Derrite contra a Polícia Federal, por Elio Gaspari

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Elio Gaspari, Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles “A Ditadura Encurralada”.

Folha de São Paulo, 16/11/2025.

Se Guilherme Derrite fosse um transeunte laçado na praça dos Três Poderes para redigir um projeto de combate ao crime organizado, teria sido compreensível a barafunda que ele produziu com as várias versões de seu relatório para o projeto de lei contra as facções criminosas.

Infelizmente, Derrite é um veterano policial e secretário de Segurança do governador Tarcísio de Freitas, possível candidato a presidente da República. Mais: Derrite é um deputado federal e provável candidato ao Senado em nome do que seria um desejo do eleitorado por mais segurança. Foi laçado pelo presidente da Câmara, deputado Hugo Motta, para relatar o projeto de lei contra as facções criminosas.

Com quatro versões, Derrite produziu um monstrengo, revelador dos interesses estabelecidos na máquina da segurança do país.

Tome-se como exemplo a limitação que Derrite quis impor à Polícia Federal. Seu primeiro relatório estabelecia que a PF só poderia investigar depois de ter havido uma solicitação do governador do estado. Gracinha. Existem crimes federais, como o tráfico de armas e de drogas, mas a PF dependeria de uma licença dos governadores.

Se esse sistema existisse nos Estados Unidos do século passado, teriam continuado as execuções de ativistas que lutavam contra a bandidagem racista de estados do Sul. Quem viu o filme “Mississippi Burning” sabe do que se trata. A bandidagem racista operava com o apoio de governadores, juízes e policiais. Foi a Polícia Federal quem desarmou as tramas.

Lá, a Federal chama-se Federal Bureau of Investigation, o FBI. Foi dirigido de 1924 a 1972, quando morreu, por J. (de John) Edgar Hoover. Sujeito detestável, grampeava inimigos, chantageava políticos e presidentes. Solteirão misógino, foi um mau exemplo, mas criou uma instituição robusta e honesta (à sua maneira). Hoover foi um mau exemplo, mas criou e protegeu uma instituição exemplar.

Com esse nome, a Polícia Federal brasileira surgiu em 1967. Desde então, ela se tornou, de longe, a mais respeitada instituição policial do país. Derrite queria que ela pedisse licença aos governos estaduais para desempenhar suas funções. O deputado-secretário é capitão da reserva da PM paulista, onde fez fama na tropa de elite da Rota.

O Primeiro Comando da Capital operava sua rede de postos gasolina, empresas e fintechs de São Paulo há décadas. Graças à Operação Carbono Oculto, do Ministério Público e da Polícia Federal, parte dessa máquina foi desmontada, isso sem um só tiro. A Operação Escudo da polícia de Tarcísio e Derrite matou 28 pessoas num só mês de 2023. Quase todos pretos pobres e moradores da periferia.
Com sua proposta de emasculação da Polícia Federal, Derrite mostrou que, enquanto o crime está organizado, o Governo de São Paulo tornou-se, na melhor das hipóteses, uma bagunça.

Jornalismo enviesado, por Hélio Schwartsman

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Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”

Folha de São Paulo, 15/11/2025.

A BBC fez mau jornalismo ao editar de forma enviesada duas falas diferentes de Donald Trump, dando a falsa impressão de que ele fez um apelo direto por ações violentas no dia da invasão do Capitólio, em 2021. A história já custou os cargos a dois figurões da emissora e poderá deixar uma conta salgada para o contribuinte britânico. O Agente Laranja ameaça processar a BBC cobrando uma indenização de US$ 1 bilhão.

O jornalismo, por tentar rascunhar a história em tempo real, é uma atividade mais afeita a erros do que ocupações que lidam com tarefas repetitivas e mais facilmente “protocolizáveis”, como cirurgias ou transporte aéreo. O problema não é tanto errar, mas errar sempre em direção ao mesmo lado nas questões politicamente carregadas.

O relatório interno que apontou o erro no caso de Trump também identificou vieses nas coberturas da BBC sobre Gaza e pessoas trans. O que fazer? Parte do problema é que diferentes profissões atraem diferentes públicos. É comum ver uma maior concentração de esquerdistas em atividades como jornalismo e na academia e de direitistas em carreira militar ou no mercado financeiro.
É um processo de autosseleção a partir de traços de personalidade e gostos. Não vejo muito o que possa ser feito para contrapor-se a isso. Para piorar, vivemos uma época moralista, que recompensa socialmente o engajamento e a militância.

O caminho que me parece factível é criar uma cultura que distinga claramente a esfera pessoal, na qual a militância é legítima, da profissional, que precisa pautar-se por rigor técnico e afastamento de posições preconcebidas.

