Ditadura não é coisa do passado, Lula, basta olhar PMs, por Adilson Paes de Souza

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Ditadura não é coisa do passado, Lula, basta olhar PMs

Presidente, expurgar o legado do golpe de 64 das polícias é indispensável para ‘tocar o Brasil para a frente’

Adilson Paes de Souza, Doutor em psicologia escolar e do desenvolvimento humano e pós-doutorando em psicologia social pela USP.

Folha de São Paulo, 31/03/2024

[RESUMO] Políticas atuais de segurança pública, orientadas por lógica de guerra contra parte da população e aposta na letalidade policial como medida de proteção social, atualizam os métodos empregados pelo regime militar. Autor sustenta que a situação demanda enfrentar as heranças da ditadura em vez de tratar o golpe de 1964 como parte da história que não deve ser remoída, como Lula faz.

Não tenho recordação da ditadura na minha infância, sensação que causa hoje em mim estranheza. Lembro, vagamente, as propagandas ufanistas sobre o país que deu certo, o milagre econômico, o progresso e o desenvolvimento de toda a nação.

Presidente, eu nasci em julho de 1964, três meses depois do golpe de Estado e da instauração da ditadura no Brasil. Diferente do senhor, que tinha 19 anos de idade, não lembro, obviamente, o que aconteceu.

Acho que o senhor se lembra, presidente, de um programa de TV chamado Amaral Netto, o Repórter, ocasião em que os supostos êxitos do governo militar eram apresentados e exibidos à exaustão: um Brasil que deu certo graças aos militares —aliás, fala constante de pessoas que fazem, hoje em dia, apologia do período ditatorial.

Não era sobre um Brasil onde pessoas eram torturadas e desapareciam. Não era sobre um Brasil onde a miséria e a hiperinflação reinavam. Está vendo como é importante falar de um passado que insiste em ser negado, presidente?

A vida seguiu adiante. Em 1985, se iniciou o processo de redemocratização do país. Em 5 de outubro de 1988, foi promulgada a Constituição Federal, a nossa Constituição Cidadã, marco do retorno da democracia ao país. É o que dizem. Não foi bem isso, contudo, o que aconteceu.
Ingressei em 1982 no curso de formação de oficiais da Polícia Militar de São Paulo e o concluí em 1984, em plena ditadura. Durante o processo de redemocratização —vale dizer, a Assembleia Constituinte—, pude notar a presença marcante do lobby militar, com o objetivo de barrar mudanças na estrutura das Forças Armadas e das polícias militares no novo texto constitucional.

Naquela ocasião, delegações de oficiais das polícias militares estavam em Brasília o tempo todo e atuavam conjuntamente com as Forças Armadas. O lobby deu certo: os papéis, tanto das Forças Armadas quanto das polícias militares, são os mesmos, na essência, dos que tinham na ditadura.

Aliás, Lula, o senhor se tornou recentemente parte de um lobby poderosíssimo em defesa da aprovação da Lei Orgânica das PMs, lei pior que a do regime militar.

Presidente, nada mudou da ditadura para cá em termos de segurança pública. Hoje, temos uma estrutura incompatível com os valores democráticos presentes na nova Constituição —basta olhar a vasta produção de dados estatísticos sobre a letalidade policial.

O Estado brasileiro, por meio das polícias, se manifesta levando medo e desconfiança à sociedade, característica marcante da atuação estatal durante o regime militar. Desde 1988, houve inúmeras operações policiais, em vários estados, com cifras inaceitáveis de pessoas mortas.

Essas operações têm em comum a falta de transparência e a morosidade nas apurações, o discurso de guerra contra inimigos e a aposta na letalidade policial como a única medida para alcançar a paz social. Via de regra, foram objeto de denúncias de graves violações de direitos humanos e de execuções sumárias, tiveram locais de crime violados e não contaram com perícia e relatos de testemunhas adequados. Isso não é nada diferente das operações realizadas contra os ditos subversivos nos anos de chumbo.

Técnicas de tortura e de assassinato de pessoas vistas como inimigas da nação foram, mesmo após 1988, ensinadas para policiais empenhados no que acreditavam ser a defesa da sociedade contra quem queria destrui-la. Isso aconteceu durante o regime militar, sob a instrução de agentes estrangeiros —CIA e OPS (Gabinete de Segurança Pública dos EUA)— em ações contra elementos subversivos, sob a égide da Doutrina de Segurança Nacional.

O emprego desses métodos, no entanto, persiste até hoje no dia a dia de aplicação de uma política de segurança pública militarizada, que se traduz em uma aludida guerra contra os inimigos da sociedade. O que mudou então, Lula? O senhor acredita, sinceramente, que o golpe é coisa do passado?

Até hoje, presidente, policiais acreditam que o assassinato é uma medida eficaz de proteção da sociedade. A morte de pessoas identificadas como inimigos a serem combatidos, marginais, suspeitos etc. é tratada como sinônimo de eficiência estatal e de segurança pública, da mesma forma como ocorria durante o regime militar. Lula, lamento dizer, a ditadura não ficou para trás, ao contrário do que o senhor diz: ela repercute e produz consequências na atualidade.

Exemplo nítido disso é a conduta de militares no governo Bolsonaro e o envolvimento deles na trama golpista agora investigada, em atuação semelhante à ocorrida às vésperas do golpe de 1964 —que, de acordo com suas declarações recentes, ficou para trás. Insisto, presidente, o passado está presente.

Ao dizer que o golpe de 1964 “já faz parte da história”, o senhor ignora as centenas de assassinatos e desaparecimentos pelo regime militar (434 pessoas, segundo a Comissão Nacional da Verdade). O senhor ignora o sofrimento de seus parentes, familiares e amigos.

Suas afirmações também minimizam o fato de milhares de pessoas serem executadas todos os anos pelas polícias, hoje ditas democráticas. Seu silêncio, presidente, em relação a determinadas operações policiais que resultam em mortes não deixa de ser estarrecedor.

Por que silenciar em relação ao golpe de 1964 e a atuação das polícias hoje? Por que não recriar a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos? Por que vetar eventos oficiais sobre os 60 anos do golpe militar em vez de fomentar a memória a respeito da ditadura? Por que tentar apagar o passado?

A razão é o medo? Algum tipo de acordo com quem se opõe à justiça de transição e à punição de responsáveis por crimes durante o regime militar?

Na Argentina e no Chile, por exemplo, militares que torturaram e assassinaram foram punidos.

Veja como o cenário institucional é bem diferente nesses países.

Isso faz falta ao Brasil. Expurgar o legado da ditadura militar das Forças Armadas e das polícias militares é indispensável para “tocar este país para a frente” e garantir a preservação da nossa democracia.

A miséria da Economia, entre mitos e preguiça, por Jayan Ghosh

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Em meio a uma crise civilizatória aguda, uma disciplina crucial para buscar saídas rende-se a velhas fórmulas, à consagração de “saberes” fossilizados, aos encantos do poder e à arrogância diante de novas teorias. Haverá meios de salvá-la?

Jayan Ghosh – OUTRAS PALAVRAS – 26/03/2024

A necessidade de mudança drástica na disciplina econômica nunca foi tão urgente. A humanidade enfrenta crises existenciais, com a saúde planetária e os desafios ambientais se tornando grandes preocupações. A economia global já estava mancando e frágil antes da pandemia. A recuperação subsequente expôs as desigualdades profundas e agravadas, não apenas em renda e riqueza, mas também no acesso às necessidades humanas básicas. As tensões sociopolíticas resultantes e conflitos geopolíticos estão criando sociedades que em breve podem ser disfuncionais a ponto de não serem mais vivíveis. Tudo isso requer estratégias econômicas transformadoras. No entanto, a corrente principal da disciplina persiste em fazer negócios, como de costume, como se mexer nas margens, com pequenas mudanças, pudesse ter algum impacto significativo.

Há um problema de longa data. Muito do que é apresentado como sabedoria econômica sobre como as economias funcionam e as implicações das políticas é, na melhor das hipóteses, enganoso e, na pior hipótese, simplesmente errado. Por décadas, um lobby poderoso dentro da disciplina vendeu meias-verdades e até falsidades em muitas questões críticas. Por exemplo, como os mercados financeiros funcionam e se eles podem ser “eficientes” sem regulamentação; as implicações macroeconômicas e distributivas das políticas fiscais; o impacto do mercado de trabalho e a desregulamentação salarial no emprego e no desemprego; como os padrões de comércio e investimento internacionais afetam os meios de subsistência e a possibilidade de diversificação econômica; como o investimento privado responde a incentivos políticos, incentivos e subsídios fiscais e déficits fiscais; como o investimento multinacional e as cadeias de valor globais afetam produtores e consumidores; os danos ecológicos decorrentes de padrões de produção e consumo; se os direitos de propriedade intelectual mais rígidos são realmente necessários para promover a invenção e a inovação; e assim por diante.

Por que isso acontece? O pecado original pode ser a exclusão do conceito de poder do discurso – o que efetivamente reforça as estruturas e desequilíbrios de poder existentes. As condições subjacentes são varridas ou encobertas. Entre elas, estão o maior poder de capital em comparação com os trabalhadores; a exploração insustentável da natureza; o tratamento diferencial dos trabalhadores por meio da segmentação do mercado de trabalho social; o abuso privado de poder de mercado e da busca de rendas; o uso do poder político para impulsionar os interesses econômicos privados no interior das nações e entre elas; e os impactos distributivos das políticas fiscais e monetárias. As preocupações profundas e contínuas com a insuficiência do PIB como uma medida de progresso são ignoradas. Mesmo com todas as suas muitas falhas conceituais e metodológicas, continua sendo usado como o indicador básico, apenas porque está lá.

Verdades inconvenientes

Existe uma tendência relacionada a subestimar o significado crucial das suposições na construção dos resultados analíticos e na apresentação desses resultados em discussões de políticas. A maioria dos economistas teóricos convencionais argumentará que se afastaram das suposições neoclássicas iniciais, como concorrência perfeita, retornos constantes à escala e emprego pleno, que não têm relação com o funcionamento econômico real em qualquer lugar. Mas essas suposições ainda persistem nos modelos que sustentam explícita ou implicitamente muitas prescrições de políticas (inclusive sobre políticas comerciais e industriais ou estratégias de “redução da pobreza”), particularmente para o mundo em desenvolvimento.

As estruturas de poder dentro da profissão reforçam o mainstream de diferentes maneiras, inclusive através da tirania das chamadas “publicações principais” e do emprego acadêmico e profissional. Tais pressões e incentivos desviam muitas das mentes mais brilhantes, que deixam de se dedicar a um estudo genuíno da economia (para tentar entender seu funcionamento e as implicações para as pessoas) e dedicam-se ao que só pode ser chamado de “atividades triviais”.

Muitas publicações acadêmicas destacadas publicam contribuições esotéricas que agregam valor apenas flexibilizando uma pequena suposição em um modelo, ou usando um teste econométrico ligeiramente diferente. Os elementos que são mais difíceis de modelar, ou que podem gerar verdades inconvenientes, são simplesmente excluídos, mesmo que contribuam para uma melhor compreensão da realidade econômica. Restrições ou resultados fundamentais são apresentados como “externalidades”, e não como condições a serem abordadas. Economistas que conversam principalmente um com o outro, depois simplesmente proselitizam suas descobertas aos formuladores de políticas, raramente são forçados a questionar essa abordagem.

Como resultado as forças econômicas (que são necessariamente complexas – devido ao impacto de muitas variáveis diferentes – e refletem os efeitos da história, da sociedade e da política) não são estudadas à luz dessa complexidade. Em vez disso, são espremidas em modelos matematicamente tratáveis, mesmo que isso remova qualquer semelhança com a realidade econômica. Para ser justa, alguns economistas convencionais muito bem sucedidos criticaram essa tendência – mas com pouco efeito até agora nos guardiões da ortodoxia da profissão.

Hierarquia e discriminação

A aplicação de hierarquias estritas de poder dentro da disciplina suprimiu o surgimento e a disseminação de teorias, explicações e análises alternativas. Isso se combina com as outras formas de discriminação (por gênero, raça/etnia, localização) para excluir ou marginalizar perspectivas alternativas. O impacto da localização é enorme: a disciplina convencional é completamente dominada pelo Atlântico Norte – especificamente os EUA e a Europa – em termos de prestígio, influência e capacidade de determinar o conteúdo e a direção da disciplina. O enorme conhecimento, os insights e contribuições para a análise econômica feitos por economistas localizados nos países onde vive a maior parte da população do planeta são amplamente ignorados, devido à suposição implícita de que o conhecimento “real” se origina no Norte e é disseminado para fora.

A arrogância em relação a outras disciplinas é uma grande desvantagem, expressa, por exemplo, pela falta de um forte senso de história, que deve permear todas as análises sociais e econômicas atuais. Recentemente, tornou -se elegante para os economistas se envolverem em psicologia, com o surgimento da economia comportamental e “cutucadas” para induzir certos comportamentos. Mas isso também é frequentemente apresentado sem reconhecer contextos sociais e políticos variados. Por exemplo, os testes randomizados de visão focada [worm’s eye tests], que se tornaram tão populares na economia do desenvolvimento estão associados a uma mudança que abandonou o estudo de processos evolutivos e tendências macroeconômicas, para se concentrar nas tendências microeconômicas que efetivamente apagam os contextos que moldam o comportamento e as respostas econômicas. A base subjacente e profundamente problemática do individualismo metodológico persiste, principalmente porque poucos economistas contemporâneos ousam fazer uma avaliação filosófica de sua própria abordagem e trabalho.

Essas falhas empobreceram muito a economia e, sem surpresa, reduziram sua credibilidade e legitimidade entre o público em geral. A disciplina convencional precisa muito de maior humildade, um melhor senso de história e reconhecimento do poder desigual e incentivo ativo à diversidade. Claramente, muito precisa mudar para que a economia seja realmente relevante e útil o suficiente para enfrentar os principais desafios de nossos tempos.

O Brasil entre dois negacionismos, por Gilberto Maringoni

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Gilberto Maringoni – A Terra é Redonda -30/03/2024

A negação pública do golpe de 60 anos atrás enseja sua reafirmação e renovação constante. Implica sua defesa e o impedimento de que uma página anterior seja realmente virada

O Brasil enfrentou quatro anos de negacionismo científico, a partir de 2018. O período mais grave se deu durante a pandemia (2020-2022), com a campanha antivacinal, promovida pelo ex-presidente. Foi algo abjeto, que resultou em número incalculável de perdas humanas.

Para total surpresa de qualquer espírito democrático, voltamos a viver um tenebroso clima negacionista neste 2024. Dessa vez temos o negacionismo histórico, que ao ignorar um exame consistente sobre o passado, bloqueia a reflexão e construção de alternativas de futuro. Buscar apagar da memoria oficial o golpe de 1964 é iniciativa igualmente repugnante.

