Num mundo de múltiplas crises, precisamos de um Estado forte e inteligente, por Eliane Conceição

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Eliane Barbosa da Conceição, Professora da Unilab-CE e pesquisadora do FGV-CEAPG; doutora em administração de empresas (FGV-SP), mestra em administração geral (Ibmec-RJ) e parceira da Plataforma Justa;

Folha de São Paulo, 13/09/2025.

A Primeira Turma do STF deve concluir nesta semana o julgamento do primeiro núcleo da trama golpista, formado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e sete de seus aliados. Tudo indica que serão condenados a mais de 30 anos de prisão.

A inelegibilidade decretada pelo Tribunal Superior Eleitoral em 2023 já havia praticamente excluído Bolsonaro do pleito de 2026, salvo uma improvável reversão da pena —hipótese ainda acalentada por seus seguidores no Congresso. A condenação iminente no STF, contudo, se confirmada, agrava a situação, afastando de vez qualquer possibilidade de retorno relevante ao cenário político.

Nesse vácuo, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, surge como potencial herdeiro do espólio do, talvez, duplamente inelegível. Em 5 de setembro, celebrou a concessão em São Paulo e exaltou a iniciativa privada, reafirmando a centralidade da agenda de privatizações em sua gestão.

Esse discurso remete aos anos 1980, quando teve início a primeira onda de reformas administrativas, no bojo da crise do capitalismo após os “anos gloriosos” do pós-guerra. Reino Unido e Estados Unidos, sob Thatcher (1979-1990) e Reagan (1981-1989), foram pioneiros em experiências de redução do papel estatal, que logo seriam replicadas em outros países desenvolvidos.

Nos anos 1990, o receituário alcançou a América Latina, impulsionado pelos Estados Unidos e organismos internacionais.

O Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 1997, intitulado “O Estado num mundo em transformação”, recomendava que as reformas administrativas na região se dedicassem a privatizações, descentralização, enxugamento dos quadros e flexibilização na contratação de servidores.

Esse documento ecoava os princípios mais amplos do Consenso de Washington, que também defendia austeridade fiscal e redução do gasto público. Mantendo o núcleo duro inicial e se reorganizando em torno elementos ou narrativas periféricas, as reformas administrativas e fiscais proliferaram nas décadas seguintes, deixando legados bem diferente dos previstos.

Interessante perceber que o relatório de 1997, ao recomendar uma completa alteração do papel assumido pelo Estado no pós-guerra, ressaltava a dificuldade dessa redefinição, uma vez que o “terreno em que se assenta está sempre mudando”.

Hoje resta evidente que o terreno mudou —para pior. As reformas legaram desigualdades, concentração de renda e poder, precarização e enfraquecimento da ação pública. Enquanto a Europa, aprendendo com os erros, reestatiza serviços essenciais, o Brasil ainda insiste no mantra da privatização.

Num mundo de múltiplas crises, precisamos de um Estado forte e inteligente. Isso exige, sim, revisar privilégios imorais de segmentos do alto funcionalismo do Judiciário, Executivo e Legislativo.

Mas, sobretudo, requer valorizar o servidor que está na ponta —professores, médicos, enfermeiros, policiais, assistentes sociais, atendentes— os chamados “burocratas de nível de rua”, na expressão de Michael Lipsky (1980). São eles que garantem a efetividade da ação governamental.

É deles que precisamos falar ao pensar uma reforma administrativa à altura dos desafios do século 21.

“Imortalidades” do Giannetti

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Costumamos dizer que, no parto, a mãe “dá à luz” ao filho, mais exato seria dizer que ela “dá o tempo”, seu primeiro minuto: a luz conquistamos ao longo da vida — sempre em busca de não morrer cedo e de transcender à morte

Correio Braziliense – 25/06/2025

A história do pensamento mostra que os intelectuais brasileiros se dedicam aos problemas do Brasil, enquanto os europeus abordam grandes temas da humanidade. De tempos em tempos, surgem exceções, como Eduardo Giannetti, que eleva nossa contribuição ao debate universal. Em suas obras, já ofereceu reflexões sobre felicidade, ética e racionalidade. Agora, com o livro Imortalidades, Giannetti une beleza literária à sólida base da história do pensamento e da reflexão filosófica, para tratar de assunto essencial à condição humana: a ideia de que a vida possa transcender sua curta duração biológica.

Giannetti adota o estilo de ensaios curtos — 235 ao todo — cada um podendo ser lido independentemente ou em sequência, como um grande romance de ideias em torno da ânsia por imortalidade que caracteriza a única espécie com consciência da própria morte e que não se conforma com esse destino. Retoma anotações acumuladas ao longo de sua vida de leituras, desde muito jovem. Investiga as diversas formas de imortalidade que o ser humano busca incessantemente. Mergulha em mais de 150 obras de 116 autores, incluindo ele próprio, para pensar, especular, compreender e descrever como o desejo de permanência atravessa a história do pensamento, especialmente ocidental, ao longo de milênios.

O autor passa por obras orientais e antigas, como o Épico, de Gilgamesh, de 1.800 anos antes de Cristo, e textos de filósofos gregos de 2.500 anos atrás. Todos com a mesma inquietação: o que havia antes de nós e o que virá depois. A ideia de continuidade após a morte foi, talvez, o gesto de maior arrogância do homo sapiens: atribuir a cada um deles o privilégio que, antes, era reservado apenas aos deuses da mitologia clássica. Mesmo os mais materialistas encontram uma forma de sobrevida nos átomos do corpo que, depois da morte, se dispersam no universo. Não há, talvez, expressão mais materialista do que a ideia bíblica de que “viemos do pó e ao pó voltaremos”.

Costumamos dizer que, no parto, a mãe “dá à luz” o filho, mais exato seria dizer que ela “dá o tempo”, seu primeiro minuto: a luz conquistamos ao longo da vida — sempre em busca de não morrer cedo e de transcender à morte. A arrogância foi punida pelo medo da morte e do pós-morte. Personagens literários que tentaram ultrapassar a fronteira entre a mortalidade dos homens e a imortalidade dos deuses foram punidos com vidas vazias e trabalho insano. Usam a capacidade intelectual para não morrer — seja ampliando os dias de vida do corpo, seja apostando numa outra existência, seja deixando obras para ser lembrado, ainda que por poucas gerações — e se esquecem de viver. Ele ainda reconstrói a história do surgimento desse desejo de imortalidade e das múltiplas formas de buscá-la, e ainda explica como esse conceito foi gradualmente apropriado e transformado pelas religiões que adotaram a ideia de alma individual e imortal, que se desprende do corpo morto e vai para outra dimensão ou reencarna depois em outros corpos.

O livro Imortalidades é um belo e rigoroso estudo sobre a arrogância de querer ser imortal e a consequente tragédia de morrer pelo vazio existencial, inclusive decorrente da ilusão de uma alma eterna. O homo sapiens talvez seja resultado de um erro da evolução natural, ao criar um animal com racionalidade ilimitada, mas incapaz de controlar moralmente seu destino e, inclusive, de aceitar o destino de sua morte definitiva, tratada como fato natural e irreversível. Confundindo viver com produzir e consumir, acaba provocando entropia ecológica e civilizatória e, no limite, o suicídio da espécie.

De certo modo, é isso que ocorre com o ser humano moderno que, ao buscar a imortalidade de cada indivíduo, ameaça a própria espécie com suicídio coletivo. A ânsia neurótica de transformar, cada vez mais rapidamente, pedras, plantas e animais em produtos para serem consumidos, define o homem moderno. O cartão de crédito como a chave da imortalidade.

Em um trabalho de Sísifo, desperdiçando a curta vida com a ilusão de permanência por meio da riqueza material a ser consumida. Ao ponto de, na era do Antropoceno, destruir o equilíbrio ecológico e ameaçar a própria sobrevivência da espécie. Felizmente, graças, especialmente, aos filósofos existencialistas é possível vislumbrar imortalidade em cada minuto de vida vivido plenamente: “Cada minuto eterno enquanto dura”. Entre essas imortalidades transitórias está a leitura de livros que nos inspiram e deslumbram, fazendo-nos imortais enquanto os lemos: sentimento despertado pela leitura de Imortalidades, de Eduardo Giannetti.

Escolha sua Distopia, propõe Luiz Eduardo Soares

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Novo livro do antropólogo é, a um só tempo, intervenção no debate da Segurança Pública e reflexão de fôlego sobre patrimonialismo, máfias e milícias no coração da República. E a respeito de como o negacionismo histórico nos arrasta para a irracionalidade…

Leandro Saraiva – OUTRAS PALAVRAS – 12/09/2025

Os animais, como se sabe, dividem-se em embalsamados, sereias, desenhados com um finíssimo pincel de pelo de camelo, que de longe parecem moscas, e mais alguns tipos. Acredito que as complexidades dessas investigações se estendam aos animais políticos, entre os quais há alguns que muito dificultam os diligentes esforços taxionômicos e taxidérmicos de quem se dedica à estabilização do mundo em catálogos capazes de anestesiar a inquietação da pólis. Luiz Eduardo Soares é um desses seres inemapalháveis. Quem o conhece pelo aspecto frontal de militante da segurança pública, vê apenas a projeção em nível pragmático do estudioso que chegou à secretaria de segurança carioca pelo empenho de pesquisa do contexto social registrado em Violência e política no Rio de Janeiro (1996). Mas quem observa o cruzamento do eixo da ação e do estudo talvez perca de vista uma dimensão filosófica de fundo, que, ao mesmo tempo que desenha equações capazes de dar forma aos problemas, interroga cada termo posto em tela, chamando a atenção para a instabilidade existencial – de poderes, palavras e afetos – dos fenômenos humanos. Um bom nome para o horizonte dessa reflexão seria – como diz o título de outro antigo livro seu, ainda tão atual –, O rigor da indisciplina (1994). E talvez uma outra forma de ver toda a complexidade de vida e morte que Luiz Eduardo, a cada vez, volta a encarar, seja a da narrativa como condição básica da existência. Como são convocados e apresentados os personagens? Como se enredam em tramas que variam entre confrontos e suspenses e mergulhos subjetivos dos quais nem eles próprios conhecem o fundo que lhes contorna a figura? Que vozes comentam e conduzem a jornada? Como os eixos agônicos amarram esses seres em desenlaces ansiados e temidos? Quem acompanha o exercício de alternância entre obras analíticas – como Justiça (2011), Desmilitalizar (2019), O Brasil e seu duplo (2019) ou Dentro da noite feroz (2020) – e as de variadas matizes ficcionalizantes – de O experimento de Avelar (1997), ao recém-lançado O Crânio de Vidro do Selvagem Digital (2025), entremeados por sucessos como Cabeça de Porco (2005) e Elite da Tropa (2006)–, sabe que a origem teatral do autor, no mítico Asdrúbal trouxe o trombone, pulsa na tensão de contrários presentes em tudo que escreve, entre a capacidade de pôr em cena a intensidade de fragmentos dramáticos precisos e o distanciamento reflexivo que revela os andaimes, luzes, sombras, bastidores e espelhos que fazem do encenado uma das infinitas possibilidades da montagem da trama social e existencial.

Escolha sua distopia (ou pense pelo avesso) é assim. Dizer que o livro é multidisciplinar, já que mobiliza sociologia, ciência política, filosofia, antropologia, direito, psicanálise, seria um tipo de miopia reversa, que vê mal por excessiva clareza de definição das bordas da constelação de fenômenos em pauta. O eixo de assuntos que encadeia suas quatro seções – a anatomia do poder miliciano, a história da corrosão das polícias, a sombra de Junho de 2013 e, por fim, o plot twist do potencial pragmático-utópico dos Direitos Humanos – é enganoso em sua linearidade sequencial, já que a cada conjunto de ensaios reunidos em cada seção, ou a cada movimento reflexivo de cada ensaio ou até mesmo a cada peça invocada para o quebra-cabeça de nossa violência histórica, vibram dialeticamente alternativas de entendimento e de forças que sugerem que há sempre uma direção contrária ao que se diz.

Nessa escrita dramático-ensaísta, até o fundamento relativista da antropologia é virado pelo avesso, por uma reflexão filosófica acerca da constituição simétrica e dialógica do sujeito moral, que não pode se furtar de projetar no outro o valor transcendente da dignidade humana universalizada, sob pena de perder a sua própria. Uma hipótese crucial, que vê a sempre repetida irracionalidade das políticas de segurança como denegação do trauma das raízes históricas de nossa violência criminal, nos ajuda a compreender o medo paranóico como um afeto coletivo de fundamento. A análise da trama social inclui uma dimensão agonística e de pathos, iluminando o movimento que liga o passado colonial, escravista e patriarcal, e a força atual do fascismo, mas também indica reversibilidades potenciais, tanto em afirmações vitais da diferença, como as invenções contemporâneas das identidades de gênero, como na afirmação radical dos Direitos Humanos. A vida e o pensamento pelo avesso.

Há por toda parte uma sensibilidade psicanalítica, acompanhada de afinidades eletivas com a boa dramaturgia. Vale o destaque para o explícito contraponto entre a necessidade da regulação jurídica, operada pelo Direito – que por definição estabiliza identidades e causalidades, para emitir juízos de culpa ou inocência – e o uso desconstrutivo da palavra por parte da psicanálise, para quem o sujeito, ser de linguagem, é sempre um campo de virtualidades exploráveis. Os exemplos sugerem que, ao contrário do que pretendia Freud, a psicanálise pode, sim, ser uma visão de mundo, um weltanschauung, com grande rendimento para entendimento da sociedade como algo mais que um código classificatório, ou mesmo uma dinâmica de confrontos – uma rede de ambivalências, não só de conteúdos proposicionais (ideologias expressando lógicas de interesses contraditórios), mas também de afetos e sentidos que tem sempre seus avessos e complementos, que, uma vez explorados, mesmo que de forma especulativa e imaginativa, redefinem a própria identidade dos sujeitos e de suas relações. Talvez se possa chamar de multidimensional esse movimento ensaístico que, por exemplo, para passar em revista empírica e teórica as vicissitudes dos Direitos Humanos, começa por um mergulho em Hamlet como paradigma de hesitação e do caráter abismal da consciência e inconsciência dessa invenção histórica chamada de indivíduo.

Há algo de balanço nesse livro a um só tempo de intervenção do militante da segurança pública e dos Direitos Humanos – pauta crucial no cenário político, nacional e global, encoberto pela sombra do fascismo – e de um trabalho intelectual de longa maturação. São imprescindíveis as sínteses de fôlego sobre a história de patrimonialismos, de renovados coronelismos, novas enxadas e velhos votos, que permitiram a emergência das máfias milicianas, infiltradas até o núcleo da (dita) república. Não menos importante é a complementar dissecação das formas institucionais do funcionamento das polícias e o contraponto das propostas de reforma, das quais o autor tem sido protagonista. E se os mergulhos reflexivos se tornam mais explícitos e densos nos textos das duas seções finais, trata-se apenas de um movimento de concentração, já estão presentes desde o início. Estudo histórico e estrutural, cruzamento de horizontes antropológicos, interrogação filosófica e narração dos dramas sociais e existenciais dão esqueleto, corpo e espírito para uma escrita dialógica e interpelativa que se põe e nos põe na pólis conflagrada.

O ensaio “Visão de túnel: segurança pública, ética e justiça no Brasil”, no qual é exposta a tese do negacionismo histórico como causa da irracionalidade das políticas de segurança, é um exemplo máximo dessa lapidação do pensamento, em clareza multifacetada e iluminadora de ângulos, história, tensões internas e potencialidades negadas e ao mesmo tempo presentes. Luiz Eduardo parte da experiência, tida como iniciática para os policiais cariocas, da “visão de túnel”: a ultra concentração inerente ao combate armado, que abole percepção e juízo para dispor à ação pura, imediata e inevitavelmente letal. Aí, num salto da narração antropológica da experiência do outro para a filosofia, o autor contrapõe o túnel ao universalismo contratualista na versão de Hannah Arendt que afirma ser condição para a civilização a postulação de “uma região além e acima da linha de combate”. O parafuso crítico dá outra volta, e o universalismo implícito, de sabor especulativo kantiano, de Arendt, é posto em questão, convocando como necessidade – pragmática, e não transcendental – a intencionalidade horizontal de ações políticas concretas, como perspectiva de superação do impasse. O modo de colocar o jogo de ponto de vistas em outra região é pôr para jogo a régua da violência de grau zero e a da racionalidade abstrata, interpeladas por outras possibilidades, experiências dialógicas de cidadania e invenções práticas de segurança pública. A partir dessa conexão inesperada, entre a iniciação “caveira”, filosofia e política dos direitos humanos, a visão se multiplica, se exponencia. Primeiro, por uma caracterização do fetichismo da mercadoria como indissociavelmente amalgamado ao monopólio estatal da violência, reunindo dois vetores fundamentais do pensamento ocidental. E, logo, com a especificação da reflexão para o caso brasileiro, com a projeção da visão de túnel na história do nosso capitalismo autoritário. A violência intransitiva e compulsória ganha contexto e função, revelando-se um operador crucial da nossa sociedade, tanto na naturalizada repressão e recorrente eliminação dos setores rebeldes ao arranjo de poder, como na denegação desse trauma brutal constantemente reencenado, expresso em discursos moralizantes obsessivamente repetidos, vazios e mortais, sobre segurança pública – espécie de aleph, ou segredo sujo da nação que nunca supera seu fundamento traumático. A não ser que tenhamos a coragem de olhar o trauma no fundo de nossa noite feroz, deslocando a energia da violência como sintoma para uma energia de construção inaugural da república sempre adiada.

Escolha sua distopia. Ou pense pelo avesso.

A República dos bacharéis, por Luis Fernando Vitagliano

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Luis Fernando Vitagliano – A Terra é Redonda – 11/09/2025

O Parlamento não é uma república de bacharéis, mas um espaço de garantias para todos. Se protege apenas os que detêm o poder, já não é democracia – é seu simulacro

1.

O Brasil elegeu em 2022 pelo menos 131 deputados cuja formação é em Direito (103 advogados e 16 bacharéis, 13 delegados). Talvez haja outros formados na área que não foram contabilizados pela profissão. Mesmo assim, este número equivale a ¼ dos deputados em exercício hoje na Câmara. Ainda que entender dos processos, conhecer as leis e atuar dentro das regras jurídicas e dos estatutos é fundamental para o exercício dos mandatos, parece haver uma preocupante relação acrítica limitante da área do Direito.

Isso tem consequências para o modo com que se apropria dos fatos. Optar pelo Direito enquanto perspectiva da política pode gerar distorção para o olhar da democracia. Obviamente entre os bacharéis, os barões do centrão e os golpistas autoritários há diferenças, mas se não nos preocuparmos com o padrão das instituições democráticas, essas diferenças acabam por dar indícios de deturpação do exercício da democracia e aproxima oportunistas de golpistas, cafajestes de sabichões, ingênuos de maldosos.

Sem a sociedade saber exatamente o que é, como se manifesta e o que sustenta a democracia, fica difícil defender seus princípios elementares e mais fáceis de atingi-la. O que podemos perceber rapidamente, com um olhar para a opinião pública, é que dificilmente encontramos definições coerentes do que seja democracia. E como cada um usa a noção de democracia do modo que convêm, corremos agora o risco de interromper o período mais longevo da democracia brasileira – que começou com a promulgação da Constituição de 1988.

