Educação, Estado e poder, por Vinício Carrilho Martinez

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Vinício Carrilho Martinez ´ Terra é Redonda – 10/03/2025

Desde O Príncipe de Nicolau Maquiavel, a política sempre vem associada a um sentido de força, imposição – na falta de convicção e de convencimento

Como fazer Educação para o poder (popular), se a política perdeu a graça? Há outra palavra que rima com essa, mas não vou dizer. Em todo caso, fica essa pergunta e uma certeza: o político sem graça, que perdeu a simpatia, só a irá encontrar nos amigos de verdade, junto ao povo pobre, negro e oprimido.

Dentro desse contexto, cabe dizer que o título do texto é o mesmo da minha próxima disciplina na graduação (optativa) e há uma infinidade de questões que passam por essa tríade, desde a emancipação que interessa aos pobres, negros e oprimidos (educação para o poder) até o que há de podre no Reino da Dinamarca (Shakespeare no Hamlet).

Ainda é possível tratarmos de outras variações ou desdobramentos, como: política, dominação, decisão ou alteridade, autoridade, imposição. Desde O Príncipe de Nicolau Maquiavel, a política sempre vem associada a um sentido de força, imposição – na falta de convicção e de convencimento – e isto os antigos chamavam de virilidade. A política era entendida como atributo masculino, ainda que as mulheres sempre tenham feito muito mais política (como “a nobre arte da sobrevivência”) do que os homens dominantes (“falocracia”). Por sua vez, essa “virilidade” nem sempre (ou quase nunca) vinha associada às requeridas “virtudes”: também chamavam de virtù.

Porém, como atualização de sentidos, vamos denominar a política atuante como “rudeza” [1] e que, por sua vez, desconstrói a simpatia: as forças da extrema direta e do Fascismo Nacional são predizíveis nessa seara política. Ou seja, o que prevalece é a imposição (enquanto dominus [2]) e suas decisões são “firmes o suficiente” (como deveria ser o Estado) para que a força (virilidade) jamais possa ser questionada.

Neste caso, de imediato, sem considerar muitas das demais sintonias, vejamos que estamos num paradoxo muito estranho: simpatia, no dicionário etimológico, é a “capacidade de estar com duas ou mais pessoas” e a política, em outra definição bem simples, alude à condição de pautar, convocar, e reunir a fim de se decidir para um fim coletivo.

Então, sem muito esforço da inteligência política, se não há simpatia, podemos indagar: como é que se faz política?

Pois é a este dilema que o país parece estar submetido: o país perdeu sua graça, está sem carisma – assim como nossa política. Comparativamente ao passado recente, hoje, talvez por excesso de mágoa não resolvida, por escassez de tempo e urgência diante nas avaliações negativas, ou por imposição do mero brilho do ego, os “líderes simpáticos” de outrora estão encastelados, envoltos por “amigos” contra seus (nossos?) “inimigos”. E eis então que chegamos em outro beco sem saída, aquele que definha a política numa “relação amigo/inimigo” – “aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei” (leia-se, a rudeza, a frieza, a truculência).

De certa forma, não é difícil explicar como uma liderança política perde seu carisma, aquela ação/vibração ou capacidade de produzir “simpatia política” [3]: a “graça de quem faz política com pessoas, para as pessoas”. O difícil é fazer o jacaré fechar sua bocarra: essa expressão quer dizer que, quando os polos se afastam, sobretudo apontando níveis insuportáveis de parca adesão, com a boca da inimizade política cada vez mais aberta, é praticamente impossível reverter o processo.

A figura de linguagem do jacaré de boca aberta é muito forte na simbologia e na análise política, por duas razões: quando o jacaré fecha a mordida na sua presa, não há o que o faça abrir, a não ser a vontade de comer; troquemos o jacaré por um crocodilo e chegaremos ao mito do Estado. A primeira ou mais forte representação sobre o Estado foi dada por Thomas Hobbes; no entanto, o filósofo do Renascimento fazia referência a uma passagem bíblica (Isaias 27:1 [4].

Para interagirmos melhor com o animal símbolo do poder, imaginemos derrotar um crocodilo do rio Nilo, um dos mais vorazes e fortes animais da natureza, com lanças e flexas da Idade do Bronze (um metal macio): sua couraça representaria uma força superior ao tanque de guerra mais possante da atualidade (feito com aço e cheio de contramedidas), comparando-se a resistência da couraça com a tecnologia bélica da época. O resultado dessa associação entre força, resistência, indestrutibilidade, seria o Estado.

Voltando à “simpatia política” (ou antipatia, a depender de como analisamos a aceitação e as “intenções de voto”), pensemos como é intransponível a montanha que ameaça desmoronar (ou já desmoronou) para quem perdeu o carisma: o jacaré de boca aberta que está à espreita.

Sem o carisma, poderíamos pensar em uma nova política, sendo feita com esmero, capacidade técnica inquestionável, racionalidade, uma relação numeral que mais acerta do que erra – e não é o caso atual. Aliás, antes de avançarmos, frisemos que a simpatia em baixa (ou antipatia em alta) logo se associa ao preconceito, ao ranço, ao rechaço, às famosas náuseas que levam à interdição política.

Um líder político que passou pelo céu e pelo calvário foi Benito Mussolini. Precursor da Itália fascista, o Duce praticamente reinventou o “carisma político” – meio que na esteira de seu compatriota Caio Júlio César, o mais consagrado general romano –, indo aos píncaros solares do populismo de direita, mas que acabou de ponta-cabeça em praça pública.

Com muito marketing mercantil, no Brasil, tivemos Fernando Collor de Melo, instado ao poder com fomento popular e que acabou em um célebre impeachment. De cunho mais “técnico”, vimos Fernando Henrique Cardoso – alocado no poder central a partir de um “partido de quadros” e com seu “notório saber” – vimos o neoliberalismo avançar seus primeiros passos. Depois, foi defenestrado por um arranjo de petições ideológicas, levando Lula ao primeiro mandato, na soleira de um “partido de massas”. Saiu, no segundo mandato, com 80% de aprovação: um marco para a política mundial, sem dúvida – ainda mais por se tratar de um metalúrgico. Entretanto, aqui importa destacar a simpatia reunida: 80% de amigos, se preferirem dizer assim.

Hoje, sem tanta simpatia, tampouco consegue emplacar forças e partidos de quadros. É óbvio que não tratamos aqui de “partidos revolucionários”.

Faz muito tempo que o PT se afunilou como “partido de poder” – e com isso quero dizer que, numa associação ao PRI (Partido Revolucionário Institucional), do México do século XX, tornou-se uma agremiação que luta (exclusivamente) pelo poder e para se manter no poder. Contudo, nessa praia, o que parece óbvio, não é, efetivamente. Na política, nada é muito o que parece ser.

Basta-nos pensar que os partidos, os mais notáveis ou honestos (mais ainda se olhados pelo ângulo da esquerda), deveriam se voltar à mudança social, muito mais à transformação do que à preservação do status quo. Talvez os índices crescentes de perda de simpatia (carisma em baixa) se devam a isso, uma vez que não se espera de um “partido de esquerda” mover-se do mesmo modo, na mesma lagoa dominada pelo jacaré insaciável da direita (ou extrema direita).

Por fim, volta a pergunta que não quer calar: como angariar simpatia, sem sair da lagoa desse implacável crocodilo?

Com o perdão dos trocadilhos, emprestados para o entendimento mais direto, parece que, sem carisma, não se atenta mais ao fato de que “em lagoa que tem piranhas, jacaré nada de costas”.

Ou será, em outra hipótese, que os amigos encastelados não são tão amigos assim e, no fundo da lagoa, já estariam “dando boi às piranhas”?

Quando não há simpatia política, tudo é bem possível (até provável), porque “o barco furado faz muita água” e a “política do toma lá, dá cá”, parece não satisfazer a todos os ratinhos do porão do poder. É desse modo que o político carismático vira um bicho-papão.

Como dito no início, os amigos do político carismático (simplificado como populista) estão no meio do povo pobre, negro e oprimido. No castelo, no Palácio, estão os “amigos da onça”.

*Vinício Carrilho Martinez é professor do Departamento de Educação da UFSCar. Autor, entre outros livros, de Bolsonarismo. Alguns aspectos político-jurídico e psicossociais (APGIQ)

Notas

[1] O primeiro texto que vou utilizar é esse do link abaixo, sobre a dança das cadeiras na política que deixou Nísia Trindade (Ministra da Saúde) de pé – na porta da serventia.

2 Olhar o relógio é desrespeitoso e foge ao decoro da liturgia do cargo.

[2] “A lei do mais forte”, a lei do capital ou a lei da espada que dita o direito de vida e morte.

[3] As pessoas envelhecem, querem sossego – é um direito legítimo. Mas, erram pecaminosamente ao não investirem na renovação dos quadros, das lideranças políticas.

[4] Assim se dizia biblicamente sobre o Leviatã: “Naquele dia, o Senhor castigará com a sua dura espada, grande e forte, o leviatã, a serpente veloz, e o leviatã, a serpente tortuosa, e matará o dragão que está no mar”.

 

Desconectar para conectar, por Stephanie Habrich

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Proibir celulares nas escolas é só o começo: desafio maior é preparar jovens para interagirem de forma saudável tanto no mundo real quanto no virtual

Stephanie Habrich, Fundadora e diretora-executiva dos jornais Joca e Tino Econômico

Folha de São Paulo, 11/03/2025

O início do ano letivo trouxe polêmica com a lei que baniu celulares nas escolas. A pausa forçada no uso das telas gera resistência, mas levanta uma questão importante: isso realmente criará um ambiente de aprendizado mais saudável?

A ciência mostra benefícios claros dessa restrição: maior concentração e foco, redução da ansiedade, melhora na interação social e no contato humano. Além disso, combater o cyberbullying e incentivar atividades físicas e culturais são ganhos significativos. O “detox digital” também pode fortalecer o senso crítico e a autonomia dos estudantes.

Essa mudança, porém, exige acolhimento e conscientização. É essencial ouvir as preocupações dos alunos e explicar os benefícios. Pais e professores também precisam entender os impactos do uso excessivo da tecnologia, promovendo debates sobre saúde mental e dependência digital.

Pesquisas indicam que o excesso de telas compromete habilidades cognitivas essenciais, como memória e criatividade, além de estar associado a transtornos do sono e aumento da impulsividade. Escolas que já adotaram essa medida ao redor do mundo notam melhores resultados acadêmicos e maior engajamento em atividades extracurriculares.

Claro, a tecnologia é indispensável no mundo atual e pode ser uma grande aliada no aprendizado. O desafio está no equilíbrio entre seus benefícios e a necessidade de desenvolver habilidades interpessoais e emocionais. Cabe aos adultos orientar crianças e jovens no uso seguro e responsável das telas.

A educação midiática é um caminho essencial nessa jornada. Ensinar a diferenciar informações confiáveis de fake news fortalece o pensamento crítico e reduz a vulnerabilidade à desinformação. Esse processo começa cedo e se torna fundamental para a autonomia intelectual dos estudantes.

O afastamento do celular nas escolas também resgata o aprendizado ativo, incentivando a resolução de problemas, a colaboração em projetos e o desenvolvimento da criatividade sem distrações digitais. A aprendizagem significativa acontece quando há espaço para reflexão, troca de ideias e experimentação.

Reduzir o uso de celulares contribui para um futuro mais saudável, tanto para os estudantes quanto para seus relacionamentos. Mais do que proibir a tecnologia, trata-se de construir um ambiente que desenvolva habilidades essenciais para a vida e o mercado de trabalho, como empatia, resiliência e argumentação.

A discussão sobre o uso de celulares nas escolas vai além de evitar distrações em salas de aula. É uma oportunidade de repensar o papel da escola e o tipo de sociedade que queremos construir. A proibição é apenas o começo: o verdadeiro desafio está em preparar os jovens para interagirem de forma saudável tanto no mundo real quanto no virtual.

Os jornais Joca e Tino Econômico, voltados ao público infantojuvenil e seus educadores, acompanham temas atuais como o “brain rot” – ou “apodrecimento cerebral” – , causado pelo consumo excessivo de conteúdos digitais de baixa qualidade. Afinal, informação sem reflexão é só ruído.

 

O que fazer com o Estado? por Lucas Pereira Rezende

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Democratas de todos os vieses não têm um projeto alternativo claro ao neototalitarismo tecnofeudal em voga; momento é de ação, não de nostalgia

Lucas Pereira Rezende, Doutor em ciência política (UFRGS), é professor do Departamento de Ciência Política da UFMG; autor de “Sobe e Desce: Explicando a Cooperação em Defesa na América do Sul” (ed.UnB)

Folha de São Paulo, 10/02/2025

Todos estão insatisfeitos com o Estado. Progressistas porque ele não levou direitos a todos; conservadores porque políticas de direitos civis esbarram em preceitos religiosos e/ou tradicionais; a classe média pela percepção de corrupção e alta carga tributária; as classes baixas por não serem atendidas plenamente, mantendo sua marginalização; o mercado pelos altos gastos; e todos insatisfeitos com a segurança pública. O que fazer, então, com o Estado?

Essa insatisfação generalizada levou parte das sociedades ocidentais, que viviam sob democracias liberais, em direção a um totalitarismo tecnofeudalista. O vácuo de um movimento de expansão do Estado democrático liberal, que seja capaz de propor uma reforma que preserve os avanços em direitos civis, que mobilize a sociedade em sua defesa, mas que também promova uma reorientação para maiores efetividade e eficiência do Estado, está sendo ocupado por alternativas que têm potencial destrutivo significativo à sociedade como a conhecemos.

Apesar dos seus problemas, foi através das instituições estatais que a democracia liberal pôde avançar. No Brasil, devemos ao Estado, por exemplo, os direitos trabalhistas, a Previdência Social, a infraestrutura desenvolvimentista, a urbanização e industrialização do país, a criação do SUS, a estabilização econômica, a pesquisa científica e o ensino superior gratuito, e a consolidação legal dos direitos civis. A constituição de 1988 representa o ápice do Estado como meio de expansão de direitos em nossa história e institucionalizou, por aqui, o modelo social-democrata.

No entanto, esse modelo extensivo de Estado demanda alta capacidade de financiamento, algo cada vez menos factível desde o início da crise de 2008. Retomo a pergunta inicial: o que fazer com o Estado? O desmanche do Estado promovido por governos como o de Javier Milei na Argentina, Donald Trump nos EUA e Jair Bolsonaro no Brasil não é aleatório e visa as instituições garantidoras dos direitos civis, rotuladas por eles como “ideologizadas”. Não melhora em nada a capacidade de produzir políticas públicas democráticas, mas é uma resposta populista à insatisfação com o Estado.

E qual a alternativa que os governos democráticos apresentaram a isso? A retomada do Estado como ele era pré-2008. O resultado, como vimos na baixa aprovação de Joe Biden e na derrota de Kamala Harris, não é nada diferente da baixa consistente de popularidade do governo Lula. Voltar ao passado com Biden e Lula foi importante para mostrar que os democratas ainda têm capacidade de mobilização e de agenda. Mas falharam em não apresentar uma resposta à insatisfação generalizada contra o Estado.

Os democratas precisam agora se organizar em torno de sua própria proposta de reforma do Estado, que busque preservar os expressivos avanços conquistados nos últimos séculos e que avance sobre os rumos que as democracias têm tomado. Para Adam Przeworski, o caminho seria de diminuição brutal das desigualdades. Para Steven Levisky e Daniel Ziblatt, o caminho é em direção a uma democracia multirracial. Há muitas possibilidades, mas todas têm o pré-requisito de se manterem ativas as regras do jogo democrático.

Não será fácil recuperar a confiança no Estado, ainda mais sem um projeto claro alternativo ao neototalitarismo tecnofeudal. Democratas de todos os vieses do mundo entendem que é através do Estado que políticas públicas podem ser executadas, e que só com instituições democráticas sólidas e muitos mecanismos de freios e contrapesos pode-se garantir direitos e se combater de fato as mazelas da sociedade. É por esta ciência que os democratas se encontram perdidos, defendendo o status quo, enquanto radicais destroem nossas instituições, canalizando a lógica do “que se vayan todos”, que por aqui explodiu em 2013 e ainda segue no sentimento coletivo.