A preocupação de repórteres e editores quando preparam textos para publicação deve ser a de informar seus leitores e não transformar o mundo. Precisam também desenvolver uma espécie de paranoia profissional, perguntando-se o tempo todo se não se deixaram levar por suas preferências e acabaram cruzando alguma linha vermelha.

O jornalismo profissional, para cumprir sua missão, precisa ser diferente das redes sociais.

Segurança não é só repressão, por Oscar Vilhena Vieira

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Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023)

Folha de São Paulo, 15/11/2025

A Câmara dos Deputados ofereceu nesta semana mais um espetáculo de irresponsabilidade política e desprezo pelo destino de milhões de brasileiros submetidos cotidianamente à tirania do crime organizado.

O despreparo do deputado indicado para a tarefa de relatar a proposta do chamado Marco Legal do Combate ao Crime Organizado ficou patente pelas sucessivas e contraditórias versões dos relatórios apresentadas ao longo da semana. Até restringir a competência da Polícia Federal para investigar o crime organizado aventou-se, sabe-se lá com que objetivo.

Um dos paradoxos das políticas de segurança, como destacado por Theo Dias e Carolina Ricardo em recente artigo nesta Folha, é que a ineficácia de políticas estritamente repressivas apenas aumenta a demanda por mais repressão, criando um enorme mercado para o populismo penal.

A experiência do Rio de Janeiro é uma expressão desse ciclo vicioso, que precisa ser rapidamente interrompido. A repressão, quando praticada à margem da lei, apenas agrava o problema. Quando devidamente conduzida, em conformidade com os princípios do Estado de Direito e associada a outras políticas públicas, é parte essencial do enfrentamento de organizações criminosas.

Nas últimas décadas, diversas experiências na Itália e na Colômbia, bem como nos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Espírito Santo, Pernambuco e Minas Gerais e em cidades como Nova York, nos oferecem um importante repertório de políticas exitosas de combate ao crime organizado e controle da criminalidade violenta.

Em vez de respostas legislativas meramente simbólicas ou espetáculos sangrentos e ineficazes, precisamos capacitar e fortalecer as instituições de aplicação das leis, coordenar melhor suas ações e integrar as políticas de segurança às demais políticas públicas que dificultem ao crime se espraiar pelo tecido social e se alojar no poder político e no sistema econômico.

Três são os pilares dessas políticas exitosas que deveriam estar ocupando os esforços daqueles efetivamente preocupados em enfrentar o crime e não apenas em se beneficiar eleitoralmente do medo por ele criado.

Recuperação dos territórios dominados pelo crime organizado, que devem ser imediatamente ocupados pelo Estado. Os criminosos precisam ser presos. Como as experiências de Bogotá e Medellín indicam, a reurbanização e revitalização das áreas dominadas pelo crime são indispensáveis para devolver dignidade e expectativa de desenvolvimento para as comunidades. O Estado precisa se fazer presente para prover ordem, justiça e bem-estar.

Profissionalização e qualificação do sistema de Justiça e das diversas agências de aplicação da lei, com ênfase para mecanismos de inteligência. Não apenas inteligência policial, mas também financeira. É o que foi feito na Itália por meio da criação de uma Agência Nacional Anticrime. É necessário seguir o dinheiro no espaço digital. O Brasil precisa rever sua obtusa regra de sigilo bancário, que apenas favorece a infiltração do crime no sistema financeiro e em outros setores da economia formal. Combater a corrupção é uma pré-condição para combater o crime organizado.

Por fim, é necessário integrar e coordenar todas essas atividades. Esse é um trabalho politicamente desafiador e administrativamente complexo, especialmente num país com estrutura federativa e imerso em forte polarização política. Talvez Geraldo Alckmin seja a pessoa talhada para a tarefa. Político com perfil mais conservador, num governo progressista, protagonizou, ao lado de Mário Covas, a mais bem-sucedida redução de homicídios na história no Brasil.

Da China, com inveja, por Paulo Nogueira Batista Júnior

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Paulo Nogueira Batista Júnior – A Terra é Redonda – 14//11/2025.

O despertar chinês ensina que a verdadeira soberania nasce de um projeto próprio: rejeitar receitas alheias para construir, com pragmatismo e orgulho civilizatório, um palco onde o Estado conduz e os agentes atuam

Uma frase atribuída a Napoleão Bonaparte correu o mundo: “Quando a China despertar, o mundo estremecerá”. Bem, a China está totalmente acordada e os demais países, especialmente o Ocidente, e dentro do Ocidente especialmente os Estados Unidos, não sabem como lidar com o desafio que ela representa. No Ocidente, a China e, em menor medida, a Rússia são vistas com grande preocupação, como rivais poderosos, pelo eixo Atlântico Norte.