São 37 anos de altos e baixos das instituições democráticas, que hoje estão sob a ameaça real de sucumbirem às pressões de uma maioria que acredita estar coberta pela iluminação, mas que abusa do precedente não democrático da decisão de maioria.

Defendi uma tese para o doutoramento exatamente sobre democracia. Desde suas definições até suas disfunções. É um exaustivo trabalho de leitura, pesquisa e reflexão. A análise histórica, factual e comparada é muito importante para formar uma robustez conceitual que dá contornos a definição. Longe de ser um conceito em que há uma definição única e precisa é preciso olhar para a história e suas múltiplas manifestações práticas.

Defendi que a democracia tem dois pilares que a sustentam: de um lado a deliberação coletiva através de consultas públicas. Eleições, Leis, deliberações públicas, impessoais e transparentes formam um governo que toma decisões com base no jogo de representação pública; de outro lado há a garantia de direitos individuais e coletivos de minorias. Ou seja, para defender a democracia é preciso reconhecer que os derrotados tenham seus direitos garantidos mesmo quando são minorias.

Ao contrário então do que comumente se supõe: democracia não é o direito constituído pela deliberação da maioria; democracia é o exercício da deliberação que garante o direito da minoria. Preservar quem perdeu é tão importante para a democracia quanto é o exercício da deliberação pelos vitoriosos. Eu diria, até mais importante; porque se quem ganhou ou teve o mandato concedido pela maioria propõe algo que atinja os derrotados diretamente deve haver mecanismos que impeçam essa ação de acontecer.

2.

Tratemos de um exemplo concreto, pergunto: ao ganhar uma eleição, conseguir apoio legislativo, com maioria no Congresso, pode um partido da maioria propor o fim da cultura cigana, por exemplo? E que aqueles que insistirem em manifestar através dessa prática serão presos e punidos com a morte? A resposta é não. Mesmo vencendo, mesmo cumprindo todos os trâmites legais e os ritos da deliberação, o princípio da maioria não se impõe ao direito de existência e de livre expressão das minorias. De modo que um ideal de democracia é a composição de minorias sem a existência de uma maioria consolidada. Portanto, não há direito que sustente a extinção da oposição.

Democracia como pode ser entendida historicamente é o regime que permite a coexistência pacífica de diferentes concepções sociais, políticas e culturais nas instituições políticas, de modo que as garantias dos direitos individuais e coletivos se harmonizam com as deliberações de governo, garantindo oportunidades sociais, econômicas e políticas a todos os grupos e indivíduos.

Assim, quando comecei a desenvolver o trabalho acadêmico, me fiz a seguinte pergunta: a democracia tem por princípio, entre outros, a garantia do direito a livre manifestação política e que minorias tenham assegurada sua liberdade de defender quaisquer que sejam seus princípios políticos. Democracia pressupõe tolerância e diversidade de opiniões e para provar a efetividade desse direito, me propus a discutir o argumento em suas últimas consequências.

Perguntei se, por exemplo, uma constituição pode banir ou proibir um partido nazista (como se faz na Alemanha)? Esta postura afasta ou aproxima a Nação da democracia? Minha resposta naquele momento era ainda inconsistente: embora reconhecesse que há razões históricas para sustentar o banimento de partidos nazistas, e que mesmo isso não sendo o ideal era coerente com a história e isso não torna o país menos democrático, reconhecia que com essa postura o conceito de democracia poderia se enfraquecer dado que não se supunha a tolerância mesmo que em se tratando de um movimento totalitário. Em linhas gerais, o que eu me perguntava é a respeito do dilema mais complexo enfrentado sobre o tema e que pode ser resumido na seguinte pergunta: podem os democráticos tolerar os antidemocráticos?

O dilema me permitia definir algumas características a respeito de democracia. Em primeiro lugar, de que há um ideal puro de democracia que concretamente não se pode atingir. Democracia plena em todos os seus aspectos é uma utopia importante para que as decisões a respeito das condições democráticas nos permitam agir.

Em segundo lugar, é preciso entender que a resposta a respeito da presença ou ausência de democracia num país não é binaria: existe e/ou não existe. Assim como não é efeito de um cálculo racional: com essas condições temos uma democracia, sem elas, não. Há uma seria de, digamos, tonalidades e/ou possibilidades de exercício de democracias dentro de um leque de deliberações que permitem a ação das maiorias e/ou não permitem determinados limites de defesa política e ideológica.

3.

Quando terminei minha tese, porém, tinha compreendido algumas ideias e questões históricas que mudaram minhas conclusões. Não em relação ao conceito geral de democracia. Mas, no que diz respeito aos seus dilemas. Entendi que há um princípio balizar da democracia que apresenta seus limites: sua própria sobrevivência enquanto sistema de garantias de direitos as minorias. Se este princípio estiver ameaçado por um grupo e/ou movimento, é preciso reagir a ele com todas as forças das instituições.

A democracia não apenas pode, como deve, reagir contra movimentos políticos antidemocráticos. Então, não só é legitimo proibir a organização de um partido nazista como é dever da democracia – baseada no argumento de que não pode este regime permitir a institucionalização de um aparelho que propõe destruir um dos seus pilares básicos: o direito da minoria.

Então, qualquer ação que tenha por objetivo a supressão através da força de movimentos de minoria, deve ser condenada pelas instituições democráticas e punida de modo que não possa existir ou ter condições para manifestar esses ideais. Portanto, só há uma lei que obriga a democracia restringir direitos: quando está diante de movimentos políticos totalitários.

Cito os bacharéis do parlamento brasileiro porque eles entendem muito bem do primeiro pilar da construção democrática (os direitos e garantias a respeito das deliberações), mas pouco do segundo (a defesa e a garantia dos direitos fundamentais coletivos) que obriga a democracia reagir em relação aos antidemocráticos.

Para os juristas que tem se manifestado na opinião pública brasileira da atualidade, democracia não é muito mais que o respeito ao devido processo legal. Não poderia ser diferente ao que diz uma especificidade da ciência jurídica. Mas, o rito processual é algo específico que não determina os elementos centrais da história política de um país.

4.

Veja o que está em questão no Brasil hoje: não é apenas o julgamento de um golpe contra um governo. Mas, a concepção por detrás desse grupo que não reconhece o direito do outro de existência e de manifestação política. Que a maioria parlamentar define tudo. Para os bolsonaristas, o direito da maioria é a democracia. Vence, tem maioria, se permite suprimir a minoria.

O bolsonarismo não é apenas um regime autoritário, é uma proposta de hegemonia política baseada na opressão das forças que a fazem oposição. Destruir o contraditório como propõem é destitui a democracia. Hoje isso se aplica a política. Num futuro próximo pode se aplicar a religião também… e assim pode seguir de esfera em esfera de valor. Portanto, quando falamos do bolsonarismo, (que agem contra as instituições e se valem do direito da maioria para oprimir a minoria), ou as instituições democráticas agem com rigor, ou a democracia está acabada.

Nenhum regime autoritário, ditatorial, opressor começa com uma defesa fundada nos valores da ditadura. Todos defendem alguma ideia de democracia. Ou sua própria ideia de democracia. Mas, na prática, exercitam a ditadura da maioria ou constroem subterfúgios dentro das instituições para tornar suas decisões majoritárias e oprimir grupos menores. Para ser tornar uma ditadura é preciso parecer ser democrático.

Pode ser que as ditaduras tenham, em algum momento a maioria dos votos. Pode ser que em outros momentos, excluam parte dos eleitores para ter a maioria dos votos. Em um ou em outro caso, são ditaduras da mesma forma. Nascem da defesa de valores consagrados.

O fato da oposição no Brasil hoje ter a maioria dos votos no Parlamento para aprovar a anistia, não quer dizer que esta seja uma deliberação legal e de acordo com as regras da democracia. É apenas um disfarce de legalidade. Sabemos que isso pode confrontar o Legislativo com o Judiciário em uma grande crise institucional. Nesses casos, o judiciário (que não tem votos nem base popular) costuma retroceder.

Finalmente, que fique claro: não haverá democracia se aprovada a anistia. Não é uma ação democrática ou sequer legal. Aprovar a anistia é um ato contrário a própria sobrevivência da democracia. Essa anistia é um salvo-conduto ao aprisionamento da democracia pelas forças autoritárias. Em primeiro lugar, parece que está na esfera da legalidade é um indicio da sua maledicência. Porque parece seguir os trâmites legais, mas os segue no sentido de aprisionar as instituições, não defendê-las.

Aprovar uma emenda de anistia é o mesmo que permitir que os setores antidemocráticos sejam alimentados para que, em seguida, tomem as rédeas do governo para reivindicarem como majoritários para conduzam a maioria à ditadura. É a asfixia do regime: impedindo-o de reagir contra aqueles que querem sua morte. É a ingenuidade de supor que a proposta destrutiva de autocratas possa limitar-se a respeitar algum princípio. Condenar os golpistas não é apenas uma defesa de uma concepção de mundo ou uma defesa de ideais. É a democracia se manifestando e atuando segundo a lei da autopreservação.

Luís Fernando Vitagliano é doutor em “Mudança social e participação política” pela EACH-USP. Autor, com Marcio Pochmann, do livro O atraso do futuro e o “homem cordial” (Hucitec).

A burla como resistência e como sintoma na educação paulista, por Fernando Cássio

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‘Ataque hacker’ de alunos às plataformas digitais deve ser analisado sem moralismo ou contemporizações; criou-se o ‘ensino a distância presencial’

Fernando Cássio, Professor da Faculdade de Educação da USP, integra a Rede Escola Pública e Universidade (Repu) e o comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Folha de São Paulo, 10/09/2025

O  editorial “Tecnologia no ensino de SP exige cuidados” (4/9) sugeriu que os alunos da rede estadual de São Paulo teriam desferido um “ataque hacker” contra as plataformas digitais que hoje centralizam toda a sua vida escolar.

A terminologia usada é imprópria, pois ataques organizados a computadores almejam o cometimento de crimes. Já o emprego de scripts para cumprir tarefas em plataformas, após login dos próprios alunos, é uma forma orgânica de resistência ao tecnossolucionismo que transformou a educação pública paulista em um paradoxal “ensino a distância presencial”.

Quando apenas o tempo de uso das plataformas era monitorado pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, os estudantes simplesmente colavam ou respondiam às tarefas com caracteres aleatórios. Agora, com o cumprimento das tarefas sendo monitorado com base nos “acertos” (ignorando o erro, ponto de partida para o aprendizado), os scripts são chamados para o trabalho.

Os alunos mais habilidosos nos aplicativos usam o conhecimento a seu favor, vendendo aos colegas um “serviço” de preenchimento de plataformas. Isso deve orgulhar o governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), que esvaziou o currículo científico do ensino médio para enxertar aulas de empreendedorismo juvenil.

Se uma ferramenta pedagógica se afasta dos processos de ensino e aprendizagem e torna-se um fim em si mesma, os alunos a tratarão de forma burocrática e acharão formas de abreviar o tédio e as pressões.

Reconhecer que o uso de tecnologias na escola é inevitável (uma obviedade!) não pode levar à afirmação condescendente, feita pelo editorial, de que as “novas políticas nesse campo decerto precisam de algum tempo para mostrar resultados”. Na educação, processo e resultado são inseparáveis.

Ademais, a dicotomia insinuada entre entusiastas “do uso de ferramentas digitais em variados campos do ecossistema pedagógico” (é este o rótulo dado pela Folha ao secretário Renato Feder) e os que defenderiam simplesmente abolir as ferramentas digitais das escolas distrai o debate público e alivia para o governo Tarcísio.

Não se pode esquecer que o entusiasmo de Feder com as plataformas deriva de seu próprio papel como agente econômico interessado na digitalização do ensino público. Nem que a ideia de “ecossistema pedagógico” pressupõe o reconhecimento das relações objetivas das pessoas com o mundo e também intersubjetivas; logo, não admite uma rotina escolar restrita ao uso de apps, que —como mostrou um estudo recente para o caso paulista— não melhorou a aprendizagem.

Sem um compromisso real do Estado com uma formação sólida para as juventudes, toda plataforma digital é quinquilharia pedagógica fadada à obsolescência.

Sintoma do fracasso de uma política que precisa mudar, a burla generalizada às plataformas não pode ser encarada com moralismo. Cientes de que a “EaD presencial” está piorando a sua aprendizagem, os alunos estão ensinando à cúpula da secretaria que a tecnologia educacional não existe em abstrato, sem escolas e sem sujeitos.

Pedir paciência àqueles que testemunham a obliteração da escola pública que os está formando soa como ofensa.

PIX, novo pretexto para golpear o Banco Central, por Paulo Kliass

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Projeto que busca subordinar ainda mais BC aos rentistas inclui agora dispositivo que supostamente protege a gratuidade do sistema de pagamentos. Direita tenta manipular bandeira da soberania e deturpa debate: mudança deixaria PIX exposto à pressões do financismo.

Paulo Kliass – OUTRAS PALAVRAS – 19/08/2025

O tema da independência do Banco Central (BC) é recorrente entre os defensores do financismo e da agenda neoliberal para o Brasil e para o mundo. Desde há muito tempo que esse pessoal da elite do sistema financeiro insiste na lengalenga de que a economia é assunto muito sério para ser deixado nas mãos dos políticos eleitos, pouco importando a legitimidade conferida a eles pela população nas urnas. Assim, o mesmo raciocínio vale para duas dentre as principais dimensões da política econômica, quais sejam a política monetária e a política cambial. E ambas são da competência do BC de acordo com nossa tradição legal e institucional.

Aos olhos do povo da finança, pouco importa que o BC tenha sido criado em 1964 logo depois do golpe militar de 1de abril, por meio da Lei n® 4595. Ele foi constituído a partir de extinção da antiga Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC) do Banco do Brasil (BB) e tomou a forma jurídica de uma autarquia vinculada ao governo federal. Assim, o BC já nasce com um certo grau de autonomia, uma vez que os membros de sua diretoria deveriam ser indicados pelo Presidente da República, mas a efetivação dependia de aprovação pelo Conselho Monetário Nacional. O modelo atravessou décadas e foi mesmo incorporado pela Constituição de 1988, com a novidade de que os membros da diretoria do BC deveriam ser aprovados pelo Senado Federal antes da nomeação pelo Presidente da República.

Apesar do livre trânsito que sempre foi exercido pelos representantes do financismo sobre a direção do BC, o fato é que essa turma nunca se deu por satisfeita. Queriam porque queriam aprofundar ainda mais a autonomia do órgão, buscando uma quase independência em relação à institucionalidade da dinâmica político-eleitoral que se seguiu à democratização no período posterior ao fim da ditadura militar. A oportunidade surgiu em 2021, durante o mandato de Bolsonaro e o poder exercido pelo superministro da Economia, Paulo Guedes. A partir de um projeto enviado pelo Poder Executivo, o Congresso Nacional aprovou a Lei Complementar n® 179, onde foi estabelecido o mandato fixo para os diretores do órgão. Assim, por exemplo, Lula tomou posse em janeiro de 2023 com a presença de todos os 9 integrantes do colegiado indicados ainda na gestão bolsonarista. A substituição dos mesmos foi feita de forma paulatina e apenas dois anos depois é que o Presidente da República eleito pela maioria da população conseguiu indicar o dirigente máximo do BC e compor a maioria de sua diretoria.

Financismo quer independência completa do BC

Ocorre que nem mesmo assim o financismo satisfez seu apetite. Em novembro de 2023, ainda com Roberto Campos Neto (RCN) exercendo a presidência do BC, foi articulada a apresentação de um projeto bastante polêmico no interior do legislativo, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n® 65. O texto protocolado de forma coletiva por 42 senadores, em um espectro que vai do PSB ao PL, terminou por unir parlamentares protagonizados pela extrema direita com apoio mesmo de alguns progressistas. A proposição recebeu logo de início o apoio entusiasmado de RCN e da diretoria do banco.

No entanto, a reação da maioria do sistema político não foi lá muito favorável à proposta apresentada. Com a substituição de Gabriel Galípolo para o cargo de Presidente do BC no início de 2025, o movimento de apoio à medida sofreu um recuo estratégico. Apesar disso, o relator na medida na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) no Senado Federal não colocou nenhum freio definitivo em suas articulações. O Senador Plínio Valério (PSDB/AM) parecia ganhar tempo e aguardar uma conjuntura mais favorável para avançar com seu Relatório. Apesar da importância e sensibilidade da matéria, foi realizada apenas uma audiência pública a esse respeito, muito longe do debate necessário. Afinal as mudanças sugeridas implicam na transformação do estatuto jurídico do BC, que deixaria a condição de autarquia federal para se converter em uma empresa pública.

Com isso, os valores orçamentários do órgão seriam retirados do Orçamento Geral da União e passariam a fazer parte da contabilidade de uma empresa que se rege por regras e parâmetros externos à administração direta. Os valores trilionários do Balanço do BC, por exemplo, passariam a ser operados pela direção do órgão sem nenhum controle efetivo por parte do governo ou da sociedade. Assim, por exemplo, a contabilidade do BC demonstra que seu ativo patrimonial é superior a R$ 4 trilhões em julho de 2025. No exercício de 2024, por outro lado, foi registrado um lucro contábil de R$ 270 bilhões. Como ficaria a distribuição deste valor puramente fictício caso o banco fosse atualmente uma empresa pública?

PEC 65: golpe na democracia

Outro detalhe malandro da proposição refere-se aos mecanismos de controle das contas e das atividades do BC no modelo proposto na PEC. O texto menciona genericamente a responsabilidade do Congresso Nacional para se ocupar de tais funções. O modelo ficaria completamente fora de qualquer controle efetivo:

(…) “I – a autonomia de gestão administrativa, contábil, orçamentária, financeira, operacional e patrimonial, sob supervisão do Congresso Nacional;

II – a ausência de vinculação a Ministério ou a qualquer órgão da Administração Pública e de tutela ou subordinação hierárquica.” (…) [GN]

Mais recentemente, na dinâmica política mais geral entrou em cena o debate a respeito do PIX, a partir das sanções impostas pelo presidente estadunidense. Dentre as inúmeras aberrações e agressões adotadas ou ameaçadas por Trump contra o governo e a sociedade brasileiras consta a reclamação de que o modelo inovador brasileiro estaria prejudicando empresas financeiras dos Estados Unidos. A partir dos procedimentos verificados na “investigação da seção 301 sobre Práticas Comerciais Desleais no Brasil, a intenção da equipe de Trump é defender as empresas daquele País e atacar o que considera práticas desleais de nosso País:

(…) “O Brasil também parece se envolver em uma série de práticas desleais com relação a serviços de pagamento eletrônico, incluindo, entre outras, a vantagem de seus serviços de pagamento eletrônico desenvolvidos pelo governo” (…) [GN]

Golpe do PIX: cortina de fumaça

A oportunidade do faro político falou mais alto. Assim, o Relator decidiu incluir em seu Parecer um dispositivo assegurando que o modelo do PIX não poderia ser objeto de negociação nem transferido pelo BC, além de estabelecer sua gratuidade para pessoas físicas. O texto adicionado é o seguinte:

(…) “Art. 9º Compete exclusivamente ao Banco Central a regulação e operação do arranjo de pagamentos de varejo PIX e da correspondente infraestrutura do mercado financeiro, sendo vedadas sua concessão, permissão, cessão de uso, alienação ou, por qualquer título, transferência a outro ente, público ou privado, observados os seguintes princípios:

I – gratuidade de seu uso por pessoas físicas;

II – acesso não discriminatório aos serviços e à infraestrutura necessária ao seu funcionamento;

III – eficiência, contabilidade e qualidade dos serviços; e

IV -segurança em sua utilização, inclusive quanto à prevenção e combate a fraudes.” (…) [GN]

O detalhe é que o argumento a ser utilizado pelos defensores da banca no Senado para recuperar o apoio à PEC 65 passará a contar, a partir de agora, com a boa receptividade que a sociedade manifesta quanto ao PIX. Sem dúvida alguma a medida propiciou a ampliação do acesso ao sistema bancário por setores e grupos sociais até então marginalizados. Além disso, a natureza gratuita do serviço destoa da grande maioria daquilo que os bancos oferecem a seus clientes. Exatamente por isso, a maioria da população apoia e é simpática ao PIX. Caberá às forças progressistas impedir que esse método de enganação progrida sem o necessário debate esclarecedor.

