos casos, com alguma boa vontade coletiva, essa mudança é suficiente para que mais gente passe a considerá-los normais.

Crises Financeiras

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Nesta semana a economia internacional passou por grandes incertezas e instabilidades que geraram pânicos e preocupações generalizadas no mercado financeiro, com impactos para todas as regiões, moedas derreteram, Bolsas apresentaram baixas históricas, investidores entraram em alerta e autoridades monetários tiveram que acompanhar com maior atenção os movimentos do mercado.

Na última segunda-feira, as Bolsas asiáticas balançaram a economia internacional, levando a quedas homéricas, algumas caíram mais de 12% num único dia e contribuíram ativamente para espalhar caos e muita confusão no cenário econômico internacional. Vários motivos contribuíram para a compreensão dessa crise financeira, a possível recessão norte-americana, a bolha no mercado de empresas de tecnologia e a crise dos mercados de carry trade.

O carry trade é uma situação quando o investidor pega dinheiro emprestado em países onde a taxa de juros é baixa, como o Japão, e aplica esses recursos em mercados onde a taxa de juros é mais alta para ganhar com a diferença. Neste cenário, o aumento recente dos juros japoneses reduziu os ganhos destes investidores, levando-os para buscar mercados mais sólidos como os norte-americanos.

As crises financeiras acontecem desde os primórdios da humanidade, com impactos generalizados e repercussões imediatas, gerando enriquecimentos de um lado e perdas elevadas de outro, que demandam atuação mais intensa e mais efetiva dos governos nacionais para impedir que os sistemas econômico, produtivo e financeiro entrem em colapso, levando as nações a fortes recessões, aumentando o desemprego e reduzindo a renda agregada, contribuindo ativamente para a concentração das riquezas e o incremento das desigualdades sociais.

Neste momento de grandes incertezas e instabilidades que culminaram em pânico no sistema financeiro, os agentes sociais e econômicos buscam, ativamente, as razões da volatilidade que aumentam as incertezas, reduzindo os investimentos produtivos e estimulando a busca frenética de ativos de baixo risco, como forma de defender seus patrimônios e, se possível, garantir ganhos imediatos.

Os setores financeiros concentram grandes poderes na sociedade internacional, impondo seus interesses imediatos, seus ganhos estratosféricos, transformando as relações sociais, estimulando um verdadeiro cassino financeiro, modificando valores enraizados na comunidade e criando novos valores, centrados no imediatismo, no individualismo e na busca crescente dos lucros monetários e financeiros.

Dados divulgados na semana passada mostram uma possível recessão na economia norte-americana que pode gerar desaceleração da economia internacional, levando muitas nações a exportarem menos para os EUA e impactando negativamente nas economias locais, gerando menos empregos e reduzindo a demanda agregada interna.

Outra situação preocupante para a economia internacional foi os dados divulgados sobre as ações de empresas de tecnologia, muitas delas reportaram quedas elevadas em seus ganhos, levando especialistas a vislumbrarem um possível fim da bolha das empresas de tecnologia. Empresas como a Nvidia apresentaram valores surreais no mercado, as ações da gigante dos chips, a norte-americana Intel, reportou aos investidores perdas de mais de 25% nas ações, destacamos ainda, a venda das ações da Apple pelo grande investidor norte-americano Warren Buffett, gerando incertezas e instabilidades no mercado acionário.

As finanças dominam a economia mundial impondo seus valores, estimulando o imediatismo, o individualismo, o lucro monetário e fortalecendo valores materiais, deixando de lado as aflições humanas, as depressões e os ressentimentos que crescem em todas as regiões do mundo.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

País dos privilégios, por Hélio Schwartsmam

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Livro tenta atualizar clássico de Raymundo Faoro que mostrou como certos grupos extraem para si benefícios da sociedade

Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”.
Folha de São Paulo, 04/08/2024

Sou fã de Bruno Carazza desde os tempos em que ele mantinha um blog no qual tentava introduzir medidas objetivas para analisar questões de direito. É com satisfação, portanto, que o vejo agora envolvido no ambicioso projeto de escrever uma trilogia que atualiza “Os Donos do Poder” o clássico de Raymundo Faoro”, que mostrou como alguns estamentos sociais conseguem sequestrar o poder do Estado brasileiro para beneficiá-los. O título da obra de Bruno é “O País dos Privilégios”, da qual acaba de sair o primeiro volume.