Há dois tipos de inveja, leitor ou leitora. A maligna, que é a dos EUA e da Europa, leva-os a tentar barrar o progresso da China o tempo todo. A benigna admira esse progresso e quer, dentro do possível, e mutatis mutandi, aprender com os chineses e incorporar elementos do processo que eles vêm seguindo. Estou aproveitando uma viagem pela China, de onde escrevo, para conhecer um pouco mais este grande país.

Otto von Bismarck dizia: “Não aprendo com a experiência – apenas com a dos outros”. Os chineses são fiéis seguidores dessa máxima, ainda que talvez não tenham ouvido falar dela. Os chineses aprenderam, por exemplo, com a experiência latino-americana, infelizmente de forma negativa. Ou seja, observando nossos erros estratégicos, viram o que não fazer.

Se pudesse resumir a questão em uma frase, diria: a China, ao contrário da América Latina, ignorou solenemente as recomendações do assim-chamado Consenso de Washington. Pensou por conta própria e construiu com grande sucesso as suas próprias soluções, adaptadas às circunstâncias nacionais. Copiou quando conveniente, inovou sempre que necessário.

Antes de prosseguir no comentário sobre o bem-sucedido modelo chinês, duas rápidas ressalvas. Primeira: não tenho a pretensão de conhecer em profundidade um país tão complexo e tão diferente do nosso, em uma viagem de algumas semanas. É verdade que vivi por mais de dois anos em Xangai, quando fui vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (mais conhecido como Banco dos BRICS), hoje comandado pela ex-presidente Dilma Roussef.

Mas já se vão oito anos desde que deixei o banco e a China mudou muito desde então. Além disso, na época em que morei aqui, estava tão envolvido na criação do novo banco multilateral, um projeto ambicioso dos BRICS, que tive menos tempo do que queria para me familiarizar com as singularidades de um país que, como escreveu Henry Kissinger, não é uma nação, mas uma civilização em si mesma.
Segunda ressalva: a admiração pela performance da China não deve nos impedir de ver as dificuldades que o país enfrenta. Destaco rapidamente alguns dos principais desafios macroeconômicos e políticos, sem pretender, claro, exaurir a questão.

Um deles é a desaceleração do crescimento da economia, decorrente de certa perda de dinamismo das exportações e do investimento. O protecionismo contra a China cresceu, estreitando ou mesmo fechando mercados importantes, nos Estados Unidos e na Europa principalmente, e ameaçando estreitar outros. Em alguns setores da economia chinesa, houve investimentos em excesso, resultando em capacidade ociosa, que a China não consegue mais direcionar para mercados estrangeiros com a facilidade de antes.

Essa desaceleração da economia cobra o seu preço em termos de mercado de trabalho. A alta taxa de desemprego entre os jovens, por exemplo, constitui um problema social e político de primeira ordem. Além disso, o consumo agregado ainda é muito baixo, o que reflete várias dificuldades que a população vivencia e que, se não forem enfrentados, podem corroer o apoio ao governo. Entre as razões que limitam o consumo privado estão as insuficiências do sistema de aposentadoria e dos serviços de saúde.

O governo chinês está plenamente consciente do problema e procura melhorar os sistemas nacionais de previdência e saúde. Com o envelhecimento da população, entretanto, o problema se torna mais grave, pois aumenta a demanda por aposentadorias, pensões, serviços médicos e remédios.
Por isso, as pessoas continuam poupando muito para tentar garantir o padrão de vida na idade avançada. Assim, não é fácil alcançar o objetivo do governo, já antigo, de aumentar o mercado de consumo e tornar a economia chinesa menos dependente do dinamismo das exportações.
O sucesso extraordinário da China nos últimos 40 anos

Essas ressalvas parecem verdadeiras, mas não obscurecem o fato básico – a China despertou no final do século XX e não voltará mais ao sono profundo de outras épocas históricas. O modelo econômico chinês tem sido extraordinariamente bem-sucedido e não é bem compreendido no resto do mundo.
Como caracterizá-lo de forma sintética? Talvez começando pelo que ele não é. Não se trata de uma economia de mercado pura e simples, ou seja, não é um sistema capitalista clássico ou tradicional.

Não cabe nem mesmo designá-lo como “capitalismo de Estado”, como se faz com frequência nos meios ocidentais, tanto acadêmicos como jornalísticos. O Estado tem presença tão avassaladora na economia e na sociedade que essa expressão se revela enganosa. Note-se que, ao adotá-la, credita-se indevidamente ao capitalismo, ainda que “de Estado”, mérito que ele não teve e não tem pelo sucesso da China.

