O Valentão, por Paul Krugman

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Paul Krugman – A Terra é Redonda – 16/02/2025

Na visão de mundo de Elon Musk, o simples fato de tentar ajudar as pessoas necessitadas faz de você um marxista de esquerda radical que odeia a América

Aqui está onde estamos como nação agora: (i) Podemos estar no meio de uma guerra comercial. Ou talvez não. (ii) Estamos no meio de uma crise constitucional. Não, talvez. (iii) Podemos estar no meio de uma espécie de golpe digital, que pode, como consequência colateral, fazer com que grande parte do governo federal pare de funcionar.

O tema unificador aqui, eu acho, é que o governo federal foi tomado por pessoas más que também são incrivelmente ignorantes.

Comece com a guerra comercial talvez/ talvez não. O governo de Donald Trump estava, ao que tudo indica, pronto para impor tarifas de 25% ao Canadá e ao México. Isso teria sido autodestrutivo (e também uma violação de acordos anteriores), mesmo que nossos vizinhos não retaliassem. E ambos deixaram claro que retaliariam. Estes são países reais, com verdadeiro patriotismo e orgulho, e eles não estavam prontos para serem intimidados.

Donald Trump desistiu. OK, supostamente as tarifas estão suspensas apenas por um mês, mas alguns já estão brincando que o “mês tarifário” se tornará a nova “semana de infraestrutura”.

E, supostamente, tanto o México quanto o Canadá fizeram algumas concessões em troca da retenção tarifária. Mas não há realmente nada lá; Nenhum dos países está fazendo nada que não teria feito sem a ameaça tarifária. Os EUA, por outro lado, concordaram em reprimir os embarques de armas para o México. Donald Trump vai transformar isso em uma vitória; eleitores com pouca informação e alguns meios de comunicação intimidados podem concordar com a mentira. Mas, basicamente, a América recuou.

Então, Donald Trump é o valentão clássico que foge quando alguém o enfrenta? Definitivamente parece assim.

Sejamos claros, no entanto: este não é um caso de nenhum dano, nenhuma falta. Ao fazer a ameaça tarifária em primeiro lugar, Donald Trump deixou claro que os Estados Unidos não são mais uma nação que honra seus acordos. Ao ceder ao primeiro sinal de oposição, ele também se fez parecer fraco. A China deve estar muito satisfeita com a forma como tudo isso se desenrolou.

E como argumentei outro dia, a ameaça agora sempre presente de tarifas terá um efeito inibidor no planejamento de negócios, inibindo a integração econômica e prejudicando a manufatura.

Ainda assim, a guerra comercial não aconteceu, pelo menos até agora. Mas a crise constitucional está em pleno andamento.

Elon Musk, depois de passar um fim de semana denunciando a Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional como “má”, um “ninho de víboras de marxistas radicais de esquerda que odeiam a América” e uma “organização criminosa”, anunciou que a agência estava sendo fechada. Agora, Elon Musk não é o presidente – pelo menos eu não acho que ele seja; ele nem é um funcionário do governo.

Mas Donald Trump confirmou a medida, que é ilegal e inconstitucional. Sem linguagem de qualificação, sem evasões de “pode ser” ou “alguns dizem”, por favor. O Congresso aprovou uma lei estabelecendo a USAID como uma agência independente, e o presidente não pode aboli-la a menos que o Congresso aprove uma nova legislação para esse efeito.

Parece quase irrelevante perguntar do que se trata, mas ainda assim: do que se trata?

Então, por que Elon Musk é um inimigo tão histérico da agência, cujo principal objetivo é fornecer ajuda humanitária? Pode haver alguma história de fundo aqui, na qual a USAID de alguma forma interferiu em um projeto de Elon Musk. E Elon Musk certamente está apostando na numeracia pública: abolir uma agência parece que vai economizar muito dinheiro, e poucos eleitores entendem o quão pequenos são US$ 40 bilhões no contexto federal.

Mas meu palpite é que, na visão de mundo de Elon Musk, o simples fato de tentar ajudar as pessoas necessitadas faz de você um marxista de esquerda radical que odeia a América.

Meu ponto final é um pouco mais complicado, porque ainda não sabemos como vai acabar. Os associados de Elon Musk tiveram acesso aos sistemas do Tesouro dos EUA que controlam todos os pagamentos federais, desde doações a organizações sem fins lucrativos, cheques da Previdência Social e salários de funcionários federais.

O potencial para travessuras aqui é imenso. Os tribunais podem ter dito ao governo Donald Trump que não pode congelar os gastos exigidos pelo Congresso, mas o pessoal de Elon Musk, que não demonstrou muita reverência pela lei, pode muito bem simplesmente ignorar os tribunais e não cortar os cheques.

E eles poderiam ir além de cortar programas que o governo Elon Musk / Donald Trump não gosta. Imagine que você é um empreiteiro federal que fez doações de campanha para os democratas; de repente, o governo para de pagar o que deve a você e ignora as perguntas dizendo que está trabalhando no problema. Ou você é um funcionário federal que, de acordo com alguém em seu escritório que tem uma queixa pessoal, expressou simpatia pelo DEI; de alguma forma, seus pagamentos salariais programados regularmente param de ser depositados em sua conta bancária. Ou até mesmo imagine que você é um aposentado que fez campanha para Kamala Harris e, por algum motivo, seus cheques da Previdência Social param de chegar.

Não diga que eles não fariam essas coisas. Vimos essas pessoas em ação, e é claro que o fariam se pudessem.

No momento, eles provavelmente não podem. O sistema federal de pagamentos é imensamente complexo e, como a maioria das infraestruturas governamentais, está financeiramente pressionado há décadas. Portanto, é remendado, grande parte dele rodando em hardware antigo e software ainda mais antigo, continuou funcionando graças às mãos antigas e à memória institucional. Os jovens de 20 e poucos anos que Elon Musk está implantando para assumir, bloqueando os veteranos e deixando de lado as pessoas que sabem como o sistema funciona, quase certamente não entendem o suficiente para politizar os pagamentos imediatamente.

Como Nathan Tankus, o especialista nesses assuntos, diz: “Acredito 100% que a principal barreira para Elon Musk obter o controle do sistema de pagamentos do Tesouro é o COBOL”.

Para os leitores perplexos com a referência, COBOL é uma linguagem de programação muito antiga que já foi difundida no mundo dos negócios, mas na qual quase ninguém com menos de 60 anos sabe programar — mas ainda é amplamente usada no governo. (Durante a Covid, o estado de Nova Jersey fez um apelo frenético para que as pessoas que conheciam o COBOL implementassem benefícios de desemprego expandidos.)

Mas essa observação levanta outra preocupação. E se o povo Musk — Muskovites? — tentar mexer com sistemas que não entendem, acreditando que são superinteligentes e podem dominar tudo com a ajuda de um pouco de IA? Não é difícil imaginar todo o sistema de pagamentos federais – incluindo, a propósito, o serviço da dívida federal – quebrando.

Tanto dano – à credibilidade dos EUA, à Constituição e ao Estado de Direito e, possivelmente, até mesmo ao próprio funcionamento do governo. E Donald Trump só assumiu o poder há menos de um mês.

Paul Krugman é professor na Universidade de Princeton (EUA). Foi agraciado com o prêmio Nobel de Economia em 2008.

Tradução: Marilia Pacheco Fiorillo.

Publicado nas redes sociais do autor.

População de rua e a lógica do descarte humano, entrevista com Igor Rodrigues.

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Contingente de pessoas em situação de rua explode — no Brasil e no mundo. É preciso ir às raízes do fenômeno. Capitalismo tardio quebra os laços de solidariedade e serve-se da superexploração dos mais pobres, como na reciclagem, e higienização das cidades

OUTRAS MÍDIAS/IHU, 19/02/2025

Igor Rodrigues em entrevista IHU e Baleia Comunicação

Com políticas públicas esgotadas, panorama sombrio tomou conta do país e aumentou em 1.000%, na última década, o número de pessoas que moram nas ruas. Uma população invisibilizada, que reflete o colapso do atual sistema socioeconômico. “A vida nas ruas e os indivíduos que vivem nestas condições não estão fora do sistema capitalista, pelo contrário, são produtos desta sociedade, fabricados, embalados e entregues por um sistema econômico agressivo, destruidor e colapsado”, assinala Igor Rodrigues, autor da pesquisa Trocas Sinistras: a vida na rua sob novo prisma, junto com Dimitri C. Fernandes.

Com o intuito de compreender a vida nas ruas, nos últimos dez anos, os pesquisadores se debruçaram a estudar as pessoas que moram nas ruas, o conceito de cidadania e as políticas públicas. Por isso, Rodrigues é catedrático ao afirmar que “sem uma abordagem criativa e humanitária, os governos se limitam às políticas esgotadas, albergacionistas, quando não traçam alguma escalada pela barbárie e pela eliminação”. Para o sociólogo, o problema também é acadêmico, pois “pesquisadores e cientistas do assunto continuam calados sem explicar esse fracasso – o debate, precário, recorre ao mero instrumento descricionista-etnográfico ou aos censos para apontar quantos aumentaram”, explica.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o sociólogo expõe as causas que levam as pessoas às ruas. Muito pelo contrário do que o senso comum tem como mito, “a droga não pode ser tomada como uma explicação simplista e reducionista da vida nas ruas, até porque uma gama de indivíduos está na rua e não utiliza nenhuma substância ou começou a utilizar após ir para as ruas”, pontua. Os motivos, segundo coloca, estão associados “às rupturas nos ciclos de troca social e o processo de descarte humano crescente nas últimas décadas, não a suposta ‘comodidade’ que a vida na rua teria”, destaca.

“Estamos falando da produção crescente do descarte humano”, assevera o pesquisador. Para Rodrigues, as pessoas em situação de rua são “descartadas por este modelo econômico, enquanto tal, vivenciam uma total violação de direitos humanos. A sociedade cria espaços de controle e confinamento ‘a céu aberto’, relegando essas pessoas a um estado de marginalização que tolera e permite o massacre destes indivíduos descartados. Estamos presenciando uma série histórica de banimento de na ordem dos direitos”, complementa.

Igor de Souza Rodrigues é doutor e mestre em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora. Mestre, graduado em Direito pelo Instituto Vianna Júnior e em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora e especialista na área de sociologia. Atuou como pesquisador Sênior do projeto A Gênese Social do Usuário do Crack – Ministério da Justiça do Brasil – UFJF/SENAD (2014-2017) e membro do Centro de Estudos Sobre Cidadãos em Situação de Rua. Leia a entrevista:

IHU – A primeira pergunta não é um recorte de sua pesquisa, mas imagino que exista uma estimativa que o senhor possa trazer para contextualizar o tema. Qual o número de pessoas em situação de rua no Brasil? Por que isso acontece, apesar de haver investimentos em políticas públicas?

Igor Rodrigues – O Brasil tem hoje aproximadamente 300 mil pessoas vivendo nas ruas de todo o país. A questão que eu e o sociólogo Dmitri Fernandes dedicamos anos de pesquisa foi entender o motivo do número ter crescido 1.000% na última década, apesar do aumento dos investimentos e da diversificação dos serviços na área social, ou seja, é preciso entender qual o ponto-chave e o motivo pelo qual as cidades não têm conseguido resolver ou, pelo menos, frear este problema social apesar da atenção que o problema vem recebendo nos últimos anos.

Após décadas de políticas fracassadas neste segmento, a pergunta “onde se tem errado?” se tornou essencial para uma virada eficaz no modo de compreensão sobre a vida nas ruas. Há quatro anos, em entrevista ao IHU, relatei que as políticas eram apenas castelos de areia e não lograriam êxito. O Brasil coleciona um retumbante fracasso em relação às políticas para a situação de rua e precisa com urgência rever este panorama.

O pior é que os pesquisadores e cientistas do assunto continuam calados sem explicar esse fracasso – o debate, precário, recorre ao mero instrumento descricionista-etnográfico ou aos censos para apontar quantos aumentaram. Sem uma abordagem criativa e humanitária, os governos se limitam às políticas esgotadas, albergacionistas, quando não traçam alguma escalada pela barbárie e pela eliminação. Enfrentamos, então, o que estamos chamando de um panorama sombrio: a falta de alternativas ao debate público sobre a situação de rua, não apenas no Brasil, mas no mundo. A falta de articulação entre as políticas públicas, as estruturas sociais e as experiências individuais perpetuam o problema, transformando a situação de rua em um reflexo do colapso do sistema socioeconômico.

IHU – Quais são os principais mitos em torno das razões pelas quais as pessoas passam a viver em situação de rua? Qual a importância de desconstruí-los?

Igor Rodrigues – Vou destacar três mitos. De um modo geral, a população acredita que a situação de rua é causada pela droga, especialmente pelo crack. Por vezes, o crack pode, de fato, ser encontrado na dinâmica de quem vive nas ruas, mas nem sempre. A droga não pode ser tomada como uma explicação simplista e reducionista da vida nas ruas, até porque uma gama de indivíduos está na rua e não utiliza nenhuma substância ou começou a utilizar após ir para as ruas; por outro, há vários que utilizam substâncias psicoativas em larga escala, cocaína, ecstasy, metanfetamina e até crack e não estão vivendo nas ruas.

Outro mito é que são simplesmente pessoas vagabundas, que não fazem absolutamente nada. As pessoas em situação de rua precisam se virar, catam latas, vendem balas, fazem carga e descarga de materiais, atuam em setores da agricultura como a colheita do café e da cana, porém, não há reconhecimento de seu trabalho, a troca não atinge recompensas materiais e apenas explora os fundos de vida. A história de Janaína, que começa às 7 horas da manhã e para às 22 horas para catar lixo, resume um pouco o cotidiano da vida nas ruas. Janaína consegue cerca de R$ 15 por dia, a sua jornada pouco consegue transformar em renda ou recompensas materiais, praticamente trabalha para comer, “o meu rolê é o lixo”, disse ela em uma das conversas que tivemos.

Temos também o mito da infestação, replicado, por exemplo, no livro a Máfia dos Mendigos: como a caridade aumenta a miséria. O senso comum tem acreditado que a situação de rua aumenta porque as pessoas estão sendo bem tratadas com políticas sociais, que é cômodo viver nas ruas. Há muito sofrimento na vida nas ruas, as pessoas nos relataram dramas profundos, mutilação da subjetividade, mas percebemos que querem sair desta condição. Além disso, a causa do fenômeno são as rupturas nos ciclos de troca social e o processo de descarte humano crescente nas últimas décadas, não a suposta “comodidade” que a vida na rua teria, até porque esse pensamento é, em si, uma crítica às políticas de transferência de renda, que as pessoas ali teriam direito estando na rua ou não.

IHU – Até que ponto a “teoria da multicausalidade” explica o crescimento da população de rua e a partir de que ponto ela é insuficiente?

Igor Rodrigues – Os pesquisadores e cientistas que estudam a vida nas ruas estão rendidos ao fácil e cômodo jargão “a situação de rua é multicausal”, ou seja, explicada por inúmeros fatores: políticos, econômicos, culturais – praticamente toda a literatura escapa de uma explicação fenomenológica em razão do generalismo e a superficialidade desta teoria. Dizer que é multicausal sem, de fato, aprofundar na explicação detalhada do problema criou uma superficialidade enorme nos estudos da situação de rua. Ora, todo problema social é complexo e multicausal, a questão passa a ser, então, entender o que estas aparentes “causas” têm em comum? Estudando a vida dessas pessoas, descobrimos que, por detrás das brigas familiares, depressão, consumo de drogas, alcoolismo, está a humilhação, a fragmentação e a frouxidão das relações sociais. Estes elementos comunicam todos os outros, portanto, estão na raiz do problema social.

IHU – As pessoas em situação de rua são pessoas excluídas da sociedade ou elas fazem parte do “sistema”? Por quê?

Igor Rodrigues – A vida nas ruas e os indivíduos que vivem nestas condições não estão fora do sistema capitalista. pelo contrário, são produtos desta sociedade, fabricados, embalados e entregues por um sistema econômico agressivo, destruidor e colapsado. FrançaEstados UnidosAlemanhaÍndiaArgentinaPortugalChinaÁfrica do Sul e diversos outros territórios também registraram um acréscimo estrondoso dessa população, que não se restringe a locais mais ou menos ricos. Este modelo de sociedade tem produzido não apenas resíduos plásticos, mas pessoas, subjetividades descartadas na lógica do sistema e não mais aproveitadas. Embora esses indivíduos sejam tratados como “resíduos indesejáveis” – os sujos, feios e malvados -, eles representam uma manifestação extrema das contradições de nossa sociedade. A rua é a feiura do capital, um reflexo sombrio da precarização econômica e social.