Os dois negacionismos têm motivações distintas. Enquanto o primeiro procurava consolidar apoios em irracionalidades e dogmas religiosos para a construção de uma ideia força obscurantista, e, portanto autoritária, o novo negacionismo baseia-se no defensivismo, no recuo e na esdrúxula concepção de que a melhor maneira de pacificar um conflito é renunciar ao combate. Temos assim um estranho negacionismo lastreado na capitulação de na autodesmobilização.

De onde vêm essas tentativas de negar a realidade? negacionismo é um neologismo relativamente recente na ciência política. O Dicionário de política, organizado, entre outros, por Norberto Bobbio (1983), não o menciona. A Academia Brasileira de Letras define o negacionismo como “atitude tendenciosa que consiste na recusa a aceitar a existência, a validade ou a verdade de algo, como eventos históricos ou fatos científicos, apesar das evidências ou argumentos que o comprovam”. O discurso e a ação do que se convencionou chamar de “negacionismo” é uma poderosa ferramenta de disputa política na sociedade. O negacionismo representa a substantivação da negação, conformando o que seria uma espécie de doutrina ou teoria.

O termo adquiriu ares de conceito a partir da constituição de uma ideia-força disseminada por grupos de extrema direita em países do Ocidente, nas últimas décadas do século XX, cujo intento é construir uma particular leitura da História. Trata-se da afirmação de que o genocídio dos judeus pelos nazistas no contexto da Segunda Guerra Mundial não aconteceu ou não aconteceu da maneira ou nas proporções historicamente reconhecidas.

Mais tarde, ganhou destaque nos debates sobre meio-ambiente a atuação dos chamados “negacionistas do clima”, definidos como aqueles que – em contrário a toda evidência científica – contestam a existência do aquecimento global de origem antrópica, ou seja, decorrente de atividades humanas. Também são considerados negacionistas os que rejeitam (em geral por motivos religiosos) a teoria da evolução das espécies, que se tornou, a partir das descobertas de Charles Darwin, um dos alicerces da biologia moderna.

Sigmund Freud buscou classificar psicanaliticamente o fenômeno da negação – não o negacionismo –como uma forma de preservação do ego, num pequeno – cinco páginas – e complexo texto de 1925, intitulado justamente “A negação”. Escreveu ele: “A função do juízo tem essencialmente duas decisões a tomar: ela deve conferir ou recusar a uma coisa ou determinada qualidade e deve admitir ou contestar se uma representação tem ou não existência na realidade. A qualidade a ser decidida poderia originariamente ter sido boa ou má, útil ou nociva”.

A negação funcionaria como sublimação do real. Segue Freud: “negar algo no juízo no fundo significa: isto é uma coisa que eu preferiria reprimir. (…) Por meio do símbolo da negação, o pensamento se liberta das limitações da repressão e se enriquece”. Negar – ou negar a partir de um julgamento –, de acordo com Freud, “é a ação intelectual que decide a escolha da ação motora, [que] põe fim ao adiamento pelo pensamento e faz a passagem do pensar para o agir”. É a partir daí que “a criação do símbolo da negação permite ao pensamento um primeiro grau de independência das consequências da repressão”. A negação faz parte das defesas cotidianas para evitar frustrações ou fracassos.

Pode-se dizer que a negação, no plano do indivíduo, tem uma função de defesa diante de incertezas e instabilidades. Através dela, evitam-se partes da realidade que causam medo ou insegurança.

No plano político, a negação busca também evitar inseguranças, mas pode, em determinadas situações, ser um dispositivo opressivo. A negação deixa de ser recurso defensivo, e torna-se ferramenta para a imposição de determinado juízo de valor de uma parte da sociedade sobre outra.

Ou o diktat do que seria uma verdade sobre outra. Não importa que essa verdade, objetivamente, seja uma mentira. Sua imposição visa criar um novo cenário no qual se darão as disputas sociais.

A negação nesses termos – no âmbito político – é parte da disputa de hegemonia.

Os dois casos relatados no início – a negação da ciência e a negação da história – fazem parte de uma imposição autoritária, que visa bloquear ações políticas contrárias. A negação de examinar e criticar o golpe de 1964 não se resume a tirar de cena uma ordem ditatorial de classe construída a partir daquele marco fundador de 21 anos de autoritarismo, com ramificações que alcançam a atualidade. Implicitamente, a negação é também a afirmação de seu contrário.

Assim, a negação pública do golpe de 60 anos atrás enseja sua reafirmação e renovação constante. Implica sua defesa e o impedimento de que uma página anterior seja realmente virada. Implica, enfim a legitimação de uma ordem não democrática, envenenando o ambiente político atual.

Gilberto Maringoni é jornalista e professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC).

O PL dos aplicativos, por Ricardo Antunes

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Ricardo Antunes – A Terra é Redonda – 28/03/2024

O PL criado e proposto pelo governo Lula para regulamentar o trabalho dos motoristas de aplicativos é uma derrota cabal. A expansão do trabalho uberizado nos levará à escravidão digital

Trabalhadores de aplicativos

A primeira indicação importante é que, segundo o IBGE, são 600 mil trabalhadores e trabalhadoras, que compreendiam esse contingente de aplicativos, já demonstra que não é algo pequeno. E eu tenho a intuição clara de que esse contingente cresce a todo dia, celeremente, e que, com certeza, esse número já é bastante superior a essa primeira investigação.

A primeira incursão empírica do IBGE foi muito boa e mostrou que os trabalhadores e as trabalhadoras de aplicativos trabalham muitas horas a mais do que a média dos/as trabalhadores/as regulamentados pela CLT e mostra também que seus salários são inferiores.

O que esses números indicam, portanto, sobre a realidade do trabalho no Brasil é que nós temos, hoje, uma combinação letal caracterizada pela presença de uma burguesia predadora. A burguesia brasileira, junto com os capitais globais que atuam aqui são predadores, porque eles seguem a lógica do capital financeiro.

Essa ação empresarial, conduzida pelo mais destrutivo de todos os capitais – o “capital financeiro”– indica que a realidade do trabalho no Brasil, a depender dos interesses do capital, é sempre de mais predação, mais exploração, mais espoliação e mais expropriação, em plena era de uma expansão célere do mundo informacional, digital, da inteligência artificial, da indústria 4.0 etc.

É uma fotografia viva de que, no Sul do mundo, mas também nos bolsões mais precarizados do Norte, o capital só pode avançar incrementando altamente a tecnologia, de modo a levar ao limite a exploração, espoliação e expropriação da classe trabalhadora.

A proposta de regulação do trabalho de motoristas de aplicativos

O PL criado e proposto pelo governo Lula para regulamentar o trabalho dos motoristas de aplicativos é uma derrota cabal, se for aprovado. Por quê? Porque os seus (aparentes) pontos positivos são um remendo para tentar consertar o erro crucial.

Primeiro, o artigo três do projeto: o que essas plataformas, desde a Uber, Amazon, Amazon Mechanical Turk, Glovo, Deliveroo, 99, Cabify, todas elas, bem como outras formas de trabalho Airbnb, Google, Facebook, Meta etc., o que elas têm em comum? Elas se utilizam do trabalho desregulamentado. Ou seja, operam basicamente destruindo os direitos trabalhistas, não reconhecendo os direitos de assalariamento dessa classe trabalhadora. Fazem isso com base em um embuste ideológico muito bem arquitetado e sofisticado, típico de uma burguesia predadora da era financeira e digital.

Há uma massa imensa de trabalhadores e trabalhadoras desempregados, procurando desesperadamente qualquer trabalho – por isso que essas plataformas entram mais fortemente na periferia do mundo, no Sul do mundo, e nos países do Norte avançam muito mais nos países devastadoramente neoliberais; porque onde tem alguma forma mais estruturada de direitos do trabalho, elas têm dificuldades.

Elas podem se dar a esta construção porque existe, primeiro, uma força de trabalho desempregada em abundância, em escala global, e que é muito mais extensa no Sul do mundo.
Segundo, num contexto de alta tecnologia, que não para de se desenvolver desde os anos 1970, inicialmente o mundo da automação e o mundo informacional digital invadiram a produção industrial e, partir daí, na virada do século, elas invadiram o que prefiro chamar como a indústria dos serviços.

Atenção! Nós não vivemos em uma sociedade pós-industrial, como diziam intelectuais eurocêntricos equivocados, nós vivemos a era da monumental expansão da indústria de serviços.

Ora, os capitais conseguiram ter, simultaneamente, forças de trabalho sobrante, desesperadamente em busca de trabalho e alta tecnologia em ampla expansão. Faltava dar o golpe Frankenstein, “dar o pulo do gato”, e qual é esse pulo? As perguntas que esses grandes empresários fizeram, na sua origem, foi: como burlar a legislação protetora do trabalho. Foram consultar esses grandes escritórios de advocacia corporativa e concluíram que, para burlar e negar os direitos do trabalho, era preciso criar uma categoria híbrida, estranha, que eles definiram como “autônomos” e “autônomas” e “empreendedores” e “empreendedoras”. Tratava-se de um embuste, desde sua origem!

É um embuste porque o que presenciamos é uma proletarização acentuada desses trabalhadores e trabalhadoras. Todas as pesquisas acadêmicas (não aquelas financiadas pelas plataformas) demonstram que eles e elas trabalham, frequentemente, na periferia do mundo, oito, dez, 12 e 14 horas – eu mesmo entrevistei um trabalhador que chegou a trabalhar 20 horas em um dia e outro que me disse que tinha uma jornada de 30 dias no mês, e eu perguntei “que dia você descansa?” e ele disse “não descanso nenhum dia”.

Isto é superexploração do trabalho, que precisa ter um “discreto charme” da burguesia predadora: viraram “empreendedores”, “autônomos” e, portanto, não têm direitos do trabalho. E, mais ainda, os trabalhadores e trabalhadoras devem comprar ou alugar o carro, a moto, a bicicleta – e tudo mais o que for instrumento de trabalho – comprar um celular, ter uma conexão de internet, comprar uma bag, no caso dos entregadores e cuidar dos seus veículos etc. É um processo que no limite volta às condições vigentes na era da acumulação primitiva, porque o capital nem sequer entra com o instrumental de trabalho. E foi assim que se forjou esse vilipêndio em relação ao trabalho.

Podemos chamar esse projeto de PL do Desastre do Trabalho no Brasil, um projeto que “abre a porteira” – lembra dessa expressão? – da devastação do Brasil. O atual presidente, que com razão tanto criticou a contrarreforma trabalhista de Michel Temer está criando um monstrengo assemelhado, inicialmente para motoristas de aplicativo, mas que tem potencial para se expandir para a classe trabalhadora que trabalha nos serviços, com o já estamos vendo em tantas atividades, como jornalistas, trabalhadoras dos cuidados, empregadas domésticas, professores, médicos, enfermeiras etc.

Isso porque, esse PL, no seu artigo terceiro, define juridicamente os/as trabalhadores/as como autônomos. Ora, fazer isto é o que querem (ou exigem) a Uber, a IFood, a Rappi, a Glovo, a 99, a Lyft e a Deliveroo, todas essas empresas que circulam no mundo e que são, muitas delas, muito poderosas. Basta citar o caso da Uber, por um lado, com todas as suas ramificações – Uber Eats, Uber Works, Uber Health e também a Amazon, inclusa a Amazon Mechanical Turk etc.

Então, quais são os avanços do texto? Em poucas palavras: ele dá os diamantes e o ouro para as grandes plataformas digitais e joga migalhas para os/as trabalhadores/as. E quando forem comer essas migalhas, percebem que estão estragadas. A previdência, que é crucial; a organização sindical é um direito dos trabalhadores e trabalhadoras, está indelevelmente vinculada ao reconhecimento da sua condição de assalariamento. Se não for assim, é embuste, como o PL 12.

É por isso que o que é aparentemente positivo, se desfaz, vira engodo, pois será sempre usufruído pela metade, quando muito. Quem garante que o trabalhador uberizado vai efetivamente conseguir pagar a sua parte da previdência? E o que é o verdadeiro embuste, a aparência de autonomia, bem como a ideia de que as plataformas são empresas de tecnologia, ganha estatuto legal. A pergunta elementar é: quando se chama a 99 ou Uber, nós estamos em busca de transporte privado ou queremos aprender tecnologia? A resposta, qualquer criança sabe. É óbvio que essas são empresas de transporte de pessoas e não são fornecedores de tecnologia. E o PL 12, se aprovado, legaliza-se, então, o ilegal. Por isso ele tem que ser rejeitado ou retirado da pauta parlamentar. Até porque, se lá ficar, vai piorar. Eis o imbróglio criado pelo governo.

A construção do texto

Não houve uma construção coletiva. Houve um início de uma discussão, que não aceitou uma participação livre do conjunto heterogêneo e polimorfo que caracteriza a categoria dos/as trabalhadores/as de aplicativos. E, além de não reconhecer essa heterogeneidade em sua plenitude, o governo já tinha uma proposta na mão, a das plataformas, que não aceitavam negociar o ponto crucial: o reconhecimento da subordinação, do assalariamento real, contemplados os direitos do trabalho. Esse é o ponto crucial: as plataformas não abrem mão do embuste, não aceitam e não reconhecem a condição de assalariados.

Eu soube que setores do Ministério Público do Trabalho saíram das negociações do PL, de representantes dos entregadores que também saíram ou não foram mais chamados para a negociação, pois se recusaram a legitimar o embuste. O resultado é que o PL está fazendo água por todos os lados, como estamos vendo, porque a recusa a esse projeto é muito grande, em vários setores, por motivos antagônicos, mas é uma recusa grande. Na balança, então, o governo, no essencial, ficou do lado das grandes plataformas, que continuarão a descumprir e burlar os direitos do trabalho; não pagar tributos; se definir como “prestadoras de tecnologia” etc. E assim encontram-se, hoje, entre as maiores corporações globais.

A criação de um sindicato de trabalhadores plataformizados

A criação de um sindicato nasce com a própria história de luta da classe trabalhadora. Foi assim que na Inglaterra, no século XVIII, as primeiras lutas levaram à criação dos sindicatos que se consolidaram legalmente a partir de 1824. Então, esta criação resulta da organização e da auto-organização da classe trabalhadora. Um sindicato dos entregadores aqui ou um sindicato dos motoristas ali, como trata esse PL – que, repito, os entregadores tiveram a coragem, a consciência e a lucidez de recusar – propõe e incentiva a criação, por cima, de sindicatos.

Não cabe ao governo, “por cima”, criar sindicatos. Quem vai criar são os/as trabalhadores/as.

Existe uma recusa muito forte aos sindicatos por parte de amplos setores da categoria, porque o ideário neoliberal ensina, desde meados do século passado, que o sindicato é inimigo da classe trabalhadora e que, portanto, o sindicato só atrapalha. Muitos dos trabalhadores mais jovens hoje estão imbuídos dessa concepção antissindical, mas eles percebem na luta que individualmente não são nada; coletivamente eles têm força. Para ter uma estrutura coletiva – e o Breque dos APPs mostrou isso – é preciso ter formas de organização.

