Crise e Oportunidade

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A sociedade internacional vive momentos de grandes mutações em todas as áreas e setores, todos os dias surgem novas tecnologias, alterações de modelos de negócios, movimentações disruptivas, transformações estruturais no mercado de trabalho, mudanças no comportamento dos consumidores e o crescimento sistemático da concorrência entre os atores econômicos, exigindo maior profissionalização de toda a cadeia produtiva, além de novos instrumentos educacionais que surgem todos os dias, tudo isso contribui para percebermos que vivemos numa sociedade instável e em crescente transformação.

Nessas novas mutações que passa a economia global, percebemos alterações constantes no comércio internacional, o surgimento de novos atores globais, aumento da integração entre regiões, novos conflitos entre nações hegemônicas, guerras tarifárias, aumento do protecionismo e o incremento dos subsídios, gerando incertezas em toda a economia mundial, impactando sobre as estruturas produtivas nacionais, estimulando ou desestimulando os investimentos produtivos, a geração de emprego e a renda agregada.

Neste momento de crises constantes na economia internacional, cada sociedade precisa construir novos espaços para a sua inserção na economia internacional, redesenhando seu comércio exterior, investindo em setores fundamentais para fortalecer a estrutura econômica e repensar os parceiros comerciais, aproveitando os espaços que surgem nos conflitos globais de países que lutam pela hegemonia, usando instrumentos de política industrial para atrair grandes corporações e variados conglomerados econômicos e além disso, é imprescindível preparar toda a cadeia produtiva, aumentando os investimentos na educação, atraindo pesquisadores renomados que buscam novas oportunidades no mercado internacional, contribuindo para fomentar a pesquisa científica e as bases tecnológicas.

Neste cenário de grandes incertezas na sociedade global, é fundamental atrairmos novos conglomerados econômicos e setores produtivos de ponta, dotados de grande potencial e alta complexidade, para alcançarmos este intuito é importante melhorarmos a infraestrutura, investindo fortemente em logística, reduzindo a burocracia que emperra os investimentos produtivos, diminuindo os impostos que reduzem a competitividade da estrutura produtiva, reduzindo as taxas de juros que desestimulam os investimentos produtivos e melhorando, com urgência, o capital humano nacional que, na era da inteligência artificial que está transformando a sociedade global, encontramos quase 30% dos brasileiros incapazes de compreender texto e nem fazer contas simples.

Somos uma nação dotada de grandes vantagens competitivas, temos uma gama elevada de energias sustentáveis, não temos conflitos militares e hostilidades com nenhum dos nossos vizinhos, nosso país detém grande contingente de terras e clima propício, somos detentores de minérios estratégicos para a economia do século XXI e, importante destacar, que neste ambiente de conflitos hegemônicos, nosso país consegue conversar soberanamente com todas as nações do globo, somos respeitados e todos reconhecem nosso potencial, precisamos apenas confiarmos em nós mesmos, deixando de lado discussões mesquinhas e irresponsáveis e construirmos um projeto de país, com autonomia econômica e independência política.

Estamos num momento de crises e imensas oportunidades, lembremos do período da pandemia, onde os setores mais empreendedores e dotados de grande potencial de inovação viram na crise sanitária uma grande oportunidade para se reinventar e aumentarem seus ganhos monetários, agora, aqueles que não compreenderam o imenso potencial das transformações contemporâneas, perderam espaço na sociedade. Vivemos num momento parecido, turbulento e marcado por grandes instabilidades e neste instante as decisões estratégicas definirão o futuro da nossa nação.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor universitário. 

Redes sociais e o partido digital de massas, entrevista com Bruna Della Torre

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Pesquisadora explora a hipótese de uma indústria cultural digital – entre a vitrine narcisista e a extração de dados. Uma falsa esfera pública que, nas mãos das Big Techs, favorece a ultradireita. Poderá a esquerda se organizar fora desses espaços?

Bruna Della Torre, no Blog da Boitempo – Outras Mídias – 30/04/2025

A entrevista abaixo foi preparada para a mesa redonda “América Latina: linhas de conflito na luta pela democracia”, de que participou a pesquisadora Bruna Della Torre ao lado de Silke Pfeiffer (Brot für die Welt), Pablo de Marinis (Universidad de Buenos Aires) e Jennie Dador Tozzini (ex-diretora executiva da Coordenação Nacional de Direitos Humanos – Peru). O debate fez parte da programação de um evento chamado “Democracia e autoritarismo: desdobramentos autocráticos, análises e contra-estratégias”, que ocorreu em 26 de abril em Frankfurt e foi organizado pela Associação Democracia Transnacional, em cooperação com as seguintes instituições: Instituto de Pesquisa Social; Brot für die Welt; Offenes Haus der Kulturen; mehr als wählen e. V.; World Design Capital 2026; Frankfurter Rundschau e Feira do Livro de Frankfurt. As perguntas são de Silke Pfeiffer e as respostas são de Bruna Della Torre

Depois de superar a ditadura militar nos anos 80, seu país sofreu recentemente uma experiência autoritária muito forte sob o regime de Jair Bolsonaro. Em sua pesquisa, você está investigando a influência da internet e especialmente das mídias sociais na política. Como funciona a propaganda digital da extrema direita e que efeitos está tendo?

Obrigada pela pergunta, Silke, é um prazer estar aqui com vocês neste prédio que Max Horkheimer presenteou aos estudantes para que tivessem um espaço autônomo para promover sua própria formação política (algo inimaginável na universidade hoje em dia). Entre 2021 e 2024, empreendi uma pesquisa motivada pela inquietação que me causou o rumo político do Brasil após a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Aquela eleição foi importante porque produziu, como você mesma disse, um processo de ruptura com a Nova República. Bolsonaro venceu exaltando o passado da ditadura militar e o torturador da ex-presidenta Dilma Rousseff. Durante esse período, analisei como a infraestrutura digital favoreceu formas renovadas de organização neofascista. Investiguei a propaganda dessa extrema direita nas redes ao longo desses anos, especialmente no Instagram, Telegram, TikTok e YouTube. Minha atenção se concentrou principalmente no próprio presidente Jair Bolsonaro e seus filhos Eduardo, Flávio e Carlos (políticos profissionais), mas também em grandes influenciadores de extrema direita. Parte dessa pesquisa também se concentrou na questão de gênero. Investiguei diversas formas de propaganda antifeminista, especialmente a produzida por influenciadoras, pastoras e pela esposa do presidente.
Concretamente, interessa-me explorar a hipótese de que a indústria cultural digital — isto é, o complexo de redes sociais, plataformas e dispositivos tecnológicos — opera hoje como uma nova forma de organização política que substituiu, em muitos casos, o partido de massas na articulação da extrema direita. Ou seja, a indústria cultural digital, tal como hoje configurada, não é simplesmente um meio de comunicação… mas uma forma de organização política do neofascismo. As redes não são apenas o lugar da propaganda, mas da própria política.

De fato, a indústria cultural (como o rádio e o cinema) já havia sido um dos principais instrumentos do fascismo histórico; porém, não chegou a substituir a importância do partido. O desenvolvimento mais recente das forças produtivas modificou substancialmente esse equilíbrio. As redes sociais possuem hoje uma capilaridade social que nenhuma outra organização jamais sonhou alcançar. As campanhas eleitorais hoje se desenvolvem quase exclusivamente por meio delas. O partido de massas foi substituído por uma nova forma: o partido digital de massas, uma estrutura que combina verticalidade — conectando diretamente o líder aos seus seguidores, da propaganda governamental às milícias digitais — e horizontalidade — articulando grupos marginais que antes estavam isolados e gerando nas pessoas (muitas vezes excluídas da política) uma falsa sensação de participação ativa. Nada disso é exatamente novo, mas é importante destacar. No Brasil, muitos influenciadores foram eleitos deputados. O que se observa é que, com esse tipo de propaganda, não há mais uma diferenciação clara entre um agitador de extrema direita e um político — essa mudança é muito importante. A direita está conseguindo o que a esquerda, em muitos casos, não conseguiu: mobilizar pessoas das redes para as ruas em questão de minutos, organizando não apenas manifestações, mas até tentativas de golpe político. Os episódios do Capitólio nos EUA e da invasão do Congresso e do Supremo Tribunal Federal no Brasil por parte de neofascistas são apenas duas manifestações de um potencial muito maior.

Em geral, o que observei nessa propaganda é o que temos visto, em termos de conteúdo, em toda a extrema direita: um discurso contra a chamada “ideologia de gênero” — que inclui um forte e influente movimento antifeminista —, o reforço do racismo estrutural presente na sociedade brasileira, o negacionismo, uma retórica neoliberal favorável às plataformas digitais e à livre circulação de armas, e uma particularidade brasileira que, a meu ver, consiste no reforço da lógica religiosa muito apocalíptica, especialmente das igrejas evangélicas, cuja propaganda é ostensiva nessas redes.

No entanto, em geral, nada disso é verdadeiramente novo. Contém muitos elementos do chamado fascismo histórico. Há bodes expiatórios (o Partido dos Trabalhadores, as feministas, os receptores de benefícios sociais que “não trabalham”); há promessas de que as frustrações e ressentimentos atuais serão eliminados por determinadas políticas; há empoderamento dos seus seguidores, há um constante recurso a agravos econômicos, morais, culturais e políticos; há uma produção sistemática de desconfiança e paranoia generalizada; há uma mobilização dos complexos de dependência das pessoas e uma produção de ansiedade social e psíquica generalizada. O exemplo mais ilustrativo desse fenômeno foi um meme que teve impacto considerável na eleição de Bolsonaro: uma imagem de uma mamadeira com um bico em forma de pênis, amplamente difundida nas redes sociais, acompanhada da afirmação de que o Partido dos Trabalhadores planejava instaurar uma “ditadura gay” no Brasil. Essa propaganda opera em uma complexa rede de inter-relações que torna insuficiente estudar apenas o capitalismo. Ela contém elementos políticos, econômicos, psíquicos, sociais, de gênero, entre outros. O que realmente muda é sua escala e seu alcance. Isso, sim, é novo. E trata-se de uma mudança quantitativa que traz consigo consequências políticas qualitativas. Funciona mobilizando todas essas questões que enumerei anteriormente, mas funciona, acima de tudo, porque é extensiva e ostensiva.

Recentemente você disse em uma entrevista que está tentando decifrar a propaganda digital da extrema direita para “desenvolver estratégias para neutralizá-la, impedi-la ou criar uma brigada contra incêndios.” Como você visualiza tal estratégia? E como vê a esquerda e/ou as organizações da sociedade civil / movimentos sociais reagindo frente a esses desenvolvimentos?

Vou começar respondendo a essa pergunta a partir de uma abordagem teórica, para contar que uma das ideias que inspiraram minha pesquisa foram justamente os estudos sobre a propaganda autoritária realizados por Leo Löwenthal e Norbert Gutermann, publicados no livro Profetas do engano: um estudo das técnicas dos agitadores americanos. Esses estudos tinham uma intenção prática. Max Horkheimer, então diretor do Instituto de Pesquisa Social, dizia-se interessado em criar uma espécie de manual contra a propaganda fascista, uma tentativa que acabou não se concretizando. E quando comecei esta pesquisa, minha ideia era, de certa forma, parecida. Do ponto de vista acadêmico, ainda é, e acredito que não se pode pensar em nenhuma estratégia eficaz contra a extrema direita sem compreender como ela funciona.

Mas hoje sou muito mais cética quanto a soluções puramente educativas, por assim dizer. Primeiro, porque existem duas dificuldades intrínsecas. A primeira é que muita gente não entende que não basta desmentir os agitadores de extrema direita ou fazer campanhas contra “fake news”. É muito difícil contestar esses agitadores na base do conteúdo do que dizem, não só porque seu discurso é um “discurso salsinha” — composto de uma junção fragmentária de vários ingredientes heterogêneos entre si, como dizia Theodor W. Adorno — mas porque, na realidade, esses agitadores não falam de fora, mas geralmente surgem do próprio seio de seu público-alvo: falam de dentro das camadas fascistizadas (ou ao menos conseguem transmitir essa impressão aos seus seguidores). Um exemplo: quando Bolsonaro perdeu apoio entre as mulheres devido ao seu machismo, surgiram diversas influenciadoras mulheres nas redes e a própria esposa de Bolsonaro passou a participar ativamente da propaganda antifeminista. Hoje ela é a figura da extrema direita mais bem posicionada nas pesquisas de intenção de voto para as próximas eleições, dada a magnitude de seu papel no fenômeno do pinkwashing  dentro do bolsonarismo. Atualmente, Trump também escolheu como vice-presidente uma figura que, embora não represente necessariamente esse grupo, vem do chamado “cinturão da ferrugem” e, em sua autobiografia e no filme baseado nela, fala sobre o sofrimento da classe trabalhadora branca.

A segunda dificuldade é imaginar que o principal objetivo do agitador seja conquistar a adesão moral ou intelectual de sua audiência. Se seguirmos essa linha de análise, não entenderemos por que alguém como Trump — que declarou publicamente que gostaria de namorar a própria filha — pode ser visto como defensor da família. Como Gutermann afirma, essa propaganda funciona mais como um lubrificante para a violência: não se trata realmente de proteger a família, mas de viabilizar outros discursos, como a violência contra mulheres ou a população LGBTQIA+. Quando Bolsonaro fala de liberdade de expressão, está, na realidade, legitimando discursos que no Brasil constituem crimes, como o racismo. Ele legitima e autoriza essas atitudes violentas. E muitas pessoas se sentem agradecidas, pois possuem um ressentimento profundo por não poder expressar livremente esse racismo em um país que viveu quase quinhentos anos de escravidão.

Finalmente, há o problema da escala. As redes sociais são, assim como o capital financeiro, em certa medida incontroláveis. E nelas a direita domina o meio muito melhor que nós. Mais ainda: para usar uma ideia de Adorno, a venda de uma ideia política como se fosse uma mercadoria — como faz a extrema direita — ocorre hoje em um ambiente monetizado como nunca antes na história. As Big Tech remuneram a agitação de extrema direita. Isso transforma nossa luta não apenas em uma luta ideológica, mas também econômica. Como sempre, eles contam com o respaldo do grande capital. É complexo. Acredito que uma parte da esquerda, especialmente no Brasil, já se deu conta disso, mas isso não ocorre em outras partes do mundo. As redes sociais ainda são percebidas como uma tecnologia neutra.

O que penso que é a única estratégia válida neste momento seria algo como “abra-te sésamo: queremos sair do mundo digital”. Nossa estratégia deve se orientar para o restabelecimento de vínculos sociais e políticos fora das redes. E, por fim, uma nota materialista, talvez a mais importante: Horkheimer advertia que os agitadores têm um público diferente em tempos de crise econômica. Em tempos de crise, há muito mais espaço para mobilizar o descontentamento em múltiplas direções. Portanto, compreender e transformar o sistema em que vivemos é essencial.

Que influência têm os desenvolvimentos internacionais (Trump e Big Tech nos EUA)?

Hoje, as Big Tech são uma das forças sociais — ou antissociais, se preferirmos — mais poderosas que existem. Há pouco tempo, elas teriam sido classificadas como rackets  (organizações mafiosas). O problema do capitalismo monopolista que estamos experimentando é que ele implica uma concentração de poder enorme — por isso, um dos seus riscos é o neofascismo, ou o autoritarismo, se quisermos empregar um termo mais brando. Poderíamos dizer que não é possível compreender esse fenômeno sem articular economia e política… O capitalismo monopolista tende a concentrar dinheiro e capital, o que, no mundo capitalista em que vivemos, implica uma concentração de poder. Este é o ambiente perfeito para o surgimento de um novo fascismo. Estamos vivendo agora, como fica claro com Trump, sob o neofascismo de plataforma — uma tendência que só se fortalece.

O que acontece com as plataformas é que elas estão demonstrando o quão poderosas são diante das velhas soberanias nacionais ou mesmo diante de blocos como a União Europeia. E agora as Big Tech chegaram ao governo de um dos países mais poderosos do mundo — talvez o mais poderoso. A pressão que estão exercendo sobre a Europa é brutal. Não vejo isso apenas como algo negativo — embora evidentemente o seja —, mas acredito que a posição da Europa já mudou e terá que mudar ainda mais nos próximos anos. A sinofobia, por exemplo, que é muito forte aqui na Alemanha e em outros países, também vai se transformar com a necessidade de negociar com a China. Assim, aquilo que se conhece como “Ocidente” vai se transformar com Trump.

Por outro lado, a vitória de Trump nos Estados Unidos vai empoderar profundamente as direitas europeias — já estamos vendo isso na relação entre Musk e a AfD, e com a visita de J.D. Vance à Alemanha. Agora a Europa terá que demonstrar ao mundo quão fortes são suas democracias. Acho que precisamos reconhecer que a extrema direita está organizada internacionalmente — muito mais do que nós. E isso é um problema, porque historicamente os internacionalistas sempre fomos nós. E apesar dos discursos sobre tarifas e protecionismo, a direita estadunidense está exportando um modelo de governo para muitos outros países.

Mas, para dizer algo em um tom mais otimista — se é que este mundo ainda permite algum tipo de otimismo —, vale lembrar que o Brasil se tornou agora um caso-laboratório — por enquanto — também no que diz respeito à contenção do fascismo, e acredito que isso poderá servir de exemplo para a Europa. Embora Bolsonaro não tenha sido julgado nem sancionado por sua atuação como presidente durante a pandemia de Covid-19, como deveria ter sido, ele foi finalmente declarado inelegível por oito anos por abuso de poder político e econômico nas celebrações do Bicentenário da Independência. Atualmente, também é formalmente acusado em um processo judicial que investiga seu papel na incitação ao episódio de 8 de janeiro, no qual uma multidão invadiu as sedes dos Três Poderes em Brasília. Espero que esse tipo de política leve a Europa a estudar e buscar apoio naqueles lugares que estão conseguindo conter a extrema direita. Líderes como Trump não deveriam poder se candidatar a eleições. E a AfD, com suas propostas racistas e neonazistas, também deveria ser proscrita. Pensar que permitir que movimentos de extrema direita cheguem ao poder é um ato democrático é uma ilusão. Trata-se de uma interpretação extremamente superficial do que significa democracia, e acredito que esta é a lição que a Europa precisa aprender agora se não quiser seguir o mesmo caminho dos Estados Unidos. É claro que isso não é suficiente e temos que derrotar o fascismo no corpo social, porém, devido à força mercantil e política desse movimento, precisamos usar todas as ferramentas que temos, principalmente as jurídicas e institucionais.

As redes sociais não são lugares contraditórios que também abrigam a esquerda?

Acredito que a pergunta sobre o caráter contraditório das redes sociais e sobre como deveríamos ocupá-las é uma das que mais ouço quando falo sobre o tema. Confesso que tenho um ceticismo profundo quanto à possibilidade de que alguma mudança parta da esquerda dentro dessas redes — ceteris paribus, ou seja, tal como elas existem hoje. Embora pareçam constituir uma nova esfera pública, convém lembrar que, na realidade, se tratam de grandes monopólios capitalistas baseados na publicidade — daí a analogia com o que Adorno e Horkheimer chamaram de indústria cultural que guia minha pesquisa. São sistemas fechados, cujo funcionamento desconhecemos e que não estão sob nosso controle, mas sob o controle de algoritmos definidos por essa elite que hoje vemos vinculada a figuras como Trump: Elon Musk, Mark Zuckerberg… apenas para mencionar dois dos Broligarcas.

Mas as redes sociais não têm absolutamente nada de público. São uma mistura de prisão — totalmente baseada na vigilância — e shopping center. E não sei se seria possível, nem sequer desejável, tentarmos disputar um shopping center. Não é porque as redes são digitais que elas não funcionam como uma espécie de shopping. Ainda mais quando, como mostraram diversas pesquisas, hoje mais da metade de nossas interações na internet ocorrem com bots. Imaginemos a quantidade de energia e tempo que precisaríamos investir, como esquerda, para tentar nos tornar hegemônicos nesses espaços. Ou aceitamos a mesma lógica e colocamos nossos próprios bots  para interagir com os deles, ou consumimos toda a nossa energia nessa tarefa.

A indústria cultural hoje não é apenas um espaço, é um processo, uma forma social, se quisermos, que favorece objetiva e subjetivamente a extrema direita. É uma ferramenta de produção de comportamentos, de extração de dados, de trabalho e de imaginação política.

Uma alternativa mais interessante — creio eu — seria, em primeiro lugar, compreender a fundo o fenômeno com que estamos lidando e nos reorganizar coletivamente fora desses espaços. Hoje existe um fetichismo muito forte em torno da tecnologia, mas não devemos esquecer que todas as revoluções do século XX foram feitas sem redes sociais. Precisamos expandir nossa imaginação política além dos limites que o capitalismo impõe. Essa sempre foi a tarefa da esquerda e da teoria crítica: imaginar e agir para além do existente.

Você está morando na Alemanha. Como você enxerga a AfD hoje?

Seria preciso comentar a relação da AfD com a história política da Alemanha, que é complexa e problemática, mas para ser rápida, vou ficar no tema da propaganda e comentar um pouco como acho que a AfD tem atuado em sua propaganda e por que ela tem sido tão eficaz.

Acredito que a AfD possui uma perícia incomparável no campo da propaganda neofascista. Seus memes, que invadiram o Instagram, e seus vídeos no TikTok têm uma estética muito característica — a propaganda da AfD é coerente e bem organizada. Ela possui uma identidade visual própria. Uma primeira observação sobre a AfD: A AfD parece falar a língua dos jovens e conseguiu tornar o neonazismo algo cool. Não se apresenta como um partido, mas como uma “alternativa”. Ao eliminar a palavra “partido” de seu nome, mostra-se como um movimento independente, com forte apelo entre a juventude. Um clássico do fascismo histórico. Sua campanha foi amplamente conduzida pelas redes sociais. O símbolo do partido se assemelha ao da Nike e simboliza o movimento (para a direita).