E há pressa: não apenas pela proximidade das eleições em 2026, tanto aqui quanto as midterms (eleições legislativas de meio de mandato) nos EUA, mas porque a democracia é lenta, enquanto o autoritarismo é rápido. Há infindáveis agendas a serem protegidas e ampliadas. Mas, sem um modelo próprio de reforma do Estado que seja comum a todos os democratas, sucumbiremos à agenda destrutiva da direita radical. O momento é de ação, não de nostalgia.

 

 

‘Ainda Estou Aqui’ abre portas para mudanças na sociedade, por Sylvia Colombo

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Obras como a de Walter Salles, que venceu Oscar de melhor filme internacional, iluminam as consciências

Sylvia Colombo, Historiadora e jornalista especializada em América Latina, foi correspondente da Folha em Londres e em Buenos Aires, onde vive.

Folha de São Paulo, 09/03/2025

“Quem vai atrás de osso é cachorro”, já disse Jair Bolsonaro, referindo-se à busca por desaparecidos da ditadura militar brasileira (1964-1985).

Quando contei isso para Mariela Fumagalli, diretora da Eeaf (Equipe de Antropologia Forense Argentina), fez-se uma pausa na conversa. “Não é possível que uma parte considerável da sociedade se expresse dessa maneira. Se na Argentina há quem concorde com essa visão, ela é minoritária e envergonhada”, me respondeu.

A entidade que ela comanda trabalha desde 1984 na busca, recuperação, identificação e restituição da identidade das vítimas do terrorismo de Estado no país. Desde sua criação, revelou os nomes de 840 pessoas, algumas enterradas em cemitérios clandestinos, outras encontradas às margens do rio da Prata por terem sido arremessadas nos chamados “voos da morte”. Todo ano, esse número aumenta, porque o trabalho nunca foi interrompido.

Hoje, a Eaaf exporta sua expertise. Já ajudou em casos ocorridos na América Central e, recentemente, na identificação de soldados argentinos enterrados sem nome nas Ilhas Malvinas. “Podemos atuar a pedido de entidades, governos ou mesmo de particulares”, afirma Fumagalli.

A Eeaf não é a única organização não governamental que se dedica a esclarecer os crimes da ditadura. Também há as Avós da Praça de Maio, que buscam netos, ou seja, filhos de desaparecidos, e que para isso montaram um rico arquivo de DNA de pais, mães e avós para cotejar com pessoas que as procurem, em dúvida, sobre sua identidade.

A Argentina usa a interpretação de que crimes cometidos por civis prescrevem, mas não os perpetrados pelo Estado. Por conta disso, já foram condenados mais de mil repressores, num país que há muito derrubou leis de anistia.

Esses órgãos não dependem do governo de turno para continuar. Claro que, durante gestões de direita ou de centro-direita, esse trabalho encontra mais dificuldade, mas nunca deixa de ser feito. A razão, conta Fumagalli, é que, apesar de baseados em políticas públicas tomadas nos anos 1980, “foram apoiados e incorporados por uma sociedade”. E consciente por quê? Porque se informa por livros, filmes e outros instrumentos que fazem com que o período nunca caia no esquecimento.

Durante a gestão de Maurício Macri, por exemplo, houve a ideia de aliviar a pena de genocidas de avançada idade, ao incorporar em suas condenações o período em que ficaram em prisão preventiva. A manifestação popular foi tão grande que tomou as ruas do centro e cercou o Congresso. A ideia foi retirada de discussão.

Já o atual presidente, Javier Milei, adepto da teoria dos dois demônios, ou seja, que coloca em mesmo patamar os crimes cometidos por guerrilheiros e pela repressão, foi alvo de intensas manifestações, ainda durante a campanha eleitoral. Após mais de um ano de governo, não voltou a falar sobre o assunto.

“Talvez o caso de Rubens Paiva, se tivesse ocorrido na Argentina, tivesse uma solução mais rápida”, diz Fumagalli.

A diferença, na Argentina, não foi apenas o fato de que pesou muito a desmoralização dos militares nas Malvinas. Houve uma pressão da sociedade civil para esclarecer a verdade.

É nesse sentido que filmes como “Ainda Estou Aqui” são importantes. Eles iluminam as consciências. “Não é à toa que a Argentina tem uma longa história no que diz respeito a filmes sobre o período”, diz Fumagalli.

 

O problema é o câmbio, por Luís Nassif

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Fazenda e BC andam em cima de uma corda bamba. As pressões contra Fernando Haddad e Gabriel Galípolo podem ter um custo muito alto.

Luís Nassif – GGN – 27/02/2025

A bala de prata para derrubar o governo é a volatilidade do câmbio. Antecipo a conclusão, antes de expor o problema, para que sirva de alerta especialmente para os que trabalham, nesse momento, para enfraquecer o Ministro Fernando Haddad e flexibilizar a política monetária.

Está havendo uma enorme confusão nessa insistência para o Banco Central utilizar instrumentos macroprudenciais para controlar a inflação. Esses instrumentos são, por exemplo, requisitos de capital adicionais dos bancos, limites de exposição ao crédito, políticas de provisões dinâmicas etc.

Todas essas propostas partem do pressuposto que a inflação se deve ao aquecimento da demanda, o chamado hiato do produto.

Estima-se um PIB potencial – o nível máximo de produção que uma economia pode sustentar ao longo do tempo, utilizando plenamente seus recursos (como mão de obra, capital e tecnologia) sem gerar pressões inflacionárias. Depois, compara-se com o Produto Real. Se o Hiato do Produto (a diferença) é positiva, julga-se que a economia está aquecida e, portanto, tem que ser contida. E o caminho é o aumento da taxa Selic.

Parte superior do formulário

Modelo similar é o Hiato do Crédito – uma medida para saber se a expansão do crédito, não só bancário, mas também via mercado de capitais, está desviando do que seria a tendência. 

Monta-se uma equação como se a inflação pudesse ter uma calibragem fina: se aumentar a Selic em xis, haverá uma queda de y na atividade, trazendo a inflação de volta aos limites fixados pelas metas inflacionárias.

Menciona-se o Adicional Contracíclico de Capital Principal (ACCP), um instrumento que permite conter o crédito dos bancos em período de expansão e liberar em período de escassez.

É o câmbio, estúpido!

Só há um engano central: o aumento da Selic não tem nada a ver com o nível de atividade, assim como o aumento da inflação. Na verdade, nem arranha.

Vamos a dois exemplos simples. Primeiro, o custo do financiamento para pessoa física.

  1. A taxa de juros média, nos financiamentos pessoais, está em 150% ao ano, ou 7,93% ao mês.
  2. Se eu adquirir um eletrodoméstico de R$1 mil, em 12 prestações, cada prestação sairá por R$132,19.
  3. Suponha que, com as medidas macroprudenciais, consiga o mesmo efeito de uma alta de 2 pontos percentuais da Selic – ao ano. A taxa anual do financiamento saltará para 152%, ou 8,01% ao mês.
  4. O valor da prestação sairá de R$ 132,19 para R$132,69 – 50 centavos. Alguém vai deixar de comprar?

Agora, o custo do financiamento de capital de giro para uma média empresa.

  1. A taxa de juros média está em 29%, ou 2,14% ao mês
  2. Um financiamento de R$ 100 mil, ao final de 6 meses sairá por R$113.578,00.
  3. Se aumentar em 2 pontos a taxa média, o empresário terá que pagar R$114.255,00, ou 0,77% a mais.
  4. Supondo que o custo financeiro corresponda a 10% do preço final do produto, haverá um aumento de 0,07% no custo de produção.

Basta um pouco de bom senso. É evidente que uma Selic de 2 dígitos desestimula investimento. Mas um aumento adicional de 50 centavos no valor de uma prestação vai desestimular o consumo? Um aumento adicional de menos de 1% no custo de fabricação de um produto vai desestimular a produção? Os consumidores vão deixar de comer mais alface ou mais feijão.

É evidente que não.

Quando fixa a Selic, o Banco Central mira um único alvo: a taxa de câmbio. A inflação brasileira tem uma causa central, além dos problemas ambientais: a volatilidade do câmbio. Aumentando os juros, entram mais dólares, há uma apreciação do real reduzindo os preços dos produtos comercializáveis – importados ou exportáveis.

O câmbio é essencial para o investimento produtivo externo, para as decisões de produção interna ou substituição por importados. Um câmbio estável é ponto central para qualquer tentativa de crescimento.

Há décadas venho apontando essa loucura de uma política monetária cuja variável de ajuste é o câmbio. Mas não dá para escapar da armadilha com voluntarismo.

Ocorre que o sistema de metas inflacionárias tornou-se dominante nas maiores economias. E todas elas se tornaram alvos dos grandes movimentos especulativos do capital.

Tudo é regido pelo chamado “carry trade” – uma estratégia pela qual o investidor toma emprestado em uma moeda, com uma taxa de juros mais baixa, e investe em outra moeda. Quando o investidor considera que o carry de uma moeda é baixo – isto é, está rendendo pouco -, ele tende a sair do ativo. E aí o câmbio explode.

Na grande corrida de dezembro passado, o carry brasileiro estava abaixo do carry do México e da África do Sul. Montou-se uma operação para trocar moedas, tirando investimentos do real e levando para os demais países. E aí o cartel do câmbio deitou e rolou.

O que esse fato ensina? Não adianta um país tomar uma medida de redução do carry, porque o dinheiro irá para outro país. 

A situação brasileira só se acalmou quando a Selic subiu, o carry ultrapassou o do México e África do Sul, e o BC desmontou posições de derivativos com atuações de mercado. Depois, conseguiu gradativamente normalizar o câmbio.

As saídas estruturais

Nenhum país conseguirá sair sozinho dessa armadilha. As reclamações sobre o custo de carregamento do dólar são unânimes, vão do Brasil à África do Sul. Só uma ação articulada das principais economias conseguirá conter o ímpeto do dólar, ainda mais agora, sob a gestão errática de Donald Trump.

É por isso que conversas, com BCs da África do Sul, Índia e outros países, é o primeiro passo para controlar a hidra de Lerna do livre fluxo de capitais.

É importante entender que Fazenda e BC andam em cima de uma corda bamba. As pressões contra Fernando Haddad e Gabriel Galípolo podem ter um custo muito alto.

Se o BC apertar as medidas macroprudenciais, e não cuidar do carry, não segura o câmbio. E se não segurar o câmbio, a inflação vai para o espaço e acabará com qualquer possibilidade eleitoral em 2026.

Além disso, pelas regras do ACCP, a contração de crédito ocorreria só em 12 meses. Ou seja, com a economia sofrendo com a Selic em dois dígitos, viria a trombada do trancamento do crédito. E a inflação continuaria sendo sacudida pelo câmbio.

 

Produto Interno Bruto (PIB) – 2024

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O ano de 2024 foi marcado por grandes alterações no ânimo da economia brasileira, percebemos grandes pressões para fragilizar a política econômica, com setores fortes e influentes se alterando para que a economia entrasse em crise, com recessão e o incremento da fragilização política, que poderiam inviabilizar a reeleição do Presidente da República. Nestes escaninhos ouvimos todas as críticas, xingamentos, notícias falsas e até o ressurgimento do impedimento do presidente Lula, que na opinião, se acontecesse, jogaria a sociedade brasileira em graves desajustes institucionais.

Ao analisar a sociedade brasileira, percebemos uma fragilização institucional preocupante, de um lado vislumbramos uma justiça lenta e onerosa, onde os bagrinhos estão encarcerados e os poderosos continuam se safando de suas responsabilidades, gerando uma sensação de impunidade crescente e uma perda de credibilidade do sistema judiciário. De outro, percebemos um sistema que apresenta grande partidarização, muitos buscando uma candidatura para uma futura carreira política, comprometendo toda uma institucionalidade.

Hoje, o assunto do momento foi a divulgação, feita pelo IBGE, do Produto Interno Bruto (PIB) referente ao ano de 2024, com um crescimento de 3,4%, um dos melhores resultados da última década e, no cenário global, nos colocando na colocação de 16◦, uma notícia alvissareira para a sociedade e, principalmente para o governo federal, num momento em que a popularidade do presidente não é das melhores.

Embora percebamos um dado positivo para a economia nacional, observamos uma desaceleração no último trimestre do ano anterior, com uma quase estagnação econômico, fazendo com que o novo ano nos traga informações de um possível baixo crescimento econômico, gerando redução dos investimentos produtivos e reduzida criação de emprego.

indústria da transformação foi um dos destaques positivos, com crescimento de 3,8% no acumulado de quatro trimestres, a melhor taxa em uma década. O setor de serviços também teve forte expansão, impulsionado por TI, comunicação e comércio. A agropecuária trouxe dados preocupantes, recuou 3,2% no ano, mas seu impacto sobre o PIB foi limitado, dado que o setor representa 7,8% da economia.

Outro dado interessante foi o consumo das famílias, que subiu 4,8% no ano, sustentado pelo mercado de trabalho aquecido e pelo crédito ainda disponível, apesar dos juros elevados. Já os investimentos (Formação Bruta de Capital Fixo) avançaram 7,3%, representando um dos pontos mais positivos da economia no período.

O setor externo da economia brasileira apresentou dados que nos geram preocupações, ainda num momento de instabilidades do comércio global em decorrência das decisões do governo norte-americano, as exportações desaceleraram no quarto trimestre, enquanto as importações cresceram quase 15% no ano, resultando em um déficit em conta corrente de aproximadamente 2,5% do PIB.

O aumento das taxas de juros no Brasil e a tendência de desaceleração global devem afetar o crescimento, com projeção abaixo de 2% para este ano. Além disso, o impacto da política fiscal mais contracionista e a alta nos preços dos alimentos no final de 2024 podem afetar o consumo, além de perder apoio político de setores importantes para a eleição de 2022.

Ao olhar para o cenário mundial, percebemos que os EUA criaram 150.000 vagas, dados que estavam dentro das expectativas. Esse movimento pode impactar a política do Federal Reserve, aumentando a expectativa de cortes na taxa de juros ao longo de 2025.

O governo zerou tarifas de importação de diversos alimentos, como café, açúcar e biscoitos, para aliviar a inflação, que gerou graves constrangimentos e preocupações referente a popularidade do governo federal, perdendo apoio de setores significativos para a eleição de 2026, todas essas medidas visam a redução dos preços do consumidor final, mas levanta debates sobre sua eficácia e o impacto na indústria local.

O cenário agora é de apreensão, com a observação sobre como a economia reagirá à combinação de desaceleração global, política monetária mais restritiva, mudanças no comércio exterior e ajustes fiscais. Apesar dos indicadores trazidos pelo IBGE, o crescimento do PIB foi positivo e, ao mesmo tempo, precisamos refletir sobre o comportamento econômico em 2025.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre e Doutor em Sociologia.

 

 

 

Trumpismos – radiografia da extrema direita, por Michael Lowy

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Michael Lowy –  A Terra é Redonda – 18/02/2025

Prólogo do livro de Miguel Urbán Crespo

A espetacular ascensão da extrema direita se tornou, nas últimas décadas, um fenômeno global, que se reforça e se espalha cada vez mais diante da crise das democracias liberais. De fato, o que poderia ser definido como “trumpismo” sofreu sérias derrotas eleitorais recentes, como exemplificado pelo caso do Brasil e dos Estados Unidos, mas ainda mantém uma influência considerável e continua trabalhando ativamente para retomar o poder.

Além disso, na Europa, governa, de formas diversas, na Hungria, Polônia e Itália, e representa uma séria ameaça eleitoral e política na França, Espanha ou Alemanha. Se olharmos para o Chile, observamos que os partidários do pinochetista José Antonio Kast ganharam as eleições para o Conselho Constituinte. Os exemplos são numerosos em muitas partes do mundo: Índia (Narendra Modi), Turquia (Recep Tayyip Erdoğan), Israel (Benjamin Netanyahu) etc.

Até agora, a maioria dos trabalhos sobre esse tema tem se limitado a realizar estudos de caso em apenas um país. Existem poucas pesquisas sérias que tentam abordar o fenômeno em escala global. O brilhante ensaio de Miguel Urbán Crespo é, sem dúvida, um dos mais amplos, profundos e atualizados trabalhos até agora publicados, pelo menos aqueles que surgem de uma leitura política e ativista. Seu ponto de vista radical, antifascista e anticapitalista não é uma limitação, e sim uma condição fundamental para entender a lógica do autoritarismo reacionário, bem como para pensar as formas de combatê-lo.

Como Miguel Urbán destaca, não se trata apenas de uma ressurreição do antigo fascismo dos anos 1930, mas de algo novo, mesmo que encontremos nele alguns traços do fascismo clássico. O termo “trumpismo” tenta destacar esse componente inovador, embora compreendendo que a onda reacionária pode assumir formas muito diferentes do modelo americano.