Neste processo, por exemplo, nasceu a Aliança Nacional dos Entregadores por Aplicativos – ANEA, que é um exemplo muito importante de criação de um embrião de entidade representativa dos/as trabalhadores/as de aplicativos de entrega.

Em 2019, houve discussões, que chegaram até um encontro internacional na Inglaterra, de trabalhadores/as uberizados, motoristas da Uber, que discutiu a criação de um sindicato internacional. Repito: não será pela via de um decreto do governo, mas pela conscientização, organização e auto-organização da classe trabalhadora. Através de um movimento, e não por decreto.

A ausência de direitos previstos no artigo 7º da Constituição

Não ter férias, 13º salário, descanso semanal, jornada regulamentada e fundo de garantia mostra que este projeto é regressivo, um projeto que retorna – se deixarmos seguir adiante – a níveis de exploração do trabalho ao século XIX. Não por acaso que as palavras “bonitinhas”, como crowdsourcing embutem a sua origem. O outsourcing, por exemplo, era um sistema de trabalho do século XIX na Inglaterra, onde a classe trabalhadora trabalhava em casa, fora do espaço da fábrica, sob condições abjetas e sem nenhum direito. É um embuste e é isso que significa esse PL. Deve, por isso, ser retirado ou rejeitado. E essa é uma luta que interessa diretamente a toda classe trabalhadora.

Trata-se da criação de uma terceira categoria, porque se abre à “lei da selva”. A partir de amanhã, todos os ramos e setores, não só as plataformas, vão começar a exigir do Supremo Tribunal Federal – STF, que é neoliberal no que diz respeito às questões do trabalho. O mesmo Supremo que teve coragem de tomar uma postura antifascista, é absurdamente neoliberal, o que não é uma contradição – nós sabemos, quem estuda e conhece o tema que estamos discutindo.

É a criação de uma terceira categoria sem direitos. Portanto, é dar plenitude à contrarreforma de 2017 de Michel Temer, que propôs o trabalho intermitente, que o Lula na época tanto criticou.

Hoje, o que Lula está fazendo, como já disse acima, é legitimar o ilegal, que não é frase jurídica, mas uma frase sociológica e crítica: estão legalizando o que é inaceitável de ser legalizado, estão criando uma terceira categoria que abre a porta para desmontar o conjunto da classe trabalhadora. Basta imaginar, nas próximas eleições, se voltar uma aberração tipo Michel Temer, ou uma versão abjeta do fanfarrão que vai para a prisão.

Como superar esta encruzilhada?

Com luta, organização, auto-organização, debate coletivo, valendo-se do WhatsApp para conectar com os companheiros e companheiras, conversando naqueles espaços durante as horas em que ficam esperando pelo trabalho que não chega.

Por exemplo: todos nós já entramos em uma loja de comércio, o trabalhador, que está na loja e vai te atender, estava recebendo com ou sem cliente. Por que os/as trabalhadores/as motoristas não recebem se estão disponíveis e conectados? Por certo, estas questões afloram em sua vida cotidiana, em suas conversas, em suas ações e lutas.

A empresa tem o maquinário algorítmico e a inteligência artificial, todos esses artefatos do mundo informacional digital, rigorosamente controlados pela engenharia do capital, pelos nefastos CEOs, que modulam as formas da exploração. Todos nós sabemos que isso é para se jogar contra os/as trabalhadores/as. O desafio são as lutas. Cito um exemplo real e vivo: o Breque dos APPs, de julho de 2020, entrou para a história da classe trabalhadora brasileira como a primeira greve dos trabalhadores entregadores de aplicativos. Só será possível superar essa encruzilhada através da força coletiva, da organização, da consciência e de luta. Não é uma coisa que a classe trabalhadora nasce sabendo. E algo que se constrói em sua história, desde a Revolução Industrial na Inglaterra.

Os motoristas das grandes plataformas, como Uber, Cabify e 99, até recentemente no Brasil, foram ex-operários, professores; eu já entrevistei veterinário, engenheiro químico e até um pequeno proprietário de indústria, porque ela estava parada na pandemia e ele foi trabalhar de Uber. É um amálgama de subjetividades, de experiências, não é só o antigo motoqueiro que tinha uma tradição já organizada de sindicato; é um amálgama. Têm jovens, muito jovens, que se conectam com uma plataforma, alugam uma motocicleta para fazer esse trabalho, não dirigiam antes, não eram motoqueiros. Têm estudantes que alugam bicicletas para pagar os estudos. Portanto, não vai nascer do nada um sindicato. Uma entidade desse gênero será resultado de muita experiência, luta, discussão e organização coletiva.

O piso do salário-mínimo

A contabilização dessas horas trabalhadas mostra, por exemplo, que os/as trabalhadores/as motoristas terão uma remuneração menor do que tinham antes. O que explica por que motivo esses motoristas não querem CLT e nem sindicato é que muitos estão imbuídos do milagre neoliberal.

Seria um milagre, depois de tantos desastres, derrotas da classe trabalhadora, pois nós vivemos uma era de contrarrevolução preventiva burguesa (conforme nos ensinou Florestan Fernandes), só que hoje ela é movida pelo capital financeiro. Seria um milagre que esses trabalhadores tivessem um pensamento diferente. Por exemplo, se estou desempregado e compro uma moto (ou um carro) e vou para uma plataforma, eu não pergunto os meus direitos; eu vou porque preciso pagar o veículo que comprei ontem e preciso trabalhar para sobreviver.

Com relação ao salário-mínimo, o primeiro ponto nefasto é que ele cria uma sistemática que tende a reduzir o salário dos/as trabalhadores/as que já trabalham. Isto coloca em xeque, sim, trabalhadores recebendo menos do que o salário-mínimo. Também nesse ponto, o PL é contra a classe trabalhadora.

Era necessário, imperioso, e ainda há tempo, de termos uma regulamentação efetiva e garantidora de direitos do trabalho e da previdência. É uma questão fundamental. Todos nós sabemos que Lula nasceu e apareceu na cena social e política, em meados dos anos 1970, como uma liderança operária-metalúrgica muito importante. Não é possível imaginar que aquele que foi, no passado, o mais importante líder operário e sindical da história da classe trabalhadora no século XX no Brasil não tenha consciência de que este projeto atende às empresas. Os entregadores, com lucidez, deram um sinal contrário e dou outro aqui.

Força para os entregadores, porque quando esse embuste vier a ser imposto para eles, será preciso recusar. Os entregadores têm mostrado mais agilidade em formas de luta do que os motoristas, por vários motivos que aqui não há tempo de discutir.
Flexibilizado na jornada, mas não flexibilizado nos direitos

Portanto, o projeto não é o que foi possível, porque esse projeto é pior do que o da Tabata Amaral e daquele senador, que gosta mesmo de apoiar o governo autocrata e fascista, o qual só não deu o golpe por muito pouco, como estamos sabendo agora. É inaceitável esse projeto, ele está neste nível e é preciso e imperioso avançar em direção ao reconhecimento da subordinação, do assalariamento real e do reconhecimento pleno dos direitos do trabalho, preservada a flexibilidade de horários, que tipifica esta atividade. Mas flexibilidade com direitos!

Pensando em motoristas e entregadores, quando perguntados se querem CLT, a maioria diz não, se perguntar se querem sindicato, boa parte diz não. Agora, se perguntar se eles querem o descanso semanal pago, dizem que sim. A mesma coisa quando perguntam se eles gostariam de ter férias pagas de um mês, 13º salário e condições para usufruir de uma previdência na aposentadoria, eles dizem que sim. Era isso que era possível fazer.

A CLT já permite a muitas categorias que o trabalho seja flexibilizado na jornada, mas não flexibilizado nos direitos. Esse monstrengo do governo Lula mantém a precariedade completa das condições de trabalho. O motorista ou entregador pode trabalhar até 12 horas? É um acinte, pois a jornada no Brasil é de 44 horas, sendo de 40 horas para vários setores. Ter 12 horas ou mais, é outro vilipêndio inaceitável.

Segundo ponto: a plataforma tem direito de demitir, suspender ou bloquear desde que justifique.

Mas justifique como? O governo sabe muito bem que no mundo dos algoritmos os/as trabalhadores/as não têm um gerente da empresa para conversar, não tem um espaço físico de contato. Estamos vivendo uma era algorítmica, da inteligência artificial, e os/as trabalhadores/as não sabem como funciona, quem opera e quem programa. Alguém conhece algum programa ou algoritmo dessas empresas que diz “Dirija lentamente, siga todas as regras de trânsito, teu tempo de entrega não vai contar, trabalhando ou não as mesmas horas por dia você vai receber o mesmo salário”. Não! É a gamificação. Isto é, quem rala e se mata vai adiante; quem não faz assim, não segue. Portanto, esse projeto é nefasto. E necessário avançar mais, com outro projeto.

E aqui trago outro ponto importante. Se o projeto for para a Câmara e o Senado, ele será aprofundado e se tornará ainda mais devastador. Se o governo tiver o mínimo de consciência histórica da classe trabalhadora, ele retira esse projeto de lei. O que Lula chamou – ele estava com a cabeça em outra coisa, talvez no Corinthians (eu falo aqui como corinthiano) – do “mais importante projeto” do mundo ou algo parecido, que envolve empresas/plataformas e trabalhadores/as uberizados é outro embuste. Ele é pior do que todos os projetos que foram feitos ou estão em discussão na Espanha, Inglaterra, Itália, Portugal, França, Alemanha e União Europeia.

Na semana passada, o projeto da União Europeia, por exemplo, reconheceu um ponto crucial: eles são empregados. Essa é a questão fundamental.

A expansão do trabalho uberizado nos levará à escravidão digital

Todos esses/as trabalhadores/as são prisioneiros de uma máquina algorítmica, que eles não têm ideia como funciona, assim como nós também não temos. Alguém aqui já viu um algoritmo? Ele é como um relógio que pode alterar as horas? Não. O algoritmo é um inferno na mão dos CEOs, que são os predadores.

Evidentemente que os CEOs são uma parte das classes dominantes. Não são os proprietários, mas os agentes fundamentais que mantêm a hierarquia de controle do trabalho sob o capital. Ou seja, é o capital sobrepondo-se ao trabalho.

A escravidão digital é um traço dos nossos tempos. Nenhum desses motoristas consegue trabalhar sem ter uma meta, visando receber um valor X no fim do dia. Mas, para atingir a meta, ele não sabe quanto vai receber. Quanto as empresas descontam? O mundo algorítmico e digital sequer mostra o que os motoristas ganharam e quanto lhes foi descontado.

O nosso livro Icebergs à deriva: o trabalho nas plataformas digitais (Boitempo) com pesquisas densas e pesquisadores nacionais e internacionais, bem como nosso trabalho anterior, coletivo, que originou o livro Uberização, trabalho digital e indústria 4.0 (Boitempo), ambos feitos em um Projeto com o Ministério Público de Campinas e região (MPT-15) mostram que este comando maquínico, digital, informacional e algorítmico faz com que o trabalhador não saiba nem o quanto vai receber. Ele vai saber o valor recebido quando vem o pagamento final e ele não pode perguntar por que é x e não y. Isso porque o comando mais global da sociedade é do capital financeiro, o mais destrutivo de todos. E os artefatos digitais e informacionais são projetados, programados e utilizados para impor a exploração, a expropriação e a espoliação do trabalho estão dados.

A exploração é evidente: trabalho de 12, 13 horas por dia, quando não mais. A expropriação é a retirada de todos os direitos. E a espoliação é que, para entrar nessas empresas, endividam-se com o capital financeiro, para pagar a prestação da moto, carro ou bicicleta, etc.

E os/as trabalhadores/as, endividados, não vão discutir se as empresas dão direitos ou não; querem começar a trabalhar e se envolvem na lógica da gamificação. É possível começar a trabalhar às 6h, às 8h ou às 10h da manhã, mas essa é a única “autonomia” que tem, mas vão trabalhar as horas necessárias para cumprir a meta. Foi isso que denominei como “escravidão digital”.

Em 2018, no livro O privilégio da servidão, quando cunhei a expressão, tínhamos um número menor de trabalhadores em plataformas, entregadores, trabalhadoras domésticas, professores, médicos, jornalistas, advogados, trabalhadores do cuidado, eletricista etc. Hoje nós temos uma massa de trabalhadores que trabalham por aplicativo e que é prisioneira dessa escravidão digital.

*Ricardo Antunes é professor titular de sociologia na Unicamp. Autor, entre outros livros, de O capitalismo pandêmico (Boitempo).

Precisamos de uma reforma do Judiciário e da polícia, por Rodrigo Zeidan

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Pôr mais ‘criminosos’ na cadeia não vai resolver nada, a não ser gerar mais demanda por venda de sentenças

Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Folha de São Paulo, 30/03/2024

Os dois problemas principais do Brasil são a segurança pública e a desigualdade de renda. No caso da segurança pública, fomos enganados.

O debate público tem vendido a ideia, há décadas, de que a solução para a segurança pública passa por questões práticas: estatuto do desarmamento, policiamento ostensivo, invasão de comunidades e outras soluções que envolvem, normalmente, violência contra os mais pobres. O caso Mariele Franco descortinou a nossa triste realidade: o problema começa no Estado. Portanto, a solução também tem que começar lá.

Precisamos de uma reforma dos sistemas judiciário e policial. E deve ser uma reforma profunda, indo desde a carreira de juiz até os incentivos para quem estiver entrando na carreira policial. Precisamos de soluções de gente grande, muito além de slogans simplistas (embora não necessariamente errados) como “acabar com a Polícia Militar”.

O problema é que ninguém quer largar o osso. Qualquer reforma séria transformaria a relação do Judiciário e da polícia com o resto da sociedade. Hoje, a independência do Judiciário não funciona como deveria. É independência sem responsabilidade.

Embora a maioria dos funcionários públicos trabalhe direito, cumprindo suas funções como estabelecidas pela lei, os incentivos do sistema estão mal ajustados. Isso vale para a seleção de conselheiros, investigações pela corregedoria, punições por malfeitorias e muitas outras coisas. Sem acertar a estrutura do sistema, vai ter gente que vai continuar achando que segurança pública se faz entrando em comunidades com armas em riste.

Mas juízes, procuradores e outros teriam de largar o osso. É comum ouvir a tese de que precisamos pagar a juízes bem para que não tenham incentivos a se corromper. Mas isso é uma piada. Não faltam escândalos no Judiciário de vendas de sentenças e coisas do gênero.

Temos um dos Judiciários mais caros do mundo, mas já sabemos que o que importa não é o quanto gastamos com o sistema jurídico, mas sim o desenho correto dos incentivos e da estrutura do sistema.

Por exemplo, Botero, La Portae outros autores (2003) deixam isso claro, mostrando que o quanto uma sociedade gasta com o sistema jurídico não tem nenhum impacto no desempenho; há sistemas corruptos nos quais juízes e procuradores ganham pouco e também nos quais são os profissionais mais bem pagos do país. Exemplos da Holanda e do Japão mostram como reformas bem-feitas podem melhorar o sistema e diminuir custos ao mesmo tempo.