Também está claro que o modelo chinês iniciado por Deng Xiao Ping em 1979 é bem diferente dos modelos soviéticos e chineses do tempo da economia centralmente planificada. O que se buscou na China foi reestruturar a economia, abrindo espaço para o mercado e o setor privado, sem repetir, porém, os erros cometidos por Mikhail Gorbachev, nos anos 1980, com a Perestroika (reestruturação econômica) e a Glasnost (liberalização política).

O que fez (e não fez) a China, com base em uma avaliação cuidadosa da trajetória da União Soviética na sua década final e da Rússia nos anos 1990? Duas coisas, basicamente. Primeira: a Perestroika chinesa foi muito mais cautelosa e gradual. Não houve, como na Rússia, tratamento de choque na economia, privatizações em massa e liberalização abrupta. A abertura econômica foi feita passo-a-passo, sem desmontar as estruturas estatais e mantendo o controle sobre os setores estratégicos da economia.

Segunda coisa: não houve Glasnost na China. O Partido Comunista Chinês permanece como partido único, todo-poderoso, com grande influência na sociedade e na economia. Existem bilionários e empresários privados poderosos, mas na China eles não se criam. Eles não têm papel político e não se lhes permite dominar as políticas públicas.

Um cenário totalmente diferente do que se vê, por exemplo, nos Estados Unidos, onde os donos do dinheiro são donos do poder, convertendo a chamada democracia em uma plutocracia (o governo dos endinheirados).

Outro dado importante: o combate à corrupção assume proporções ferozes na China e atinge quando necessário figuras proeminentes e poderosas. Diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos e em muitos outros países, os bilionários chineses têm muita dificuldade de comprar políticos e funcionários. Não se estabelece, portanto, uma cleptocracia (o governo dos ladrões).

Também não se estabelece a kakistocracia (o governo dos piores), típica dos Estados Unidos e da Europa. No Ocidente, o sistema político obedece em geral a uma lógica de seleção adversa que premia os mais medíocres e os menos comprometidos com o interesse público. Quem tiver dúvida sobre isso, que passe em revista os líderes políticos atuais e recentes nos Estados Unidos e na Europa. Ou que considere, outro exemplo, a classe política brasileira.

Na China, impera um sistema fechado em que as lideranças são selecionadas com base no mérito. Uma meritocracia, portanto. Imperfeita, como se pode imaginar, mas suficiente para afastar o risco de que se forme uma kakistocracia.

Os chineses são seres humanos, claro, e enfrentam também a necessidade de lutar contra a dominação dos super-ricos, a corrupção e a mediocridade. Mas eles têm sido mais bem-sucedidos do que o resto do mundo em enfrentar esses desafios “humanos, humanos demais”, como diria Friedrich Nietzsche.
O modelo chinês

O que é então o modelo chinês? Vamos dar voz aos próprios chineses. Eles caracterizam o seu modelo como “socialismo com características chinesas”. Usam sintomaticamente o termo “socialismo” no lugar do “comunismo” soviético ou maoísta.

E porque dizem “com características chinesas”? É que aqui as forças de mercado têm grande peso, mas operam dentro um quadro estritamente controlado pelo Estado e pelas agências e instituições estatais. Uma máxima popular na China, citada pelo professor Wen Yi em debate do qual participei aqui em Xangai, reflete bem isso: “o Estado arma o palco e os agentes econômicos atuam”.

Dois exemplos, explicados em “apertada síntese”, como dizem os advogados. O sistema bancário da China é quase totalmente dominado por bancos estatais. Aqui não existem Bradescos, Itaús ou Santanders. Os chineses não conhecem e nem querem conhecer esse tipo de instituição. O setor bancário é estratégico do ponto de vista macroeconômico e sempre ficou sob domínio de bancos públicos. Por outro lado, um aspecto importante é que, dentro das regras estabelecidas pelo governo e pelo banco central, esses bancos estatais competem entre si, o que favorece maior eficiência.

Outro exemplo crucial. A estabilidade da economia chinesa repousa sobre uma conta de capitais fechada, vale dizer pela aplicação rigorosa de controles sobre a entrada e saída de capitais. Houve certo afrouxamento dos controles no passado mais recente, mas a China continua relutante em expor a sua economia aos surtos de entrada e saída de capitais que tanto mal fazem na América Latina.