Neste tomo inicial, Bruno se debruça sobre o funcionalismo público. Esse livro teria potencial de ser um dos mais aborrecidos do mundo. O que Bruno faz essencialmente é comparar tabelas com rendimentos de servidores e outros dados que não despertam entusiasmo. Mas ele consegue transformar isso numa leitura interessante. Eu exageraria se afirmasse que a obra se lê como um Agatha Christie, romance de mas o texto é agradável e prende a atenção. Até desperta algumas emoções no leitor, quando descreve as formas criativas pelas quais certos estamentos extraem benefícios da sociedade.

O número de funcionários públicos no Brasil não é exagerado –12%, bem menos que o registrado em algumas economias avançadas–, mas empenhamos em suas remunerações a formidável fatia de 13% o PIB, padrão só verificado nos países nórdicos. A distribuição é, como tudo no Brasil, desigual.

Enquanto funcionários municipais ganham em média menos que trabalhadores da iniciativa privada em funções semelhantes, grupos de elite do funcionalismo federal ganham bem mais, além de gozar de outros privilégios. Estamos falando de juízes, membros do Ministério Público, fiscais de renda etc.

O livro não é uma diatribe contra servidores públicos. Bruno é muito cuidadoso ao lembrar que eles desempenham um papel importantíssimo na administração, que justifica alguns (mas não todos) os privilégios.

Reconstruindo as capacidades estatais, por André Roncaglia

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Transparência ajuda a qualificar debate sobre o papel das empresas públicas no século 21

André Roncaghia, Professor da Unifesp, pesquisador associado do Ibre-FGV e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo, 08/08/2024

A Sest (Secretaria de Coordenação e Governança das Estatais) do MGI (Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos) apresentou, há alguns dias, o “Relatório Agregado das Empresas Estatais Federais”, um mapa do sistema de empresas estatais federais.

O relatório oferece uma descrição de cada uma das 44 empresas sob controle direto da União e permite uma análise mais adequada dos resultados das estatais ajustados aos seus objetivos.

A imprensa costuma repercutir uma análise superficial, tipicamente financista, de lucro ou prejuízo. A extrema direita se gaba de o governo Bolsonaro ter melhorado a gestão das estatais, mas os números mostram o desmonte a granel do sistema, por meio de cortes de investimento e da venda lesa-pátria da Eletrobrás.

Os objetivos das empresas estatais transcendem a mera busca de resultados financeiros de curto prazo. Sua governança considera aspectos ligados ao interesse público, como a geração de empregos de qualidade, o abastecimento e a segurança alimentar, a inovação tecnológica e a gestão focada em resultados.

Em 2023, o sistema de empresas estatais federais contribuiu com cerca de 6% do PIB em valor adicionado bruto e mais 6% na compra de insumos, ativando cadeias produtivas nacionais. Os ativos somaram cerca de R$ 6 trilhões (60% do PIB), e o lucro líquido foi de R$ 197,9 bilhões: dois terços desse resultado vieram da Petrobrás (R$ 125,2 bilhões), seguida pelo Banco do Brasil (R$ 33,8 bilhões), pelo BNDES (R$ 21,9 bilhões) e pela Caixa Econômica Federal (R$ 11,7 bilhões). A queda de 28% nos lucros relativos a 2022 se deveu à redução nos preços do petróleo e ao aumento de 30% dos investimentos das empresas.