Suas características comuns seriam, na opinião do autor: nacionalismo autoritário, xenófobo, demagógico, machista, islamofóbico (menos em suas manifestações fundamentalistas islâmicas), antissemita (exceto nos casos de neofascismo sionista) e negacionista climático. Poderíamos adicionar alguns outros adjetivos: homofóbico, racista, conspiracionista, anticomunista (ou antiesquerda em todas as suas acepções) etc.

Além das múltiplas formas que podem assumir de acordo com os países e culturas: neoimperialismo, iliberalismo, populismo punitivista ou excludente, fundamentalismo religioso… No entanto, para ser sincero, não gosto do termo “populismo”, que gera mais confusão do que clareza; prefiro o outro conceito que Miguel Urban usa para se referir às políticas punitivistas e excludentes (o muro na fronteira): a necropolítica.

Para definir essa extrema direita, pessoalmente uso o termo “neofascismo”, que enfatiza ao mesmo tempo a diferença e a semelhança com o fascismo histórico. O conceito proposto por Miguel Urbán, “autoritarismo reacionário”, parece-me perfeitamente adequado. Ele reúne duas das características principais do fenômeno, comuns a suas várias manifestações, apesar de suas evidentes diferenças, o que permite explicar o surgimento recente do “Frankenstein” da extrema direita.

A principal hipótese do autor é de que a crise do sistema capitalista, assim como o surgimento de políticas neoliberais cada vez mais autoritárias e afastadas das democracias liberais estabelecidas após a Segunda Guerra Mundial, criou as condições para o surgimento do iliberalismo antidemocrático e do autoritarismo reacionário, que de forma alguma questionam o paradigma econômico neoliberal.

Considero a análise muito acertada, desde que não confundamos os dois fenômenos: Emmanuel Macron e Donald Trump representam duas formas políticas radicalmente distintas, por mais que apresentem traços comuns, começando pelo fato de ambos compartilharem uma fé cega no neoliberalismo. Outra hipótese que me parece interessante é a proposta por Daniel Bensaïd há alguns anos: a globalização capitalista neoliberal, ao enfraquecer os Estados nacionais, provoca “pânicos identitários” que são instrumentalizados pela extrema direita.

Ambas as ideias se baseiam em outra das contribuições mais interessantes do livro que você tem em mãos, ou seja, a análise dos mecanismos utilizados pelo “trumpismo”: as fake news, as guerras culturais (“morte ao woke!”), o conspiracionismo, bem como o terrorismo. Alguns desses métodos já eram usados pelo fascismo clássico, mas agora assumem novas formas, sem precedentes, como o uso massivo das redes sociais – outrora o rádio, no caso do nazismo ou do fascismo italiano – para implementar o quadro autoritário.

Como resistir a essa onda reacionária global? Miguel Urbán reconhece que não há uma receita mágica para enfrentar esse combate indispensável, mas se refere a algumas vitórias importantes – mesmo que às vezes efêmeras – contra o neofascismo e a extrema-direita: a dissolução do Aurora Dourada na Grécia, os avanços dos grandes movimentos feministas no Chile e na Polônia, o surgimento do Black Lives Matter nos Estados Unidos etc.

Este livro é, em última análise, uma ferramenta valiosa para entender e combater – a partir da filosofia da práxis marxista, ambos são inseparáveis – o surgimento da internacional reacionária.

Michae Löwy é diretor de pesquisa em sociologia no Centre nationale de la recherche scientifique (CNRS). Autor, entre outros livros, de Franz Kafka sonhador insubmisso (Editora Cem Cabeças)

Referência

Miguel Urbán Crespo. Trumpismos: neoliberais e autoritários – radiografia da direita radical. Usina Editorial, 2025, 312 págs. Tradução de Valerio Arcary.

A questão da desigualdade americana, por Wagner Sousa

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Wagner Sousa – OUTRAS PALAVRAS – 28/02/2025

O “sonho americano” desmoronou com a economia financeirizada e fuga de indústrias para o exterior. A renda estagnou e a precarização aumentou. E o medo de outras crises assola a população. Isto alimentou o ressentimento social, capitalizado por Trump

Uma das características das mudanças engendradas na economia política dos países ricos, desde o início da década de 1980, tem sido a concentração de renda. Do “consenso keynesiano”, que vigorou do pós-guerra ao fim dos anos 1970, (o republicano Richard Nixon disse, certo momento, “somos todos keynesianos”), que tinha no investimento público e adição dos ganhos de produtividade aos salários duas de suas principais “âncoras”, a economia passou a ser gerida tendo como premissas de sua eficiência a redução do papel do Estado, e portanto do investimento público, e a “financeirização” da gestão da riqueza, na qual os lucros de curto prazo passaram a ditar a estratégia empresarial. Assim, a contenção de gastos das empresas, com demissões e redução de custos salariais, está, desde então, no cerne destes planos.

Na virada dos anos 1970 para a década de 1980, viu-se o aumento brutal da taxa de juros pelo Federal Reserve, então dirigido por Paul Volcker, no intuito de domar a inflação e reafirmar o papel do dólar como moeda reserva mundial e do lugar central do sistema financeiro dos EUA no mundo. A “revolução conservadora” de Ronald Reagan, no entanto, tirou a economia norte-americana da recessão com um “keynesianismo militar”, resultado de forte expansão dos gastos de defesa. Este investimento na capacidade bélica cumpriu a função de dar sustentação necessária para a recuperação da economia e debilitar a economia da URSS, provocando o colapso de seu regime político, um objetivo geopolítico, portanto. Reafirmação da supremacia da moeda e das armas dos EUA em nível global compunham o processo muito bem descrito no artigo “A retomada da hegemonia norte-americana”, obra da saudosa professora Maria da Conceição Tavares.

A vitória norte-americana na Guerra Fria, com o fim da URSS e do bloco socialista e a reunificação da Alemanha, fez com que a “hegemonia unipolar” dos EUA se estabelecesse a partir dos anos 1990 e com esta a consolidação do chamado “neoliberalismo” tendo como seus principais objetivos as liberalizaçôes comercial e financeira, as privatizações e desregulamentações das normas vistas como “empecilhos” ao investimento privado. A economia das “bolhas de ativos” com inflação dos valores de ações (a “bolhapontocom” dos anos 1990) e imóveis (“bolha imobiliária” dos anos 2000) substituiu a dinâmica anterior da economia com crescimento contínuo dos salários reais e “aburguesamento” da classe trabalhadora e sua integração à classe média. O proletariado norte-americano viu seus empregos industriais escassearem ao se deslocarem para o exterior, pela busca da indústria por mão de obra mais barata. Novos empregos surgiram na “economia de serviços”, porém, na maioria das vezes, com remuneração pior, condições de trabalho precarizadas, em situações que variam das jornadas extenuantes aos part time jobs, que fazem com que muitos trabalhadores trabalhem menos horas do que gostariam e ganhem, em consequência, salários menores. O trabalho nos Estados Unidos se tornou, em grande medida, mais precário, instável e com remuneração menor.

O filósofo britânico John Gray em Falso Amanhecer – os equívocos do capitalismo global descreveu a realidade do capitalismo norte-americano de fins dos anos 1990:

“É interessante notar que essas ansiedades não são um efeito colateral da estagnação econômica. Ao contrário. Durante os últimos quinze anos, a economia norte-americana manteve-se em uma expansão quase contínua. A produtividade e a riqueza nacional cresceram firmemente. A reestruturação da indústria americana deu-lhe condições de recuperar mercados que se pensava estarem definitivamente perdidos para o Japão. Como na Inglaterra de meados da era vitoriana, a liberalização dos mercados na América do final do século 20 construiu um espetacular – e não reproduzível – boom econômico. Ao mesmo tempo, a renda da maioria dos americanos estagnou. Mesmo para aqueles cujas rendas aumentaram, o risco econômico pessoal cresceu visivelmente. A maioria dos americanos tem pavor de um distúrbio econômico do qual – suspeitam – nunca mais se recuperarão. Poucos pensam agora em termos de uma ocupação vitalícia. Muitos preveem, não sem razão, que suas rendas cairão no futuro. Estas, evidentemente, não são circunstâncias que alimentam uma cultura de satisfação (GRAY, 1998, p. 146)”.

Também analisando esta problemática, o economista francês Thomas Piketty, em O Capital no século XXI, obra de 2013 que teve grande impacto no debate global sobre a crescente desigualdade, menciona, sobre a concentração de riqueza no extrato do 1% mais rico da população:

“Nos anos 1970, a parcela do centésimo superior na renda nacional era muito próxima nos vários países. Ela estava entre 6 e 8% nos quatro países anglo-saxões estudados, e com os Estados Unidos não era diferente, os americanos eram até ligeiramente ultrapassados pelo Canadá, que atingia 9% (…) Trinta anos depois, no começo dos anos 2010 a situação é totalmente diferente. A parcela do centésimo superior atingiu quase 20% da renda nacional nos Estados Unidos (…).” (PIKETTY, 2013, p. 307).

Piketty explica que nos países anglo-saxões a concentração de renda foi mais pronunciada do que na Europa continental e no Japão, onde também ocorreu. No Reino Unido e no Canadá o centésimo superior passou a ter entre 14-15% da renda nacional e na Austrália entre 9-10%. Japão e França passaram de 7% para 9%, Suécia, de 4% para 7% e Alemanha de 9% para 11%. (PIKETTY, 2013, p. 308). Em todo o mundo rico houve concentração de renda no topo da pirâmide social, mas foi nos EUA onde aconteceu com mais intensidade.

Todo esse processo de polarização de renda e, como consequência, polarização social, visível na paisagem de muitas partes do interior dos EUA, com suas fábricas abandonadas e cidades outrora pujantes, decadentes, alimentou forte ressentimento social daqueles que “ficaram para trás”. A candidatura de Donald Trump, desde quando despontou nas primárias republicanas para a eleição de 2016 e o seu mote de “fazer a América grande novamente” tem relação com esta frustração das massas, especialmente nos eleitores brancos pobres, de que as oportunidades econômicas e o caminho para a ascensão social estavam disponíveis e não mais estão.

A crescente polarização social, portanto, vem alimentando a extrema direita e enfraquecendo consensos existentes na sociedade e na esfera política a respeito de políticas públicas internas e da política externa. John Gray trata, no livro aqui mencionado, do apelo nacionalista da pré-candidatura de Patrick Buchnann pelo Partido Republicano ou da candidatura independente de Ross Perot, que apareceram nos anos 1990 como sintomas desta insatisfação, mas então avaliava como inviáveis candidaturas tão críticas ao status quo bipartidário. Como sabemos, era questão de tempo.

Wagner Sousa, Mestre em Sociologia pela UFPR. Doutor em Economia Política Internacional pela UFRJ. Pós-Doutoramento em Economia Política Internacional pela UFRJ. Idealizador e Editor do site América Latina Colaborador do Boletim Observatório do Século XXI.

 

O enigma do Centrão na política brasileira, por Francisco Pereira de Farias

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Francisco Pereira de Farias – A Terra é Redonda – 28/02/2025

Os mandatários do capital financeiro-bancário buscaram deslocar o centro da hegemonia no aparelho de Estado, transferindo-o do Executivo para o Legislativo

O clientelismo político advém uma forma de se reforçar as solidariedades políticas no interior da classe dominante, já que os benefícios distribuídos (cargos, verbas, equipamentos) são signos de compensações econômicas, feitas pela fração hegemônica, aos interesses das frações subordinados, em troca da estabilidade política. Em outras palavras, a barganha de vantagens materiais imediatas por apoios políticos é o aspecto manifesto das relações intergovernamentais, partidárias e eleitorais; porém, mais profundamente, são os interesses da fração hegemônica que, em boa medida, constituem o conteúdo latente da relação dos aparelhos de Estado, da competição dos partidos e das disputas eleitorais.

O capital financeiro internacional e o capital bancário nacional conquistaram o executivo federal nas eleições presidenciais de 2018. A expressão dessa aliança hegemônica foi a política econômica liderada pelo ministro da fazenda Paulo Guedes, cujos eixos representavam uma radicalização do programa neoliberal: desregulação da economia, privatizações, monetarismo. A adoção de uma composição parlamentar e ministerial por meio dos partidos de clientela era uma maneira coerente com essa política hegemônica, centrada na estratégia de redução de custos, pois contornava os acordos mais amplos com as forças sociais subordinadas que significassem sacrifícios econômicos do anel de interesses hegemônicos, como eram os casos da política ambiental restritiva ou da política salarial expansiva.

A tendência dessas forças alinhadas ao neoliberalismo extremado foi de minimizar o papel dos partidos políticos e dos grupos sociais na canalização de demandas gerais junto ao aparelho de Estado, opondo-se a uma política de pacto social ou aliança de classes. Os mandatários do capital financeiro-bancário buscaram deslocar o centro da hegemonia no aparelho de Estado, transferindo-o do Executivo para o Legislativo.

Como o líder do executivo, no Brasil, é eleito pelo voto majoritário, ele tem o incentivo para a discussão dos temas estratégicos ou nacionais da política governamental; diferentemente, a eleição proporcional dos parlamentares os induz a uma perspectiva imediatista ou fragmentária das questões da política nacional, em vista do retorno eleitoral. O deslocamento para a dominância do Legislativo se traduzia na tática de controlar o processo orçamentário do governo, por meio principalmente das mudanças nos dispositivos de emendas parlamentares.

Em 2016, em um contexto de crise da hegemonia neodesenvolvimentista (Boito Jr, 2018), a oposição parlamentar conseguiu aprovar a mudança constitucional que tornava impositiva a emenda orçamentaria individual. Este foi o primeiro passo num percurso que visava retirar do Executivo o controle político do processo orçamentário.

Vale observar que desde o ano de 2000 havia o projeto do Senador Antônio Carlos Magalhães de tornar obrigatória a emenda parlamentar individual. No entanto, tal proposta não entrara em pauta, porque a coalizão neodesenvolvimentista, fiadora de uma política de acordos mais amplos, estava comprometida com os dispositivos das emendas coletivas (bancada, comissões). Durante o Governo Lula II (2007-2010) o peso das emendas coletivas nas despesas discricionárias foi em média de 60,3%; já no Governo Bolsonaro (2019-2022), a média dessas emendas ficou em 28, 4% (Faria, 2023).

Em 2019, as Emendas Constitucionais 100 e 102 aprovaram, respectivamente, as impositividade das emendas orçamentárias das bancadas estaduais e a obrigatoriedade de execução das despesas primárias discricionárias, que são principalmente os investimentos. Além disso, o Congresso Nacional tornou impositivas as emendas das comissões permanentes do Senado e da Câmara e estendeu o papel do relator-geral no processo orçamentário. Por fim, ainda em 2019, foi aprovada a EC 105 instituindo as transferências especiais ou transferências com finalidade definida, que independiam de convênio ou contrato com o ente beneficiado, permitindo ao parlamentar doar ao município que desejasse, sem destinação específica e sem fiscalização do Tribunal de Contas da União, até a metade do valor de suas emendas orçamentárias. Isso explica que as despesas de emendas individuais no orçamento federal tenham ultrapassado as emendas coletivas ao longo do Governo Bolsonaro, invertendo a tendência do ciclo de governos Lula e Dilma.

Porém, o dispositivo por meio do qual o poder legislativo mais avançou no controle político do processo orçamentário foram as atribuições do relator-geral à peça orçamentária de governo. Em 2020, foi estabelecido o identificador de Resultado Primário para discriminar as emendas do relator-geral (RP-9). Feita a triangulação deste dispositivo com as normas constitucionais e as regras regimentais, na prática a emenda de relator-geral se torna quase impositiva, com a regulação da possibilidade de indicação dos beneficiários e da ordem de prioridades de tais emendas. Disso resulta o crescimento exponencial do montante de recursos das emendas do relator-geral: se durante os Governos Lula I e II foram aplicados, respectivamente, um total de R$ 25 bilhões e R$ 30 bilhões; no Governo Bolsonaro, esse total chegou a R$ 93,2 bilhões.

Compreende-se que, num contexto de limitação democrática, no qual as forças hegemônicas tendem a ressaltar os partidos clientelísticos e os interesses locais ou paroquiais, tenha-se o aumento do montante orçamentário para as emendas individuais, em detrimento das emendas coletivas. E mais importante nesta tática individualista é a concentração dos recursos nas emendas do relator-geral, o qual normalmente está subordinado à presidência da Câmara Federal.