Esse foi um dos muitos pontos em que a China fez ouvidos de mercador às recomendações do Consenso de Washington. Aprenderam com nossa experiência infeliz, dentro do espírito de Bismarck. Se tivessem se pautado pelos conselhos ocidentais, não teriam chegado aonde chegaram.
A continuidade na civilização milenar da China

Para terminar, algumas observações sobre uma singularidade da China que é crucial, mas infelizmente inimitável. Raramente se leva na devida conta, que a história milenar da China é marcada por uma extraordinária continuidade. A maior parte das outras civilizações antigas dos vários continentes não tiveram a longa e ininterrupta duração, de quatro ou cinco milênios, que caracteriza a civilização chinesa.

Os egípcios têm uma relação remota, para não dizer fictícia, com o Egito dos faraós e suas pirâmides. Os gregos atuais pouco têm a ver com a Grécia antiga. Os italianos de hoje pouco têm a ver com o Império Romano. Os astecas e incas foram totalmente obliterados pela Espanha. A Rússia também tem uma civilização contínua, mas da ordem de 1000 anos.

A China é um caso muito especial. Sofreu, ao longo de milênios, diversas turbulências, invasões, guerras externas, guerras civis, mas conseguiu, apesar disso, preservar um fio cultural condutor. Isso se reflete em alguns aspectos da trajetória chinesa que são, a meu ver, centrais para entender o sucesso do país.

Um deles é o respeito, mais do que isso veneração pelos antepassados e pelas tradições históricas. Esse respeito à tradição não bloqueia, entretanto, a inovação e a criatividade das novas gerações. A busca do novo, ao contrário, é omnipresente, mas não implica descartar o passado.
Mesmo um revolucionário marxista radical, como Mao Zedong, citava com frequência os pensadores clássicos da China como Lao Tse e Sun Tzu. Considerava a obra principal deste último, A Arte da Guerra, quase como um segundo manifesto comunista. Por seu turno, quando o maoísmo foi superado por Deng Xiao Ping e seus sucessores até o atual líder, Xi Jinping, não houve rejeição total da figura de Mao. Ela aparece até hoje em todas as notas de dinheiro. Suas obras são lidas e circulam amplamente.

Compare-se com o Brasil. Nós não respeitamos e, muitas vezes, sequer conhecemos nosso passado. Essa ignorância alimenta a tendência a depreciar sistematicamente a nossa história. E esse é um entre muitos fatores a derrubar a nossa autoestima.

Oscar Wilde dizia: “Self-love is the beginning of a long life romance” (o amor próprio é o começo de um romance para toda a vida). Esse amor-próprio é central para o sucesso individual e nacional. Os chineses têm isso em abundância. Mas, veja bem, leitor ou leitora: amor-próprio, e não desprezo pelos outros; orgulho, não vaidade ou arrogância; respeito por si mesmo e sua família imediata, sim, mas sem cair no individualismo egoísta tão típico das sociedades ocidentais.

Por esses e outros motivos, precisamos estudar mais a China e aumentar nossas interações com os chineses. Vale o esforço de superar as barreiras linguísticas, culturais e geográficas. Sem cair na imitação servil, levando sempre em conta as nossas condições históricas e políticas, podemos aprender muito com eles.

Paulo Nogueira Batista Jr. é economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS. Autor, entre outros livros, de Estilhaços (Contracorrente).

Uma alternativa ao neoliberalismo, por Emir Sader

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Emir Sader – A Terra é Redonda – 12/11/2025

O fracasso comprovado do modelo neoliberal na América Latina projeta a região como o epicentro da disputa hegemônica do século XXI, redefinindo os parâmetros políticos e ideológicos globais

1.
O modelo neoliberal fracassou na América Latina. O único país que o mantem, ainda assim promovendo uma crise social nunca vista no pais, com concentração de renda e exclusão social enormes, é a Argentina de Javier Milei.

Nos outros países a recessão que provocou favoreceu a eleição de governos anti-neoliberais em grande parte dos outros países do continente, entre eles o Brasil, o México, a Colômbia, a Venezuela, o Uruguai, Honduras.

No entanto, o neoliberalismo continua sendo predominante no mundo, marcando o período histórico atual. Mesmo em países com governos anti-neoliberais, a presença do capital financeiro, sob sua modalidade especulativa, continua predominante.

A América Latina á a única região do mundo com governos anti-neoliberais, tornando-se assim o epicentro das principais lutas no mundo contemporâneo. Não por acaso então é o continente que projetou os mais importantes lideres políticos do século XXI, entre eles Lula, Hugo Chavez, Rafael Correa, Nestor e Cristina Kirchner, Lopes Obrador e Claudia Sheinbaum, Evo Morales, Pepe Mujica entre outros.