O problema é que, no Brasil, o Estado não é de ninguém quando deveria ser de todos. Não nos importamos com quem toma vantagem dele. E, pior, chamamos de otário quem tem a oportunidade de se dar bem e não o faz. Se uma carreira consegue um aumento, outras correm atrás do seu. Se um juiz tem dois meses de férias, outras também querem.

Isonomia é bonitinho no papel, mas vira uma corrida para saquear o Estado. É isso que os artigos científicos mostram quando afirmam que o mais relevante é o desenho dos incentivos dos agentes públicos. Hoje, temos funcionários públicos que heroicamente fazem o melhor que podem para cobrir os rombos dos outros. E um sistema jurídico no qual servidores ganham 20, 30 ou 40 vezes mais que um salário-mínimo e acham pouco.

Colocar mais “criminosos” na cadeia não vai resolver nada estruturalmente, a não ser gerar mais demanda por venda de sentenças. O Estado é de todos, ou pelo menos deveria ser.

O retorno do Estado investidor, por André Roncaglia

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Transição ecológica comandada por setor privado não deve ser realidade

André Roncaglia, Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo – 29/03/2024

A promessa de que o setor privado se encarregaria de fazer a transição ecológica não tem mais salvação. Evan Halper, do Washington Post, mostrou que apenas 4% de uma amostra de mil empresas que se comprometeram a zerar suas emissões até 2050 estão fazendo o mínimo para atingir a meta do Acordo de Paris.

Em face da inépcia de corporações motivadas pelo lucro, as agências nacionais de desenvolvimento ganham destaque. Contando com subsídios estatais e garantias dos tesouros nacionais, estas instituições financeiras estatais atuam como catalisadoras de investimentos —públicos e privados— em setores-chave, como energias renováveis, transporte e agricultura sustentáveis.

Estudo do Roosevelt Institute, intitulado Política Industrial 2025. Trazendo o Estado de Volta (de novo), faz um levantamento da experiência internacional de política industrial e traz alguns exemplos de instituições de financiamento guiadas por critérios como emprego, renda, redução de emissões de carbono, inovação etc.

O banco de desenvolvimento alemão, KfW, financia projetos de energia renovável e eficiência energética na Alemanha e no mundo. Com mais de US$ 550 bilhões em ativos e adotando linhas de crédito especiais, garantias e subsídios, o KfW fomenta pequenas e médias empresas, crédito habitacional, bolsas de estudo, investimentos em infraestrutura e a expansão das energias limpas. Atua também como investidor direto em empresas de vários setores. Por exemplo, a KfW Capital, subsidiária especializada em gestão de ativo, investe em fundos de capital de risco, para apoiar startups em vários setores.

Outro exemplo é a Temasek, a gestora estatal de ativos de Singapura. Com carteira diversificada de ativos em setores estratégicos —como tecnologia limpa e infraestrutura sustentável—, a Temasek investe com foco no longo prazo, equilibrando o retorno financeiro com o impacto social e ambiental positivo.

Em parceria com a BlackRock, maior fundo de investimento do mundo, criou a “Decarbonization Partners”, uma plataforma de capital de risco para projetos de economia com emissão zero para 2050. Além disso, é acionista de “campeãs nacionais” do país, como o Banco de Singapura e a empresa estatal de transporte aéreo Singapore Airlines.

Até mesmo nos EUA ganha força a criação de uma agência nacional de investimento (National Investiment Authority – NIA): uma plataforma institucional para operacionalizar, financiar e implementar políticas industriais e de desenvolvimento. Estruturada com subsidiárias focadas em infraestrutura e em gestão de carteira de ativos, a NIA misturaria elementos de banco de desenvolvimento e gestora estatal de ativos, para coordenar a ação do Estado em vários mercados por meio de múltiplos canais.

Aqui no Brasil, o BNDES tem uma subsidiária gestora de ativos, a BNDES Participações (BNDESPar). Durante os governos Temer e Bolsonaro, houve intenso desinvestimento das participações diretas, devido ao tabu criado em torno das “campeãs nacionais”.

A atual gestão do BNDES vem revertendo esta direção. Por meio da BNDESPar, lançou iniciativas de fundos de investimento em participações (FIP) no total de R$ 1,5 bilhão, para atrair o setor privado a financiar startups e pequenas e médias empresas. Há também o FDIC Pátria Infra Crédito (R$ 500 milhões) —focado nos setores de energia, saneamento, logística e transporte, mobilidade urbana e telecomunicações— e o FIP Minerais Estratégicos no Brasil (até R$ 1 bilhão), para projetos de minerais ligados à transição energética, descarbonização e produção sustentável de alimentos.

Integrar o BNDESPar à política industrial do governo permitirá intensificar os investimentos diretos e indiretos em empresas ligadas à transição ecológica. As superstições neoliberais já não dão as cartas. O Estado investidor está de volta!

Potência chinesa

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Nas transformações constantes em curso na sociedade internacional, destacamos a ascensão chinesa como exemplo de grandes modificações estruturais num período curto, com grandes impactos e repercussões na sociedade internacional, gerando novos horizontes, novos desafios e novas oportunidades.

De uma sociedade fortemente empobrecida em grande parte do século XX, com uma população gigantesca e vivendo no meio rural, onde encontrávamos muitos indivíduos sobrevivendo do extrativismo, da pesca e da produção de produtos primários de baixo valor agregado, a sociedade chinesa passou por grandes transformações em poucas décadas, investindo em capital humano, consolidando o poder do governo nacional e estimulando uma consolidação do setor industrial.

Atualmente, a China se transformou numa potência industrial, responsável por grande parte das produções industriais do mundo, produzindo produtos de alta complexidade e participando ativamente das maiores cadeias globais de produção da economia mundial, gerando calafrios nas economias desenvolvidas, retomando discursos protecionistas esquecidos e trazendo novos horizontes para nações em desenvolvimento.

A ascensão chinesa está gerando fortes constrangimentos nas economias ocidentais, levando seus governos a adotarem medidas protecionistas, levando seus Estados nacionais a aumentarem os subsídios a empresas nacionais, despejando trilhões de dólares em subsídios diretos e indiretos, para evitar que seus setores econômicos e produtivos percam espaço nos círculos internacionais, perdendo espaço e fragilizando suas influências globais.

O modelo econômico chinês foi construído no final dos anos 1970, contrariando os modelos liberais defendidos pelas economias ocidentais, este modelo se caracteriza por fortes intervenções do Estado Nacional, elevados subsídios econômicos e financeiros, compras governamentais para fortalecer os grupos nacionais, forçando empresas estrangeiras interessadas a atuarem no mercado chinês e a transferência de tecnologias para grupos nacionais como forma de atuação no mercado interno, além disso, destacamos ainda, uma política sólida e consistente para estimular as exportações, com políticas de comércio internacional ousada e pragmática, fomentando a competição com atores internacionais, trazendo ganhos monetários, melhorando sua produtividade interna, aumentando a atração de recursos monetários e angariando novos mercados mundiais.

O crescimento da China reconfigurou a geopolítica internacional, fortalecendo nações asiáticas e fortalecendo seus modelos econômicos, estimulando seus investimentos em educação, fortalecendo canais de pesquisas científicas, culminando em um forte desenvolvimento tecnológico, aumentando a complexidade econômica e produtiva, ameaçando as nações ocidentais desenvolvidas e levando estes países a rasgarem os modelos econométricos defendidos pelos teóricos liberais, que rechaçavam o intervencionismo estatal e estimulavam os processos de privatizações e a diminuição do Estado como agente indutor do crescimento econômico.

Neste novo momento da sociedade mundial, marcado por grandes desafios e oportunidades no capitalismo contemporâneo, a ascensão asiática, liderada pela China, pode abrir novas oportunidades de negociação comercial e produtiva, exigindo das nações uma visão mais sistêmica e estruturada, abandonando uma visão até então dominante centrada no individualismo, no imediatismo e priorizando o curto prazo, responsável por grandes desajustes econômicos, degradação do meio ambiente, incremento da desigualdade social e um processo constante de desumanização da sociedade internacional, centrada em valores monetários e financeiros em detrimento de valores morais mais sólidos e sofisticados.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

O dia 31 de março precisa ser lembrado para não ser repetido, por Wilson Gomes

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Deixar passar em branco os 60 anos do golpe de Estado que tão duramente marcou a vida do país não faz sentido

Wilson Gomes, Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de “Crônica de uma Tragédia Anunciada”

Folha de São Paulo, 27/03/2024.

A última ditadura a que a República brasileira foi submetida completa 60 anos no domingo. Não foi a primeira na nossa breve história republicana de baixas convicções democráticas. Meu pai, nascido em 1922, viveu sua primeira ditadura aos 15 anos, e a segunda, aos 42. Trinta anos, de 73, transcorridos sem democracia.

Eu nasci às vésperas da segunda ditadura do século passado. Nem havia completado um ano quando a democracia morreu da última vez no Brasil, esmagada pelas botas de generais, brigadeiros, almirantes e suas tropas. Até os 21, eu não tinha vivido um único dia neste país sob governo civil, Estado de Direito, eleições livres, direitos políticos amplamente reconhecidos, essas coisas que a gente dá por garantidas como luz do sol e oxigênio.

Além disso, constatei com assombro na semana passada que faltou muito pouco para que a efeméride do início da ditadura de 1964 fosse comemorada com uma ditadura novinha em folha. Em vez de liturgicamente repetir o nosso “ódio e nojo à ditadura”, segundo a fórmula lapidar de Ulysses Guimarães, estivemos bem perto de estar celebrando uma “nova revolução” para defender o Brasil do “comunismo” nesse “país que vai pra frente, de uma gente amiga e tão contente”, como aprendi na doutrinação ideológica do regime militar desde a alfabetização.

Não estou descrevendo tragicamente a história de uma república em que o regime democrático aparece e desaparece a cada duas, três gerações. Na tragédia, por definição, o destino arrasta inexoravelmente os eventos, ignorando rogos e prantos e o esforço de evitar o desfecho previsto.

No drama brasileiro, em vez disso, a deliberação vai em sentido contrário às virtudes republicanas. Há sempre gente tramando, urdindo, projetando e tentando pôr em marcha algum projeto autoritário para tomar o poder sem ganhar eleições, para transformar a “res publica” em coisa particular, para governar sem desafiantes nem prestação de contas um povo sem direitos ou garantias, a não ser os que o governante lhe quiser conceder.

Na população civil, sempre houve a reserva de vocações autoritárias, mas é nas instituições militares que o DNA autocrático está não só preservado como é ritualisticamente cultuado e doutrinariamente transmitido. O Brasil teve mais golpes e intentonas de golpes do que guerras, movimentos de tropas inimigas nas fronteiras ou tentativas de invasão do território. O inimigo é principalmente interno e atende pelo nome de democracia.

Por isso, a cada celebração pelo fim de ditaduras ou a cada suspiro de alívio porque uma intentona de golpe de Estado falhou, convém lembrar que “o bacilo da peste”, na linguagem de Camus, o vírus da brutalidade autocrática, não morre nem desaparece. É apenas debelado provisoriamente. Permanece latente por décadas até que “chegue o dia em que, para desgraça e aprendizado dos homens, a peste desperte seus ratos e os envie para morrer em uma cidade feliz”.

Erra o governo ao tratar como um dia comum o 31 de março, o dia do último golpe de Estado bem-sucedido neste país em que a democracia parece frágil, provisória e incompleta. Ainda mais quando a população acabou de saber que o seu último presidente, o círculo íntimo dele e uma parte da elite militar arquitetaram e tramaram um golpe que, por fortuna, não se completou.

Falhou, mas não por falta de tentativa.

Deixar passar em branco os 60 anos do golpe de Estado que tão duramente marcou a vida do país não faz sentido. Nem que fosse um ritual, com velas acesas, uma vigília, um lamento, 60 segundos de silêncio, uma leitura da lista dos mortos e desaparecidos, uma poesia, um painel, um memorial, qualquer coisa.

É importante lembrar ao país que não temos o direito de esquecer, muito menos de repetir. Se há os que preservam o bacilo da peste autoritária e os que cultuam botas e baionetas acima da República, também os democratas precisam de uma liturgia em que se celebre um regime de direitos e liberdades, também os republicanos carecem de um reforço nos anticorpos que combatem a autocracia no sistema imunológico das instituições do país.

Esta nação merece um futuro em que governos civis não tenham que se preocupar se as Forças obedecem a uma constituição democrática, tramam mais um golpe, reconhecem ou não que servem à República e ao poder civil. A relação precisa é ser republicana, não concessiva. E será harmoniosa não porque silenciamos sobre ditaduras, mas quando os militares alinharem sua bússola ao regime democrático sob o qual escolhemos viver.

Como são lindos os neoliberais, mas tudo é muito mais, por Ricardo Viveiros

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Preocupam a alienação e a distância que se toma da emancipação humana

Ricardo Viveiros, Jornalista, professor e escritor, é doutor em educação, arte e história da cultura; autor, entre outros, de “A Vila que Descobriu o Brasil” (Geração), “Justiça Seja Feita” (Sesi-SP) e “Memórias de um Tempo Obscuro” (Contexto).

Folha de São Paulo, 25/03/2024

Livros são um prazer. Além do conteúdo, as conexões que provocam com outras obras me gratificam “A Nova Razão do Mundo: Ensaio sobre a Sociedade Neoliberal” de Pierre Dardot e Christian Laval, surpreendeu pela quantidade de referências que me vieram à mente. Como em um caleidoscópio, convidei para “conversar” Friedrich August von Hayek, John Maynard, Fernando Henrique Cardoso, Michel Foucault, Karl Marx e representantes da Escola de Chicago.

Crítico que sou, a ideia de que há algo sensato em uma sociedade liberal não me convence. O colonialismo foi uma dominação capitalista. Parafraseando Caetano Veloso, cantarolei “como são lindos os neoliberais, mas tudo é muito mais” (“Podres Poderes”, 1984). Fique claro que a “nova razão” dos autores está associada ao novo sentido e à pretensão holística do neoliberalismo. A dominação sobre a economia é só o ponto de partida. Dardot e Laval utilizam complexas análises históricas e sociais, além de outras psicanalíticas, para fundamentar a obra. Talvez o pensamento que melhor sintetize o neoliberalismo esteja na frase da ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher: “A economia é o método. O objetivo é mudar a alma”. A ideia assombra, mas faz sentido.

Para os detratores de ideologias, sejam elas quais forem, os intelectuais recorrem à interpretação vanguardista com a precisa fundamentação filosófica de Michel Foucault e Karl Marx, entre outros, com o propósito de revelar o mito neoliberal da objetividade econômica. Neoliberalismo é ideologia, sim, e das mais complexas! A psicanálise é outra ferramenta indispensável para elucidar o problema. Muitos fantasmas e cobranças que ocupam nossa mente vêm dessa “nova razão”. Corpo perfeito, família perfeita e profissional perfeito são idealizações imaginárias que alimentamos sem cuidado. A alienação e a distância que se toma da emancipação humana, proposta por Marx, preocupam.