Porém, não estava excluído o conflito no interior da coalizão governante, que no Governo Bolsonaro controlava tanto o Executivo e quanto o Legislativo, promovendo os interesses do grande capital financeiro-bancário com relativo equilíbrio dos poderes ou baixo nível de conflitos, embora a tendência fosse de dominância do Legislativo. Diante do avanço do Congresso Nacional, ou seja, os representantes diretos (financiados pelas campanhas eleitorais) da aliança hegemônica no processo orçamentário, era previsível que houvesse a reação do Executivo, os seus representantes indiretos (relacionados ao funcionário de carreira). Uma manifestação disso foi o julgamento pelo STF de inconstitucionalidade da emenda de relator-geral em dezembro de 2022. Mas não houve um retorno ao status quo anterior em termos de prerrogativas orçamentárias do Executivo, permanecendo o cenário de limitação de suas atribuições orçamentárias; o que se fez foi impedir a continuidade da nova “ferramenta de composição” da coalizão governativa (RP-9), desenvolvida e instrumentalizada a partir do Legislativo (Faria, 2023).

Em contexto de relativa consolidação da democracia, na década de 1990, em que as forças hegemônicas, defensoras de um neoliberalismo moderado, não se mostravam opostas ao regime democrático, dando importância aos partidos políticos e os grupos sociais, tinha-se o baixo índice de emendas individualizadas e uma baixa correlação entre a execução das emendas individuais e os votos dos parlamentares aos projetos de governo (Figueiredo; Limongi, 2005). O desenvolvimento de um sistema partidário forte pode atenuar os ciclos eleitorais orçamentais, particularmente num sistema eleitoral majoritário, ao reorientar a competição legislativa para os temas mais estratégicos de desenvolvimento do país.

Pode-se, porém, levantar a hipótese de que, neste contexto de política neoliberal e estabilidade democrática, a força da barganha clientelista tenha se deslocado das emendas individuais para as emendas coletivas, expressando uma sofisticação das práticas clientelistas. Como observa um analista, a grande vantagem das emendas coletivas, que foram concebidas para atender os interesses maiores de Estados, regiões ou comissões setoriais, seria supostamente estarem livres de motivações escusas [sic.!], já que teriam que ser objeto de negociação formal entre grupos de parlamentares (com exigências de quórum mínimo). Infelizmente, com o passar do tempo, as emendas coletivas passaram a ser acometidas dos mesmos males das emendas individuais (Tollini, 2008, p. 218).

Torna-se previsível que a coalizão governante se utilizasse do avanço das emendas parlamentares no orçamento federal como um meio de fortalecer sua coesão política, a despeito de uma retórica oposta a isso. O Presidente Jair Bolsonaro negava que o aumento de liberação de emendas parlamentares fosse uma prática da “velha política”: “tudo o que é liberado está no orçamento. (…) Nada foi inventado, não tem mala, não tem conversa escondidinha em lugar nenhum, é tudo à luz da legislação” (Valor econômico,12\07\2019).

Tem-se ainda um discurso de criminalização do clientelismo político, tentando se afastar de uma prática que é inerente às democracias capitalistas. Mas efetivamente o que se está tentando ocultar é a conduta de regressão às formas individualistas dessa barganha política, expressas nas emendas parlamentares individuais e as transferências especiais que independem de destinação específica e nas emendas da relatoria-geral. Um efeito disso é uma mudança no papel do legislativo na definição de políticas públicas, voltando-se para as prioridades e as metas de curto prazo e medidas fragmentárias, cujos rendimentos eleitorais podem ser maiores.

Uma manifestação concreta dessa tendência política foi alardeada em reportagem do Jornal O Estado de S. Paulo, em maio de 2021, referindo ao caso das emendas de relator-geral, apelidadas de “orçamento secreto”:

Secretamente, esses recursos extras foram concentrados num grupo de parlamentares. É um dinheiro paralelo ao previsto nas tradicionais emendas individuais a que todos os congressistas têm direito, aliados ou oposicionistas. […] Na Região Norte, a cidade de Santana foi a mais beneficiada por recursos do orçamento secreto. Por indicação do senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), o município firmou contrato de repasse de R$ 95,7 milhões para a pavimentação de ruas, que teriam como destino Macapá se o irmão dele, Josiel Alcolumbre (DEM), tivesse vencido a eleição para prefeito da capital amapaense. Segundo fontes, para não turbinar o mandato do adversário da família, Alcolumbre redirecionou o investimento.

A despeito de seu discurso sobre a “nova política”, o que na prática poderia significar uma oposição à política clientelista, o Governo Bolsonaro respondeu de modo específico o traço marcante da governabilidade, que são as coalizões parlamentares e ministeriais. Tendo feito a presidência da Câmara dos Deputados, a bancada governista recebeu dez vice-lideranças na Casa, contemplando dez Partidos diferentes e concedeu a um partido de clientela, o Partido Progressista, a liderança do governo na Câmara e, em seguida, a este mesmo partido, o Ministério da Casa Civil, principal ministério de articulação e negociação do Executivo com os outros ramos do aparelho de Estado. Por outro lado, foi reinstituído o Ministério das Comunicações a ser entregue a outro partido de clientela, o Partido Social Democrático; e vários outros pequenos partidos que compõem o chamado Centrão, agregando bancadas partidárias tidas por pragmáticas, ganharam cargos no segundo e terceiro escalões dos Ministérios ou das Autarquias do Executivo Federal (Amaral, 2021).

A coalizão bolsonarista praticava um clientelismo como tentativa de voltar ao sistema das “lealdades pessoais”, típico das antigas oligarquias agrárias (Leal, 1975). Só que em lugar dessas oligarquias tradicionais, desaparecidas com a penetração do capitalismo no campo, ascendem os quadros políticos de origem numa espécie de lumpen burguesia (comerciantes de terras, milícias, empresas religiosas etc.), que se multiplicaram nas legendas partidárias clientelistas.

*Francisco Pereira de Farias é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí. Autor, entre outros livros, de Reflexões sobre a teoria política do jovem Poulantzas (1968-1974) (Lutas anticapital).

Referências

AMARAL, O. E. Partidos políticos e o Governo Bolsonaro. In: AVRITZER, L.; KERCHE, F.; MARONA, M. (orgs.).  Governo Bolsonaro: retrocesso democrático e degradação política. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.

BOITO JR, A. Reforma e crise política no Brasil: os conflitos de classe nos governos do PT. Campinas: Unicamp; São Paulo: Unesp, 2018.

FARIA, R. O. Emendas parlamentares e processo orçamentário no presidencialismo de coalizão. 2023. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito Econômico, Financeiro e Tributário da Universidade de São Paulo.

TOLLINI, H. M. Aprimorando as relações do Poder Executivo com o Congresso Nacional nos processos de elaboração e execução orçamentária. Cadernos ASLEGIS, n. 34, 2008, p. 213-236.

 

Retaliações

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Vivemos momentos de apreensões constantes, todos os dias somos bombardeados por informações preocupantes, desastres naturais motivados pelo descaso dos protocolos ambientais, violências crescentes, confrontos verbais e desrespeitos generalizados que crescem de forma acelerada, criando discórdias, medos e ressentimentos em todas as regiões.

Neste cenário, percebemos o crescimento de propostas equivocadas e simplistas que pululam nos parlamentos globais, governos incapazes de compreender as raízes estruturais dos graves constrangimentos que pairam na sociedade global, tais medidas aumentam os confrontos entre nações e dentro dos países, espalhando  medidas que aumentam a repressão e a violência urbana, deixando de lado os investimentos na formação educacional para a cidadania, desta forma, percebemos o incremento dos ressentimentos arraigados que culminam em graves desequilíbrios sociais, políticos e culturais, levando os indivíduos a buscarem um salvador da pátria que consiga melhorar as condições de vida da população e evitem as humilhações cotidianas.

Neste momento, percebemos o crescimento de políticas protecionistas, que crescem de forma acelerada, gerando graves instabilidades nos acordos comerciais, nas trocas econômicas e produtivas e estimulando o incremento de ressentimentos entre nações, num momento fundamental para que as nações e seus líderes se aproximem para evitar os graves constrangimentos gerados pelo aumento da temperatura global, que estão motivando variadas alterações no meio ambiente, modificações climáticas e possíveis transformações em setores econômicos e produtivos, redesenhando a geopolítica mundial.

O crescimento do protecionismo estimulado pela “nova” administração norte-americana tende a gerar graves retaliações em todas as regiões do mundo, nações ameaçadas devem se proteger para reduzir suas perdas econômicas e financeiras, nações sobretaxadas tendem a adotar políticas de retaliação, evitando graves constrangimentos para seus produtores locais e, no final das contas, os preços devem aumentar de forma acelerada, prejudicando seus cidadãos que tendem a perceber sua perda de poder de compra.

Vivemos numa sociedade altamente integrada e interdependente, alterações bruscas em qualquer lugar no cenário global tendem a impactar fortemente todos os atores econômicos e produtivos, ainda mais, quando percebemos que as incertezas e as instabilidades são geradas pela maior economia do mundo, catalisadora de políticas protecionistas motivadas pela proteção de seu setor produtivo e, desta forma, as outras nações tendem a adotar as mesmas políticas, aumentando os constrangimentos na economia internacional e incrementando as incertezas políticas.

As políticas protecionistas adotadas pelos Estados Unidos da América objetivam a reestruturação industrial, o aumento da produtividade da economia e o fortalecimento de toda a sua estrutura produtiva, fortalecendo a economia do país, gerando empregos melhores e salários maiores, fortalecendo o mercado interno, garantindo um setor produtivo mais sólido e consistente para angariar forças na concorrência com o mercado global e condições efetivas para superar seu maior competidor.

Neste momento de grandes incertezas e instabilidades, percebemos que as políticas protecionistas tendem a gerar graves constrangimentos para as nações e o incremento das retaliações comerciais, que devem levar governos a estimularem um processo de industrialização e uma reestruturação dos seus setores econômicos e produtivos.

A literatura econômica nos mostra que todas as nações que se desenvolveram, antes conseguiram seu processo de industrialização, quem sabe, neste momento de protecionismos crescentes, os ventos da industrialização contagiem nossa elite e nos tragam novos horizontes de desenvolvimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicos e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Assim nasceu o neoliberalismo, por Antonio Martins

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Em dois livros essenciais, Melinda Cooper reconstitui os anos que mudaram a face do Ocidente. 1968 abriu crítica radical ao capitalismo. Para freá-la, sistema apelou à moral conservadora. Há saídas: mas é preciso fazer do dinheiro um Comum

Antonio Martins, editor de OUTRAS PALAVRAS – 28/02/2025

O esforço para mostrar que há vida além do capitalismo é árduo, mas reconforta. Há anos, Outras Palavras tem identificado e difundido o esforço de um grupo de pensadores que desafia as certezas do neoliberalismo. Num artigo recente, Ladislau Dowbor destacou a obra de alguns deles: economistas como Mariana Mazzucato, Thomas Piketty do Michael Hudson, Michael Roberts, Jayath Ghoshi.

A este elenco, é preciso somar Melinda Cooper. Esta socióloga australiana de 52 anos, professora na Universidade de Canberra (na Austrália) tem publicado obras que desafiam antigos paradigmas. Seu foco concentra-se na transição do Estado keynesiano para a hegemonia neoliberal – e especialmente no papel que desempenhou, neste processo, uma aliança entre os neoliberais e os conservadores morais. Seu interesse parece ser provocar velhos consensos e, ao fazê-lo, abrir caminho para alternativas.

Ela sustenta que o Estado de bem-estar social não se esgotou por motivos econômicos. Foi jogado ao mar e corroído, quando as elites ocidentais julgaram que conquistas como Educação e Saúde igualitárias haviam tornado os trabalhadores indisciplináveis. Os capitalistas temiam, em especial, a semente revolucionária lançada por movimentos como o de maio de 1968. Para neutralizá-la, estabeleceram aliança com os ultraconservadores e retomaram ideias como a centralidade da família. Estabeleceu-se um consenso reacionário. Para rompê-lo, argumenta Melinda, será preciso desmistificar o dinheiro; vê-lo como um Comum; e apostar na multiplicação do gasto público que desmercantiliza a vida e redistribui a riqueza.

Seu pensamento está especialmente expresso em dois livros, ainda não disponíveis em português (há edições em inglês e castelhano). Contrarrevolução: extravagância e austeridade nas finanças públicas e Valores de Família: entre o neoliberalismo e o novo conservadorismo. A primeira obra foi lançada no final de 2024 e examina a transição do keynesianismo para o neoliberalismo, iniciada no final dos anos 1970.

Melinda lança mão de um vasto estudo factual para mostrar como se construíram, quase a partir do nada, consensos baseados nas ideias de economistas austríacos dos anos 1920 – não apenas Hayek e von Mises, mas também Joseph Schumpeter. Emergiu, então, a noção de que as políticas macroeconômicas precisavam obrigatoriamente visar objetivos até então pouco relevantes, como “equilíbrio orçamentário”, “ajuste fiscal”, “redução de tributos”, “encolhimento do Estado”, “autonomia dos bancos centrais”, “metas de inflação” (desde que desconsiderem a valorização imobiliária…).

Melinda aponta também como esse consenso é importante para esconder que por trás dessa “austeridade”, há uma extravagância – uma transferência brutal de recursos do Estado para os mais ricos. É algo evidente no Brasil (embora oculto para a maioria), onde o Tesouro transfere a cada doze meses, para um grupo reduzido de credores da dívida pública, R$ 1 trilhão, o mesmo que três orçamentos do SUS.

A partir daí, a autora lança suas provocações. Ao contrário do que sustenta o consenso econômico, partilhado inclusive pela maioria dos keynesianos, ela sustenta que a crise do Estado de bem-estar social não se deveu, essencialmente, a razões econômicas objetivas – ao suposto esgotamento daquele processo. Foi produzido, ao contrário, por uma opção política das elites capitalistas. Elas temeram que o Estado de bem-estar social gerasse, em determinado momento, uma contestação muito forte ao próprio sistema.

A essência do argumento de Melinda é: tanto a construção do Estado de bem-estar social quanto a sua destruição resultam de opções políticas. O surgimento se dá – e esta parte da história é mais conhecida – no pós-II Guerra, quando a ameaça da União Soviética fez com que as elites capitalistas aceitassem entregar os anéis para conservar os dedos.

Em todo esse período – marcado por greves em cujas imagens é possível identificar a presença masculina marcante – as lutas sociais e o fantasma da União Soviética são tão marcantes que as elites aceitam, por exemplo, o gasto público e os déficits fiscais que permitem a educação e saúde gratuitas os sistemas previdenciários por repartição, totalmente estranhos ao capitalismo do início do século.

Mas Melinda vai mais adiante e mostra a destruição desse processo. Argumenta que aquele movimento tinha ido longe demais – pois continha em seu interior ideias não capitalistas. As ideias de saúde e educação gratuitas e igualitárias, por exemplo, ou de que ninguém é obrigado a trabalhar até o final da sua vida e de que não é preciso haver insegurança econômica, foram vistas como subversivas. Passaram a assustar as elites, em especial pelo fato de elas terem criado um cenário em que já não era possível disciplinar os trabalhadores por meio de políticas macroeconômicas.

Estas políticas, conta a socióloga, provocavam às vezes redução dos salários, mas os trabalhadores estavam garantidos por um sistema de bem-estar social que os protegia. E foi esta segurança, segundo a autora, que tornou possíveis movimentos como o Maio de 68, cujas imagens são muito diferentes. Incluem mulheres, desafiam não apenas os patrões mas a ordem econômica – além da hegemonia cultural e moral. É preciso lembrar que maio de 68 não se esgotou na França, muito menos em Paris. Foi seguido, em todo o mundo, por greves de forte sentido anticapitalista. Elas avançaram fundo na década de 1970, a ponto de o comunista e sociólogo italiano Toni Negri afirmar: “em certo momento, dominávamos as técnicas sociais que permitiam vencer os patrões”.

Isso foi, é evidente, demais para os capitalistas. A partir de determinado momento, eles foram capazes de inverter o jogo. Apoiaram-se num vasto movimento de fragmentação de trabalho e no argumento de que, do ponto de vista econômico, o projeto keynesiano tornara-se insustentável.