Assim, a disputa hegemônica no século XXI se dá entre o neoliberalismo e o antineoliberalismo. O neoliberalismo continua dando os parâmetros gerais políticos e ideológicos no novo século.
Depois da ultima década do século XX, eminentemente neoliberal, o novo século trouxe o protagonismo das forças anti-neoliberais. Na segunda década do século XXI, o Brasil e o México aparecem como os governos mais consolidados na nova perspectiva, enquanto a Argentina, isolada, busca resgatar politicas neoliberais.

Uma disputa que marca toda a primeira metade do século XXI, de cujo desenlace dependerá o futuro da América Latina, o epicentro das lutas antineoliberais. É também por essa razão que um líder brasileiro como Lula pode se projetar como o principal personagem político da esquerda em escala mundial. Porque ele pode apresentar uma alternativa concreta e vitoriosa frente ao neoliberalismo.

2.
Enquanto a outra característica marcante deste século é o declínio da hegemonia norte-americana, depois de ter reinado, de forma soberana, no século XX. Uma decadência que se estende para a Europa, aliada estratégica dos Estados Unidos. Um continente que, depois de dar os contornos ideológicos para grande parte do mundo, ficou prisioneira do seu eurocentrismo, no momento em que a Ásia, especialmente a China, reapareciam com força.

Por essa razão também que eu considero Peter Frankopan, inglês, como o primeiro grande historiador do século XXI. Sua obra se inicia justamente com a crítica do eurocentrismo, reivindicando o papel especial da China, que havia sido a potência mais importante do mundo, até que a Inglaterra introduziu o consumo do ópio naquele pais, levando-o à decadência.

Um processo do qual a China renasce, de novo, como a maior potência econômica do mundo no século XXI. E protagoniza, junto ao poderio militar da Rússia e a presença de outros países emergentes, como o Brasil, a África do Sul, a Indonésia, entre tantos outros hoje, os Brics, que se tornou o fenômeno político mais importante do século XXI.

A disputa hegemônica no plano político se dá então, neste século, entre a hegemonia declinante do bloco liderado pelos Estados Unidos, e a aliança entre a China, a Rússia, o Brasil e outros aliados. Dessa disputa e de seu desfecho depende o futuro da humanidade ao longo de todo o século XXI.

Emir Sader é professor aposentado do departamento de sociologia da USP. Autor, entre outros livros, de A nova toupeira: os caminhos da esquerda latino-americana (Boitempo).

Inovação e desenvolvimento

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Numa sociedade marcada por grandes competições entre os agentes econômicos e produtivos, onde os atores buscam manter seus espaços e consolidar novos ganhos monetários e financeiros, a chave do sucesso se concentra na chamada inovação, instrumento central para alcançar o desenvolvimento econômico e melhorar as condições sociais e políticas.

Numa rápida retrospectiva do desenvolvimento econômico, todas as nações que conseguiram construir uma sociedade mais igualitária, marcadas pelas instituições políticas sólidas e consistentes, tiveram, em sua trajetória política marcada pelo fomento da inovação e o fortalecimento do empreendedorismo, angariando nossos espaços produtivos, com melhoras nos setores produtivos, enriquecimento da população, transparência crescente e maior respeitabilidade no cenário internacional.

As nações desenvolvidas construíram uma sociedade marcada pela inovação, conseguindo construir um ambiente ousado e cheio de novidades, criando políticas ativas e fomentando os setores educacionais, garantindo recursos monetários para melhorar o ambiente escolar, fortes investimentos em capital humano, capacitações constantes dos trabalhadores, taxas de juros reduzidas, estímulos crescentes em ciências, pesquisas e tecnologias e, principalmente, uma política que fortalecesse o pensamento científico, instrumento central para a construção de espaços de inovação e de empreendedorismo.

Um dos economistas mais importantes para compreendermos a importância da inovação, foi o austríaco Joseph Schumpeter, responsável pela publicação do livro “Capitalismo, socialismo e Democracia” onde destacou a chamada destruição criativa, responsável pelas grandes transformações tecnológicas da sociedade global, uma verdadeira revolução que destroem os modelos econômicos e produtivos existentes e constroem novos modelos de negócios, revolucionando as sociedades, criando novas oportunidades e, ao mesmo tempo, criem novos desafios e incertezas.