Os indivíduos em situação de rua são a base de sustentação de uma pirâmide de exploração no mercado da reciclagem, de venda no comércio ambulante, em atividades no período de safras, entre outras. Além disso, participam como peças-chave no controle social, cuja existência reforça a culpa pela violência urbana, por exemplo. Tratá-los a partir da exclusão total seria ignorar todas estas facetas, incluindo os aspectos sinistros da relação.

IHU – A Constituição de 1988 ganhou o apelido de “Constituição Cidadã”. A razão é porque ela tinha, no seu núcleo, um paradigma orientado à solidariedade. Porém isso parece ter se degradado progressivamente nos últimos 36 anos. O que explica o enfraquecimento da reciprocidade social que nos leva ao cenário atual?

Igor Rodrigues – A Constituição Federal de 1988 nunca chegou de fato às pessoas que vivem nas ruas. São inúmeras violações históricas, massacres, indignidade, fome, frio, episódios grotescos, desrespeito a qualquer tipo de humanidade de quem vive nestas condições. A Constituição Brasileira seguiu um modelo de estado de bem-estar social, típico de um período do capitalismo, contudo, ao longo dos anos, esse próprio sistema econômico tem perdido a capacidade de absorção dos indivíduos via cidadania, criando pessoas dispensáveis e refugo descartável.

democratização de direitos, de cidadania, depende, em boa medida, dos vínculos que uma sociedade desenvolve. Tem-se caminhado pelo individualismo, por trocas sinistras, ou seja, contato, proximidade física, mas formas obscuras de se relacionar. O conceito de cidadania se tornou esvaziado para parcelas significativas da população, incluindo os que vivem nas ruas. É um conceito ainda bastante fixado ao modo de vida das classes mais estabelecidas, como a classe média.

IHU – De que maneira o mundo do trabalho, com os processos de precarização de direitos de trabalhistas (chamada uberização) e de eliminação de postos de trabalho (automação de atividades) impacta no aumento da população em situação de vulnerabilidade social extrema?

Igor Rodrigues – Temos que entender os processos sociais como um todo. Na Revolução Industrial na Inglaterra no século XVIII, a população miserável era uma parcela reserva aos empregos nas fábricas. Esse processo mudou especialmente com a automação, alcançando níveis jamais vistos desde a introdução da microeletrônica, a partir de 1980 até os dias atuais. O capitalismo tem, cada vez mais, eliminado postos de trabalho, como o de atendente, caixa de supermercado, cobrador de ônibus, são algumas das profissões em extinção. Algumas atividades surgiram neste mercado, porém, o saldo é negativo e as novas profissões não envolvem os trabalhos cujas camadas miseráveis têm oportunidades.  A combinação entre precarização e automação não apenas empurra indivíduos para a pobreza, mas também amplia desigualdades estruturais.

O resultado é que, nos últimos anos, milhões de brasileiros foram para a informalidade, como vendedores ambulantes, catadores, entregadores de comida, ubers, entre outros. O aumento da situação de rua é consequência direta deste processo na medida em que há um tensionamento dos postos de trabalho, alguns são empurrados para as atividades com baixíssimas recompensas materiais como a catação de lixo – trabalhos exaustivos com exploração dos fundos de vida.

IHU – O que são as “trocas sinistras”, expressão conceitual que resulta do seu trabalho de pesquisa e de sua equipe, e o que o debate traz de novo para a discussão deste problema tão sério?

Igor Rodrigues – Durante quase dez anos de pesquisa, pudemos perceber que uma das questões centrais do fenômeno está na base das relações sociais: a sociedade não tem conseguido completar ciclos de reciprocidade com as pessoas em situação de rua e vice-versa – enormes trincas nas subjetividades, destruição da autoestima, falta de confiança, expectativas e profecias negativas geram o que temos chamado de trocas sinistras.

Uma relação efetiva que promove a inclusão depende de um ciclo entre dar-receber-retribuir, porém a sociedade tem visto as pessoas em situação de rua apenas sob o fardo da assistência, sem capacidade de retribuição nas trocas sociais. Nasce assim uma forma de se relacionar sem reciprocidade: trocas sinistras são relações ambíguas, muitas vezes camufladas, que trazem um componente de eliminação, violação e perversidade. São trocas assimétricas, predatórias e frequentemente violentas, por exemplo, quando alguém para se livrar de um pedinte na mesa do bar dá uma esmola, ou seja, há proximidade física, existe contato, mas a relação se baseia na fragmentação da troca e na humilhação.

O conceito de trocas sinistras oferece uma visão alternativa para compreender a vida nas ruas, desloca o foco do indivíduo para as relações sociais e levanta a falta de confiança e a humilhação nas trocas para explicar o enguiço das políticas públicas e o aumento da situação de rua. Explica, por exemplo, e a baixa adesão às políticas, o motivo pelo qual muitas pessoas em situação de rua não aceitam, desconfiam e têm medo do Estado – questões até então pouco compreendidas pelos cientistas.

IHU – Em que sentido diversos centros de acolhimento dessas populações, ao mesmo tempo que oferecem condições sanitárias e de alimentação essenciais, por outro lado produzem rotinas humilhantes à população de rua? Como isso afeta a subjetividade dessas pessoas?

Igor Rodrigues – Poucos centros de acolhimento verdadeiramente acolhem, as rotinas humilhantes destes lugares revelam uma tensão profunda entre a oferta de cuidados essenciais e a reprodução de estruturas opressoras. O acolhimento no Brasil precisa ser reconstruído a partir de outras lógicas. Em muitos casos, essas instituições impõem regras e práticas que desconsideram a individualidade e a dignidade dos indivíduos. O controle desmedido do cotidiano, como restrições à circulação, horários fixos e imposição de comportamentos, acaba por transformar a assistência em uma troca sinistra. Por fim, as pessoas acabam por não aderir aquilo que foi, em tese, proposto para evitar a situação de desabrigo.

Pudemos ver através das pesquisas o impacto na saúde mental e emocional das pessoas em situação de rua, reforçando ciclos de vulnerabilidade e exclusão. Esses indivíduos muitas vezes internalizam os estigmas sociais, o que pode levar à perda de autoestima e de esperança. A experiência repetida de humilhação e despersonalização minam a autoestima e reforçam sentimentos de inutilidade e rejeição. Como mencionamos na pesquisa, esse esfacelamento moral é o reflexo de um sistema que reduz os indivíduos ao descarte.

IHU – Giorgio Agamben tem um conceito bastante popular chamado “homo saccer”, que se refere às pessoas que são “sacrificáveis”, que estão à margem dos direitos constitucionais. Como isso aparece na questão da população em situação de rua? Até que ponto a Constituição e o Estado os protege e ampara?

Igor Rodrigues – A população de rua é a ponta da corda, o final do processo de circulação e troca desta sociedade. Estamos diante de um fenômeno mais profundo do que parece ser. Os pesquisadores não estão entendendo a complexidade e o que a vida na rua significa do ponto geral do sistema social. Estamos falando da produção crescente do descarte humano, a sociedade acelerou em larga escala o processo de eliminação da cidadania.

São pessoas descartadas por este modelo econômico, enquanto tal, vivenciam uma total violação de direitos humanos. A sociedade cria espaços de controle e confinamento “a céu aberto”, relegando essas pessoas a um estado de marginalização que tolera e permite o massacre destes indivíduos descartados. Estamos presenciando uma série histórica de banimento na ordem dos direitos.

O Estado é uma grande incógnita para quem vive nas ruas: às vezes um ponto de assistência, de auxílio e de apoio; por outras, fonte da própria humilhação e violação, isto é, o Estado não deixa de ser um agitador das trocas sinistras. Uma parte dos que vivem nas ruas já criou uma resistência ao Estado, tem medo, não quer proximidade ou relação – esse é um outro desafio a ser rápido e urgentemente considerado.

IHU – Diante dessas encruzilhadas, como construir políticas públicas capazes de dar conta de um problema humanitário tão grave, que é a população em situação de rua?

Igor Rodrigues – Essa é uma boa definição para o momento das políticas para a situação de rua: o Brasil está na encruzilhada, precisa, em primeiro lugar, entender onde estão os equívocos, ou seja, por quais motivos as políticas, os investimentos e os serviços aumentaram e, ao mesmo tempo, o problema cresceu 1000%.  Existe uma necessidade de revisão da forma como as políticas foram desenhadas, muitas foram criadas objetivando direitos para quem vive nas ruas, mas não alcançam de fato esta população – inclusive pelo tipo de troca que permeia as relações, em suas formas sinistras, como propomos neste estudo. Entender a falta de eficácia, a não aderência, a falta de efeitos transformadores são alguns dos passos para que as políticas possam realmente apresentar resultados positivos frente ao tsunami do descarte humano.

 

Em defesa do Estado, por Martin Wolf

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Uma sociedade complexa estará melhor servida por um serviço público competente, profissional e neutro

Martin Wolf, Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

Folha de São Paulo, 18/02/2025

Sociedades civilizadas dependem de instituições. Quanto mais complexa for a sociedade, mais vitais são essas instituições. Instituições proporcionam estabilidade, previsibilidade e segurança. Empresas, escolas, universidades e tribunais são todas instituições. Mas as instituições mais importantes são as do Estado.

É por isso que o ataque de Donald Trump ao que seus apoiadores chamam erroneamente de “Estado profundo” é tão perigoso. Alguns deles acham que o Estado deve ser servil aos caprichos do grande líder. Outros acham que deve estar a serviço dos ricos. Ambos os lados concordam que sua capacidade de atender às necessidades do público em geral é de pouca importância. Essas visões são perigosas. Elas são prenúncios de autocracia, plutocracia e disfunção.

Em uma importante série de artigos, “Valuing the Deep State”, Francis Fukuyama, de Stanford, examina por que a destruição do Estado se mostrará tão destrutiva. Fukuyama dedicou grande parte das últimas duas décadas a explicar que “um Estado de alta capacidade, profissional e impessoal é crítico para o sucesso de qualquer sociedade”, incluindo notavelmente as democracias liberais modernas.

Essa visão é uma que muitos americanos abominam: eles veem o Estado —ou simplesmente “governo”— como o inimigo. Mas qualquer pessoa que tenha trabalhado em desenvolvimento econômico, como eu trabalhei, sabe que sem um serviço público competente, profissional e neutro nada na sociedade realmente funciona.

Quanto mais sofisticada e complexa uma sociedade e economia moderna se torna, mais isso é verdade. Como Fukuyama corretamente observa, o sucesso extraordinário das economias do leste asiático se deve em grande parte ao fato de que elas entenderam como administrar tal Estado muito antes do Ocidente.

Ainda mais relevante, ele argumenta que uma “democracia bem-sucedida… precisa de um Estado moderno forte, mas tem que ser um Estado que seja limitado por um Estado de direito e responsabilidade democrática”.

Nos EUA, a criação de tal Estado começou em 1883, ele argumenta, com o Ato Pendleton, que criou a Comissão de Serviço Civil e estabeleceu critérios baseados em mérito para contratação e promoção no serviço federal.

É isso que a administração Trump —ou, como o historiador Timothy Snyder a rotula, o “regime Mump”, dando o devido crédito ao papel único de Elon Musk — deseja reverter.

Como Fukuyama explica, o sistema burocrático dos EUA está longe de ser perfeito. Mas o problema não é, como argumentam os críticos de direita, o fato da delegação de decisões. Alguém imagina que decisões técnicas sobre segurança de aeronaves ou produtos farmacêuticos, controle de poluentes perigosos ou gestão de resíduos nucleares devem ser decididas, em detalhe, por legisladores?

Obviamente, decisões desse tipo têm que ser delegadas a especialistas qualificados. A noção de que deveriam ser decididas por pessoas cuja principal qualificação é a lealdade servil ao grande chefe é absurda.

A realidade é que essas “reformas” não têm nada a ver com tornar o governo mais eficiente. O objetivo é, ao contrário, tornar “Mump” todo-poderoso. O jogo foi revelado pelo próprio JD Vance, que disse que se Trump ganhasse a presidência novamente em 2024, ele deveria “demitir todos os burocratas de nível médio, todos os funcionários públicos no Estado administrativo, substituí-los por nosso pessoal… E quando os tribunais o impedirem, ficar diante do país como Andrew Jackson fez e dizer ‘o chefe de justiça fez sua decisão. Agora deixe-o aplicá-la.'”

Então, muito para a noção de que os EUA devem ser “um governo de leis, não de homens”. Isso é um golpe.

Esse esforço também não vai transformar as finanças públicas. No ano fiscal de 2025 até agora, 78% dos gastos federais são com seguridade social, saúde, defesa, segurança de renda, benefícios para veteranos e juros líquidos. Musk diz que o Doge [Departamento de Eficiência Governamental] pode economizar US$ 2 trilhões anualmente. Com gastos de US$ 6,8 trilhões no ano passado, isso parece absurdo.

Em suma, um sistema complexo não fica mais “eficiente” cortando-o aleatoriamente. Mas pode-se aterrorizar seus funcionários. Assim, os verdadeiros objetivos, como Anne Applebaum observa, são a intimidação e a substituição de verdadeiros servidores públicos por acólitos.

Os benefícios disso são claros: permitirá que aqueles no comando usem os poderes do governo para processar “inimigos”, intimidar jornalistas, espalhar mentiras, ignorar a ciência e atacar governos estaduais e municipais desobedientes, se necessário pela força.

E quanto ao Estado de direito? Vance já disse o que pensa dessa ideia. O objetivo, então, é transformar os EUA em uma ditadura plebiscitária, na qual o detentor do poder é rei. Essa revolução será compatível com eleições justas no futuro? Deve-se duvidar disso.

Afinal, muito disso será irreversível. Uma vez que a lealdade substituiu a integridade e as mentiras substituíram a verdade, será um longo caminho de volta. Assim, uma vez que você demitiu servidores públicos competentes e honestos, será fácil encontrar pessoas semelhantes no futuro? Os serviços de inteligência dos EUA, dados e análises científicas eram referências globais. Quanto disso sobreviverá? Um dos testes para emprego será se alguém abraça a mentira de que Trump venceu em 2020. Apenas fanáticos Maga devem concordar.

Se o tipo de Estado que Fukuyama elogia for substituído pelo que agora se pretende, é inevitável uma mistura venenosa de incompetência, predação e corrupção.

Entre as características prejudiciais estará o que Daniel Kaufmann, pesquisador sênior da organização sem fins lucrativos Results for Development, chama de “captura do estado” — a exploração do poder por aqueles que são capazes não apenas de dobrar, mas de criar regras para seu próprio benefício.

Para um país de alta renda, os EUA já estão relativamente capturados. Mas está prestes a piorar agora que as regras que protegem a independência dos servidores públicos estão prestes a acabar.

O que está acontecendo é destruição, não reforma. Seja o que for que tenham sido informados, os americanos comuns não se beneficiarão do caos. Mas sabemos quem se beneficiará.

 

Capitalismo sem rivais, por Fernando Nogueira da Costa

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Fernando Nogueira da Costa – A Terra é Redonda – 10/02/2025

Comentário sobre o livro de Branko Milanović

Capitalismo sem rivais discute as vantagens e desvantagens do capitalismo político em comparação com o capitalismo liberal. Analisa-os como dois modelos distintos competidores no cenário mundial de economia globalizada.

O capitalismo político promete uma gestão mais eficiente da economia e taxas de crescimento econômico mais altas: o objetivo principal. O sistema centralizado, segundo Branko Milanović, supera obstáculos legais e técnicos criadores de dificuldades para o crescimento em países mais democráticos.

Esse sistema tem autonomia no trato legal, permitindo as decisões serem tomadas sem as restrições impostas por um sistema de leis rígido. Essa característica pode agilizar a tomada de decisões e a implementação de políticas. Alcança um crescimento econômico mais rápido ao evitar longas deliberações parlamentares sobre políticas públicas, inclusive sabotagens contra o gasto público.