A propaganda da AfD tem, evidentemente, suas particularidades locais. É, por assim dizer, mais “social” que a extrema direita brasileira, apesar de defender direitos sociais apenas para os alemães, e não para os imigrantes. Vale dizer que, no Brasil, a direita não defende nenhum direito social e apresenta um discurso neoliberal muito mais explícito.

Também é importante comentar a questão da guerra: aqui, a AfD adotou uma posição contrária à guerra na Ucrânia, responsabilizando os chamados partidos da ordem por seu estopim. Outro ponto muito significativo é a questão climática, que ocupa um lugar central no debate público na Alemanha. Um exemplo de como essa propaganda atua em relação ao tema climático, que é um tema muito importante aqui: ela ativa uma série de ansiedades econômicas, associando a transição energética à desindustrialização e ao enfraquecimento da economia alemã. Em resposta a uma tentativa do governo de limitar a poluição proveniente das atividades agrícolas, o agronegócio se organizou e invadiu Berlim com seus tratores. Neles, podia-se ver hasteada uma bandeira com o lema: Farmers for Future [Agricultores pelo Futuro], uma referência distorcida ao movimento Fridays for Future [Sextas-feiras pelo Futuro], um dos maiores movimentos sociais na Alemanha e na Europa hoje (cuja figura mais representativa é Greta Thunberg). Assim como no Brasil, a propaganda vinculada ao agronegócio tenta ressignificá-lo: em vez de apresentá-lo como um empreendimento capitalista ultraliberal e nocivo à natureza, ele é retratado como um setor da economia que preserva as tradições rurais, alimenta a população e cumpre assim até mesmo uma função social. Com isso, a AfD ganha força também nas zonas rurais e reativa o velho ódio nazista às grandes cidades e ao seu cosmopolitismo (vale lembrar, por exemplo, o desprezo de Hitler por Berlim).

Esse tipo de propaganda, em última instância, também é capaz de ampliar a noção do econômico e fazer com que as pessoas o experienciem na vida cotidiana.

Outro exemplo: há um vídeo em que se enumeram várias razões para não votar na AfD — “se você deseja a guerra, não vote na AfD; se você acredita que homens podem engravidar, não vote na AfD” —, e que termina com uma afirmação absurda: “se você gosta de comer insetos, não vote na AfD”. A afirmação, completamente disparatada, associa a questão climática ao fim do prazer de comer, em uma sociedade em que esse prazer está associado ao consumo de carne (não por acaso, o veganismo é também um dos alvos favoritos da direita). Trata-se de uma tática já utilizada no Brasil por Carlos Bolsonaro. Nota-se que eles estão organizados e compartilham numerosos materiais de propaganda. A ideia é levar ao extremo os cenários de sacrifício exigidos pela crise climática e, com isso, fazer com que as pessoas, por medo de perder seu modo de vida, nem sequer reconheçam o problema. É uma espécie de mobilização reacionária do surrealismo, de tão inverossímeis que são os exemplos.

A Alemanha, embora tenha reduzido suas emissões de CO₂ (em 2024 registrou o nível mais baixo em 70 anos), consumiu em apenas quatro meses de 2024 o que, em termos sustentáveis, deveria ter sido consumido em um ano inteiro. Ao contrário do governo, a AfD não exige sacrifícios de seus eleitores e, além disso, promete recompensas imediatas. Uma política de esquerda deve estar consciente desse problema ao formular um programa que tenha no centro a própria sobrevivência, por mais justa e verdadeira que seja a ameaça climática.

Para terminar, já que estamos discutindo também alternativas, aqui, creio que seria necessário discutir como a esquerda precisa ser novamente o movimento que oferece, para usar uma expressão baudelairiana, uma promessa de felicidade — real, tangível, possível. Enquanto não formos capazes de fazer isso, o futuro será deles.

 

Disputa pela hegemonia no mundo integrado, por Tarso Genro

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Tarso Genro – A Terra é Redonda – 04/05/2025

A disputa hegemônica migrou para o controle digital e a financeirização do Estado, com atores globais e elites locais corroendo a democracia em favor de interesses privados

Os protagonistas da disputa pela hegemonia política e cultural na sociedade capitalista dos anos 1980, então conceituada (Adam Schaff) como “sociedade informática” – hoje já selada como “infodigital” – não tinham em mãos um instrumental tecnológico tão diverso e variado, com a capacidade tão ampla de fazer circular dados, opiniões, recursos, com a velocidade e a precisão tão aproximadas das regras espontâneas do mercado, como no fim deste quarto de século.

Na sociedade industrial contemporânea, a partir do rádio e depois da televisão, já predominavam – embora presentes de forma atenuada – as influências dos novos meios e instrumentos tecnológicos, tanto de sedução para concertos e acordos políticos, como de verificação e disseminação de conflitos políticos, embora tudo isso corresse em tempos mais lentos. As técnicas mais adequadas à propagação de produtos para o mercado (como publicidade) predominavam nesta primeira etapa, embora já difundindo informações para semear novos sentidos para a política, numa sociedade com suas classes tradicionais em diluição.

As informações de interesse público ou simplesmente importantes (em diferentes formatos) eram selecionadas pelos grupos empresariais de comunicação locais e nacionais e disputadas, no seu enquadramento, com os partidos políticos, sindicatos, grupos de “interesse” – grupos de pressão de diversas origens – que compunham, à época, sistemas de relacionamento com fontes visíveis de poder para tentar, com seus movimentos rebeldes ou conservadores, mudar a ordem, melhorá-la ou conservá-la, de acordo com seus interesses imediatos.

Pode ser dito que a disputa, neste momento, era principalmente – ainda que anterior às revoluções tecnológicas em curso – determinada pela verticalidade do poder concentrado e que hoje se dá principalmente pela horizontalidade do poder repartido. No atual ciclo de relação das tecnologias informacionais com a política e com a cultura, todavia, há uma nova concentração de poder: externa à nação, ao Estado-nação, ao município e ao território.

Esta concentração de poder também é verticalizada, contudo movida pelos fluxos em rede, com mensagens na velocidade da luz. A sua transferência de mensagens e dados tem também mais precisão, na sua difusão espacial, não só no que refere à parte que penetra na estrutura de classes que ela quer alcançar, como também no que toca aos lugares do território soberano, que as mensagens querem influenciar.

De outra parte, esta transferência de informações planejadas por estes novos centros de poder, só é passível de ser controlada por estes, até o momento da sua dispersão pelas redes sociais, nas quais o poder de transferir e comunicar se socializa. Ali estão organizados os grupos de ação que dominam tecnologias mais fáceis de serem comandadas, embora muito mais complexas para serem produzidas.

Hoje a disputa pela hegemonia no mundo integrado pela circulação do capital financeiro “legal ou ilegal”, passa, portanto por outros caminhos e ocorre internamente ao Estado, como parcerias público-privadas e pactos de privatização de seus serviços essenciais, que integram – cada vez mais – os grandes conglomerados privados globais nos mandos diretos do poder de Estado.

Estes, que passam a prestar serviços públicos essenciais com um monopólio de fácil lucratividade e direcionado para clientelas cativas, instauram – então – nas instituições sua força imperial. E externamente ao Estado, a disputa pela hegemonia passa igualmente pelos processos eleitorais e pelas mobilizações da sociedade civil, através das alianças políticas para atacar ou defender o Estado social e a democracia.

A relação política reformista e democrática com o Estado, com as redes sociais dispersas e com uma intersecção planejada e centralizada de ações políticas digitais, são os novos espaços de disputa que os partidos, governos sociais-democratas e democrático-republicanos, devem ter como prioridade na disputa pela hegemonia. É preciso considerar que este trabalho, para as classes dominantes e facções neoliberais, é feito pela imprensa tradicional e comercial, de maneira “voluntária” (ou paga), mais (ou menos) espontânea, em favor dos seus interesses privatizantes de natureza selvagem.

Os grupos empresariais e os Estados dos países dominantes, vinculados ao novo sistema-mundo da globalização, também em crise de hegemonia, olham este processo com objetivos claros, simplesmente considerando-os como renovação da abertura de uma nova fronteira de acumulação de capital e também de acumulação de força política.

A primeira, para prepararem-se para as guerras inevitáveis, a segunda, para apoiarem os regimes democráticos apenas nos limites dos seus interesses de acumulação.

Os seus pactos políticos de composição de alianças e os seus contratos financeiros de publicidade refletem, abertamente, a aglutinação sistêmica e a força que têm os líderes partidários “das classes altas” – com ou sem partido – que fazem de cada momento de privatização dos serviços públicos um degrau mais avançado de domínio do poder político. Tal conduta dissolve – lenta e seguramente – as fronteiras do público e do privado, asfixiando a democracia eleitoral com o uso da força destes poderes “de fato”.

Esta interação permite fazer, não só a conversão do Estado social em uma estrutura privada de caráter monopolista para prestar serviços essenciais a alto custo, mas também um processo de intervenção permanente nos processos eleitorais, com a proliferação de privatizações selvagens, leniência acrítica com os governos ímprobos e com os cuidados do ambiente natural, bem como na prevenção de catástrofes, gerando dinheiro vivo – com as privatizações – que servem de oxigênio financeiro para as suas alianças contra as formas consagradas do Estado social de direito.

Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).

 

Pessoa em situação de mendigo, por Antonio Prata

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Qualquer corrupção linguística para maquiar sua condição serve só para amenizar nossa culpa

Antonio Prata, Escritor e roteirista, autor de “Por quem as panelas batem”

Folha de São Paulo, 04/05/2025

Tenho ódio sempre que ouço essa aberração do politicamente correto: “Pessoa em situação de rua”. Primeiro porque não existe, em nosso idioma, ninguém “em situação” de nada. Nunca estive ou conheci alguém “em situação de gripe”. Lá pelo meio-dia não estou “em situação de fome” e depois da meia-noite nunca me descreveria “em situação de sono”. Não sei de onde importaram essa frase horrível, só sei que ela não foi bem adaptada à nossa “situação de língua”.

Não é a “situação de aberração”, porém, que me revolta mais ao falarmos “pessoa em situação de rua”. É a mentira que a frase, em sua deliberada assepsia semântica, tenta passar. É como se o sujeito que tá dormindo na calçada, em cima de uma caixa de papelão aberta, coberto com aquela manta de proteger móvel em mudança, com uma garrafa (vazia) de cachaça ao lado, sem tomar banho há semanas, sem laços sociais, familiares, talvez viciado em crack, enfim, é como se essa pessoa ferrada estivesse numa “situação” momentânea que logo, logo, vai ser resolvida. Tipo: o cara perdeu o último ônibus pro seu bairro, ficou em “situação de rua”, mas amanhã pegará o busão e estará “em situação de casa”.

Mendigo é o nome dessa pessoa. Mendigo não é alguém que simplesmente não tem casa. Não tá em “situação de rua” e nem é “sem teto”. É sem tudo. É o fundo do fundo do alçapão no fundo do alçapão do poço. Qualquer corrupção linguística para maquiar sua condição serve só para amenizar nossa culpa. É calhorda. É covarde. Em vez de tentar salvar a pessoa da degradação total, fingimos que ela não está assim tão mal. “Só uma situação”.

Fingir é uma grande habilidade nossa, brasileira. Difícil viver e ser são neste país sem fingir barbaramente um monte de coisa. Finge que o cara tá “em situação de rua”. Finge que não vê os miseráveis nos faróis de trânsito. Finge que não vê o mar de favelas sob o Rodoanel. Finge que não teve tentativa de golpe. Finge que é normal o “o orçamento secreto”.  Finge que a CBF tem algum interesse na melhoria do futebol brasileiro. Pensando bem, não é só um fenômeno brasileiro. O mundo finge que não tá acabando.

Tudo isso pra chegar na grande mágica, no grande fingimento, não só semântico, mas concreto, urbano, proposto pelo vice da prefeitura: trocar mendigos por carros embaixo do Minhocão. Tirar “pessoas em situação de rua” e colocar “carros em situação de estacionamento”.

Se a gambiarra semântica da esquerda parece bizarra, por “amaciar” a existência dos mendigos, o que a direita propõe agora em São Paulo vai muito além. É a metonímia feita ação. É a falta de vergonha: “vamos sumir com esses pobres!”. Vai ter matéria mostrando como a área do Minhocão ficou mais bonita. Mais segura. Vai gerar renda. Não tenho a menor dúvida. Varrer a miséria pra longe sempre melhora o perto. Eu, se morasse ali, não seria hipócrita. Adoraria a medida. A questão é que esses pobres existem. Continuarão na rua, em outra rua. Na frente da casa de outra pessoa. E continuarão sem casa, sem trabalho, sem banho, sem porra nenhuma, “em situação de mendigo”, em algum lugar.

 

O dilema dos bancos centrais após as tarifas, por Ana Paula Vescovi

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Autoridades monetárias enfrentam desafio histórico, sem registro em mais de meio século

Ana Paulo Vescovi, Economista-chefe do Santander Brasil

Folha de São Paulo, 04/05/2025

Estamos testemunhando uma transformação no comércio internacional, na geopolítica e na tecnologia. A expressão “mudança de regime” tem sido muito frequente nos últimos dias. A crença predominante é que estamos diante de uma ruptura nas relações produtivas e políticas que reconfigurarão a economia global nos próximos anos.

A ausência de clareza nunca foi tão alta. O Índice de Incerteza da Política Econômica nos EUA, medido por Baker, Bloom & Davis, atingiu seu ponto mais alto desde 1985, superando em quase 100% o recorde anterior, da pandemia da Covid-19. Esse cenário de imprevisibilidade contaminou o mundo, elevando o Índice Global de Incerteza da Política Econômica de volta ao pico observado na crise sanitária.

Anualmente, na primavera do hemisfério Norte, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial realizam reuniões em Washington (EUA), para discutir a economia global e seus impactos regionais. Paralelamente, ocorrem encontros com gestores públicos, como ministros da Fazenda, secretários do Tesouro e diretores de bancos centrais. Neste ano, a mudança de gestão nos EUA, com a política tarifária do governo, foi o tema central.

O “tarifaço de Trump” é inédito: 10% no geral; 25% em alguns setores; e medidas tarifárias recíprocas “individualizadas”, elevadas em razão do tamanho do déficit comercial dos EUA com outros países. A China, com retaliação, enfrenta alíquotas superiores a 100%. As tarifas médias sairiam de cerca de 2,5%, no final do ano passado, para mais de 20%.

A maioria aposta em um cenário nos EUA de estagflação, quando há baixo crescimento com inflação elevada, devido ao choque de oferta causado pelo aumento das tarifas; e uma desaceleração mais acentuada na China, que enfrenta um choque de demanda.

Segundo o presidente do Federal Reserve (Fed, o banco central dos EUA), Jerome Powell, a política de tarifas é algo nunca visto na história moderna, o que leva a interpretar que o Fed navega em águas desconhecidas. Com taxas de importação elevadas e alta incerteza, o risco é o de crescimento fraco, desemprego alto e inflação acelerada. Recentemente, houve um descolamento entre expectativas de inflação, crescentes, e projeções de crescimento, que indicam desaceleração. Se a desaceleração for brusca, o Fed priorizará seu mandato em relação ao crescimento e poderá reduzir taxas de juros no segundo semestre. Ademais, analistas esperam uma política monetária mais cautelosa e reativa, o que poderá mudar o patamar da inflação nos EUA.

No Brasil, os membros do Copom têm sido cautelosos. Qual será o impacto das tarifas? Haverá recessão ou desaceleração suave? O choque de oferta afetará a inflação?

O Banco Central brasileiro está comprometido com a meta de inflação de 3%, ainda que em um horizonte mais longo. É possível esperar uma “desinflação oportunística” se a desaceleração global, especialmente na China, abrir capacidade ociosa na economia brasileira, ajudando a controlar a inflação por aqui.

Contudo, as medidas fiscais e parafiscais expansionistas anunciadas pelo governo desafiam o Banco Central. Com expectativas de inflação desancoradas e crescentes para o próximo ano, acreditamos que haverá mais uma alta da Selic na próxima semana, antes da pausa em junho. Se a desaceleração global e local se confirmar, o ciclo de corte de juros no Brasil poderá começar ainda neste ano, mais lentamente, considerando dois cortes nos EUA no segundo semestre.

Entretanto, os bancos centrais não podem resolver tudo. Trata-se de um ambiente no qual as instituições edificadas desde o pós-Segunda Guerra Mundial tornam-se mais frágeis.

Se a guerra comercial ganhar contornos mais suaves, com acordos bilaterais de comércio com Índia, Japão, China, União Europeia e Canadá e México (USMCA), as tarifas globais poderão ser mais altas que o padrão anterior, mas mais baixas que as anunciadas no “Liberation Day” — definição dada por Trump ao dia 2 de abril de 2025, quando anunciou as novas alíquotas tarifárias. Isso reduziria os impactos disruptivos nos mercados e na economia real. Caso contrário, as políticas econômicas globais precisarão se reposicionar rapidamente, devido a um possível forte rebalanceamento do fluxo de capitais entre as regiões do planeta.

Há uma quebra de confiança que levará países e regiões a buscar maior autonomia em energia, terras-raras, tecnologia (semicondutores), defesa militar e até em temas sanitários, como medicamentos e equipamentos hospitalares. Essa busca por autonomia tende a estar associada a conflitos geopolíticos.

As rupturas nas cadeias produtivas durante a pandemia deixaram um gosto amargo. Subsídios a setores estratégicos e tarifas irão reconfigurar as cadeias produtivas globais. A Europa já mudou sua abordagem, reforçada pelo estímulo fiscal trilionário anunciado pela Alemanha. A China irá endurecer sua postura comercial e militar e buscar refazer suas alianças, inclusive no Oriente Médio.

Os bancos centrais terão de lidar com temas nunca tratados nos manuais de economia. A quebra de regime tão comentada implica dizer que os incentivos econômicos não mais ditarão as relações comerciais entre as nações, e sim a estratégia de domínio de cadeias produtivas e de tecnologias estratégicas. Antever os possíveis impactos da inteligência artificial generativa sobre a produtividade global ainda se coloca como um desafio.

Em tempos tão incertos, a melhor reação para a política monetária passa por estratégia de reação transparente ao risco inflacionário, gradualismo e moderação.

 

O cérebro ideológico, por Hélio Schwartsman

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Livro de neurocientista política mostra que indivíduos capturados por ideologias passam por transformações neurológicas.

Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”

Folha de São Paulo, 04/05/2025

Uma boa pedida para quem quer entender melhor os tempos estranhos em que vivemos é “The Ideological Brain”, da neurocientista política Leor Zmigrod.

Gostamos de imaginar que aqueles que abraçam ideologias com as quais não concordamos são pessoas rasas, que nem se dão ao trabalho de pensar direito sobre as questões em relação às quais se posicionam. Zmigrod mostra que não é bem assim.

Na mais simples de suas muitas definições, a ideologia é um tipo de narrativa que conta uma história atraente sobre o mundo. Mas, diferentemente das histórias produzidas pela cultura, as da ideologia têm caráter absolutista e cobram adesão dogmática. Não toleram contestação e vêm com prescrições. Quem se torna presa de uma ideologia passa por transformações cerebrais profundas, que deixam marcas físicas. Em casos extremos, a ideologia sequestra o próprio pensamento. A pessoa se torna menos singular, menos curiosa, menos livre.

“The Ideological…” não é um livro difícil, mas não simplifica. As inafastáveis descrições neuroanatômicas estão presentes, mas restritas a poucas passagens. Idem para os vários experimentos (da própria autora e de outros) que tentam mostrar quais são os tipos psicológicos mais vulneráveis à ideologia. A rigidez cognitiva é provavelmente o melhor preditor de suscetibilidade.

Histórica e filosoficamente informada (graduou-se em Cambridge), Zmigrod traça a genealogia do termo ideologia, cunhado por Louis Claude de Tracy no século 18 para designar o que deveria ser a ciência que estuda como temos ideias.

Uma desavença entre De Tracy e Napoleão fez com que, após campanha do corso, a palavra fosse ganhando contornos pejorativos até tornar-se quase que um palavrão com Karl Marx.

Algo que chama a atenção é a transparência com que Zmigrod apresenta as limitações e os pontos fracos de suas pesquisas. Se é o antidogmatismo que caracteriza o pensamento não ideológico, Zmigrod nos oferece uma prova prática de como agir.

 

O socialismo e a excepcionalidade chinesa, por Elias Jabbour

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 Elias Jabbour – A Terra é Redonda – 02/05/2025

Chegou a momento de discutir a excepcionalidade chinesa enquanto um socialismo com as características daquela formação histórica que está impondo vitórias sucessivas ao seu próprio povo e derrotas ao imperialismo

O sério e respeitável intelectual e militante Valerio Arcary nos entregou recentemente sua análise particular do processo em curso na China. O texto chamado de “A excepcionalidade chinesa”, publicado no site A Terra é Redonda é mais uma prova da vasta cultura política e histórica de Valerio. Na verdade, ele não trata de uma única excepcionalidade chinesa, mas de algumas – sendo que a linha de cada uma das excepcionalidades leve à constatação de o país ter restaurado o capitalismo, amiúde não ter transformado o regime político; o que em si já instigaria um estudo.

O núcleo do argumento de Valerio Arcary é muito claro e vai na direção dos riscos da esquerda mundial em abraçar um novo campismo em torno da China. Vamos aqui trocar ideias sobre alguns pontos levantados no texto de forma não de criticar os pressupostos do escrito, mas no sentido de demonstrar que o desenrolar da experiência chinesa nos demanda não somente uma completa reformulação da gramática política sobre as experiências socialistas.

Devemos rediscutir o próprio socialismo diante dos inegáveis avanços à classe trabalhadora chinesa de um projeto que, antes de mais nada, advoga o socialismo. E não outro “ismo” como nos lembra Xi Jinping.