Em termos de emprego, o sistema detém mais de 436 mil postos, com atuação em todo o território nacional, e vem melhorando a baixa representatividade das mulheres (ainda em 38% do total), mas que já detém 49% dos empregos gerados nos últimos dez anos.

Ao longo do ano de 2023, foram distribuídos R$ 128,1 bilhões em dividendos e juros sobre o capital próprio, dos quais a União recebeu R$ 49,4 bilhões. Cerca de R$ 222 bilhões foram pagos na forma de impostos, taxas e contribuições para municípios, estados e a União. Os lucros retidos no total de R$ 101 bilhões podem reforçar os investimentos ligados ao Novo PAC.

A Ebserh, que controla 41 dos 45 hospitais universitários federais (responsáveis por mais 8 milhões de cirurgias em 2023), e a Embrapa (tecnologia agropecuária) receberam, cada uma, cerca de R$ 4 bilhões do Tesouro. E os Correios receberam R$ 532 milhões para universalizar o acesso à distribuição postal.

No mundo inteiro, as empresas estatais retomam sua centralidade em setores estratégicos, como os de rede (ferrovias, portos, eletricidade, saneamento, telecomunicações etc.) e na produção e na prestação de serviços (saúde, financeiros, manufatura, indústria aeroespacial etc.). Um estudo do Roosevelt Institute —”Industrial Policy 2025: Bringing the State Back In (Again)”—mostra que, das 10 maiores empresas do mundo, 4 são estatais. A França, por exemplo, tem mais empresas estatais que a ex-soviética Rússia. O Brasil tem menos cobertura estatal do que Suíça, Alemanha e Argentina.

Ao operar uma agenda intensiva em inovações para o setor público, o MGI visa construir as capacidades estatais para lidar com os desafios da transição ecológica e da digitalização da economia. É uma estrada longa e repleta de obstáculos. Por isso, a maior transparência ajuda a qualificar o debate público sobre o papel das empresas estatais no século 21.

Desigualdades sociais

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Nos últimos anos estamos percebendo o incremento das desigualdades sociais na sociedade internacional, anteriormente ao falar sobre esse assunto percebíamos que essa desigualdade acontecia fortemente nas economias subdesenvolvidas ou em desenvolvimento, na contemporaneidade esse assunto se apresenta em todas as nações do globo, tanto as ricas e desenvolvidas como as nações pobres e atrasadas economicamente, gerando novos desafios para os gestores públicos, as elites empresarial e financeira, além da academia e para todos os integrantes da sociedade civil.

Desde os anos 1990, com o incremento da globalização, da abertura econômica e do aumento das tecnologias que culminaram numa sociedade digital e centrada no conhecimento, percebemos uma grande transformação na estrutura econômica e produtiva, alguns países conseguiram se adaptar melhor e mais rapidamente neste novo cenário, enquanto outras nações tiveram grandes dificuldades no mundo globalizado, gerando concorrências crescentes em todos os setores, impactando sobre os trabalhadores e os setores produtivos, impulsionando uma competição que tende a fragilizar muitas empresas e sistemas econômicos.

A desigualdade social sempre caracterizou a sociedade brasileira, somos vistos como uma das nações mais desiguais do mundo, que contrasta com as riquezas que caracterizam a sociedade nacional, afinal somos um país dotado de grandes recursos minerais, clima agradável, grandes reservas de água doce, além de florestas e vegetações em abundância que nos coloca no centro de uma das nações mais ricas de recursos naturais.

Mesmo assim, as desigualdades sociais existentes na contemporaneidade brasileira estão diretamente ligadas a história degradante da escravidão que perdurou mais de trezentos anos, uma colonização caracterizada por uma exploração gigantesca, além de privilégios de poucos grupos econômicos e financeiros, um Estado capturado por elites predadoras e imediatistas, além de um sistema educacional fracassado e ultrapassado para os grupos mais fragilizados economicamente da sociedade, que contribuem para a perpetuação de uma pobreza estrutural que nos afasta imensamente da cidadania e da conscientização política e social.