Na política, a deterioração da democracia parece algo natural nessa nova diretriz. Ao neoliberalismo não importam liberdade e justiça, exceto se estiverem em favor do sistema de dominação e lucro. Políticos como o estadunidense Donald Trump conseguem manter a popularidade e podem voltar à Presidência, mesmo após a prática de criminosos atos antidemocráticos. Ainda que a economia seja um pilar importante na avaliação dos cidadãos, questões como xenofobia, discriminação, violência e outras são ignoradas dentro da cultura neoliberal. Está aberto o caminho para discursos totalitários.

Ao contrário do interesse da sociedade, está no consenso que o controle da coisa pública pelo setor privado é a melhor opção. Ou seja, o cidadão prefere não fazer parte da administração dos seus impostos. Assim, além de atestar a própria incapacidade de atuar na vida do país, o eleitor afirma que o setor privado —que objetiva o lucro— está mais imbuído de melhores intenções do que o gestor público. A dominação não é só econômica, a “alma” já está comprometida.

Talvez desenvolvimentistas como Hayek e Keynes não tivessem a dimensão do que se tornaria o neoliberalismo. O combate às teorias que privilegiavam iniciativas coletivas e a valorização de ações individuais não acabariam em uma cultura de dominação tão ampla, até psiquiátrica. Isso não estava no horizonte dos representantes da Escola de Chicago; eles pensavam em melhorar a economia. Menos ainda em Fernando Henrique Cardoso e sua “Teoria da Dependência”, que, confrontada com o seu exercício do poder, revela a luta entre o pensador e o político. Mas, de alguma forma, todas essas teses compõem a base do neoliberalismo real.

A dinâmica da economia funciona com uma complexidade que não é vista pela maioria das pessoas. Ações nas Bolsas de Valores são movidas ao sabor das especulações. Apenas a minoria consegue avaliar quanto o sistema é invasivo no seu cotidiano. Os que têm boas interpretações da realidade devem contribuir para a construção da liberdade mais plena de todos nós. Nesse sentido, o livro de Dardot e Laval traz a lição: a consciência de que vida humana e suas relações devem estar acima de qualquer interesse econômico.

Um país doente de realidade, por Ana Cristina Rosa

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Insistem em distorcer a realidade para colocar o abusado no papel de abusador

Ana Cristina Rosa, Jornalista especializada em comunicação pública e vice-presidente de gestão e parcerias da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPública)

Folha de São Paulo, 24/03/2024

O Brasil é um país “doente de realidade”. A constante negação da verdade me leva a essa conclusão. Enquanto parte dos indivíduos prefere alterar os fatos a admitir inúmeras situações que fazem de nós uma das nações mais desiguais do planeta, a maioria vive em constante provação por conta da “desrealização” da vida como ela é.

Essa “dissonância cognitiva” emperra o desenvolvimento socioeconômico e nos impede de avançar coletivamente, fomentando discurso de ódio e negando a mais evidente de todas as mazelas brasileiras: o racismo institucional.

No último país das Américas a “abolir” a escravidão (em 1888, há apenas 136 anos), foram criadas leis específicas para impedir a inclusão social dos ex-escravizados. Depois de cerca de quatro séculos de trabalho forçado, os negros não poderiam adquirir a posse de terras, nem estudar e seriam presos por ficar “vadiando” nas ruas.

Sem proporcionar as mínimas condições para que os afrodescendentes se tornassem “cidadãos” de fato e de direito, o país foi adubando as raízes do racismo institucional. Tanto que, até hoje, pretos e pardos enfrentam inúmeras dificuldades para alcançar o básico: alimentação, moradia, saúde e educação.

Mas, apesar das evidências, não falta quem insista em distorcer a realidade para colocar o abusado no papel de abusador quando uma iniciativa é adotada para enfrentar a desigualdade racial. A ponto de cotas raciais nas universidades serem classificadas como “privilégio” ou instrumento capaz de “restaurar o racismo” onde ele havia sido abolido.

Não sei como é no país de Alice, mas no meu, os negros, em geral, não saíram da base da pirâmide. E isso se deve aos obstáculos criados pelo racismo institucional, que entrava a vida de pretos e pardos.

Nada disso é novidade. Mas, como cunhou Tom Jobim, “o Brasil não é para principiantes.” Então, às vezes, é preciso desenhar.

“Ando tão à flor da pele/Que a minha pele tem o fogo do juízo final.” – Zeca Baleiro

Inteligência Artificial: o que esperar dos Estados, por Mariana Mazzucato

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Apropriação do trabalho intelectual coletivo. Precarização. Desenvolvimento de robôs assassinos. Se ficar sob controle de corporações, nova tecnologia será fonte de pesadelos. Por isso as sociedades, mais que regulá-la, precisam dirigi-la

Mariana Mazzucato – OUTRAS PALAVRAS – 22/03/2024

Em dezembro passado, a União Europeia (UE) estabeleceu um precedente global ao finalizar a Lei de Inteligência Artificial, um dos conjuntos de regras de IA mais abrangentes do mundo. A legislação emblemática da Europa pode sinalizar uma tendência mais ampla em direção a políticas de IA mais responsivas. Mas embora a regulamentação seja necessária, não é suficiente. Além de impor restrições às empresas privadas de IA, os Estados devem assumir um papel ativo no desenvolvimento da tecnologia, projetando sistemas e moldando mercados para o Comum.

É claro que os modelos de IA estão evoluindo rapidamente. Quando os reguladores da UE divulgaram o primeiro rascunho da lei sobre o tema em abril de 2021, eles gabaram-se de ele ser supostamente “à prova de futuro”. Apenas um ano e meio depois, correram para atualizar o texto, em resposta ao lançamento do ChatGPT. Mas os esforços regulatórios não são em vão. Por exemplo, a proibição, por lei, do uso de IA no policiamento por biometria continuará provavelmente relevante, em que pesem os avanços na tecnologia. Além disso, os parâmetros de risco incluídos na lei de IA ajudarão os formuladores de políticas a se proteger contra alguns dos usos mais perigosos da tecnologia. Embora a IA tenda a se desenvolver mais rápido do que a política, os princípios fundamentais da lei não precisarão mudar – embora ferramentas regulatórias mais flexíveis sejam necessárias para ajustar e atualizar as regras.

Mas pensar no Estado apenas como regulador é perder de vista o aspecto principal. A inovação não é apenas um fenômeno de mercados sagazes. Ela tem uma direção; e esta depende das condições em que emerge. Os formuladores de políticas públicas podem influenciar essas condições. O surgimento de um design tecnológico ou modelo de negócios dominante é o resultado de uma luta de poder entre vários atores – corporações, órgãos governamentais, instituições acadêmicas — com interesses conflitantes e prioridades divergentes. Ao refletir essa luta, a tecnologia resultante pode ser mais ou menos centralizada, mais ou menos proprietária, e assim por diante.

Os mercados que se formam em torno de novas tecnologias seguem o mesmo padrão, com implicações distributivas importantes. Como o pioneiro do software Mitch Kapor coloca, “Arquitetura é política”. Mais do que regulamentação, o design de uma tecnologia e da infraestrutura que a circunda dita quem pode fazer o quê com ela e quem se beneficia. Para assegurarem que inovações transformadoras produzam crescimento inclusivo e sustentável, não basta que os Estados corrijam os mercados. Eles precisam moldá-los e cocriá-los. Quando os Estados contribuem para a inovação por meio de investimentos ousados, estratégicos e orientados para missões, eles podem criar novos mercados e atrair o setor privado.

No caso da IA, a tarefa de direcionar a inovação está atualmente dominada por grandes corporações privadas. Isso leva a uma infraestrutura que serve aos interesses dos já envolvidos e agrava a desigualdade econômica. É o reflexo de um problema de longa data. Algumas das empresas de tecnologia que mais se beneficiaram de apoio público – como Apple e Google – também foram acusadas de usar suas operações internacionais para evitar o pagamento de impostos. Essas relações desequilibradas e parasitárias entre grandes empresas e o Estado agora correm o risco de ser ampliadas pela IA, que promete recompensar o capital enquanto reduz as rendas conferidas ao trabalho.

As empresas que desenvolvem IA generativa já estão no centro dos debates sobre comportamentos extrativistas, devido ao seu uso desenfreado de textos, áudios e imagens protegidos por direitos autorais, para treinar seus modelos. Ao centralizarem o valor dentro de seus próprios serviços, elas reduzirão os fluxos de recursos para os artistas de quem dependem. Assim como nas redes sociais, os mecanismos estão alinhados para a extração de renda, cuja lógica é permitir que intermediários dominantes acumulam lucros às custas de outros. As plataformas que prevalecam hoje – como Amazon e Google – exploraram sua posição dominante usando seus algoritmos para extrair tarifas cada vez maiores (“rendas de atenção algorítmica”) para acesso aos usuários. Uma vez que Google e Amazon se tornaram um gigantesco esquema de jabaculês, a qualidade da informação deteriorou e as plataformas passaram a extrair valor do ecossistema de sites, produtores e desenvolvedores de aplicativos nos quais as se baseiam. Os sistemas de IA de hoje poderiam seguir um caminho semelhante: extração de valor, monetização disfarçada e deterioração da qualidade da informação.

Governar modelos de IA generativa para o Comum exigirá parcerias mutuamente benéficas, orientadas para objetivos compartilhados e a criação de valor público, e não apenas privado. Isso não será possível com Estados que agem apenas após os fatos consumados. Precisamos de Estados empreendedores, capazes de estabelecer estruturas pré-distributivas que compartilhem riscos e recompensas ex ante. Os formuladores de políticas devem se concentrar em entender como as plataformas, os algoritmos e a IA generativa criam e extraem valor, para que possam estabelecer as condições – entre elas, regras de design equitativas – para uma economia digital que remunere a criação de valor.

Lembre-se da História

A internet é um bom exemplo de uma tecnologia que foi projetada a partir de princípios de abertura e neutralidade. Considere o princípio do “ponto a ponto”, que garante que ela opere como uma rede neutra,k responsável pela entrega de dados. O conteúdo entregue de computador para computador pode ser privado, mas o código é gerenciado publicamente. E a infraestrutura física necessária para acessar a internet é privada, mas o desenho original assegurou que, colocados online, os recursos para a inovação na rede são livremente disponíveis.

Essa escolha de design, coordenada [nos EUA] pelo trabalho inicial da Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa (entre outras organizações), tornou-se um princípio orientador para o desenvolvimento da internet, permitindo flexibilidade e inovação extraordinárias nos setores público e privado. Ao visualizar e moldar novos espaços de criação, o Estado pode estabelecer mercados e direcionar o crescimento, em vez de apenas incentivá-lo ou estabilizá-lo.

É difícil imaginar que empresas privadas, encarregadas de desenvolver a internet na ausência de envolvimento governamental, tivessem aderido a princípios igualmente inclusivos. Considere a história da tecnologia telefônica. O papel do Estado foi predominantemente regulatório. A inovação foi deixada, em grande medida, nas mãos de monopólios privados. Este tipo de centralização não apenas prejudicou o ritmo da inovação, mas também limitou os benefícios sociais mais amplos que poderiam ter surgido.

Por exemplo, em 1955, a American Telephone and Telegraph (AT&T) persuadiu a Comissão Federal de Comunicações a banir um dispositivo que reduziria o ruído nos receptores telefônicos, alegando direitos exclusivos para melhorias na rede. O mesmo tipo de controle monopolista poderia ter relegado a internet a ser apenas um instrumento de nicho para um grupo seleto de pesquisadores, em vez da tecnologia universalmente acessível e transformadora em que se converteu.

Da mesma forma, a transformação do GPS – de uma ferramenta militar para uma tecnologia universalmente benéfica – destaca a necessidade de governar a inovação para o bem comum.

Inicialmente projetado pelo Pentágono para coordenar ações militares, o acesso público aos sinais de GPS foi deliberadamente rebaixado, por motivos de segurança nacional. Mas, à medida que o uso civil ultrapassou o militar, o governo dos EUA, sob o presidente Bill Clinton, tornou o GPS mais responsivo aos usuários civis e comerciais em todo o mundo.

Essa mudança não apenas democratizou o acesso à tecnologia de geolocalização precisa, mas também estimulou uma onda de inovação em muitos setores, incluindo navegação, logística e serviços baseados em localização. Uma mudança de política que buscava maximizar o benefício público teve um impacto transformador e de longo alcance na inovação tecnológica. Mas esse exemplo também mostra que governar para o bem comum é uma escolha consciente que requer investimento contínuo, alta coordenação e capacidade de entrega.

Para aplicar essa escolha à inovação em IA, precisaremos de estruturas de governança inclusivas e orientadas para missões, com meios para investir conjuntamente com parceiros que reconheçam o potencial da inovação liderada pelo Estado. Para coordenar respostas de múltipos atores a objetivos ambiciosos, os formuladores de políticas devem estabelecer condições para financiamento público, de modo que os riscos e recompensas sejam compartilhados de forma mais equitativa. Isso significa objetivos claros, aos quais as empresas precisam se adequar; altos padrões de trabalho, sociais e ambientais; e compartilhamento de lucros com o público. As condicionalidades podem e devem exigir que as Big Tech sejam mais abertas e transparentes. Não devemos aceitar nada menos do que isso, se quisermos levar a sério a ideia de capitalismo de stakeholders.

Por fim, enfrentar os perigos da IA exige que os governos ampliem seu papel além da regulação. Sim, diferentes governos têm capacidades diferentes, e alguns são altamente dependentes da economia política global mais ampla da IA. A melhor estratégia para os Estados Unidos pode não ser a melhor para o Reino Unido, a UE ou qualquer outro país. Mas todos devem evitar a falácia de presumir que governar a IA para o Comum está em conflito com a criação de um setor de IA robusto e competitivo. Pelo contrário, a inovação floresce quando o acesso às oportunidades está aberto e as recompensas são amplamente compartilhadas.

Mariana Mazzucato, é uma economista italiana, professora da cátedra RM Phillips de Ciência e Tecnologia da Universidade de Sussex.

Lula não pode temer o militar, por Manuel Domingos Neto

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Manuel Domingos Neto – A Terra ê Redonda – 23/03/2024

O grito “sem anistia” exprime a vontade democrática. Mas há um enorme fosso entre essa vontade e a organização Forças Armadas missionadas para garantir a soberania nacional e democracia
Para Oswald Barroso

A ministra Luciana Santos e o ministro Camilo Santana suspenderão o financiamento de pesquisadores que estudem o golpe de 1964 e a ditadura que se seguiu? A UnB será impedida de promover homenagem póstuma a Honestino Guimarães, assassinado pela ditadura?

O Ministério da Educação sustará reverências a Anísio Teixeira e Paulo Freire? Deixará de implementar políticas contrárias ao ensino cívico-militar propugnado pelos fascistas? Punirá professores que aludam ao golpe militar em sala de aula?