O capitalismo político tende a priorizar o desenvolvimento de infraestruturas, como estradas e ferrovias com trem-bala, além das urbanas com construção de cidades e moradias. Melhoram a qualidade de vida da população.

O capitalismo político é atraente para as elites políticas de outros países, pois oferece maior autonomia e menos restrições para acessar o imenso mercado interno chinês. Torna-se atrativo também para muitas pessoas comuns devido às altas taxas de crescimento de oportunidades profissionais e renda.

Segundo Branko Milanović, o modelo chinês, em particular, segue um caminho de desenvolvimento semelhante ao considerado “natural” do mercado por Adam Smith. Nele, o Estado mantém autonomia de investimento público e planejamento indicativo sem refrear a iniciativa privada.

Entre as desvantagens do capitalismo político, uma das principais desvantagens é a falta de mecanismos democráticos de controle. A ausência de um sistema de consulta eleitoral periódica à população leva à permanência decisões possíveis de ser prejudiciais ao bem-estar dos cidadãos.

O sistema centralizado tem maior tendência a gerar políticas públicas ruins e resultados sociais negativos. Não possui um mecanismo democrático para reverter decisões erradas.

A corrupção sistêmica é endêmica no capitalismo político devido ao poder discricionário da burocracia e à ausência de um império da lei. O uso do poder político para ganhos financeiros, inclusive pessoais, é uma característica central desse modelo. A corrupção, se não é controlada, mina a capacidade de crescimento e a legitimidade do sistema.

A lei é aplicada de forma seletiva a la Maquiavel: “aos amigos os favores, aos inimigos a lei”. A burocracia, esperada ser tecnocrática e eficiente, atua com arbitrariedade na aplicação das regras.

O sistema centralizado pode levar ao aumento da desigualdade e da corrupção. O poder discricionário da burocracia pode ser usado para ganhos pessoais.

Ele precisa constantemente demonstrar sua superioridade através de altas taxas de crescimento. Se o crescimento não for constante, a legitimidade do sistema arrisca-se a ser questionada.

A ausência de controles democráticos dificulta a mudança de direção caso escolhas erradas sejam feitas. O modelo de capitalismo político é frágil, se depende de se apresentar como “o socialismo com características chinesas” é difícil de ser transplantado para outros países.

Uma das dificuldades do sistema é separar política de economia, devido ao papel central do Estado na economia. É difícil manter uma burocracia centralizada não corrupta de modo a tomar decisões em prol dos interesses nacionais.

Por sua vez, a principal vantagem do capitalismo liberal é apresentada por seu pressuposto sistema político democrático, considerado um “bem primário”. A democracia eleitoral permitiria uma correção das tendências econômicas e sociais possíveis de prejudicar o bem-estar dos cidadãos. A consulta periódica à população sobre novos representantes reverteria decisões, caso estejam conduzindo a resultados negativos, ao longo do tempo.

No capitalismo liberal, é pressuposto ele ter menos problemas com corrupção em comparação com o capitalismo político. Existe maior respeito ao império da lei.

A democracia e o Estado de Direito promovem a inovação e a mobilidade social. Em princípio, o sistema promoveria oportunidades de sucesso iguais para todos.

Entretanto, o capitalismo liberal moderno, especialmente em sua forma meritocrática, gera desigualdade devido à concentração de renda e riqueza, à influência política dos ricos e à transmissão intergeracional de vantagens. Impõe-se um separatismo social: os ricos optam por sistemas privados de saúde e educação e isso reduz o impacto da redistribuição de renda.

A influência política dos ricos via financiamento eleitoral e controle midiático leva à criação de políticas para os beneficiar, exclusivamente, em detrimento do restante da população. A necessidade de consulta eleitoral periódica à população reduz a eficiência na tomada de decisões econômicas.

Em comparação direta, realizada por Branko Milanović, o capitalismo liberal tem a vantagem de ser um sistema democrático. Em tese, permite uma maior correção de problemas econômicos e sociais, enquanto o capitalismo político se destaca pela eficiência e pelo crescimento rápido.

Enquanto o capitalismo liberal tem como vantagem a prevalência do Estado de direito e da igualdade de oportunidades, o capitalismo político se destaca pela autonomia burocrática ou arbitrariedade no trato legal. Este tem maior tendência à corrupção e à dificuldade de mudar de rumo, enquanto aquele tende a gerar desigualdade e influência política dos ricos.

Não é possível uma escolha popular entre capitalismo político e liberal, ou seja, haver um trade-off entre eficiência e democracia, igualdade e crescimento, a estabilidade do sistema e a capacidade de adaptação às necessidades dos cidadãos. O capitalismo político precisa provar constantemente sua superioridade econômica diante as vantagens democráticas do capitalismo liberal mais intrínsecas ao sistema.

Entretanto, a globalização leva às trocas entre as duas variantes de capitalismo. Tem um impacto profundo na mobilidade do capital e do trabalho e altera as dinâmicas econômicas e sociais em escala mundial.

A globalização permitiu a criação de Cadeias globais de valor, onde diferentes etapas da produção são realizadas em diferentes países. Isso é possível graças aos avanços tecnológicos, na comunicação e coordenação, e à proteção global dos direitos de propriedade.

As Cadeias globais de valor permitiram separar a produção física da gestão e controle. Possibilitou empresas de países desenvolvidos controlarem a produção em outros países, onde os custos de produção são menores. Investidores institucionais atuam indiretamente, via participações acionárias em empresas transnacionais, na regulação da globalização pelo mercado de ações, inclusive em bolsa de valores distante do local do investimento direto.

A globalização impulsiona o movimento de capital para além das fronteiras nacionais, com investimentos de empresas em outros países para aproveitar oportunidades de lucro. Esse movimento de capital busca maiores retornos e, ao mesmo tempo, acelera o desenvolvimento econômico em países mais pobres.

A proteção global dos direitos de propriedade é crucial para a mobilidade do capital, garantindo os investimentos estrangeiros estarem seguros contra abusos ou nacionalizações. Instituições como o FMI e acordos bilaterais de investimento ajudam a garantir essa proteção.

Com a globalização, a renda necessária para sustentar os benefícios da cidadania pode ser deslocalizada. Parte da renda de um país é gerada fora de suas fronteiras e retorna por meio de lucros sobre o capital investido no exterior.

A mobilidade do capital e a do trabalho são vistas como movimentos capazes de se equilibrarem em longo prazo. O fluxo de capital para países pobres ajudaria a reduzir as diferenças de renda e, consequentemente, a motivação para emigrar. O movimento do capital para países pobres, através das Cadeias globais de valor, acabaria por corroer, em longo prazo, os “prêmios por cidadania” motivadores da migração.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP)

 

O endurecimento nacionalista, por Thomas Piketty

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Thomas Piketty – A Terra é Redonda, 18/02/2025

O nacional-capitalismo trumpista gosta de ostentar sua força, mas, na verdade, é frágil e está em apuros

Para aqueles que tinham dúvidas, Donald Trump ao menos tem o mérito de deixar as coisas claras: a direita existe e fala alto. Como tantas vezes no passado, ela assume a forma de uma mistura de nacionalismo brutal, conservadorismo social e liberalismo econômico desenfreado. O trumpismo pode ser descrito como nacional-liberalismo ou, mais precisamente, nacional-capitalismo.

A retórica de Donald Trump sobre a Groenlândia e o Panamá mostram seu apego ao capitalismo autoritário e extrativista mais agressivo, que é basicamente a forma real e concreta que mais frequentemente assumiu o liberalismo econômico na história, como Arnaud Orain acaba de nos lembrar em Le monde confisqué. Essai sur le capitalisme de la finitudeXVIe-XXIe siècle.

Sejamos claros: o nacional-capitalismo trumpista gosta de ostentar sua força, mas, na verdade, é frágil e está em apuros. A Europa tem os meios para enfrentá-lo, desde que recupere a confiança em si mesma, estabeleça novas alianças e analise calmamente as vantagens e os limites desta matriz ideológica.

A Europa está bem colocada para isso: durante muito tempo, baseou seu desenvolvimento num modelo militar-extrativista semelhante, para o bem e para o mal. Depois de terem tomado pela força o controle das rotas marítimas, das matérias-primas e dos mercados têxteis mundiais, as potências europeias impuseram, ao longo do século XIX, tributos coloniais a todos os países recalcitrantes, do Haiti à China, passando pelo Marrocos.

Na véspera de 1914, elas estavam empenhadas numa luta feroz pelo controle de territórios, de recursos e do capitalismo mundial. Chegaram até mesmo a impor tributos cada vez mais exorbitantes uns aos outros, a Prússia à França em 1871, depois a França à Alemanha em 1919: 132 bilhões de marcos-ouro, ou seja, mais de três anos do PIB alemão da época. Tanto como o tributo imposto ao Haiti em 1825, salvo que, desta vez, a Alemanha tinha meios para se defender. A escalada sem fim levou ao colapso do sistema e do orgulho europeu.

Esta é a primeira fraqueza do nacional-capitalismo: quando os poderes estão inflamados, acabam devorando-se uns aos outros. A segunda é que o sonho de prosperidade prometido pelo nacional-capitalismo acaba sempre desapontando as expectativas populares, pois, na verdade, ele repousa em hierarquias sociais exacerbadas e numa concentração de riquezas cada vez maior.

Se o Partido Republicano tornou-se tão nacionalista e virulento em relação ao mundo exterior, isso se deve, em primeiro lugar, ao fracasso das políticas reaganianas, que deveriam impulsionar o crescimento, mas apenas reduziram e conduziram-no à estagnação da renda da maioria. A produtividade nos Estados Unidos, medida pelo PIB por hora trabalhada, era duas vezes superior à da Europa em meados do século XX, graças à liderança educacional do país. Desde os anos 1990, ela está no mesmo nível que a dos países europeus mais avançados (Alemanha, França, Suécia e Dinamarca), com diferenças tão pequenas que não podem ser distinguidas estatisticamente.

Postura arrogante e neocolonial

Impressionados com as capitalizações das bolsas e os montantes em bilhões de dólares, alguns observadores ficam maravilhados com o poder econômico dos Estados Unidos. Esquecem-se de que essas capitalizações se explicam pelo poder de monopólio de alguns grandes grupos e, mais geralmente, de que os montantes astronômicos em dólares se devem, em grande parte, aos preços muito elevados impostos aos consumidores estadunidenses. É como se estivéssemos analisando a evolução dos salários sem considerar a inflação. Se raciocinarmos em termos de paridade do poder de compra, a realidade é muito diferente: a diferença de produtividade em relação à Europa desaparece completamente.

Esta medida mostra igualmente que o PIB da China ultrapassou o dos Estados Unidos em 2016. Atualmente, é mais de 30% superior e atingirá o dobro do PIB dos EUA em 2035. Isto tem consequências muito concretas em termos de capacidade de influenciar e financiar investimentos no Sul, especialmente se os Estados Unidos continuarem mantendo sua postura arrogante e neocolonial. A verdade é que os Estados Unidos estão à beira de perder o controle do mundo e a retórica trumpista nada mudará.

Resumamos. A força do nacional-capitalismo está em exaltar a vontade de poder e a identidade nacional, ao mesmo tempo que denuncia as ilusões dos discursos ingênuos sobre a harmonia universal e a igualdade de classes. Sua fraqueza reside na confrontação entre as potências, e em desconsiderar que uma prosperidade sustentável exige investimentos educacionais, sociais e ambientais que beneficiem todos.

Diante do trumpismo, a Europa deve, antes de tudo, manter-se ela mesma. Ninguém no continente, nem mesmo a direita nacionalista, deseja voltar às posturas militares do passado. Em vez de dedicar seus recursos a uma escalada sem fim – Donald Trump agora exige orçamentos militares de 5% do PIB –, a Europa deve basear sua influência no direito e na justiça. Com sanções financeiras específicas, realmente aplicadas a alguns milhares de dirigentes, é possível fazer ouvir a nossa voz de forma mais eficaz do que empilhando tanques em barracões.

E, acima de tudo, a Europa deve ouvir as demandas de justiça econômica, fiscal e climática que vêm do Sul. Ela deve retomar os investimentos sociais e ultrapassar definitivamente os Estados Unidos em formação e produtividade, como já fez em saúde e expectativa de vida. Depois de 1945, a Europa reconstruiu-se graças ao Estado social e à revolução social-democrata.

Este programa não está concluído: ao contrário, deve ser considerado como o início de um modelo de socialismo democrático e ecológico que deve ser pensado agora em escala mundial.

Thomas Piketty é diretor de pesquisas na École des Hautes Études en Sciences Sociales e professor na Paris School of Economics. Autor, entre outros livros, de O capital no século XXI (Intrinseca).

 

O Papa Francisco e a esperança, por Dora Incontri

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Ele trouxe a esperança de renovação religiosa e política, com seu exemplo, com suas ideias e com sua forma única de exercer o papado.

por Dora Incontri – GGN – 19/02/2025.

Não quero de forma alguma caracterizar esse texto como um tributo que anuncia a morte de uma grande liderança mundial, o Papa Francisco, que de fato apresenta por esses dias um estado delicado de saúde. Ele está internado com pneumonia dupla. Quero, queremos muitos, que consiga superar esse momento, porque precisamos de sua presença no mundo.

É que estou quase terminando a leitura de seu livro Esperança, a autobiografia. Minha apreciação já começa com o título peculiar. Significativo que o subtítulo é a autobiografia, como se sua vida fosse uma nota de rodapé, submetida ao compromisso da esperança, um ensaio constante de esperançar – para usar um verbo caro a Paulo Freire.

É verdade que a vida de Giorgio Bergoglio trouxe por si mesma a esperança de renovação religiosa e política, com seu exemplo, com suas ideias e finalmente com sua forma única, simples e transformadora de exercer o papado. Lembremos que a instituição do papado levou à divisão da Igreja do Ocidente e do Oriente, provocou a ruptura da Reforma protestante e representou ao longo da história um lugar de poder desmedido, de imposições e perseguições, de corrupção e luxúria. O anarquista e espírita Maurice Lachâtre se deu ao trabalho, no século XIX, de escrever milhares de páginas de horrores em seu livro Crimes e história dos Papas.

No início deste século XXI, a Igreja tinha atravessado o retrocesso de Papas conservadores (João Paulo II e Bento XVI), quando surge a figura leve, aberta, amorosa e simples do Papa Francisco, um papa que transpôs os limites da Igreja Católica, para ser amado e admirado por pessoas de outras religiões ou mesmo sem religião. Prova disso é que estou aqui escrevendo esse texto em sua homenagem, sendo espírita kardecista, e, portanto, completamente desconectada da tradição do papado.

Giorgio chegou ao Vaticano e já evocou o que houve de mais luminoso e autenticamente cristão em toda a história da Igreja Católica: Francisco de Assis. Sendo jesuíta, mas tendo adotado o nome de Papa Francisco, (pela primeira vez na história da Igreja) já anunciava que seu compromisso seria de despojamento, de renúncia ao culto pessoal, de conexão com a natureza, de compaixão para com todos os excluídos e de disposição de diálogo com religiosos de todos os matizes e não religiosos de todos os rincões.

Começou por abolir os rituais de submissão pessoal: beija-mão, ajoelhar-se diante dele, tapete vermelho, vestimenta de púrpura, assento em trono, moradia em palácio.… Simplificou tudo, despojou-se de formalismos, como convém a alguém que esteja inspirado pelo exemplo de Francisco de Assis.

Depois, partiu para o diálogo com o mundo. Abriu-se para lideranças religiosas e políticas de todo o planeta, procurando estabelecer vínculos fraternos, cheios de respeito e proposta de cooperação universal, para salvar a Terra, para acabar com a guerra, para proteger os vulneráveis.

A sua história de vida, tão saborosamente retratada nesta Autobiografia, explica muito de sua postura humana e humanista. É de uma família de imigrantes italianos, por todos os lados (aliás como a minha, e essa ressonância produz intensas emoções nesta leitura). As circunstâncias da imigração e as lutas intensas semelhantes na Argentina e no Brasil, nas primeiras décadas do século XX deixaram nele marcas profundas. O interessante que, ao contrário de muitos italianos que já estavam radicados por aqui quando da ascensão do fascismo e, de longe, aderiram entusiasticamente ao Duce, a família de Bergoglio saiu da Itália em oposição a essa tomada de poder pela extrema direita. O menino foi criado de maneira simples, pobre, num catolicismo popular, mas com espírito crítico. Essa sua ascendência fez dele um defensor engajado dos refugiados, dos imigrantes, dos que enfrentam a fuga das guerras, da fome, das violências políticas, com tanta resistência de acolhimento por parte dos países mais ricos.