O verdadeiro “campismo”

De imediato não acredito neste risco. Valerio Arcary fala em “o melhor da esquerda mundial” e os riscos dela se alinhar aos chineses. Em primeiro lugar, o que seria esta esquerda mundial? Se for a esquerda baseada em um marxismo que não se livrou da Europa e que hoje é hegemônica em todo o mundo onde PCs não ocupam o poder político, o risco do campismo não existe. Esta esquerda rejeita as experiências socialistas e observam a China com a mesma cosmovisão que os europeus enxergam os negros, índios, latinos etc.

O que deverá ocorrer, e já ocorre, é a crescente simpatia, de forças nacionalistas revolucionárias que hoje pipocam na África e desalojam governos pró-imperialistas, pela experiência chinesa. São bandeiras chinesas que as pessoas empunham no Níger, Burkina-Faso e alhures como inspiração às suas lutas. Neste sentido, o melhor da esquerda mundial não está no Brasil, na Europa e nos EUA e sim na África onde essa esquerda que enfrenta e derrota o imperialismo francês não é financiada por fundações e/ou ONGs de partidos socialdemocratas europeus como vemos no Brasil e na América Latina operando uma tragédia política de grandes proporções.

Logo, o campismo é entre a esquerda “Open Society” e as forças políticas que integraram o marxismo às suas realidades nacionais. Assim ao africanizar o marxismo, forças políticas que operam no campo oposto da “Open Society” nos entrega esperança, não o niilismo da esquerda no ocidente e sua franja.

A China aí é força política com amplo e decisivo papel positivo no fortalecimento da consciência nacional e revolucionária da periferia africana e asiática do sistema. Suas relações “Sul-Sul” via Iniciativa Cinturão e Rota demonstram com clareza as diferenças entre a globalização financeira que “africanizou a África” e as tendências que o desenvolvimento chinês entrega aos povos do mundo.

Equívocos básicos

Valerio Arcary comete equívocos básicos em seu texto. Por exemplo, Deng Xiaoping não foi preso e torturado na Revolução Cultural, nem tampouco existe uma formulação oficial do governo chinês de uma “NEP de longa duração”, “transição ao capitalismo” e em seguida “um novo giro histórico e reiniciar a passagem ao socialismo.

A formulação oficial é simples objetiva: a China encontra-se na etapa primária do socialismo, etapa esta caracterizada pela convivência de diversas formas de propriedade sob a dominância da propriedade pública. Outro equívoco básico é a colocar acento no “modelo econômico que aprofunda a desigualdade social por uma etapa indefinida não pode ser considerada socialista”.

Aliás, concordo com Valerio Arcary nisso, mas os dados dizem o contrário. Uma pesquisa rápida e fácil nos demonstrará a que as desigualdades sociais e territoriais na China está em curva descendente há pelo menos 20 anos e que esta mesma burguesia que, segundo ele, se favorece de uma ilimitada acumulação de capital tem visto seu patrimônio cair em um terço nos últimos cinco anos, fruto de uma operação em que a contabilidade da firma se submete cada vez mais à contabilidade social. Aqui vou dispensar as fontes, apenas sugerindo pesquisar cada afirmação que exponho aqui.

Valerio Arcary não demonstra conhecimento das políticas executadas pela governança chinesa voltadas ao controle da expansão do capital privado, o verdadeiro enquadramento de sua burguesia a uma ordem política que se tem demonstrado cada vez mais hostil a ela e a inexistência de elementos de contabilidade da firma nas decisões de investimentos estratégicos: o capitalismo é incapaz, em qualquer momento histórico, de entregar 45000 km de trens de alta velocidade em apenas vinte anos.

Outro ponto, que não se trata de um equívoco em si, é o fato de no texto não existir nenhum dado que demonstre de fato que houve uma restauração capitalista na China. Valerio Arcary se contradiz ao propor um estudo capaz de entender a tal da “contrarrevolução social” (sic) sem mudança de regime. Qual o regime anterior a 1978? Não podemos tratar, também, como equívoco a sua alusão ao “massacre” da Praça Tiananmen de 1989. Guarda certa ingenuidade não perceber ou mesmo não se dar ao trabalho de ler os relatórios liberados pela CIA sobre aqueles acontecimentos.

O mesmo pode se dizer sobre a comparação entre Deng Xiaoping e Mikhail Gorbachev. São figuras históricas e políticas antagônicas, inclusive na gramática política chinesa o homem que destruiu a URSS é tratado como um traidor e idiota (adjetivo usado por Deng Xiaoping). As reformas econômicas chinesas nada tem a ver com a Perestroika e a Glasnost. A primeira legitimou um Estado Socialista e as outras duas foram funcionais à destruição da primeira experiência socialista de nossa época.

A “burocracia”

Um dos problemas que identifico nas formulações da corrente política a qual se afilia o professor Valerio Arcary é um certo universalismo de noções pari passu a um envelhecimento das mesmas. Por exemplo, o que não se encaixa em um check-list pode ser considerada “restauração capitalista”. O mesmo se aplica ao conceito amplamente utilizado, e de forma muito séria e competente por León Trótsky, de “burocracia”.

É inescapável em trabalhos de trotskistas o refúgio nessas noções. Aqui eu sugiro substituir o universalismo (um desvio claramente liberal) pela categoria de formação econômico-social. O que significa que a burocracia descrita por León Tróstky, herdeira do czarismo, pouco tem a ver com a burocracia herdeira do modo de produção asiático.

Evidente que a tendência da burocratização é o aburguesamento e digo mais, à corrupção. Esse fenômeno também ocorre na China e é inegável. Não proponho passar por cima desta contradição, que não se tornou uma “contradição antagônica” na China, mas observar que essa burocracia simplesmente realiza: retirou 800 milhões de pessoas da linha da pobreza em 40 anos, construiu 45000 km de trens de alta velocidade em 20 anos, construiu uma imensa economia baseada no setor público capaz de rivalizar a colocar de joelhos o capitalismo estadunidense.

E entrega aumentos salariais nos últimos dez anos acima da inflação, do crescimento do PIB e da produtividade do trabalho, enquadra e coloca limites na burguesia, expropria seus bens e delibera pela distribuição ao povo, constrói um sistema de assembleias populares e de comitês de bairros que foram fundamentais na mobilização de quatro milhões de profissionais da saúde voluntários para enfrentar a morte em Wuhan, planeja a destruição criativa schumpeteriana a ponto de deslocar 200 milhões de chineses do campo às cidades em dez anos sem o risco de favelização etc. etc. etc.

Esta burocracia é herdeira da casta de burocratas que exerciam a administração estatal desde antes de Cristo ocupada com o gerenciamento e execução de imensas obras públicas. A perda de capacidade desta burocracia em entregar grandes obras levava massas camponesas influenciadas por Laotsé a derrubar dinastias.

Ao invés de enveredar a discussões abstratas sobre o “substitucionismo social” seria mais interessante entender a dialética entre o papel histórico do camponês chinês, sua capacidade de pressão sobre a burocracia e as razões de a China não ter sucumbido à contrarrevolução de 1989: os camponeses estavam com o socialismo e não ladeando com um levante pró-imperialista. Hoje esses camponeses são trabalhadores urbanos responsáveis por rebeliões de diversa ordem, colocando contra a parede os herdeiros de Mao Zedong.

Não se entende a China sem conhecer profundamente sua história. O que significa que se é atual a velha máxima do “mandato dos céus ser revogável pelo povo”, não é difícil concluir, conhecendo as minúcias de como aquela sociedade funciona, e a história dessas minúcias, que se trata de um país onde ceder a frágeis noções de “país fechado” e “autoritarismo” para descrever um país e sociedade onde o niilismo não comparece e onde se respira futuro.

“Defesa incondicional de realizações”?

Em 1949 a expectativa de vida dos chineses era de 35 anos. Hoje ultrapassou os EUA. As mulheres estavam submetidas ao processo de enfaixar seus pés de forma a criar uma sinistra forma artística para agradar os homens e hoje ocupam postos de destaque em todos os âmbitos da sociedade. O Tibet era uma semicolônia inglesa submetida por uma teocracia escravista e hoje seu padrão de vida melhora de forma mais rápida que as verificadas em outras regiões do país. A China derrotou o imperialismo em sua guerra civil e na Guerra da Coreia e hoje a derrota novamente no campo comercial e tecnológico.

Os avanços sociais incontestes aprofundados desde 1978, não reduzindo à eliminação da pobreza extrema, mas também a possibilidade de um camponês pobre ser submetido a intervenções cirúrgicas complexas e gratuitas há milhares de km de distâncias por um médico mediado por esquemas de inteligência artificial deveria por si ser um desmentido ao despautério de apontar na China uma “contrarrevolução social” quando ocorre simplesmente o oposto e sua realização não se separa do poder político erigido por uma longa luta revolucionária.

Nenhum cidadão chinês minimamente informado concordaria com uma afirmação tão irreal quanto absurda vendo camponeses pobres se transformando em cientistas e uma vibrante democracia de base enviar mais de 3000 emendas às resoluções da última Assembleia Popular Nacional. A decadência da ciência social ocidental, que atinge duramente o marxismo, não está no não reconhecimento dos feitos da revolução chinesa e sim na elaboração de noções sem nenhuma conexão com aquela realidade e a igualando com completa miséria extrema que assola um país, esse sim, de capitalismo dinâmico como a Índia. É o fundo do poço.

Reconhecer os feitos das revoluções socialistas é um ato de humanismo em um mundo onde a miséria, a fome e a guerra se tornam a regra. É negar a tendência ao ceticismo e ao niilismo e uma quase adesão ao racismo; pois é de racismo que se trata quando lemos os veredictos de intelectuais sem nenhum compromisso com o poder político e influenciado pela decadência do marxismo ocidental. Não é o caso de Valerio Arcary, evidente. A humanidade pode vencer e qualquer indicador social chinês nos demonstra isso.

Seria “campismo” o reconhecimento desses feitos? Não. Seria demonstração de fé no futuro. Isso não significa fechar os olhos para as imensas contradições que afetam a sociedade chinesa. A corrupção, a luxuria, a existência (cada vez menor) de bilionários e milionários, crise ambiental, fosso social formado por imensos equívocos de políticas executadas na segunda fase de reformas.

Tudo isso está apontado em meus livros e artigos sobre a China. Mas só se cria contradições onde o Partido Comunista se propõe a ser motor do desenvolvimento. Nada do que ocorreu após 1978 foi planejado milimetricamente. Não, o que veio foi um gigantesco processo de desenvolvimento e suas contradições proporcionais a este processo, além do altíssimo preço deste desenvolvimento.

A “prova do pudim” de um Partido Comunista no poder está no exercício absoluto de seu poder sobre todas as esferas da produção, da finança e impor à burguesia o seu ritmo e objetivos. Afora isso, este teste também se estende à demonstração de capacidade de o Partido Comunista em perceber a contradição e indicar rumos à sua superação.

Desafio alguém me mostrar que o Partido Comunista da China não enfrenta, e está vencendo e apontando rumos, a todas as contradições criadas pelo seu processo de desenvolvimento.

Discutindo o socialismo em nossa época como adultos

A experiência chinesa, imersa tanto em contradições quanto em ferramentas políticas e institucionais para enfrentar suas contradições, deveria nos obrigar não a temer um “campismo” ou nos refugiar em noções criadas na década de 1930 para compreender os limites da URSS sob a ótica de uma corrente política derrotada e sem nenhuma experiência pratica de poder político desde 1917. Deveríamos os render a mais abstrações (visão de processo histórico) e menos prisões no abstrato (visão ideológica e imersa em apriorismos).

Chegou a momento de discutir a excepcionalidade chinesa enquanto um socialismo com as características daquela formação histórica que está impondo vitórias sucessivas ao seu próprio povo e derrotas ao imperialismo vistas somente na 2ª Guerra Mundial.

É preciso encarar o objeto e penetrar nele; descobrir as suas regularidades e coerência interna. Observar como adultos seria colocar todas as contradições daquele processo em perspectiva de movimento real da mesma forma como observamos seus encaminhamentos resultando em um país estranhamente capitalista que nunca passou por uma crise. As estruturas de propriedade baseadas na propriedade pública e crescente participação de conselhos de trabalhadores em decisões de investimento, o amplo controle do Partido Comunista sobre o setor privado.

É descobrir como após 75 anos de poder político exercido no então país mais pobre do mundo, hoje observamos essa forma histórica encaminhando soluções tanto às três questões centrais de nossa época: o desenvolvimento, a paz e a crise climática. É inescapável não colocar, repetindo, que a base dessas realizações é o próprio poder político que se propõe a revolucionar a sua sociedade em saltos qualitativos e fazendo com que a ciência penetre nos poros de seu tecido social.

No detalhe, é ir fundo na investigação de como aquela experiência consegue dar início, meio e fim a todos os projetos as quais ela se propõe. Aqui, percebemos que a ciência do projetamento criada por Ignacio Rangel se realiza na China sob diversas formas. Por exemplo, o sucesso de um grande projeto depende da equalização das estruturas de custo e benefício de todas as cadeias produtivas envolvidas, por exemplo, no projeto de erradicação da pobreza.

A prática de construção de mais de cem anos de socialismo no mundo nos coloca a evidência empírica de que somente o socialismo é capaz de operar essa equalização e que a mesmo sob o capitalismo hoje é impossível e quando foi possível (consenso keynesiano) ocorreu às custas de desperdício imenso de recursos.

O socialismo ainda está no início de sua trajetória histórica, portanto com regularidades ainda em construção. Em nossa época, a experiência chinesa pode nos entregar uma definição de socialismo que a relaciona com a transformação de ciência em instrumento de governo.

Penetrando à fundo na experiência, percebemos que o “socialismo com características chinesas” se distingue dos estados desenvolvimentistas, além da natureza do poder político e da estrutura de propriedade, pelo fato de dar forma a um Estado Socialista que absorve a natureza do Estado Desenvolvimentista e a supera de forma que se demonstre capaz de introduzir contradição no seio do organismo econômico, gerando movimento e corrida da sociedade empenhada no exercício de observar “just in time” a matriz insumo-produto e entregar as soluções institucionais para promover a transferência intersetorial de recursos.

Está aí a excepcionalidade chinesa. O contrário seria admitirmos que o capitalismo – dados os feitos da experiência chinesa – tem um ainda largo caminho civilizatório pela frente. Precisamos sair do jardim da infância que ainda domina o debate sobre o socialismo.

Elias Jabbour é professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ. Autor, entre outros livros, junto com Alberto Gabriele, de China: o socialismo do século XXI (Boitempo) 

A corrosão da cultura acadêmica, por Márcio Luiz Miotto

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Márcio Luiz Miotto – A Terra é Redonda – 01/05/2025

A universidade brasileira está sendo afetada pela ausência, cada vez mais notável, de uma cultura leitora e acadêmica

É notório que a universidade brasileira sofre diversos ataques externos. Mas há algo ocorrendo dentro dela e que talvez ofereça outros perigos para sua própria existência. Trata-se da ausência, cada vez mais notável, de uma cultura leitora e acadêmica.

A falta de cultura leitora diz respeito à notável repulsa (sistemática? crescente?) de muitos universitários em enfrentar os textos, argumentos, deduções de fórmula, memorizações de observação (enfim: desafios, lógicas internas, problemas inerentes aos conteúdos que estudam), fazendo com que o “ensino superior” se transforme numa série de conteúdos e programas rasos, cabíveis em manuais simplificados e plataformas facilmente voltadas ao online.

Essas generalizadas faltas de base e/ou negligência, que provavelmente têm origem fora da universidade (via redes sociais, o “horror ao textão” cultivado nos últimos anos, a pandemia, os problemas de formação etc.), sob certos aspectos tornam-se interiores a ela, pois com frequência as universidades encontram dificuldades para combater certo senso comum não-leitor e atitudes refratárias ao estudo. Na universidade dever-se-ia aprender a ler textos, linguagens e argumentos complexos, a deduzir fórmulas, a (re)construir lógicas e arquiteturas conceituais etc.

Disso advém a corrosão da cultura acadêmica. Sem um senso comum leitor de base ou certa disposição espontânea para uma cultura leitora, as demais práticas constituintes da universidade tendem a esfarelar ou implodir. E a universidade tende a se transformar, ou na melhor das hipóteses a se confundir com outros tipos de ensino não necessariamente universitários, tais como o técnico, o profissionalizante etc.

O resultado visível da erosão da cultura acadêmica é o enfraquecimento da pesquisa, da extensão, da assistência estudantil (a qual permitiria dedicação maior aos afazeres universitários), dos projetos acadêmicos ligados ao ensino (monitorias que deveriam ser iniciações à docência e não meras aulas de reforço, redução das pesquisas monográficas, rarefação dos eventos científicos ou de bolsas de atividades acadêmicas etc.), enfim, daquilo que compõe a universidade no que ela tem de público e universalista.

Essas ameaças à cultura acadêmica talvez sejam reforçadas por algumas reações das próprias universidades a isso. Um exemplo notável é a perspectiva que reduz a pedagogia ao pedagogo, isto é, que individualiza o ensino na simples figura do professor, fazendo dele uma espécie de self made man, de “empresário de si”, enfim, transformando-o em algo como um animador de plateia, alguém cujas estratégias devem necessária e suficientemente garantir a educação (pois a pedagogia, enfim, reduziu-se ao pedagogo).

Se não há um cenário de fundo delimitando o que significa estudar e quais deveriam ser os horizontes de estudo, ou mesmo se esse cenário perdeu seu valor, ao fim resta à figura individual do professor a ingrata tarefa de transformar a pedagogia em picadeiro (sob cenários que, aliás, também são pressionados pelo tema da evasão das universidades). A partir daí, as fórmulas de sucesso e insucesso docente tendem a se resumir em receituários pessoais, convicções de ego, perfis e canais de rede social e expressões do tipo “é, mas comigo (não) é assim”.

A redução da pedagogia ao pedagogo ocorre devido ao apagamento de uma cultura de fundo, aquela que serviria de base para formar eventuais projetos pedagógicos e reunir atuações individuais. E essa redução, bem como esse apagamento, são especialmente vistos nas disciplinas de ciências humanas.

Nas ciências naturais, por exemplo, há debates recorrentes entre aqueles professores que não abrem mão da forma e do rigor (pois afinal, uma fórmula independe de circunstância) e os outros que defendem que o rigor não poderia ser destituído de preocupações pedagógicas ligadas aos perfis dos alunos. Seja qual for o desfecho, ambos os termos desses debates dizem respeito (ou deveriam dizer) a critérios pedagógicos de fundo, os quais presumivelmente servem de horizonte à atuação de qualquer profissional da área, independente de suas escolhas pedagógicas individuais.

Afinal, quer se penda para um ou para o outro lado desse debate, algo permanece o mesmo: um estudante que se depara com uma matéria de ciências exatas sabe que ali haverá questões direta ou indiretamente ligadas a cálculos, experimentos etc., cabendo à pedagogia a pergunta sobre como oferecer melhor essas racionalidades.

Algo correlato poderia ser visto nas matérias de ciências biológicas: a não ser que o professor ludibrie o aluno, independente do cenário uma matéria como a de anatomia, para ser razoavelmente ensinada, sempre exigirá uma racionalidade analítica detalhada, baseada em métodos de observação e certos rituais de análise e memorização. Sem o que, caberia imaginar um oftalmologista que desconhece a anatomia do olho, um neurocientista que desconhece as localizações cerebrais, um fisioterapeuta que desconhece a anatomia do corpo etc.

Em humanidades, entretanto, o apagamento de um horizonte leitor e acadêmico de fundo, e a redução da pedagogia ao pedagogo, por vezes são ainda mais visíveis, dando vazão a práticas – e juízos – bem diversos. É o que alimenta preconceitos como o de que os cursos de humanas seriam sem objetividade, eivados de meras opiniões (“cursos-coxa”, como se diz em algumas gírias paulistas), ou ainda desnecessários ou supérfluos.

Ou em via contrária, há também os juízos de que matérias de humanidades seriam atraentes não devido ao rigor ou ao conteúdo, mas a motivadores ocasionais e arbitrários como as discussões em grupo, os momentos de “descontração” ou o carisma individual do professor, a emulação de memes, a confusão entre a divulgação científica (tão bem feita por gente como Leandro Karnal ou Mario Cortella, dentre outros) e o estudo da ciência etc.

Essa individualização das estratégias, unida ao apagamento da cultura do texto, é muito bem descrita por textos como O método da leitura estrutural, de Ronaldo Macedo (MACEDO, 2007). A simples necessidade de que métodos de leitura sejam ensinados aos ingressantes do estudo superior evidencia que a leitura já não é um item óbvio e natural (como o era na época das fotocópias – pois mesmo se as pessoas apenas fotocopiassem, isso não disfarçava que havia uma injunção materialmente dirigida à leitura generalizada…), e o esforço dos professores para que os alunos leiam significa, mais uma vez, a simples inexistência de uma cultura difundidamente leitora.

Mas há mais: Ronaldo Macedo demonstra em seu texto algumas pesquisas nas quais o Brasil teria ficado entre os últimos lugares no quesito “leitura” (MACEDO, 2007, p. 14). Motivos? Não se trata de sustentar o velho preconceito da diferença entre as escolas “ricas” versus as “pobres”, pois Macedo destaca que os mesmos prejuízos ocorreriam em ambas. Trata-se, sim, de mostrar que quando o brasileiro estuda, e mesmo nas ditas “melhores” escolas, ele não estuda para compreender e articular a lógica de um texto, e sim para resolver questões demandadas por testes (isso quando, pelo contrário, não se abandona à simples opinologia).

Em miúdos: muitos brasileiros lêem textos (quando lêem) de forma apenas provocada e dirigida, isto é, de modo heterônomo e orientado por terceiros, como se respondessem a questões de teste, e isso em áreas nas quais escolheram estudar. Isso não à toa lembra as críticas de Richard Feynman ao ensino de física brasileiro dos anos 1950, nas quais “os estudantes haviam memorizado tudo, mas desconheciam o significado” de suas matérias (FEYNMAN, 2017).