O economista austríaco Joseph Schumpeter nos mostra a importância da inovação, que contribui para a criação de novos produtos, bens ou mercadorias, gerando novos espaços de investimentos produtivos, que serve para movimentar todo o sistema econômico, gerando novos empregos, aumentando a renda agregada e garantindo novas oportunidades, novas perspectivas e mudando realidades.
As nações que conseguiram construir novos espaços de inovação e de empreendedorismo fizeram grandes investimentos em capital humano, um forte aporte na construção de um ambiente de inovação constante, reflexões críticas, questionamentos variados, inquietações crescentes e estímulos diversos para atrair pessoas e organizações empreendedoras. A educação é fundamental para a criação deste cenário de inovação, a construção de um projeto educacional consistente que dialoga francamente com a comunidade, com os setores produtivos e a sociedade civil, garantindo para que todos os setores chancelem o projeto e participem ativamente na estratégia de desenvolvimento.

Inúmeros países conseguiram consolidar espaços de crescimento econômico e produtivo através de fortes investimentos em inovação, melhorando as condições de vida da população, tais como o Japão, a Coréia do Sul, a China, dentre outros. Todas estas nações tiveram em comum, a capacidade de eleger a educação como o instrumento central para o desenvolvimento econômico, para isso, foi necessário a construção de um consenso interno, garantindo fontes sólidas de investimentos, uma valorização dos profissionais da educação, criando estímulos crescentes para atrair para a docência os melhores quadros da sociedade. O caminho do desenvolvimento econômico é espinhoso, cheio de desafios e turbulências, muitas nações menores que o Brasil conseguiram alcançar seu desenvolvimento e se transformaram em grandes potências tecnológicas, chegou a hora de seguirmos os bons exemplos de desenvolvimento econômico e deixarmos de lado ideologias ultrapassadas e reacionárias que servem para aprofundar nosso subdesenvolvimento.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Dívida e juros: Quatro décadas de um beco sem saída, por José Álvaro de Lima Cardoso

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Da hiperinflação nos anos 1990 às crises internacionais do fim do século e de 2008, passando pelo golpe e até os dias de hoje, a economia brasileira ostenta juros absurdos. País alimenta ciclo perverso, engorda rentismo e se mantém eternamente vulnerável.

José Álvaro de Lima Cardoso – OUTRAS PALAVRAS – 12/11/2025

Os anos 1980 e meados dos 1990 marcam um período em que a dívida pública se tornou uma espécie de refém da hiperinflação. O Brasil enfrentava inflação acelerada — especialmente após os choques de preço do petróleo na década de 1970 — e a dívida pública era financiada através de instrumentos de curtíssimo prazo, com forte indexação à taxa básica de juros e, frequentemente, às variações do câmbio.

Esta combinação era guiada por uma lógica perversa: quando a inflação disparava, os juros subiam para contê-la, o que automaticamente aumentava o custo de rolagem da dívida. Diferentemente dos dias atuais, a inflação realmente era muito alta: no ano de 1993, por exemplo, que precedeu o ano de implementação do Plano Real, a inflação chegou a 2.477,15%, medida pelo IPCA-IBGE. Com o processo de indexação, a dívida pública tornou-se um mecanismo de transmissão de instabilidade para toda a economia.

A inflação galopante inviabilizava fazer planejamento de médio e longo prazos. Com inflação que, em alguns períodos, chegou a 1,5% ao dia, as empresas se limitavam a tentar proteger o valor do seu capital. Havia um tipo de aplicação financeira, por exemplo, chamada de overnight (da noite para o dia), com prazo de apenas um dia útil, com rentabilidade equivalente as taxas de juros diárias, extremamente altas para acompanhar a inflação. Nesse contexto, as empresas maiores, os ricos, e a classe média, conseguiam preservar seu capital de forma relativamente segura, mas o grosso da população ficava à mercê da queda contínua e rápida do seu poder aquisitivo. A superinflação funcionava como uma espécie de mecanismo extra de exploração dos trabalhadores. Nesse ambiente, a dívida pública consumia recursos que tirava do sistema a capacidade de investir na produção e no aumento da produtividade. A dívida tinha que ser constantemente refinanciada a taxas crescentes, consumindo recursos públicos através dos juros elevados e protegendo os detentores dos títulos públicos.

Com a chegada do Plano Real, em 1994, que fixou a taxa de câmbio (política que foi mantida até 1999), a dívida continuou indexada ao dólar. Para estabilizar a inflação através de uma âncora cambial, foi necessário aceitar uma dívida mais cara. Entre 1995 e 1998, a taxa média de juros real (Selic menos a inflação) foi de aproximadamente 22% ao ano. No período de 1995 e 1998 a taxa chegou a aproximadamente 30% ao ano. Nesse período a taxa de juros real brasileira era a mais alta do mundo em termos reais. Em 1999, a taxa de juros chegou a 45% ao ano em termos nominais, para uma IPCA-IBGE de 8,94%. Ou seja, o país tinha uma taxa de juros reais de 36%., o que tornava quase impossível o investimento produtivo. Na realidade, era uma combinação de política macroeconômica para matar qualquer ambição de crescimento econômico.