A ministra Marina Silva cancelará estudos ambientais que se refiram à devastação da Amazônia promovida pela Ditadura?

O ministro Sílvio Almeida coordenará o “esquecimento” do terrorismo de Estado praticado por mais de duas décadas?

A ministra Anielle Franco ignorará a homofobia e a misoginia praticada nos quartéis? As homenagens aos golpistas serão suprimidas dos logradouros das cidades brasileiras? O busto do golpista Castello Branco será retirado do hall da Escola de Comando e Estado Maior do Exército?

A orientação governamental para que os agentes públicos silenciem sobre o golpe de 1964 é esdrúxula e inexequível. Como entendê-la?

Dissemina-se entre certos democratas a falsa ideia de que a contenção do intervencionismo político castrense deve ser operada pela Polícia Federal, Ministério Público e STF. O governo não teria nada a ver com isso. Lula teria agido corretamente ao interditar, no âmbito governamental, iniciativas relacionadas ao Golpe de 1964. Assim, apaziguaria “tensões” e governaria com tranquilidade.

Essa ideia destitui Lula da condição de comandante supremo das Forças Armadas, conforme definido pela Constituição. Cabe ao presidente definir as diretrizes para a organização, funcionamento e emprego do aparelho militar. Cumpre-lhe exigir que seus subordinados acatem a lei.

A orientação de Lula confere autonomia descabida às Forças Armadas. As corporações militares não podem ser entregues à sua própria vontade. Isso respaldaria a noção de que o militar constitui poder moderador, conforme o discurso fascista. Militar não é responsável, em última instância, pelos destinos do Brasil.

Não cabe ao Comandante Supremo negociar politicamente com os comandantes. Comandante comanda; político negocia com político. A ideia de confronto entre o poder político e as Forças Armadas admite a insubordinação. Ao poder político cumpre exercer autoridade constitucional cobrando obediência e disciplina. A atuação do Judiciário não suprime a responsabilidade do Presidente.

É compreensível a atitude temerosa de Lula diante dos quartéis. Todos nós tememos o desconhecido e Lula, como a maioria dos brasileiros, desconhece o militar.

Lula parece não entender que o militar é um agente público educado para cumprir ordens. Se não as recebe, decidirá por conta própria o que fazer. Tramará em busca do comando político.
Desavisado, Lula está estimulando a insubordinação da caserna.

É verdade que a Polícia Federal, o Ministério Público e o Judiciário cercam os militares mais reconhecidos como atuantes na arena política. Mas trata-se de um cerco limitado: o conjunto das corporações têm responsabilidades na eleição de um promotor do descalabro. A punição de algumas dezenas de oficiais, mesmo de alta patente, será recado importante, mas insuficiente.

O Brasil precisa de novas diretrizes para a Defesa Nacional. Se bem definidas, essas diretrizes orientarão uma reforma do aparelho militar. Não se trata de punir e, muito menos, promover desforra. Trata-se de preparar o Estado para exercer sua soberania em um mundo conflagrado. Neste mister, o Comandante Supremo é insubstituível.

O grito “sem anistia” exprime a vontade democrática. Mas há um enorme fosso entre essa vontade e a organização Forças Armadas missionadas para garantir a soberania nacional e democracia.

Quando Lula detiver conhecimento dos problemas da Defesa e dos assuntos militares, compreenderá que não tem direito de temer o soldado. Nem terá motivo para isso. Emitindo ordens claras e justificadas, o soldado atenderá o Comandante.

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). Autor, entre outros livros de O que fazer com o militar – Anotações para uma nova Defesa Nacional

Mazzucato: a chance de mudar as redes sociais

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Avançam, em todo o mundo, ações judiciais contra Big Techs. Sociedades reagem à dependência que induzem, em prol do lucro máximo. Base de um plano para transformá-las é redesenhar os algoritmos, para que priorizem a invenção humana

Mariana Mazzucato e Ilan Strauss – OUTRAS PALAVRAS – 13/03/2024

A implantação de algoritmos para maximizar o engajamento do usuário é a forma como as grandes empresas de tecnologia maximizam o valor para os acionistas, e os lucros de curto prazo geralmente têm precedência sobre os objetivos de negócios de longo prazo. Agora que a inteligência artificial está preparada para impulsionar a economia das plataformas, são urgentemente necessárias novas regras e estruturas de governança para salvaguardar o público.

Num novo processo judicial nos Estados Unidos contra a Meta, 41 estados e o Distrito de Colúmbia sustentam que duas das redes sociais da empresa (Instagram e Facebook) não são apenas viciantes, mas também prejudiciais ao bem-estar dos menores. A Meta é acusada de implementar um “esquema para explorar jovens usuários com fins lucrativos”, o que inclui mostrar-lhes conteúdo prejudicial que os mantém grudados em suas telas. De acordo com uma pesquisa recente, os jovens estadunidenses de 17 anos passam 5,8 horas por dia nas redes sociais. Como tudo isso veio à tona? A resposta, em uma palavra, é “engajamento”.

A utilização de algoritmos concebidos para maximizar o “engajamento” dos usuários é a forma das Big Tech maximizarem o valor para os acionistas, cujo resultado são lucros a curto prazo muitas vezes superiores aos objetivos empresariais de longo prazo (isso sem falar da saúde coletiva).

Como explica o cientista de dados Greg Linden, algoritmos baseados em “más métricas” promovem “maus incentivos” e abrem caminho aos “maus atores”.

O Facebook começou como um serviço básico para conectar amigos e conhecidos na internet, mas com o tempo seu design evoluiu da satisfação das necessidades e preferências dos usuários para mantê-los dentro da plataforma e longe de outras pessoas. Para atingir esse objetivo, a empresa desconsiderou repetidamente as preferências explícitas dos consumidores em relação ao tipo de conteúdo que desejam visualizar, à privacidade e ao compartilhamento de seus dados.

A primazia dos lucros imediatos passa por induzir os usuários a clicar, mesmo que o resultado global desta estratégia seja dar prioridade a materiais sensacionais e de baixa qualidade, em vez de dar a devida recompensa a um universo mais vasto de criadores de conteúdos, usuários e anunciantes. Chamamos estes lucros de “rendas algorítmicas de atenção”, porque são gerados através da posse passiva (como a dos proprietários de terras) em vez de atividade produtiva destinada a satisfazer as necessidades dos consumidores.

Identificar o comportamento rentista na economia atual requer a compreensão de como as plataformas dominantes exploram o controle algorítmico que têm sobre os usuários. Um algoritmo que degrada a qualidade dos conteúdos que promove está abusando da confiança dos usuários e da posição dominante reforçada pelo efeito de rede. É assim que o Facebook, o Twitter e o Instagram podem seguir seu caminho e continuar enchendo suas páginas com anúncios e viciantes conteúdos “sugeridos”. Como explica o especialista em tecnologia Cory Doctorow de forma um tanto colorida, “a merdificação (enshittificação) das plataformas vem do canhão de um algoritmo” (que por sua vez pode depender de práticas ilegais de coleta e compartilhamento de dados).

O processo contra o Meta tem a ver, em última análise, com suas práticas algorítmicas, cuidadosamente projetadas para maximizar o “engajamento” dos usuários: mantê-los na plataforma por mais tempo e suscitar mais comentários, “curtidas” e republicações. Muitas vezes acontece que uma boa maneira de conseguir isso é exibir conteúdo prejudicial e que beira o ilegal, e transformar o tempo gasto na plataforma em uma atividade compulsiva, por meio de recursos como “rolagem infinita” e o envio incessante de notificações e alertas (técnicas que em muitos casos também são utilizadas com grande eficácia na indústria dos jogos de azar).

À medida que os avanços na inteligência artificial (IA) começam a potencializar as recomendações algorítmicas e a torná-las ainda mais viciantes, são urgentemente necessárias novas estruturas de governança orientadas para o “bem comum” (em vez de uma ideia estreita de “valor para os acionistas”) e alianças simbióticas entre empresas, governos e sociedade civil. Felizmente, está ao alcance das autoridades reformar estes mercados para os colocar ao serviço do bem comum.

Em primeiro lugar, em vez de se basearem exclusivamente na legislação antitruste e de defesa da concorrência, as autoridades devem adotar ferramentas tecnológicas que evitem que as plataformas encarcerem usuários e desenvolvedores. Uma forma de evitar a criação espaços fechados anticoncorrenciais é exigir a portabilidade e a interoperabilidade dos dados entre os serviços digitais, para que os usuários possam facilmente passar de uma plataforma para outra se aquela em que se encontram não corresponder às suas necessidades e preferências.

Em segundo lugar, é essencial uma reforma da governança corporativa, uma vez que o que levou as plataformas à exploração algorítmica dos usuários foi o princípio da maximização do valor para o acionista. Dados os custos sociais bem conhecidos deste modelo de negócio (a busca do maior número possível de cliques conduz muitas vezes à multiplicação de fraudes, desinformação e materiais que incentivam a polarização política), a reforma da governança exige uma reforma dos algoritmos.

Um primeiro passo para a criação de um modelo de base mais saudável é exigir que as plataformas divulguem (no seu relatório anual 10K [que fornece aos investidores uma análise abrangente da empresa] que devem apresentar à Comissão de Valores Mobiliários dos EUA) as métricas que os seus algoritmos visam otimizar, bem como o modo que isso monetiza os usuários. Num mundo onde os executivos da tecnologia vão a Davos todos os anos para falar sobre o “propósito” social das suas empresas, uma divulgação oficial de dados irá pressioná-los a cumprir o que dizem e ajudar os decisores políticos, reguladores e investidores a distinguir entre lucros merecidos e rendas indevidas.

Terceiro, os usuários precisam ter mais influência sobre como os algoritmos priorizam as informações que lhes são mostradas. Caso contrário, o desrespeito pelas preferências dos usuários continuará a causar danos, pois os algoritmos criam ciclos de retroalimentação nos quais induzem os usuários a clicar em determinados conteúdos e depois inferem erroneamente que essas são as suas preferências.

Em quarto lugar, a metodologia padrão da indústria de “teste A/B” deve dar lugar a avaliações de impacto mais abrangentes a longo prazo. O mau uso da ciência de dados leva ao imediatismo algorítmico. Por exemplo, uma teste A/B pode mostrar que o aumento do número de anúncios em exibição terá um efeito positivo a curto prazo sobre os lucros, sem causar uma deterioração óbvia na retenção de usuários; mas isto ignora o impacto na aquisição de novos usuários, para não mencionar quase todos os outros efeitos potencialmente prejudiciais a longo prazo.

A ciência de dados bem utilizada mostra que otimizar os sistemas de recomendação para não buscar recompensas imediatas (por exemplo, visando, em vez disso, a satisfação do cliente e a aquisição e retenção de usuários futuros) é a melhor maneira que as empresas têm para reforçar o crescimento e a lucratividade no longo prazo (supondo que eles possam parar de concentrar toda a sua atenção no próximo relatório de lucros trimestrais). Em 2020, uma equipe da Meta determinou que, em um horizonte de tempo mais longo (um ano), a redução do número de notificações intrusivas melhoraria a utilização do aplicativo e a satisfação dos usuários. Uma grande diferença foi encontrada entre os efeitos de longo prazo e os efeitos de curto prazo.

Em quinto lugar, a IA pública deve ser posta em ação para avaliar a qualidade dos resultados dos algoritmos, particularmente na área da publicidade. Face aos danos consideráveis causados pela flexibilização dos critérios de aceitação de anúncios por parte das plataformas, a autoridade britânica responsável pelo controle publicitário começará a utilizar ferramentas de IA para analisar anúncios e identificar aqueles que fazem “afirmações duvidosas”. Outros países deveriam seguir o exemplo. Igualmente importante, a avaliação da IA deve ser um componente regular da disposição das plataformas para permitir auditoria externa dos resultados dos algoritmos.

Criar um ambiente digital que recompense a criação de valor a partir da inovação e puna a extração de valor rentista (particularmente nos maiores mercados digitais) é o desafio econômico fundamental dos nossos tempos. Para preservar a saúde dos usuários das corporações de tecnologia e da totalidade de seu ecossistema, é necessário evitar que os algoritmos fiquem subordinados ao desejo dos acionistas de lucros imediatos. Se os diretores empresariais realmente acreditam no princípio do valor para as partes interessadas, devem aceitar que é necessária uma mudança radical na forma como o valor é criado, com base nos cinco princípios detalhados acima.

O julgamento iminente contra a Meta não pode desfazer os erros do passado. Mas à medida que nos preparamos para a próxima geração de produtos de IA, temos que instituir mecanismos para uma supervisão adequada dos algoritmos. A utilização de algoritmos baseados em IA influenciará não só o que consumimos, mas também a forma como produzimos e criamos; não apenas o que escolhemos, mas também o que pensamos. Não há espaço para erros aqui.

Protecionismo

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Nos últimos anos, principalmente depois da crise financeira de 2008, a economia internacional vem percebendo o incremento do protecionismo, as nações estão aumentando as medidas protecionistas como forma de fortalecer suas estruturas econômicas e produtivas internas, reduzindo a entrada de produtos produzidos em concorrentes diretos para fortalecer suas empresas nacionais, impedindo que empresas internacionais gerem constrangimentos para suas organizações internas.

Neste ambiente, percebemos uma alteração nítida e evidente do discurso econômico de muitas nações desenvolvidas. Anteriormente, essas nações defendiam fortemente a abertura econômica, a privatização generalizada de empresas estatais e o incremento da competição como forma de alavancar seus setores produtivos, rechaçando toda e qualquer intervenção dos governos nacionais, vistos como negativos, perdulários e geradores de privilégios elevados.

Atualmente, os discursos estão sendo alterados, nações desenvolvidas vêm perdendo espaço no comércio internacional, empresas altamente qualificadas e geradoras de grandes ganhos financeiros e dotados de alto valor de mercado, estão perdendo espaço para organizações mais eficientes, ágeis e flexíveis, com novos modelos de negócios, ganhando valores no mercado global e gerando graves perdas econômicas para organizações tradicionais, levando muitas nações a adotarem medidas de salvaguarda para impedir que essas organizações nacionais sejam engolidas por concorrentes internacionais e gerando graves constrangimentos internos.

O protecionismo sempre existiu na economia mundial, as nações que conseguiram alçar seu desenvolvimento industrial e produtivo só conseguiram se desenvolver através de medidas de proteção, de políticas industriais ativas, de compras governamentais e de subsídios generalizados de seus governos nacionais. Embora saibamos que essa fórmula, que foi fortemente adotada por todas as nações que conseguiram se desenvolver, todos os países que tentaram adotar essas mesmas medidas foram fortemente criticados, pressionados e fragilizados financeiramente como forma de inviabilizar seu crescimento industrial, garantindo a perpetuação da dependência externa.