Diante disso, para além do apagamento da cultura do texto e da redução das iniciativas a estratégias pedagógicas individuais, talvez não seja inútil lembrar que as ciências humanas, todas elas, também possuem uma cultura de fundo. Bastaria, para detectar essa cultura, retornar ao século XIX e à querela dos métodos dos alemães – a mesma que instaurou a psicologia científica (como a de Wilhelm Wundt), os debates sobre explicação versus compreensão desde Wilhelm Dilthey, as abordagens explicativas e compreensivas em sociologia, as contra-reações positivistas e assim por diante. Desde seu surgimento, seja subordinando-se às ciências naturais, seja – pelo contrário – apelando à sua irredutibilidade e especificidade, as ciências humanas não deixaram jamais de reclamar para si mesmas um espaço próprio.

E se há alusão a um espaço próprio, isso significaria no mínimo que há algo como um campo (por mais disperso que seja, e é, o que não significa que isso não tenha uma história e uma lógica), com contribuições e racionalidades específicas. Dentro das ditas “ciências humanas”, por mais diferenciado que seja um estudo sobre dança contemporânea, sobre uma tribo originária ou sobre história da filosofia, tem-se o pressuposto mais geral de que tais estudos não implicam imediatamente o mesmo tipo de racionalidade daquele praticado por um físico ou um biólogo. O que não significa dizer que ali não exista um outro rigor, encontrável na especificidade de cada ramo das ciências humanas, com seu estudo, textos e lógicas próprios.

Há, sim, uma cultura de fundo em humanidades, e ela perpassa o rigor conceitual (mesmo que não seja o do cálculo, o do experimento ou o das descrições anatômicas) e a análise textual, bem como outros métodos desenvolvidos em cada área específica. O que, mais uma vez, supõe o seguinte: para além das escolhas individuais dos docentes, há ou deveria haver um cenário de fundo, uma figura de rigor, por mínima e abrangente que seja, está sim a orientar as atuações individuais. Grosso modo, tal como se dizia no início do século XX, independente das ciências humanas desejarem ou contestarem uma objetividade naturalista, elas não deixam de ser, cada qual a seu modo, ciências “de rigor”.

Isso deveria dizer respeito, como se ilustrava mais acima, a uma cultura leitora e acadêmica, aquela que permitiria um estudante apontar o dedo e dizer “isso são humanidades” – sem reduzir a questão ao simples carisma do professor ou aos preconceitos de frouxidão de conteúdo. Se um estudante de exatas reconhece sob o fundo de suas matérias o cálculo como uma das racionalidades inerentes ao campo, e o de biológicas reconhece o raciocínio analítico-anatômico, por que o de humanidades muitas vezes, ao apontar o dedo, aponta ao professor para falar bem ou mal do assunto, e quando aponta ao campo costuma enxergar incertezas (isso quando enxerga algo)?

Não deveria haver um reconhecimento geral de que, diante de uma matéria de humanidades, haveria ali uma racionalidade baseada por baixo em análise de textos e rigor conceitual? Pois estes dois componentes – o rigor frente ao texto e aos conceitos – são, no fim das contas, comuns em todas as áreas.

Um aluno de ciências humanas que vai estudar estatística reconhece espontaneamente que ali haverá cálculo. Sendo isso dado em seu currículo, ele também reconhece que, mesmo que não utilize estatística depois, sua formação será precarizada caso não aprenda, pois aquilo lhe servirá de componente formativo. E o mesmo ocorre para quem precisa estudar peças anatômicas ou observar tecidos e células num microscópio.

Afinal, universidade não se reduz a curso profissionalizante. Mas por que, então, certa dúvida sobre o correlato disso em ciências humanas (e até em alguns cursos de formação)? Por que motivo, quando as matérias são de ciências humanas, a necessidade de ler textos e analisar conceitos (no nível mais amplo e geral, pois sabe-se que não se reduz a isso) aparece em tantos cenários como algo não espontaneamente óbvio? Por que aparece como algo que até poderia ou deveria ser minimizado ou desviado por outros subterfúgios?

De todo modo, conforme sugerido, a crise do rigor, ou da cultura acadêmica, não pertence apenas às humanidades (a citação acima de Feynman que o diga). E a crise das universidades não é apenas interna, embora internamente também diga respeito a certa erosão de uma cultura leitora e acadêmica.

Mas a resolução dessa crise não poderia ser reduzida a critérios individualizantes, pois estes são os mesmos que compõem o problema. Há quem gostaria de desfazer de vez o caráter acadêmico das universidades, reduzi-las a cursos online sob conteúdos pré-formatados, sem pesquisa e extensão.

Igualmente, há quem queira reduzir a atuação docente a uma espécie evolucionismo ingênuo (abandonando cada professor a uma fórmula de “esforço” e “eficácia” individuais, o que inevitavelmente redunda em comportamentos de sobrevivência e manada, cartéis e alianças de ocasião para amenizar o primado da competição), há quem queira reduzir a pedagogia ao pedagogo. Pois aí estão também os vínculos de trabalho precarizados e provisórios, bem como as inviabilizações da pesquisa e da extensão a longo prazo. A redução da pedagogia ao pedagogo e a individualização dos processos de ensino contribuem, enfim, para aquilo mesmo que se deveriam combater.

O reconhecimento de que cada campo tem especificidades próprias, a defesa de cada racionalidade inerente ao campo, a composição de cenários pedagógicos de fundo, talvez não acabem com a erosão da cultura acadêmica e leitora (pois muito dela é, como se disse, exterior à universidade). Mas a universidade, e cada docente, não são passivos diante disso. A maior prova é a de que a escolha mais simples ocorre por vezes sob a via individual. Mas afinal, isso também prova que há escolha

Marcio Luiz Miotto é professor de psicologia na Universidade Federal Fluminense (UFF).

Bibliografia

FEYNMAN, R. Richard Feynman: sobre a educação no BrasilMedium, 2017.

FEYNMAN, R. Surely You’re Joking, Mr. Feyman! [s.l: s.n.].

MACEDO, R. O método de leitura estrutura Cadernos Direito GV, v. 4, n. 2, 2007.

 

 

EUA – o novo paraíso fiscal global? por Joseph Stiglitz

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Joseph Stiglitz – A Terra é Redonda – 01/05/2025

Donald Trump está transformando a América em um paraíso fiscal, segue desmantelando salvaguardas e alimentando a desigualdade por meio da desregulamentação global

1.

Donald Trump está rapidamente transformando os Estados Unidos no maior paraíso fiscal da história. Basta observar quatro ações: (i) a decisão do Departamento do Tesouro de se retirar do regime de transparência que compartilha as identidades reais dos proprietários das empresas; (ii) a retirada do governo das negociações para estabelecer uma Convenção das Nações Unidas sobre Cooperação Tributária Internacional; (iii) a recusa em aplicar a Lei de Práticas de Corrupção no Exterior; (iv) a desregulamentação maciça de criptomoedas.

Isso parece fazer parte de uma estratégia mais ampla para minar 250 anos de história de defesa de salvaguardas institucionais. O governo de Donald Trump violou tratados internacionais, ignorou conflitos de interesse, desmantelou freios e contrapesos, deslocou fundos alocados pelo Congresso. O governo não debate mais políticas, pois, ao contrário, atropela o estado de direito.

Mas Donald Trump adora um tipo de imposto: as tarifas de importação. Ele parece acreditar que os estrangeiros vão pagar a conta que ele cria, fornecendo assim fundos para cortar impostos para bilionários. Ele também parece acreditar que as tarifas eliminarão os déficits comerciais e devolverão a fabricação de bens industriais aos EUA. Não importa que as tarifas sejam de fato pagas pelos importadores, elevando assim os preços domésticos, e estejam sendo cobradas no pior momento possível, quando os EUA estão se recuperando de um episódio inflacionário.

Além disso, a macroeconomia elementar mostra que os déficits comerciais multilaterais refletem a disparidade entre a poupança doméstica e o investimento doméstico. Os cortes de impostos de Donald Trump para bilionários aumentarão essa lacuna já que os déficits reduzem a poupança nacional doméstica. Pode parecer bem irânico, mas as políticas de cortes de impostos para bilionários e corporações tendem a elevar o déficit comercial.

Desde Ronald Reagan, os conservadores afirmam que os cortes de impostos se pagam porque impulsionam o crescimento econômico. Mas isso não funcionou no governo Reagan; não funcionou também durante o primeiro mandato de Donald Trump. A pesquisa empírica confirma que os cortes de impostos para os ricos não têm impacto mensurável no crescimento econômico ou no desemprego, mas aumentam a desigualdade de renda de maneira imediata e persistentemente. A proposta de extensão da Lei de Cortes de Impostos e Empregos de 2017 – quando ocorreram os maiores cortes de impostos corporativos da história dos EUA – vai adicionar cerca de US$ 37 trilhões à dívida nacional dos EUA nos próximos 30 anos, sem entregar o impulso econômico prometido.

2.

Donald Trump também está piorando o déficit comercial no nível microeconômico. Os EUA se tornaram uma economia de serviços. Entre suas maiores exportações estão turismo, educação e saúde. Mas Trump minou sistematicamente cada um deles. Que turista, estudante ou paciente gostaria de vir para os EUA sabendo que poderia ser detido arbitrariamente e mantido por semanas? O enfraquecimento das principais instituições de ensino da América, o cancelamento arbitrário de vistos de estudante e o desfinanciamento da pesquisa científica lançaram uma mortalha profunda sobre esses setores críticos.

A abordagem estrategicamente falha de Donald Trump já está saindo pela culatra. A China é um dos maiores parceiros comerciais dos Estados Unidos; como se sabe, os EUA dependem de importações críticas vinda da China. Sabendo disso, ela já retaliou. O medo do “estagflação” – inflação mais alta combinada com crescimento estagnado – atingiu já os mercados de ações e títulos. E isso é apenas o começo.

Graças ao Departamento de Eficiência Governamental de Elon Musk, as receitas fiscais podem despencar mais de 10% este ano devido ao enfraquecimento da fiscalização. Uma redução de cerca de 50.000 trabalhadores desse departamento resultará provavelmente em US$ 2,4 trilhões em receita perdida nos próximos dez anos, em comparação com o aumento projetado de US$ 637 bilhões sob as disposições da Lei de Redução da Inflação que visava aumentar a força de trabalho desse órgão. A agenda é clara: não apenas taxas de impostos mais baixas para os ricos, mas também uma fiscalização mais fraca.

Em um mundo onde o capital e os indivíduos ricos podem cruzar as fronteiras livremente, a cooperação internacional é a única maneira de os governos garantirem que as corporações multinacionais e as pessoas ultra ricas sejam tributadas de forma justa. Nesse contexto, interromper a aplicação da coleta de dados da propriedade tributável, tolerar mercados de criptomoedas que aumentam o anonimato e abandonar o processo de conclusão de uma nova convenção tributária da ONU, abdicar de um imposto mínimo global, tudo isso revela um padrão deliberado: desmantelar estruturas multilaterais destinadas a combater a evasão fiscal e a lavagem de dinheiro. A “pausa” da aplicação da Lei de Práticas de Corrupção no Exterior indica que os EUA não se importam mais nem mesmo com suborno e suborno.

O que estamos testemunhando é uma aparente tentativa de Donald Trump, Elon Musk e seus comparsas bilionários de forjar uma espécie de capitalismo modelado a partir das zonas sem lei do mundo offshore. Não é apenas uma revolta fiscal; trata-se de um ataque incondicional a qualquer lei que ameace o acúmulo extremo de riqueza e de poder.

Em nenhum ponto isso é mais evidente do que na adoção da criptografia. A explosão do mercado de criptomoedas, cassinos online e plataformas de apostas pouco regulamentadas estão impulsionando a economia ilícita global. Sob Donald Trump, o Departamento do Tesouro suspendeu sanções e regulamentos sobre plataformas que escondem as transações feitas. Trump até assinou uma ordem executiva para estabelecer uma “reserva estratégica de criptomoedas” e realizou a primeira cúpula de criptomoedas da Casa Branca. O Senado dos EUA seguiu o exemplo, matando uma disposição que exigiria que as plataformas de criptomoedas identificassem e denunciassem usuários.

Donald Trump emitiu uma moeda do tipo meme controversa; em breve, ele pode lançar um videogame baseado no jogo conhecido como “Monopólio”; ele instalou um defensor das criptomoedas no comando da Comissão de Valores Mobiliários. Paul Atkins é membro de um grupo de políticas que defende criptoativos e sistemas financeiros não bancários.

As plataformas de criptomoedas têm uma característica central: o sigilo das operações que ali acontecem. O sistema econômico atual se baseia em boas moedas, tais como o dólar, o iene, o euro e outras mais. Há plataformas de negociação eficientes para a compra de bens e serviços. A demanda por criptomoedas vem do desejo de esconder dinheiro e de fazer operações sigilosas com dinheiro. É por isso que as pessoas envolvidas em atividades criminosas, incluindo aí a lavagem de dinheiro e a evasão fiscal, as utilizam: assim, as operações feitas deixam de ser facilmente rastreáveis.

3.

O resto do mundo não pode ficar parado, assistindo a tudo isso.  Vimos que a cooperação global pode funcionar, como mostra o imposto mínimo global de 15% sobre os lucros das multinacionais, que mais de 50 países estão introduzindo agora. Dentro do G20, o consenso forjado no ano passado sob a liderança do Brasil exige que os indivíduos muito ricos paguem sua parte justa.

Os EUA se distanciaram dos acordos internacionais, mas, paradoxalmente, a ausência de sua diplomacia pode ajudar a fortalecer as negociações multilaterais para obter um resultado mais ambicioso. No passado, os EUA primeiro exigiam que um acordo fosse enfraquecido (normalmente para beneficiar um interesse especial), mas no final se recusavam a assiná-lo mesmo assim. Foi o que aconteceu durante as negociações da OCDE para a tributação das empresas multinacionais. Agora, o resto do mundo pode continuar com a tarefa de projetar uma arquitetura tributária global justa e eficiente.

Abordar a desigualdade extrema por meio da cooperação internacional e de instituições inclusivas é a alternativa real ao crescente autoritarismo. O autoisolamento dos Estados Unidos cria uma oportunidade para reconstruir a globalização em bases verdadeiramente multilaterais – criando um G-menos-um para o século XXI.

Joseph E. Stiglitz é ganhador do Prêmio Nobel de economia e professor na Columbia University (New York). Autor, entre outros livros, de O Grande Abismo Sociedades Desiguais e o que Podemos Fazer Sobre Isso (Alta Books)

A Economia de Francisco

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A semana passado trouxe uma grande infelicidade para a grande maioria dos cristãs que comungam os ideais religiosos do catolicismo, algo em torno de dois bilhões de pessoas no globo, a morte do Papa Francisco gerou muitas tristeza e desespero, levando a sociedade mundial a refletir sobre suas encíclicas, seus sermões e escritos que se espalharam para toda a sociedade internacional.

Vivemos numa sociedade marcada pela fragilização da solidariedade humana, onde encontramos a degradação dos laços sociais e sentimentais, nesta sociedade, percebemos o crescimento indiscriminado do individualismo, do imediatismo e da busca frenética pelo lucro monetário, deixando de lado os interesses do humanismo e dos valores mais sólidos e consistentes dos seres humanos. Estamos cultivando diuturnamente os interesses mesquinhos do imediatismo e dos valores do capital, da imagem deturpada das redes sociais e dos interesses centrados dos donos do capital, que controlam as mentes e distorcem a realidade, levando os indivíduos a buscarem os prazeres imediatos, do hedonismo e nos afastando dos valores da civilização.

Nesta sociedade, encontramos discussões equivocadas e desnecessárias, representantes políticos incapazes de compreender os valores e os anseios  mais sólidos da comunidade, o incremento da violência urbana em todas as áreas e setores, o aumento de profissionais incapazes de compreender os desafios da contemporaneidade, empresas e organizações perdidas num ambiente de transformações e mutações constantes, o  crescimento vertiginoso de moradores de ruas e pessoas degradadas numa economia hostil, o aumento dos financistas, economistas e homens de negócios que se ocupam dos discursos da austeridade dos gastos públicos e da redução das políticas públicas, pregando cortes constantes de custos e defendendo um sistema tributário desumano e cruel, com discursos pomposos que servem apenas para esconder seus interesses imediatos, manter seus poderes imediatos e a perpetuação dessa penúria que vive uma população marginalizada e constantemente explorada.

Neste ambiente, marcado pelo crescimento de um capital financeiro, improdutivo e parasitário, dotado de grande poder econômico e força política, que encontra no Papa Francisco novos instrumentos de reflexão, um apóstolo oriundo do mundo subdesenvolvido e dotado de grande capacidade intelectual e moralidade, que propõe uma sociedade mais igualitária, com mais solidariedade, mais acolhedora e menos julgadora, mais centrada no ensinar e no empregar e menos da exploração e da degradação, com isso, ajudando a construir novos valores, novos comportamentos e novos sentimentos, recriando a esperança e novos horizontes, ao contrário de uma sociedade calcada na exploração e na deturpação dos indivíduos.

A economia de Francisco traz novos instrumentos de reflexão e ação imediata, pregando o respeito ao ser humano e uma valorização da mãe natureza e do meio ambiente, trocando a exploração e estimulando a solidariedade humana, fomentando a reflexão individual e a conversação na comunidade, rechaçando o financismo e o capital parasitário que dominam a sociedade global e que prega o individualismo do cotidiano, destruindo os valores do humanismo e da solidariedade.

A economia de Francisco nos traz novos horizontes e um alento para uma sociedade mundial que, infelizmente, estimula o egoísmo e a busca frenética pelos interesses materiais, com isso, percebemos mais claramente a degradação da civilização.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Sociologia do Trabalho e Exclusão Social, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

 

Pejotização e o colapso silencioso da Previdência, por Erik Chiconelli Gomes

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Além de precarizar, a multiplicação de contratos PJ corrói a base de financiamento de uma conquista histórica – e abre espaço para a enésima contrarreforma. Debate no STF, portanto, não é apenas jurídico. Envolve o futuro dos direitos e proteções que constituem a cidadania

Erik Chiconelli Gomes – OUTRAS PALAVRAS – 29/04/2025

A transformação das relações laborais no Brasil tem apresentado uma tendência preocupante desde a implementação da reforma trabalhista. O fenômeno conhecido como “pejotização” – a contratação de trabalhadores como pessoas jurídicas em vez de empregados formais – representa não apenas uma mudança nos arranjos contratuais, mas uma profunda alteração na própria estrutura das relações sociais de produção, revelando novas formas de exploração do trabalho que precisam ser analisadas a partir de uma perspectiva historiográfica que valorize a agência dos trabalhadores e as dimensões morais da economia.

Segundo estudo realizado por pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas, a pejotização custou aos cofres públicos entre R$ 89 bilhões e R$ 144 bilhões entre 2018 e 2023. Como observa Nelson Marconi, coordenador do curso de graduação em administração pública da FGV, “do ponto de vista social, os trabalhadores têm perdas em termos de direitos, como férias, décimo terceiro e aviso prévio. Para o lado da empresa, isso flexibiliza o mercado de trabalho e diminui encargos. Mas, do ponto de vista econômico, tem um impacto muito forte na arrecadação. Diminui o dinheiro para financiar políticas públicas.” (Desidério, 2025).

Esta transformação nas relações de trabalho não pode ser compreendida como um mero ajuste técnico ou jurídico no sistema produtivo brasileiro. Representa, antes, um movimento histórico que ressignifica a própria noção de trabalho, alterando profundamente os laços sociais e a consciência de classe dos trabalhadores. A substituição do vínculo empregatício formal por uma relação comercial entre empresas mascara relações de poder e dominação historicamente constituídas, criando a falsa impressão de autonomia e empreendedorismo.

Como argumenta David Harvey em seu estudo sobre a condição pós-moderna, o que testemunhamos é parte de um processo mais amplo de acumulação flexível, que impõe novas formas de controle do trabalho enquanto dissolve conquistas históricas dos trabalhadores. “A acumulação flexível envolve rápidas mudanças nos padrões de desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado ‘setor de serviços’.” (Harvey, 1992).

A análise das perdas arrecadatórias decorrentes da pejotização revela não apenas um problema fiscal, mas sobretudo uma profunda contradição no projeto econômico vigente. As simulações apresentadas pelos pesquisadores da FGV indicam que, caso metade dos trabalhadores CLT em 2023 se tornassem trabalhadores por conta própria, a perda de arrecadação chegaria a mais de R$ 384 bilhões em apenas um ano. Tal cenário, descrito como “extremo, mas possível” pelos próprios pesquisadores, evidencia o potencial desestabilizador dessa prática para as finanças públicas e, consequentemente, para a manutenção das políticas sociais.

A historiadora Bárbara Weinstein, em seu estudo sobre a formação da classe trabalhadora brasileira, nos lembra que “as transformações nas relações de trabalho nunca são meros reflexos de mudanças econômicas ou tecnológicas, mas constituem processos ativamente disputados, negociados e contestados pelos diversos atores sociais envolvidos.” (Weinstein, 1996). A pejotização contemporânea, portanto, deve ser compreendida como um campo de disputa onde se confrontam interesses antagônicos e visões distintas sobre o valor social do trabalho.

O fenômeno da pejotização emerge não como desenvolvimento natural ou inevitável das relações produtivas, mas como resultado de escolhas políticas deliberadas e de interpretações jurídicas específicas. O crescimento exponencial do número de trabalhadores por conta própria após a reforma trabalhista evidencia o caráter induzido dessa transformação, que responde a interesses econômicos específicos em detrimento da proteção social historicamente construída.