E nesse momento que os capitalistas – já rompidos com o keynesianismo e abraçados ao projeto neoliberal – vão se associar com os conservadores morais. Melinda cita, a respeito, uma frase emblemática da primeira-ministra britânica Margaret Thatcher. “Não existe isso que chamam de sociedade”, diz ela: “há apenas homens, mulheres e famílias”. Aqui entra uma segunda contribuição de Melinda Cooper. Num outro livro de enorme importância, Os Valores de Família, ela faz uma reconstituição histórica impressionante sobre como, em cinco séculos de modernidade, capital, Estado e a família estiveram sempre associados na dominação política e construção de consensos.

Melinda descreve como os neoliberais uniram-se aos conservadores para estabelecer uma espécie de anti-Maio de 68 para fazer a recuperação da família e dos valores burgueses. Ela mostra inclusive (e é bastante curioso) como, de certa maneira, algumas bandeiras de maio de 68 – a diversidade sexual, por exemplo – foram recuperadas de forma conservadora, na forma, por exemplo, do casamento homossexual.

Em seus livros fundamentais – mas especialmente em Contrarrevolução – Melinda vai atrás das alternativas. Ao fazê-lo, recupera um teórico do Partido Comunista Grego, dos anos 1960 e 70, Nikolas Poulantzas, que cometeu suicídio em 1979. Foi quem teorizou, já àquela época, a respeito de um possível giro inesperado da teoria revolucionária. Ele vislumbrava a hipótese de capturar, para um pós-capitalismo, o Estado de bem-estar social. Queria agir por dentro dele e, ao mesmo tempo, estourar seus limites para detonar a ordem burguesa.

Poulantzas argumentava que alguns dos valores centrais das lutas operárias dos séculos XIX e XX haviam sido valorizados e ao mesmo tempo capturados pelo Estado de bem-estar social. Por isso, já não adiantava simplesmente defender as noções anteriores de revolução: a classe trabalhadora prezava o fato dos seus direitos estarem sendo assegurados pelo Estado capitalista.

Ele pensa que a estratégia deveria ser recuperar estes valores; atuar por dentro e para explodir os limites desse estado. Lutar, por exemplo, pelo direito ao trabalho para as mulheres – porque o keynesianismo baseava-se na ideia do marido sustentador do lar. Expandi-lo para as maiorias globais: os não-brancos, os imigrantes, os fora-da-ordem.

Melinda Cooper sugere, sempre de forma provocadora, que é preciso recuperar e ir além do próprio Poulantzas. Para ela – num pensamento que pode ser estendido ao futuro do governo Lula – a esquerda precisa questionar todo o processo de criação do dinheiro. É transformar o dinheiro num Comum e, ao fazê-lo, promover um grande choque de serviços públicos, de garantia de pleno emprego, de transformação da infraestrutura e de desmercantilização da vida. Sua obra, instigante e inspiradora, é um alento bem-vindo, em tempos de marasmo intelectual.

 

Para entender o patriotismo de vassalagem, por Moyses Pinto Neto.

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As contradições dos verde-amarelos que se ajoelham ao império americano. Conceito psicanalítico de identificação ajuda a entender melhor: mesmo como vassalos, eles cultivam o sonho de integrar o império americano – um “clube” do qual gostariam de pertencer

Moyses Pinto Neto – Piaui/ OUTRAS MÍDIAS – 26/02/2025.

Em geral, atos como o bater continência de Jair Bolsonaro diante da bandeira americana ou parlamentares de extrema direita vestirem o boné Make America Great Again têm provocado um juízo de perplexidade da esfera pública tradicional brasileira. Embora reivindiquem para si o status de patriotas, os militantes da extrema direita submetem-se a uma improvável condição absolutamente idólatra de um país estrangeiro, os Estados Unidos, e não raro sacrificam a ideia de soberania nacional – estandarte máximo do patriotismo clássico – em prol da submissão ao movimento internacional coordenado por Steve Bannon e afins. O juízo de perplexidade deriva da contradição escancarada, seguindo-se, portanto, a ironia e o deboche sobre as ações dos nossos amantes do Tio Sam expatriados em Miami e nos protestantes de Copacabana, da Avenida Paulista ou do Parcão. Meu ponto aqui será provar que esse diagnóstico é superficial e pode ser melhor explicado em outros termos; mas, antes, exploremos um pouco as contradições do movimento.

Primeiro, vimos durante 2023 e 2024 uma concentração de ataques da extrema direita à política econômica do governo Lula a partir da taxação de bens importados por Haddad, em uma manobra mais ou menos desastrada – sobretudo em termos de comunicação – na qual as “blusinhas” acabaram sofrendo tarifas e encarecendo ao consumidor popular o acesso a importações em geral chinesas. Haddad, por isso, é ironizado em memes como “Taxad”, e parte do episódio do Pix se deve, fundamentalmente, ao lastro anterior produzido ao seu redor pela propaganda da extrema direita. Se Haddad foi capaz de taxar mercadorias importadas de baixo valor, contra a própria promessa do governo, então por que isso não ocorreria com o Pix, promovendo a partir da sua vistoria a cobrança de impostos sobre atividades na zona cinzenta da legalidade que servem de base da renda dos trabalhadores precarizados? O raciocínio popular, que levou à queda da aprovação do governo e do próprio mandatário, tem lá sua lógica, mais uma vez fazendo perder os defensores da “verdade”, promovida pelos esclarecidos do jornalismo e da “técnica”, contra os promotores de notícias falsas.

Mas e quanto a Trump, então? O presidente americano promove agora a taxa como sua principal política. Ele chegou a dizer que tariff é a quarta palavra mais bonita do dicionário, depois de Godlove e religion. Como funcionam as tarifas de Trump? Para promover uma reindustrialização e reaquecimento do mercado americano, ele deseja “trazer de volta” os negócios que migraram para o Leste Asiático, barateando os custos de produção no famoso processo que nos últimos quarenta anos vem sendo chamado de “globalização”. As tarifas, portanto, são proteções do mercado interno. Exatamente como no caso de Haddad, que, entre outras razões, induziu, com apoio implícito da própria extrema direita, a taxação com o intuito de respeitar a competitividade do varejo interno. Alguém viu Luciano Hang criticando Haddad por tarifar blusinhas? O mesmo se passa com Trump: o valor adicionado, que ameaça chegar a 25%, é arcado pelo consumidor final, por isso mesmo se fala, inclusive, dos potenciais efeitos inflacionários. Onde estão os memes e as críticas dos economistas defensores do mercado aberto aqui no Brasil?

A segunda contradição ainda se conecta com a primeira. Sabe-se que a esquerda dita “desenvolvimentista” – o governo Dilma, sobretudo, é tido como seu representante  – aposta que somente promovendo uma reindustrialização o Brasil poderia sair da cilada exportadora e extrativista baseada em matérias-primas, hoje dominadas pelo agronegócio e pela mineração, em que se meteu. A reindustrialização resultaria em melhores empregos, organização da classe trabalhadora e valorização dos bens produzidos no Brasil, com mais “complexidade econômica”. Em compensação, a direita – embora apoiada, em massa, pelos próprios industriais, como vimos com a Fiesp durante o período do impeachment – considera a pauta econômica da esquerda ultrapassada, reduzindo a competitividade da indústria nacional e baseando-se em pressupostos da superioridade de um tipo de produção que dizem não se confirmar nos dados. Portanto, tanto faz a matriz produtiva do país, desde que alicerçada em instituições firmes capazes de garantir a estabilidade dos negócios e, com isso, fortalecer a confiança do setor privado para investimento.

Mas… e Trump? Toda lógica do protecionismo “desglobalizador” dele se baseia na renovação industrial dos Estados Unidos, colocando sua aliança com as big techs como ponto primordial, com a possibilidade do desenvolvimento de produtos de tecnologia de ponta. Além disso, Trump – com seu “drill, baby, drill” – pretende explorar ao extremo a matriz energética “suja” que nos conduziu à crise climática, aguçando seus efeitos (que são negados, também com muitas contradições, mas isso é tema para outro texto). Onde estão os adeptos do liberalismo econômico hard, por exemplo, o próprio ex-ministro Paulo Guedes, para criticar o neonacionalismo desenvolvimentista de Trump? Trump, inclusive, faz exatamente a mesma coisa pela qual Lula apanhou inclementemente da imprensa e do mercado financeiro ao longo dos últimos dois anos: ataca e constrange, constantemente, o Banco Central, a fim de promover a baixa dos juros. A diferença é que Lula via no dirigente do Bacen um inimigo na trincheira, promotor de crises artificiais com o fito de minar as políticas governamentais, forçando a desconfiança econômica e a subida dos juros, enquanto com Trump ocorre o inverso: ele vê o Banco Central americano como muito técnico, por isso mesmo impedimento à realização das suas metas políticas que envolvem uma forte intervenção na institucionalidade econômica. O que é mais grave? Se observarmos nossos liberais “convictos”, como os representantes do Partido Novo, aparentemente não estão achando nada de errado com as medidas de Trump.

Terceira e última contradição, para efeitos deste texto, pois não se esgotam nisso: a posição em relação à Ucrânia. Sabemos que o Brasil, logo que estourou a guerra da Ucrânia, viveu uma polarização surreal entre a direita – que passou a idolatrar Zelensky – e parte da esquerda, que via em Putin uma continuidade do projeto soviético. Enfim, mais fogo foi acrescentado quando Lula assumiu e resolveu ocupar o lugar de pacificador, tentando travar algum diálogo com Putin. Rapidamente, a parcela mais liberal – tanto da esquerda como da direita – passou ao ataque, considerando uma capitulação desumana, e nossa mídia ecoou os “desencontros” entre Zelensky e Lula que ocorriam nos foros internacionais. Mas e agora? Trump ligou para Putin e Zelensky para dizer que quer dar fim à guerra, e a chancelaria americana reconhece que é impossível à Ucrânia voltar ao status quo anterior. Uma posição não tão diferente daquela sustentada por Lula, tão repudiada. E, no entanto, quem está protestando contra a entrega de parte do território da Ucrânia à Rússia, sem falar da possibilidade de cobrança – com pagamento de anexação territorial – do custeio da ajuda militar dos Estados Unidos durante a guerra, levantado pelo próprio Trump?

As contradições parecem muitas, mas esse diagnóstico é apenas superficial. Na realidade, não há contradição alguma. Essa ideia pressupõe que o processo de constituição de uma identidade – no caso, o “patriota” – se dá a partir de uma correspondência entre uma condição “real” e uma identidade objetivamente dada. Por exemplo, como se discute frequentemente na esquerda, um trabalhador – que, mesmo sem carteira assinada, tem relação de subordinação e dependência – deveria se ver como trabalhador; afinal, é o que ele é. Se não se vê dessa forma, é porque está enfeitiçado (os conceitos de ideologia e alienação estão aí para tapar esses buracos). Mas não é assim que acontece. Primeiro, porque esse é está longe da objetividade total que um marxismo dogmático gostaria de sustentar. E isso por uma segunda razão: a identidade, constituída a partir da identificação, é resultado de processos imaginários. O que é um brasileiro é algo que está, constantemente, sendo disputado no imaginário, não basta apenas o passaporte ou o CPF para resolver o problema. Na identificação, como explorou Freud no seu texto sobre a psicologia das massas, é comum que haja uma identificação virtual, isto é, que ela ocorra pelo desejo, sem que haja uma correspondência com a minha condição atual. Assim, nem sempre me identifico com o que sou, mas muitas vezes com o que quero ser.

A força do pertencimento aos movimentos de extrema direita, que reúne pessoas para cantar o Hino Nacional para um pneu, não é apenas um pertencimento como qualquer outro. Às vezes, a crença na fungibilidade do pertencimento – do tipo, se é assim, vamos trocar por outro (por exemplo, ao Estado, à sociedade, à comunidade local, ao partido) – por vezes não vai suficientemente longe na análise das características singulares daquela identificação. E o que faz o pertencimento dos patriotas? Ele consegue preencher um vazio que antes existia para dizer: sim, você é mesmo um patriota, mesmo idolatrando a América mais que o Brasil. A identidade é constituída no processo de identificação por uma imagem idealizada do que quero ser, mas isso não ocorre apenas no plano individual: um Napoleão de hospício não se torna Napoleão apenas porque quer. É porque os outros confirmam que uma identificação pode colar. E essa é, efetivamente, a dimensão coletiva do movimento de extrema direita.

Assim, por que a análise da contradição é apenas superficial? Porque não há contradição. Os “patriotas” efetivamente se veem como patriotas, mas para eles ser patriota é outra coisa. E é essa “outra coisa” que eles miram quando se reúnem para vangloriar Trump diante dos seus “acertos” que beneficiam apenas os Estados Unidos, e ninguém mais, além de por vezes prejudicar até mesmo o Brasil. Mas o que é essa “outra coisa”?

Aqui temos uma questão interessante: tanto a extrema direita quanto a esquerda radical veem os Estados Unidos de forma semelhante, ou seja, como um império. A imagem dos EUA como uma democracia aberta, tolerante, com instituições sólidas e de uma ordem internacional fundada no direito é própria  do centrismo. Apenas os liberais enxergam os EUA como esse país específico, com uma sociedade tocquevilliana, separando fortemente o externo (a política internacional) do interno (a democracia constitucional). Esquerda radical e extrema direita, ao contrário, veem como as duas camadas estão diretamente entrelaçadas. O que os EUA fazem para o mundo, da Guerra da Coreia ao apoio a Israel em Gaza, é assunto que define os EUA. Não há diferença entre a sociedade interna e o império. Claro, a coincidência acaba por aí: para a esquerda radical, trata-se de se opor; para a extrema direita, de se integrar o império. O sonho dos Bolsonaro seria receber aquele convite dirigido ao Canadá para que o Brasil se tornasse um Estado da federação americana. Então, o “patriotismo” estaria consumado na maior de todas as conquistas: a integração completa, como parte dos dominadores, na condição imperial. Naturalmente, sabemos que a crise política atual é, mais que tudo, uma crise do centro político: este foi hegemônico nos últimos quarenta anos, do pretenso “fim da história”, até que tudo se mostrasse uma farsa desde a crise de 2008.

Mas, ainda dentro da “outra coisa”, alguém poderia perguntar: e não é uma contradição alguém se ver como parte de um império não o integrando de fato? Aqui, mais uma vez, surge a identificação: quando o patriota olha para os Estados Unidos como sua pátria, ele efetivamente projeta sua identidade como parte desse coletivo imperial. É claro que o Brasil não integra os Estados Unidos, mas, como país vassalo, ele pode sim integrar o império americano. E, portanto, o que esses patriotas veem sobre si mesmos é a condição de “cidadãos do Império americano”. Por isso, Make America Great Again os contempla.

Permitam-me mais uma última comparação para explicar. Um dos elementos cruciais do trumpismo é o supremacismo branco. Mas sabemos, por estudos brasileiros e internacionais, que a branquitude é uma condição relativa. Um branco no Brasil torna-se “latino” nos Estados Unidos. Um branco nascido na Bahia torna-se “nordestino” em São Paulo. O mesmo pode ocorrer com a identidade negra em alguns casos. Em geral, basta a autodeclaração, mas, por exemplo, quando se trata da disputa de cotas, é possível haver comissões de “heteroidentificação” em que a identificação é avalizada pelo feedback do outro. Em outros termos, a identidade não é uma relação de eu com o meu eu-factual, mas do meu eu produzido por meio de uma série de relações imaginárias com o meio e os outros, finalmente resultando em uma posição. Não existe identidade absoluta. Isso significa que o brasileiro patriota pode, sim, ver-se como branco americano, mesmo que, de um ponto de vista de muitos outros, ele possa ser caracterizado como “pardo” ou “latino”. Não importa.

O viés de confirmação é obtido por meio da chancela grupal: sim, se você é bolsonarista, você faz parte do clube dos brancos que compõem uma região vassala do Império. A vassalagem é uma relação bilateral, não apenas a submissão unilateral. É dessa troca assimétrica que os patriotas se vangloriam. Portanto, se o significante patriota pode comportar muitos sentidos, um deles passou a ser esse: ser patriota, amar a sua pátria, é se submeter aos Estados Unidos, ou seja, ao império do qual sua pátria é vassala.

 

Nova dependência 

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Vivemos momentos de grandes transformações na sociedade global, estas grandes alterações estão redefinindo as estruturas de poder e de riqueza, criando uma nova economia, com novos desafios para o desenvolvimento das nações e, ao mesmo tempo trazendo grandes desafios, lembrando que, para colher frutos positivos para a sociedade, fazem-se necessárias uma ampla preparação interna, com maciços investimentos em capital humano e a consolidação de instituições políticas e econômicas.