Além destas características que contribuem maciçamente para o incremento das desigualdades sociais, destacamos salários degradantes que pouco auxiliam na sobrevivência dos trabalhadores e estimulam a construção de um sistema de proteção social para garantir a sobrevivência dos indivíduos, sem estes a degradação social tende a aumentar e gerar graves constrangimentos políticos e sociais.

Nesta sociedade, que se compraz com as desigualdades variadas que vivenciam no Brasil, encontramos grupos altamente privilegiados, que garantem sua reprodução através de ganhos escorchantes de taxas de juros obscenas, dominando as Autoridades Monetárias sem produzir efetivamente nada, sem geração de emprego e de renda, sem pudor, sem caráter e sem capacidade de compreender que seus benesses e imediatismos contribuem diretamente para a manutenção deste quadro de degradação social, além de um exército de cidadãos bem remunerados, bem formados e que se vendem para garantir seu enriquecimento pessoal e suas férias em terras estrangeiras em prol de uma sociedade deficiente e centrada nas desigualdades sociais.

As desigualdades sociais crescem de forma acelerada em todas as regiões do mundo, gerando um quadro obsceno e degradante, precisamos construir uma maturidade que ataque as raízes desta desigualdade, deixando de lado medidas cosméticas e ineficientes que apenas postergam os conflitos sociais e as crises econômicas que crescem todos os dias.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

O Império do Mal? por Elizabeth Schmidt

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Elizabeth Schmidt – A Terra é Redonda – 27/07/2024

A presença da China na África vem desde meados do século passado, inicialmente por simpatia política, hoje mais ligada a perspectivas econômicas

A crescente presença da China na África chamou a atenção global. À medida que seus acordos comerciais e investimentos eclipsaram os do Ocidente, políticos dos EUA e da União Europeia deram o alarme: Pequim, dizem eles, está explorando os recursos do continente, ameaçando seus empregos e apoiando os seus ditadores; ademais, está deixando de lado as considerações políticas ou ambientais.

As organizações da sociedade civil africana fazem muitas das mesmas críticas, ao mesmo tempo em que apontam que os países ocidentais há muito se envolvem em práticas semelhantes. Na mídia anglófona, a maioria das avaliações das perspectivas da China é obscurecida pela retórica da Nova Guerra Fria, que enquadra Xi Jinping como um sujeito que visa dominar o mundo. Pede-se, assim, às forças da civilização que o detenham. Ora, como se poderia fazer uma análise mais sóbria? Como se deve entender o papel da África nessa matriz geopolítica hostil?

Os interesses chineses na África – assim como as preocupações ocidentais sobre a influência de Pequim – não são novidade. Compreender o impasse atual exige que a sua história do imperialismo na África seja rastreada. Em abril de 1955, representantes de 29 nações e territórios asiáticos e africanos se reuniram para uma conferência histórica em Bandung, na Indonésia. Eles resolveram arrancar a própria autonomia do núcleo capitalista, promovendo a cooperação econômica e cultural, bem como a descolonização e a libertação nacional, em todo o Sul Global.

Nesse sentido, o envolvimento chinês com a África foi guiado inicialmente por esse espírito de solidariedade. Do início dos anos 1960 a meados dos anos 1970, a China ofereceu doações e empréstimos a juros baixos para projetos de desenvolvimento na Argélia, Egito, Gana, Guiné, Mali, Tanzânia e Zâmbia. Também enviou dezenas de milhares de “médicos descalços”, técnicos agrícolas e brigadas de solidariedade trabalhadora para países africanos que rejeitaram o neocolonialismo e, por isso, haviam sido rejeitados pelo Ocidente.