Ricardo Antunes, ao analisar as metamorfoses no mundo do trabalho, argumenta que “o que vemos hoje no Brasil é parte de um processo global de precarização estrutural do trabalho, que combina o desmonte dos direitos sociais com novas formas de gestão e controle da força de trabalho. A pejotização representa uma dessas novas modalidades de precarização, que transfere para o trabalhador individual os riscos e custos anteriormente assumidos pelo capital.” (Antunes, 1999).

A dimensão moral dessa transformação não pode ser subestimada. Ao se reconfigurarem as relações de trabalho sob a aparência de contratos entre pessoas jurídicas, opera-se também uma profunda alteração nas expectativas recíprocas entre empregadores e trabalhadores, nas noções compartilhadas de justiça e nas práticas de solidariedade que tradicionalmente caracterizavam as relações laborais. A economia, como sempre enfatizaram os historiadores sociais britânicos, nunca é apenas uma questão de números, mas também um campo de relações morais historicamente construídas.

Olivia Pasqualeto, professora de Direito da FGV, observa com precisão um dos aspectos mais problemáticos desse processo quando afirma que “quando o STF diz que qualquer relação vai ser lícita, ficamos sem saber qual elemento vai diferenciar uma coisa da outra. Fica nebuloso saber o que deve ser regido pela CLT.” (Desidério, 2025). Esta nebulosa distinção revela-se não apenas um problema técnico-jurídico, mas um sintoma da crescente descaracterização do trabalho como relação social dotada de proteções específicas

O historiador Sidney Chalhoub, em seus estudos sobre trabalho, cidadania e direitos no Brasil, nos oferece uma perspectiva valiosa ao afirmar que “as transformações nas relações de trabalho no Brasil sempre foram mediadas por intensas disputas políticas e jurídicas, nas quais os trabalhadores nunca foram sujeitos passivos, mas agentes que continuamente reinterpretam e contestam as imposições das classes dominantes.” (Chalhoub, 1986).

A análise histórica do fenômeno da pejotização deve considerar não apenas seus impactos econômicos imediatos, mas também suas implicações para a construção da cidadania no Brasil. Ao se substituir a relação empregatícia formal por contratos comerciais, fragilizam-se os mecanismos de proteção social que, historicamente, serviram como porta de entrada para direitos sociais mais amplos na sociedade brasileira.

Mike Davis, em sua análise sobre o trabalho precário global, argumenta que “a informalização e precarização das relações de trabalho não representam um retorno a formas pré-modernas de exploração, mas constituem modalidades inteiramente novas de extração de mais-valor, adaptadas às condições do capitalismo financeirizado contemporâneo.” (Davis, 2006).

O embate jurídico em curso no Supremo Tribunal Federal, que suspendeu todos os processos sobre o tema até um julgamento definitivo, ilustra como as lutas dos trabalhadores por reconhecimento e direitos se deslocaram para a arena judicial. Este deslocamento, contudo, não diminui o caráter essencialmente político e social da questão; apenas reconfigura os termos do conflito e os espaços institucionais onde ele se desenvolve.

A suspensão das quase 460 mil ações sobre reconhecimento de relação trabalhista em 2024 representa não apenas uma questão jurídica, mas um momento crítico para a reconfiguração das relações entre capital e trabalho no Brasil contemporâneo. O resultado deste embate determinará não apenas o futuro imediato de milhares de trabalhadores, mas estabelecerá precedentes para toda a classe trabalhadora brasileira nas próximas décadas.

O impacto da pejotização sobre o sistema previdenciário brasileiro revela uma dimensão particularmente alarmante desse processo. Estamos diante de um desmantelamento silencioso da seguridade social, operado não através de uma reforma aberta e transparente, mas por meio de uma erosão gradual da sua base de financiamento. Quando um trabalhador deixa de contribuir como empregado formal e passa a fazê-lo como microempreendedor individual, a diferença de arrecadação não representa apenas um número nas contas públicas – simboliza o esvaziamento de um pacto social que, por décadas, garantiu dignidade a milhões de brasileiros na velhice, na doença e na incapacidade laboral.

Este esvaziamento ocorre em um contexto demográfico de envelhecimento populacional, no qual a sustentabilidade da Previdência já enfrenta desafios consideráveis. A pejotização, portanto, acelera e agrava uma crise anunciada, comprometendo a viabilidade futura de um sistema que representa uma das maiores conquistas sociais da história brasileira. Não se trata apenas de um problema fiscal, mas de uma questão ética fundamental sobre o tipo de sociedade que estamos construindo e os valores que a orientam.

A história das relações trabalhistas no Brasil revela um padrão recorrente de formalização precária, no qual direitos são concedidos no plano legal, mas continuamente subvertidos na prática cotidiana. A pejotização contemporânea representa um novo capítulo nessa história, com a particularidade de utilizar instrumentos jurídicos formais – como a constituição de pessoas jurídicas – para legitimar a evasão de obrigações trabalhistas e previdenciárias. O verniz de legalidade que recobre essas práticas torna-as particularmente insidiosas, pois dificulta seu reconhecimento como formas de precarização e exploração.

A experiência histórica nos ensina, contudo, que as relações de trabalho nunca são estáticas e que sua configuração depende fundamentalmente das lutas sociais em curso. A pejotização, apesar de sua aparente solidez jurídica e econômica, não está imune à contestação e à resistência dos trabalhadores. Novas formas de organização coletiva já começam a emergir entre trabalhadores “pejotizados” que, apesar da fragmentação de seus vínculos formais, compartilham experiências comuns de precariedade e insegurança.

Este movimento de ressignificação e reapropriação da própria condição de trabalho representa uma continuidade histórica com as tradições de luta da classe trabalhadora brasileira, que sempre encontrou formas criativas de resistência mesmo nos contextos mais adversos. A compreensão desta agência histórica dos trabalhadores – sua capacidade de interpretar, contestar e transformar as condições de sua própria exploração – é fundamental para qualquer análise crítica do fenômeno da pejotização que não se limite a reproduzir determinismos econômicos ou legalismos superficiais.

O que está em jogo, portanto, não é apenas uma questão técnica de classificação jurídica de relações laborais, mas a própria redefinição do horizonte de direitos e proteções que constituem a cidadania social no Brasil contemporâneo. A disputa sobre a pejotização é, em última instância, uma disputa sobre o valor social do trabalho e sobre a responsabilidade coletiva frente aos riscos e vulnerabilidades inerentes à condição humana. Seu desfecho dependerá não apenas de decisões judiciais ou políticas, mas da capacidade de mobilização e organização dos próprios trabalhadores em defesa de um projeto de sociedade que reconcilie desenvolvimento econômico com justiça social e dignidade no trabalho.

Referências

ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho: Ensaio sobre a Afirmação e a Negação do Trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999.

CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: O Cotidiano dos Trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. São Paulo: Brasiliense, 1986.

DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006.

DESIDÉRIO, Mariana. Pejotização custou ao menos R$ 89 bilhões e ameaça Previdência, diz estudo. UOL, São Paulo, 26 abr. 2025.

GOMES, Angela de Castro. A Invenção do Trabalhismo. Rio de Janeiro: FGV, 2005.

HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: Uma Pesquisa sobre as Origens da Mudança Cultural. São Paulo: Loyola, 1992.

VAN DER LINDEN, Marcel. Trabalhadores do Mundo: Ensaios para uma História Global do Trabalho. Campinas: Editora da Unicamp, 2013.

WEINSTEIN, Barbara. For Social Peace in Brazil: Industrialists and the Remaking of the Working Class in São Paulo, 1920-1964. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1996.

 

 

Por que os EUA perderão para a China, por Martin Wolf

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O país não confiável de Trump está jogando fora os ativos de que precisa

Martin Wolf, Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

Folha de São Paulo – 29/04/2025

O “Dia da Libertação” de Donald Trump, com supostas tarifas recíprocas contra o resto do mundo —possivelmente as propostas de política comercial mais excêntricas já feitas— transformou-se, após uma rápida recuada sob pressão dos mercados, em uma guerra comercial com a China. Isso pode (ou não) ter sido o que se pretendia desde o início.

Então, Trump pode vencer esta guerra contra a China? Na verdade, os Estados Unidos, como estão agora após o segundo mandato de Trump, podem esperar ter sucesso em sua rivalidade mais ampla com a China? A resposta para ambas as perguntas é não. E isso se dá não porque a China é invencível, longe disso. Mas sim porque os EUA estão jogando fora todos os ativos de que precisam para manter seu status no mundo contra uma potência tão enorme, capaz e determinada como a China.

“Guerras comerciais são boas e fáceis de vencer”, Trump publicou em 2018. Como ideia geral, isso é falso: guerras comerciais prejudicam ambos os lados. Um acordo que deixe ambas as partes mais beneficiadas do que antes pode ser alcançado. Mas, mais provavelmente, qualquer acordo deixará um lado melhor do que antes e o outro pior. Este último tipo de acordo é, presumivelmente, o que Trump espera que surja: os EUA vencerão e a China perderá.

No momento, os EUA impõem uma tarifa de 145% sobre importações chinesas, enquanto a China impõe uma tarifa de 125% sobre os EUA. A China também restringiu exportações de terras raras para os EUA. Essas são barreiras comerciais muito altas, de fato proibitivas. Isso parece um “impasse mexicano”, que nenhum dos lados pode vencer, entre as duas superpotências.

Entende-se que o plano dos EUA (se é que existe um) é “persuadir” parceiros comerciais a impor pesadas barreiras às importações da China em troca de um acordo favorável sobre comércio (e talvez em outras áreas, como segurança) com os EUA. Esse resultado é plausível? Não.

Uma razão é que a China também tem cartas poderosas. Muitas potências significativas já fazem mais comércio com a China do que com os EUA: isso inclui Austrália, Brasil, Índia, Indonésia, Japão e Coreia do Sul. Sim, os EUA são um mercado de exportação mais importante do que a China para muitos países importantes, em parte devido aos déficits comerciais dos quais Trump reclama. Mas a China também é um mercado significativo para muitos. Além disso, a China é uma fonte de importações essenciais, muitas das quais não podem ser facilmente substituídas. Importações são, afinal, o propósito do comércio.

Acima de tudo, os EUA deixaram de ser confiáveis. Um EUA “transacional” está sempre buscando um acordo melhor. Nenhum país sensato deve apostar seu futuro em tal parceiro, especialmente contra a China. O tratamento de Trump ao Canadá foi um momento decisivo. Os canadenses responderam reelegendo os liberais.

Trump aprenderá com isso? Um leopardo pode mudar suas manchas? É assim que ele é. Ele também é um homem que os eleitores americanos elegeram duas vezes. Além disso, romper com a China seria arriscado: a China não esquecerá e provavelmente não perdoará.

Não menos importante, a China acredita que seu povo pode suportar a dor econômica melhor que os americanos. Além disso, para o país asiático, a guerra comercial é principalmente um choque de demanda, enquanto para os EUA é principalmente um choque de oferta. É mais fácil substituir a demanda perdida do que a falta de fornecimento.

Em suma, os EUA não conseguirão os acordos que aparentemente buscam e a vitória sobre a China que esperam. Minha suposição é que, à medida que isso se torne evidente para a Casa Branca, Trump recuará pelo menos parcialmente das suas guerras comerciais, declarando vitória, enquanto segue em alguma outra direção.

No entanto, isso não muda a realidade de que os EUA estão de fato competindo com a China por influência global. Infelizmente, o EUA que muitos querem que se saia bem nessa história não é este EUA.

Os EUA de Trump não se sairão bem. Sua população é um quarto da da China. Sua economia tem praticamente o mesmo tamanho, porque é muito mais produtiva. Sua influência, cultural, intelectual e política, ainda é muito maior que a da China porque seus ideais e ideias são mais atraentes. Os EUA foram capazes de criar alianças poderosas com países de mentalidade semelhante que reforçam essa influência. Em suma, herdaram e foram abençoados com enormes ativos.

Agora, considere o que está acontecendo sob o regime Trump: tentativas de transformar o Estado de direito em um instrumento de vingança; o desmantelamento do governo; desprezo pelas leis que são a base de um governo legítimo; ataques à pesquisa científica e à independência das grandes universidades americanas; guerras contra estatísticas confiáveis; hostilidade em relação aos imigrantes (e não apenas os ilegais), embora eles tenham sido a base do sucesso dos EUA em todas as gerações; um repúdio total da ciência médica e da ciência climática; uma rejeição total das ideias mais básicas na economia do comércio; uma equivalência ou (muito pior que isso) preferência por Vladimir Putin, o tirano da Rússia, sobre Volodimir Zelenski, presidente da Ucrânia democrática; e desprezo aberto pelo conjunto de alianças e instituições de cooperação sobre as quais repousa a ordem global construída pelos EUA. Tudo isso nas mãos de um movimento político que abraçou a insurreição de janeiro de 2021.

Sim, a ordem econômica global precisava de melhorias. O argumento para que a China mude para um crescimento liderado pelo consumo é esmagador. Também está claro que muitas reformas são necessárias dentro dos EUA. No entanto, o que está acontecendo agora não é reforma, mas a ruína dos fundamentos do sucesso dos EUA, em casa e no exterior. Será difícil reverter os danos. Será impossível para as pessoas esquecerem quem e o que os causou.

Um EUA que está tentando substituir o Estado de direito e a Constituição por um capitalismo corrupto de compadrio não superará a China. Um EUA puramente transacional não receberá o apoio incondicional de seus aliados. O mundo precisa de um EUA que compita e coopere com a China. Este EUA, infelizmente, falhará em fazer bem qualquer uma das duas coisas.

 

Os desafios da segurança pública, por Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

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Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo – A Terra é Redonda – 28/04/2025

Benedito Mariano trata de uma questão central para o país no seu livro “Segurança Pública: o calcanhar de aquiles da esquerda e do campo democrático”

1.

No dia 25 de abril, não por acaso no aniversário da Revolução dos Cravos, o Instituto Novos Paradigmas promoveu em Porto Alegre o lançamento do livro Segurança Pública: o calcanhar de aquiles da esquerda e do campo democrático, de Benedito Mariano.

Benedito Mariano construiu uma trajetória rara, que combina militância democrática, experiência institucional e formulação crítica. Fundador do Movimento Nacional dos Direitos Humanos (MNDH), nos anos 1990 foi nomeado o primeiro ouvidor das polícias do Estado de São Paulo, no governo de Mário Covas, e desde então tem se dedicado a fortalecer os mecanismos de controle externo e promover uma visão cidadã da segurança pública.

Ao longo dos anos, atuou em diversas gestões municipais – São Paulo, Osasco, Diadema, São Bernardo do Campo – implementando políticas orientadas pela prevenção da violência, pelo policiamento comunitário, pela valorização das guardas municipais e, sobretudo, pela ideia de que segurança se faz com diálogo, legalidade e políticas sociais, mas também com políticas públicas de segurança.

O livro agora publicado sintetiza esse percurso. Mas vai além. Ele lança um olhar honesto e necessário sobre a incapacidade da esquerda em consolidar um programa para a segurança pública. Na visão de Benedito Mariano, apesar da esquerda ter produzido as melhores propostas para o setor, com base nos direitos humanos e na democracia, essas propostas raramente se traduziram em políticas efetivas quando essa mesma esquerda chegou ao poder. Essa contradição – entre discurso e prática – é o eixo em torno do qual o livro se estrutura.

A partir desse ponto, gostaria de compartilhar algumas reflexões, provocadas pela leitura da obra de Benedito Mariano e por acompanhar esse debate ao longo dos últimos 30 anos.

2.

A meu ver, as dificuldades da esquerda para consolidar uma agenda transformadora na área da segurança pública, que vá além dos chavões e da crítica à violência estatal, decorrem de dois fatores principais. O primeiro é a fragilidade da base teórica que fundamenta o pensamento da esquerda brasileira de maneira geral, e que tem consequências diretas sobre o tema segurança pública.

Daí decorre o fato de que o tema foi sempre tratado como periférico, ou como um epifenômeno social, o que resultou na ausência de um programa coerente sobre como transformar, de fato, as instituições policiais, o sistema penal e as formas de enfrentamento da criminalidade. A cada eleição, novas propostas são formuladas, mas não chegam a constituir uma base comum em torno da qual a militância política se articule, no Congresso e nos diferentes espaços sociais, por apresentar-se muitas vezes como um discurso de ocasião, sem enraizamento nas premissas teóricas que fundamentam uma perspectiva de esquerda que ainda não superou velhos chavões.

O segundo fator é o peso dos setores sindicais e corporativos na definição das prioridades políticas, o que muitas vezes dificultou o avanço de reformas institucionais mais necessárias e produziu frequentemente um alinhamento acrítico com a permanência de mecanismos institucionais que resistem à transparência, à responsabilização e à modernização das corporações policiais.

Em que pese tenha havido governos petistas que, em determinados contextos, alcançaram algum sucesso na gestão da segurança, fato é que não se construiu um acúmulo coletivo sólido para todo o campo da esquerda. O conhecimento e as propostas mais avançadas foram, muitas vezes, desenvolvidos no campo acadêmico, especificamente no campo da Sociologia da Violência, da Segurança Pública e da Administração da Justiça Penal, e não politicamente apropriados ou traduzidos em ação governamental consistente.

Um exemplo desse fenômeno foi a publicação, em 2018, do livro Agenda de segurança cidadã: por um novo paradigma, pela Comissão de Assuntos Estratégicos da Câmara dos Deputados, sob encomenda do deputado Paulo Teixeira. O livro, fruto do trabalho de um grupo de pesquisadores, consolidou uma compreensão ampla, contemporânea e avançada sobre o campo da segurança pública e da justiça penal, oferecendo propostas concretas para a transformação do setor.

Muitas dessas propostas foram encaminhadas à equipe de transição do terceiro governo Lula. No entanto, diante das urgências do setor e da não implementação do Ministério da Segurança Pública, acabaram sendo em grande medida deixadas de lado, mais uma vez adiando a construção de uma política de segurança pública consistente a partir do governo federal.

Ainda assim, seria injusto dizer que a esquerda não acumulou boas experiências no campo da segurança pública. Nas últimas duas décadas, houve iniciativas importantes que precisam ser reconhecidas e valorizadas. O Pronasci, implementado pelo então ministro da Justiça Tarso Genro durante o segundo governo Lula, foi uma tentativa corajosa e inovadora de articular repressão qualificada e políticas sociais de prevenção da violência, colocando a União no papel de indutora de políticas estaduais e municipais.

É preciso lembrar também da experiência pioneira do governo Olívio Dutra no Rio Grande do Sul, com José Paulo Bisol à frente da Secretaria da Justiça e da Segurança. Bisol foi um dos primeiros intelectuais brasileiros a formular, dentro de um governo estadual, uma concepção de segurança pública baseada na dignidade da pessoa humana, no respeito aos direitos fundamentais e no combate à seletividade penal.

Sua atuação deixou um legado que ainda inspira aqueles que acreditam que é possível conjugar autoridade e legitimidade policial. Entre outras coisas, foi na gestão de Bisol que primeiro se ousou propor uma política de controle da utilização da força pelas polícias, assim como foi implementado um amplo processo de formação qualificada e integrada das forças policiais. Além disso, foi conferida à Brigada Militar a possibilidade de lavratura do Termo Circunstanciado para os delitos de menor potencial ofensivo, iniciativa depois acompanhada por quase todos os estados brasileiros.

3.

Fora do eixo dos governos petistas, encontramos experiências bem-sucedidas de gestão democrática da segurança. Em Pernambuco, o Pacto pela vida, no governo de Eduardo Campos, mostrou que é possível combinar metas, inteligência policial, monitoramento rigoroso e ação social com resultados consistentes na redução dos homicídios. O Espírito Santo, sob o governo de Renato Casagrande, tem seguido uma linha semelhante, valorizando a coordenação federativa e a profissionalização das polícias, assim como a gestão por resultados.

E, mais recentemente, o governo Eduardo Leite, no Rio Grande do Sul, vem demonstrando que é possível enfrentar o crime organizado, a violência letal e a criminalidade urbana com eficiência, com iniciativas baseadas em evidências, mas dentro dos marcos da legalidade e do controle institucional. Todas estas experiências demonstram que é possível reduzir a violência e a criminalidade apostando na qualificação das polícias, na gestão integrada e no monitoramento permanente dos resultados, e sem recorrer ao populismo punitivo.

Entretanto, a esquerda, e especialmente o PT, ainda enfrenta dificuldades para reconhecer a importância dessas experiências, muitas vezes por razões eleitoreiras, mas também por uma resistência histórica a absorver elementos da tradição liberal na gestão pública – como a cultura da responsabilização, da transparência e da eficiência democrática nas instituições de segurança, a ideia de interdição de comportamentos por meio do direito penal e de responsabilização criminal dentro da lei e do devido processo, agregando a estas ferramentas institucionais as políticas de prevenção ao delito.

Superar essas resistências é hoje um desafio fundamental para a consolidação de uma agenda democrática na segurança pública, pois é esse um dos vetores do crescimento da extrema-direita e do populismo penal. Não se trata apenas de disputar narrativas, mas de construir um programa realista, factível e transformador, capaz de combinar repressão qualificada, prevenção social e reconstrução da confiança entre o Estado e a sociedade.

Não se trata, portanto, de mimetizar o punitivismo irracional dos candidatos a autocrata, mas de buscar, por meio de uma ampla coalizão, o enfrentamento ao medo e à insegurança.

Esse caminho não será trilhado por um partido isoladamente. Ele exige uma nova coalizão política, que inclua a esquerda, o centro democrático e os setores comprometidos com o Estado de Direito. Uma Frente Ampla Democrática pela Segurança, incorporando as experiências exitosas como uma plataforma de gestão, é a única via capaz de sustentar as reformas que o país precisa – e que a população demanda com urgência.

A proposta da PEC da Segurança Pública, construída pelo Ministro Ricardo Lewandowski, aponta nessa direção. Trata-se de uma iniciativa que visa consolidar a arquitetura institucional do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), fortalecendo a coordenação entre União, estados e municípios, e dando maior clareza às competências e responsabilidades de cada ente.