O que transparece na obra toda em que narra a sua vida é a profunda conexão com o mundo e seus problemas, com o momento histórico e suas tragédias globais. Isso vem também de sua inserção cultural. Leitor de boa literatura, amante da música, ligado ao cinema de arte – ou seja, uma erudição que não é apenas teológica, fechada em fontes religiosas – mostra que a arte é transformadora e formadora de pessoas engajadas no mundo.

Suas duas encíclicas, diretamente inspiradas em Francisco de Assis, Laudato si’ (2015) e Frattelli Tutti (2020) são obras-primas de defesa da vida, da natureza, de todos os povos e pessoas excluídas e marginalizadas. São apelos ao cuidado com o planeta e ao cuidado com o outro. E já no início da Frattelli Tutti, o Papa alude ao seu diálogo com uma liderança muçulmana, o Imã Ahmad Al-Tayyeb, lembrando da visita que Francisco de Assis fez ao Sultão Malik-al-Kamil, no Egito, em plena vigência das Cruzadas.

A sua atitude de abertura não se manifestou, nestes anos todos, apenas em relação ao diálogo com o outro, mas nas reformas que conseguiu implementar dentro da própria Igreja. Herdeiro da Teologia da Libertação, como bom latino-americano, que enfrentou na Argentina os horrores da ditadura militar, soube trazer temas absolutamente urgentes: o acolhimento aos homossexuais, o combate ao abuso sexual dentro da Igreja, a maior inserção das mulheres – isso tudo apesar da resistência brutal que tem enfrentado dos mais conservadores e dos fundamentalistas, que não faltam em qualquer religião nos dias de hoje.

Mas Francisco afirma em seu livro: “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e suja por ter saído pelas ruas a uma Igreja asfixiada e doente pela clausura e pela conveniência de se agarrar às próprias certezas”.

Esperemos que suas sementes frutifiquem, que venham outros papas que continuem a sua obra, quando ele se for, e que não assistamos a retrocessos tristes, em consonância com os retrocessos mundiais.

Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.

 

E se a imigração for a solução? por Lorena Hakak

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A questão cultural ganha força nos discursos dos políticos anti-imigração

Lorena Hakak, Doutora em economia e professora da FGV. Atua como presidente da GeFam (Sociedade de Economia da Família e do Gênero)

Folha de São Paulo, 18/02/2025

Muitos de nós, brasileiros, temos histórias para contar sobre como nossas famílias chegaram aqui. O Brasil é um país formado por diversas ondas de migração. Ao longo dos séculos, pessoas de diferentes partes do mundo buscaram refúgio aqui, fugindo da fome, de guerras, perseguições, catástrofes ambientais e pobreza, em busca de uma vida melhor e mais digna. Além disso, é fundamental ressaltar que milhões de africanos foram trazidos à força durante séculos e, apesar das condições brutais, permaneceram e contribuíram para a formação do país.

Se a imigração moldou diversos países, por que observamos um discurso anti-imigração? Os determinantes das atitudes de parte dos nativos em relação à imigração podem estar associados a questões econômicas, culturais ou de criminalidade. Segundo o artigo “The Political Effects of Immigration: Culture or Economics”, de Alberto Alesina e Marco Tabellini, o medo que assombra os nativos está na possibilidade de os imigrantes “roubarem” seus empregos ou reduzirem seus salários.

No entanto, os autores mostram que grande parte da literatura sobre os efeitos da imigração no mercado de trabalho não encontra impacto negativo significativo ou identifica até mesmo um efeito positivo. Mesmo quando há um impacto negativo, ele tende a ser de curta duração e concentrado entre trabalhadores com menor escolaridade. Outro receio associado à imigração é o possível aumento dos gastos públicos e a sobrecarga nos sistemas educacional e de saúde. No entanto, esses mesmos imigrantes também contribuem para a economia, aumentando a produtividade e gerando renda, o que, por sua vez, resulta em impostos para financiar os gastos do governo.

A questão cultural ganha força nos discursos dos políticos anti-imigração, especialmente quando determinados grupos apresentam diferenças culturais em relação ao país hospedeiro. Há um receio por parte da população local que esses grupos não iriam se assimilar. Em geral, um maior contato entre grupos, e uma menor segregação, poderiam ajudar a diminuir preconceitos e estereótipos negativos. Por fim, há a questão da violência. As evidências indicam que, em geral, os imigrantes não contribuem para o aumento da criminalidade nos países que os recebem, principalmente considerando crimes violentos. Muitas vezes os imigrantes são as vítimas da violência.

No início do século 20, os estrangeiros representavam aproximadamente 6% da população brasileira. Hoje, essa proporção é muito menor. Segundo dados das Nações Unidas, a proporção de imigrantes no Brasil era de 0,4% em 2000 e subiu para 0,7% da população em 2024. Esse aumento provavelmente está ligado às recentes ondas migratórias observadas no país.

O Brasil recebeu milhares de venezuelanos e haitianos, e já não é incomum encontrá-los, por exemplo, na cidade de São Paulo ocupando postos de trabalho formal. Porém, o país tem potencial para atrair muito mais. Para se tornar um destino mais atrativo, é essencial melhorar as taxas de crescimento econômico. Novas ondas migratórias oxigenam a economia, pois os imigrantes chegam com vontade de vencer e muitos se tornam empreendedores. Em média, eles assumem mais riscos. Além disso, contribuem para mitigar os efeitos da queda da taxa de fecundidade sobre a economia, que, como mencionei na coluna “Porque estão faltando bebês?”, continua em declínio no Brasil. A sociedade poderia —e deveria— fazer um esforço para atrair novos fluxos migratórios.

 

Mazzucato: “Salvemos a IA das Big Techs”

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Assim como capturaram a internet, megacorporações querem submeter a inteligência artificial a seus negócios. Em contra-ataque, Estados e sociedades devem definir o que querem da nova tecnologia – antes que o mercado o faça…

Mariana Mazzucato, Economista Italiana, professora da cátedra RM Phillips de Ciência e Tecnologia da Universidade de Sussex.

OUTRAS PALAVRAS, 18/02/2025

A Cúpula de Ação em Inteligência Artificial (IA) em Paris, no início deste mês, ocorreu em um momento crítico no desenvolvimento IA. A questão não é se a Europa pode competir com a China e os Estados Unidos em uma corrida armamentista em torno desta tecnologia; é se os europeus podem abrir uma abordagem diferente, que coloque o valor público no centro do desenvolvimento tecnológico e da governança. A tarefa é se afastar do feudalismo digital, termo que criei em 2019 para descrever o modelo de extração de renda das plataformas digitais dominantes.

A IA não é simplesmente mais um setor. É uma tecnologia de propósito geral que moldará todos os setores da economia. Ela pode gerar benefícios tremendos ou causar enormes danos. Embora muitos comentaristas falem sobre a IA como se fosse uma tecnologia neutra, isso subestima seu poder econômico fundamental. Mesmo que a construção da IA não tivesse custos, ela precisaria ser alimentada e implantada, o que requer acesso às plataformas de computação em nuvem dos gatekeepers, como Amazon Web Services, Microsoft Azure e Google Cloud.
Essa dependência torna mais urgente do que nunca direcionar o desenvolvimento da tecnologia para o bem comum. A verdadeira questão não é se devemos regular a IA, mas como moldar os mercados para a inovação em IA. Em vez de regular ou tributar o setor apenas após os fatos, precisamos criar um ecossistema de inovação descentralizado que sirva ao bem público.

A história da inovação tecnológica mostra o que está em jogo. Como argumentei em meu livro O Estado Empreendedor, muitas das tecnologias que usamos todos os dias surgiram como resultado de investimentos públicos coletivos.
O que seria o Google sem a internet financiada pelo Darpa1? O que seria o Uber sem o GPS financiado pela Marinha dos EUA? O que seria a Apple sem a tecnologia de tela sensível ao toque financiada pela CIA e a Siri financiada pela Darpa?

Embora frequentemente evitem contribuir com impostos, as empresas que lucraram com esses investimentos públicos agora usam suas rendas excessivas para drenar talentos das próprias instituições públicas que tornaram seu sucesso possível. Esse parasitismo é melhor exemplificado pelo “Departamento de Eficiência do Governo” (DOGE) de Elon Musk, que defende cortes nos mesmos programas de financiamento governamental que permitiram à Tesla se beneficiar de 4,9 bilhões de dólares em subsídios governamentais.

A falta de capacidade do Estado tornará cada vez mais difícil regular novas tecnologias no interesse público. O Estado já foi esvaziado de expertise, devido aos salários mais altos do setor privado e décadas de terceirização para consultores privados (o que Rosie Collington e eu chamamos de O Grande Golpe).

O que acontece quando a maior parte do conhecimento técnico se concentra em cinco empresas privadas?

Em vez de esperar para descobrir, devemos intervir agora para regular a IA de forma dinâmica e adaptável, enquanto a tecnologia de IA e os diversos mecanismos de sua monetização ainda estão evoluindo.

Em um projeto de pesquisa recente no Instituto de Inovação e Propósito Público da Univertity College de Londres, meus colegas e eu revisitamos o feudalismo digital e a necessidade de diferenciar entre criação e extração de valor na IA – o que chamamos de “renta de algoritmos”. Mostramos que plataformas como Facebook e Google evoluíram de maneiras que focam em “rentas de atenção”. À medida que a experiência do usuário é manipulada para maximizar os lucros, seus feeds são entupidos de anúncios e conteúdos “recomendados” viciantes, em um processo que o jornalista canadense Cory Doctorow descreveu de forma colorida como “emerdificação”.
Rolagem infinita, notificações incessantes e algoritmos projetados para maximizar o “engajamento” exibindo conteúdo prejudicial e atividades limítrofes à ilegalidade tornaram-se a norma.

Os sistemas de IA podem seguir o mesmo caminho extrativo e potencializar esse comportamento de busca por renta, como exigir pagamento para acesso a informações essenciais, privacidade de dados, segurança online, exclusão de publicidade ou serviços básicas para pequenas empresas em buscas globais de informações. Como as plataformas atualmente escondem seus algoritmos e mecanismos de alocação de atenção (as fontes de suas “rentas de atenção algorítmica”), a chave para regular o setor, assim como no enfrentamento das mudanças climáticas, é forçar os gigantes digitais a divulgar como seus algoritmos estão sendo usados. Essas informações devem então ser integradas aos padrões de relatórios para todas as plataformas digitais.

Desenvolvedores de IA como OpenAI e Anthropic escondem, entre outras coisas, as fontes de seus dados de treinamento; quais salvaguardas colocaram em seus modelos; como aplicam seus termos de serviço; os danos posteriores de seus produtos (como uso viciante e acesso de menores de idade); e até que ponto suas plataformas estão sendo usadas para monetizar a atenção global por meio de publicidade direcionada. O grande e crescente impacto ambiental da IA adiciona mais uma camada de urgência ao desafio. As emissões das principais empresas de IA dispararam, levando a Agência Internacional de Energia (AIE) a alertar que o “consumo global de eletricidade de data centers, IA e o setor de criptomoedas pode dobrar até 2026”.

Felizmente, desenvolvimentos recentes sugerem que caminhos alternativos são possíveis.

A DeepSeek, empresa chinesa de IA que fez muitas ações de tecnologia dos EUA sofreram perdas abruptas no final de janeiro, parece ter demonstrado que um desempenho comparável pode ser alcançado com significativamente menos poder de computação e consumo de energia.

Abordagens mais eficientes para o desenvolvimento de IA poderiam ajudar a quebrar o domínio que as principais empresas de computação em nuvem estabeleceram por meio de seu controle sobre vastos recursos de computação?

Embora seja cedo para dizer se o avanço da DeepSeek levará a uma reestruturação do setor, isso nos lembra que a inovação no nível de software continua viável e necessária para abordar o impacto ambiental da IA.

Como Gabriela Ramos da UNESCO e eu argumentamos, a IA pode melhorar nossas vidas de muitas maneiras, desde melhorar a produção de alimentos até aumentar a resiliência contra desastres naturais. Governantes europeus, de Mario Draghi a Ursula von der Leyen e Christine Lagarde, consideram a IA crucial para reviver a produtividade europeia. Mas, a menos que abordem a natureza do feudalismo digital, o comportamento extrativo que sustenta o desenvolvimento de modelos de IA e a atual falta de capacidade regulatória no setor público, qualquer tentativa de estimular um crescimento mais robusto e sustentável se chocará contra as rochas de novas e mais profundas desigualdades.

Não se trata de escolher entre inovação e regulamentação, nem se trata de gerenciar o desenvolvimento tecnológico de cima para baixo. Trata-se de criar incentivos e condições para direcionar os mercados a entregar os resultados que desejamos como sociedade. Devemos reivindicar a IA para que ela forneça valor público, em vez de se tornar outra máquina de extração de renda. A Cúpula de Paris oferece uma oportunidade para mostrar essa visão alternativa.

1 Agência para Projetos de Pesquisa Avançada em Defesa (DARPA, na sigla em inglês) dos Estados Unidos. Criada no contexto da guerra fria (em 1958), para disputa da corrida nuclear, acabou desenvolvendo os protocolos que levariam à criação da internet

Desafios

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Vivemos num momento marcado por muitas transformações interessantes, um período de grandes alterações estruturais na sociedade internacional, com impactos para todas as nações, alterações organizacionais, com modificações comportamentais dos indivíduos, demandas crescentes dos consumidores e mudanças gigantescas no mundo do trabalho, exigindo atualizações constantes, capacitações cotidianas e qualificações emocionais e espirituais.

Neste momento, percebemos o crescimento dos conflitos militares e investimentos crescentes na indústria bélica, onde regiões inteiras estão reservando recursos orçamentários, recursos estes inexistentes, para investirem na indústria da defesa, deslocando bilhões de recursos para a segurança e deixando levas gigantescas de trabalhadores e cidadãos sem recursos materiais, sem infraestrutura, sem saúde pública, sem educação e sem dignidade, com isso, percebemos os burburinhos na sociedade, medos e desesperanças crescentes.

Neste cenário de grandes desafios, percebemos que as nações estão envoltas em desequilíbrios fiscais e financeiros, levando a classe política a perderem credibilidade, gerando o crescimento de grupos e setores políticos que defendem rupturas abruptas na estrutura política como forma de resolver os grandes desafios da sociedade contemporânea, desta forma, percebemos o surgimento de variados confrontos nas mais variadas regiões do mundo.

No Brasil, percebemos inúmeros desafios e oportunidades, ainda mais num momento como este, onde as nações estão envoltas em preocupações políticas e desequilíbrios econômicos, exigindo, internamente, variadas escolhas imprescindíveis, atacando as heranças milenares, os variados privilégios arraigados e uma grande gama de atrasos históricos que se fazem presentes em todas as épocas e lugares, além de perpetuarem as desigualdades conhecidas e pouco atacadas pelos donos do poder.

Neste ambiente de confrontos comerciais e retóricas agressivas, o Brasil precisa se preparar para as grandes transformações econômicas e geopolíticas em curso na sociedade global, com isso, faz-se necessário escolher um caminho seguro, inclusivo e transparente, evitando alinhamentos automáticos com nações em confronto, sabendo que temos limitações tecnológicas, fragilidades produtivas e dependência de países mais avançados e detentores de conhecimentos que pouco dominamos.

Diante destes desafios, o Brasil precisa construir novos consensos políticos, deixando de lado conversas desnecessárias e pouco produtivas que pululam na mídia corporativa e nos parlamentos, precisamos discutir as oportunidades que se abrem nos confrontos hegemônicos que se apresentam na sociedade global, investindo maciçamente em educação de qualidade, valorizando os cientistas e pesquisadores nacionais, fortalecendo as instituições de fomento e utilizando as compras governamentais como um claro instrumento de fortalecimento da estrutura nacional, precisamos valorizar nossos sistemas produtivos e exigir dos investidores internacionais, as fundamentais e imprescindíveis, transferências de tecnologias, instrumentos adotados para as nações que conseguiram dar saltos de produtividade, aumentando o crescimento econômico, o bem-estar da população e as transformações nas estruturas produtivas, gerenciais e comerciais.