Na verdade, a defesa da soberania nacional e a criação de obstáculos para que o PIX entre em alguma negociação com o governo estadunidense não precisa de alteração constitucional. Bastaria um compromisso explícito do governo ou uma Medida Provisória tratando do tema. A intenção do Senador Plínio Valério vai na direção oposta: ele espertamente pretende pegar carona em um jabuti popular que ele mesmo introduziu em seu Relatório para criar uma cortina de fumaça e escapar do debate dos malefícios generalizados que caracterizam a PEC 65 – a independência completa e absoluta do BC.

Morte por desespero

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Vivemos momentos de grandes inquietações na sociedade internacional, modelos econômicos perdem espaço no cenário global, transformações frenéticas no mundo do trabalho, um sólido e consistente desenvolvimento tecnológico que traz grandes ganhos de produtividade da economia mundial e, ao mesmo tempo, percebemos o incremento de guerras crescentes em todas as regiões do mundo, levando especialistas a afirmarem que estamos nos aproximando de um conflito militar, com grande potencial destrutivo da sociedade internacional.

Nesta sociedade, percebemos problemas prementes de desigualdades variadas e crescentes em todas as nações do mundo, países que eram vistos pelo sólido ambiente de bem-estar social e um forte desenvolvimento econômico, baixa desigualdade e variadas oportunidades para todos os grupos sociais, estão sentindo na pele o crescimento das desigualdades, com o incremento da pobreza, da violência e da desesperança, deixando características mais evidentes da comunidade internacional.

Em pleno século XXI, numa sociedade global altamente tecnológica, integrada e interdependente, percebemos novas formas de morte, onde os indivíduos estão perdendo a vida por desespero, uma situação que aparece fortemente nos Estados Unidos da América, como destacou o renomado economista e ganhador do Prêmio Nobel de Economia, Angus Deaton. Segundo o autor, estamos vivendo as mortes por desespero, motivados pelo consumo crescente de overdoses de opiáceos, depressão, suicídio, mortes associadas ao álcool… que vitimam mais de 150 mil pessoas ao ano. Segundo Deaton, no livro Mortes por desespero e o futuro do capitalismo retrata, neste sentido, a queda do sonho americano, o fracasso do capitalismo americano em proporcionar bem-estar a muitos.

Percebemos, desde os anos 1980, o crescimento da desigualdade da renda na maior economia mundial. Os Estados Unidos se transformaram na maior economia do mundo depois do pós-segunda guerra mundial, seus números de crescimento econômico e a melhora substancial das condições de vida da população eram palpáveis, sua democracia era vista como um exemplo a ser seguido por todas as regiões do globo, suas empresas eram as mais pujantes e seu sistema produtivo era o mais eficiente mas, nos últimos anos, essa locomotiva perdeu sua força, a renda se concentrou de forma acelerada, o 0,1% da população concentra mais de 20% da riqueza nacional, o 1% mais alto controla mais de 40% e a metade da população estadunidense tem um ativo líquido negativo, o que significa que as dívidas superam os ativos, neste cenário, percebemos uma estagnação da renda dos trabalhadores no período neoliberal, estimulando raivas, rancores, violências e ressentimentos. De um mundo de oportunidades, riquezas e pujança econômica e produtiva estamos vislumbrando uma estagnação e o incremento da desesperança, tudo isso contribui para o crescimento das chamadas mortes de desesperos.

Neste cenário, a expectativa de vida nos EUA, que vinha aumentando de forma sistemática ao longo do século XX, estagnou e, em seguida, caiu nos últimos anos, queda de 78,9 anos para 78,6 anos entre 2014 e 2016, um fenômeno descrito como uma especificidade norte-americano, uma sociedade marcada pela competição, pelo individualismo, pelo imediatismo e cujo foco fundamental está sempre no lucro, no culto das armas e do ganho monetário. Neste ambiente de grandes transformações estruturais da geopolítica global, precisamos construir as nossas aspirações, deixando de lado tutelas externas e construir nossa história, respeitando nossa trajetória e consolidando valores esquecidos da sociedade contemporânea.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

“O fenômeno das ‘mortes por desespero’ parece ser uma característica específica estadunidense”. Entrevista com Noam Chomsky

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Instituto Humanitas Unisinos – 28/08/2019

A vida nos Estados Unidos – o país mais rico da história mundial – não tem motivo para ser assim. As intermináveis guerras, mortes por desespero, taxas de mortalidade em aumento e violência armada fora de controle deste país não surgiram do nada.

Nesta transcrição exclusiva emitida por Alternative Radio, o intelectual público Noam Chomsky aborda as raízes da cultura das armas, o militarismo, a estagnação econômica e a crescente desigualdade nos Estados Unidos.

A entrevista é de David Barsamian Truthout, publicada por El Salto, 23-08-2019. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Você conecta, em algum momento, a violência exterior dos Estados Unidos com o que está ocorrendo internamente com todos os tiroteios e matanças?

Os Estados Unidos são um país muito estranho. Do ponto de vista de sua infraestrutura, os Estados Unidos muitas vezes parecem um país do “Terceiro Mundo”… Não para todo mundo, claro. Há pessoas que dizem: “Bom, vale, irei em meu jato ou helicóptero particular”. Caminhe por qualquer cidade estadunidense. Estão caindo aos pedaços. A Sociedade Estadunidense de Engenheiros Civis confere aos Estados Unidos, periodicamente, um D – o ranking mais baixo – em infraestrutura.

Este é o país mais rico da história mundial. Possui enormes recursos. Tem vantagens que são simplesmente incomparáveis, recursos agrícolas, recursos minerais, um território enorme, homogêneo. Você pode voar 3.000 milhas [4.800 km] e pensar que está no mesmo lugar onde começou. Não há nada parecido em todo o mundo. De fato, há êxitos, como boa parte da economia de alta tecnologia, substancialmente baseada no Governo, mas real.

Por outro lado, é o único país no mundo desenvolvido em que a mortalidade, de fato, está aumentando. Isso é algo simplesmente desconhecido nas sociedades desenvolvidas. Nos últimos anos, a expectativa de vida caiu nos Estados Unidos. Há estudos de dois importantes economistas, Anne Case e Angus Deaton, que analisaram meticulosamente os números de mortalidade.

Resulta que no grupo de idade aproximadamente entre 25 e 50, o grupo de idade trabalhista dos brancos, a classe trabalhadora branca, há um aumento das mortes, o que chamam de “mortes por desespero”: suicídio, overdoses por opiáceos, etc. Estima-se cerca de 150.000 mortes ao ano. Não é algo trivial. O motivo, geralmente assumido, é a estagnação econômica, desde Reagan. De fato, este é o grupo que entrou no mercado de trabalho por volta do início dos anos 1980, quando os programas neoliberais começaram a ser instituídos.

Isto levou a um enfraquecimento do crescimento. O crescimento não é o que era antes. Há crescimento, mas altamente concentrado. A riqueza se tornou extremamente concentrada. Agora, segundo os últimos números, o 0,1% da população concentra 20% da riqueza nacional; o 1% mais alto controla aproximadamente 40%. A metade da população tem um ativo líquido negativo, o que significa que as dívidas superam os ativos. Em geral, houve estagnação em mão de obra durante todo o período neoliberal.

Esse é o grupo do qual estamos falando. Naturalmente, isto leva à raiva, ao ressentimento e desespero. Coisas parecidas estão acontecendo na Europa sob os programas de austeridade. Esse é o contexto que falaciosamente é chamado de “populismo”. Mas, nos Estados Unidos, é bastante surpreendente. O fenômeno das “mortes por desespero” parece ser uma característica específica estadunidense, sem igual em outros países.

Lembre-se, não há país no mundo que tenha algo como as vantagens dos Estados Unidos em relação à riqueza, poder e recursos. É um comentário impactante. Constantemente, se lê que a taxa de desemprego atingiu um nível maravilhoso, apenas 3% de desempregados. Mas, isso é bastante enganoso. Quando se utiliza as estatísticas do Departamento de Trabalho, resulta que a taxa de desemprego real está acima de 7%.

Quando se leva em conta o grande número de pessoas que simplesmente saíram do mercado de trabalho, a participação da mão de obra está consideravelmente abaixo do que estava cerca de 20-30 anos atrás. Há bons estudos de economistas sobre isso. Tem-se aproximadamente uma taxa de desemprego de 7,5% e estagnação dos salários reais, que apenas se movimentaram. Desde o ano 2000, houve um firme descenso na riqueza familiar média. Como disse, para cerca da metade da população, agora é negativo.

Em termos de armas, os Estados Unidos são um caso atípico. Temos 4% da população mundial com 40% das armas do planeta.

Há uma história interessante sobre isso, muito bem estudada. Há um livro recente de Pamela Haag chamado The Gunning of America: Business and the Making of American Gun Culture [O tiroteio dos Estados Unidos: negócios e a criação da cultura das armas estadunidenses]. É uma análise muito interessante. O que mostra é que, após a Guerra Civil, os fabricantes de armas realmente não tinham muito mercado. O mercado do Governo dos Estados Unidos havia caído, é claro, e os governos estrangeiros não eram um grande mercado. Era, então, uma sociedade agrícola, de finais do século XIX. Os fazendeiros tinham armas, mas eram como ferramentas, nada especial. Possuía-se uma boa e antiquada arma. Era suficiente para espantar os lobos. Não queriam as sofisticadas armas que os fabricantes de armas estavam produzindo.

Desse modo, o que ocorreu foi a primeira campanha de publicidade importante e enorme que foi uma espécie de modelo para outras posteriormente. Realizou-se uma enorme campanha para tentar criar uma cultura de armas. Inventaram um Oeste Selvagem, que nunca existiu, com o valente sheriff sacando a arma mais rápido que todo mundo e toda essa insensatez que existe nos filmes de cowboys.

Tudo foi inventado. Nada disso jamais ocorreu. Os cowboys eram algo assim como a escória da sociedade, gente que não podia conseguir um trabalho em outro lugar. Eram contratados para conduzir algumas vacas. Mas, passou a existir essa imagem do Oeste Selvagem e os grandes heróis. Junto a isso, vieram os anúncios, dizendo algo como: ‘Se seu filho não tem um rifle Winchester, não é um homem de verdade. Se sua filha não tem uma pequena pistola rosa, nunca será feliz’.

Foi um êxito tremendo. Suponho que foi um modelo para mais tarde, quando as empresas de tabaco desenvolveram o “homem Marlboro” e todo este tipo de negócio. Era fins do século XIX, inícios do século XX, o período em que se estava começando a desenvolver a enorme indústria de relações públicas. Foi tratado de forma brilhante por Thorstein Veblen, o grande economista político, que destacou que nessa fase da economia capitalista era necessário fabricar necessidades porque, caso contrário, não seria possível manter a economia que geraria grandes níveis de lucro. A propaganda das armas foi provavelmente o começo.

Na continuidade, avançando até o período recente de 2008, a decisão Heller da Suprema Corte. O que chamavam direitos da Segunda Emenda se converteram em uma escritura sagrada. São os mais importantes direitos que existem, nosso sagrado direito de portar armas, estabelecido pela Suprema Corte, revogando um século de precedentes.

Lance um olhar na Segunda Emenda. Diz: “Sendo necessária uma Milícia bem organizada para a segurança de um Estado livre, o direito do povo de possuir e portar armas não será infringido”. Até 2008, isso era interpretado basicamente da forma como se lê. O sentido de portar armas era manter uma milícia. Scalia [ex-juiz da Suprema Corte], em sua decisão de 2008, fez uma guinada. Era um acadêmico muito bom. Supõe-se que era um ‘originalista’. Prestava atenção nas intenções dos fundadores. Quando se lê a decisão, é interessante. Há todos os tipos de referências para ocultar documentos do século XVII.

Surpreendentemente, não menciona nenhuma vez os motivos pelos quais os fundadores queriam que as pessoas portassem armas, que não estão ocultos. Um motivo era que os britânicos viriam. Os britânicos eram o grande inimigo, naquele momento. Eram do Estado mais poderoso do mundo. Os Estados Unidos tinham apenas um exército permanente. Se os britânicos retornassem, o que de fato fizeram, era preciso ter milícias para o combate. Desse modo, tínhamos que ter milícias bem organizadas.

O segundo motivo era que se tratava de uma sociedade escravista. Este era um período em que ocorriam rebeliões de escravos por todo o Caribe. A escravidão estava crescendo enormemente após a revolução. Havia profunda preocupação. Muitas vezes, os escravos negros superaram em número os brancos. Era preciso ter milícias bem armadas para mantê-los sob controle.

Ainda havia outra razão. Os Estados Unidos são talvez um dos raros países da história que virtualmente estiveram em guerra todos os anos, desde a sua fundação. É possível se deparar apenas com um ano em que os Estados Unidos não estiveram em guerra.

Quando se olha para a Revolução Estadunidense, a história dos livros de texto é “tributação, sem representação”, que não é falsa, mas está longe da história completa. Dois dos principais fatores na revolução foram que os britânicos estavam impondo uma restrição ao assentamento para além das montanhas Apalaches, que chamavam “país indiano”. Os britânicos estavam bloqueando isto. Os colonos queriam se expandir para o oeste. Não só pessoas que queriam terra, mas também grandes especuladores de terra, como George Washington, queriam ir para as zonas do oeste. “Do oeste” significava para além das montanhas. Os britânicos estavam bloqueando [essa possibilidade]. Ao final da guerra, os colonos puderam se expandir.

O outro fator era a escravidão. Em 1772, houve uma sentença muito importante e famosa de um importante jurista britânico, Lord Mansfield, de que a escravidão é tão “odiosa” que não era possível tolerar na Grã-Bretanha. As colônias estadunidenses eram essencialmente parte da Grã-Bretanha. Era uma sociedade escravista. Puderam ver os dias contados. Se os Estados Unidos permanecessem dentro do sistema britânico, seria uma ameaça real à escravidão. Isto terminou com a revolução.

Mas isto significava, voltando às armas, que eram necessárias para manter os britânicos na linha, que eram necessárias para controlar os escravos, para manter índios. Se você vai atacar as nações indígenas – eram nações, é claro –, vai atacar muitas nações ao oeste do país, terá que ter armas e milícias. Em última instância, se substituiu mais tarde por um exército permanente.

Mas veja os motivos pelos quais, para os fundadores, era preciso ter armas. Nenhum só se aplica no século XXI. Isto está completamente ausente não só da decisão de Scalia, como também do debate legal sobre isso. Há uma literatura legal que debate a decisão Heller, mas quase tudo é sobre a questão técnica de se a Segunda Emenda é um direito de milícia ou um direito individual. A redação da emenda é um pouco ambígua, desse modo, é possível debater sobre isso, mas é completamente irrelevante. A Segunda Emenda é totalmente irrelevante para o mundo moderno: não tem nada a ver com ele. Mas se converteu em escritura sagrada.

Então, existe esta enorme campanha de propaganda. Quando eu era uma criança, me atingiu. Wyatt Earp, armas, “matar índios”, tudo isso. Está estendida por todo o mundo. Na França, amam os filmes de cowboys. Um retrato do Oeste totalmente fabricado, mas teve muito êxito em criar uma cultura de armas. Sendo assim, sim, todo mundo deve ter uma arma…

Fala sobre a Primeira Emenda, a liberdade de imprensa e o jornalismo, um ofício que recebeu ataques do autodenominado “gênio extremamente estável”, na Casa Branca, como “o inimigo do povo”. Fala sobre isto e também sobre o caso Assange.

A Primeira Emenda é uma importante contribuição da democracia estadunidense. A Primeira Emenda, na realidade, não garante o direito à livre expressão. O que diz é que o Estado não pode tomar ação preventiva para impedir a expressão. Não diz que não possa puni-la. Sendo assim, sob a Primeira Emenda, literalmente, você pode ser punido por coisas que diz. Não impede isso.

Foi, não obstante, um avanço no ambiente da época, em que os Estados Unidos avançaram de muitas maneiras. Com todos os seus defeitos, a Revolução Estadunidense foi progressista em muitos aspectos para os padrões do momento, inclusive a frase: “Nós, o povo”. Deixando de lado os defeitos na implementação, a ideia em si foi um avanço. A Primeira Emenda foi um avanço.

No entanto, não foi realmente até o século XX que os temas da Primeira Emenda passaram à agenda, primeiro com as opiniões dissidentes de Oliver Wendell Holmes e Louis Brandeis [ambos juízes da Suprema Corte], em casos por volta da Primeira Guerra Mundial, um pouco depois. Vale a pena olhar como eram estreitos estes dissidentes. A primeira coisa importante, no caso Schenck de 1917, foi um caso de alguém que publicou um panfleto descrevendo a guerra como uma guerra imperialista e dizendo que não se deveria participar dela. O apoio à liberdade de expressão sob a Primeira Emenda era muito limitado, assim como a discrepância e, depois, o apoio à punição por parte de Holmes demonstrou isso. O caso foi todo um escândalo, mas inclusive Holmes aceitou.

De fato, os verdadeiros passos para o estabelecimento de uma forte proteção da liberdade de expressão foram, na realidade, nos anos 1960. Um caso importante foi Times v. Sullivan. O Estado do Alabama havia reivindicado o que se chama imunidade soberana, no qual não se pode atacar o Estado com palavras. Esse é um princípio que se mantém na maioria dos países: Grã-Bretanha, Canadá, outros. Houve um anúncio publicado pelo movimento de direitos civis, que denunciava a polícia de Montgomery (Alabama) por atividades racistas, e entraram com uma ação para o impedir. A questão foi à Suprema Corte. O anúncio estava no The New York Times. Por isso, se chama Times v. Sullivan. A Suprema Corte, pela primeira vez, basicamente, derrubou a doutrina da imunidade soberana. Disse que se pode atacar o Estado com palavras. É claro, já havia ocorrido, mas, agora, tornou-se legal.