A PEC da Segurança Pública estabelece diretrizes nacionais, mas respeita o pacto federativo. E, ao propor a consolidação de um sistema nacional, abre espaço para políticas baseadas em evidências, com metas, controle externo e avaliação permanente. Seus méritos estão justamente na busca por institucionalidade, estabilidade e compromisso com os fundamentos do Estado democrático de direito.

Neste cenário, o livro de Benedito Mariano se apresenta como uma leitura essencial. Não apenas porque denuncia a omissão histórica da esquerda no tema, mas porque oferece um ponto de partida para superá-la. É uma obra que nos provoca, nos compromete e, mais importante, nos convoca a agir com coragem e responsabilidade.

Em sociedades complexas e atravessadas por fortes desigualdades, a consolidação democrática, se ainda for possível como horizonte a ser alcançado, passa pelo reconhecimento de que a interdição de comportamentos lesivos é uma função legítima da ordem jurídica, devendo ser realizada por meio da aplicação de sanções que garantam não apenas a contenção e a retribuição proporcionada ao delito, mas também a construção de condições para o enfrentamento das vulnerabilidades sociais que afetam a trajetória de grande parte dos apenados.

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedosociólogo, é professor titular da Escola de Direito da PUC-RS.

Referência

Benedito Mariano. Segurança pública: o calcanhar de aquiles da esquerda e do campo democrático. São Paulo, Editora Contracorrente, 2025, 312 págs.

A religião ficou obsoleta? por Hélio Schwartsman

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Livro mostra redução de indicadores de fé nos EUA e oferece explicações para o fenômeno

Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”

Folha de São Paulo, 27/04/2025

Por um tempo, pareceu que os EUA não seguiriam o caminho da Europa Ocidental e permaneceriam uma nação firmemente religiosa. Não dá mais para acreditar nisso.

Os números não são mais favoráveis às igrejas. Em 1991, 6,3% dos adultos americanos diziam não ter nenhuma filiação religiosa. Em 2021, eram 29,3%. E as coisas ficam muito piores se deixarmos de olhar para a população como um todo e nos concentrarmos nos jovens. No recorte dos 18 aos 29 anos, os sem religião passaram de 7,9% para 43,4%. Algo parecido ocorre com vários outros indicadores de fé religiosa. Dados impressionantes de fechamento de igrejas, seminários e escolas religiosas reforçam essa percepção.

Christian Smith, autor de “Why Religion Went Obsolete” (por que a religião ficou obsoleta), traz esses e muitos outros números. A tese de Smith, como reza o título, é a de que, para os mais jovens, religiões tradicionais se tornaram algo obsoleto. E ele não se limita a constatar isso. Tenta entender as razões que levaram a esse movimento.

Explicações incluem desde o fim da Guerra Fria, que sepultou a ideia do “inimigo ateu”, até os ataques do 11 de Setembro, que tornaram mais difícil identificar a religião como uma fonte de moralidade. Mudanças no estilo de vida, que reduziu o tempo disponível para atividades comunitárias, também entram.

Há ainda danos autoinfligidos, como os vários escândalos sexuais envolvendo clérigos. Smith é bem extensivo em suas análises.

Uma conclusão surpreendente é que os jovens americanos, embora estejam se afastando das religiões tradicionais, não estão necessariamente se secularizando, como teriam desejado os iluministas. Ao contrário, os dados do autor permitem vislumbrar um movimento de reencantamento do mundo, visível no grande número dos que fazem questão de se dizer “espiritualizados” ou que abraçam crenças esotéricas: 16% dos millennials acreditam firmemente em tarô e 21% acreditam, mas sem certeza absoluta.

Meu comentário: pulamos da frigideira para o fogo.

 

Nem progressista nem identitário, papa Francisco foi defensor radical da tradição cristã, por Francisco Razzo

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Pontífice se empenhou na preservação das instituições evangélicas, sem qualquer pretensão de ruptura

Francisco Razzo, Professor de filosofia e autor dos livros “Contra o Aborto” e “A Imaginação Totalitária” (Record), entre outros.

Folha de São Paulo, 27/04/2025

[RESUMO] O papa Francisco, que morreu aos 88 anos, era por muitos erroneamente considerado um progressista inimigo da tradição, sobretudo quando comparado a seu antecessor, Bento 16. Na verdade, sustenta o texto a seguir, não há oposição entre os dois papas, e o pontífice argentino foi o intérprete mais radical da lógica de continuidade do Concílio Vaticano 2º. Ao optar por gestos simples, linguagem direta e defesa dos excluídos, Francisco retomava princípios básicos cristãos, como a compaixão, e seguia a linguagem do Evangelho.

Em fevereiro de 2013, Bento 16 tomou a decisão mais teologicamente radical de um papa: renunciou ao comando da Igreja Católica. O gesto pode ter sido discreto e quase litúrgico, mas seu alcance foi sísmico. A figura do pontífice, ligada ao imaginário de soberana firmeza, subitamente se esvaziava de si mesma.

Como ficaram o conservadorismo doutrinário e a resistência do catolicismo triunfante? Bento 16 não fugiu da cruz, como disseram alguns. Carregou-a até o limite da obediência e, ao depor a tiara, apontou para outro modo de exercer a autoridade cristã: não o poder que permanece em força, mas o serviço que se retira em silêncio e humildade.

A renúncia, nesse sentido, deve ser compreendida como um ato escatológico muito mais que político, pois é justamente aí que a lógica do poder fracassa.

Quando Jorge Mario Bergoglio surgiu na sacada da Basílica de São Pedro, com nome de Francisco e sotaque portenho, a Igreja já havia atravessado um limiar irreversível. Visivelmente, Francisco não sucedeu a Bento no estilo, na linguagem ou, se quiserem forçar ainda mais a barra, na teologia sistemática.

Francisco, porém, herdou o peso da cruz institucional e todos os dramas de uma Igreja presente no mundo. Seu modo de carregar esse fardo seria outro. Uns diriam que menos doutrinal e mais pastoral. Talvez não tão romano e mais católico.

O fato é que sua força estava no gesto, no corpo e na proximidade. Francisco deve ser lido a partir desta chave: a missão da Igreja continua salvífica, isto é, anunciar o Evangelho de Cristo.

A pandemia escancarou tudo isso ao mundo. Em 27 de março de 2020, sozinho sob a chuva, Papa Francisco proclamou: “Viemos perceber que estávamos todos no mesmo barco.” A imagem da barca em meio à tempestade tornou-se o retrato da condição eclesial e espiritual do nosso tempo: medo, dispersão e impotência. Francisco não comandava. Apontava para o Crucificado. E fazia isso com os gestos lentos e a respiração pesada —como quem carrega, em oração, o peso de um mundo sem fôlego.

Naquela noite escura, o papa assumiu a intercessão silenciosa da Igreja. Tornou-se figura daquele que vela enquanto os outros dormem. Ali, a solidão evocava a aflição de Getsêmani: a vigília de quem permanece firme na fé. Mais do que mero cenário, aquela noite chuvosa impunha um juízo e um clamor por confiança.

Obviamente, Francisco não ofereceu as típicas respostas prontas dos especialistas do vírus e do poder. Ao contrário, ofereceu companhia, como quem sabe que Deus pode parecer ausente, mas nunca abandona.

A morte de Francisco deve impor reflexão —para católicos e não católicos— sobre o que significa crer, governar, esperar e servir a um mundo adoecido pelas patologias da razão e da fé.

Portanto, para entender Francisco, precisamos considerar a seguinte perspectiva: ele não pode ser compreendido fora da lógica  da continuidade do Concílio Vaticano 2®, o encontro de bispos, realizado entre 1962 e 1965, que visava renovar a presença e a missão da Igreja diante dos desafios do mundo moderno. Além de herdeiro, ele foi o intérprete mais radical de suas intuições evangélicas.

Ao contrário do que muitos podem supor, não desmontou a tradição. Francisco a recolocou por completo no horizonte “conciliar”. Noutras palavras, é preciso pensar Francisco a partir da hermenêutica da continuidade radical, isto é, de uma continuidade levada até as últimas consequências e sem qualquer pretensão de ruptura.

No parágrafo de abertura da “Lumen Gentium”, a constituição dogmática elaborada no Concílio Vaticano 2º, define-se a missão da Igreja como sacramento universal de salvação de todo o gênero humano. Isso significa que sua estrutura visível existe para tornar presente, no tempo, o mistério invisível da graça.

Para a autocompreensão católica, a Igreja não é fim em si. É sinal. E o sinal precisa apontar para além de si. O papado de Francisco brota desta raiz messiânica: a pastoral, a sinodalidade, a atenção às periferias, a denúncia do clericalismo vazio —tudo isso nasce de uma compreensão sacramental e servidora da Igreja no mundo atual.

Ao optar por gestos simples, linguagem direta e presença entre os excluídos, Francisco não abandonou a tradição de ensino oficial da Igreja. Fez o que era preciso: reconfigurar essa mesma autoridade à luz da própria instrução de “Gaudium et Spes”, outra constituição do concílio, onde se lê: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração”.

A escolha de estar com os excluídos, sem interpor filtros ou abstrações ideológicas, não tem nada a ver com populismo, comunismo ou progressismo Sua marca pastoral é da fidelidade a essa forma paradoxal da presença cristã no mundo: a do servo sofredor.

Isso não significa dizer que seu papado tenha sido fraco. Ele foi, na verdade, estruturado menos na lógica do decreto e mais na escuta e no anúncio. Se Bento 16 serviu com a inteligência luminosa da fé, oferecendo-lhe solidez teológica e profundidade espiritual, Francisco a serviu com a ternura dos gestos e o realismo pastoral do cuidado.

Não há oposição entre eles. Há continuidade. Francisco não nega Bento. Ele o completa —como o coração completa a razão, como a presença concreta confirma o ensinamento. Ambos compreenderam, cada um à sua maneira, que o serviço petrino não se define por estilos administrativos. A fidelidade ao Evangelho ensina que governar é servir —e governar assim exige a opção por uma existência sacramental completa.

Francisco nunca foi o papa desta ou daquela ideologia. Ainda que tenha sido rotulado por alguns como progressista, populista ou até mesmo comunista, suas palavras sempre se nutriram da gramática do Evangelho. Quando denunciava a exclusão social, falava como discípulo do Cristo cuja realeza se manifesta na manjedoura e na cruz —tronos de um Deus que reina na simplicidade e na entrega.

A imprensa secular moderna o leu com os instrumentos disponíveis de uma mentalidade mundana. Viu nele um reformista, um progressista, um antagonista da tradição. Não se pode esperar mais do que isso, pois essa leitura nasce da conveniência caricata e limitada capacidade de interpretar o mundo apenas como jogo de forças e interesses políticos.

Francisco, ao criticar os efeitos desumanizantes do sistema econômico, retomava a tradição da Doutrina Social da Igreja, sem alinhamento partidário. Esperar liberalismo ou socialismo da Igreja é desconhecer a própria Igreja. Ao pedir acolhimento aos migrantes, papa Francisco só evocava a compaixão cristã, e não um programa de assistencialismo.

Sua linguagem é a do Evangelho, não a do identitarismo, tampouco a do progressismo ou a do conservadorismo. Seu vocabulário é pastoral, enraizado na escuta, na compaixão e na experiência concreta do cuidado. Por isso mesmo, sua palavra é facilmente distorcida —ora celebrada de modo apressado por entusiasmos sentimentalistas, ora rejeitada com dureza por quem confunde fidelidade com triunfalismo.

A acusação de que teria substituído a doutrina por ideologia se desfaz diante de seus próprios textos doutrinários e pastorais. As encíclicas “Laudato Si'” e “Fratelli Tutti” não oferecem uma plataforma política. Propõem um juízo espiritual sobre o mundo contemporâneo.

Ambas nascem da tradição teológica que reconhece na criação um dom e uma responsabilidade. Francisco escreve como herdeiro de São Francisco de Assis, mas também como sucessor direto de Bento 16 —celebrado como o “papa verde”.

Foi Bento quem insistiu que a crise ecológica é inseparável da crise moral, e que a ordem da criação exige respeito integral à vida, ao ambiente e ao homem. Como reconhece Francisco: “O papa Bento 16 propôs-nos reconhecer que o ambiente natural está cheio de chagas causadas pelo nosso comportamento irresponsável o próprio ambiente social tem as suas chagas”.

Em “Laudato Si”, a ecologia surge como desdobramento da fé no Deus criador. O universo jamais poderia ser concebido como objeto neutro de exploração. É dom recebido, lugar de comunhão e de queda. A crise ecológica, nesse horizonte, se impõe como expressão de uma crise espiritual mais funda: o homem perdeu o sentido da medida, rompeu vínculos, destruiu o que não sabe amar. A conversão exigida é a da penitência.

Já “Fratelli Tutti”, por sua vez, fala de fraternidade, mas não de forma secular abstrata humanista ou identitária. O texto se ancora na filiação comum a Deus e na experiência cristã da reconciliação. A amizade social que propõe nasce do perdão, do acolhimento e da superação do medo.

Ambas as encíclicas revelam o mesmo princípio: a fé que não toca o sofrimento do mundo torna-se conceito vazio. Francisco não quis blindar a Igreja da tragédia. Quis que ela a habitasse —com lucidez, com compaixão e com a esperança que nasce do Crucificado.

Papa Francisco morreu deixando uma Igreja em agonia —e este talvez tenha sido o maior sinal de sua fidelidade. Não buscou apaziguar disputas com decretos, nem agradar facções com joguinhos políticos. Tocou feridas. E permitiu que a Igreja sentisse suas dores.

O próximo papa herdará uma Igreja Católica ferida por carregar o peso do mundo e as marcas da cruz. É uma Igreja peregrina, cuja vocação de unidade nunca foi tranquila. Barca em tempestade, vigília no deserto, ela avança sem garantias humanas.

E mais uma vez, quem for chamado a conduzi-la terá de fazer uma escolha decisiva: governar com as categorias do mundo ou permanecer fiel ao Evangelho.

 

O Papa Francisco – entre os pobres e o Vaticano, por Guilherme Defina

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Guilherme Defina – A Terra é Redonda – 23/04/2025

Francisco encarnou uma contradição viva: a de um papa jesuíta, latino-americano, comprometido com os pobres – mas dentro das muralhas de uma Igreja milenar, hesitante entre o altar e a praça

A morte de Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, sela com solenidade ambígua uma das experiências mais inquietantes do catolicismo contemporâneo. Para uns, um pontífice populista e quase herege; para outros, o último respiro evangélico antes da burocratização definitiva da fé. Entre a denúncia profética e a suspeita doutrinal, Francisco encarnou uma contradição viva: a de um papa jesuíta, latino-americano, comprometido com os pobres – mas dentro das muralhas de uma Igreja milenar, hesitante entre o altar e a praça.

Não foi o primeiro a despertar fantasmas – tampouco será o último a deixar feridas abertas. Mas foi talvez o único a arrastar, com autoridade pontifícia, os dilemas teológicos da América Latina para o coração de Roma. Sob sua batina branca pulsava, ainda que domesticada, a centelha da Teologia da Libertação. E com ela, a memória do Cristo pobre, da Igreja dos oprimidos e da esperança em tempo presente.

Neste ensaio, nos propomos a pensar a morte do Papa Francisco não como um epílogo, mas como sintoma. Sintoma de um catolicismo que, ao tentar responder aos apelos do mundo, tropeça nas sombras de sua própria tradição. À luz da crítica conservadora católica – especialmente aquela desenvolvida por Gustavo Corção –, interrogamos os sentidos e os limites de uma Igreja “em saída”. O que resta da mística quando o dogma se abre à política? É possível conjugar a opção preferencial pelos pobres sem dissolver a fidelidade à ortodoxia?

Contra o entusiasmo dos progressistas e o desprezo dos reacionários, talvez caiba aqui uma terceira via – não a do centro conciliador, mas a da leitura crítica, situada e contextual. A figura do Papa Francisco não será compreendida nem em slogans pastorais nem em anátemas doutrinários. Ela exige um retorno às raízes das disputas que marcam o catolicismo latino-americano desde o século XX, especialmente àquelas que opuseram tradição e profecia, mística e práxis, o Cristo Rei e o Cristo subversivo.

O Papa Francisco entre os pobres e o Vaticano – da Teologia da Libertação ao “marxismo eclesiástico”

No princípio, havia a suspeita. Quando o cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio foi alçado à cátedra de Pedro em 2013, não foram poucos os que, à direita e à esquerda, estranharam o gesto. Os primeiros viam com inquietação o sotaque portenho do novo papa, sua liturgia austera e sua recusa ostensiva aos protocolos do poder. Os segundos temiam, com igual intensidade, que a promessa de renovação não passasse de encenação. Afinal, o que poderia fazer um jesuíta de hábitos silenciosos, saído de uma das províncias mais conservadoras da Companhia de Jesus, num Vaticano ainda traumatizado pelo curto e rígido papado de Bento XVI?

O que se viu, porém, foi o progressivo desdobramento de um pontificado que não se deixaria definir por categorias fáceis. O Papa Francisco não foi – como tantos desejaram ou temeram – um “papa da Teologia da Libertação”. Mas tampouco a renegou. Incorporou-lhe os gestos, o vocabulário, os interlocutores. Canonizou mártires, visitou favelas, promoveu sínodos regionais. Acima de tudo, reafirmou com insistência quase incômoda a “opção preferencial pelos pobres”, não como um adereço pastoral, mas como chave hermenêutica da própria fé cristã. Com isso, recolocou no centro da doutrina aquilo que há décadas fora relegado às margens da diplomacia eclesiástica.

Se os documentos do Vaticano II haviam insinuado uma abertura, foram os teólogos latino-americanos – Gustavo Gutierrez, Leonardo Boff, Ignacio Ellacuría – que a levaram às últimas consequências, resgatando a figura de um Cristo encarnado na luta dos povos. Contra essa tradição se insurgiu o conservadorismo católico, tanto europeu quanto latino-americano, que viu na Teologia da Libertação uma contaminação da fé por um marxismo travestido de pastoral. Gustavo Corção foi um de seus críticos mais enfáticos. Para ele, toda tentativa de politizar o Evangelho era uma forma de corrupção espiritual – uma entrega da mística ao mundo, do mistério ao método.

O Papa Francisco, nesse cenário, é uma figura desconcertante. Ele não abraçou o marxismo, tampouco silenciou diante das injustiças sociais. Sua crítica ao capitalismo global – sistemática e reiterada – não partia do materialismo histórico, mas de uma leitura evangélica radical. Seu engajamento com os pobres não era revolucionário nos moldes da luta de classes, mas restaurador de uma eclesiologia esquecida. E, ainda assim, foi acusado por setores conservadores de ser o “papa comunista”. Jorge Mario Bergoglio pagou o preço de não caber nos rótulos: foi visto como herético por uns e tímido por outros, exatamente por tentar reabilitar, a partir do centro, aquilo que fora rejeitado pela periferia do poder.

O que está em jogo, no fundo, é a tensão irresoluta entre o mistério e a missão. Para Corção, o mistério é anterior e superior à práxis – é aquilo que nos retira da história para nos lançar ao sagrado. Para o Papa Francisco, a missão não dilui o mistério, mas o manifesta: Deus não está fora do mundo, mas encarnado nele – especialmente onde há dor, miséria e abandono. O desacordo, portanto, não é apenas político ou pastoral. É ontológico. Trata-se de duas formas de conceber a fé: uma como guarda do sagrado, outra como fermento no mundo. Uma como muralha, outra como caminho.

Com sua morte, o Papa Francisco talvez tenha encerrado a última tentativa de resgatar, a partir do trono, a memória subversiva do Evangelho. Resta saber se a Igreja – essa instituição tão afeita a enterrar vivos e canonizar cadáveres – encontrará coragem para continuar o que ele, em sua ambiguidade e ousadia, apenas começou.

Gustavo Corção e o catolicismo do mistério – crítica ao mundo moderno e à Igreja em mutação

Se há algo que Gustavo Corção jamais tolerou foi a diluição do sagrado na política. Ao longo de sua trajetória como pensador católico, a modernidade aparecia não como palco da redenção possível, mas como laboratório da perdição. A secularização, o racionalismo, o progressismo – tudo isso era, para ele, sintoma de uma civilização doente, que havia trocado o mistério pela máquina, a liturgia pelo discurso, a alma pelo sistema. Ao contrário dos teólogos da libertação, Gustavo Corção via na política não um caminho para o Reino, mas um atalho para o pecado – e talvez, em última instância, para a perdição da própria Igreja.

A fé, para ele, não precisava ser útil, aplicável, performática. Ela era um ato interior, um salto no invisível, uma adesão radical ao mistério. O cristianismo que pregava não procurava transformar estruturas sociais, mas salvar almas. Em suas palavras, era necessário “resgatar a infância espiritual”, recuperar a capacidade de maravilhar-se diante do mundo – aquilo que ele chamava de “saúde do espírito”. E foi justamente essa “infância espiritual” que ele não enxergava nos teólogos da libertação, a quem acusava de instrumentalizar a fé em nome de projetos ideológicos.

Se comparado ao Papa Francisco, Gustavo Corção parece pertencer a outra Igreja – mais antiga, mais cerrada, mais desconfiada do mundo. E de fato, em certa medida, pertence. Mas essa comparação revela algo mais profundo: a batalha nunca pacificada entre dois modos de ser católico. Um que desconfia do tempo presente, outro que aposta na sua redenção. Um que enxerga na tradição o último refúgio contra o caos; outro que a vê como instrumento vivo, passível de conversão contínua.

A morte do papa como alegoria: fim de um ciclo ou início de outro?

A morte de um papa nunca é apenas biológica – é litúrgica, política, simbólica. Com o Papa Francisco, não se sepulta apenas um homem de carne e ossos, mas uma tentativa, uma gramática, um gesto. Enterra-se o último grande representante de um catolicismo pastoral que ousou articular justiça social e ortodoxia, sem que uma engolisse a outra. E, ao mesmo tempo, abre-se espaço para a rearticulação das forças que sempre buscaram, em nome da pureza doutrinal, silenciar a dimensão terrena do Evangelho.