Os desafios são enormes para nações como o Brasil, com sua herança de pilhagem, de escravidão, de baixo salário e de desigualdades crescentes, afinal, somos uma das dez maiores economias do mundo, mesmo assim, possuímos mais de 50 milhões de cidadãos que não possuem saneamento básico, mais de 40 milhões de trabalhadores que sobrevivem na informalidade, milhões de crianças vivendo na indignidade, milhões de lares vivendo na escuridão e, mesmo assim, os discursos dominantes nos meios de comunicação são pouco condizentes com a realidade da população.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Modificações na família contemporânea, por Fernando Nogueira da Costa

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Fernando Nogueira da Costa

A Terra é Redonda, 17/02/2-25

Diminuição da utilidade da família pela atomização e comoditização

A “atomização”, segundo Branko Milanovic, no livro Capitalismo sem rivais, se refere ao fato de as famílias terem perdido em grande medida sua vantagem econômica, pois um número crescente de bens e serviços antes produzidos em casa, fora do mercado e não sujeitos a troca pecuniária pode agora ser comprado ou alugado no mercado. Atividades como preparar comida, limpar, fazer jardinagem e cuidar de bebês, idosos e doentes eram fornecidas “gratuitamente” em casa nas sociedades tradicionais, caso a famílias não fosse muito rica.

Essa era uma das principais razões econômicas da existência do casamento: divisão de trabalho no casal para aumento da “produtividade familiar”. Viver junto “internaliza” essas atividades (cozinhar, limpar etc.) e proporciona economia de escala em tudo, do abastecimento à eletricidade.

Porém, com o aumento da riqueza, quase todos esses serviços podem ser adquiridos fora de casa e há cada vez menos necessidade de compartilhar a vida com outras pessoas. Por isso – e pelo ingresso das mulheres no mercado de trabalho –, as sociedades contemporâneas (exceto na África) tendem a um tamanho de família mínimo.

Todas as atividades domésticas podem agora ser terceirizadas. De acordo com a conclusão distópica de Branko Milanovic, o mundo consistiria em indivíduos vivendo e trabalhando sozinhos (exceto quando cuidam de crianças), sem terem vínculos ou relações permanentes com outras pessoas, e cujas necessidades seriam supridas pelos mercados.

A atomização, levada ao extremo, implica no fim da família. Também é acelerada pelas crescentes intrusões legais na vida familiar quando as regras existentes dentro das famílias são diferentes das em vigor fora delas.

Muitas têm o objetivo de minimizar o contato com quem não é membro da família. Essa separação radical entre quem é e quem não é da família era uma característica encontrada na maioria das sociedades do mundo até recentemente, espécie de compartilhamento baseado na exclusão.

O modelo mercantilizado de hoje permite ao mundo externo invadir a casa não só na forma de entrega de refeições e serviços de limpeza, mas também na forma de intrusão legal. Essas invasões – como os acordos pré-nupciais e a capacidade dos tribunais de afastar filhos e controlar o comportamento dos cônjuges –, embora em muitos casos sejam desejáveis, como na prevenção de abusos de cônjuges, esvaziam ainda mais o pacto interno tácito mantenedor das famílias unidas.

O “código legal” interno da família é terceirizado para a sociedade como um todo. Levanta a questão: qual é a vantagem da existência da família ou da coabitação em um mundo rico e comercializado, onde todos os serviços podem ser adquiridos?

O uso de mão de obra assalariada vinda de fora de casa faz parte de um modo de produção capitalista típico, com uma nítida distinção entre a produção e as esferas familiares – distinção fundamental para definir o capitalismo. O novo capitalismo hipermercantilizado unifica a produção e a família, mas o faz por incorporar a família ao modo de produção capitalista.

O capitalismo avança para “conquistar” novas esferas e “comoditizar” novos bens e serviços. Esse estágio de comercializar e/ou negociar por completo todas as relações pessoais tradicionalmente deixadas de fora do mercado implica melhorias substanciais na produtividade do trabalho.

A contrapartida da atomização é a comoditização. Na atomização, ficamos sozinhos porque todas as nossas necessidades podem ser satisfeitas pelo comprado de outras pessoas no mercado. Em plena comoditização, nos tornamos esse outro: satisfazemos as necessidades das pessoas por meio da comoditização de nossos ativos, inclusive de nosso tempo livre.

Enquanto consumidores, adquirimos a capacidade de comprar atividades antes fornecidas em espécie pela família. Enquanto produtores, o capitalismo também oferece um amplo campo de atividades possíveis de fornecermos aos outros. Desse modo, atomização e comoditização andam juntas.

A culinária tornou-se terceirizada e as famílias não costumam fazer todas as refeições juntas. Limpeza, reparos, jardinagem e criação dos filhos se tornaram mais comercializados e deixaram de ser “deveres de casa”.

O crescimento da gig economy – mercado de trabalho “sob demanda” ou de “bicos” com trabalhadores temporários e sem vínculo empregatício com empresas contratantes para serviços pontuais – comercializa nosso tempo livre, inclusive coisas possuídas, mas nunca usadas antes para fins comerciais. Agora, qualquer pessoa com algum tempo livre pode “vendê-lo”, por exemplo, ao trabalhar para uma empresa de compartilhamento de carona ou entrega de compras à distância.

Um carro particular era “capital morto” e agora se torna capital vivo se usado como “táxi” para empresas a Uber. Manter o carro ocioso na garagem passou a ter um custo de oportunidade.

Da mesma forma, casas no passado emprestadas por uma semana sem compensação para familiares e amigos agora se tornaram bens alugados para viajantes. Esses bens passam a ser mercadorias e adquirem um preço de mercado.

Não os usar é um claro desperdício de recursos pelo custo de oportunidade. Somos levados a pensar nessas atividades como bens ou serviços comerciais.

Novos mercados surgiram quando os bens tradicionalmente produzidos pelas famílias começaram a ser produzidos pela indústria e comercializados com uma produtividade muito maior na economia de escala com linhas de montagem. Hoje, em relação à comoditização dos serviços trata-se exatamente do mesmo processo.

Os serviços pessoais são mais difíceis de comoditizar porque os aumentos de produtividade são mais difíceis por definição: serviço exige o encontro direto do produtor com o consumidor. Logo, os ganhos da divisão do trabalho são menores.

Para Branko Milanovic, a comoditização do antes não comercial tende a fazer as pessoas realizarem muitos trabalhos diversos. Até, como no caso do aluguel de apartamentos ou casas, tende a transformá-las em “capitalistas” no seu dia a dia.

O tipo de trabalho emergente no século XXI não é o tipo considerado desejável por Max Weber porque falta ao trabalhador um senso de vocação ou a dedicação a uma profissão. Carece do caráter sistemático e metódico.

Os trabalhadores sem quaisquer características pessoais se tornam, do ponto de vista dos patrões, “agentes” totalmente intercambiáveis. Para Branko Milanovic, esses três eventos estão inter-relacionados: (i) mudança na formação da família (atomização), (ii) expansão da comoditização para novas atividades e (iii) mercados de trabalho totalmente flexíveis com ocupações temporárias.

Se ficam no mesmo trabalho por um longo período, os indivíduos tentam estabelecer relações de confiança com as pessoas com quem sempre interagem. Eles se envolvem no chamado de “jogos repetidos” com empatia e simpatia.

Quando aparecem novas pessoas lhe tratando como um completo estranho, você não tem muito incentivo para se comportar com “simpatia” e enviar sinais de comportamento cooperativo porque essas novas pessoas também se mudarão em breve. Investir em ser simpático é esforço necessário se justificado pela expectativa de essa simpatia ser retribuída adiante.

A avaliação profissional passa a ser se ele apresenta alguma “simpatia”, apesar da falta de relacionamentos duradouros. Por qual razão mudamos nosso comportamento quando nossas interações são comoditizadas? Porque somos reduzidos à função econômica, porque ser simpático é um investimento, porque a lógica de ser simpático vai além da lógica de mercado…

A disseminação da comoditização acaba com a alienação. A ordem das coisas é internalizada de tal maneira a ponto de não haver mais nada sem “precificação”.

A crescente comoditização de muitas atividades, a ascensão da gig economy e de um mercado de trabalho radicalmente flexível fazem parte da mesma evolução. São movimentos em direção a uma economia mais racional, mas, em última análise, mais despersonalizada, onde a maioria das interações será de contatos pontuais.

A atomização esvazia a vida familiar e a falta de interações pessoais reduz o comportamento “doce” do comércio. Ocorre em um contexto de amoralidade.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP).

 

A era da maldade, por Antonio Prata

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Com sua proposta para Gaza, Trump é autoritário, irresponsável, criminoso, mas sobretudo cruel.

Antonio Prata, Escritor e roteirista, autor de “Por quem as panelas batem”

Folha de São Paulo, 16/02/2025

Quando Trump afirma que vai expulsar mais de 2 milhões de palestinos de suas terras e transformar a Faixa de Gaza e na Riviera do Oriente Médio está sendo autoritário, irresponsável, criminoso, mas sobretudo cruel. Dizer a pessoas que perderam pais, filhas, amigos, casas, empregos e a perspectiva de um futuro que serão exiladas para milionários do mundo todo se bronzearem e tomarem gin tônica em Clubs Med construídos, literalmente, sobre os cadáveres de seus entes queridos é um escárnio –e é isso mesmo que pretende ser. Gasolina no fogo. Sangue no rio de piranhas. É Trump agitando o Coliseu das redes, unindo seu exército de admiradores no gozo com o sofrimento alheio.

Segundo reportagem da Folha, na última terça (11), um estudo de Berkley mostrou que o discurso de ódio no Twitter cresceu 50% desde que Elon Musk o comprou e o transformou em X. O próprio comprador ajudou a engrossar o caldo, semana passada, ao postar que havia passado o fim de semana “enfiando a Usaid” —agência americana de auxílio humanitário para o exterior— “no triturador de madeira”. Isso é um deboche com gente morrendo de Aids em Botswana e Lesoto, com famílias de hondurenhos e nicaraguenses desabrigados por furacões, sem falar dos mais de 10 mil funcionários da agência que aguardam ter seus empregos triturados a qualquer momento. O tuíte não é sobre a eficiência do governo. Não é Hayek nem Mises. É Goebbels e Calígula.

Embora a direita seja mais eficiente na administração da crueldade, não detém o seu monopólio. De maneira menos pragmática e menos abrangente, mas igualmente perversa, a esquerda contribui para a tragédia climática dos humores. Basta um “erro”, um “deslize”, uma discordância do protocolo politicamente correto da semana e, sob a desculpa esfarrapada da “justiça” ou da “reparação”, hostes partem pra cima do “infiel”, os smartphones e teclados dos computadores em riste, feito tochas e foices. O sadismo com que essa turba ataca os “hereges” não difere do de Trump falando do seu projeto de Gaza-o-Lago nem de Musk triturando a ajuda humanitária. No fundo, é só o prazer de fazer o mal.

A bruxa está solta –e não é só nas redes. Em São Paulo, dois ladrões numa moto matam o ciclista para roubar um celular. Pouco mais tarde, baleiam outro, por mais um telefone. No Rio, o motorista de Uber dá um chute nas costas e nocauteia a senhora que derrubou farelo de biscoito em seu carro. Os PMs jogam o cara da ponte.

Em Minas Gerais, em 2016, um jovem de 19 anos desafiou os candidatos interessados no apoio dos 10 mil membros da sua organização, a Direita Minas, a aparecerem em público com camisetas de Brilhante Ustra. Ustra era especialista em torturar pais e mães diante dos filhos e vice-versa. Uma vez, levou uma menina de 5 anos para ver a mãe, destroçada, no calabouço. A menina perguntou: “Mamãe, por que você tá verde”. Em 2022, esse jovem chamado Nikolas Ferreira foi o deputado federal mais votado do Brasil, hasteando as bandeiras do cristianismo e da defesa da família. Existe algo menos cristão e que agrida mais a família do que torturar filhos diante dos pais?

Se vivo fosse, depois de publicar “A Era das Revoluções”, “A Era dos Impérios”, “A Era do Capital” e “A Era dos Extremos”, acho que Eric Hobsbawm iria escrever “A Era da Maldade”. Sorte a dele, morreu antes de o mundo ir pro brejo.

 

A heterodoxia trumpista não funcionará, por Samuel Pessoa.

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Aumentar alíquotas de importação para atender seu eleitorado não vai dar certo

Samuel Pessoa, Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP.

Folha de São Paulo, 16/02/2025

A eleição de Trump responde a uma demanda muito clara. Nas últimas décadas, houve forte redução do emprego para o trabalhador de média escolaridade, em geral o trabalhador com o ensino médio completo e alguma formação técnica. Essa queda ocorreu tanto para o trabalhador do chão de fábrica, que foi substituído por robôs, quanto para o trabalhador de escritório, que foi substituído por computadores.

Adicionalmente, há uma queda da qualidade da rede pública de educação americana, desde os anos 1960, aproximadamente. De sorte que o filho do trabalhador que perde emprego na indústria não consegue competir com os filhos dos ricos, nem com os filhos dos imigrantes asiáticos, pelos bons empregos do Vale do Silício.

Contribuiu para o fenômeno, em menor dimensão, a emergência da China e sua capacidade industrial imensa, com força de trabalho bem-educada, disciplinada e com enorme capacidade de poupança. Uma versão turbinada do que foi o Japão nos anos 1980. Era comum professores de economia vaticinarem a superação da liderança americana pelo Japão.

O progresso técnico, a China em menor medida e a dificuldade de o sistema público de educação de igualar as oportunidades geraram o fenômeno dos flyovers: a classe média empobrecida do meio dos EUA que a elite sobrevoa quando vai de avião da Nova Inglaterra para a Califórnia. Os flyovers são os eleitores de Trump.

Para atender ao seu eleitorado, o plano de Trump a aumentar alíquotas de importação. Não funcionará. O elevado déficit comercial dos EUA resulta de dois fenômenos. Primeiro, do excesso de absorção doméstica sobre a produção. Segundo, do baixo custo de financiamento internacional dos EUA.

O excesso de absorção sobre a produção resulta das escolhas de consumo e poupança da população americana. Essas não são alteradas por tarifas de importação.

O baixo custo de financiamento do Tesouro americano é consequência de os EUA emitirem a moeda de curso global e de a dívida pública emitida pelo Tesouro ser vista como porto seguro, em momentos de aumento de risco. Além de os EUA terem a praça financeira mais eficiente que há: captarem no mundo todo a baixo custo e investirem em renda variável com elevado retorno.

A saída ortodoxa para o problema é atacar a dificuldade do sistema público de educação, para que ele volte a ser capaz de igualar as oportunidades. A segunda saída ortodoxa é reduzir a absorção doméstica, o que pode ser obtido por meio de elevação da poupança pública. Me parece que Trump não avançará por aqui.

Há heterodoxias possíveis. Por exemplo, uma política mais agressiva de elevação do salário mínimo e medidas legais que facilitem a capacidade de sindicalização seriam bem-vindas, e há boa teoria econômica sustentando essas heterodoxias, nem tão heterodoxas assim.

É possível adotarmos a sugestão de Daron Acemoglu, Nobel de Economia de 2024, e tributar o uso de robôs. Uma versão moderna do movimento ludista, comum na Inglaterra durante a primeira Revolução Industrial, talvez conseguisse, como sugere Acemoglu, induzir o progresso técnico a aumentar a demanda pelos trabalhadores de média escolaridade. Talvez funcione. Sou bem mais cético aqui. O que sabemos é que a heterodoxia trumpista não funcionará.

 

Os coachs mirins que pregam o não-estudar, por Danilo Marques

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Com relevante alcance nas redes, eles ensinam crianças a enriquecer rápido, até com “investimentos na Bolsa”. Têm como herói Pablo Marçal. O primeiro ensinamento: largar a escola. Um trabalho infantil estimulado pelos pais e pelas regras frouxas das Big Techs

Danilo Marques – OUTRAS MÍDIAS/Piauí – 14/02/2025

Um grupo de aproximadamente vinte crianças e adolescentes se reuniu na Praça Sol Peres, no Morumbi, em 18 de janeiro. Não estavam ali para jogar bola, caçar Pokémons ou ensaiar coreografias para o TikTok. Encontraram-se, em vez disso, para falar de investimentos. O organizador da trupe, um paulistano de 17 anos e 147 mil seguidores no Instagram, disse se tratar de um “encontro de jovens prósperos”; espíritos “obstinados” interessados em fazer networking para crescer no universo do marketing digital. A meninada, nos vídeos gravados naquela tarde, demonstra uma sobriedade pouco adolescente: cumprimentam-se com apertos de mão e tapinhas no ombro.