Houve uma decisão mais forte alguns anos depois: Brandenburg v. Ohio, em 1969, em que a Corte determinou que a expressão deveria ser livre até a participação em uma ação criminosa iminente. Assim, por exemplo, se você e eu entramos em uma loja com a intenção de roubar, e você tem uma arma e eu digo “dispara”, isso não está resguardado. Mas, basicamente, essa é a doutrina. É uma proteção muito forte da liberdade de expressão. Não há nada parecido em lugar algum, pelo que eu sei.

Na prática, os Estados Unidos não têm um histórico estelar, mas um dos melhores (talvez, inclusive, o melhor histórico) é na proteção da liberdade de expressão e a liberdade de imprensa. Isso está, com efeito, sendo atacado quando se denuncia a imprensa como a “inimiga do povo” e se organiza sua fanática base de apoio para atacar a imprensa. Essa é uma séria ameaça.

E Julian Assange?

A verdadeira ameaça para Assange desde o princípio, a razão pela qual se refugiou na embaixada equatoriana, era a ameaça de extradição para os Estados Unidos, agora implementada. Já foi acusado de violações da Lei de Espionagem. Teoricamente, inclusive, pode receber uma condenação à morte por isso. O crime de Assange foi expor documentos secretos que são muito embaraçosos para o poder do Estado. Um dos principais foi a exposição do vídeo de pilotos de helicópteros estadunidenses matando pessoas.

Em Bagdá.

Sim. Contudo, depois houve muitos outros, alguns deles muito interessantes. A imprensa informou sobre eles. Então, ele está realizando a responsabilidade jornalística de informar o público sobre coisas que o poder do Estado preferiria manter em sigilo.

Parece ser a essência do que deveria estar fazendo um bom jornalista.

É o que fazem os bons jornalistas. Como quando [Seymour] Hersh mostrou a história do massacre de My Lai [no Vietnã, onde o Exército dos Estados Unidos matou cerca de 400 pessoas], e quando Woodward e Bernstein mostraram os crimes de Nixon, o que se considerou muito louvável. O Times publicou fragmentos dos Papéis do Pentágono [documentos secretos sobre a participação dos Estados Unidos no Vietnã]. Sendo assim, em essência, ele está fazendo isso. Você pode questionar seu julgamento – deveria ter feito isto neste momento, deveria ter feito algo mais; pode fazer muitas críticas –, mas a história básica é que o WikiLeaks estava produzindo materiais que o poder do Estado queria suprimir, mas que o público deveria conhecer.

 

As duas faces do capitalismo, por Tadeu Valadares

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Tadeu Valadares – A Terra é Redonda – 08/09/2025

Anotações sobre soberania ameaçada, ordem mundial em transição e tarifaço trumpiano contra o Brasil e o mundo

Numa tentativa de vincular os três temas, começarei pelo círculo mais amplo: a ideia de soberania e sua relação com o capitalismo histórico. Em seguida passarei ao segundo círculo, o da ordem mundial em plena crise de transição. Só então analisarei o tarifaço de Donald Trump contra o Brasil e o mundo.

1.

Com relação à soberania, crucial sublinhar que essa noção e as práticas dela derivadas são tão antigas quanto o capitalismo histórico, ambos nascidos na Europa do século 13. Desde então, mas sobretudo a partir do século 16, a soberania se elabora e refina no âmbito do direito internacional público, sempre em constante parceria com o desenvolvimento do capitalismo, o que nada tem de circunstancial ou acidental.

De fato, essas trocas entre um modo de produção e uma concepção de mundo jurídico-política foram decisivas para que a transição do feudalismo para o protocapitalismo e daí para o capitalismo propriamente dito se haja tornado história. Bem sabemos, o capitalismo pleno só se estruturou no plano político com as revoluções burguesas do século 18, a americana e a francesa. No plano econômico, com a primeira revolução industrial, ocorrida na virada do 18 para o 19.

O capitalismo obviamente assumiu várias encarnações desde o século 16. O mesmo ocorreu com a noção, ideia ou conceito de soberania, assim como as práticas estatais e sociais derivadas. O leque dessas transformações internas ao registro jurídico-político da soberania pode ser concebido de maneira simplificada como se originando no absolutismo de Bodin e Hobbes, passando pelo democratismo de Rousseau e desaguando nas sofisticadas formulações de direito internacional público construídas desde o término da segunda guerra mundial.

Hoje, o capitalismo é mundial, dominante, bifronte. Capitalismo com duas faces. Uma delas, a que remete à predominância das finanças, isto é, ao capitalismo financeiro ‘ocidental’ às voltas com graves problemas de reprodução e expansão. A outra emerge como poderoso capitalismo de estado centrado na dimensão produtiva, na produção de mercadorias tangíveis, regime não apenas ou maiormente fixado nas finanças, na financeirização, na criação do que é intangível. Esse dinâmico capitalismo de estado também atende pelo simpático nome de ‘socialismo à maneira chinesa’.

Grosso modo, sua trajetória, em especial desde o início do século, é simplesmente espetacular. Não há memória de que algo similar haja acontecido desde quando o capitalismo se tornou mundo. Mencionar a espetacularidade da ascensão chinesa é sublinhar que vivemos todos, em termos de ordem mundial, uma época de crise que também é tempo de transição de hegemonia. Algo que tomará seu tempo longo para se completar, mas que conforma a realidade que se tornou nosso cotidiano. O que hoje é flagrante há muito está em construção, em particular se nos damos conta da trajetória da ordem criada em Bretton Woods (1944) e São Francisco (1945), de seus altos e baixos.

Essa ordem se encontra em processo de desfazimento desde mais ou menos 50 anos. Seu mais recente avatar, ele próprio uma forma de adaptação da ordem originária às mudanças ocorridas em termos planetários, é o que o Ocidente chama de ‘ordem internacional baseada em regras’. Assinalável: o período que os historiadores liberais e conservadores denominam ‘os trinta gloriosos’ é passado encerrado. Noutras palavras, desde meados dos anos 70 a variante ‘ocidental’ de capitalismo declina.

Donald Trump e o trumpismo surgem como imensa surpresa porque, desesperados com o declínio incessante, partiram para o escandaloso antes inimaginável: o criador abandonou a criatura à sua sorte. Desse abandono resulta que 2025 se tornou desde 20 de janeiro passado sinônimo de ‘annus horribilis’. Instaurou-se um tempo de prodígios no significado bíblico, diriam uns. Outros afirmariam que vivemos tempos interessantes. Interessantes no significado que essa expressão tem para os chineses. Tempos interessantes, tempos muito negativos para o Ocidente expandido.

2.

Nesse contexto, como pensar o tarifaço imposto ao Brasil? Fomos sancionados com a tarifa mais alta, 50%, mas analiticamente decisivo é destacar que o tarifaço não é contra o Brasil, é contra o mundo. Dos 192 países com os quais os Estados Unidos interagem na Assembleia Geral da ONU, dessa demonstração de autoritarismo primário apenas 8 escaparam. Não sei seus nomes. Provavelmente são microestados que se situam na periferia da periferia do sistema.

Outro dado relevante: as tarifas aplicadas a 184 estados formam uma espécie de escada com 12 degraus. Na base, a tarifa mínima, 10%. No ápice, a tarifa de 50% aplicada até agora tão somente ao Brasil e à Índia. Entre o degrau 10% e o degrau 50% há tarifas de 15%, 18%, 19%, 20%, 25%, 30%, 35%, 39%, 40% e 41%. No degrau dos 10% se amontoam 98 países, entre eles o Reino Unido, Cuba e Rússia; no degrau dos 15%, 62 padecem, 27 deles pertencentes à União Europeia; no de 19% estão apenas 5 países: Camboja, Indonésia, Malásia, Paquistão e Filipinas.

A tarifa de 20% é imposta tão somente a Bangladesh e Sri Lanka. A de 25% vale para Brunei, Cazaquistão, Moldova e Tunísia. A de 30% contempla apenas três estados: Argélia, Líbia e África do Sul. De ressaltar que essa tarifa deveria ser aplicada à China. Se concebermos a tarifa de 35% como uma espécie de divisor de águas, olhando para o alto da escada teremos o seguinte quadro: a tarifa de 35% só vale para a Sérvia; a de 39%, apenas para a Suíça; a de 40%, para Laos e Mianmar. A de 41%, para a Síria. No mais alto, a que compartilhamos com os indianos, 50%.

Lida superficialmente, essa escada proclama que Donald Trump, o trumpismo e o governo americano se puseram em conflito comercial com o mundo. Mas na verdade esse conflito não se reduz à dimensão tarifária nem é simplesmente comercial. Funciona como elemento estratégico, relevante e até mesmo decisivo como pressão geopolítica. Pesa negativamente, em grau extremo, sobre o futuro imediato da política internacional. Não deixa de ser, em sua brutalidade, uma das manifestações mais escancaradas da ‘húbris’ americana.

Assombroso: em meio a sua persistente decadência relativa, Washington se ilude e pensa ter poder suficiente para parar o grande jogo de poder planetário, o da transição de hegemonia. Pensa que pode refazer o baralho, redistribuir as cartas e dar início a uma nova era. Em sua desmedida, pretende criar enigmática ordem planetária no seio da qual exerça hegemonia absoluta, algo absolutamente contraditório porque é ordem unidimensional, pura coerção, zero consenso. Portanto, a ordem impossível é caos como projeto.

Cristalino: inviável conformá-la; impossível sustentar o projeto. No curto prazo essa ‘grande estratégia’ depende totalmente de Donald Trump fazer seu sucessor e manter o controle de ao menos uma das casas do congresso. No longo prazo, os Estados Unidos, como resultado das tensões e fraturas internas antigas, e da belicosidade tarifária e de outras ordens, ambas turbinadas pelo governo de Donald Trump, arriscam mergulharem difusa anarquia interno-externa. Crise completa.

3.

Agora sim, vejamos o que nos mostra o tarifaço de 50% a nós imposto. O gesto tresloucado ao menos sinaliza que: (a) não havia déficit comercial dos Estados Unidos conosco que pudesse servir de base para a aplicação das medidas autoritariamente adotadas; (b) Donald Trump na verdade e sem o saber nos impôs algo tipicamente russo-imperial. Baixou um ukase. Recorreu ao estilo absolutista que os Romanov empregavam para submeter povos que integravam o império tsarista; e (c) as exigências constantes da Ordem executiva e da carta a Lula são de impossível aceitação pelo Brasil. Aceitá-las nos reduziria à situação colonial que foi a nossa até 1822.

Tanto a Ordem quanto a carta são explícitas. Ambas sublinham que se o Brasil se curvar a Donald Trump estaria talvez quem sabe disposto a rever as medidas imperialmente impostas. Até o Brasil se curvar, as práticas e as ações do governo brasileiro ‘ameaçam a segurança nacional dos Estados Unidos’. Nunca havia me dado conta de quão poderosos somos.

Ambos os textos à brutalidade agregam insulto: se o Brasil se alinhar suficientemente – sublinhar o suficientemente – aos Estados Unidos no relativo a segurança nacional, assuntos econômicos e temas de política externa, Donald Trump poderá modificar sua posição. Em suma, o que Washington espera de nós é uma variante pós-moderna da servidão voluntária decifrada por Etienne de la Boétie 500 anos atrás. No desnorteamento engendrado por sua decadência, a república imperial exige sejamos voluntariamente servis.

Para completar a exposição desse delírio do ‘hegemon’ declinante, na Sessão 2, letra b, da Ordem executiva damos com grave ameaça explícita: se o governo do Brasil retaliar contra os Estados Unidos em resposta às medidas adotadas, elas serão modificadas ‘para assegurar a eficácia das ações nela contempladas’. E para que não restem dúvidas, o governo americano ainda tem o desplante de explicar tintim por tintim: ‘Por exemplo, se o Governo do Brasil retaliar, aumentando tarifas sobre exportações de produtos americanos, eu (no caso, ele, Donald Trump) aumentarei as tarifas no montante correspondente’.

4.

Diante dessa agressão ao Brasil, dessa ameaça à nossa soberania, dessa insana vontade de poder que no plano institucional e também no político-eleitoral quer impor ao executivo e ao STF um veredito que só cabe à nossa mais alta corte, o governo de coalizão vem reagindo como esperado.

No fundo, Lula sabe que no essencial a manobra americana quer incidir decisivamente nos resultados das eleições do ano que vem, aproveitando-se da fragilidade histórica que marca a democracia brasileira e do peso aumentado do extremismo neofascista desde o início da década passada. Ano que vem seremos submetidos a outro teste crucial. De seu resultado dependerá se o Brasil permanecerá ou não fragilmente democrático.

Diante do desafio lançado por Washington, o governo vem agindo bem, sabedor de que não há como negociar porque a plataforma que os Estados Unidos nos oferecem é sinônimo de absoluta sujeição. No plano bilateral estrito, refiro-me ao relacionamento Brasília-Washington, pouco ou quase nada a fazer. Mas em outros planos o governo se mostra ativo: busca aproximação com os BRICs e com outros grupos e países que, todos atacados pelos Estados Unidos, ainda que em graus variáveis, reagem desviando comércio e tudo o mais que se possa para parceiros confiáveis.

No plano interno, o governo vem conseguindo, como indica o ‘Brasil Soberano’, conferir um caráter socialdemocrata, frágil como a nossa democracia, ao esforço voltado para proteger o nível de emprego e, num primeiro momento, priorizar a pequena e a média empresa. Do ponto de vista político-eleitoral, o governo e seus apoiadores procuram mobilizar a sociedade em geral, o povo como totalidade, com vistas a eleitoralmente derrotar o antipovo nas vindouras eleições.

O essencial no curto prazo do atual ciclo eleitoral é bater nas urnas a direita neofascista e seu leque de sócios na barbárie, no atraso ou numa modernização que apenas extrai recursos da base da sociedade para seus píncaros. Essa, a direita que, no caso brasileiro, é voluntária e apaixonadamente servil a Washington.

Difícil que o governo possa ir muito além. Para se ir além, o que fazer é historicamente bem conhecido, por impossível ou improvável que seja sua concretização imediata: há que pressionar o governo nas ruas com manifestações gigantescas. Caso isso venha a ocorrer, o que começou na dimensão relativamente pequena que é a do ‘Brasil Soberano’ poderá se transmutar em algo que, séculos de distância mediante, remete à vontade geral explicitada por Jean-Jacques Rousseau: a soberania é do povo e só do povo. É intransferível ou não é soberania.

Tadeu Valadares é embaixador aposentado.

Imediatez – o estilo do capitalismo tardio demais, por Rita Von Hunty

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Rita Von Hunty – A Terra é Redonda – 01/09/2025

Prefácio à edição brasileira, recém-lançada, do livro de Anna Kornbluh.

O potencial explicativo dos conceitos

Qualquer pessoa que já tenha tentado pensar a aceleração da experiência no tempo presente ou explicar a diminuição das nossas capacidades de romper com um horizonte muito estreito de imaginação política (das nossas possibilidades) de futuro vai se beneficiar grandemente da leitura deste livro.

A tarefa de refletir o presente costuma ser árdua, ainda mais quando isso ao que chamamos “presente” parece ter sido reconfigurado em algo mais ou menos intransponível. [1] Este ensaio crítico de Anna Kornbluh merece tanto reconhecimento quanto urgência na leitura. Um de seus feitos é esquematizar, com precisão e didatismo, um quadro desse estágio de acumulação capitalista em que – a autora joga de forma bem-humorada – teríamos migrado do capitalismo tardio para o capitalismo tardio demais, ou “tarde demais”.

O jogo de palavras parece revelar, no entanto, a consolidação de uma perspectiva mais ou menos cínica [2] daqueles setores políticos que, de acordo com sua trajetória e compromisso histórico, deveriam zelar por um futuro capaz de “superar” [3] as limitações e as contradições do presentismo no qual parecemos aprisionados, em vez de se contentarem em ser os administradores oficiais das crises capitalistas e do colapso climático.

A autora opta por capturar tal perspectiva tanto nas formas artísticas do presente quanto nos traços subjetivos daqueles agentes que compõem as paisagens dos mercados de arte, bem como os circuitos de produção de conteúdo nas plataformas de streaming, o mercado editorial e a própria produção acadêmica.

A “imediatez” à qual a autora se refere carrega consigo não apenas um significado etimológico de “sem mediação” mas também um diagnóstico do estreitamento de nossas capacidades de significação das experiências. Nesta obra, a mediação assume a posição de uma categoria teórica central, e pode ser abreviadamente compreendida em três dimensões: processual, estético-cultural e político-social.

Enquanto processo, a mediação é aquilo que estrutura e relaciona elementos, permitindo sua complexificação ou síntese; é o espaço de postergação, adiamento e elaboração dos efeitos da experiência. Enquanto função estética e cultural, a mediação corresponde à transformação da experiência em signos, símbolos, narrativas, imagens etc.

Já em sua função política e social, a mediação é a própria forma por meio da qual as instituições (Estados, sindicatos, escolas) organizam a vida pública. Sem a mediação, portanto, perdemos as capacidades de nos distanciarmos dos acontecimentos, de dar a eles formas que evitem neles nossa imersão, a intensidade e a instantaneidade que se tornaram “naturais” para os modos de vida do século XXI.

O objeto de análise da autora emerge através da crítica cultural de viés materialista que relaciona fenômenos contemporâneos (por exemplo, as “exposições imersivas” de Van Goghou a performance de “presença pura” de Marina Abramović) com os novos padrões de produção, consumo e circulação de produtos e serviços artísticos (as NFTs são exemplos desconcertantes disso). Kornbluh produz uma sólida e sofisticada argumentação com um vasto referencial teórico que se estende da Antiguidade até a crítica dos movimentos “pós-críticos”. Utilizando-se do pensamento de autores como Raymond Williams e Frederic Jameson, a autora revigora tanto o impulso dialético quanto a crítica negativa para insistir que a mediação não é um obstáculo à verdade, mas seu próprio meio de produção.

Assim, esta obra nos permite relacionar infraestrutura e superestrutura de forma cristalina. Anna Kornbluh reconstrói os elos de mediação que ligam o avanço da informalidade sobre a força de trabalho global – que tem empurrado centenas de milhões de trabalhadores para a chamada gig economy e erodido múltiplas facetas do mundo do trabalho (como os direitos trabalhistas, a justiça do trabalho, as jornadas etc.) – às suas cristalizações culturais nas formas de hiperconectividade, proliferação de “autoidentidades” e multiplicação de discursos ultraindividualistas, que por sua vez podem ser novamente rastreadas nos esvaziamentos institucionais, bem como nos colapsos de modos de vida coletivos/comuns que poderiam fazer frente ao colapso ambiental.

Este é o movimento e o cenário que Anna Kornbluh busca historicizar. Extraindo das categorias materiais seu nível máximo de abstração na esfera cultural, a autora mantém vivo o que havia de melhor na tradição que nos ajudou a perceber nas formas culturais os conteúdos sócio-históricos decantados e seus possíveis desdobramentos futuros. [4]

Frente à desintegração das nossas próprias capacidades de imaginar e construir outros futuros, Anna Kornbluh nos convoca a restaurar a mediação como combate à atopia temporal que nossa clausura no presentismo trouxe consigo. Tal forma de restauração se manifesta nas artes que exigem atenção prolongada, na teoria crítica que recusa o imediatismo empático e nas formas coletivas que podem produzir transformações estruturais nas sociedades.