Mas talvez o que morra com o Papa Francisco não seja apenas um modo de governar a Igreja, e sim uma figura teológica: o papa como ponte. Ponte entre doutrina e mundo, entre liturgia e rua, entre Trento e Medellín. E como toda ponte, sustentada pela tensão. Sua morte reabre a fissura: quem será agora o mediador entre o mistério e a história?

A resposta, talvez, não venha da cúpula, mas das margens. Nas periferias do mundo católico – aquelas mesmas que o Papa Francisco visitou, abraçou e fez escutar –, o cristianismo segue vivo, não como ideologia ou aparato, mas como presença.

Em última instância, a morte do Papa Francisco é um espelho. Reflete uma Igreja dilacerada entre dois impulsos: o de conservar a fé e o de encarná-la. O de guardar o fogo e o de espalhá-lo. E nesse dilema, tão antigo quanto a própria tradição apostólica, talvez esteja o segredo da Igreja: não escolher um lado, mas suportar o peso de ser ambos.

Gustavo Corção, com sua mística do recolhimento, e o Papa Francisco, com sua teologia da saída, são menos antagonistas do que parecem. Ambos denunciaram, à sua maneira, os ídolos do tempo presente – o mercado, o Estado, o ego. Ambos sabiam que não há Igreja viva sem tensão. E ambos, por vias diferentes, apontaram para o mesmo horizonte: um Deus que não cabe em nenhum sistema.

Guilherme Defina é mestrando em ciência política na Unicamp.

 

Mario Vargas Llosa e as ficções do liberalismo, por Khoury Oliveira & Kaysel

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Por Mariana El Khoury Oliveira & André Kaysel

A Terra é Redonda – 22/04/2025

A dualidade entre o legado literário e político-intelectual de Vargas Llosa – a interseção entre suas obras e suas escolhas políticas

1.

O falecimento do escritor peruano Mario Vargas Llosa (1936-2025) no último dia 13 de abril o trouxe novamente à cena em dois personagens, um literário e outro político. Acompanhando as repercussões no debate público, fica-se com a impressão de que quando um se apresenta, o outro está na coxia, como um gêmeo oculto. Aqui nos dedicaremos, justamente, a unificar os personagens que o laureado com o Nobel de Literatura de 2010, seus apologetas e mesmo alguns de seus críticos buscaram incessantemente separar.

Os holofotes atingem sua face especialmente na crítica literária e em seu ríspido ataque a seu compatriota, o escritor indigenista José María Arguedas (1911-1969), em sua obra La utopia arcaica: José María Arguedas y las ficciones del indigenismo (1996) que parafraseamos neste título.

Pouco mais de um quarto de século após a morte de Arguedas, Vargas Llosa publicou a análise acima citada do conjunto de sua obra, sublinhando alguns aspectos biográficos e seu comprometimento político com os povos indígenas da serra peruana que são de grande importância para seus romances, como Los Ríos Profundos (1958) e Todas Las Sangres (1965), entre outros.

Categorizando-o como um apêndice do indigenismo [I], classificação rejeitada pelo próprio José María Arguedas em seus ensaios, Vargas Llosa renega o valor estético de sua prosa, que conteriam “una visión de la literatura en la que lo social prevalecía sobre lo artístico y en cierto modo lo determinaba” [II]. Para ele, José María Arguedas teria chegado “hasta el sacrificio de su talento” en búsqueda de una “mímica revolucionaria” [III]. Podemos apreender, portanto, que Vargas Llosa via a conexão entre política e literatura não apenas como uma escolha errônea, mas como uma rejeição da dimensão artística na literatura engajada. Aqui se repõe uma questão fundamental: é possível que exista a arte sem que sejam perceptíveis algumas inflexões políticas de quem a produziu?

Nas elegias e homenagens à Vargas Llosa, essa separação aparece tão clara quanto o era para ele. Por exemplo, em um artigo publicado no diário espanhol El país [IV], no qual o autor manteve por quase três décadas uma coluna quinzenal, seis escritores peruanos dividiram suas opiniões entre o “legado literário” e o “legado político-intelectual”. A completa cisão se disseminou entre seus leitores e mesmo entre seus críticos, como se o escritor não guardasse nenhuma semelhança com seu gêmeo oculto, o político. O que estamos propondo é um ponto de vista que, reconhecendo a grandeza de seus romances, incorpore também suas escolhas em torno de seus temas, de suas polêmicas e de seus alinhamentos políticos.

2.

Quando se tratava de tomar posições públicas, Vargas Llosa nunca foi um autor vacilante. Durante a década de 1960, foi defensor das experiências socialistas, em especial da Revolução Cubana (1959), tendo visitado a ilha em 1962, em plena crise dos mísseis [V]. No Peru, deu apoio às reformas de base da ditadura da Junta Militar, representada pelo general Juan Velasco Alvarado (1968-1975), como a reforma agrária, a nacionalização das minas e de outras empresas estratégicas.

Nesse período, o autor publicou suas três primeiras e principais obras: La ciudad y los perros (1962), La casa verde (1966) e Conversaciones en la Catedral (1969). Representante do boom latino-americano, apesar de escrevê-los desde a Europa, seus romances tinham como palco a sociedade peruana. Vargas Llosa organiza através da literatura o Peru fragmentado e corrupto, utilizando-se de narrativas complexas, combinando temporalidades e personagens distintas para a elaboração de relatos que compõem seus livros.

O encantamento com o regime da ilha começou a se desfazer, em sintonia com diversos intelectuais latino-americanos, devido à invasão soviética da Tchecoslováquia em 1968 (mesmo ano em que Vargas Llosa pisou em solo soviético [VI]), e o apoio dado por Fidel Castro à intervenção que liquidou o experimento democratizante da chamada “primavera de Praga”. Para arrematar a fratura com a Revolução Cubana, deu-se a prisão do jornalista e escritor Herberto Padilla pelo regime, em 1971.

Mas, ao contrário de outros signatários dos manifestos em defesa de Herberto Padilla, como seu colega argentino Julio Cortázar, os franceses Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir ou o estadunidense Noam Chomsky, o escritor peruano levou sua divergência às últimas consequências, rompendo com o horizonte socialista e às esquerdas em geral.

Na década de 1980, passou a defender abertamente as ideias neoliberais de Friedrich von Hayeck, liderou a oposição de direita ao governo do aprista Alan García (1985-1990) e escreveu o prólogo ao livro El otro Sendero (1988), de seu compatriota Hernando de Soto, que responsabilizava o Estado pelos males que afligiam tanto o Peru, como a América Latina em seu conjunto, preconizando como saída reformas de livre-mercado que impulsionassem o empreendedorismo popular, contido nos setores ditos informais: “La opción de los ‘informales’ – la de los pobres – no es el refuerzo y la magnificación del Estado sino su radical disminuición. No es el colectivismo planificado y regimentado sino devolver al individuo, a la iniciativa y a la empresa privadas, la responsabilidad de dirigir la batalla contra el atraso y la pobreza” [VII]. Assim, a ruptura com o socialismo levou ao extremo oposto: as ficções do liberalismo, de uma “ordem social espontânea”, baseada na livre-iniciativa individual.

3.

Desse modo, o que criticou em José María Arguedas estava também presente em si mesmo. Ao criticar a “utopia arcaica” de José María Arguedas, que buscava vincular a identidade nacional peruana às populações andinas e sua cosmovisão, Vargas Llosa apresenta a sua própria utopia: a utopia da modernidade capitalista. O foco dado às narrativas que negam a mágica contida na experiência andina, que negam a coletividade e qualquer possibilidade de persistência desse ponto de vista no mundo moderno, calcado em uma racionalidade individualista, apontam para sua concepção sobre seu país, o continente e o mundo. Isso não significa, ao contrário do que o próprio Vargas Llosa pontificou em sua análise sobre José María Arguedas, uma rejeição estética e artística de sua literatura, mas adiciona um conteúdo político às suas obras.

Retornando ao problema do indigenismo, na matéria acima citada de El país, o escritor Juan Manuel Robles, em uma apreciação em geral bastante positiva, conclui afirmando que Vargas Llosa foi incapaz de compreender as populações indígenas dos Andes e de simpatizar com suas manifestações. Isso já se evidenciava em seu relatório, produzido por encomenda do governo peruano sobre os assassinatos de jornalistas na comunidade de Uchuraccay (1983), em meio ao conflito interno armado entre o Estado peruano e o grupo maoísta extremista Sendero Luminoso, em que responsabilizou os comuneros “pouco lúcidos” pelas mortes [VIII].

A linguagem de cunho colonial utilizada por Vargas Llosa em seu figurino político-intelectual para a caracterização destes camponeses – que, vale salientar, não aparecem em seus romances –, refletem ainda outro aspecto: a valorização do legado colonial ibérico, associado ao pertencimento a um “Ocidente atlântico”, resgatando a velha chave “civilização” versus “barbárie” do liberalismo latino-americano do século XIX [IX]. Desse modo, não é de se estranhar que o escritor peruano, que desde 1993 também era cidadão espanhol, tenha aceito de bom grado em 2011 o título de Marquês por parte do então monarca, Juan Carlos I de Bourbon y Bourbon. [X]

Cerca de quarenta anos mais tarde, o escritor recebeu em 2023 a condecoração da Ordem do Sol no grau de Grande Colar [XI] da Presidenta interina do Peru, Dina Boluarte, cuja ascensão em 2022, na esteira da destituição de Pedro Castillo, havia levado à morte de cerca de 50 pessoas, especialmente na região andina de Puno, que protestavam contra o novo governo. Por que o autor de La guerra del fin del mundo (1981), foi capaz de empatizar com sertanejos brasileiros do final do século XIX, mas avaliza o massacre de seus concidadãos indígenas no século XXI?

Possivelmente a resposta resida no fato de que, nas ficções liberais por ele abraçadas, não existam falas para essas personagens, salvo talvez sob a fantasia de “empreendedores” nos bairros populares de Lima, na realidade um precariado que procura arrancar a sobrevivência no dia-a-dia de uma metrópole caótica.

Enfim, no último ato, as personagens de Vargas Llosa aparecem reunificadas, demonstrando a inexistência de um gêmeo oculto nas coxias. Emancipado do figurino, o ator é o mesmo. Perceber a carga política de seus romances não significa reduzi-los a este aspecto ou subtrair sua importância, mas complexificá-los.

Mariana El Khoury Oliveira é doutoranda em Ciência Política na Unicamp.

André Kaysel é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Autor, entre outros livros, de Entre a nação e a revolução (Alameda).

Notas

[I] Corrente literária e política peruana do século XX calcada na valorização da cultura indígena-andina. Além do próprio Arguedas, entre seus principais representantes estão a escritora feminista Clorinda Matto de Turner (1852-1909), o poeta e ensaísta anarquista Manuel González Prada (1844-1918), o etnólogo Luís E. Valcarcel (1891-1987), o jornalista e militante socialista José Carlos Mariátegui (1894-1930), os romancistas Ciro Alegría (1909-1967) e Manuel Scorza (1928-1983). Para uma visão sintética sobre a relação entre indigenismo e cultura de esquerda no Peru, cf. RENIQUE, José Luís. A Revolução Peruana. São Paulo: Ed. UNESP, 2009.

[II] VARGAS LLOSA, Mario. La utopía arcaica: José María Arguedas y las ficciones del indigenismo. Madrid: Alfaguara, 1996, p. 17.

[III] Idem, Ibidem.

[IV] “O legado literário e político-intelectual de Vargas Llosa”, por Naiara Galarraga Gortázar e David Marcial Pérez, publicado em El País, 13 de abril de 2025.

[V] “A bizarra guinada à direita de Mario Vargas Llosa”, por Martín Ribadero, publicado na Revista Jacobin em 2024.

[VI] Idem,Ibidem.

[VII] VARGAS LLOSA, Mario. “Prólogo”. In DE SOTO, Hernando. El otro Sendero. Lima: El Barranco, 1986, p. XXVI.

[VIII] Informe sobre Uchuraccay, escrito para a Comissão da Verdade e Reconciliação.

[IX] GIMÉNEZ, María Julia. “Em La Antesala de La Iberosfera: un mapeo de la participación de la derecha española en las redes de think-tanks liberales y la actuación en clave atlantista”. E-L@tina – Revista Electrónica de Estudios Latinoamericanos. Vol. 23, No. 91, p. 251, 2025.

[X] Evidenciado no texto de Luis Felipe Miguel, “Vargas Llosa: gênio e canalha”

[XI] “Peru: Vargas Llosa critica governos que defendem Castillo”, publicado na Folha de S. Paulo em 2023.

 

Berço ou Mérito? por Arthur Menezes de Carvalho Crespo

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Arthur Menezes de Carvalho Crespo – A Terra é Redonda – 24/04/2025

Os trabalhadores pobres nascem com uma desvantagem absurda e isso se intensifica se colocarmos categorias estigmatizadas em nossa sociedade como o racismo, machismo, a homofobia

O que fazemos durante a nossa vida é efeito direto da nossa educação, seja ela oriunda de meios institucionais; como escolas, universidades, igrejas, ou pela nossa cultura e vivência. Os horizontes de possibilidades de nossa vida, está estritamente colada com a nossa classe social, entretanto, é transmitido para a população, uma ideia que, basta se esforçar para conseguir alcançar seus objetivos e, talvez, como maior resultado dessa ideia, ascender de classe.

Essa ideia que falo é a meritocracia, que produz uma percepção na qual o lugar do indivíduo não importa no cálculo social, ou seja, cobre e esconde, os problemas estruturais sociais e econômicos da sociedade. Mudando o problema que é estrutural, social e econômico para o indivíduo, responsabilizando-o pela própria condição em que vive. Importante ressaltar que a maioria das pessoas afetadas por essa ideia, são os trabalhadores pobres e de classe média.

Vamos definir um pouco o papel da escola que é fundamentais para instruir, incluir, ensinar modos de comportamentos e afins. A diferença começa a ser mais perceptível quando analisamos uma escola pública e privada. A escola pública enfrenta diversos fatores políticos e sociais que acarretam a falta de verba e profissionais; contudo a localização das escolas interfere como vão ser tratadas, pelos funcionários e da própria secretária de educação e coordenações regionais.

No entanto, a escola privada antes de qualquer coisa, produz um corte dos estudantes que irão ou não, frequentar a instituição de ensino, esse processo de segregação é feito por meio da mensalidade e de outros itens que é necessário adquirir como o uniforme, os livros didáticos, materiais escolares, a própria alimentação do aluno.

Cada escola possui uma proposta, isso vale para as escolas públicas e privadas, algumas seguem o rumo de carreira militar, preparando o estudante para fazer as provas para o ingresso da corporação, outras para o ingresso do ensino superior através do vestibular e ainda há escolas que instruem os seus alunos para entrar no mercado de trabalho oferecendo o ensino técnico mas, também não podemos esquecer das escolas que produzem somente diplomados; alunos que saem com seu certificado e estão a esmo para o mundo, podendo tornar-se trabalhadores precarizados.

O que podemos observar é quem é o público alvo dessas escolas, por entender que muitas dessas escolas são privadas e algumas poucas públicas. Devo voltar rapidamente no modo de ingresso. Nas escolas privadas, só é possível ingressar por meio de pagamento de matrícula e mensalidade, em alguns casos, poucos alunos conseguem bolsas de estudos e não pagam a mensalidade e nem matrícula, mas, ainda pagam os outros itens.

As escolas públicas são direito universal e até os 17 anos é obrigatório. Quando falamos de determinadas escolas, sejam as técnicas ou preparatórias, nem sempre serão acessíveis a todos, justamente por ter um meio classificatório de entrada na instituição já prescreve vencedores e perdedores, ou seja, merecedores e não merecedores.

Os trabalhadores pobres nascem com uma desvantagem absurda e isso se intensifica se colocarmos categorias estigmatizadas em nossa sociedade como o racismo, machismo, a homofobia. As desvantagens sociais relacionadas à raça e ao gênero são oriundas de nossa construção e organização como sociedade que nos acompanham desde nossa colonização.

A concepção de mérito se tornou muito mais moral do que realmente racional, óbvio que não afirmar que devemos ser sempre racionais e a nossa “emoção” deixada de lado, no entanto quero destacar que é importante para setores de direita, articularem a valorização moral do mérito, do esforço individual pelas conquistas.

Quero ressaltar que é importante o esforço, e parabenizamos aqueles que “venceram”, contudo, quero mostrar que é importante analisar a origem desse discurso, de onde ele vem e pra quem ele vai, e como isso impacta politicamente. Citei as escolas porque elas são de fácil interpretação e observação ao meu ver.

Numa sala de aula de escola pública localizada num subúrbio da zona norte do Rio de Janeiro, teremos diversos alunos com diferentes trajetórias de vida. Alunos que moram perto da escola se diferenciam na qualidade de vida daqueles alunos que moram alguns bairros de distância e precisam se deslocar até a escola por meio dos transportes públicos. Não há uma diferença tão gritante se ambos alunos tivessem a mesma renda familiar e acesso aos meios culturais, sendo que um grupo, que deve acordar mais cedo para ir pra escola e outro um pouco mais tarde por conta da distância do seu domicílio.

No entanto, vivemos num país onde a escravidão e o machismo, se tornaram estruturais e nos organizam como sociedade. Se descrevo o mesmo cenário, porém, o grupo que mora mais longe da escola estivesse localizada em uma comunidade, as variáveis seriam diversas, seja um dia uma operação da polícia militar tentando ocupar os espaços com truculência e violência, e pode haver pouquíssimos meios de locomoção naquela região.

Nesse cenário descrito agora, ambos os grupos, aquele que mora na comunidade e aquele outro que mora perto da escola, teriam as mesmas possibilidades de fazer uma prova, manter o foco durante a aula? Os dois grupos iriam passar pelos mesmos processos de avaliação, mesmo com trajetórias e vivências diferentes, seria justo, que em uma competição, os atletas estivessem em posições desiguais de competir? Creio que não.

Logo, podemos concluir desse modo, que nosso destino passa por diversas trajetórias individuais, e nem todos poderão ter as mesmas facilidades e ao mesmo tempo as mesmas coisas, e que o discurso que esquece de maneira desonesta, de se atentar aos fatos sociais materiais e históricos de cada pessoa, está sim contribuindo para a permanência das estruturas sociais que produzem a desigualdade social. Atentar-se a origem do discurso, é importante para não sermos pegos por nenhuma ideologia que nos mantém nessa sociedade.

Arthur Menezes de Carvalho Crespo é graduando em ciências sociais na UERJ

 

Celso Furtado – Trajetória, pensamento e método, por Freitas Barbosa & Saes

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Alexandre de Freitas Barbosa & Alexandre Macchione Saes

A Terra é Redonda – 26/04/2025

Introdução dos autores ao livro recém-lançado

Os vários Furtados

“Por que um país com tanta riqueza, tanta terra […] tem esse mundo de gente abandonada, pedindo esmola na rua. Como se explica isso? Isso não é economia. Isso daí tem a ver com a história… O debate não alcança os pontos essenciais, porque a sociedade não está preparada para levar adiante esse debate”.
Celso Furtado, 10 de julho de 2004.[i]

1.

Celso Furtado é um dos intelectuais mais conhecidos e estudados no Brasil e na América Latina. Sua trajetória se mistura à do Brasil República, especialmente a partir dos anos 1950, a tal ponto que não se pode contar a história do país na segunda metade do século XX sem fazer a menção a esse homem público que refletiu e atuou sobre a cena nordestina, brasileira, latino-americana e mundial.

Nascido em 1920, na cidade de Pombal, Paraíba, sua trajetória compreende vários Furtados que se sucedem e se superpõem: o funcionário público do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), o estudante de doutorado na Sorbonne, o economista da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), o gestor da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e do Ministério do Planejamento.

Há ainda os anos de exílio como professor em universidades do exterior e o regresso ao Brasil, quando participa da transição democrática e da estruturação do Ministério da Cultura e desafia as promessas do “capitalismo global”. As diversas atividades exercidas por Furtado nutrem-se de suas utopias e projetos de transformação do Brasil, sempre presentes em suas obras, mesmo naquelas em que sobressai a verve analítica.

O presente livro fornece uma abordagem panorâmica de Celso Furtado, costurando sua trajetória e seu pensamento em constante transformação, repleto de nuances, ajustes e até rupturas, assim como a sociedade brasileira que ele procurou destrinchar por meio de uma perspectiva que parte da economia para transcendê-la.

Nesse sentido, é importante acompanhar como se dá o movimento de fusão de Celso Furtado com a história brasileira. Se a história avança por desvios, atalhos e cortes bruscos, também são vários os Furtados que a partir dela se expressam.

Isso pode ser percebido na leitura de seus Diários intermitentes. Há o jovem existencialista em busca de seu ser no mundo; o economista responsável por uma das mais originais contribuições brasileiras para a história do pensamento econômico; o intelectual público no front de batalha na Cepal, na Sudene e no Ministério do Planejamento; o professor exilado repensando o país com distanciamento histórico; e, finalmente, o intelectual renomado atuando nos bastidores da transição democrática inconclusa e procurando lapidar seu legado para as novas gerações.

Ao longo de aproximadamente cinquenta anos de produção intelectual e atividades públicas, Celso Furtado publicou quase quarenta livros. Ao percorrermos a vasta bibliografia produzida por Celso Furtado, nos deparamos com uma diversificada produção, com textos ora mais voltados para uma análise sobre os processos históricos, ora mais preocupados com o debate no campo da teoria econômica; mas sempre movido pelo anseio de estilhaçar as fronteiras estabelecidas entre as ciências sociais. Encontramos também a elaboração de manifestos de intervenção política em momentos decisivos de nossa história, assim como reflexões de cunho biográfico.