Na África Austral, onde o domínio da minoria branca persistiu em certas colônias, Portugal resistiu às demandas de independência, Pequim forneceu aos movimentos de libertação em Moçambique e na Rodésia treinamento militar, conselheiros e armas. Quando os países ocidentais ignoraram os apelos da Zâmbia para isolar efetivamente os regimes renegados, a China criou em empresa ferroviária na Tanzânia e Zâmbia, que construiu uma ferrovia que permitiu à Zâmbia exportar seu cobre através da Tanzânia, em vez da Rodésia e da África do Sul, governadas por brancos. Ao longo desse período, as políticas chinesas foram determinadas principalmente por imperativos políticos, pois o país buscava aliados em uma conjuntura global moldada pela Guerra Fria.

Após o colapso da URSS, porém, as suas prioridades mudaram. A China respondeu ao advento da unipolaridade americana embarcando em um programa maciço de industrialização e liberalização, na esperança de evitar o destino de outros projetos estatais comunistas. Com essa mudança, a África não era mais vista como um campo para iniciativas com teor ideológico, mas como uma fonte de matérias-primas e um mercado para produtos chineses, que vão de roupas a eletrônicos. A simpatia política deu lugar à perspectiva da utilidade econômica. As nações africanas foram valorizadas de acordo com seu significado material e estratégico para os planos de desenvolvimento do Partido Comunista Chinês.

Na primeira década do século XXI, a China ultrapassou os EUA como o maior parceiro comercial da África e recentemente se tornou a quarta maior fonte de investimento estrangeiro direto do continente. Em troca de acesso garantido a recursos energéticos, terras agrícolas e materiais para dispositivos eletrônicos e veículos elétricos, a China gastou bilhões de dólares em infraestrutura nesse continente: construção e reforma de estradas, ferrovias, barragens, pontes, portos, oleodutos e refinarias, usinas de energia, sistemas de água e redes de telecomunicações.

As empresas chinesas também construíram hospitais e escolas e investiram nas indústrias de vestuário e processamento de alimentos, juntamente com agricultura, pesca, imóveis comerciais, varejo e turismo. Os investimentos mais recentes se concentraram em tecnologia de comunicação e energia renovável.

Ao contrário das potências ocidentais e das instituições financeiras internacionais, Pequim não fez da reestruturação política e econômica uma condição para seus empréstimos, investimentos, ajuda ou comércio. Eles não estão também condicionados a proteções trabalhistas e ambientais.

Embora essas políticas sejam populares entre os governantes africanos, elas são frequentemente contestadas por organizações da sociedade civil, que observam que as empresas chinesas expulsaram empresas de propriedade africana do mercado e empregaram trabalhadores chineses em vez de trabalhadores locais.

Quando contratam mão de obra africana, as empresas chinesas muitas vezes os forçam a trabalhar em condições perigosas por salários miseráveis. Os projetos de infraestrutura da China também resultaram em dívidas maciças que aprofundaram a dependência africana. No entanto, os países africanos ainda devam muito mais ao Ocidente.

O mais danoso é que Pequim garantiu seu acesso irrestrito a mercados e recursos apoiando elites corruptas, fortalecendo regimes que roubam a riqueza de seus países, reprimem a dissidência política e travam guerras contra estados vizinhos. Os governantes africanos, por sua vez, deram à China o apoio diplomático muito necessário nas Nações Unidas e em outras organizações internacionais.

Durante décadas, a China se opôs à interferência política e militar nos assuntos internos de outras nações. No entanto, à medida que os interesses econômicos de Pequim na África cresceram, ela adotou uma abordagem mais intervencionista, envolvendo operações de socorro em desastres, antipirataria e contraterrorismo.

No início dos anos 2000, a China aderiu aos programas de manutenção da paz da ONU em países e regiões onde tinha interesses econômicos. Em 2006, a China pressionou o Sudão, um importante parceiro petrolífero, a aceitar a presença da União Africana e da ONU em Darfur. Em 2013, aderiu
à missão de manutenção da paz da ONU no Mali, motivada pelos seus interesses no petróleo e no urânio dos países vizinhos. Em 2015, trabalhou com potências ocidentais e organizações sub-regionais da África Oriental para mediar as negociações de paz no Sudão do Sul.