A recusa ética e política ao “capitalismo de imediatez” aparece como fissura no tecido discursivo da catástrofe e do colapso que tenta nos impedir de ver que, embora pareça “tarde demais”, o tempo de agir é sempre o nosso tempo de vida.

*Rita Von Hunty é ator, YouTuber e drag queen. Graduada em Letras pela Universidade de São Paulo (USP).

Anna Kornbluh. Imediatez: ou o estilo do capitalismo tardio demais. Tradução: Nélio Schneider. São Paulo, Boitempo, 272 págs.

Notas

[1] Ver François Hartog, Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo (trad. Andrea Souza de Menezes et al., Belo Horizonte, Autêntica, 2013).

[2] Sobre esta noção de um “cinismo” de esquerda, há duas obras recentemente publicadas por intelectuais brasileiros acerca da questão: Heribaldo Maia e Jones Manoel, Cinismo e a morte da esquerda brasileira. (São Paulo, Ruptura, 2025); e Vladimir Safatle, A esquerda que não teme dizer seu nome: um novo livro (São Paulo, Planeta, 2025).

[3] Faço referência ao uso marxiano de Aufheben que coaduna tanto a negação de algo quanto a conservação e elevação de outras partes do mesmo algo que fora negado.

[4] Ver Theodor W. Adorno, Aesthetic Theory (trad. Robert Hullot-Kentor,  Mineápolis, University of Minnesota Press, 1997), p. 139.

SUS faz 35 anos como marco democrático e com desafios à frente, por Luana Lisboa

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Saúde como dever do Estado só foi consolidada com a Lei 8.080, de 1990

Uma das maiores políticas públicas do país, sistema é uma construção permanente, dizem especialistas.

Luana Lisboa – Folha de São Paulo – 06/09/2025

Até 1988, a saúde não era considerada pelo Brasil como um direito básico. Foi apenas com a Constituição Cidadã, promulgada após o fim do regime militar, que tornou-se um dever do Estado, consolidado com a criação formal do SUS (Sistema Único de Saúde) com a Lei 8.080, de 1990.

Desde então, a política pública se consolidou como uma das maiores do Brasil, o maior sistema de saúde gratuito do mundo e um marco na democracia brasileira, ainda que com seus gargalos e um quadro de desafios a serem enfrentados. Como resultado, ao longo de 35 anos, o sistema alcançou o aumento da expectativa de vida no país, o maior programa de transplante de órgão do mundo e um exemplo na contenção de epidemias como a de Aids, segundo especialistas.

Para marcar a data, a Folha inicia nesta sexta-feira (5) a publicação da série SUS, 35, com cinco reportagens especiais que marcam os 35 anos do sistema público de saúde

As bases para a universalização da saúde começaram nos anos 1900, quando o presidente Rodrigues Alves designou o médico Oswaldo Cruz para organizar a saúde pública no Rio de Janeiro, então capital e centro comercial do Brasil. Teve início um movimento sanitarista para erradicar doenças infecciosas, como a febre amarela, episódio reconhecido nos livros de história pela “Revolta da Vacina”.

A criação da legislação trabalhista pelo então presidente Getúlio Vargas também ajudou a solidificar o alicerce, uma vez que, depois disso, o direito à saúde passou a estar atrelado à Previdência Social. “Fora disso, a pessoa pagava ou não tinha direito a nada”, afirma o médico Luiz Antonio Santini, professor da UFF (Universidade Federal Fluminense), autor do livro “SUS: Uma biografia” e ex-diretor do Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social), extinto em 1993.

O Inamps era o sistema responsável pela prestação de serviços de saúde à população com carteira assinada e seus dependentes. Quem não tinha acesso, ou seja, a maior parte dos brasileiros na época, era atendido por estabelecimentos filantrópicos e hospitais de caridade.

Foi durante os vindos de 1980 que a saúde tornou-se uma questão central, impulsionada pelo processo de redemocratização e pelo movimento da Reforma Sanitária. Um dos momentos-chave na luta política foi a Conferência Nacional de Saúde, de 1986, que reuniu em torno de 5.000 pessoas em Brasília e deu origem ao texto, posteriormente aprovado na Constituinte, do artigo 195 da Constituição, que estabelece a saúde como direito.

Nessa década, teve início a epidemia de Aids (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) e foi criado o Programa Nacional de DSTs (doenças sexualmente transmissíveis) e Aids pelo Ministério da Saúde, que estabeleceu também uma base para o futuro SUS. Quando criado, o sistema assumiu a coordenação da epidemia, até então regada pela desinformação, tornando posteriormente o Brasil referência no combate à doença.

A técnica de enfermagem Conceição Macedo, 82, lembra bem como era antes. Foi ela a responsável pela criação de uma organização que dava apoio a famílias e crianças soropositivas em Salvador, no início dos anos 1980.

Tudo começou quando, um dia, oferecia alimentação a um paciente no Hospital Geral Roberto Santos, referência de entidade pública na capital baiana. Ela o encontrou chorando porque a família estava sem moradia. Havia perdido a casa e tudo que tinha, comprando medicações para tratar de doenças oportunistas, ainda sem saber que tinha HIV.

Conceição prometeu visitar a família naquela noite. Encontrou seis crianças e a mãe em uma calçada e tentou alugar um quarto para hospedá-las em um casarão no Pelourinho. A mãe, no entanto, estava doente e, ao levá-la ao hospital, descobriu que era soropositiva. Depois da sua morte, Conceição passou a cuidar das crianças.

A notícia se espalhou pela cidade, e, pouco tempo depois, o quarto ficou pequeno. Ela acolhia cerca de 30 famílias debaixo de um viaduto. No hospital e mesmo na rua, passou a sofrer preconceito. Na época, não se sabia como ocorria a transmissão.

Com o tempo, passou a ter ajuda de padres de uma igreja próxima e fundou a organização ainda em funcionamento, a Instituição Assistencial Beneficente Conceição Macedo. Hoje comemora o fato de que é mais difícil crianças nascerem com o vírus e pacientes morrerem pela doença, já que a medicação é largamente disponibilizada pelo SUS.

Junto a ela, trabalhou por muito tempo o agora aposentado José Mário Conceição, 67. Paciente longínquo do sistema público, fez mais de 20 procedimentos cirúrgicos ao longo da vida após ficar tetraplégico quando era adolescente e hoje anda com a ajuda de muletas.

Desde junho deste ano, ele faz tratamento oncológico em um hospital público em Salvador, e exibe com orgulho a sua primeira carteira do SUS, obtida à época da criação do sistema: “Esse aqui é o maior plano de saúde do Brasil.”

Limitações do SUS

Se por um lado comemora-se a existência da saúde como política pública, por outro, ainda existem pontos que merecem atenção.

Posto à prova durante a pandemia da Covid, o SUS atende mais de 70% da população brasileira. A sobrecarga resulta em problemas como longos tempos de espera e dificuldade de acesso a especialistas, agravados pela escassez de recursos.

Como toda política pública, o SUS ainda é permeado pela política, e depende dos nomes eleitos para a implementação, diz o médico sanitarista Gastão Wagner, professor de saúde coletiva da Faculdade de Medicina da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

No entanto, ainda é uma das políticas públicas cuja política partidária interfere menos que as demais, avalia. “Não temos no SUS o que aconteceu no INSS agora, por exemplo. As falcatruas são pontuais e estão geralmente ligadas à terceirização”, afirma.

Para ele, seguir o planejamento público é uma forma de melhorar o sistema, o que relaciona-se ao problema de subfinanciamento já conhecido pelas gestões federais, estaduais e municipais.

“O SUS tem um financiamento deficitário, e estamos com um problema recente de que o orçamento está quase 60% ligado às emendas parlamentares, que não seguem os planejamentos e as programações municipal, federal e estadual, e isso leva o SUS a ter filas desiguais em cada região”, acrescenta.

Entre as prioridades, é preciso, por exemplo, maior dedicação à atenção primária e à área de saúde mental, questão que tem crescido nos últimos anos. “A cobertura da atenção primária, equipes de saúde família, hoje é 56%, e tem que chegar a 80%. Isso depende do orçamento, de contratação, da capacitação de profissionais de saúde depois da graduação. Ou seja, precisa de um investimento integrado e o planejamento tem que ser técnico-sanitário.”

Para os especialistas, é importante entender que o SUS não é uma obra acabada e que um de seus pilares é a participação popular.

“O SUS é uma construção permanente. O que é definitivo no SUS é a questão do direito à saúde. Agora, as mudanças para ajustar esse direito vão ser permanentes. A sociedade é dinâmica, as pessoas e as necessidades mudam, mas também as tecnologias mudam”, diz Santini.

 

 

A violência de Estado organiza o crime no Brasil, por Guilherme Pimentel

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Megaoperação não disparou um tiro nem vimos corpos pelo chão; quem lucra com o ilícito vive em bairros nobres e dispõe de ampla rede de proteção

Guilherme Pimentel, Advogado, é coordenador técnico da Rede de Atenção a Pessoas Afetadas pela Violência de Estado (Raave) e ex-ouvidor da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.

Folha de São Paulo, 05/09/2025

A maior operação contra o crime organizado da história do Brasil ocorreu em São Paulo e atingiu setores da elite econômica nacional. No mercado financeiro, estima-se que foram lavados R$ 30 bilhões do Primeiro Comando da Capital.

Sem disparar um tiro, não vimos corpos no chão nem rostos estampados nos jornais. Quem lucra com o crime vive em bairros nobres e possui uma ampla rede de proteção: dos 14 mandados de prisão, apenas 6 foram cumpridos. O diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, fala em suspeita de vazamento. Nos bastidores, especula-se que instituições estaduais tenham avisado os alvos da operação antes de ela acontecer.

A pesquisa do Latinobarómetro de 2020 sobre facções na América Latina, publicada recentemente pela Universidade de Cambridge, derruba mitos da segurança pública: o punitivismo, a guerra às drogas e a superlotação carcerária alimentam as organizações que o Estado afirma combater. A presença de facções nos territórios não decorre de abandono, mas de logística eficiente e economia pujante. Afinal, abandono não faz chegar armas e munições em lugar nenhum.

A política pública mais duradoura da nossa história é a produção de violência contra a maioria da população. O Brasil a exerce de forma direta, por agentes públicos, e indireta, fomentando um mercado criminal. Facções não nasceram nas periferias, mas em presídios, batalhões, delegacias e palácios.

O Estado, enquanto extermina a população negra e periférica, organiza a economia da violência e promove um necromercado de armas e segurança privada. A “ordem” imposta por facções é efeito da repressão oficial, uma terceirização da violência, conveniente para produzir lucros e, ao mesmo tempo, absolver o próprio Estado, simulando sua “ausência” das cenas do crime.

A violência estatal eleva os valores de corrupção e aquece o mercado de armas. Os discursos que enaltecem a letalidade policial escondem queimas de arquivo e favorecimentos a determinados grupos.

São as agências de segurança que matam ou encarceram chefes de quadrilhas, gerando substituições convenientes. A miséria fornece mão de obra descartável, sem direitos. Rachas estimulados por agentes públicos intensificam disputas e competitividade no mercado criminal. É capitalismo selvagem: trabalho barato, sem regulação ou proteção.

As raízes são históricas. Desde a colonização, o Estado se organiza como produtor sistemático de violência: do extermínio indígena e da escravidão ao encarceramento em massa e às chacinas, sem políticas de memória, verdade, justiça e reparação. Essa continuidade explica por que o Brasil lidera o ranking latino-americano de “governança criminosa”: 26% da população —cerca de 61 milhões de pessoas— vivem sob regras impostas por facções.

O modelo de gestão social armada age diretamente por agentes públicos ou terceiriza sua ação ao crime organizado. Seus lucros irrigam a indústria bélica e os próprios aparelhos estatais. Não é a ausência do Estado que gera o crime organizado, mas sua presença violenta, que preserva privilégios coloniais e transforma o sangue da população negra e pobre em recurso econômico a serviço do lucro de poucos.

Enquanto não desmontarmos essa máquina, seguiremos alimentando aquilo que fingimos combater. A dicotomia entre violência de Estado e violência criminal é falsa: combater o crime exige menos violência e mais controle nas agências de justiça e segurança, além de respeito aos direitos humanos —única forma de frear o crime e o derramamento de sangue no Brasil.

Desigualdades crescentes

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Num mundo marcado por grandes transformações estruturais, onde os modelos de negócios estão sendo alterados rapidamente, onde o mundo do trabalho se movimenta constantemente e os trabalhadores precisam se reinventar cotidianamente como forma de angariar, ou manter, um emprego decente e garantir as mínimas condições de sobrevivência.

Vivemos num país marcado por grandes desigualdades em todas as áreas e setores, marcados por uma história de explorações constantes, externa e interna, constituído como nação “independente” pelas mãos de trabalhadores escravizados, humilhados e degradados e, em contrapartida, por uma elite imediatista, individualista e entreguista, que vangloria os produtos estrangeiros, que paga fortunas para desfilar em cidades internacionais, tirando fotos para mostrar seu sucesso e se exime da sua responsabilidade diante da desigualdade crescente, apoiando a exploração de nações estrangeiras e batendo palma para aqueles que vendem a soberania nacional e acreditam serem verdadeiros patriotas e nacionalistas.

O Brasil se caracteriza por inúmeras contradições, somos vistos como uma das maiores economia do mundo, detemos setores produtivos dotados de grande tecnologia e, ao mesmo tempo, somos uma das nações mais desiguais do mundo, onde quase cinquenta milhões de pessoas não possuem saneamento básico, uma nação marcada por um educação deficiente e incapaz de preparar os cidadãos para os desafios do mundo digital e marcado por elevado desenvolvimento tecnológico, desta forma, estamos perpetuando uma desigualdade estrutural, onde os sonhos mais íntimos e pessoais se concentram na sobrevivência imediata e sem espaços sólidos para a construção de novos horizontes, desta forma, percebemos o crescimento da violência urbana, da pobreza generalizada, da corrupção crescente e o incremento de pessoas vivendo nas ruas.

Recentemente conseguimos retirar o país do mapa da fome da Organização das Nações Unidas (ONU), um feito que deveria ser elogiado e comentado pela mídia nacional e pelos formadores de opinião, mas infelizmente, muitos ignoraram o assunto para não elogiar as políticas adotadas, desta forma deixam de informar a população e mostrar as medidas que trouxeram melhoras na condição de vida da população. Para colher os frutos positivos da retirada do mapa da fome da ONU foram necessárias uma atuação maior do governo federal, a recuperação de políticas públicas degradadas anteriormente, além do crescimento econômico que ultrapassou os 3% do produto interno bruto, além da redução do desemprego e a melhora da renda dos trabalhadores.

Vivemos num país onde, em 2024, os 10% mais ricos da população brasileira detinham 39,8% da massa de rendimentos, enquanto os 70% mais pobres ficavam com 33,4%. Dados vergonhosos para um país como o nosso, dotado de grandes riquezas e forte potencial de desenvolvimento, mas exigiria uma discussão mais séria, menos falatórios, discursos inflamados e mais medidas estruturais imediatas.

Sabemos que são muitas as iniciativas necessárias e imprescindíveis, além de urgentes, para vislumbrarmos uma melhora das desigualdades estruturais da sociedade brasileira, dentre elas, precisamos alavancar a educação nacional, fortalecer a carreira docente, aumentar os investimentos em pesquisa, ciência e tecnologia, sem estas medidas vamos perpetuar nosso atraso e nossa subserviência de nações estrangeiras. Neste cenário, percebemos que estamos caminhando no sentido contrário, nossa educação vem sendo degradada cotidianamente, os professores chamados de mestres, são ridicularizados, suas condições de trabalho são péssimas e seus salários estão sendo arrochados há décadas, desta forma, estimulamos o crescimento da ignorância, da subserviência e a desesperança.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

 

 

Inspiradora maturidade democrática, por Maria Hermínia Tavares

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Julgamento põe em uso lei que dota a democracia de proteção contra seus inimigos radicais

Maria Hermínia Tavares, Professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, é pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Folha de São Paulo, 04/09/2025

Às vezes é necessário um observador externo para nos dar a exata dimensão de acontecimentos que, mesmo quando os sabemos importantes, tendemos a tratar como assunto doméstico. Disso é exemplo o texto de capa da revista britânica “The Economist” sobre o julgamento de Bolsonaro, “Brazil offers America a lesson in democratic maturity” (Brasil fornece à América uma lição de maturidade democrática), publicada na edição de 28/8.

Concorde-se ou não com a interpretação ali oferecida, a publicação em si mostra a importância internacional da responsabilização judicial de autoridades acusadas de atentar contra a ordem democrática.

De fato, em muitos países do Ocidente, o sistema representativo está sob pressão do populismo autoritário. Ali onde este se apropriou das alavancas do governo e nele foi capaz de permanecer –ou regressar pelo voto–, vem corroendo por dentro as instituições que alicerçam o sistema de liberdades. Os Estados Unidos sob Trump são o mais recente e calamitoso exemplo, pela crueza e rapidez da destruição promovida. Por isso mesmo, o que aqui se decidir terá repercussões além-fronteiras: servirá de exemplo.

Os crimes em julgamento no Supremo fazem parte de um conjunto particular de atentados à democracia: os autogolpes, ou seja, aqueles que têm por objetivo manter, pela força, o incumbente no poder. Desde 1945 há registros de perto de 50 tentativas ao redor do mundo. Dadas as muitas vantagens de quem arquiteta a permanência, são maioria os autogolpes que dão certo. Incumbentes tem mais informação, recursos políticos e, não menos importante, tropas. No Brasil republicano, fértil em quarteladas, tivemos apenas dois exemplos: um bem-sucedido e outro, agora, fracassado.

Êxito teve o autogolpe de 10 de novembro de 1937, com o qual Getúlio Vargas, com apoio militar, estabeleceu o Estado Novo e mudou para sempre a história do país, na economia e na política. O tempo e os acontecimentos posteriores se encarregaram de amenizar a imagem daqueles quase oito anos cruéis.

Para lembrar os maus tempos em que o Brasil flertou com o fascismo, vale a leitura, com dor e sabor, de “Trincheira Tropical”, livro recente do colega colunista Ruy Castro.

A fracassada tentativa tupiniquim de autogolpe começou a ser julgada pela Primeira Turma do STF. O rito legal, que certamente não seria concedido aos democratas se os conspiradores houvessem vencido, põe em uso a Lei de Defesa do Estado Democrático Direito, nascida em 2021 da ideia de dotar a democracia representativa de proteção institucional contra seus inimigos.

Assim, o julgamento da trama golpista é um passo importante para delimitar o campo da disputa política legítima, punindo aqueles que tentaram ostensivamente quebrar suas regras. Além do mais, julgar os golpistas ajuda a enfrentar o desafio bem mais complicado de isolar politicamente a extrema direita que apostou e apoiou a quebra da ordem. Minoria importante na opinião pública, chegou onde chegou pela legitimidade que, desde 2018, lhe conferiram outras forças que compõem o campo antipetista.

Circunscrevê-la a seu tamanho real seria mais um exemplo de inspiradora maturidade democrática.

 

A transformação do Brasil, por Márcio Pochman

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Márcio Pochman – A Terraé Redonda – 01/09/2025

A maior presença no comércio externo brasileiro nos países do Oriente e Sul Global encontra-se diretamente conectada à emergência dinâmica da estrutura produtiva mais localizada no interior do país, o que já parece apontar para a marcha do oeste do país.