Historicamente o Brasil sempre se caracterizou por ser uma economia exportadora de produtos primários de baixo valor agregado, estruturada em um modelo econômico que se pautou por grandes propriedades, monocultura exportadora e trabalho escravo, características que ainda existem fortemente na atualidade. Somos uma grande nação exportadora de produtos primários com baixo valor agregado, desta forma, somos dependentes do mercado externo, os preços dos nossos produtos são definidos pelo mercado internacional e, somos historicamente importadores de produtos industrializados, compramos máquinas e tecnologias dos países mais avançados, estes sim definem os preços dos seus produtos vendidos no mercado externo.

As riquezas naturais extraídas de países mais atrasados economicamente eram utilizadas para alavancar o crescimento econômico das nações desenvolvidas, um modelo produtivo bastante agressivo economicamente e uma estrutura de comércio desleal que sempre gerou grandes privilégios para os países do norte global em detrimento das nações do sul, garantindo uma exploração institucionalizada pelas regras internacionais  criadas pelas nações desenvolvidas, e aceitas passivamente pelas elites locais, que enriqueciam garantindo migalhas e que se satisfaziam com a pobreza e a miséria de sua população.

No século XX, o Brasil ensaiou um processo de industrialização tardia, com fortes investimentos estatais para transformar a estrutura produtiva, criando variadas empresas públicas para alavancar o crescimento econômico, com isso, demos um salto gigantesco e passamos ao rol das dez maiores economias do mundo, preocupando nações industrializadas e gerando calafrios pelo forte potencial de crescimento econômico e produtivo, se sabidamente somos dotados de grandes riquezas naturais e minerais e se, conseguíssemos, construir um forte setor industrial, moderno, inovador e dinâmico?

Com os fortes movimentos econômicos e produtivos gerados pela globalização e pela abertura econômica, perdemos espaço no comércio internacional e passamos a vivenciar um processo de desindustrialização precoce e o setor primário exportador voltou a dominar as exportações brasileiras, exportando minério de ferro e importando produtos industrializados, exportando produtos in natura e importando produtos sofisticados, máquinas e tecnologias avançadas, retomando uma dependência que sempre caracterizou a sociedade brasileira.

Hoje percebemos uma nova dependência em curso na sociedade global, estamos, novamente, acreditando no canto da sereia das nações desenvolvidas, estamos aceitando a venda de produtos primários estratégicos, as mercadorias mais demandadas são as chamadas terras raras, minérios utilizados nas grandes big techs para garantir sua hegemonia no mercado global e, continuamos a ser importadores de tecnologias avançadas, nos tornando dependentes do mercado externo e deixando de lado nosso gigantesco potencial científico e tecnológico, entregando os investimentos estratégicos para empresas estrangeiras que pouco conhecem nossa trajetória, deixando de lado a ciência nacional, os pesquisadores e todos aqueles que acreditam verdadeiramente no enorme potencial deste país.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

 

 

Quanto mais estuda, mais o brasileiro é desaproveitado? por Erik Chiconelli Gomes

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Embora seja baixa, renda dos trabalhadores sem instrução formal cresceu 42% em doze anos e informalidade caiu. O inverso ocorreu com quem tem ensino superior. Fenômeno expõe como a regressão produtiva afeta os salários de trabalhadores mais qualificados

Erik Chiconelli Gomes – OUTRAS PALAVRAS – 18/02/2025

O mercado de trabalho brasileiro tem apresentado uma tendência contraditória nos últimos anos, desafiando pressupostos tradicionais sobre a relação entre educação e renda. Dados recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua revelam um fenômeno intrigante: trabalhadores sem instrução formal experimentaram um aumento real de 41% em seus rendimentos entre 2012 e 2024, enquanto profissionais com ensino superior registraram uma queda de 12,3% no mesmo período (IBGE 2024).

Este cenário paradoxal reflete transformações estruturais no mercado de trabalho nacional. De acordo com a Fundação Getulio Vargas (FGV), a pandemia de covid-19 atuou como um catalisador dessas mudanças, preservando inicialmente os trabalhos mais qualificados que podiam ser realizados remotamente, mas posteriormente impulsionando uma recuperação expressiva dos setores que tradicionalmente empregam trabalhadores com menor escolaridade (Feijó 2024).

A análise dos dados do IBGE demonstra que o setor de serviços tem sido fundamental nessa reconfiguração. A coordenadora de Pesquisas por Amostra de Domicílios do IBGE, Adriana Beringuy, destaca que atividades como construção civil, agricultura, transporte e logística têm apresentado forte aquecimento, gerando uma demanda crescente por profissionais com menor qualificação formal (IBGE 2024).

Um aspecto significativo dessa transformação é a redução da informalidade entre os trabalhadores menos escolarizados. Pesquisas da FGV indicam que a taxa de informalidade nesse grupo caiu de 75,2% em 2012 para 71,1% em 2024. Em contrapartida, entre os profissionais com ensino superior, a informalidade aumentou de 27% para 33,2% no mesmo período (Feijó 2024).

O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) aponta que a política de valorização do salário-mínimo tem sido um fator determinante nesse processo. Segundo Pelatieri (2024), nos últimos três anos, a renda dos trabalhadores com baixa qualificação cresceu aproximadamente 20%, acompanhando os reajustes do piso nacional.

A expansão do ensino superior no Brasil também contribuiu para esse cenário. O número de matrículas saltou de 2,7 milhões em 2000 para 9,4 milhões em 2022, representando um aumento significativo na oferta de profissionais qualificados no mercado. Atualmente, 23% dos ocupados possuem ensino superior, contra 13,7% em 2012 (IBGE 2024).

O setor de comércio eletrônico tem sido um exemplo emblemático dessa transformação. A digitalização acelerada durante a pandemia gerou uma demanda inicial por profissionais especializados em tecnologia, mas posteriormente criou oportunidades significativas em áreas operacionais, como logística e distribuição, que não exigem alta escolaridade.

A recuperação do setor de serviços pessoais após a pandemia também tem favorecido trabalhadores com menor escolaridade. Atividades como serviços de beleza, alimentação e pequeno comércio têm apresentado crescimento consistente, beneficiando principalmente profissionais autônomos. O fenômeno da uberização do trabalho, amplamente discutido por Antunes (2020), contribui para compreender essa nova dinâmica. A proliferação de plataformas digitais tem criado oportunidades de geração de renda para trabalhadores com diferentes níveis de escolaridade, embora frequentemente em condições precárias.

Pochmann (2021) argumenta que essas transformações refletem uma reestruturação produtiva mais ampla, onde a flexibilização das relações de trabalho tem impactado diferentes segmentos da força de trabalho, independentemente do nível de escolaridade. A questão da qualificação profissional ganha novos contornos nesse contexto. Standing (2021) sugere que o conceito tradicional de educação formal pode estar perdendo relevância em um mercado de trabalho cada vez mais volátil e fragmentado.

O caso dos trabalhadores do setor de construção civil é particularmente ilustrativo. Beringuy (2024) destaca que, mesmo na era da inteligência artificial, há maior dificuldade em encontrar profissionais como pedreiros e eletricistas do que programadores web. As mudanças no perfil das vagas operacionais também são significativas. Dados da organização social Gerando Vidas indicam que as ofertas de emprego para posições que exigem baixa escolaridade praticamente dobraram entre o início de 2024 e 2025, com salários médios passando de R$ 1.400 para R$ 1.700.

O impacto da tecnologia nesse processo é ambíguo. Se por um lado a automação ameaça certos postos de trabalho, por outro tem criado novas oportunidades em setores como logística e distribuição, que não necessariamente demandam alta escolaridade. A questão da mobilidade social também merece atenção. Embora a renda dos trabalhadores menos escolarizados tenha aumentado, a diferença salarial entre quem tem ensino superior e ensino médio ainda é expressiva, cerca de 126% segundo dados da FGV.

O papel das políticas públicas nesse cenário é fundamental. A retomada da política de valorização do salário-mínimo, com aumentos reais vinculados ao crescimento do PIB, tem impactado positivamente a renda dos trabalhadores na base da pirâmide. A dinâmica do mercado de trabalho brasileiro reflete também tendências globais. As transformações tecnológicas e organizacionais têm alterado profundamente a natureza do trabalho e as competências valorizadas pelos empregadores.

A questão da desigualdade de renda no Brasil revela uma complexidade sem precedentes neste novo cenário. Embora os dados apontem para uma aparente redução da disparidade salarial, com o aumento da renda dos trabalhadores menos qualificados, é fundamental examinar criticamente este fenômeno. O nivelamento por baixo da renda do trabalho pode mascarar um processo de precarização generalizada das condições laborais, onde a aproximação entre os rendimentos ocorre não pela elevação sustentável dos salários mais baixos, mas pela deterioração dos rendimentos dos trabalhadores mais qualificados.

A tendência de desvalorização da educação formal representa um risco significativo para o desenvolvimento socioeconômico do país. O desencorajamento ao investimento em formação superior, provocado pela queda na rentabilidade deste nível de ensino, pode gerar um ciclo vicioso de desinvestimento em capital humano. Quando as novas gerações observam a redução do retorno financeiro da educação superior, podem optar por trajetórias profissionais que priorizam ganhos imediatos em detrimento da qualificação de longo prazo, comprometendo a capacidade inovativa e produtiva do país.

O futuro do trabalho no Brasil exige uma abordagem que transcenda a dicotomia entre conhecimento formal e prático. A valorização equilibrada entre as diferentes formas de saber e competências profissionais precisa estar ancorada em uma política educacional e de desenvolvimento que reconheça tanto a importância da formação acadêmica quanto das habilidades técnicas e experienciais. Esta integração deve ocorrer de forma a potencializar ambas as dimensões, criando sinergias que elevem a qualidade geral do trabalho e da produção nacional.

O horizonte que se desenha para o mercado de trabalho brasileiro demanda uma profunda reestruturação dos sistemas educacionais e de formação profissional. As transformações tecnológicas e organizacionais em curso exigem um novo paradigma que combine flexibilidade adaptativa com solidez formativa. Este modelo deve ser capaz de responder às demandas imediatas do mercado sem sacrificar a capacidade de geração e absorção de conhecimento avançado, essencial para o desenvolvimento sustentável do país em um contexto de competição global cada vez mais intenso.

Referências:

ALMEIDA, Cássia. Escolaridade desvalorizada? Renda no país cresceu mais para trabalhador sem qualificaçãoO Globo, Rio de Janeiro, 9 fev. 2025.

ANTUNES, Ricardo. Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020.

FEIJÓ, Janaína. Relatório sobre escolaridade, emprego e renda no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2024.

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Rio de Janeiro: IBGE, 2024.

PELATIERI, Patrícia. Análise da política de valorização do salário mínimo. São Paulo: DIEESE, 2024.

POCHMANN, Marcio. Trabalho sob fogo cruzado. São Paulo: Contexto, 2021.

STANDING, Guy. O precariado: a nova classe perigosa. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.

 

Levitsky e o colapso da democracia americana, por Marcus André Melo

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O diagnóstico do analista está em franco desacordo com as conclusões de seu último livro que alerta contra os perigos das instituições contramajoritárias

Marcus André Melo, Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA)

Folha de São Paulo, 24/02/2025

Em entrevista recente, Steven Levitsky afirmou ao UOL que não está certo que os tribunais irão conter Trump. “É muito difícil prever. As cortes vão provavelmente frear ou bloquear algumas dessas decisões. Mas nem todas. E outro aspecto é que as cortes se movem lentamente. Mesmo que nem todas as decisões de Trump eventualmente sobrevivam, ele pode quebrar o Estado. Além da lentidão das cortes, outra dúvida é se Trump irá cumprir as decisões das cortes”.

Mas esta conclusão está em franco desacordo com o seu diagnóstico em livro recente com Daniel Ziblatt de que a democracia americana está ameaçada por instituições contramajoritárias. Dentre elas estão o Colégio Eleitoral, uma Suprema Corte poderosa, o bicameralismo forte, quóruns qualificados no Senado, e um federalismo muito robusto. Estas instituições permitiriam, alega, que a elite branca possa manter o status quo ante a perspectiva de ser minoritária no futuro.

Ora, não é o que se observa: Trump foi eleito tanto no Colégio Eleitoral quanto no voto popular, e os republicanos são majoritários nas duas casas do Congresso. E mais, as minorias —latinos e negros— aumentaram o voto em Trump entre 2016 e 2024.

Passemos então a seu prognóstico de que as instituições não conterão Trump. A primeira parte do argumento diz respeito na realidade à indiferença da opinião pública: “A primeira eleição de Donald Trump à Presidência em 2016 desencadeou uma defesa enérgica da democracia por parte do establishment americano, mas seu retorno ao cargo foi recebido com uma indiferença marcante. Muitos políticos, comentaristas, figuras da mídia e líderes empresariais que viam Trump como uma ameaça agora tratam essas preocupações como exageradas — afinal a democracia sobreviveu ao seu primeiro mandato”.

Na realidade, quanto mais sólidas as democracias mais confiantes os cidadãos nas suas instituições. Kristian Frederiksen estudou 43 democracias entre 1962 e 2018 e mostrou que quanto maior a experiência com a democracia, maior a indiferença em relação a ameaças a democracia pelos incumbentes. E Christopher Claasen mostrou que quando um país se torna mais democrático, paradoxalmente o apoio à democracia na opinião pública diminui; e que quando aumenta seu componente liberal (contramajoritário) surge uma contratendência.

Este “efeito termostato” se baseia em pesquisas em 135 países em um período de 20 anos. Em dissertação defendida na UFPE, Alan Cavalcanti estendeu a análise desses autores e encontrou novas e fortes evidências de que a experiência democrática pregressa implica maior apoio à democracia.

Assim, a indiferença já era esperada em uma democracia longeva. As evidências empíricas sugerem que é mais provável que após a lua de mel venha uma reação tanto na opinião pública quanto em termos dos efeitos dos “checks and balances”. O primeiro teste são as eleições congressuais em 2026. O segundo já está em curso: o federalismo e os tribunais —temidos por Levistky em seu livro por seus efeitos contramajoritários. É questão de tempo. A pergunta decisiva: e se Trump não acatar decisões dos tribunais? Quem detém a espada são as Forças Armadas que em mais de dois séculos nunca violaram a legalidade.

 

A América para os americanos? por Vera Iaconelli

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Em nome do neoliberalismo, sonha-se reviver a monarquia

Vera Iaconelli, Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “Manifesto Antimaternalista” e “Felicidade Ordinária”. É doutora em psicologia pela USP

Folha de São Paulo, 25/02/2025

Foram décadas de dedos apontados para o povo alemão, questionando as omissões que teriam levado Hitler ao poder. Hoje, no entanto, assistimos à saudação nazista de Elon Musk durante a posse do novo presidente dos Estados Unidos passar quase sem repercussão. O mesmo governo que endossa o gesto corre para abraçar Netanyahu, prometendo lotear Gaza. Assiste-se ao ocaso das democracias sob a lupa de Daniel Ziblatt e Steven Levitsky.

Tal descalabro não encontra resposta da oposição, perplexa diante da profusão de processos judiciais e da política do nonsense promovida por Steve Bannon, arquiteto da incivilidade.

Nós, ao sul do Equador, subsumidos à sigla Maga (Make America Great Again), que promete nos engolir, lemos, estarrecidos, manchetes na Folha colocando em questão o processo contra a tentativa de golpe durante a eleição presidencial brasileira. O que pretendem aqueles que fazem coro desqualificando a denúncia de golpe e, no limite, a parca democracia que nos resta? As notícias que vêm dos Estados Unidos não lhes são suficientemente aterradoras? Ou será justamente sua eloquência que os atrai, na expectativa de se alinharem aos poucos que dominarão, sem qualquer compromisso com a justiça, os demais?

O governo Lula, por sua vez, mostra-se incapaz de adotar uma postura vigorosa e inequívoca diante do risco que as eleições de 2026 representam, preferindo governar como se estivéssemos sob um céu de brigadeiro. Ou será que estamos?

É notória a falta de esperança daqueles que, até pouco tempo, comemoravam as eleições de 2022, quando um dos poucos candidatos comprometidos com uma agenda socioambiental e econômica voltada para o bem comum subia a rampa. Não se trata do desânimo com promessas de campanha sempre muito além do exequível, mas da postura amorfa e hesitante diante de um mal maior que se anuncia sem disfarces.