Durante este período, a China inicialmente se absteve de se envolver militarmente em áreas dominadas por conflitos, preferindo contribuir com trabalhadores médicos e engenheiros. Mas isso não durou muito. Houve uma notável presença militar chinesa nas missões de paz da ONU no Burundi e na República Centro-Africana.

A missão da ONU no Mali marcou a primeira vez que as forças de combate chinesas se juntaram a uma operação desse tipo, ao lado de cerca de 400 engenheiros, pessoal médico e policial. Pequim também enviou um batalhão de infantaria composto por 700 soldados armados para o Sudão do Sul em 2015. No ano seguinte, estava contribuindo com mais militares para as operações de manutenção da paz da ONU do que qualquer outro membro permanente do Conselho de Segurança.

A tendência de maior envolvimento político e militar na África culminou em 2017, quando a China se juntou à França, EUA, Itália e Japão no estabelecimento de uma instalação militar em Djibuti: assim nasceu a primeira base militar chinesa permanente fora das fronteiras do país.

Estrategicamente localizada no Golfo de Aden, perto da foz do Mar Vermelho, a instalação tem vista para uma das rotas marítimas mais lucrativas do mundo.

Isso permitiu que Pequim reabastecesse embarcações chinesas envolvidas em operações antipirataria da ONU e protegesse os cidadãos chineses que vivem na região. Também permitiu o monitoramento do tráfego comercial ao longo da Rota da Seda Marítima do Século XXI da China, que liga países da Oceania ao Mediterrâneo em uma vasta rede de produção e comércio. Isso ajudará a China a proteger seu suprimento de petróleo, metade do qual se origina no Oriente Médio e transita pelo Mar Vermelho e pelo Estreito de Bab el-Mandeb até o Golfo de Aden. A maioria das exportações da China para a Europa segue a mesma rota.

Embora Washington condene o que chama de imperialismo chinês, sua própria pegada militar na África é muito mais profunda e dolorosa, consistindo em 29 bases em áreas ricas em recursos. Os EUA prometem afastar os “impérios do mal” enquanto ostentam mais de 750 bases em pelo menos 80 países, em comparação com as três da China. Lutou em pelo menos 15 guerras estrangeiras desde 1980 – a China aderiu a apenas uma – e os regimes fiscais que impôs às nações africanas, baseados na privatização, desregulamentação e restrições de gastos, foram ruinosos.

O establishment de segurança dos EUA agora visa conter a ascensão da China, reforçando alianças militares, especialmente com regimes que receberam investimentos chineses. No entanto, um número crescente de estados africanos, cientes desse histórico desastroso, está se recusando a tomar partido na Nova Guerra Fria e, em vez disso, está tentando jogar seus combatentes uns contra os outros.

A verdade é, porém, que enquanto a África for tratada como um meio para as potências rivais expandirem seus mercados ou influência, em colaboração com as elites locais, o povo do continente não exercerá a verdadeira soberania. Hoje, os legados de Bandung são escassos.

*Elizabeth Schmidt é professora de história na Loyola University Maryland.

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

Para ‘despiorar’ o socorro aos estados, por Marcos Mendes

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Fundo garantidor bancado pelos estados reduziria comportamento predatório

Marcos Mendes, Pesquisador associado do Insper, é organizador do livro ‘Para não esquecer: políticas públicas que empobrecem o Brasil’

Folha de São Paulo, 27/07/2024

Nos anos 1980 e 1990, a desordem fiscal nos estados era grande. Governadores contavam com a inflação para corroer a folha de salários e aumentar as receitas dos bancos estaduais, que financiavam diretamente os seus controladores.

O Banco Central, então responsável por autorizar operações de endividamento subnacionais (a partir de regras fixadas pelo Senado), era chamado à mesa de negociação toda vez que havia necessidade de socorro. A execução era feita via bancos federais, flexibilizando exigências prudenciais a bancos estaduais ou “emprestando” títulos de sua emissão para os estados captarem dinheiro em mercado.