1.

A parcela da população brasileira que estará adulta no ano de 2050 já nasceu, tendo quase 4/5 dela nascida em famílias pobres. Sem a presença do Estado dinâmico e ofertante de serviços universais de qualidade, o risco do segundo quarto do século XXI não atender tanto aos melhores anseios atuais como ao horizonte de expectativas superiores do amanhã para o conjunto dos brasileiros.

No segundo quarto do século passado, por exemplo, a crise do setor agroexportador deflagrada pela grande Depressão de 1929 foi superada por reformas constitutivas do Estado moderno, o que permitiu avançar na constituição de uma nova sociedade urbana e industrial. Em vez da regressão às atividades pré-capitalistas, o projeto de industrialização e urbanização nacional tornou o Brasil líder mundial no crescimento econômico, com ampla oferta de empregos e a difusão do assalariamento com direitos sociais e trabalhistas jamais experimentadas até então.

Antes que o projeto de industrialização nacional viesse a se completar, possibilitando a estruturação do mercado de trabalho, com a superação da economia de subsistência e da informalidade, a inflexão neoliberal colocou o Brasil em outro rumo. A partir de 1990, as reformas liberalizantes e enfraquecedoras do papel do Estado avançaram concomitante com a imposição da ruína na sociedade industrial.

Não obstante a importância da retomada do setor exportador, fortemente influenciado pelo segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (1975-1979), a trajetória estagnacionista na renda per capita retornou. Mais de três décadas depois, a participação do Brasil no PIB mundial é 2/5 menor do que era nos anos de 1980, com sinais inequívocos de regressão às atividades pré-capitalistas.

Atualmente, a economia de subsistência e popular oferta duas vezes mais postos de trabalho que o verificado no último quinto do século passado. Somente as ocupações vinculadas às atividades tipicamente capitalista reduziram em quase 30% a participação no emprego do total da força de trabalho do país.

Ao longo do tempo, a desestruturação do mercado de trabalho prevalece. Ademais da estagnação na taxa de assalariamento em relação ao total da força de trabalho, com decréscimo relativo das ocupações de classe média, o desemprego aberto tem sido contínuo.

O legado de atraso econômico imposto pelo receituário neoliberal se destaca tanto pelo estancamento da produtividade do trabalho como pelo declínio da taxa de lucro em vários setores produtivos que ainda resistem a se manter ativos diante da abertura econômica e financeira. No contínuo cenário de moeda valorizada e de altas taxas de juros reais, a inflação se mantém moderada, assim como o excedente exportador, mesmo diante da trajetória relativamente estagnacionista da renda per capita.

2.

Mas para o segundo quarto do século XXI, o aparecimento de novos elementos de mudança estrutural parece conferir novas perspectivas aos dilemas nacionais. Diante do processo transição profunda e acelerada para a Era digital, três deles aparecem inquestionáveis ao Brasil.

A começar pelo desenlace do deslocamento do centro dinâmico do Ocidente para o Oriente e do Norte Global para os países do Sul Global. Nas últimas duas décadas, por exemplo, o Brasil diversificou os seus parceiros comerciais, o que permitiu que países do Norte Global como os Estados Unidos, por exemplo, que respondiam por 24,5% do total das exportações brasileiras, em 2000, diminuíssem para 12% do total, em 2024.

A maior presença no comércio externo brasileiro nos países do Oriente e Sul Global encontra-se diretamente conectada ao segundo elemento de mudança estrutural do Brasil no segundo quarto do século XXI. Trata-se do curso das transformações geoeconômicas que aponta para a emergência dinâmica da estrutura produtiva mais localizada no interior do país, o que já parece apontar para a marcha do oeste do país.

O prolongado processo de desindustrialização terminou por esvaziar a centralidade produtiva das regiões litorâneas, outrora extremamente dinâmicas e atrativas de ocupações e renda. Considerando a proximidade do espaço territorial do centro-oeste e norte do Brasil com os países sul-americanos, o deslocamento geoeconômico tem sido impulsionado pelo protagonismo do setor exportador, bem como pelo conjunto de iniciativas infraestruturais nas vias de integração comercial com as nações de saída para o Oceano Pacífico.

Neste sentido, a inédita experiência nacional de assumir a condição bioceânica enquanto projeto estratégico de conexão entre os oceanos Atlântico e Pacífico pode equivaler – guardada a devida proporção – ao salto econômico verificado no século 19 pelos Estados Unidos durante a integração bioceânica proporcionada pela chamada “Marcha para o Oeste”.

O terceiro elemento de mudança estrutural reside na inflexão da trajetória demográfica nacional. Isso porque nos últimos duzentos anos, por exemplo, a população brasileira apresentou uma contínua trajetória de crescimento rápido. No século XIX, o número de brasileiros foi multiplicado por cinco vezes e, no século passado, a multiplicação foi por dez vezes, o que significou a necessidade do comprometimento acelerado de recursos públicos em atenção à expansão demográfica.

As projeções atuais apontam para o Brasil do ano de 2100 com população bem menor a do ano 2000. A partir da década de 2040, a população deve estagnar e começar a decrescer em termos absolutos diante da queda nas taxas de fecundidade, cuja longevidade populacional concentra crescentemente maior parcela de brasileiros acima de 60 anos de idade.

Neste novo cenário ao Brasil deste segundo quarto do século XXI, urge rever o papel do Estado. Outro tipo de atenção por parte da gestão governamental, com a implementação de políticas públicas preditivas que permitem se antecipar ao curso dos problemas, bem como aproveitar as oportunidades que se apresentam enquanto elementos de mudança estrutural da nação.

Em síntese, o segundo quarto do século XXI impõe uma nova agenda nacional de projeto ao Brasil.

O receituário neoliberal nada tem a dizer sobre o futuro da nação, pois prisioneiro exclusivo dos interesses curtoprazistas e improdutivos dominantes somente ofertam a estagnação da renda per capita, o congelamento da produtividade com queda na taxa de lucro de várias atividades econômicas e a regressão aos segmentos pré-capitalistas.

Sem a retomada do planejamento nacional, o futuro parece estar distante, tomado, pois, pelo destino a seguir dominante desde a década de 1990.

Marcio Pochmann, professor titular de economia na Unicamp, é o atual presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Autor, entre outros livros, de Novos horizontes do Brasil na quarta transformação estrutural (Ed. Unicamp).

Capitalismo e a “morte por desespero”, por Ricardo Queiroz Pinheiro.

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Ricardo Queiroz Pinheiro, bibliotecário, gestor público e doutorando em Ciências Humanas e Sociais (UFABC). Atua em biblioteca pública há 29 anos.

OUTRAS PALAVRAS – 01/09/2025

Na onda de overdoses, suicídios e alcoolismo, sintomas do vazio. Trabalhadores jogados à instabilidade vivem a corrosão lenta da vida cotidiana – quanto falta para virar tragédia? Richard Sennet já apontava: o desamparo vem travestido de “liberdade”

O capitalismo não cobra só no nosso bolso. Cobra na pele, na cabeça e no vazio que se abre quando o futuro deixa de ser promessa e se converte em ameaça. Ele se introjeta diariamente em nossas subjetividades. Essa dimensão, tão sentida na militância e no cotidiano, é a que mais me importa. Amigos que caem, vidas esquecidas, biografias tristes diante das quais temos quase nenhum recurso para oferecer solidariedade. Porque não se trata de estatísticas sobre desemprego ou crescimento, mas da corrosão lenta da vida cotidiana, das marcas invisíveis que se acumulam até virar tragédia.

Foi nesse terreno que Richard Sennett me ajudou a dar nome a algo que muitos já sentiam no corpo. Na obra, do fim dos anos 1990, Sennet falou em “corrosão do caráter”, não inventou uma metáfora elegante: registrou a experiência de um mundo em que a carreira com início, meio e fim desaparecia. O trabalhador passava a viver como peça descartável, sempre forçado a se adaptar, a se reinventar, a correr atrás de empregos fragmentados e instáveis. Essa flexibilidade, vendida como liberdade, deixava no lugar apenas ansiedade e desamparo.

Há alguns dias tive contato com uma resenha do livro “Deaths of Despair and the Future of Capitalism”, de Angus Deaton e Anne Case. Os dois trouxeram outro sinal dessa mesma devastação. Ao estudarem a onda de overdoses, suicídios e doenças ligadas ao álcool entre a população trabalhadora nos Estados Unidos, falaram em “mortes por desespero”. De novo, não se tratava de incompetência individual, como as bíblias liberais gostam de tratar, mas de uma resposta brutal ao colapso de perspectivas. Aquele que perde o trabalho estável, a possibilidade de sustentar a família, a confiança num amanhã melhor, muitas vezes perde também a própria vida.

Quando coloco lado a lado essas leituras, não as enxergo como teorias distantes, nem como análises restritas à classe média branca dos Estados Unidos. Vejo nelas chaves para compreender o que enfrentamos aqui também. A precarização do trabalho, a fragilidade dos serviços públicos e a dissolução dos vínculos comunitários abrem espaço para o vazio existencial e para a autodestruição. São duas faces de um mesmo processo: o capitalismo flexível mina tanto a identidade quanto o corpo, arranca o sentido da vida e o substitui pela insegurança permanente, pelo medo que submete e aprisiona. Trata-se de um fenômeno estrutural, que atravessa fronteiras, se inscreve no cotidiano de milhões e pode ser afirmado como um fenômeno interclasses.

É por isso que insistir nesse debate não é luxo, tampouco ornamento acadêmico. É questão de sobrevivência, núcleo da luta de classes. Uma sociedade que toma o crescimento econômico como sinônimo de progresso aceita, de antemão, a normalização da ansiedade, da doença e da morte evitável. O verdadeiro padrão de vida se mede naquilo que garante dignidade, pertencimento, consciência e horizonte para quem trabalha e resiste.

Esse é o chamado que nos interessa nas análises de Sennett e Deaton/Case: recolocar o preço humano no centro da política. Sem isso, a vida se desfaz em corrosão e desespero. Com isso, há chance de reconstruir um mundo em que o trabalho não seja uma sentença inapelável e em que o futuro não seja motivo de medo, desesperança e morte violenta.

“Corrosão do Caráter” de Richard Sennett (sobre o qual já falei antes), você consegue facilmente em sebos e livrarias. Já o outro título, “Deaths of Despair and the Future of Capitalism” de Angus Deaton e Ane Case, ainda não foi traduzido aqui.

A privatização da previdência; por José Menezes Gomes

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José Menezes Gomes – A Terra é Redonda – 19/08/2025

A privatização da previdência, longe de ser uma solução, revela-se um mecanismo perverso que submete o futuro dos trabalhadores à volatilidade do capital financeiro, aprofunda a exploração de classe e destrói a solidariedade intergeracional, escancarando a transformação do Estado em um mero gestor da barbárie social

1.

A privatização da seguridade social (saúde, previdência e assistência) ocorreu justamente no momento de aprofundamento da crise capitalista (crise mexicana 1995, crise asiática 1997, crise russa 1998, crise argentina 2001, crise da economia.com (2000), crise de 2008 e suas várias etapas. Essa crise resulta da queda da taxa de lucro nos setores industriais desde os anos 1980.

Tal fato, deslocou capital para áreas que até então estavam ocupadas pelo Estado, onde existiu o Estado de bem-estar social. A privatização de serviços públicos e as reformas do Estado visavam criar uma nova institucionalidade que permitisse o capital privado atuar de forma mais rentável vendendo novos produtos (saúde privada, educação privada, previdência privada, segurança privada, etc.).

A privatização da previdência teve sua primeira experiência no continente com o golpe militar no Chile em 1973, que permitiu aos Chicagos boys aplicarem suas políticas neoliberais. Entretanto, esse processo teve seu grande impulso nos anos 1980, justamente nos países que vivenciaram o Estado de bem-estar e tiveram apoio de setores ligados a esquerda com a ideia de que os trabalhadores ao aplicarem seus recursos num fundo de pensão significaria a constituição de um capitalismo em que teriam capital de longo prazo, onde poderiam ter participação nos conselhos de administração das empresas, onde esses teriam participação nos destinos das empresas, o que poderia representar uma nova forma de organizar a sociedade.

Todavia, o que a realidade mostrou é que este processo de privatização da previdência foi acompanhado pela restauração capitalista nos países do bloco soviético, desde 1991 que adotaram políticas neoliberais. Neste mesmo ano a crise capitalista deu sinal com a recessão americana. Depois desta crise se manifestar na periferia do capitalismo ela se descola para o epicentro capitalista.

Com isso a isso ela ocorre em 2000 e seguida de 2008, quado os fundos de pensão se tornam cada vez mais arriscados. Somente em 2008, os fundos de pensão, nos EUA, perderam U$ 4 trilhões nas suas aplicações nas bolsas. Vale lembrar que os fundos de pensão estadunidense foram grandemente beneficiados quando a taxa de juros do Banco Central dos EUA (FED) subiu de 5% para 20% em 1979.

2.

No Brasil, a realidade acabou mostrando que esses fundos acabaram deslocando grande parte dos seus recursos para os títulos da dívida pública em função da política de juros altos praticada pelo Banco Central. Desta forma os recursos dos fundos de pensão passaram a ser aplicados cada vez mais em títulos públicos, devido os ganhos vindos dos juros altos para rolagem da dívida pública. Com isso maior seriam os rendimentos destes títulos e maior possibilidade para o pagamento das aposentadorias e pensões no futuro.

Aqui se estabeleceu um dilema entre o futuro para previdência privada e o presente para os servidores públicos, já que quanto mais se elevava os juros maior era o endividamento do Estado nas várias esferas e maior a necessidade de se fazer o ajuste fiscal para que sobrasse dinheiro para o pagamento da dívida pública.

Para se fazer esse ajuste fiscal, para pagar essa dívida que crescia foram criados desde 1994, o Fundo de estabilização fiscal, a Lei de responsabilidade fiscal (LRF), a Desvinculação de Recursos da União (DRU), a Lei de teto de gastos e agora o arcabouço fiscal. Essas transformações ocorridas permitiram o que chamo de “Estado gestor da barbárie”, já que este dá continuidade a uma política tributária regressiva, faz renúncia fiscal de R$ 500 bilhões, privatiza quase todas as estatais usando dinheiro estatal subsidiado do BNDES, abre nova etapa de endividamento interno e externos dos estados e tenta impor uma reforma administrativa onde a precarização do trabalho, OSs e PPPs se aprofundam.

Em outras palavras, um Estado submetido ao sistema da dívida que pratica políticas de austeridade que aprofunda a barbárie social. Dentro disso resta a pergunta: Para que serve o Estado nacional?

A privatização da seguridade social, em especial da previdência, acabou submetendo os trabalhadores a outra dimensão de rentismo e ao mesmo tempo significou uma nova dimensão de colaboração de classes, já que esses fundos a medida que possuem volumes gigantescos de recursos aplicados em ações passam a compor os conselhos de administração das grandes empresas.

Desta forma essas empresas geridas pelos capitalistas clássicos e os representantes dos fundos continuam a ter como objetivo obter o máximo de mais valia. Ou seja, aplicam a precarização do trabalho para assegurar mais dividendos para que no futuro possam pagar as pensões e aposentadorias. Com isso os trabalhadores do Banco do Brasil, via Previ, passaram a controlar a Vale, via Valepar e com isso passaram indiretamente a ser cúmplices do aumento da exploração dos trabalhadores da Vale.

Por outro lado, os trabalhadores da Vale, via seu Fundo de Pensão, passaram a ter ações do Banco do Brasil e com isso ser cúmplices da precarização do trabalho dos trabalhadores do Banco do Brasil. Isso implicou no fim da solidariedade dentro da classe trabalhadora. Tudo isso só foi possível quando se destruiu o regime de repartição simples, onde uma geração financiava a outra, não tendo necessidade de se constituir um fundo para ser aplicado seja em ações ou em títulos públicos, acabando com a solidariedade entre as gerações.

3.

Tudo isso, porém, resultou da desorganização política da esquerda mundial que passou pela perda da identidade de classe e incorporação do ideário neoliberal e abandono das bandeiras históricas da classe trabalhadora.

O momento atual, em que se tenta mais uma nova contrarreforma da previdência temos uma crise da previdência privada, já que depende cada vez mais do mercado financeiro, que amplifica seus riscos quanto mais se aprofunda a crise capitalista. Enquanto isso, os planos de saúde vivem um momento em que grande parte dos médicos credenciados abandonam esses planos, que cobram cada vez mais caro e reduz ainda mais os serviços.

Os servidores públicos novos, nas três esferas, exceto militares, estão submetidos aos regimes próprios, que no caso dos estados e municípios, se submeteram ao regime de capitalização, que dependem cada vez mais do mercado e estão submetidos a suas incertezas.

A crise do Banco Máster revela como a busca por aplicação de maior retorno pelos regimes próprios pode levar a investimento de maior risco como aconteceu recentemente, acarretando perdas para vários regimes próprios.

Essas perdas nos regimes próprios podem ameaçar o pagamento futuro das aposentadorias. Já as perdas ocorridas nos grandes fundos de pensão como PREVI, PETROS e correios podem levar aos participantes a ter que aumentar a contribuição para recomposição dos valores perdidos. O caso mais grave ocorreu com o PETROS, dos Funcionários e aposentados da Petrobras que vão pagar por 18 anos uma conta de R$ 14 bilhões por perdas registradas.

O dilema dos regimes próprios dos estados fica mais claro pelos desvios e perdas reveladas pela CPI do RIOPREVIDENCIA. O regime próprio de Alagoas, o AL Previdência acabou criando um fundo garantidor a partir das 304 escolas públicas do Estado, significando a privatização dos prédios das escolas públicas, além do envolvimento da empresa estatal não dependente Alagoas ativos S/A em esquema de securitização.

4.

Como estou orientando uma tese de uma aluna que investiga esses dois regimes próprios estou acompanhando as atas de reuniões do conselho consultivo do Al Previdência. Nestas atas posso observar que as reuniões deste Conselho sempre começam com a leitura do boletim Focus, que é elaborado pelos rentistas e as decisões de investimento deste regime sempre depende deste economista contratado e do que indica esse boletim. Em outras palavras, a independência do Banco Central e a elevação da taxa de juros, alegando combater a inflação, mas que na verdade permite que numa taxa básica de 15% e inflação de 5% permitem que o comprador de títulos tenha um ganho real de aproximadamente 10%.

Com essa política monetária temos um crescente aumento dívida pública que em seguida vai exigir um novo ajuste fiscal e um novo ataque aos servidores públicos como a proposta de reforma administrativa e da previdência. Neste processo os servidores públicos estão colocados como responsáveis pelo aumento das despesas públicas, encobrindo o verdadeiro responsável pelo aumento desses gastos: a dívida pública, a política de juros altos, a renúncia fiscal crescente.

O grande desafio que temos no momento é o crescimento da bancada BBBB (Bancos, Bíblia, Boi e Bíblica) que usa a pauta moral para se eleger e que em seguida produzem a retirada dos direitos sociais e reafirma a austeridade fiscal e a política de juros altos. Curiosamente dentro desta bancada temos uma aliança invisível entre os mais ricos, que querem privatizar tudo e os mais pobres que fazem base das igrejas neopentecostais, impulsionados pela teologia da prosperidade e teologia do domínio.