Na contemporaneidade, percebemos a ascensão asiática, principalmente o crescimento da China, do Japão,, da Índia e da Coréia do Sul, angariando grande crescimento econômico, produtivo e tecnológico, ameaçando posições ocidentais conseguidas ao longo de todo o século anterior e gerando constrangimentos internos na Europa e nos Estados Unidos, obrigando seus governos a adotarem políticas fortemente protecionistas, rasgando seus manuais de economia política como forma de sobrevivência, num mundo marcado pela forte competição externa, pelo surgimento de novos espaços tecnológicos e novos modelos de negócios.

Neste momento, os governos ocidentais de países desenvolvidos estão injetando trilhões de dólares em seus setores produtivos, impedindo a entrada de novos competidores e criando formas de atração de empresas internacionais, organizações dotadas de grande complexidade econômica e auxiliando na redução dos hiatos produtivos de concorrentes externos.

Vivemos momentos de grandes instabilidades e incertezas em todas as regiões do mundo, os discursos dos defensores da abertura econômica perderam espaço, antes de estimularmos a concorrência generalizada, precisamos repensar as teorias que dominaram a economia internacional e contribuíram ativamente para o incremento das riquezas na comunidade global, mas infelizmente, aumentaram o fosso entre os grupos sociais, aumentando as desigualdades, incrementando a exclusão e a indignidade. Neste cenário, para piorar, estamos cada vez mais envoltos numa guerra de grandes proporções que podem culminar numa destruição nuclear.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Europa à deriva, por Flávio Aguiar

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A demolição da social-democracia, nos anos 90, talvez tenha sido o começo da crise. Submisso aos EUA, continente tornou-se marionete geopolítica na contenção da Rússia e China. Resultado: econômica instável, agitações sociais, ascensão da ultradireita e o retorno do militarismo

Flávio Aguiar – OUTRAS PALAVRAS – 19/03/2024

O continente europeu possui uma coluna dorsal: a União Europeia. Mesmo os países que não pertencem a ela, como a Ucrânia, a Noruega, a Suíça, a Turquia e a Islândia, além de outros, gravitam em torno da UE. E esta coluna dorsal está sendo desossada, e periga se liquefazer. Em parte, esta crise lhe veio das próprias entranhas. Em parte, foi importada de fora, ou lhe foi imposta. Quem lhe impôs? Os Estados Unidos, através das injunções e exigências de seu braço armado multinacional, a Otan.

O ideal e a ideia da União Europeia nasceram dos escombros da Segunda Guerra, através da Comunidade Econômica Europeia e da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, criadas em 1957.

Consolidou-se oficialmente em 1993, depois do Tratado de Maastricht, assinado em 1992. Foi reformulada com o Tratado de Lisboa, assinado em 2007 e em vigor desde 2009. 20 dos 27países membros da UE adotam o euro como moeda comum, criada como valor de transferência em 1999 e sob a forma de notas e moedas a partir de 2002. A primeira grande crise da UE. ocorreu com a saída do Reino Unido, em 2020, depois de um plebiscito votado em 2016. E hoje ela tem a vizinha Rússia como sua principal adversária.

Isto significa que o ideal da União Europeia foi desenhado enquanto a parte Ocidental do continente vivia, genericamente, sob a hegemonia ideológica da social-democracia, como alternativa e resposta ao comunismo que vigia na sua parte Oriental, sob a liderança da finada União Soviética. Entretanto ela foi criada quando o sonho social-democrata e sua generosidade social cedia o passo ou se rendia ao pesadelo neoliberal e seus planos de austeridade fiscal, monetária e social. Esta é a raiz interna da crise hoje vivida pela União e pelo continente como um todo.

Se a União Europeia nasceu também com ideal de paz num continente continuamente marcado por grandes conflitos armados, ela nasceu igualmente sob a sombra das guerras iugoslavas e do Kosovo (1991-1999), marcadas por genocídios e pelas intervenções dos Estados Unidos e da Otan, sob a forma de mediação imposta e bombardeios seletivos. A presença do belicismo se agravou com a guerra na Ucrânia, entre este país, apoiado pelos Estados Unidos, a Otan e a União Europeia, e a Rússia, a partir de fevereiro de 2020, quando esta invadiu aquela alegando sentir-se ameaçada por uma possível adesão de Kiev à Otan. Os governos da UE, uns a gosto e outros a contragosto, se viram empurrados para dentro do conflito, liderado do lado Ocidental pelos EUA e pelo Reino Unido. Os EUA viram na conjuntura uma oportunidade para pressionar pela diminuição da dependência energética da Europa em relação à Rússia, caso, sobretudo, do carro-chefe da economia europeia, a Alemanha. Em consequência da guerra e da adesão europeia ao auxílio militar prestado à Ucrânia e das sanções adotadas contra Moscou, a situação das economias europeias foram profundamente afetadas. Os cortes no fornecimento do gás russo, dos fertilizantes e dos grãos ucranianos provocaram uma espiral inflacionária em todos os países, sobretudo na Alemanha, nos preços da energia, dos transportes, dos insumos agrícolas e de fármacos. Paradoxalmente, as sanções econômicas adotadas contra Moscou parecem prejudicar mais a Europa do que a Rússia.

Deste modo a Europa se aproxima mais e mais de tornar-se – ou voltar a ser – um protetorado militar da Otan atravessado pelas necessidades políticas dos Estados Unidos em sua campanha contra a Rússia e a China.

O continente vê-se marcado por agitações sociais ainda de médio porte, mas cada vez mais amplas e difundidas. Os protestos dos agricultores contra o que vêm como um falta de apoio dos governos e da União no que se refere a insumos, particularmente no preço do diesel, se espalharam da Polônia à Península Ibérica. Protestam também pelo que consideram uma política restritiva de agrotóxicos e de proteção do meio ambiente. Greves em aeroportos, portos, ferrovias e transportes urbanos pipocam em toda parte. No Reino Unido o setor da saúde é dos mais afetados, tanto em falta de investimentos como de pessoal, devido em parte à insegurança provocada pelo Brexit, a saída da União. A Alemanha vive um processo crescente de desindustrialização, com o fechamento de grandes unidades produtoras.

Tal clima de insegurança vem favorecendo em toda parte a ascensão da extrema direita. Partidos como o Vox, que na Espanha reivindica a herança falangista, o Rassemblement National na França, o Alternative für Deutschland na Alemanha, o Frateli d’Italia na Italia vem crescendo continuamente. Quando não ganham eleições, como foi o caso do Frateli na Itália, ditam a pauta política, o que envolve um traço de ceticismo em relação à União Europeia, pelo menos do modo como está constituída. Ultimamente estes partidos têm amenizado sua retórica anti-União Europeia, falando mais em reformular seus princípios em nome da preservação das soberanias nacionais. E puxam todo o espectro político mais para a direita, em torno de políticas reacionárias quanto a costumes e valores culturais, da xenofobia, da islamofobia, esta última agravada pelo desejo de aproximação com Israel e sua política de apartheid em relação ao povo palestino e massacre da população civil na Faixa de Gaza.

Tal crescimento se alimenta da falência dos planos de austeridade em produzir bem-estar social, o que não surpreende ninguém de bom senso. E também se alimenta da retração divisionista das esquerdas ou da rendição de vários setores aos ditames da real politik europeia impulsionada pelas consequências geopolíticas da guerra na Ucrânia.

E em toda parte renasce o velho militarismo como alternativa geopolítica alimentada pela russofobia, e econômica, diante das agruras e amarguras de uma possível recessão de longo alcance. E desta vez o Velho Mundo não está assente apenas sobre a novidade dos drones, os blindados e outros armamentos convencionais, mas diante do risco sem retorno de um confronto nuclear.

Flávio Aguiar, é membro da Frente Brasileiras e Brasileiros pela Democracia e contra o golpe (FIBRA), na Alemnha.

A ordem do capital, por Clara Mattei

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Clara E. Mattei – A Terra É Redonda – 19/03/2024

Nota à edição brasileira, recém-lançada

É uma verdadeira conquista ver A ordem do capital publicado em português. Afinal, ainda que narre algo que teve lugar na Europa de um século atrás, seguindo uma linha que revisita e revê os fundamentos da economia a fim de relacionar os efeitos das políticas econômicas de austeridade do início do século XX à ascensão do fascismo, neste livro há elementos analíticos que podem contribuir para compreender a natureza e a lógica da austeridade no Brasil atual.

Não obstante se concentre nas relações de classe em contextos europeus nos quais a austeridade foi usada como instrumento político para esmagar as reivindicações de democracia econômica,
transporta essa dinâmica à compreensão de como as relações de classe foram forjadas em países cujo histórico é de escravidão e colonialismo. Entender as relações de classe da Europa do século XIX serve para calibrar como o discurso da austeridade vem acompanhado de uma pauta argumentativa que cancela o aspecto de classe das políticas adotadas, como se estas atingissem a todos de maneira equânime.

Os eventos ocorridos entre Europa ocidental e Norte global no início do século passado reverberaram no eixo centro-periferia e orientaram como os subalternos pautariam a própria política. Economistas do Sul global buscaram validação nas vertentes econômicas que disseminaram a austeridade e assumiriam os contornos neoliberais que testemunhamos hoje.

Outra chave que a história nos ensina consiste na inseparabilidade da austeridade fiscal e monetária, por meio do comprometimento orçamentário com o constante aumento das taxas de juros, afetando diretamente o mundo do trabalho. A escassez de crédito em razão da política rentista de juros altos faz que o trabalhador seja impactado em duas frentes: de um lado, pela redução do emprego e, por conseguinte, pela sujeição ao trabalho precarizado; de outro, por uma política salarial baixa que comprime o poder de compra entre as inúmeras necessidades a ser satisfeitas no vácuo deixado pela ausência do serviço público.

Não por outra razão, uma das primeiras medidas recentes na implementação da austeridade no Brasil consistiu em eliminar leis trabalhistas.

Também as privatizações para atrair investidor nas famigeradas parcerias público-privadas, acompanhadas da desregulamentação do mercado, desempenham um papel fundamental na dinâmica da austeridade. Boa parte do discurso gira em torno de justificar a redução dos gastos públicos ao comprometer o orçamento com o pagamento dos juros e amortização da dívida. Tal ideia, ainda que equivocada, permitiu, como veremos, que a autoridade máxima no Banco Central se tornasse imune à política de juros sugerida pelo chefe do Executivo.

Após a promulgação da Lei complementar n. 179, de 2019, as necessidades orçamentárias do presidente da República são completamente irrelevantes para o presidente do Banco Central, uma vez que seu mandato é dotado de garantias a exigir um dificultoso processo de exoneração, dependente da maioria absoluta do Senado. O aprofundamento da austeridade alcançada por diversos estratagemas durante o mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro, sob o disfarce de conferir plena autonomia ao Banco Central, retirou do poder político as alianças, tão caras à construção de um programa orçamentário harmônico e consentâneo, com as indispensáveis políticas sociais de um país de modernidade tardia.

Dado o presente cenário, vale ressaltar que o Brasil já conta com a maior taxa de juro real do mundo, superando países que agonizam com a inflação, como a Argentina. Ao mesmo tempo, o comprometimento do PIB brasileiro com a dívida pública é inferior ao de países desenvolvidos, de maneira a inviabilizar o argumento de que o país deve reduzir gastos, de que o país gasta descontroladamente.

Enquanto a Itália, objeto central de estudo desta obra, apresenta uma relação entre o PIB e a dívida pública que supera os 150%, a proporção do Brasil é inferior a 80%. Países como o Japão e a Grécia superam os 200%, e os Estados Unidos atingem 120%. Portanto, o argumento de que o Brasil não possui alternativas senão implementar políticas de austeridade não se sustenta. O ponto nodal do orçamento nacional reside no importe destinado ao pagamento dos juros da dívida pública, injustificável e propagador das mazelas sociais das quais o país padece.

O ano 2022 encerrou-se com a aprovação de uma emenda de transição do então futuro governo Lula, a Emenda constitucional no. 126, que ampliou o orçamento público para permitir que despesas correntes na ordem de 145 bilhões não fossem limitadas ao teto de gastos. A emenda também balizou outro teto de gastos, que viria a se chamar “novo arcabouço fiscal”. As balizas estabelecidas pelas novas regras mostraram-se tímidas, senão covardes, sobretudo em abolir o nefasto teto de gastos estabelecido pela Emenda constitucional no. 95/2016, impedindo o país de austeridade que ignora a facção política que ocupa o poder. O regime de austeridade, apesar de não alcançar os resultados de estabilização econômica almejados, não falha em atingir seu verdadeiro intuito: assegurar que a tríade de políticas fiscais, políticas monetárias e erosão da capacidade da classe trabalhadora de reagir a elas silenciem a dissidência.

Ademais, por compor o Sul global, o Brasil é mais suscetível às pressões das elites internas e globais. Portanto, a imposição de medidas de austeridade pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) para a concessão de empréstimos internacionais não foi acaso. A ingerência do FMI a afetar diretamente assuntos ínsitos à soberania do país culminou na aprovação da lei de responsabilidade fiscal, em 2000, como parte de uma pauta de “recomendações” que asseguraria o pagamento da dívida. Contudo, para além de estabelecer garantias desse pagamento, o verdadeiro intuito era ditar como a política deveria orientar-se, a prescindir do governante no poder.

Antes de assumir seu primeiro mandato, em 2003, Lula entregou uma carta de compromissos para “tranquilizar o mercado”, prometendo manter a “estabilidade” de seu predecessor Fernando Henrique Cardoso. Em 2023, retornando à Presidência após o período de convulsão que o país atravessou, Lula comprometeu-se a “colocar o pobre no orçamento”; no entanto, até o momento, impera o continuísmo em relação a Michel Temer e Jair Bolsonaro. Uma maior incursão na história política do país revela que o período da ditadura militar e as mudanças de poder pouco alteraram a forma como o capital é extraído da classe trabalhadora. Em alusão ao ex-ministro da Fazenda do “milagre econômico”, Delfim Neto, seria necessário “fazer o bolo crescer para depois dividi-lo” – só que o momento da divisão jamais alcança os desfavorecidos do sistema.

A austeridade não consiste em remédio amargo administrado para brecar a “gastança desenfreada” e “retomar o crescimento”, jargões já tão conhecidos quanto desgastados. A austeridade tampouco é um erro de percurso na política para desfazer o “agigantamento do Estado” e proporcionar “menos Estado, mais mercado”. A lente através da qual o economista enxerga as variáveis de mercado distorce o modo como a realidade opera, vislumbrando o agregado (a unidade nacional) a despeito do bem-estar social e apresentando uma acentuada miopia as distinções de classe.

Como bem evidenciado, a definição comum de austeridade enquanto corte nos gastos e aumento de impostos mascara a escolha da alocação de recursos, que são abundantes para financiar guerras, arcar com juros da dívida pública, mas ínfimos na expansão do gasto social. No Brasil, os cortes foram significativos em setores que não comportavam ulterior achatamento. O salário mínimo carece de aumento real comparado à inflação, as reformas da previdência passaram a estabelecer critérios mais rígidos para concessão de benefícios, e as privatizações encareceram o preço dos serviços públicos ao longo dos anos.