O líder do grupo se apresenta nas redes sociais como um empreendedor que, apesar de tão pouca idade, “fatura alguns dígitos” por mês. “Ensino a geração Z a prosperar”, diz a descrição de seu perfil do Instagram. Ele se veste apenas com camisetas lisas, geralmente pretas, e um ocasional colete puffer. Quando está num carro, só se permite ser fotografado no banco de trás, como alguém que dispõe de chofer. Calça sapatos semelhantes a mocassins e, ao posar para fotos, nunca encara a câmera – mantém o olhar fixo no horizonte, pensativo. Foi com esse olhar que anunciou, recentemente, ter faturado meio milhão de reais em 2024.

Em um de seus vídeos, o influenciador disse ter abandonado a escola aos 15 anos. “Eu larguei porque não me identificava mais com o ensino.” Segundo ele, não fazia sentido frequentar um ambiente com crianças que “almejavam fazer metade do dinheiro que eu estava fazendo”. No fim da gravação, recomendou aos seguidores que não trilhassem o mesmo caminho. Mas o recado era claro: empreender dá muito mais frutos do que estudar.

Como ele, há toda uma legião de influenciadores mirins que, transitando entre o linguajar corporativo e o tom de pregação neopentecostal, prometem aos seguidores o enriquecimento rápido. Um maranhense de 14 anos, que aparenta ter ainda menos, arregimentou 411 mil seguidores no Instagram com lições similares. “Ensino pessoas a mudarem de vida com a internet”, diz seu perfil. Posa para fotos ao lado de BMWs e garante já ter faturado mais de 200 mil reais com investimentos. A origem do dinheiro, nesse e na maioria dos casos, não é clara. Atribui-se ao marketing digital – termo abrangente que abarca a comercialização de qualquer tipo de produto na internet.

A mensagem é sempre a mesma: escola não dá futuro; trabalho de carteira assinada, idem. Os meninos são um subproduto da cultura coach que se alastrou pelo país nas últimas duas décadas. Ensinam que, com autodisciplina e um mindset adequado, qualquer um pode se tornar milionário pela força do próprio trabalho, sem depender de empregadores ou títulos acadêmicos. Basta, é claro, pagar algumas mentorias exclusivas para descobrir como chegar lá (o influenciador paulistano de 17 anos anuncia ter dado aulas a mais de 10 mil pessoas em um curso online que criou com dois amigos, ambos também adolescentes com ambição milionária).

O Brasil é um terreno fértil para ideias do tipo. Quase 40% da população ocupada trabalha na informalidade, segundo os dados mais recentes do IBGE. O número de trabalhadores com ensino superior completo vem crescendo, mas grande parte dessa mão de obra é contratada para funções que não exigem diploma universitário e têm teto salarial baixo. Um levantamento publicado em 2022 pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) mostrou que, no segundo trimestre daquele ano, quase 80% dos brasileiros com ensino superior que entraram no mercado de trabalho foram parar em cargos que exigiam, no máximo, o ensino médio completo. Ainda segundo o Dieese, mais de 1 milhão de brasileiros formados em universidade trabalhavam como lojistas e vendedores em 2022. A eles, somavam-se 86 mil motoristas de aplicativo e 70 mil entregadores de comida e outros produtos.,

Era questão de tempo até que esse fenômeno se refletisse na juventude. “A escola não prepara o jovem para o futuro, prepara para ser dependente”, professou o paulistano de 17 anos em um vídeo recente. “O ENEM NÃO VAI TE DEIXAR RICO”, alardeou em outra postagem, com todas as letras em caixa alta. Em dez anos, o número de inscritos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) caiu pela metade, de 8,7 milhões para 4,3 milhões. O fenômeno se explica, em parte, pela profusão de cursos à distância baratos oferecidos por faculdades privadas, que não participam do Enem. Mas pesquisadores do tema também atribuem a mudança ao desinteresse dos jovens, num país em que o estudo não é mesmo garantia de bons salários e vida estável.

“Fazer faculdade, estágio, conseguir emprego, deslanchar na carreira, são coisas demoradas e que hoje são mais difíceis de conseguir”, diz Bernardo Soares, especialista em educação e aplicação de tecnologias em sala de aula. Ele lamenta que, por vezes, ao explicar as condições do mercado de trabalho aos alunos que o procuram, acaba desincentivando-os a seguir as carreiras que almejavam, como – justamente – a de professor. “Isso se soma ao retorno rápido que as redes te dão, sem que você precise necessariamente ter experiência na área. Elas podem dar lucro e visibilidade mais facilmente que as profissões tradicionais.”

“Faturei 300 reais sem fazer nada”, diz um menino sul-mato-grossense de 13 anos, num vídeo compartilhado com seus 30 mil seguidores. Até poucos meses atrás, o garoto só queria saber de jogos eletrônicos, como Roblox, e vídeos de TikTok. O pai, contudo, não gostava de ver o filho grudado em telas o dia todo. Deu-lhe de presente, então, uma pilha de livros. Entre eles, Geração de valor e O homem mais rico da Babilônia, que costumam figurar entre os títulos de auto-ajuda mais lidos do Brasil. O menino, em pouco tempo, largou os divertimentos online e passou a cultivar uma ambição milionária. “Só em 2023, leu 35 livros”, contou o pai à piauí. Zootecnólogo formado numa universidade federal, ele abandonou a área e hoje trabalha com manutenção de ar-condicionados. Tem 38 anos.

Orgulha-se da carreira digital que o filho vem construindo. Conta que o menino, seguindo os ensinamentos de influenciadores como Thiago Nigro – autor de Do mil ao milhão, livro mais vendido do país em 2020 –, passou a comprar doces para revender na escola. O dinheiro que arrecadava – e que não era pouco, segundo o pai – logo investia em fundos imobiliários e ações. O negócio fez sucesso, até que o colégio, preocupado com o volume de transações no recreio, proibiu as vendas. Pai e filho não viram alternativa senão vender os doces na rua. A rotina trabalhadora do menino passou a ser filmada pelo progenitor e postada nas redes sociais.

Hoje o garoto tem conta própria no Instagram. Está no segundo perfil – o primeiro foi suspenso pela Meta, empresa responsável pela rede, por ter cometido uma infração (o menino tinha menos de 13 anos, idade mínima para abrir uma conta). Antes de receber a sanção, acumulava 70 mil seguidores, que agora tenta recuperar. O pai, temendo um novo banimento, usou os próprios dados (nome, idade, etc.) para recadastrar o filho na rede.

O menino publica, em vídeo, pequenas lições com títulos chamativos: “Três ideias de renda extra”; “faturei 6.000 todos os meses”. Não costuma obter mais do que 10 mil visualizações por vídeo, mas, às vezes, acontece de uma postagem furar a bolha e virar motivo de chacota entre pessoas menos receptivas a esse tipo de conteúdo. Um desses posts, no qual o garoto anunciava uma aula sobre investimentos na Bolsa de Valores, acumula 871 mil visualizações. “O bullying precisa voltar, urgentemente”, comentou um usuário, fazendo troça do garoto. “Queria saber quanto vocês ganham para enganar o povo!”, escreveu outro, num vídeo em que o menino dizia ganhar “3 mil reais limpos, por mês” (na gravação, ele conversava com Renato Cariani, influenciador fitness que tem 9 milhões de seguidores no Instagram e atualmente é réu sob acusação de tráfico de drogas, suspeito de desviar produtos químicos para abastecer facções criminosas).

O pai diz não se incomodar com situações desse tipo. Pelo contrário, acha que o filho deve mesmo viralizar, mesmo que seja por razões negativas. As críticas geram tanto engajamento quanto os elogios, e o que importa, no fim, é que mais pessoas assistam ao menino, ele explica.

Com esse raciocínio, permitiu que o filho participasse no ano passado do reality show La Casa Digital, apresentado pelo ex-coach Pablo Marçal, e cujo objetivo é ensinar aos participantes técnicas avançadas de marketing digital. “Foi uma oportunidade que a gente não podia perder”, diz o pai. O menino viajou de Rondonópolis a São Paulo para participar das gravações, ao lado de outros onze menores de idade. “Boto mais fé em vocês do que neles [os adultos]”, disse Marçal em um dos blocos do programa intitulado “Conversa com os juvenis”. O ex-coach é atento às novas gerações e publicou, em 2022, o livro Como fazer um milhão antes dos 20, escrito em colaboração com o influenciador digital Marcos Paulo.

Algumas portas se abriram desde então para o menino, que se apresenta como “filho do Deus vivo, palestrante, influencer, escritor e investidor”. Recentemente, palestrou em um evento organizado por Marçal e, segundo o pai, pintaram oportunidades de negócios. A família agora está de mudança para Barueri (SP), esperançosa de conseguir algum dinheiro com o mercado financeiro e o marketing digital. O objetivo maior, diz o pai, é que o menino fature o primeiro milhão antes dos 18. Depois se corrige: o garoto “já é milionário”. Faltam zeros na conta, mas, segundo ele, ser milionário é antes de tudo um estado de espírito.

Renata Tomaz, professora da Fundação Getulio Vargas (FGV) que há mais de dez anos estuda a presença de crianças e adolescentes na internet, diz ter uma percepção pouco otimista sobre o tema. “Eu via crianças produzindo visões de mundo e discutindo questões muito importantes. Usando a rede como instrumento para se fazerem vistas.” Uma paisagem mais colaborativa e com potencial educativo, que foi completamente transformada pela plataformização da internet e a introdução do algoritmo. Para Renata, a rede permitia, lá atrás, uma “produção social da infância” mais ativa. “Hoje o que temos é um terreno privado, com um modelo de negócio ao qual todos os usuários tiveram que se submeter.”

Nas pesquisas que conduziu com meninos e meninas, Tomaz diz ter ouvido uma dezena de vezes a frase: “Eu não preciso crescer para fazer dinheiro.” Ela conta de adolescentes que, por volta dos 15 anos de idade, sonham construir impérios milionários vendendo cursos e investindo na Bolsa de Valores. Alguns já se portam como empresários bem-sucedidos, na roupa e no jeito de falar. É o que na antropologia se denomina “imitação prestigiosa” – a forma pela qual as pessoas constroem sua própria imagem e comportamento nos moldes daqueles que admiram.

“Crianças sempre tiveram a capacidade de identificar, em quaisquer contextos, figuras dignas de prestígio”, diz Tomaz. Para quem vive colado no feed do Instagram e no YouTube, essas figuras frequentemente são coaches e influenciadores que ostentam apartamentos luxuosos, carros possantes e uma vida, em suma, invejável. Eles ocuparam, no imaginário de muitas crianças, o espaço de idolatria que antes era reservado a jogadores de futebol.

Até certo ponto, são crianças fazendo o que sempre fizeram. A diferença está no alcance das redes sociais, que não apenas expõem (e por vezes remuneram) a meninada que cria conteúdo como abrem brechas para todo tipo de transação financeira. “O trabalho infantil continua proibido no Brasil”, diz Cíntia Burille, advogada especializada em questões da infância e da adolescência. Ela vê com preocupação a liberdade que pais e responsáveis têm dado aos filhos na internet. Não apenas pela exposição que as crianças sofrem, mas por elas se envolverem numa operação comercial. “Esses influenciadores se enquadram perfeitamente na ideia de trabalho infantil, o que é vetado por nosso ordenamento jurídico.”

Burille acha, contudo, que a responsabilidade maior por esse problema é das big techs, que estabelecem regras frouxas para o cadastro de crianças e pouco fiscalizam seu cumprimento. Nas principais redes (Instagram, TikTok e Facebook), é exigido apenas que o usuário tenha 13 anos ou mais. “A gente sabe que são inúmeros os perfis de crianças com idades inferiores a 13 anos, até de recém-nascidos”, diz Burille. “Tenho um posicionamento bastante firme de que as redes sociais não só podem, como, na verdade, devem ser responsabilizadas.”

À piauí, a Meta afirmou por meio de nota que contas de pessoas menores de 13 anos devem ser administradas pelos responsáveis e isso deve ser sinalizado na bio – o campo em que os usuários geralmente se apresentam. Não é o caso de vários perfis de crianças encontrados pela reportagem. A piauí criou um perfil-teste no Instagram e informou ter mais de 13 anos; em nenhum momento a plataforma exigiu comprovação da idade. Ainda segundo a Meta, “todo conteúdo deve ser compartilhado pelos responsáveis em nome do menor, e não na voz ou na perspectiva do menor” – o que, novamente, nem sempre acontece. A empresa disse ter restringido as ferramentas de monetização disponíveis para os menores de 18 anos: “Isso significa que essas contas não podem oferecer assinaturas, receber presentes ou selos.”

Mas quem quer encontrar outros caminhos. O influenciador paulistano de 17 anos que promoveu o encontro de jovens no Morumbi, em janeiro, cadastrou seu curso de marketing digital na Kirvano, uma plataforma de vídeos. A empresa veta, em tese, que crianças com menos de 13 anos façam compras na plataforma; para vender conteúdo, então, só quem tem mais de 18. Mas lá está o curso do rapaz, apresentado por ele e dois colegas, todos menores de idade (se venderam tantas assinaturas quanto dizem que venderam, já embolsaram quase 2 milhões de reais burlando as regras). É possível supor que os compradores tenham a mesma idade do trio ou sejam mais jovens. A piauí pediu esclarecimentos à Kirvano, mas não obteve resposta.

O rapaz não escolheu fazer o evento no Morumbi por acaso. Gosta de frequentar o bairro, reduto histórico da elite paulistana onde, um dia, funcionou uma grande fazenda de café. Embora passe hoje por um processo de desvalorização, o bairro “cheira a prosperidade”, conforme disse um de seus amigos, num vídeo que gravaram recentemente. No Morumbi, o trio montou um escritório onde grava aulas e podcasts sobre marketing digital, eventualmente com a participação de convidados. “Fuja do ambiente de pobre, esteja onde os ricos estão”, eles ensinam em diferentes postagens.

Com base na sua experiência pessoal, o influenciador mirim não tem dúvidas: “Se colocar empreendedorismo no lugar, sei lá, de reação química ou de alguma fórmula matemática nas escolas, a pobreza no Brasil será reduzida em 90%.” Convicto disso, no último 12 de outubro abordou crianças em um shopping de São Paulo e as presenteou com livros, como Os segredos da mente milionária. Acredita conter ensinamentos que transformarão suas vidas.

 

Calor extremo e desigualdades, por Márcia Castro

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O mundo anda para trás com as recentes decisões do governo dos EUA

Márcia Castro, Professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard.

Folha de São Paulo, 15/02/2025

Em julho de 2024, após a temperatura média global diária ter atingido um novo recorde, o secretário-geral da ONU, António Guterres, declarou que bilhões de pessoas no mundo estavam enfrentando uma epidemia de calor extremo.

Notícias sobre calor extremo são constantes.

Em 2024, o ano mais quente já registrado, 111 cidades do Brasil tiveram temperaturas acima da média por cerca de 150 dias, afetando mais de 6 milhões de pessoas. O município de Melgaço, no Pará, teve 228 dias com calor extremo.

Recentemente, o Rio Grande do Sul registrou temperaturas extremamente altas (acima de 40°C). O início das aulas teve que ser adiado já que apenas 1 em cada 4 escolas estaduais tem aparelhos de ar-condicionado.

No Brasil, apenas 70% das salas de aula nas escolas públicas eram climatizadas. Importante ressaltar que vários estudos mostram uma redução na atenção e no desempenho escolar devido ao calor extremo.

Os efeitos na saúde são marcantes. Entre 2000 e 2019, cerca de 489 mil mortes relacionadas ao calor ocorreram a cada ano no mundo. Considerando apenas as pessoas com mais de 65 anos de idade, a mortalidade relacionada ao calor aumentou aproximadamente 85% entre os períodos de 2000-2004 e 2018-2022. Na América do Sul, o número de mortes relacionadas ao calor aumentou 160% entre os períodos de 2000-2004 e 2017-2021.