Aqui os mais pobres e que necessitam de políticas sociais são os que dão votos naqueles que são os mais ricos e também os que mais recebem recursos do Estado via BNDES, renuncias fiscais, perdão de dívidas e apoio dos órgãos estatais aos seus empreendimentos privados.

Para darmos continuidade a luta contra a reforma administrativa e da previdência temos que construir a unidade entre os trabalhadores do setor privado e do setor público destacando que o principal determinante dos gastos públicos é a dívida pública. Nesta direção precisamos esclarecer junto à população que grande parte da dívida federal é dívida dos estados e que na sua maioria é dívida resultante da conversão das dívidas privadas das burguesias regionais junto aos bancos estaduais.

Sendo assim, temos que denunciar que entre os deputados e senadores que estão votando as contrarreformas temos uma grande parte que se beneficiou dos bancos estaduais no seu enriquecimento privado. Auditar as dívidas estaduais é parte fundamental para o diálogo com a maior parte da população que tanto precisa da ampliação dos direitos sociais.

José Menezes Gomes é professor de economia na Universidade Federal de Alagoas (UFAL).

Economia e democracia num mundo em crise, por Leda Paulani

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Leda Paulani – A Terra é Redonda – 23/08/2025

A perspectiva para a democracia é sombria, pois ela continua a gerar seu próprio oposto: um sistema econômico baseado na desigualdade estrutural mina seus alicerces e alimenta anseios por autoritarismo, como mostram as feridas do passado que ressurgem

1.

Quero, em primeiro lugar, agradecer o convite que me foi feito para estar, em tão honrosa companhia, [1] na mesa de encerramento deste evento.

Seus organizadores, que, com justa razão comemoram os cinco anos de existência do Made – este Centro de Pesquisas em Macroeconomia das Desigualdades que tão milagrosamente nasce e sobrevive numa escola tão conservadora como esta – me pedem que fale sobre as “perspectivas da economia e da democracia num mundo em crise”.

Mas, neste mundo em crise, acossado por ameaças e flagelos de natureza vária, do imponderável da inteligência artificial à anomia social, do imperialismo explícito ao inaceitável genocídio, da catástrofe climática ao perigo nuclear, não é possível falar em democracia sem falar simultaneamente em seu antípoda, o fascismo, ou neofascismo, e seu cortejo de crenças e práticas autoritárias que hoje nos assombra.

E que, no entanto, como mostra o filósofo alemão Theodor Adorno, não é uma deformação que possa ser depurada de um organismo saudável; é um traço latente e profundo da modernidade burguesa, e isso tem tudo a ver com economia, e com desigualdade.

Em seus escritos e intervenções dos anos 1960 do século passado, o conhecido filósofo ponderou que a democracia, enquanto continuasse a trair suas promessas, permaneceria gerando ressentimentos e despertando anseios por soluções extrassistêmicas. Em palestra de 1967, Theodor Adorno fala, em Viena, a convite de estudantes austríacos, preocupados que estavam então com o crescimento e fortalecimento, na Alemanha, no seio de uma democracia aparentemente consolidada, de um novo partido neonazista, e isso em pleno capitalismo pacificado dos “anos dourados”.

Ele afirma então que os movimentos fascistas são “como feridas, são cicatrizes de uma democracia que ainda não faz justiça a seu próprio conceito”. E pouco depois acrescenta que a relação desses movimentos com a economia é uma “relação estrutural”, pois o processo irrefreável de concentração de capital aumenta permanentemente a desigualdade e a pauperização, degradando camadas sociais antes mais ou menos bem postadas na hierarquia social capitalista e produzindo assim uma sociedade continuadamente melindrada e repressiva.

Theodor Adorno não podia prever o levante neoliberal iniciado nos anos 1980, tampouco quão gritantemente verdadeiras se tornariam suas palavras. Ao potencial demolidor dos anseios democráticos inerente à acumulação de capital enfatizado pelo pensador alemão, o levante das elites, com o totalitarismo da razão e dos princípios liberais que daí resultou, agregou-lhe elemento ainda mais pernicioso, pois normalizou a iniquidade social, destronando os valores que sustentam a luta pela democracia.

Depois de quase meio século de políticas que só fizeram aumentar a desigualdade mundo afora, com a democracia reiteradamente traindo suas promessas, o resultado é o que vemos: as cicatrizes tornaram-se feridas abertas, com a ascensão indiscriminada, no centro e nas periferias do sistema, de grupos, movimentos e governos de perfil e vocação fascistas.

E é assim que assistimos hoje, abatidos e inertes, ao retorno de doutrinas e teses que pensávamos pertencerem ao passado, como o supremacismo branco, a crítica ao fato de as mulheres votarem, a defesa da homofobia e os ataques reiterados à cultura, para não falar do negacionismo climático e do negacionismo científico em geral.

2.

Ora, se o que coloca em xeque a democracia é a reiterada produção sistêmica de desigualdades, é preciso, em primeiro lugar, averiguar qual é o estatuto que a igualdade ocupa no capitalismo. Para começar, deveríamos indagar se a preocupação com a desigualdade faz sentido em outras formações históricas.

As perguntas sobre ela (sua dimensão, suas causas, seus desdobramentos) fariam sentido no mundo feudal, desigual por definição, ou na antiguidade clássica, movida pelo trabalho escravo, ou no comunismo primitivo, onde giraria em falso qualquer colocação do tipo igualdade x desigualdade?

É evidente que as citadas questões só fazem sentido na e para a sociedade moderna, porque é nela que a igualdade está pressuposta. Basta lembrarmos aqui, para não ter que ir muito longe, do grito de guerra da Revolução Francesa. Mas, quando dizemos que no capitalismo a igualdade está pressuposta, este termo deve ser entendido de modo rigoroso. Dialeticamente, o que está pressuposto é exatamente aquilo “que não está posto” e esse “não estar posto” pode se dar em dois sentidos diferentes, ou por duas razões diferentes: pode se tratar de algo ainda não posto, ou de algo que está posto como negado.

No caso da igualdade, poderíamos dizer que ela está pressuposta nos dois sentidos. No sentido de algo que é posto como negado, a igualdade está pressuposta porque, ainda que fenomenicamente, no âmbito do mercado, ela exista (uma das leis da circulação simples diz que valor se troca por valor igual, ou não poderíamos colocar os sinais de igual nas equações de troca: 1 litro de leite = 2 pãezinhos, ou 1 litro de leite = R$ 5,00), ainda que a igualdade exista, portanto, fenomenicamente, Marx nos mostra que ela se interverte em desigualdade, ou seja, se nega, quando a força de trabalho assume, ela própria, a forma de mercadoria e entra no lado esquerdo da equação.

Essa igualdade presente no plano da circulação e, pois, no plano dos valores/preços das mercadorias implica uma igualdade também presente, e da mesma maneira negada, no plano dos agentes da troca: temos, em ambos os lados de uma transação, iguais proprietários de mercadorias, que trocam obedecendo tão somente seu livre arbítrio, mas, para alguns deles, a força de trabalho é sua única mercadoria, o que vai introduzir de partida, nessa relação de iguais, uma desigualdade imanente.

Já no sentido de algo ainda não posto, a igualdade está pressuposta porque ela pode ser tomada como um vir-a-ser, como algo cuja posição se deve buscar, e/ou como algo que a Modernidade prometeu à humanidade, ainda não entregou, mas poderá – ou nós devemos lutar para – ser entregue. Claro está que, para Karl Marx, a pressuposição da igualdade por conta de sua posição como algo negado é o que prevalece, sendo que a luta que deve ser feita para acabar com o caráter contraditório da igualdade dentro dos limites desse sistema pode ser uma luta inglória.

A percepção do caráter pressuposto da igualdade na sociedade capitalista, ou seja, de seu caráter contraditório de existir não existindo, ou de se colocar como um eterno vir-a-ser, deriva da compreensão da ordem do capital como algo sistêmico, e que, portanto, só pode ser corretamente entendido se o enxergarmos em sua totalidade.

Pensar a questão da desigualdade como mero “problema”, e que, enquanto tal, pode ser resolvido com a aplicação dos remédios corretos, é entendê-la como um acidente, como algo que pode ou não ocorrer, e não como algo que resulta necessariamente da essência desigual do sistema.

3.

E voltamos com isso às preleções de Theodor Adorno e à sua afirmação de que a democracia ainda não fez jus a seu próprio conceito. É verdade que ele denunciou tal violação há quase 60 anos, mas, de lá para cá, o mundo não andou na direção de contradizê-la, antes o inverso. Isto posto, dado este quadro tão pouco alvissareiro, chegamos às perspectivas que se podem traçar, neste momento, para a economia e para a democracia.

A crise enfrentada hoje pelo sistema capitalista, que se tornou pela primeira vez de fato mundial, é resultado da tendência à sobreacumulação que lhe é inerente, a qual despontou com força nos anos 70 do século passado e permanece ainda hoje irresolvida. Foram a financeirização do processo de acumulação, a ascensão da China e o próprio levante neoliberal que possibilitaram sua sobrevida até aqui.

A primeira porque, graças à profusão na emissão de capital fictício, vai permitindo deslocar no tempo, e, nesse sentido, ajudando a “resolver”, a questão das alternativas à valorização do capital (por mais, é claro, que faça isso alavancando o potencial de contradições do sistema).

A segunda porque o gigante asiático representava, até o terceiro quartel do século passado, um continente inteiro à margem do moinho capitalista, configurando desde então uma colossal fonte de demanda efetiva adicional a serviço da acumulação. Por fim, o advento do neoliberalismo, com sua homília cotidiana em torno das benesses das privatizações e dos cortes de gastos públicos, age no mesmo sentido, produzindo uma fonte quase permanente de novos ativos capazes de sustentar o processo.

Mas tudo isso está hoje em xeque. O processo de financeirização levou um golpe severo com a grande crise internacional de 2008. É verdade que, depois de três ou quatro anos de moderação, o processo de emissão de capital fictício retomou com força. De acordo com os últimos dados disponíveis, a relação estoque mundial de ativos financeiros/PIB mundial passou de 2,9 em 2008 para 5,4 em 2021.

De toda forma, como tal processo, por conta da atividade especulativa que a ele se vincula, está inerentemente associado a estouro de bolhas e crises abruptas, ele parece estar mais para problema do que para solução. Por exemplo, algumas cassandras, encontradas, pasmem, no Deutsche Bank, perguntaram recentemente (isso saiu no jornal Financial Times em julho último) se o crescente aumento de empréstimos para financiar a compra de ações não seria um sinal de “intensa euforia”, não perceptível desde 1999 e 2007. [2]

A China, de seu lado, perdeu um pouco do fôlego inicial, ainda que com um desempenho robusto e de modo nenhum próximo a qualquer performance em curso no assim chamado mundo desenvolvido. O gigante asiático, contudo, permanece um enigma: com seu capitalismo potente e exuberante, que empurra a acumulação e serve aos capitais de todo o globo, coordenado e dirigido, porém, pelo partido comunista, fascina e ao mesmo tempo apavora as cabeças pensantes do mundo ocidental.

Por fim, o neoliberalismo. Há um debate intenso sobre o que aconteceu e está acontecendo com o dito-cujo. Morreu, se transformou, está em transição? Essas perguntas, diga-se, fizeram-se à larga quando da crise de 2008, sobretudo por conta das soluções que então apareceram: forte intervenção do Estado, estatização de instituições financeiras, quantitative easing. [3] O neoliberalismo ficou keynesiano?

Mas a verdade é que, depois da crise, mesmo com todos os desdobramentos, a pregação em torno dos princípios e das prescrições liberais redobrou e continuou a espalhar desigualdade – com as exceções de praxe, claro, sob os auspícios de políticas sociais de forte impacto, como aconteceu em alguns períodos no Brasil. Só que, hoje, o neoliberalismo é muito mais reacionário, pois deixou de lado as veleidades progressistas que usou como ornamento durante um bom tempo.

Seja como for, mesmo se os três expedientes estivessem em sua melhor forma, ainda haveria que enfrentar aquele que é talvez o principal problema para um sistema que requer produção sem limites: a questão ambiental. O último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), da ONU, o qual se tornou referência mundial sobre o tema, assevera que o aquecimento global está se acelerando numa velocidade nunca antes vista, ao ponto de podermos atingir, já em 2030, a elevação da temperatura média do globo em 2oC relativamente ao nível pré-industrial, marca essa, não custa lembrar, que o Acordo de Paris, firmado em 2015, tinha por objetivo justamente impedir de atingir em… 2100!

4.

Isto posto, não dá para dizer que podem ser boas as perspectivas da economia. A economia brasileira, por sinal, até que não anda se saindo tão mal, com taxa de juros de 15% e tudo. Mas o contexto geral é muito pouco promissor.

E a democracia? Bem, quanto à democracia, não fosse por todo o obstáculo que representa a própria disseminação e aprofundamento da desigualdade, temos agora, no comando do ainda maior PIB do mundo, uma mistura tóxica de reacionarismo, xenofobia, supremacismo, misoginia, homofobia, ódio à cultura, censura, prepotência e mandonismo imperial, de modo que hoje, sobre os Estados Unidos da América, pode-se dizer qualquer coisa, menos que continue a ser uma democracia.

Mas este não é, como pode parecer, um elemento que simplesmente se adiciona a uma situação já muito complicada. Ele é o resultado mesmo dessa falência sistêmica geral, que arrasta consigo a hegemonia americana.

O sociólogo alemão Wolfgang Streeck afirma que, a despeito da sempre presente exaltação dos valores democráticos pela sociedade de hoje, o mundo moderno só experimentou uma única vez aquilo que se poderia chamar de “capitalismo democrático”, ou seja, um arranjo capaz de conciliar o feitio naturalmente antidemocrático da acumulação capitalista com os anseios de igualdade e respeito pelo ser humano.

O santo responsável pelo milagre teria sido justamente o cenário auspicioso, marcado pelo crescimento econômico forte e persistente, que caracterizou os trinta anos gloriosos iniciados no pós-Segunda Guerra e que precederam a etapa atual, de gestão neoliberal do sistema.

Repetir tal façanha parece, todavia, cada vez mais improvável, e não só porque a roda da história não gira para trás. É sobretudo porque temos um único planeta, finito e limitado, incapaz de acomodar, em suas estreitas balizas, um sistema econômico de vocação infinita, vocação, porém que não age em prol da emancipação humana, mas tão somente em benefício da acumulação infindável de riqueza abstrata.

Qualquer mudança efetiva no sentido de tornar o planeta e o mundo ambiental e socialmente mais habitáveis depende cada vez mais e mais da luta política e do auxílio que a ciência pode prover.

Daí a imensa importância de monitorar as mazelas cotidianamente produzidas, zelar pelas feridas que vão se abrindo. Uma macroeconomia da desigualdade, como propõe o Made, é uma macroeconomia que enobrece a ciência econômica, que a torna digna do nome de ciência, e, mais importante ainda, que joga no time da democracia, tão precisado, como vimos, de craques verdadeiros.

Parece ainda muito longe o dia em que a democracia venha a fazer jus a seu conceito, como reclama Theodor Adorno, mas o Made faz a sua parte. Parabéns, Made, pelos cinco anos! Que muitos mais venham pela frente. Muito obrigada.

Leda Paulani é professora titular sênior da FEA-USP. Autora, entre outros livros, de Modernidade e discurso econômico (Boitempo)

Notas

[1] Fala em evento na FEA-USP, em 22 de agosto, para celebrar cinco anos do Made (Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades). Participavam também da mesa Corina Enrique Rodriguez (Universidade de Buenos Aires), Ramaa Vasudevan (Colorado State University) e Marcos Nobre (IFCH/Unicamp e Cebrap).

[2] Me beneficio aqui de informação encontrada em artigo de Luiz Gonzaga Belluzo e Manfred Back, publicado no site A Terra é Redonda, em 15 de agosto de 2025.

[3]. Política de monetização de ativos financeiros visando injetar liquidez na economia, adotada nos EUA pelo Federal Reserve para enfrentar a crise de 2008.

 

 

Dívida dos EUA: Como Trump aprofunda o caos, por José Álvaro de Lima Cardoso

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Eixo do sistema financeiro global, títulos do Tesouro norte-americano oscilam como nunca, com política errática do presidente. China retira parte de seu dinheiro. Trajetória dos juros é incerta. Descontrole pode afetar inclusive o gigantesco orçamento de guerra

José Álvaro de Lima Cardoso – OUTRAS PALAVRAS – 28/08//2025

A dívida pública dos Estados Unidos pode ser considerada o eixo do sistema financeiro global contemporâneo. Os títulos do Tesouro dos EUA (US Treasuries) funcionam simultaneamente como o principal ativo global, a referência de preços para praticamente tudo que tem fluxo de caixa. Além de ser, ainda, a reserva internacional preferida pelos bancos centrais. Esse fenômeno, coloca a dívida norte americana no centro da engrenagem que move liquidez, preços e risco nas finanças, no mundo.

Esses títulos são considerados o ativo livre de risco em dólares por excelência: tem alta liquidez, padrão jurídico claro e baixíssimo risco de crédito soberano. Nas crises, a maioria dos investidores correm para esses títulos, que exercem o papel de “porto seguro” para aversão ao risco. Em mercados de financiamento de curtíssimo prazo, os títulos do tesouro americano são o ativo fornecido em garantia, para assegurar obrigações financeiras, de maior aceitação no mundo. Os títulos do Tesouro norte americano servem também para a ancoragem, para referência, de taxas em dólares. A taxa de juros dos títulos do Tesouro dos EUA com prazo de 10 anos é a principal referência que o mundo usa para calcular quanto valem hoje os fluxos de caixa futuros em dólares. Quando essa taxa sobe ou desce, muda o “desconto” aplicado aos fluxos de caixa — e, por consequência, altera o preço de quase tudo.

Uma parcela enorme de fluxos de caixa globais é avaliada direta ou indiretamente em dólares. O que fornece aos EUA, um grande poder, inclusive de retaliação. A Venezuela, por exemplo, sofre mais de mil sanções contra sua economia, o que leva a um profundo impacto no seu desenvolvimento nacional. As sanções de caráter financeiro estão entre as que mais prejudicam o país. Por exemplo, as proibições impostas ao governo da Venezuela e à PDVSA (Petróleos de Venezuela, S.A., empresa estatal de petróleo e gás), de emitir novos títulos de dívida, realizar certas reestruturações, distribuir dividendos etc. Com essas restrições o país fica sem condições de rolar a dívida soberana e sem acesso a mercados de crédito, com perda total da capacidade de se financiar externamente. O setor privado também é impactado, porque os chamados riscos soberanos (probabilidade de um país não cumprir seus compromissos financeiros), encarecem o crédito para as empresas privadas locais, que também perdem o acesso a linhas comerciais.