O Plano Real desmontou o financiamento inflacionário dos bancos e dos tesouros estaduais, revelando o desequilíbrio que a inflação escondia. Foi necessário um programa de saneamento e privatização dos bancos, bem como a federalização das dívidas estaduais.

Esses socorros embutiram subsídio aos estados e custaram muito aos contribuintes. Em
contrapartida, exigiu-se um programa de ajuste fiscal e aprovou-se a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal).

O Banco Central foi retirado do processo de autorização de endividamento, afastando o risco de ser dragado para nova operação de socorro. A tarefa foi transferida ao Tesouro, que cumpriu bem a função, empoderado pela LRF e pelos instrumentos que garantiam o cumprimento do ajuste pelos estados, como a possibilidade de confiscar depósitos daqueles que não honrassem a dívida.

Os estados deixaram de ser um problema fiscal e melhoraram a qualidade e eficiência na prestação de serviços públicos.

A partir de 2008, esse arranjo institucional começou a ruir. Primeiro, porque o governo federal afrouxou os limites de endividamento. Segundo, porque os estados aprenderam a explorar brechas nos limites da LRF.

Em 2014, o desequilíbrio fiscal estadual já havia voltado a ser problema de primeira ordem. E o jogo político mudou. Os estados amealharam forte apoio no Congresso, onde cada parlamentar tem interesse em beneficiar o seu estado e jogar a conta para os contribuintes do resto do país.

Governadores conseguiram obter vitórias sobre a União no STF, mesmo em causas sem fundamento jurídico ou econômico, geralmente sob o argumento de que o atendimento da população não poderia ser prejudicado.

Rompeu-se a principal cláusula da LRF: a proibição de novos socorros fiscais. Todos os governos, desde Dilma, foram forçados a renegociar a dívida. O Tesouro, que antes tinha poder para exigir ajuste aos estados, ficou acuado, sob pressão de governadores, Congresso e STF.

Há incentivo a comportamento fiscal irresponsável, dada a alta probabilidade de repassar a conta para a União.

Tornou-se comum um estado tomar empréstimo no mercado com garantia da União, não pagar, e forçar a União a saldar o débito. Quando esta tenta executar a contragarantia, o estado consegue uma liminar do STF bloqueando a execução.

A coação ao Tesouro evoluiu ao ponto de os estados que estão no Regime de Recuperação Fiscal passarem a ter, por lei, o direito de não honrar as garantias e refinanciar o valor em 30 anos.

Desde 2016, a União já honrou R$ 70 bilhões e executou apenas R$ 6 bilhões em contragarantias.

Esse comportamento predatório só mudará se a vulnerabilidade do Tesouro for reduzida. Exatamente como se fez no passado com o Banco Central, ao isolá-lo da negociação política com os estados.

No caso do Tesouro, não será possível tirá-lo completamente das negociações, mas pode-se reduzir a sua exposição. Uma forma de fazê-lo, sugerida em estudo do FMI de 2019, seria a criação de um fundo garantidor de empréstimos dos estados custeado pelos próprios estados, sem participação financeira ou gerencial da União.

O Tesouro ficaria proibido de dar novas garantias. Somente este fundo poderia fazê-lo. Se um estado desse calote, o custo recairia sobre os demais estados, e não sobre a União.

A negociação de socorro fiscal que ora se desenrola no Senado prevê que parte dos juros pagos pelos estados, em vez de ir para a União, irá para um fundo, que financiará despesas de todos os estados. Em vez de financiar despesas, este fundo poderia garantir empréstimos. Capitalizações adicionais do fundo, somente com dinheiro dos estados.

Em troca das benesses que o projeto está dando aos estados, teríamos pelo menos uma mudança institucional para induzir um pouco de responsabilidade fiscal.