A austeridade que se delineia nos países desenvolvidos continua admitindo um elevado comprometimento do PIB com a dívida pública, porém segue o preceito de eliminar prestações sociais, condicionando-as ao recrutamento de trabalho mal remunerado, ao corte de gastos em saúde, educação e moradia e à eliminação da tributação dos mais ricos, transferindo o ônus aos mais pobres por meio da taxação regressiva do consumo e dos serviços. O capital sai ainda mais privilegiado das equações de austeridade, mercantilizando as prestações sociais como barganha em detrimento da sociedade.

No caso brasileiro, os juros elevados agradam o especulador internacional, ávido por retornos substanciais em um país que não investe e, portanto, jamais se liberta da situação de dependência. Ao mesmo tempo, optando pela constituição em pessoa jurídica, o capital conta com a benesse sem precedentes – afora na Estônia e na Letônia – de não incidência de imposto de renda em lucros e dividendos.

A austeridade fiscal, inseparável da monetária, atua junto à imposição de um incremento artificial dos juros sob o argumento de conter a inflação, comprometendo, assim, o orçamento público com o pagamento de juros injustificáveis. O valor do salário – outro fator relevante –, a despeito do que se possa pensar, possui correlação direta com a política de austeridade.

Existe uma relação inversamente proporcional entre a privatização dos serviços públicos e a estabilidade da remuneração proveniente desse setor. Esse fenômeno ocorre em paralelo à revogação das proteções trabalhistas, previdenciárias e assistenciais e à supressão das prestações públicas, enfraquecendo o poder de negociação de sindicatos e trabalhadores. Quanto mais escassos são os recursos disponíveis para satisfazer as próprias necessidades de subsistência, mais suscetível estará o trabalhador a sujeitar-se a relações de trabalho opressivas. Não por coincidência, as políticas de austeridade no Brasil vêm acompanhadas de precarização das relações de trabalho e de uma disseminada incapacidade de mobilização sindical e reinvindicação política dos direitos trabalhistas e, mais amplamente, dos direitos sociais.

O presente contexto político é bastante desfavorável à realização de direitos sociais e econômicos dos contingentes mais vulneráveis da sociedade brasileira. Desde o impeachment da presidenta Dilma Rousseff – sob a falsa acusação de violação das leis orçamentárias, as chamadas “pedaladas fiscais”, indispensáveis para conciliar o gasto com o não atingimento das receitas diante da crise econômica que assolou o país, providências que nada mais eram que instrumentos para a execução de despesas públicas inadiáveis –, o cenário de desfazimento do Estado social ganhou fôlego com o rompimento do pacto social por meio da forjada Emenda constitucional n. 95/2016, resultado da aprovação da “PEC da morte”. Tal reforma elevou ao status constitucional um estado de coisas que subverte os primados estabelecidos na própria Constituição.

Não bastasse, a “austeridade expansionista” do então ministro Paulo Guedes aprofundou o processo de empobrecimento social, acompanhada das reformas trabalhistas previdenciárias e de uma desenfreada busca pela privatização de setores pertencentes ao poder público. Tal programa mostrou-se, desde o princípio, um fracasso, pois, assim que a pandemia de covid-19 interrompeu o funcionamento da economia, tornou-se impossível manter a força de trabalho, refém do ambiente doméstico, sem qualquer alternativa para mitigar a crise. A pandemia expôs a fragilidade do sistema em lidar com o excepcional, e algumas das medidas de contenção de gastos essenciais precisaram ser abrandadas para fazer frente à aprovação de auxílios emergenciais, que teria vigência provisória e, portanto, transformaram um então direito em faculdade de quem exerce o poder.

*Clara E. Mattei é professora no Departamento de Economia da The New School for Social Research.

Senado na contramão civilizatória, por Thiago Amparo

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Democracias que se prezem adotam política oposta com relação às drogas

Thiago Amparo, Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

Folha de São Paulo, 14/03/2024

Se a intenção da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado era atestar, na letra da Constituição, o quão atrasado em matéria de política de drogas é o país, conseguiu. Nesta quarta (13), a comissão aprovou uma PEC que cristaliza o oposto do que todas as democracias que se prezem estão fazendo mundo afora: incute ma Carta o crime de possuir ou carregar qualquer tipo de droga, mesmo que seja para consumo próprio.

Ao usar o cartucho de uma PEC para piorar a já ruim lei de drogas —principal responsável pelo inchaço de 257% das prisões brasileiras nas duas últimas décadas—, o Senado usa uma arma nuclear para explodir um ladrão de galinha. Para justificar a emenda que piora o soneto, o relator da proposta, Efraim Filho (União Brasil-PB), inventou um oximoro: “Tráfico em pequenas quantidades”. A realidade, senador, é outra: a maioria dos presos por tráfico nem sequer tem relação com facções, conforme estudo do Ipea de 2023.

Na ausência de um critério objetivo que ajude a diferenciar traficante de usuário —principal gargalo da lei de drogas ora sob análise do STF —, ser negro e pobre parecem ser fatores determinantes para enquadrar o réu como traficante, mesmo quando não o é. O que o Senado faz é agravar essa situação ao criar uma punição genérica que torne ainda mais nebulosa a diferença entre traficante e usuário; e sabemos que, mesmo com categorias turvas, o Judiciário não falha em ver negros como o primeiro e não o segundo.

A CCJ do Senado Federal, ainda, exagera os efeitos da decisão do STF. Mesmo que decida uma quantidade objetiva de maconha para consumo pessoal, o parecer da corte deve ter pouco ou nenhum efeito sobre um sistema judicial que privilegia a palavra do policial e sobre um sistema policial que se alimenta da impunidade referendada pelo Judiciário para praticar abordagens e operações violentas. A deliberação do Supremo em nada muda isso, e é justamente com essas mazelas, e não com populismo penal retrógrado, que o Senado deveria se preocupar.

A felicidade no ambiente de trabalho, por Natália Beauty.

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Colaboradores felizes não são apenas mais produtivos, mas também mais criativos e motivados

Natalia Beauty, Multiempreendedora e fundadora do Natalia Beauty Group

Folha de São Paulo, 18/03/2024

Num mundo empresarial onde a produtividade e a criatividade são moedas de valores incalculáveis, a felicidade dos colaboradores tem se tornado um diferencial competitivo significativo.

Recentemente, um artigo chamou minha atenção, sobre o conceito inovador de um diretor de
felicidade (chief happiness officer, ou CHO), cuja missão é cultivar um ambiente de trabalho mais feliz e, consequentemente, mais produtivo. Inspirada por essa abordagem e refletindo sobre a minha trajetória e os valores da minha empresa, percebi o quanto transformador pode ser um CHO para qualquer empresa, inclusive a nossa.

A pesquisa discutida no artigo revelou que, embora a felicidade no trabalho seja um objetivo almejado, muitas vezes se encontra em níveis perigosamente baixos. Empresas como Ikea, Lidl e Adidas estão levando a sério a ideia de investir na felicidade dos colaboradores, compreendendo que colaboradores felizes não são apenas mais produtivos, mas também mais criativos e motivados.

Eu sempre acreditei que o bem-estar da equipe é fundamental. Não se trata apenas de oferecer um bom salário ou benefícios tangíveis, mas, sim, de criar uma cultura que valorize cada indivíduo, suas ideias, sonhos e, claro, sua felicidade.

O cargo de CHO, inicialmente visto com ceticismo, tem se mostrado essencial para redefinir as prioridades organizacionais, se afastando das tradicionais métricas de sucesso para abraçar um ambiente de trabalho onde o bem-estar mental e físico dos colaboradores é prioritário. A ideia não é apenas proporcionar momentos de alegria efêmeros, como happy hours ou mesas de pingue-pongue, mas garantir que os colaboradores encontrem propósito, reconhecimento, realização e senso de pertencimento. Esses são os verdadeiros pilares da felicidade no trabalho.

Essa percepção, para mim, não é novidade. Sempre procurei criar um ambiente onde minha equipe se sentisse valorizada e ouvida, onde a criatividade florescesse não apenas como um meio de atingir objetivos empresariais, mas como uma expressão do ser. Contudo, a ideia de formalizar essa abordagem por meio da figura de um CHO é algo que vejo como um divisor de águas. Seria uma forma de garantir que a felicidade e o bem-estar da equipe sejam não apenas priorizados, mas continuamente avaliados e melhorados.

A implementação de “microintervenções” mencionada no artigo, como cursos introdutórios para novos colaboradores ou o envolvimento das equipes na definição de perfis para novas contratações, são estratégias que ressoam profundamente com a minha filosofia. É uma maneira de empoderar cada membro da equipe, garantindo que todos tenham voz ativa na construção da cultura empresarial.

É bom ressaltar que adotar a figura do CHO não substitui ou duplica as funções de um departamento de RH, mas agrega um foco especializado e estratégico no bem-estar dos colaboradores como um todo. Isso envolve desde a criação de programas de desenvolvimento pessoal e profissional até a garantia de um ambiente de trabalho inclusivo e acolhedor.

Eu acredito firmemente que a implementação de um Diretor da Felicidade nas empresas poderia ser um marco na jornada para, não apenas termos empresas de sucesso, mas comunidades onde cada membro se sinta verdadeiramente feliz, valorizado e parte de algo maior. A felicidade no trabalho não é apenas um ideal: é um pilar essencial para a inovação, criatividade e sucesso sustentável.

É hora de abraçarmos essa transformação.

Crises conectas

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Vivemos numa sociedade que se transforma rapidamente. Nesta sociedade, percebemos a convivência de grandes crises e, para piorar os cenários cotidianos, todas essas crises estão acontecendo ao mesmo tempo, impulsionando as instabilidades, incrementando as incertezas e estimulando as desesperanças.

Destas crises conectas, destacamos a econômica, a demográfica, a social, a ecológica, a psíquica e a política. Todas essas estão acontecendo ao mesmo tempo, levando a sociedade a grandes encruzilhadas, decisões demoradas, levando grupos de pressão a se organizar para defender seus interesses imediatos, impedindo medidas sensatas e garantindo seus ganhos econômicos e financeiros. Neste cenário assustador que vivemos na contemporaneidade, percebemos que as discussões políticas estão sendo postergadas e a situação de urgência se tornam mais prementes.

A crise econômica recente começou no período posterior a crise imobiliária dos EUA, ocorrido em 2008, que fragilizou o pensamento liberal e impulsionou crises generalizadas na economia internacional, levando conglomerados sólidos e consistentes a perderam espaço no cenário global, levando seus governos nacionais a injetaram trilhões de dólares para evitarem a bancarrota, evitando o desemprego crescente e reduzindo os riscos econômicos e financeiros, contribuindo para que o sistema produtivo se recuperasse.

A crise ecológica está agitando a comunidade internacional, embora encontramos variados grupos negacionistas, os efeitos no meio ambiente estão cada vez mais nítidos e evidentes, impactando regiões inteiras, modificando plantios e culturas, degradando comunidades inteiras, aumentando as chuvas, devastando cidades e conglomerados urbanos, mostrando-nos que não estamos preparados para as grandes transformações climáticas em curso na sociedade.

A crise demográfica está gerando calafrios, regiões prósperas e desenvolvidas perderam populações e, desta forma, precisam urgentemente de mão de obra para movimentar a economia e os setores produtivos, buscando indivíduos para incrementar suas atividades. Ao atrair mão de obra para garantir a pujança econômica, as nações percebem a chegada de culturas diferentes, com novos valores que podem gerar constrangimentos internos, conflitos religiosos, étnicos e violências cotidianas,

Neste ambiente de fortes instabilidades e incertezas crescentes, os seres humanos sentem na pele a degradação psíquica, a carga de trabalho excessiva, as violências cotidianas, a competição degradante e a escassez monetária que contribuem para os desequilíbrios emocionais e espirituais, tudo isso contribuem ativamente para o incremento das crises psíquicas que se espalham para a comunidade internacional, desde nações em desenvolvimento até as nações desenvolvidas.

As crises sociais crescem rapidamente, gerando constrangimentos assustadores, de um lado percebemos o crescimento da riqueza concentrada nas mãos de poucos afortunados e, ao mesmo tempo, a indignidade se espalha para a sociedade internacional, exigindo atuações da sociedade para reverter este quadro desastroso. A política, tão degradada na contemporaneidade, é a única forma de revertermos este quadro.

Na crise política, percebemos uma fragilização da democracia, que perdem espaço para movimentos autoritários e reacionários. Os canais de discussão política perdem espaço, a governança global se reduz em decorrência de pressões de grupos abastados e detentores dos recursos monetários e financeiros, desta forma, percebemos uma limitação da política de espaço democrático para a organização da comunidade.

Neste momento de crises conectas, precisamos construir maturidade para encontrarmos caminhos para sair deste caos generalizado… afinal o fim pode estar próximo.

Ary Ramos da Silva Júnior, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

China gira para os emergentes, por Nelson de Sá

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Lula gostaria de não depender tanto de Xi Jinping; Tarcísio também

Nelson de Sá, Correspondente da Folha na Ásia

Folha de São Paulo, 15/03/2024

Os alarmes protecionistas dispararam novamente, a partir dos EUA, diante do salto nas exportações chinesas em janeiro e fevereiro em relação ao mesmo período do ano anterior. A diferença é que, desta vez, o que se quer é que os emergentes se voltem contra a China.

O crescimento das vendas chinesas foi para eles, emergentes, como alternativa às barreiras que estão sendo levantadas por EUA e Europa. Em renminbi, a moeda chinesa, segundo a alfândega do país, citada pelo Asia Times, de Hong Kong, o avanço das exportações se concentrou nos países do Brics, inclusive Índia, e Sudeste Asiático, sobretudo Vietnã e Indonésia. Para o Brasil, o salto nas exportações chinesas teria sido de 37,7%, próximo daquele na direção contrária, das importações chinesas de produtos brasileiros, de 37,1% —que levou o Brasil a novo recorde em superávit comercial no bimestre.

Alguns mercados chamam até mais a atenção, como a Arábia Saudita, com o uso das moedas locais para a exportação chinesa de plásticos, têxteis e maquinário em troca de petróleo. Também Singapura, onde a montadora chinesa BYD deixou a japonesa Toyota para trás, num marco para o Sudeste Asiático.

O movimento acompanha o avanço nos investimentos chineses, cada vez mais direcionados aos emergentes. Na região Ásia-Pacífico, o crescimento no ano passado foi de 37%. No Brasil, segundo o Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), o gigante asiático passou a ser o maior investidor externo em termos de fluxo.

Lula gostaria de não depender tanto de Xi Jimping. Evita a Iniciativa Cirturão e Rota, quer levar centenas de empresários à Índia, insiste no acordo do Mercosul com a União Europeia — só para ver o bloco abraçar mais legislação protecionista, agora contra produtos do cerrado.

O governador paulista Tarcísio de Freitas ambém gostaria. Correu à Europa para que a francesa Alstom participasse do recente leilão ferroviário, mas a chinesa CRRC levou sem concorrentes.