No Brasil, o candidato mais forte da direita veste a camisa do trumpismo para não deixar dúvidas sobre suas intenções: em nome do neoliberalismo, reviver a monarquia. Segundo lembrou Maureen Dowd em artigo no New York Times, a célebre frase atribuída a Calígula faz eco na boca de Trump: “Faço o que quiser com quem quiser”.

Em “Conclave”, filme de Edward Berger, o racismo, a transfobia, a corrupção e o pragmatismo não deixam espaço para o sonho de coletividade, restando ao terrorismo furar o claustro político. A questão é se vamos escutar o terror como sintoma do mal-estar ou se vamos redobrar a aposta na violência que o fomenta. Assistam.

Em frente ao tribunal onde Luigi Mangione está sendo julgado pela morte do CEO da UnitedHealthcare, um grupo se reúne pedindo sua liberdade. Tempos loucos, nos quais um assassino confesso é defendido publicamente por pais de família que se veem impotentes diante da máquina das seguradoras de saúde.

Será essa a oposição cínica e destrutiva que nos restará diante do descalabro do autoritarismo competitivo —termo que Levitsky e Way empregaram na Folha no domingo? Torço para que não.

Escutar o mal-estar do nosso tempo, dar-lhe voz e buscar saídas éticas diante de seus impasses tem sido a aposta da psicanálise na clínica e no espaço público.

Só resta pedir: um esforço a mais, republicanos.

 

Liberalismo, desenvolvimentismo e projetos de desenvolvimento, por Luis Nassif

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Liberalismo, desenvolvimentismo e projetos de desenvolvimento

Luis Nassif – A Terra é Redonda – 27/02/2025

O pressuposto de qualquer projeto consistente de Nação tem que ser o atendimento das demandas da população

Há uma vertente de discussão sobre a Lei do Teto, defendendo sua aplicação desde que haja espaço para investimentos públicos. Da mesma maneira que a Lei do Teto original, reduz-se uma questão complexa – o desenvolvimento – a um ângulo apenas, o macroeconômico. Faz parte de uma herança das últimas décadas, de só se enxergar o desenvolvimento a partir da ótica macroeconômica, para manter a supremacia dos economistas na formulação das políticas públicas.

É por isso que toda a discussão de projeto de pais fica restrita ao liberalismo atual, ao desenvolvimentismo tradicional e à vertente do desenvolvimentismo social – a ausência de Estado, o desenvolvimentismo se restringindo à prioridade dos investimentos públicos e o desenvolvimentismo social privilegiando as políticas sociais.

Projeto de desenvolvimento é algo muito mais amplo e sistêmico. Em meados dos anos 2000 procurei sintetizar em uma série de colunas na Folha, posteriormente incluídas em meu livro Os cabeças de planilha. Na época, a série foi reproduzida no site do BNDES pelo presidente Carlos Lessa – um dos derradeiros formuladores de planos sistêmicos, herdeiro da tradição de Celso Furtado e Darcy Ribeiro.

A parte macroeconômica é só o fecho do projeto, assim como, em uma empresa privada, o financeiro é apenas o técnico que cuida do financiamento da estratégia maior. Ou seja, primeiro tem que se desenhar o modelo de país que se pretende e a estratégia para se chegar lá. Depois, as formas de financiar.

O pressuposto de qualquer projeto consistente de Nação tem que ser o atendimento das demandas da população. Mesmo porque esse atendimento tem reflexos relevantes na oferta de mão de obra, na criação do mercado de consumo, na manutenção da paz social.

A cultura popular é a argamassa do projeto. É o que fortalece o sentimento de solidariedade nacional, permite enxergar o país como um todo, reforça a aposta no potencial humano e no conceito de Nação – sem xenofobia. Em algum momento no final da década de 2.000, quando o país atingiu o ápice da auto-estima, o “jeitinho” passou a ser visto como um valor, mostrando a flexibilidade do brasileiro para encontrar soluções, encantando os grandes gestores de qualidade.

Essa descoberta dos talentos naturais do brasileiro é essencial para cimentar programas educacionais e políticas sociais inclusivas. No final do segundo governo Lula, o orgulho de ser brasileiro tornou-se uma bandeira que abriu espaço para as políticas de cotas no ensino público.

Dentro dessa mesma lógica, é peça essencial o estímulo ao pequeno empreendedor, às micro e pequenas empresas, que não apenas garantem o emprego, mas, em seu processo de crescimento, a renovação e a vitalidade da economia.

Ao longo do pós-Constituinte, foram criados inúmeros instrumentos de apoio às PMEs, a partir da reestruturação do Sebrae no governo Collor. Pode-se estimular as PMEs com programas de gestão, com apoio dos institutos públicos à inovação, com os modelos de Arranjos Produtivos Locais e com financiamentos a custos razoáveis, como nos experimentos isolados de bancos do povo.

Na parte agrícola, o cooperativismo exerceu um enorme papel. E, mais recentemente, o modelo campeão do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), com suas propostas inovadoras de conferir ao trabalhador o usufruto, mas não a posse da terra – para impedir jogadas especulativas.

Políticas, como o apoio à agricultura familiar – garantindo a demanda a partir das escolas e outras organizações de serviço público -, as tentativas de produção de bioetanol por pequenos agricultores, tudo isso são experiências historicamente recentes, que poderão ser recuperadas.

Todo esse modelo é alicerçado na capacidade da sociedade de trabalhar em conjunto, de juntar forças, de instituir formas de colaboração, só possível após o trabalho prévio de construção, pela cultura, dos símbolos de uma alma brasileira, como forma de reforçar a solidariedade.

Paralelamente, há a necessidade de instituir políticas industriais visando manter a competitividade da produção brasileira. A única maneira de consolidar o modelo é garantir empregos de qualidade. E empregos de qualidade não se consegue na uberização e na consolidação de uma sociedade eminentemente de serviços.

É aí que a intervenção do Estado se torna necessária. Vive-se um período de eliminação de empregos. E empregos são essenciais para a paz social, para o bem-estar geral, para o fortalecimento do mercado de consumo. Daí a necessidade de políticas pró-ativas de geração de emprego, leis que domem a selvageria anti-emprego das plataformas, da uberização. É movimento internacional, que tenderá a crescer cada vez mais. O desafio será termos governos capazes de alinhar o país com as novas ideias que começam a se espalhar pelo mundo civilizado.

Outro ponto essencial, nas políticas públicas, é o papel do Estado no financiamento da inovação, seja pelo sistema Finep-Fundações de Amparo à Pesquisa, seja retomando o papel essencial da Petrobras e das grandes corporações privadas no espalhamento da pesquisa, através de parceria com universidades e de aprimoramento das práticas de seus fornecedores.

 

A armadilha dos indicadores financeiros

Ponto dos mais relevantes é sair da armadilha dos indicadores meramente financeiros.

Lembro-me da grande revolução gerencial dos anos 90 e a tentativa de levar a melhoria de gestão, e inovação, a pequenas e microempresas. Havia uma lógica férrea reforçando a relevância desse trabalho. Como as PMEs eram maioria, qualquer ganho incremental teria um impacto grande sobre a produtividade como um todo.

Em um debate nos anos 90, polemizei com Luciano Coutinho, defensor do conceito de campeões nacionais – uma das principais marcas da escola desenvolvimentista. E salientei a falta de indicadores sobre aspectos micro da economia. Por exemplo, um grupo de pequenas empresas, trabalhando de forma consorciada, representaria um ganho de eficiência relevante da economia. E, no entanto, esse ganho não era mensurado.

Entra-se aí em outro terreno relevante da economia, e pouco considerado no país: a análise das externalidades dos investimentos públicos e privados. Isto é, das consequências indiretas desses investimentos, no plano social, de meio ambiente e no campo do desenvolvimento, especialmente para superar uma das grandes marcas do subdesenvolvimento do pensamento mercadistas brasileiro: a falácia da composição.

Um exemplo claro foi a distribuição dos investimentos de pesquisa pelos novos campus. Houve intensa reação de pesquisadores do triângulo São Paulo-Rio de Janeiro-Belo Horizonte. Como possuem as melhores instituições públicas, partia-se do pressuposto que cada centavo aplicado nelas seria mais eficiente do que os centavos aplicados em novas instituições, sem tradição de pesquisa.

A realidade demonstrou o contrário. Os novos institutos levaram o conceito de pesquisa para as diversas regiões, permitindo a criação de políticas eficientíssimos, de consórcios de pesquisas bancados pela Petrobras e pela Confederação Nacional da Indústria, trazendo um sangue novo aos pesquisadores e, principalmente, um foco maior na solução dos problemas regionais.

Outro desafio foi a enorme concentração de poder nos frigoríficos nacionais. Transformou a JBS em um campeão internacional, mas quais os resultados sobre a cadeia produtiva da carne e do couro? Ora, o que impactaria o país seria a JBS como instrumento de modernização da produção pecuária. Ao contrário, seu poder – e dos demais frigoríficos – provocou enormes desequilíbrios na pecuária e na indústria de couros. Com isso, o campeão nacional se internacionalizou, com baixíssima contribuição ao desenvolvimento sistêmico do setor.

Outro tema dos mais relevantes foram as cotas sociais-raciais nas Universidades públicas. A reação dos idiotas da objetividade é que, colocando alunos menos preparados nas universidades, haveria uma perda de qualidade do ensino.

A lógica da inclusão é que havia uma assimetria na partida – a diferença de formação e de oportunidade entre alunos de escola pública e privada. Contornada essa assimetria pelas cotas, o que se viu – e foi comprovado pela Unicamp – é que a geração de cotistas, na média, tem melhor desempenho que a média dos não-cotistas, por saber que o estudo é a única maneira de superar a maldição das barreiras socioeconômicas.

E, se o potencial de um país se mede pela soma de potencialidades aproveitadas de sua população, como deixar de fora a maior parte da população, negra e pobre?

Há inúmeros outros temas essenciais, dentro de um projeto de desenvolvimento, como a capacidade de compra do Estado – fundamental em setores como de medicamentos e, em outros tempos, na construção de plataformas pela Petrobras.

O desenvolvimentismo

Voltando ao início da nossa conversa, como ficam os princípios desenvolvimentistas, de aumento do investimento público?

Investimentos públicos não podem ser vistos exclusivamente da ótica da recuperação conjuntural da economia – como costumam ser tratados -, mas como peça essencial de desenvolvimento, ou seja, em um horizonte temporal de longo prazo. Assim como a valorização da produção interna, do uso do mercado de consumo como barganha para a transferência de tecnologia pelas multinacionais – como foi feito pelo Brasil dos anos 50 e pela China do terceiro milênio.

Não existe bala de prata para o desenvolvimento.

O grande projeto de desenvolvimento será aquele que englobar todas essas políticas simultaneamente, como foco direto no melhor do Brasil: os brasileiros. E o grande estadista será o que juntar todas essas peças em um todo lógico e souber explicar o todo ao país, estimulando o grande pacto do desenvolvimento nas pequenas, médias, grandes empresas, nos arranjos sociais, nas cooperativas, nos APLs, nos movimentos sociais.

E salve Manoel Bonfim, Celso Furtado, Josué de Castro, Rômulo de Almeida, Anisio Teixeira, Paulo Freire, João Paulo dos Reis Velloso, salve a brilhante geração dos anos 60, ceifada pelo golpe militar e, depois, pelo economicismo emburrecedor contemporâneo.

*Luis Nassif é jornalista, editor do Jornal GGN. Autor, entre outros livros, de Os cabeças de planilha (Ediouro).

Publicado originalmente no Jornal GGN.

 

As causas do atraso português, por Samuel Pessoa

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Livro faz revisão da história econômica do país do século 16 até hoje

Samuel Pessoa, Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP.

Folha de São Paulo, 23/02/2025

O historiador português Nuno Palma acaba de publicar em Portugal, pela editora Don Quixote, “As Causas do Atraso Português”. O livro faz uma revisão da história econômica de Portugal do século 16 até hoje.

Palma nos oferece uma descrição muito original da história econômica portuguesa, que está bem assentada nos achados mais recentes da pesquisa acadêmica. Discordando da leitura mais tradicional, Palma não localiza o atraso dos povos peninsulares na Contrarreforma ou em qualquer questão cultural ou religiosa. A Contrarreforma, a Inquisição e o atraso cultural, principalmente educacional de Portugal, desempenharam um papel prioritariamente político na construção do absolutismo português.

O atraso institucional português começou a ser construído em meados do século 17, com o avanço institucional inglês em razão da guerra civil e da Revolução Gloriosa. Até esse período, não havia diferença relevante na renda per capita de Portugal e da Inglaterra, e as instituições políticas portuguesas limitavam o poder discricionário do rei, em algumas dimensões, até mais do que as cortes inglesas. Até o fim do século 17, não se pode falar de absolutismo em Portugal.

A piora institucional ocorreu definitivamente no século 18 e foi fruto da doença holandesa produzida pelo ouro do Brasil. A riqueza fácil abortou um incipiente processo de industrialização que ocorria.

Adicionalmente, o ouro de Minas permitiu que o rei não precisasse da autorização das cortes para financiar o Estado. As cortes não foram convocadas por pouco mais de 120 anos, até 1820. Finalmente, o fechamento total do regime político consolidou um capitalismo de compadrio. Palma sugere que até o final do século 17, aproximadamente, a economia portuguesa era mais competitiva.

O marquês de Pombal é a figura histórica que se sai pior na reconstrução histórica de Palma. Com a expulsão dos jesuítas, o marquês produziu um atraso educacional no país do qual Portugal somente se recuperaria na primeira década do Estado Novo salazarista!

Pombal e as escolhas posteriores transformaram Portugal em um país de analfabetos até meados do século 20. Devido ao peso imenso que a escolarização básica de qualidade tem no desenvolvimento econômico, aí está boa parcela do atraso de Portugal.

Para Palma, Portugal ficou parado no período da monarquia constitucional, de 1820 até 1910, e assim se manteve na curta Primeira República, até 1926. No Estado Novo, inicia-se o processo de convergência portuguesa com os países ricos. A melhora educacional e, no pós-guerra, o engate do país à Europa permitiram forte convergência da renda per capita de Portugal.

O processo de convergência continuou no período democrático recente, que se iniciou há 51 anos com a Revolução dos Cravos. Nas últimas duas décadas, Portugal voltou a se atrasar em relação aos países mais ricos. Palma enfatiza o efeito deletério das transferências da Comunidade Econômica Europeia, com efeitos ruins parecidos com o do ouro de Minas do século 18.

A parte final é a que me pareceu menos convincente. Provavelmente houve nas últimas duas décadas piora na alocação dos fatores, como tem ocorrido na América Latina, em geral.

Para uma resenha mais alentada, leia o Blog da Ibre. Seria oportuna uma edição brasileira do livro de Palma.

 

O Brasil visto pelo fundamentalismo evangélico, por André Castro

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Retrato do imaginário político-teológico das igrejas pentecostais. A explosão do gospel nos anos 90 como movimento cultural religioso. As Marchas de Jesus como “guerra de conquista”. E o papel do missionarismo que noticiam a salvação do país através da redenção

Por André Castro, Blog do Boitempo, 20/02/2025

São 5 da tarde. Faz sol e muito calor em Santo Antônio de Jesus, Bahia. Na avenida que corta a cidade, um grupo de quatro pessoas faz um culto. Um violão, um microfone e uma caixa de som são os utensílios que possibilitam o evento. Fazem o culto na pequena praça, não porque não possuem um lugar próprio para cultuar, mas porque acreditam que aquilo é uma ação missionária. As músicas que cantam, as pregações que fazem, as abordagens aos transeuntes têm o intuito de anunciar uma mensagem. Essa mensagem, dita como notícia, anuncia que a vida no mundo é morte, e a conversão ao evangelho e sua consequente participação na comunidade dos santos, a igreja, é a salvação.

Esses evangelistas da avenida chamam o lugar em que anunciam sua mensagem de “campo missionário”, ou seja, trata-se do lugar onde deve ser feita a evangelização, o anúncio da mensagem da fé. A mensagem precisa ser anunciada porque as pessoas precisam se converter. Agora, sendo parte da igreja, os crentes deixam de ser do mundo – campo missionário – e para fazer parte da comunidade dos que creem. Redimidos, ou seja, limpos das desgraças desta vida (pecado), já começam a viver a própria eternidade nas suas vidas. Converter-se é sair do lugar de alvo da ação missionária para ser agente da ação missionária. Em termos teológicos, sair do mundo é estar sendo redimido pelo sangue de Jesus. O papel de quem foi redimido é participar da ação missionária e fazer com que mais pessoas tenham acesso à verdade redentora.