No Brasil, entre 2000 e 2018, estima-se que quase 50 mil mortes foram atribuídas às ondas de calor. Durante o mesmo período, foi observado maior risco de morte na Amazônia durante períodos de onda de calor, especialmente as mais intensas.

Esses efeitos, entretanto, afetam desproporcionalmente algumas áreas e grupos populacionais. Ilhas de calor urbano, com pouca vegetação e dominadas por asfalto retêm o calor. Em áreas de habitação precária, com populações vivendo em condições de vulnerabilidade, crianças têm maior probabilidade de frequentar escolas sem ar-condicionado e famílias estão mais expostas aos efeitos do calor.

Além disso, idosos, mulheres, mulheres grávidas, lactentes, crianças pequenas, pessoas com problemas de saúde pré-existentes (incluindo saúde mental e pessoas com deficiência), pessoas que trabalham ao ar livre, aqueles em funções fisicamente exigentes ou que trabalham em ambientes internos sem ventilação também sofrem de forma desproporcional.

O impacto social e econômico é enorme. Os efeitos do calor extremo afetam o capital humano e, portanto, o potencial de desenvolvimento econômico, agravando as desigualdades existentes.

Em 2024, a cidade do Rio de Janeiro foi pioneira ao lançar o Protocolo de Enfrentamento ao Calor Extremo, que estabelece cinco níveis de calor e ações especificas a serem tomadas em cada nível.

Um estudo recente estima que, no nível mais severo (temperaturas acima de 44°C por pelo menos duas horas por dia), há um aumento de 50% nas mortes por diabetes, insuficiência renal e hipertensão na cidade do Rio de Janeiro.

Mitigar os efeitos do calor extremo demandam ações globais e locais.

Globalmente, o mundo anda para trás com as recentes decisões do governo dos EUA.

Localmente, as ações incluem a melhoria das condições das cidades e escolas. Acima de tudo, ações concretas implicam na redução das desigualdades.

 

Americanos vão aprender que importação é vida, por Rodrigo Zeidan

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Enquanto isso, vamos continuar sem importar para proteger indústrias locais; que não exportam

Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Folha de São Paulo, 15/02/2025

O que é melhor para uma sociedade, que um país seja exportador ou importador líquido de produtos? Se você respondeu que é melhor exportar, está errado, por mais contraintuitivo que pareça. Países ricos tendem a importar mais. Nem todo país rico é importador líquido, mas muitos países que consistentemente apresentam déficits comerciais são ricos.

Ou seja, a sanha de Trump para reduzir o déficit americano não faz sentido. Por exemplo, três quartos das importações mundiais são de produtos intermediários e equipamentos necessários para aumentar a produção local. Tarifas reduzem a produção total. Por exemplo, as tarifas de aço de Bush em 2002 e 2003 reduziram exportações e empregos, de acordo com publicação de Lydia Cox. Essas tarifas não funcionam no Brasil, nos EUA, na China, ou em Marte. As tarifas sobre aço e alumínio no primeiro governo Trump geraram mil empregos diretos no setor, mas destruíram 75 mil empregos nas indústrias manufatureiras americanas. Um desastre. O mercantilismo barato de Trump é estupidez. Reciprocidade brasileira seria outra.

Usamos estratégias parecidas e nos ferramos. O país exporta commodities e importa manufaturados exatamente por taxar importações demais, resultado da estratégia de substituição de importações acelerada pelos militares na década de 1970. No passado, ela ajudou a nos jogar na hiperinflação. Como vários governos não mudaram muito isso, pois nada é mais forte que pressão de indústrias subsidiadas, somos o país mais fechado para o comércio.

Os Estados Unidos da América Latina estão seguindo a mesma cartilha dos militares brasileiros e da Cepal (quem disse que direita e esquerda não concordam em algo?). Ao cortar importações para subsidiar as indústrias locais, governos jogam exportações no buraco.

No Brasil, precisamos ser exportadores líquidos para contrabalançar a saída de capital de outras fontes, mas isso não significa que seria o ideal. Importamos o que não fabricamos bem, o que liberaria recursos da sociedade para exportar mais. Quanto mais crescemos, mais importamos e exportamos.

Na década de 1980, o Brasil transacionava mais que a China. As exportações chinesas chegaram a US$ 100 bilhões em 1994, enquanto no Brasil isso só aconteceu em 2004. Hoje? Os chineses exportam o equivalente a R$ 20 trilhões, dez vezes mais que o Brasil (R$ 2 trilhões). Importações? R$ 15,3 trilhões, ante R$ 1,57 trilhão no nosso fechado mercado.

Enquanto mantivermos extensas políticas protecionistas, estaremos às margens das cadeias globais de valor. É por isso que na China política industrial tem chance de dar certo. Lá, subsidiam-se indústrias (não empresas) e esses subsídios são temporários, voltados para setores com capacidade exportadora. Não exportou? Quebra-se. Hoje, são mais de 130 montadores de veículos elétricos no país. Em 2030, devem ser 17. As outras vão quebrar ou serão engolidas. Esse é o capitalismo chinês, no qual o jogo não é processar outras empresas por vender mais barato, como a Anfavea quer fazer no Brasil. A BYD não quer chutar a Tesla da China, quer vencê-la.

Os americanos vão aprender que importação é vida. Enquanto isso, vamos continuar sem importar para proteger indústrias locais. Que não exportam. E continuaremos sem sair do lugar.

 

 

Tarifas, subsídios e protecionismo

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O ano de 2025 começou com grandes alterações nas relações econômicas, políticas e produtivas entre as nações, gerando mal-estar, preocupações crescentes e desconfianças generalizadas, cujos resultados são desconhecidos por completo. O retorno de Donald Trump é o epicentro destas grandes alterações sobre o cenário internacional, gerando variadas políticas protecionistas, novas tarifas e alíquotas comerciais e confrontos com nações e grupos de nações, que podem catalisar maiores confrontos entre países hegemônicos.

No cerne destas discussões e políticas protecionistas, estão a perda de espaço da economia norte-americana no cenário global, que embora seja a maior economia do mundo, apresenta uma perda crescente de competitividade dos setores industriais e produtivos, ainda mais quando percebemos a ascensão asiática, notadamente a chinesa, que busca um reequilíbrio de poder e de riqueza num mundo volátil, incerto, quente, volumoso e marcado pelo predomínio do mercado financeiro global.

Nesta crescente guerra comercial que vivemos atualmente, as nações buscam defender seus setores econômicos e produtivos, impondo alíquotas de importações maiores, novas formas de proteção industrial, taxação de empresas vistas como estratégicas e medidas claras de proteção interna, defendendo seus empregos, suas empresas e a renda de sua população, garantindo crescimento econômico.

Numa economia globalizada, muitas políticas protecionistas adotadas pelos governos podem gerar graves constrangimentos internos para sua estrutura produtiva, elevando custos de produção e culminando no incremento dos preços internos, gerando inflação e medidas de austeridade das Autoridades Monetárias, elevando as taxas de juros e desacelerando a economia nacional, com graves impactos sobre a renda nacional e a geração de emprego.

É importante que as economias nacionais compreendam os grandes desafios da sociedade contemporânea, as pressões comerciais e políticas dos norte-americanos devem ser vistas com tranquilidade e maturidade e, ao mesmo tempo, precisamos preservar a soberania e a autonomia nacionais, afinal, muitas das políticas anunciadas pelo governo norte-americano são uma verdadeira afronta a democracia e a soberania dos parceiros comerciais.

Muitas destas políticas anunciadas pelo governo Donald Trump podem levar parceiros históricos a se bandearem para o lado chinês, buscando novas oportunidades comerciais, recursos monetários e financeiros para financiar sua expansão comercial e produtiva, além de angariar proteção contra as retaliações estadunidense, desta forma, estamos vislumbrando uma grande transformação geopolítica mundial, um redesenho da estrutura produtiva e novas formas de poder e de riqueza.

A ascensão chinesa está reconfigurando a estrutura global de poder, levando o governo norte-americano a uma postura mais agressiva e pragmática, neste momento, as economias em desenvolvimento, como a brasileira, precisam compreender os desafios que se avizinham, atraindo investimentos asiáticos, buscando a transferência de tecnologias, construindo parcerias estratégicas para investimentos em infraestrutura necessárias para o crescimento econômico, mas ao mesmo tempo, construir consensos internos para investir fortemente em capital humano, incrementando os recursos orçamentários para a pesquisa científica e tecnológica, deixando de lado recursos obscuros que abastecem os ralos da corrupção e contribuem ativamente para a perpetuação dos desequilíbrios que caracterizam a sociedade brasileira. Vivemos um momento único para isso, precisamos forjar lideranças que compreendam o momento histórico e compreendam as oportunidades que se abrem para a coletividade.

Ary Ramos da Silva Júnior, bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Esquerda erra ao bater na globalização, por Hélio Schwartsman

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Maior integração econômica ajudou a tirar da miséria milhões de pessoas em países emergentes

Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”

Folha de São Paulo, 07/02/2025

A esquerda brasileira sempre bateu na globalização. Fazia-o, creio, porque esse movimento era parte do chamado Consenso de Washington, o que vale dizer que era uma manifestação do imperialismo ianque.

Na prática, porém, a globalização é um dos ingredientes da notável redução da desigualdade mundial. Entre 1990 e 2020, o coeficiente de Gini do planeta passou de 70 para 60,6. Quanto mais esse número se aproxima de 100, mais concentrada é a renda. A queda foi puxada pela diminuição da desigualdade entre países. O Gini que compara nações foi de 60 para 47,1 no mesmo período.

Não estamos aqui falando de abstrações estatísticas. No mundo real, a transferência de postos de trabalho dos países ricos para os emergentes tirou milhões de pessoas da miséria, especialmente na China.

Outra faceta desse fenômeno aparece na redução da proporção de terráqueos vivendo em pobreza extrema, que passou de 36,22% em 1990 para 9,18% em 2017. Historicamente, a pobreza extrema foi uma fiel companheira da humanidade. O índice só passou a patamar inferior a 50% em 1970.

Não vejo como a esquerda, pelo menos a esquerda internacionalista, poderia deixar de aplaudir esse movimento.

Daí não se segue, é claro, que a batalha esteja ganha. A pobreza não extrema ainda é prevalente no mundo, e a própria globalização, apesar de um resultado positivo, também produziu efeitos colaterais adversos.

O mais notável deles é que o enriquecimento de emergentes se deu principalmente à custa de setores da classe média de países ricos, que viram seus bons empregos na indústria migrarem para outras nações.

Essa população sentiu-se deixada para trás (os ricos de muitos desses países ficaram ainda mais ricos), o que gerou o ressentimento que hoje ajuda a eleger líderes de extrema direita como Donald Trump.

A globalização agora sai de cena para dar lugar a um mundo de guerra tarifária. É pena, porque quanto menos integradas são as economias dos países menos riqueza é produzida e distribuída, ainda que imperfeitamente.

 

Assim o capital nos faz reféns do trabalho frenético, por Jacobin Brasil

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Desigualdades brutais, salários estagnados e ideia de autorrealização via trabalho geraram jornadas mais massacrantes. Desmonte dos sindicatos só aprofundou a exploração. Como construir políticas que resgatem o tempo livre e a felicidade coletiva?

Jamie McCallum em entrevista a Meagan Day, na Jacobin Brasil. 05/02/2025 – OUTRAS MÍDIAS

Em 2014, uma mulher chamada Maria Fernandes morreu por conta de um vazamento de monóxido de carbono no estacionamento de uma loja de conveniência Wawa no norte de Nova Jersey. Ela trabalhava em média 87 horas por semana em três lojas diferentes da Dunkin’ Donuts e estava cochilando em seu carro como costumava fazer entre os turnos, com o motor ligado para aquecer. Um porta-voz da empresa comentou que Fernandes tinha sido uma “funcionária modelo”.

Esta é a história que abre o livro Worked Over: How Round- the-Clock Is Killing the American Dream [Esgotados: Como o Trabalho Exaustivo Está Matando o Sonho Americano] de Jamie McCallum. Mas não foi isso que inspirou McCallum, um professor de sociologia no Middlebury College, a estudar o fenômeno do excesso de trabalho nos Estados Unidos.

Em vez disso, o interesse foi despertado por sua observação de que os alunos em ambientes acadêmicos de elite estavam “quase competindo entre si para ver o quão duro eles poderiam trabalhar e para mostrar sua ética de trabalho”, ele disse à Jacobin. “Fiquei interessado em por que pessoas abastadas tratam o trabalho como um distintivo de honra.” Eventualmente, o projeto se expandiu para incluir trabalhadores de todas as outras faixas de renda.

Meagan Day, da Jacobin, falou com McCallum sobre o porquê de muitos trabalhadores de baixa renda terem que trabalhar tanto, o porquê de muitos trabalhadores de alta renda aparentemente quererem trabalhar muito, e como podemos construir uma sociedade que coloque o trabalho em seu devido lugar. Esta entrevista foi levemente editada para maior clareza.

Como a jornada de trabalho mudou nas últimas décadas?

Acho que, quando algumas pessoas falam sobre o livro, elas se concentram nessa estatística, que demonstra que as horas de todos os trabalhadores assalariados aumentaram significativamente desde os anos setenta. Acho que esses dados são muito importantes.

No entanto, se você se aprofundar, encontrará muitas variações. O que achei interessante foi que os trabalhadores de baixa renda aumentaram mais sua jornada. Estamos todos familiarizados com profissionais de colarinho branco sobrecarregados, mas não acho que essa seja a parte mais interessante da história. Então, há uma tendência de excesso de trabalho para todos, mas há uma distribuição desigual desse aumento na quantidade de tempo de trabalho entre diferentes classes de pessoas.

Outra dimensão é o aumento da imprevisibilidade e volatilidade de turnos e horários, o que é, principalmente, o caso de trabalhadores de baixa remuneração do setor de serviços. Em outras palavras, seus horários tornaram-se cada vez mais controlados por seus gerentes e pela tecnologia. Horários imprevisíveis são voláteis por concepção, não apenas por acaso. E eles criam uma vida profissional incrivelmente estressante e agitada.

A última dimensão é o aumento da jornada para as pessoas que simplesmente não têm horas suficientes, o que está conectado à volatilidade. Como a maioria dos empregadores exige quarenta horas de disponibilidade para trabalhar, mesmo que você tenha apenas vinte horas de trabalho, é difícil encontrar um segundo emprego em que você também possa se envolver de forma razoável. Como resultado, muitas pessoas estão sofrendo de desemprego involuntário.

Você pode explicar como os empregadores se beneficiam de ter pessoas disponíveis para quarenta horas, mas trabalhando apenas vinte, e sem saber quais exatamente serão essas horas efetivamente trabalhadas?

Quando eu trabalhava no varejo, sabia minha escala com três semanas de antecedência, eu aparecia e tinha um turno normal. Mas agora a nova tecnologia permitiu que os chefes agendassem pessoas apenas para os horários em que os trabalhadores são necessários. Em muitos algoritmos de agendamento, uma empresa pode relacionar o clima, a época do ano, a hora do dia e outros tipos de fatores que os ajudariam a determinar o quanto eles podem vender em um determinado dia. E isso os ajuda a definir quantos funcionários de frente eles precisam em uma loja de varejo, por exemplo. Isso, por sua vez, permite que eles paguem menos pela mão de obra e ganhem mais dinheiro.

A outra razão é que os empregadores acham que tornar as horas imprevisíveis e voláteis impede as pessoas de conversar com e conhecer seus colegas de trabalho em turnos regulares, que é como muito da organização política acontece. O interessante é que não funcionou bem assim, e agora há um grande movimento contra as escalas imprevisíveis.

Ao buscar entender os padrões de mudança da quantidade de tempo de trabalho, você oferece três explicações: a econômica, a cultural e a política. Como definiria cada uma delas?

Muitas vezes pensamos no problema do excesso de trabalho em termos individuais, relacionados ao desejo, necessidade ou aptidão de cada pessoa. Mas há múltiplas explicações não individuais do problema que compõem o argumento econômico.