Os títulos do Tesouro Norte Americano também são os preferidos pelos bancos centrais para acumular reservas, em função de liquidez e facilidade de custódia e liquidação. Ou seja, no processo de compra e venda, esses títulos são de fácil manuseio, pois a demanda oficial pelo ativo estabiliza o mercado. Ademais, nenhum outro mercado no mundo tem a escala e a infraestrutura oferecida por esses papéis. O mercado do Euro é grande, mas com risco soberano elevado, além do “Bund”, – títulos públicos alemães, considerados de baixíssimo risco dentro da zona do euro – não ter a mesma escala dos papeis americanos. Os países da união monetária não emitem a moeda que usam. Um governo da zona do euro não controla isoladamente a sua política monetária nem “imprime” euros. Isso torna o risco de insolvência e liquidez uma preocupação real em momentos de crise financeira. Especialmente neste momento de grande crise econômica da Europa.

Apesar da economia japonesa ser a quarta do mundo, o Iene/JGBs (títulos do governo do Japão), não tem a profundidade e a estabilidade do equivalente americano. O ouro, por sua vez, funciona como reserva de valor, porém tem rendimento baixo ou nulo. Além disso, não tem elasticidade de oferta, e possui logística/custódia mais onerosa e complexa. O RMB (Renminbi, nome oficial da moeda da China), por outro lado tem menor convertibilidade e infraestrutura jurídica/financeira mais limitada, sem alcance global, por enquanto. Em suma, a combinação de escala + liquidez + convertibilidade + infraestrutura institucional ainda mantém os títulos do Tesouro dos EUA no topo da preferência.

A dívida – tida como impagável – e o déficit orçamentário dos EUA leva o Tesouro a emitir títulos, que são absorvidos pelo mundo todo. Esse cassino financia a dívida americana e garante um ativo ainda considerado seguro. Obviamente a instabilidade financeira mundial, e o crescimento avassalador da dívida americana, torna esse jogo arriscado. Por essa razão (e outras, de caráter geopolítico), a China vem diminuindo gradativamente sua exposição a títulos do Tesouro dos EUA: a posição da China nesses papéis, recuou de um máximo de US$ 1 trilhão em 2013–2014, para cerca de US$ 756,3 bilhões em agosto de 2025. O objetivo dessa política é diversificação das reservas e a redução da dependência do dólar, com a realocação parcial para ouro, outras moedas, e, em menor grau, ativos não americanos. O objetivo da diversificação é reduzir a vulnerabilidade à sanções e não depender de infraestrutura financeira estadunidense.

A China, ao descartar títulos do Tesouro norte-americano procura controlar também o risco geopolítico, existente na dependência exagerada a esse tipo de reservas. Especialmente, se for de um país que vem elevando o tom das hostilidades há anos. A China também presta atenção ao que ocorre com outros países catalogados pelo imperialismo como inimigos. A partir do início da guerra na Ucrânia, os países ocidentais congelaram uma grande quantidade de ativos russos, incluindo reservas do Banco Central e títulos soberanos sob custódia ocidental (calculados em US$ 300 bilhões). Ademais, imobilizaram ativos de bancos, empresas estatais e indivíduos, russos, passando inclusive a usar rendimentos associados a esses ativos. A diversificação reduz a fragilidade da economia chinesa a medidas inesperadas e agressivas, no campo comercial e tecnológico, que já vêm sendo colocadas em marcha, pelo menos desde o governo de Barack Obama. A China também tem usado a conversão de parte das reservas em liquidez, visando melhorar ainda mais o desempenho da sua economia.

A redução chinesa em títulos do Tesouro dos EUA, que é parte de uma estratégia de diversificação e gestão de riscos, está sendo operada gradualmente, o que torna o processo administrável, na medida em que outros compradores adquirem os papéis disponibilizados. O risco de uma venda súbita e coincidente com outros choques (como um déficit do governo dos EUA mais alto que o previsto), não interessa ao próprio governo chinês, que é grande detentor desses papéis.

A base de detentores dos papeis da dívida dos EUA é ampla: investidores domésticos (bancos, gestoras, fundos de pensão, seguradoras), o Federal Reserve e investidores estrangeiros.

O estoque atual da dívida, de US$ 36 trilhões e os cerca de US$ 3,3 bilhões/dia em juros, implica, como no Brasil, na redução da capacidade do Estado sustentar outras despesas, como infraestrutura, ciência e saúde. A financeirização do orçamento, afeta diretamente, inclusive, a estratégia imperialista dos EUA, que é muito assentada em sua capacidade bélica. Em 2024, os juros se aproximaram muito dos gastos com defesa. Projeções oficiais apontam que, a partir de 2025, os juros tendem a superar de forma mais evidente os gastos com defesa.

A aproximação ou ultrapassagem dos gastos com a dívida, em relação aos gastos com a guerra, mostra a magnitude do fenômeno da financeirização nas economias de todo o mundo. Os EUA são o país que promovem e patrocinam a guerra no mundo todo, seja por objetivos econômicos imediatos, seja em função de necessidades geopolíticas e militares. Mesmo assim, nos últimos anos, a aceleração dos juros e os gastos com a dívida cresceram mais rapidamente do que os gastos militares.

O efeito da dívida pública sobre o governo norte-americano tem similaridades com o que acontece nos países atrasados, apesar do poderio político, econômico e militar dos EUA. Gastos maiores com juros reduzem a margem para o exercício de despesas discricionárias, incluindo gastos com defesa e investimentos em geral, sem elevar impostos ou aumentar o déficit.

O governo brasileiro sofre duras críticas quando apresenta um déficit orçamentário (primário, ou seja, sem os gastos com juros) de 0,36% do PIB, como em 2024. No entanto, o déficit primário dos EUA no ano fiscal de 2024 foi de aproximadamente US$ 700 bilhões, 2,4% do PIB. Ou seja, quase 7 vezes superior ao do Brasil (imaginem o Brasil com um déficit primário naquele nível). Nos EUA, como acontece no Brasil, entra governo, sai governo, e, independentemente da posição política, ninguém resolve o problema da dívida pública. Com a diferença que, no caso dos EUA, como se trata do país mais imperialista do mundo e dono da máquina de imprimir dólares, ninguém cobra superávits primários nas contas públicas.

O deus mercado profanou a CLT, por Jorge Luiz Souto Maior

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Jorge Luiz Souto Maior – A Terra é Redonda – 30/08/2025

A retórica da flexibilização é a profanação contemporânea dos direitos, um ritual que sacraliza o lucro ao custo de vidas. A resistência necessária não é nostálgica, mas sim a recusa firme de que a dignidade humana seja imolada no altar do mercado

Um grupo de autodenominados “líderes empresariais” está realizando um encontro que, segundo expõe a propaganda do evento, se destina a promover, com as falas de especialistas e empresários, um “debate sobre a conjuntura atual e o cenário econômico global”.

Mas o propósito não é propriamente avaliar os limites, potencialidade e debilidades de uma economia baseada na produção de mercadorias sem-fim, em um universo de matéria-prima finita e para um mercado de consumo cada vez mais restrito.

Os “especialistas” e empresários, que não estão ali reunidos por acaso, já têm a fala pronta (mais antiga que a roda) que gira em torno da redução dos custos do trabalho como a fórmula necessária e infalível para aumentar a produção e o lucro das empresas.

Este é um discurso que se apresenta como novidade, embora seja “novo” e “moderno” desde o final do século XIX, quando iniciava, no Brasil, o período de transição do trabalho escravizado para o trabalho livre, ou seja, muito antes do advento da tal CLT.

Os temas dos painéis do evento não deixam a menor dúvida a respeito do alvo projetado das falas: “Os desafios contemporâneos da tercerização” (Painel 1); “As eventuais mudanças na legislação e os impactos na perspectiva do trabalho” (Painel 2).

Trata-se, pois, de um evento em que se realiza a reunião de pessoas (as mesmas de longa data – quase tão antigas quanto à própria CLT) ideologicamente comprometidas com os interesses imediatos do capital, sobretudo, o capital estrangeiro, para promoverem mais um ataque à já tão baleada legislação trabalhista no Brasil e tudo isto para, explicitamente, ofertar mão de obra barata para a exploração do grande capital internacional.

E, de fato, é bem mais que isto: trata-se, em verdade, da reprodução das lógicas do escravismo colonial, renovando a oferta dos corpos de pessoas racializadas, subalternizadas e desconsideradas quanto à sua condição humana.

São estes “especialistas”, não por mera coincidência, homens e brancos, autênticos “líderes” do comércio de gente, da venda despudorada de carne negra barata para o consumo imediato do processo produtivo, em nome do “desenvolvimento econômico do país”, como, aliás, já fizeram os seus antepassados.

Dizem que vão formular uma “análise aprofundada das transformações no mundo do trabalho e nos modelos regulatórios”, mas o que, de fato, manifestam é a velha, antiquada e surrada retórica de que a legislação trabalhista no Brasil é retrógrada e rígida, mesmo que a CLT de 1943, em concreto, não mais exista há muitas décadas, dadas a inúmeras alterações que lhe foram introduzidas e mesmo que a CLT, durante longo período, tenha servido à exclusão de pessoas negras e de mulheres do mercado de trabalho, além de reprimir a luta coletiva de trabalhadores(as) por melhores condições de trabalho, tendo sido, por isso mesmo, apoiada expressamente pela nova classe industrial em ascensão, a partir dos anos 1930.

É importante destacar, inclusive, que desde a década de 1960, vários instrumentos de “flexibilização”, precarização e retração de direitos foram integrados à CLT, tais como: a redução salarial imposta pela Justiça do Trabalho (1965); a representação comercial (1965); o FGTS (1967); o trabalho temporário (1974); a intermediação do trabalho do vigilante (1982); o esvaziamento hermenêutico dos arts. 7º, 8º e 9º da Constituição Federal de 1988 (de 1988 até hoje, aniquilando a garantia contra a dispensa arbitrária, naturalizando as horas extras, monetizando a saúde, discriminando as trabalhadoras domésticas, aniquilando o direito de greve, aprisionando a liberdade sindical); a terceirização da atividade-meio (1993): a cooperativa de trabalho (1994); o banco de horas (1998); o contrato provisório (1998); a suspensão temporária do contrato de trabalho – “lay off” (2001); a recuperação judicial (2003); a jornada 12×36; a terceirização da atividade-fim (2017); o contrato individual superando o negociado (2017); o negociado sobre o legislado (2017); o trabalho intermitente (2017); o obstáculo ao acesso à justiça (2017) etc.

E mesmo com tudo isso, estas pessoas, cinicamente, continuam dizendo que a CLT de 1943, com sua rigidez (que, de fato, nem nunca existiu), continua regulando as relações de trabalho no Brasil, gerando alto custo de produção (embora, de fato, o custo de produção no Brasil seja um dos mais baixos do mundo), desestimulando investimentos e impedindo o desenvolvimento econômico (ainda que o Brasil seja o espaço privilegiado da especulação estrangeira e onde as empresas multinacionais experimentam seus maiores lucros e os trabalhadores(as), os mais baixos salários do mundo e um número de horas trabalhadas dentre os mais elevados nos diversos países.

Pois o negócio é se reunir, fazer festa, formular elogios recíprocos, rir da desgraça alheia, tripudiar sobre a vida da classe trabalhadora e zombar de todo mundo dizendo que os(as) trabalhadores(as) no Brasil são privilegiados(as) e que os empresários brasileiros são vítimas desemparadas.

Mas, concretamente, não são tão desamparados assim, né?! Afinal, têm Ministros do STF e do TST que os defendem abertamente!!! E, de fato, as instituições estatais estão há décadas realizando esta defesa do capital e promovendo ataques aos(às) trabalhadores(as).

Estas “iluminadas” mentes só conseguem pensar uma forma de estimular o desenvolvimento econômico, qual seja, retirando direitos dos que chamam de privilegiados, para permitir a quem não tem direito algum se igualar aos que até então eram os tais privilegiados.

Uma estranha forma de igualdade que, no fundo, se deparando com as sucessivas crises do capital, visa, de forma reiterada, progressiva e sempre renovada, rebaixar a rede de proteção social, para manter a riqueza dos poucos que a detém ou mesmo lhes permitir aumentá-la ainda mais.

Cabe não olvidar que esta “fórmula” para o desenvolvimento do país tem sido experimentada desde a década de 1960 (com maior vigor) e só produziu os efeitos (os verdadeiramente almejados) da acumulação da riqueza (em mãos estrangeiras), da dependência política, econômica e tecnológica do país (que sequer tem soberania a defender), da precarização das relações de trabalho, do sofrimento físico e psíquico nas relações de trabalho e da disseminação da miséria e da fome.

Neste cenário, o mais novo “especialista” em Direito do Trabalho, Luís Roberto Barroso, vem sustentando por aí que a “reforma” trabalhista aumentou a empregabilidade, não se dignando, por certo, de explicitar que são, em verdade, subempregos, mal remunerados, carregados de precarização e efêmeros, isto é, de pouca duração, o que retroalimenta o rebaixamento, tanto que, baseados na própria retração de direitos, os representantes do capital e até mesmo as empresas diretamente têm tentado disseminar uma aversão ao trabalho com carteira assinada, estimulando a “pejotização”, uma nova faceta do “empreendedorismo”, que representaria uma situação mais vantajosa para os(as) trabalhadores(as).

Não tendo mais como rebaixar direitos, chegou a hora de eliminar de vez o Direito do Trabalho e, por consequência, a Justiça do Trabalho, mas com o argumento – apoiado na precarização – de que isto é bom para a classe trabalhadora. Desconsiderando-se, por óbvio, a existência da ordem constitucional, na qual os direitos trabalhistas e sociais se situam como Direitos Fundamentais e o fato de que este ordenamento garante uma condição mínima existencial aos(às) trabalhadores(as) e o direito de lutar, coletivamente, por melhores condições de vida e de trabalho.

Aliás, vale o registro de que a bola da vez, na linha do rebaixamento, tende a ser os benefícios previdenciários, pois, sem as fórmulas jurídicas de imposição da solidariedade social, as bases de sustentação da Seguridade Social vão à bancarrota.

E, agora, o momento mais angustiante deste texto (se já não o fosse bastante) que é o de reproduzir as violências explicitadas pelo Ministro Gilmar Mendes, com relação aos direitos dos(as) trabalhadores(as) e a própria dignidade dos seres ainda humanos que habitam neste território.

Pois não é que o Ministro, afoito para oferecer um algo mais ao setor econômico, subiu vários pontos na escala das ofensas e irracionalidades e chamou a CLT de “vaca sagrada”.

É difícil encontrar palavras que possam integrar um texto jurídico, para reagir a isto, pois o Ministro, a um só tempo, agrediu a dignidade de milhões de brasileiros e brasileiras que ao longo da nossa história lutaram para conquistar direitos e o que, posteriormente, tem se dedicado a fazer valer esses direitos.

O Ministro expressa, com todas as letras, que quem defende direitos trabalhistas só o faz porque tem adoração a um símbolo religioso, a tal CLT, sem contar que, ao mesmo tempo, com esta “analogia”, ofendeu igualmente os Indus e suas crenças.

Mas, curiosamente, ele se posta como um deus, que tudo pode! Na verdade, como o filho de deus, (do deus mercado), a quem deve obediência e devoção!

Buscando agradar ao seu deus, teceu loas à “reforma” trabalhista e profanou a CLT, pouco importando se, de fato, a Lei 13.467/17 foi apenas mais uma (embora de forma muito mais profunda) dentre tantas outras leis que promoveram inúmeras alterações na CLT. Desse modo, todos os artigos da “reforma” estão inscritos na tal “vaca sagrada” que, portanto, já não seria tão sagrada assim.

Mas uma coerência mínima pouco importa, o que gera aplausos naquele ambiente é defender retração de direitos e, mais ainda, atacar a Justiça do Trabalho, afirmando que esta só teria, em algumas decisões, resistido à aplicação de preceitos da “reforma” porque se mantém apegada aos dogmas da CLT – sem dizer quais, por certo.

Ocorre que fazer este enfrentamento não lhe pareceu suficiente. Considerou necessário entregar mais e para assim agir voltou ao plano do misticismo.

Com uma autoridade digna de uma divindade, criou uma versão própria da Constituição Federal e a sacralizou, de modo que resta a todos apenas o ato de seguir as suas palavras, ou, mais propriamente, os seus próprios dogmas.

Expressou, por conseguinte, que a Constituição “não determina padrão específico de produção”, querendo dizer com isto que a produção, no sentido de exploração do trabalho, pode se desenvolver sem quaisquer limitações jurídicas, não havendo, pois “justificativa para preservar as amarras de um modelo hierarquizado e fordista”, que estaria “na contramão de um movimento mundial de descentralização”.

Então, se o mundo (leia-se, empresas multinacionais) determina um padrão de exploração do trabalho, o Brasil deve se curvar ao que for demandado pelo poder econômico dessas empresas, mesmo que a Constituição Federal vá em outro sentido. E ainda há quem aposte todas as suas fichas na defesa da soberania nacional.

Mas Gilmar Mendes não opera no plano da realidade normativa. Assim, na “CMGM”, isto é, na “Carta Magna do Gilmar Mendes”, estas restrições político-jurídicas não existem, vez que foram simplesmente abolidos todos os artigos (da Constituição Federal de 1988) em que os direitos trabalhistas, incluindo a relação de emprego, a organização sindical e a greve, aparecem como Direitos Fundamentais e em que se explicitou o pacto social firmado em torno da dignidade humana; dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; da prevalência dos Direitos Humanos; da construção de uma sociedade livre, justa e solidária; da erradicação da pobreza e da marginalização; da redução das desigualdades sociais; da promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; da função social da propriedade; da ordem social baseada no primado do trabalho, tendo como objetivo o bem-estar e a justiça sociais; da ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.

Para o Ministro o que vale é o credo do mercado livre de todas as amarras, diga-se, sem a obrigação de cumprir direitos trabalhistas, para o delírio de alguns supostos “empreendedores” nacionais. A que nível de “debate” chegamos!!!

Mas quem sabe daqui a alguns dias as associações e movimentos de defesa dos trabalhadores e trabalhadoras e da Justiça do Trabalho façam uma “nota” respeitosa contra isso, até porque, como se diz, não é hora de se contrapor ao Supremo.

E desse modo, sem uma efetiva e contunde reação, e até mesmo por sucessivas assimilações do discurso empresarial no próprio seio da Justiça do Trabalho (videm as estratégias de gestão pautadas pela produtividade e, mais recentemente, a adoção do mecanismo – inconstitucional – dos precedentes, que reproduzem, ambos, a tática de assédio sobre magistratura trabalhista, buscando criar a figura do juiz-gestor ou, mais propriamente, o não-juiz), que favorecem à naturalização e “legitimação” jurisprudencial da precarização, é que as violências contra os direitos fundamentais da classe trabalhadora (atingindo, sobretudo, a corpos determinados) proliferaram impunemente e continuarão crescendo, de uma forma cada vez mais perversa.

A esperança que resta é que a classe trabalhadora como um todo perceba este processo, se reorganize e ofereça resistência aqui e agora, não se deixando levar pelos discursos falseados da “liberdade” individual, do “empreendedorismo” e da oportunidade política que imporiam a necessidade da formação de alianças com as forças que lhe oprimem, que lhe exploram, que zombam das suas necessidades e que, no fundo, desconsideram a sua condição humana.

Jorge Luiz Souto Maior é professor de direito trabalhista na Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros livros, de Dano moral nas relações de emprego (Estúdio editores).