Assim, eles participam da ação de Deus no mundo. E quanto mais anunciam a verdade do evangelho, mais se aproxima o retorno de Jesus, a redenção do universo – em termos teológicos, o fim dos tempos. Mesmo que se creia que o fim dos tempos esteja próximo, em geral não se acredita que ele já chegou. Há um debate intestino sobre a “forma correta” de entender o fim dos tempos. O papel da igreja não seria abandonar o mundo em sua desgraça, mas avançar na ação missionária para que a ação de Deus no mundo, se for possível, culmine com um avivamento. A ação missionária no campo evangélico se organiza pela ideia de que, se entregarem suas vidas para o Reino, é possível que passem por um avivamento.

O termo não é lá muito complicado: avivar, tornar mais vivo, mais forte e intenso. Acima de tudo, o avivamento é uma notícia. O avivamento só pode acontecer quando estamos totalmente despojados de nós mesmos e entregues aos desejos de Deus, a seus propósitos, que são o anúncio do evangelho para além das fronteiras. Um anúncio para o outro. A mente evangélica pressupõe a existência de um espaço, geográfico ou social, onde seja possível viver o tempo de Deus – o kairós –, de modo que a sua vontade e soberania seja adorada. Se o avivamento pressupõe a entrega interior, ele resulta em uma transformação da realidade social. O lugar em que se realiza a ação missionária – enquanto a vontade de Deus – é o lado de fora, o além das fronteiras.

Se os evangélicos chegaram com suas missões em terras brasileiras ainda no final do século XIX, até os anos 1990 não existia um campo evangélico no Brasil. Havia igrejas pentecostais das mais diferentes correntes, que foram surgindo organicamente, e igrejas históricas, como as Batistas, metodistas e Presbiterianas, para ser sucinto. Dois lados conflagrados e dispostos a uma briga maior contra o catolicismo. Quase todo evangélico do interior já ouviu alguma história de irmãos que foram expulsos de uma pequena cidade por padres que não aceitavam evangélicos no local. Verdade ou mentira, pouco importa, os evangélicos sempre se sentiram fora de casa no Brasil.

Peregrinos em terra estranha, sem espaço social. O desembarque da religião americana levou muito tempo para produzir suas próprias novidades. Afinal, toda a sorte de símbolos e ideias que estruturam a mentalidade evangélica estava intimamente ligada com a história dos Estados Unidos; era parte dela e, fora do seu espaço social de origem, essas ideias já não significavam as mesmas coisas por aqui. Enquanto as ideias americanas começavam a ganhar seus próprios significados no Brasil, a ideia de um avivamento se formava. Esta é a chave para compreender a experiência de fé no contexto brasileiro, patente na produção cultural:

“O que ocorreu nos anos 90 no Brasil foi uma explosão do gospel como um movimento cultural religioso, de um modo de ser evangélico, com efeitos na prática religiosa e no comportamento cotidiano. Passou-se a experimentar vivências religiosas combinadas em contextos socioculturais os mais variados, o que torna possível uma unanimidade evangélica não planejada sem precedentes na história do protestantismo no Brasil. Essas vivências são expressas por meio da música, do consumo e do entretenimento.”1

E essa mudança não foi pouca coisa. Se, nos anos 1930-40, os evangélicos condenavam o nacionalismo e a defesa da pátria enquanto idolatria, agora já passavam a ver saídas para essa mesma pátria, saídas que passam por um avivamento.2 Em 1994 começaram as marchas para Jesus, postulando publicamente a presença dessa comunidade imaginada, enquanto fiéis marchavam sob o comando do seu general. Para Raquel Sant’Ana, a Marcha para Jesus é um evento que se assemelha a uma guerra, especificamente a uma “guerra de conquista”. O “exército de Deus” se forma a partir da alteridade radical e da batalha espiritual. A batalha espiritual é essencial para construir a união do povo de Deus, ela se dá entre o mundo e a igreja. Os que são da igreja, que se converteram do caminho do mundo, precisam estar atentos e vigilantes para não serem destruídos pelas armas do diabo no mundo. Assim, unidos, lutam sua batalha. Essa união se expressa através de ações estratégicas em diversos espaços, como o evento de culto ao ar livre que contamos no início deste texto. É nesse momento de união que os evangélicos atuam em favor de Jesus.3 Aquela fronteira que organizava a ação missionária se refaz e não se refere mais à fronteira nacional, mas ao pertencimento ou não à comunidade evangélica, entre pentecostais e históricos.

Curioso mesmo é que isso tenha acontecido exatamente quando nossas mentes mais críticas começavam a perceber que a própria ideia de um Brasil do futuro era coisa do passado,4 e que as promessas de integração social que davam sentido a essa esperança-projeção estavam rodando em falso – afinal, como esses mesmos críticos já constataram, esse Brasil sempre foi uma projeção. Uma projeção que, no entanto, fez sentido por muito tempo e dava ao processo de modernização seu significado. Seja como for, o Brasil a ser colocado diante de Cristo não é outra coisa senão mais uma imagem de Brasil. Mas, agora, a experiência prática que essa imagem organiza não dá sentido à formação nacional, e sim ao seu ocaso. Lá do outro lado da ponte, na fronteira de tensão, é onde está a maior parte dos evangélicos: mulheres negras e trabalhadoras que sobrevivem em família com renda de até três salários mínimos, e frequentam pequenas igrejas de até 200 membros.5 São essas pessoas que sonham acordadas com o Brasil avivado.

Não é nenhum exagero notar que é exatamente essa esperança de um Brasil sob os domínios de Jesus – e, por isso, avivado – que estava na boca da ex-primeira-dama durante a campanha derrotada de 2022: somos um país com promessas que vão se cumprir e vamos fazer o que for necessário para que a vontade de Deus aconteça aqui.6 Mas não foi ela quem criou – e isso é o que importa – esse sentimento evangélico de um Brasil avivado. Esse avivamento do Brasil, que fundamenta a fala da ex-primeira-dama, tornou-se notícia na mesma década de 1990, quando os evangélicos começaram a perceber seu crescimento em massa e, assim, passaram a interpretar que algo estava acontecendo: Deus estava atuando, um avivamento. Ele está lá, dentro da experiência de fé daqueles que se chamam de irmãos e fazem com que a verdade em que acreditam se torne realidade, e a realidade se pareça muito com a verdade em que acreditam.

Essa realidade é a de um mundo falido e destruído, prestes ao colapso. Eles veem uma saída na destruição completa, é claro, mas, ao menos, veem algo. Enquanto nossos olhos continuam voltados para o próximo governo ou orçamento estatal (engessado pelo teto de gastos), lá, no fundão das grandes cidades e nos rincões do interior, proclama-se a redenção nacional, o seu avivamento. Ele começa no coração de cada um: “Quando nos despojarmos e colocarmos tudo o que temos em Deus, aí sim, pegaremos fogo”. É tudo isso e um pouco mais que faz pesar o sentimento evangélico de um Brasil avivado, que organiza um sentido de esperança para esses brasileiros que colocam tudo o que têm e são nessa certeza de que algo há de acontecer. O fogo há de queimar, como queima em seus corações, no mundo.

Sejam bem-vindos ao Brasil avivado.

Notas

  1. CUNHA, Magali do Nascimento. Vinho novo em odres velhos. Um olhar comunicacional sobre a explosão gospel no cenário religioso evangélico no Brasil. Tese (Doutorado em Comunicação). São Paulo: Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004, p. 144.
  2. Estamos nos referindo às publicações do Mensageiro da Paz, jornal oficial da Assembleia de Deus, que começou a ser publicado na década de 1930 e permanece ativo até os dias de hoje. É possível acessar os textos mais antigos por meio de uma biblioteca disponibilizada pela Rede Latino-americana de Estudos Pentecostais (RELEP). Para uma análise do Mensageiro da Paz no contexto de sua transição do ascetismo para a ética política, conferir: XAVIER, Liniker Henrique; CORREA, Marina Aparecida Oliveira dos Santos. Ditadura, democracia e fé no país da moral e bons costumes: as ADs e o Mensageiro da Paz. São Paulo: Recriar, 2021.
  3. SANT’ANA, Raquel. A nação cujo Deus é o senhor: guerra, política e religião a partir das marchas para Jesus. Rio de Janeiro: Editora Telha, 2024.
  4. Tomemos como exemplo a prosa de Paulo Arantes: em Zero à esquerda (2004) e em Extinção (Boitempo, 2007), está posto o fim de um programa, de uma expectativa, que vai virar interpretação sócio-histórica em O novo tempo do mundo (Boitempo, 2014).
  5. BALLHOUSSIER, Anna Virginia. Mulheres negras são maioria nas igrejas evangélicas paulistanas, aponta pesquisa Datafolha. Folha de S. Paulo, 20 jul. 2024. Edição Impressa. Acesso em: 13 jan. 2025.
  6. CASTRO, André. A luta que há nos deuses: da Teologia da Libertação à extrema direita evangélica. Rio de Janeiro: Editora Machado, 2024. Em especial, o ensaio “É o rei que governa essa nação”, no qual faço uma interpretação dos discursos da Michelle Bolsonaro.

 

O Valentão, por Paul Krugman

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Paul Krugman – A Terra é Redonda – 16/02/2025

Na visão de mundo de Elon Musk, o simples fato de tentar ajudar as pessoas necessitadas faz de você um marxista de esquerda radical que odeia a América

Aqui está onde estamos como nação agora: (i) Podemos estar no meio de uma guerra comercial. Ou talvez não. (ii) Estamos no meio de uma crise constitucional. Não, talvez. (iii) Podemos estar no meio de uma espécie de golpe digital, que pode, como consequência colateral, fazer com que grande parte do governo federal pare de funcionar.

O tema unificador aqui, eu acho, é que o governo federal foi tomado por pessoas más que também são incrivelmente ignorantes.

Comece com a guerra comercial talvez/ talvez não. O governo de Donald Trump estava, ao que tudo indica, pronto para impor tarifas de 25% ao Canadá e ao México. Isso teria sido autodestrutivo (e também uma violação de acordos anteriores), mesmo que nossos vizinhos não retaliassem. E ambos deixaram claro que retaliariam. Estes são países reais, com verdadeiro patriotismo e orgulho, e eles não estavam prontos para serem intimidados.

Donald Trump desistiu. OK, supostamente as tarifas estão suspensas apenas por um mês, mas alguns já estão brincando que o “mês tarifário” se tornará a nova “semana de infraestrutura”.

E, supostamente, tanto o México quanto o Canadá fizeram algumas concessões em troca da retenção tarifária. Mas não há realmente nada lá; Nenhum dos países está fazendo nada que não teria feito sem a ameaça tarifária. Os EUA, por outro lado, concordaram em reprimir os embarques de armas para o México. Donald Trump vai transformar isso em uma vitória; eleitores com pouca informação e alguns meios de comunicação intimidados podem concordar com a mentira. Mas, basicamente, a América recuou.

Então, Donald Trump é o valentão clássico que foge quando alguém o enfrenta? Definitivamente parece assim.

Sejamos claros, no entanto: este não é um caso de nenhum dano, nenhuma falta. Ao fazer a ameaça tarifária em primeiro lugar, Donald Trump deixou claro que os Estados Unidos não são mais uma nação que honra seus acordos. Ao ceder ao primeiro sinal de oposição, ele também se fez parecer fraco. A China deve estar muito satisfeita com a forma como tudo isso se desenrolou.

E como argumentei outro dia, a ameaça agora sempre presente de tarifas terá um efeito inibidor no planejamento de negócios, inibindo a integração econômica e prejudicando a manufatura.

Ainda assim, a guerra comercial não aconteceu, pelo menos até agora. Mas a crise constitucional está em pleno andamento.

Elon Musk, depois de passar um fim de semana denunciando a Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional como “má”, um “ninho de víboras de marxistas radicais de esquerda que odeiam a América” e uma “organização criminosa”, anunciou que a agência estava sendo fechada. Agora, Elon Musk não é o presidente – pelo menos eu não acho que ele seja; ele nem é um funcionário do governo.

Mas Donald Trump confirmou a medida, que é ilegal e inconstitucional. Sem linguagem de qualificação, sem evasões de “pode ser” ou “alguns dizem”, por favor. O Congresso aprovou uma lei estabelecendo a USAID como uma agência independente, e o presidente não pode aboli-la a menos que o Congresso aprove uma nova legislação para esse efeito.

Parece quase irrelevante perguntar do que se trata, mas ainda assim: do que se trata?

Então, por que Elon Musk é um inimigo tão histérico da agência, cujo principal objetivo é fornecer ajuda humanitária? Pode haver alguma história de fundo aqui, na qual a USAID de alguma forma interferiu em um projeto de Elon Musk. E Elon Musk certamente está apostando na numeracia pública: abolir uma agência parece que vai economizar muito dinheiro, e poucos eleitores entendem o quão pequenos são US$ 40 bilhões no contexto federal.

Mas meu palpite é que, na visão de mundo de Elon Musk, o simples fato de tentar ajudar as pessoas necessitadas faz de você um marxista de esquerda radical que odeia a América.

Meu ponto final é um pouco mais complicado, porque ainda não sabemos como vai acabar. Os associados de Elon Musk tiveram acesso aos sistemas do Tesouro dos EUA que controlam todos os pagamentos federais, desde doações a organizações sem fins lucrativos, cheques da Previdência Social e salários de funcionários federais.

O potencial para travessuras aqui é imenso. Os tribunais podem ter dito ao governo Donald Trump que não pode congelar os gastos exigidos pelo Congresso, mas o pessoal de Elon Musk, que não demonstrou muita reverência pela lei, pode muito bem simplesmente ignorar os tribunais e não cortar os cheques.

E eles poderiam ir além de cortar programas que o governo Elon Musk / Donald Trump não gosta. Imagine que você é um empreiteiro federal que fez doações de campanha para os democratas; de repente, o governo para de pagar o que deve a você e ignora as perguntas dizendo que está trabalhando no problema. Ou você é um funcionário federal que, de acordo com alguém em seu escritório que tem uma queixa pessoal, expressou simpatia pelo DEI; de alguma forma, seus pagamentos salariais programados regularmente param de ser depositados em sua conta bancária. Ou até mesmo imagine que você é um aposentado que fez campanha para Kamala Harris e, por algum motivo, seus cheques da Previdência Social param de chegar.

Não diga que eles não fariam essas coisas. Vimos essas pessoas em ação, e é claro que o fariam se pudessem.

No momento, eles provavelmente não podem. O sistema federal de pagamentos é imensamente complexo e, como a maioria das infraestruturas governamentais, está financeiramente pressionado há décadas. Portanto, é remendado, grande parte dele rodando em hardware antigo e software ainda mais antigo, continuou funcionando graças às mãos antigas e à memória institucional. Os jovens de 20 e poucos anos que Elon Musk está implantando para assumir, bloqueando os veteranos e deixando de lado as pessoas que sabem como o sistema funciona, quase certamente não entendem o suficiente para politizar os pagamentos imediatamente.

Como Nathan Tankus, o especialista nesses assuntos, diz: “Acredito 100% que a principal barreira para Elon Musk obter o controle do sistema de pagamentos do Tesouro é o COBOL”.

Para os leitores perplexos com a referência, COBOL é uma linguagem de programação muito antiga que já foi difundida no mundo dos negócios, mas na qual quase ninguém com menos de 60 anos sabe programar — mas ainda é amplamente usada no governo. (Durante a Covid, o estado de Nova Jersey fez um apelo frenético para que as pessoas que conheciam o COBOL implementassem benefícios de desemprego expandidos.)

Mas essa observação levanta outra preocupação. E se o povo Musk — Muskovites? — tentar mexer com sistemas que não entendem, acreditando que são superinteligentes e podem dominar tudo com a ajuda de um pouco de IA? Não é difícil imaginar todo o sistema de pagamentos federais – incluindo, a propósito, o serviço da dívida federal – quebrando.

Tanto dano – à credibilidade dos EUA, à Constituição e ao Estado de Direito e, possivelmente, até mesmo ao próprio funcionamento do governo. E Donald Trump só assumiu o poder há menos de um mês.

Paul Krugman é professor na Universidade de Princeton (EUA). Foi agraciado com o prêmio Nobel de Economia em 2008.

Tradução: Marilia Pacheco Fiorillo.

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