Há um gráfico no livro que mostra o movimento paralelo do coeficiente de Gini, que é uma medida que quantifica a desigualdade, e o aumento de horas de trabalho nas últimas duas décadas. A maior parte dos lucros nos últimos quarenta anos tem ido para as pessoas no topo, enquanto os salários estão estagnados na base. Se os salários estão estagnados, então a principal maneira pela qual as pessoas da classe trabalhadora e até mesmo da classe média, em sua maioria, ganham mais dinheiro é trabalhando mais horas.

Então a desigualdade impulsiona longas jornadas de trabalho. E a força motriz da desigualdade é o poder de classe. A principal medida do poder de classe é o declínio do movimento trabalhista, que foi o meio através do qual as pessoas obtiveram uma redução da jornada de trabalho, bem como um mínimo suficiente de horas, e coisas como o pagamento de horas extras, por um bom tempo. Se você erodir o poder desse veículo pelo qual as pessoas reduzem suas horas, as conquistas simplesmente começam a desaparecer.

O próximo é o argumento cultural, que ajuda a explicar por que especialmente os trabalhadores de alta renda acabam trabalhando longas horas, embora tenham comparativamente mais controle sobre seu tempo, e o tempo livre ostensivamente é um bem social. Por que eles não trabalhariam menos se pudessem?

Encontrei duas razões. Uma é que os trabalhadores de alta renda na verdade estão sujeitos a algumas das mesmas forças de precariedade que os trabalhadores de baixa renda.

A segunda é que a ideologia do trabalho mudou para produzir uma nova ética de trabalho. Essa ideologia prioriza a autorrealização e a individualidade expressiva, e sugere que você obtém isso por meio do trabalho, e obtém mais disso por meio de mais trabalho.

Entrevistei muitos trabalhadores de alta renda, especialmente na indústria de tecnologia, e descobri que trabalhar mais horas era uma espécie de senso de identidade para eles.

A explicação política é que ambos os partidos têm seguido uma política de colocar pessoas pobres para trabalhar nas últimas duas décadas na forma de workfare, exigindo que trabalhadores atendidos por programas sociais trabalhem como contrapartida. Como resultado disso, você tem uma grande quantidade de novas pessoas inundando o mercado de trabalho, o que tem derrubado os salários. Isso tem usurpado totalmente o tempo das pessoas, tempo que era muito necessário para cuidar de crianças ou familiares ou estudar ou o que seja.

Quais são algumas outras demonstrações reais do problema do excesso de trabalho, conforme manifestado na vida dos trabalhadores de baixa renda?

O exemplo mais óbvio no livro é a história de uma mulher que morreu enquanto trabalhava dividindo turnos em três Dunkin’ Donuts diferentes no norte de Nova Jersey. Ela morreu enquanto dormia em seu carro, o que fazia frequentemente entre os turnos. Ela trabalhava em média oitenta e sete horas por semana, sustentava um parceiro com filhos e se tornou por um minuto uma figura-propaganda das longas horas de trabalho e da economia de baixos salários. Ela se tornou um símbolo para outros trabalhadores que não tiveram o mesmo destino, mas que, no entanto, estavam sobrecarregados.

Se você andar para cima e para baixo em qualquer rua importante para o setor de varejo em uma cidade grande e conversar com trabalhadores fazendo seus intervalos, como eu fiz, rotineiramente descobrirá que alguns deles começaram seu turno às 9h45 e terminaram às 15h15 — esses horários estranhos que não fazem sentido até você perceber que seus turnos estão sendo divididos. E muitos deles dirão que precisam começar seu próximo trabalho uma hora e meia ou duas horas depois. As estatísticas trabalhistas podem capturar esse tempo como lazer ou tempo livre, mas, na verdade, a maioria das pessoas o gasta correndo para comer, pegando transporte público ou trocando de uniforme.

Um resultado é que o local de trabalho acaba tendo uma grande importância na vida das pessoas. Conversei com muitas que se sentiam e se descreviam como sobrecarregadas, mesmo que trabalhassem menos de quarenta horas por semana, só porque passavam mais tempo procurando trabalho ou correndo entre empregos, que é tempo gasto pensando sobre o trabalho e fazendo atividades relacionadas a ele, mesmo que não estejam sendo pagas. Então, trabalho excessivo e trabalho insuficiente são dois lados da mesma moeda, com uma característica compartilhada de aumento de estresse e intensidade, com as pessoas, às vezes, até os vivenciando simultaneamente.

É mais fácil entender por que trabalhadores de baixa renda estão trabalhando mais, mas vamos retornar ao extremo oposto do espectro de classes. O que explica jornadas mais longas entre aqueles com mais controle sobre seu tempo de trabalho?

Isso foi o mais interessante para mim, acho que em parte porque sou um workaholic notável. Então, trabalhadores de baixa renda têm visto um aumento maior em suas jornadas de trabalho nas últimas décadas, mas ainda é verdade que trabalhadores de alta renda, em sua maioria homens, lideram o ranking. Por que isso? Essas coisas ideológicas são frequentemente colocadas como se as pessoas simplesmente tivessem uma nova ideia sobre o trabalho, ou o trabalho melhorasse e, portanto, decidíssemos trabalhar mais.

O que eu fiz foi tentar descobrir uma maneira de conectar um fascínio cultural com a ética do trabalho às mudanças materiais reais na forma como as pessoas trabalhavam. Em outras palavras, encontrar uma base política e econômica para essa nova crença na ideologia positiva da ética do trabalho.

Eu remonto isso aos anos setenta, quando os trabalhadores industriais começaram a exigir não apenas salários mais altos e assistência médica, mas empregos mais significativos. Eles se sentiam presos à linha de montagem, presos ao relógio, e quando isso entrou em contato com a política cultural dos anos sessenta e setenta, as pessoas não queriam mais fazer esse tipo de trabalho. Elas queriam fazer algo mais autorrealizável.

Você tem um discurso similar que surge entre pessoas que trabalham em escritórios no final dos anos oitenta e noventa, essa ideia de que o escritório é um inferno e as baias são como uma gaiola. Pense no ótimo filme Como Enlouquecer Seu Chefe. Acho que havia desejos sinceros de ter um trabalho que não fosse tão enfadonho e monótono, com o qual todos nós podemos nos identificar.

Adicione a isso o fato de que o trabalho passou de uma economia majoritariamente industrial para uma economia amplamente de serviços durante esse período. Uma economia de serviços realmente exige que as pessoas participem mais. Você não está apenas parado ao lado da linha de montagem; você tem mais cautela. As pessoas começaram a se ver cada vez mais como indivíduos valiosos para uma equipe. Tornou-se positivo se ver como importante para um processo de trabalho.

Combinando essas coisas, você obtém essa nova demanda por um trabalho melhor, mais significativo e mais individualizado. O que acontece depois é que gerentes, supervisores, gurus de negócios e assim por diante tomam nota e são capazes de repensar e reembalar o trabalho em si como sendo mais relevante e significativo. Os gerentes foram capazes de converter esse desejo por um trabalho com mais propósito em uma nova ética de trabalho, uma nova cultura de trabalho, para trabalhadores de alta renda.

Como as ideias do livro respondem à crise da covid-19?

Quando a pandemia chegou, meu primeiro pensamento foi: “Ah, não, vou publicar este livro sobre longas jornadas de trabalho quando ninguém está trabalhando, quão bizarro isso será?”

Mas, na verdade, os primeiros dados sobre esse assunto parecem sugerir que muitas pessoas estão trabalhando mais. A medição do uso de e-mail indicou mais horas por dia, significativamente mais em alguns setores, especialmente entre trabalhadores de colarinho branco.

A crise da covid parece ter exacerbado algumas das tendências que descrevi no livro e também produziu algumas dinâmicas inesperadas e interessantes. Por exemplo, devido aos cuidados com as crianças e outras responsabilidades domésticas, a multidão que trabalha em casa está vivenciando mais o dia pontuado sobre o qual falamos com pessoas que têm escalas flexíveis.

Enquanto isso, trabalhadores essenciais são basicamente apenas para serem sacrificados. E há também um número enorme de pessoas desempregadas cujas vidas são, no entanto, dominadas pela busca por trabalho e pela preocupação de que não o encontrarão. Então, há novamente muita desigualdade em como a vida profissional das pessoas é organizada em todo o espectro de classes.

O problema do excesso de trabalho afeta pessoas em todo o espectro, e não deixa ninguém em melhor situação além dos capitalistas que lucram com o trabalho. Que tipos de coisas podemos fazer para diminuir o número de horas que trabalhamos?

As pessoas precisam, antes de tudo, de mais controle sobre as horas que trabalham, o que requer ter mais controle sobre as condições do trabalho em geral. E a melhor maneira de garantir isso é por meio de um sindicato ou algo parecido. Então essa é a mudança mais óbvia.

A luta pelo controle também exige que lutemos pelo acesso a serviços básicos. Por exemplo, a maioria das pessoas obtém assistência médica por meio de seu empregador. Muitos sindicalistas relatam que a assistência médica é um empecilho para as negociações sindicais. Eles não podem falar sobre salários, tempo ou segurança porque estão muito ocupados negociando assistência médica. Se tirarmos isso da equação implementando assistência médica pública nacional ou o Medicare for All, a dependência das pessoas em relação ao trabalho diminuirá e a capacidade delas negociarem os termos de seus empregos aumentará.

Além disso, acho que também há políticas pelas quais podemos lutar que são totalmente vencíveis. Poderíamos simplesmente recortar, copiar e colar políticas de outros países onde as pessoas trabalham menos e vivem vidas mais felizes, políticas que nos permitiriam tirar mais tempo de folga para a saúde, para o trabalho de cuidado, para férias e assim por diante.

Finalmente, isso é um pouco menos concreto, mas pensamos no tempo como algo muito objetivo, mas isso não é verdade no capitalismo. Empregadores e trabalhadores não pensam no tempo da mesma forma. Em uma economia onde os trabalhadores têm controle democrático sobre seus empregos, o que é, digamos, uma sociedade socialista, o tempo de trabalho seria valorizado de forma muito diferente. Os próprios empregos seriam valorizados de forma diferente, e podemos imaginar que as pessoas descobririam uma maneira mais saudável de encaixar o trabalho em suas vidas.

 

Guerras Comerciais

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O comércio internacional passou por grandes transformações nas últimas décadas, inúmeras nações atrasadas, produtoras de produtos primários de baixo valor agregado, ganharam relevância no cenário global e se transformaram em grandes atores produtivos, ganhando escala e produtividade no mercado mundial, melhorando suas estruturas econômicas, diversificando a produção, consolidando suas instituições, ganhando espaço geopolítico, levando ao enriquecimento e melhorando as condições de vida da população, um verdadeiro milagre impulsionado pelo comércio.

As trocas comerciais entre as nações impulsionam o crescimento das economias, aumentando a geração de renda, melhorando o salário da população, fortalecendo o consumo interno, aumentando as receitas tributárias dos governos nacionais e contribuindo diretamente para a melhora das condições de vida da população, levando a sociedade a investimentos em infraestrutura, levantando escolas, universidades, centros de pesquisas, hospitais e consolidando o capital humano, dando um impulso para o desenvolvimento econômico.

No século XX, os Estados Unidos foi o grande pioneiro do desenvolvimento econômico, comercializando com todas as regiões do globo, diversificando sua estrutura produtiva, incrementando a produtividade, investindo fortemente em pesquisa científica e tecnológica, expandindo seus domínios econômicos para o espaço e se destacando nas mais variadas áreas do conhecimento, se transformando na nação hegemônica, dotada de grandes oportunidades e a mais admirada, ao mesmo tempo, a mais temida do cenário internacional.

Depois dos anos 1990 as nações asiáticas passaram a ganhar espaço dos Estados Unidos no cenário global, incrementando um embate que perdura há muitas décadas, inicialmente o confronto foi com o Japão e, posteriormente, foram os chineses, de longe o maior desafio para a sociedade norte-americana. A ascensão da China representa um concorrente jamais visto, afinal, estamos falando da maior estrutura comercial do mundo, responsável por um setor industrial que produz mais de US$ 4 trilhões e detém um superávit comercial de mais US$ 1 trilhão, um valor inimaginável.

Percebendo a ameaça chinesa, a “nova” administração dos Estados Unidos vem incrementando políticas para diminuir a dependência do concorrente asiático, espalhando tarifas comerciais, impondo proteção a empresas nacionais, ameaças generalizadas e represálias agressivas a empresas chinesas. Neste pacote de variadas políticas protecionistas, muitos aliados estão sendo taxados, gerando graves constrangimentos diplomáticos, tais como vizinhos tradicionais, como o México, Panamá e Canadá.

Neste embate para retomar a liderança global, os Estados Unidos da América vêm perdendo espaço na sociedade global, antes era visto como o líder inconteste da sociedade global, hoje sua atuação está sempre gerando conflitos e constrangimentos, estimulando guerras e destruições, difundindo agressões, rancores e ressentimentos, além de uma atuação titubeante, imatura e sempre visando seus interesses particulares, deixando de ser um farol da civilização e se transformando num espaço de degradação moral.

Num ambiente de grandes desafios climáticos, preocupações com problemas energéticos e do aquecimento global, além de grandes conflitos militares que crescem em todas as regiões do globo, precisamos repensar a governança global e fortalecer os laços políticos e sociais entre as nações, criando instrumentos de integração e interdependência, rechaçando todas as medidas unilaterais e individualistas adotadas pelo “novo” governo norte-americano, afinal, a história recente nos mostra que esse unilateralismo nos leva a grandes destruições, agressividades e devastações civilizacionais.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

 

 

 

 

Todos perdem com guerra comercial de Trump, por FSP

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Medida que aumenta tarifas sobre importações de Canadá, México e China pode impactar mercado de trabalho e inflação

Folha de São Paulo, 02/02/2025

Com sua retórica beligerante costumeira, Donald Trump instituiu a primeira medida que pode gerar uma guerra comercial com grande impacto para a economia mundial.

Sem distinguir entre aliados e adversários, o presidente dos Estados Unidos decidiu impor tarifas de 25% sobre as importações do México e do Canadá —com exceção de energia, que será taxada em 10%.

Também haverá tarifas de 10% para importações da China, em adição às cobranças já vigentes, que abrangem certas categorias de produtos.

Juntos, os três perfazem 43% das importações americanas, o equivalente a US$ 1,3 trilhão (em torno de 4,8% do PIB).

A alta das taxas com essa abrangência fará com que a cobrança média sobre todas as importações passe de cerca de 3% para quase 11%, acima da tarifa linear de 10% proposta por Trump durante sua campanha eleitoral.

As justificativas alegadas não são apenas econômicas. Ao invocar poderes emergenciais, Trump mencionou o fluxo ilegal de imigrantes e drogas, em especial os opioides traficados por cartéis mexicanos com componentes obtidos na China. No caso do Canada, haveria evidência de aumento do tráfico pela maior fronteira não vigiada do mundo.

Trump faz valer, assim, sua obsessão com tarifas, que prometeu usar mais amplamente como arma, e não somente para conter o déficit comercial do país, de quase US$ 1 trilhão anual. Na melhor das hipóteses, as medidas podem ser revertidas após negociações, mas os riscos são grandes.

No caso dos vizinhos, há gigantesca assimetria. Ambos destinam quase 80% de suas exportações aos EUA, o que representa 22% do PIB do Canadá e 35% do PIB do México. Já as compras feitas pelos EUA dos dois países somam 4% do PIB americano.

Mesmo assim, o Canadá já anunciou a mesma cobrança sobre cerca de US$ 106 bilhões em bens que importa dos EUA. A China foi mais contida, prometendo levar o caso à Organização Mundial do Comércio, mas não se descarta uma reação mais dura. O México tem a posição mais frágil.

De todo modo, também haverá custos para os EUA. Mesmo com diminuta representação no PIB, as compras americanas são grandes em setores considerados críticos, como o automotivo.

A inviabilização de um pedaço da cadeia produtiva é capaz de produzir reação cumulativa que custará empregos para a população americana. Não se devem descartar efeitos recessivos.

Projeta-se ainda um impacto inflacionário, algo que pode ser contraproducente para Trump. A alta nos preços de alimentos e gasolina, afinal, foi uma das explicações para a derrota eleitoral do Partido Democrata.

Por ora, o republicano não parece se importar e acredita que seu método agressivo pode trazer vitórias imediatas. Mas o uso repetido de tarifas e da coerção pode afastar aliados e, ao longo do tempo, enfraquecer a liderança global já combalida dos EUA.