Em Celso Furtado, não há intervenção política sem teoria e história e tampouco interpretação sem propostas de ação. Teoria e práxis interagem mutuamente na trajetória de Celso Furtado, compondo um olhar muito próprio sobre a realidade brasileira e as possibilidades de transformação da sociedade.

2.

O livro procura apresentar, em linhas gerais, o pensamento de Celso Furtado a partir do contexto histórico em que produziu suas principais obras, sempre sob uma chave interdisciplinar, tornando-o palatável não apenas a economistas e cientistas sociais, mas também a leitores e leitoras provenientes do direito, história, geografia, relações internacionais, arquitetura, literatura e das artes e ciências em geral.

Se o contexto histórico permite acompanhar suas reflexões em constante mutação, é importante ressaltar que cada obra de sua autoria procura atuar de volta sobre a história, numa espécie de bumerangue incessante. Por isso, Francisco de Oliveira qualificou Celso Furtado como o mais “ideológico” de nossos intérpretes [1], no sentido de que suas sínteses sempre são projetadas no horizonte de possibilidades de cada momento.

Nesse sentido, nosso intuito é abarcar as múltiplas dimensões de sua obra em constante elaboração, numa chave panorâmica e pedagógica, apresentando nosso olhar sobre o intelectual – sua trajetória, seu pensamento e seu método – em diálogo com a ampla literatura existente.

Se a porta de entrada para conhecer a obra de Celso Furtado costuma ser Formação econômica do Brasil, sua obra-prima, este livro busca descortinar os “vários Furtados”.

Para além de uma das mais influentes interpretações da história econômica do Brasil, publicada em 1959, a obra de Celso Furtado navega pela teoria econômica, pela dinâmica história latino-americana, pela questão regional, pela economia da cultura e pela análise do capitalismo internacional. O que salta aos olhos é sua capacidade de fornecer uma perspectiva totalizante ao integrar essas temáticas. Isso se torna possível ao ampliar a concepção do sistema centro-periferia a partir da interpretação do subdesenvolvimento e da dependência.

3.

O variado espectro de temas é atualizado pelo confronto de três planos de análise: “o fenômeno da expansão da economia capitalista, o da especialidade do subdesenvolvimento e o da formação histórica do Brasil vista do ângulo econômico” [III]. Portanto, uma interpretação que produz releituras sobre as conjunturas – do desenvolvimento nacional dos anos 1950 e da reestruturação do capitalismo global dos anos 1970 –, avaliando as oportunidades de transformação da sociedade e redesenhando os projetos de intervenção.

O método constantemente lapidado é o eixo a partir do qual procuramos encontrar a coerência de sua trajetória e seu pensamento, compreendidos a partir das rupturas da história brasileira e de como ele se posiciona frente a elas. Não se trata de uma coerência definida a priori, pois resultante do processo que altera a sua forma de vinculação à vida nacional em diferentes momentos: luta pela superação do subdesenvolvimento nos anos 1950 e 1960, exílio e crítica ao “modelo brasileiro” de desenvolvimento do pós-1964 e volta ao centro da cena durante a redemocratização dos anos 1980.

Celso Furtado se debruça ao longo de sua obra sobre o Nordeste, o Brasil, a América Latina e o sistema capitalista mundial estruturado por meio das relações entre centro e periferia. Essas dimensões de seu pensamento serão abordadas em seu devido lugar, mas não podemos esquecer que elas se referem a diversos níveis de análise sobre o mesmo problema – a tensa, complexa e por vezes dialética interação entre desenvolvimento e subdesenvolvimento – que muda conforme as escalas e temporalidades, e sempre de maneira encadeada.

Não podemos deixar de mencionar nessa introdução que o livro foi escrito com uma mirada para as próximas gerações, para os jovens que ingressam na universidade e na vida política, tal como fazia Celso Furtado em seus primeiros livros, dirigindo-se aos estudantes e à juventude.

Para os leitores que travaram algum conhecimento com a obra do intelectual na universidade ou nas batalhas políticas, procuramos recuperar os vários Furtados, como se fossem heterônimos de uma mesma persona. Poderão, assim, redescobrir esse pensador multifacetado a partir de novos olhares e perspectivas. Se os mais velhos possuem cada um “o Furtado para chamar de seu”, o convite que fazemos é para que ampliem seu repertório furtadiano.

Nós, os autores, nos damos por satisfeitos se o leitor e a leitora, ao chegarem ao final do livro, forem correndo ler este ou aquele livro do mestre. Nosso objetivo não é cultuar Furtado, mas praticar Furtado, aplicando seu método para entender as novas configurações assumidas pela economia nordestina, brasileira, latino-americana e mundial, sempre interagindo – por vezes de maneira contraditória – com as dimensões sociais, políticas e culturais.

4.

Com 22 anos incompletos, o estudante de Direito no Rio de Janeiro, e aficionado por música, publica na Revista da Semana, um artigo intitulado “Os inimigos de Chopin”.[iv] O jovem Furtado realiza então uma bela síntese em que o artista e seu país de origem aparecem fundidos.

Eis o trecho: “Chopin e Polônia estiveram por tanto tempo juntos e tanto se assemelham em suas trajetórias que se nos afiguram dois lados de uma mesma coisa. E teria sido possível um Chopin se não existisse uma Polônia? Certamente não. Como a Polônia não seria o que é sem este capítulo de sua existência: Frederico Francisco Chopin”.[v]

Parodiando o jovem, podemos dizer que o Brasil, país do sertanejo paraibano, tampouco seria o que foi, ainda é e pode ser, se não existisse o capítulo Celso Monteiro Furtado.

O intelectual Celso Furtado perscrutou analiticamente o potencial de desenvolvimento da nação, apesar da sordidez de suas elites e classes dominantes. Como se isso não bastasse, construiu possibilidades utópicas, entranhadas em sua metodologia inovadora, transformando-se numa “matriz de referência que não desiste nunca”, conforme a expressão de Maria da Conceição Tavares. [VI]

O capítulo Celso Furtado da história do Brasil não se encerrou com a partida do economista em 2004. Seu reconhecimento foi materializado, em 2004, com a criação do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, proposta encabeçada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. E justificado pela crescente quantidade de trabalhos dedicados a refletir sobre a trajetória e a vasta obra de Celso Furtado. Uma obra que vem sendo debatida e valorizada, cada vez mais, para além das fronteiras da ciência econômica. Uma obra interdisciplinar necessária para enfrentar os novos desafios do Brasil.

Tal como Chopin revive toda vez que é tocado ao piano, alçando consigo sua Polônia natal, a sinfonia furtadiana encontra-se presente em sua obra. Toda vez que ela é lida, reinterpretada ou aplicada por alguém, o Brasil se reveste de possibilidades inauditas.

Foi assim durante as caravanas virtuais de 2020, quando o centenário de Celso Furtado despertou intelectuais, professores, estudantes e militantes dos quatro cantos do país, reivindicando seu legado durante a pandemia real e metafórica. Foram inúmeras lives, webinários, cursos, eventos, além dos dossiês publicados em revistas acadêmicas e livros lançados para rememorar esse capítulo da história do Brasil.

Se Chopin parece distante, vamos de Emicida: “eu não sinto que vim, eu sinto que voltei” [VII]. Furtado está sempre voltando, para levar adiante o necessário debate com ousadia crítica e imaginação transformadora. Não desanimemos.

5.

Celso Furtado: trajetória, pensamento e método foi escrito para dar conta do seguinte desafio: fornecer os instrumentos para acessar o seu método de análise e a sua produção intelectual por meio de uma abordagem panorâmica que tornasse possível acompanhar o pensamento e a trajetória de Celso Furtado ao longo da segunda metade do século XX.

O livro percorre a vida e obra de Celso Furtado descortinando os “vários Furtados” – teórico do subdesenvolvimento, intérprete do Brasil e do capitalismo, formulador de políticas de desenvolvimento, pensador da cultura e intelectual atuante –, situando a publicação de suas obras com os contextos históricos e os desafios vividos.

Para além de sua interpretação presente em Formação econômica do Brasil ou de seu papel como o representante brasileiro do estruturalismo latino-americano, procuramos situar a trajetória de Celso Furtado de uma maneira pedagógica, compondo um amplo quadro em que autor, obra e contexto histórico se conectam por meio de nossa leitura do projeto furtadiano de construção de um país soberano, justo e democrático.

A estrutura do livro é cronológica, pois sua biografia serve de ponto de partida para a compreensão de sua produção bibliográfica, mas sem projetar uma trajetória linear, cujo sentido esteja dado de antemão. Se o tratamos como “mestre”, é porque, com ele, aprendemos a pensar o Brasil. Não se trata, pois, de heroicizar o personagem. Ele viveu seu tempo e deixou seu legado. Cabe a nós recuperá-lo. Simples assim.

O capítulo inicial, “O jovem Furtado e os eixos de sua formação (1920-1948)”, apresenta suas primeiras reflexões, saindo da realidade nordestina para o Rio de Janeiro e, depois, da capital brasileira para a Europa. Uma formação jurídica na Universidade do Brasil, mas, acima de tudo, navegando pelas leituras das ciências sociais e pelos desafios de constituição do moderno Estado brasileiro nas décadas de 1930 e 1940. No doutoramento em Paris, por sua vez, sedimenta-se em sua formação a história como instrumento de análise, uma história problema, como presente na tradição da escola dos Annales.

O encontro com a ciência econômica, por outro lado, somente ocorreria a partir de 1949, quando se transfere para Santiago do Chile para trabalhar na Cepal. Este é o objeto do Capítulo 2, “A aventura da Cepal (1949-1958)”, fase da fantasia organizada, quando o economista se equipa com as ferramentas de planejamento para atuar no sentido da superação do subdesenvolvimento nos países latino-americanos. Essa fase se encerra com sua ida para a Universidade de Cambridge, contexto de redação de sua obra-prima, que figura como síntese de sua trajetória – por conjugar método analítico e interpretação histórica da economia brasileira –, objeto do Capítulo 3, “Formação econômica: o método histórico-estrutural e uma ideia de Brasil”.

“O intelectual estadista (1958-1964)”, Capítulo 4, situa Celso Furtado no auge de sua atuação política, pois num curto espaço de tempo o economista da Cepal transforma-se no formulador de um dos mais ousados planos de desenvolvimento regional do país, com a criação da Sudene no governo de Juscelino Kubitschek. Mais tarde, em meio à crise econômica e política do governo de João Goulart, Celso Furtado é o responsável pela formulação do Plano Trienal, como ministro extraordinário do Planejamento. A fantasia (é) desfeita com o golpe militar e seu longo exílio de quase vinte anos.

Os dois capítulos seguintes tratam do período em que Celso Furtado, tendo seus direitos políticos cassados pelo Ato Institucional n.º 1, precisa produzir distante do palco político. O Capítulo 5, “O intelectual no exílio 1: repensando o Brasil (1964-1974)”, percorre a primeira década do exílio, quando sua prioridade é compreender os dilemas da economia brasileira, as razões do golpe e os significados do novo modelo de subdesenvolvimento.

“O intelectual no exílio 2: repensando o capitalismo (1974-1980)”, por sua vez, destaca sua produção no contexto em que o economista se distancia dos problemas da conjuntura econômica brasileira e produz textos voltados para compreender os impasses da civilização industrial e do capitalismo contemporâneo, oferecendo uma reflexão inovadora no campo da ciência social.

6.

Os capítulos finais do livro se voltam para as duas últimas décadas de vida de Celso Furtado. Com seu retorno definitivo para o Brasil, durante o processo de redemocratização, o economista reaparece em plena forma, atualizando sua leitura do “modelo brasileiro” e esclarecendo aos cidadãos a origem e a dinâmica da dívida externa e da inflação. Assume, no governo Sarney, o Ministério da Cultura, área em que fornece contribuições valiosas desde os anos 1970, agora transformadas em política pública.

O Capítulo 7, “De volta à cena nacional: economia, redemocratização e cultura (1980-1988)”, procura explicar como e porque Celso Furtado foi escanteado pelos economistas do poder, ao passo que se sobressai como um intelectual para além da economia. Sua atuação na cena política lhe permite compreender os impasses da democracia brasileira por meio de uma perspectiva histórica.

O Capítulo 8, “Na linha do horizonte: dialogando com as novas gerações (1988-2004)”, apresenta uma fase de balanços e sínteses de Celso Furtado. Uma década em que o reconhecimento do economista se concretiza por meio de prêmios e indicações, como o recebimento de diversos títulos honoris causa, a nomeação para a Academia Brasileira de Letras e a indicação para o prêmio Nobel de Economia.

Por meio de seus livros, Celso Furtado estabelece um diálogo com as novas gerações, com ênfase nos novos desafios para o enfrentamento do subdesenvolvimento, a partir de um resgate de sua contribuição teórica e de sua trajetória pública, e de suas reflexões sobre a transformação da economia mundial.

A título de conclusão, apresentamos um ensaio-síntese que percorre meio século de produção intelectual de Celso Furtado com o objetivo de reter os instrumentos metodológicos de sua análise econômica e social. Uma perspectiva analítica burilada por décadas, que a despeito de completarmos vinte anos de seu falecimento em 2024, ainda nos auxilia a captar a essência da realidade – condição para o enfrentamento da pobreza e da desigualdade nas suas variadas formas, sempre levando em conta as transformações do cenário internacional, as quais constrangem e abrem possibilidades para novas propostas de desenvolvimento nacional.

*Alexandre de Freitas Barbosa é professor de economia no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). Autor, entre outros livros, de O Brasil desenvolvimentista e a trajetória de Rômulo Almeida (Alameda).

*Alexandre Macchione Saes é professor no Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Conflitos do capital (EDUSC).

Referências

Alexandre de Freitas Barbosa & Alexandre Macchione Saes. Celso Furtado – Trajetória, pensamento e método. Belo Horizonte, Autêntica, 2025, 318 págs.

Notas

[I] Trecho do documentário O longo amanhecer: cinebiografia de Celso Furtado. Direção: Jose Mariani. Rio de Janeiro: Andaluz Produções, 2004. (73 min.)

[II] Oliveira, F. A navegação venturosa: ensaios sobre Celso Furtado. São Paulo: Boitempo, 2003, p. 18-19.

[III] Furtado, Celso. Aventuras de um economista brasileiro. In: Celso Furtado: Obra autobiográfica. Organização de Rosa Freire d’Aguiar.

Tomo II. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 21.

[IV] Furtado, Celso. Os inimigos de Chopin [Revista da Semana, 14 abr. 1942]. In: Anos de Formação: 1938-1948. Organização de Rosa Freire d’Aguiar. Rio de Janeiro: Editora Contraponto/Centro Celso Furtado, 2014b. (Arquivos Celso Furtado, v. 6).

[V] Furtado ([1942] 2014a, p. 67).

[VI] O longo amanhecer: cinebiografia de Celso Furtado. Direção: Jose Mariani. Rio de Janeiro: Andaluz Produções, 2004. (73 min.)

[VII] AmarElo: é tudo para ontem. Direção: Fred Ouro Preto. São Paulo: Netflix, 2020. (89 min.)

 

A Economia de Francisco, por Luiz Gonzaga Belluzzo

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Nossos olhares perderam de vista a ideia de comunidade cristã, expressão repetida no texto do papa e incrustrada nas origens do cristianismo.

por Luiz Gonzaga Belluzzo – Jornal GGN – 22/04/2025

O Editorial das “Notícias do Vaticano” relembra: na noite de 13 de março de 2013, Jorge Mario Bergoglio apareceu pela primeira vez na varanda central da Basílica de São Pedro vestido de branco. A sua saudação inicial já continha alguns traços salientes do pontificado: a oração por «uma grande fraternidade» no mundo dilacerado pela injustiça, violência e guerras.

Meses após a consagração papal, Francisco ofereceu aos católicos e cristãos a Primeira Exortação Apostólica “Evangelii Gaudium”. Assim como as encíclicas Rerum Novarum de Leão XIII, Mater et Magistra e Pacem in Terris de João XXIII, a exortação apostólica de Francisco, um texto cuidadosamente construído, aborda as vicissitudes e alegrias da vida cristã no mundo contemporâneo.

Os olhares do nosso tempo perderam de vista a ideia de comunidade cristã, expressão tantas vezes repetida no texto do papa e incrustrada nas origens do cristianismo. Jacques Le Goff diz com razão que no cristianismo primitivo e no judaísmo a eternidade não irrompia no tempo (abstrato) para “vencê-lo”. A eternidade não é a “ausência do tempo”, mas a dilatação do tempo ao infinito.

Depois da encarnação, a escatologia judaico-cristã sofre uma transmutação: o tempo adquire uma dimensão histórica. Cristo trouxe a certeza da eventualidade da salvação, mas cabe à história coletiva e individual realizar essa possibilidade oferecida aos homens pelo sacrifício da cruz e pela ressurreição. “Não nos é pedido que sejamos imaculados, mas que não cessamos de melhorar, vivamos o desejo profundo de progredir no caminho do Evangelho, e não deixemos cair os braços”.

O cristianismo – o mistério libertador da Encarnação – foi um divisor de águas na história da humanidade, um movimento revolucionário, nascido das crueldades e das sabedorias do mundo grego-romano.

Em uma entrevista sobre seu filme Satyricon, Fellini desvelou a alma que se escondia no rosto de seus personagens no crepúsculo do império romano. As máscaras se debatiam entre o tédio das concupiscências e as angústias da desesperança. Para o grande Federico, o filme escancarava “a nostalgia do Cristo que ainda não havia chegado”

Tal como nos personagens do Satyricon, percebo nos católicos de hoje a nostalgia do Cristo que não voltou. Mas, creia-me o leitor, ele já esteve entre nós encarnado na simplicidade e na sabedoria camponesa de João XXIII e parece ter retornado nos exemplos de Francisco.

João XXIII escreveu na Mater et Magistra: a Santa Igreja, apesar de ter como principal missão a de santificar as almas e de fazê-las participar dos bens da ordem sobrenatural, não deixa de preocupar-se ao mesmo tempo com as exigências da vida cotidiana dos homens, não só no que diz respeito ao sustento e às condições de vida, mas também no que se refere à prosperidade e à civilização em seus múltiplos aspectos, dentro do condicionalismo das várias épocas.

Francisco rejeita as formas de religiosidade que fazem recuar o espírito para os recônditos do individualismo, uma espécie de “consumismo do sagrado” que ignora os fundamentos comunitários do cristianismo. “Mais do que o ateísmo, o desafio que hoje se nos apresenta é responder adequadamente à sede de Deus de muitas pessoas, para que não tenham de ir apagá-la com propostas alienantes ou com um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro. Se não encontram na Igreja uma espiritualidade que os cure, liberte, encha de vida e de paz, ao mesmo tempo que os chame à comunhão solidária e à fecundidade missionária, acabarão enganados por propostas que não humanizam nem dão glória a Deus”. Um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro é a negação do cristianismo.

Na Encíclica Fratelli Tutti, Franscisco aborda as vicissitudes da vida moderna:

“A mera soma de interesses individuais não é capaz de gerar um mundo melhor para a humanidade. Sequer pode nos preservar de tantos males que se tornam cada vez mais globais. Mas o individualismo radical é o vírus mais difícil de ser vencido. Engana. Nos faz crer que tudo consiste em dar rédea solta às próprias ambições, como se a acumulação de ambições e seguranças individuais pudessem garantir a construção do bem comum”.

Na Encíclica, Francisco reivindica uma política econômica ativa “… que promova a diversidade produtiva e a criatividade empresarial” para que seja possível aumentar os empregos em vez de reduzi-los. A especulação financeira com lucro fácil como um fim fundamental continua a causar estragos. Além disso, sem formas internas de solidariedade e confiança falhou”.

Já em 2015, durante outra audiência no Vaticano, o Papa disse que “o dinheiro é esterco do diabo”, acrescentando que, quando o capital se torna um ídolo, ele “comanda as escolhas do homem”. Aprisionado nas engrenagens impessoais da economia sem alma, o Homem sem Escolhas entrega seu destino ao diabo e seus estercos.

Na edição de 17/5/2018, o Osservatore Romano registra a divulgação do documento Oeconomicae et pecuniariae quaestiones elaborado pela Congregação para a Doutrina da Fé. O texto de 16 páginas contém “considerações para um discernimento ético acerca de alguns aspectos do atual sistema econômico-financeiro”.

O documento foi apresentado na Sala de Imprensa pelo arcebispo Luis Francisco Ladaria Ferrer e pelo cardeal Peter Kodwo Appiah Turkson. Já na introdução o texto revela seu propósito de avaliar a supremacia dos mercados financeiros – os estercos do Diabo – e suas consequências sobre a vida de homens e mulheres que habitam o mundo dos vivos. “A recente crise financeira poderia ter sido uma ocasião para desenvolver uma nova economia mais atenta aos princípios éticos e para uma nova regulamentação da atividade financeira, neutralizando os aspectos predatórios e especulativos, e valorizando o serviço à economia real”.

Em carta aos jovens economistas do mundo, Papa Francisco sugeriu que se reunissem na cidade de Assis, Itália, entre 26 e 28 de março de 2020 para repensar uma nova doutrina econômica para o mundo. Uma doutrina que vá além das “diferenças de credo e nacionalidade”, inspirada “na fraternidade, sobretudo para os pobres e excluídos”.

Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia (IE) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (1985-1987) e de Ciência e Tecnologia de São Paulo (1988-1990). Belluzzo é formado em Direito e Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), pós-graduado em Desenvolvimento Econômico pela Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) e doutor em economia pela Unicamp. Fundador da Facamp e conselheiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), é autor dos livros “Os Antecedentes da Tormenta”, “Ensaios sobre o Capitalismo no Século XX”, e coautor de “Depois da Queda, Luta Pela Sobrevivência da Moeda Nacional”, entre outros. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists. Em 2005, recebeu o Prêmio Intelectual do Ano (Prêmio Juca Pato).