Em 18 de janeiro de 1999 o governo anunciou a adoção do câmbio flutuante. Até então, o Brasil operava com uma âncora cambial, ou seja, o regime de câmbio fixo. Em função dessa mudança, o preço do dólar disparou. No início de janeiro a moeda estava cotada em torno de R$ 1,20 e, ao final do mês, tinha chegado a R$ 2,10, uma desvalorização do real de cerca de 75% em poucos dias. No início de março de 1999, a cotação chegou a R$ 2,20, representando uma desvalorização acumulada de mais de 83%. Esse período ficou conhecido como a “maxidesvalorização de 1999” e teve reflexos muito significativos na inflação e na economia geral do país.

A transição para o câmbio flutuante no Brasil em janeiro de 1999 foi decorrência de uma crise econômica brutal ao nível internacional – que arrastou as economias mais frágeis – assim como dos problemas estruturais da economia brasileira. O país estava enfrentando grande fuga de capitais, decorrentes da Crise Russa de 1998, que gerou pânico nos mercados globais. Investidores internacionais retiraram recursos de economias atrasadas, com medo de um efeito dominó e o Brasil era uma das economias mais expostas ao contágio. Um sintoma da doença foi o comportamento das reservas internacionais brasileiras, que despencaram de US$ 74 bilhões em julho de 1998 para US$ 42 bilhões em janeiro de 1999 (7,6% do PIB). Nesse período a capacidade do Brasil em termos de reservas era muito pequena. Para efeitos comparativos, atualmente o país possui US$ 346,4 bilhões de reservas, cerca de 15% do PIB

O regime de câmbio fixo (ou âncora cambial) do Plano Real, que mantinha o dólar artificialmente controlado, tornou-se insustentável porque o país tinha um grande déficit nas transações externas e a dívida externa crescia continuamente, porque o país precisava tomar dólares emprestados para manter a cotação fixa. Como os especuladores apostavam que o real seria inevitavelmente desvalorizado a qualquer momento, havia uma fuga de capitais, que aumentou a pressão sobre as reservas. O Banco Central tinha que injetar dólares o tempo todo na economia para defender a paridade, sustentáculo do Plano Real.

A adoção do câmbio flutuante em janeiro de 1999 aumentou o peso da dívida externa em reais, decorrente da apreciação do dólar. A dívida interna, por sua vez, cresceu expressivamente em função de juros reais extorsivos, que ultrapassavam 30%, visando financiar o déficit fiscal e manter a estabilidade da moeda, a qualquer custo. Esses juros reais visavam manter o controle da inflação e a confiança na moeda, ingrediente fundamental do regime cambial, baseado, até janeiro de 1999, na paridade com o dólar. Um dos efeitos desses juros foi o crescimento da dívida pública em relação ao PIB, que passou de 17,6% em 1994, para 31,7% em 1998, praticamente dobrando em 4 anos.

No período 2003 a 2013, a dívida pública entrou em fase de alívio relativo. Este período reuniu três fatores, de rara convergência, que aliviaram o peso da dívida pública:
1. Crescimento econômico razoável (média pouco acima de 3% ao ano)
2. Termos de troca favoráveis (preços de commodities em alta, em função da demanda chinesa)
3. Superávits primários robustos

Apesar da reunião destes fatores a dívida pública fechou o período apontado um pouco acima do que iniciou, em relação ao PIB, chegando a 63,2% em 2013. Este alívio momentâneo com os gastos com a dívida, deve ser bastante relativizado. Mesmo com toda a confluência positiva de fatores apontada acima, os gastos com serviço da pública em 2013 correspondeu a 8,3% do PIB, ou seja, o sistema da dívida permaneceu intacto. Para efeitos comparativos o Brasil gastou no mesmo ano 7,5% do PIB com a previdência. Neste mesmo ano, cerca de 42% do orçamento federal foi destinado ao pagamento dos serviços da dívida pública.

O fato é que, por condições econômicas muito excepcionais, foi possível compatibilizar durante um curto período, os gastos com a dívida pública, com um modesto ciclo de crescimento. Obviamente este alívio era estruturalmente muito frágil. Dependia de preços de commodities que o Brasil não controlava e de crescimento econômico que não era robusto o suficiente. O peso da dívida caiu um pouco por conta de fatores externos, que de certa forma encobriam problemas estruturais, como baixa taxa de investimentos, pobreza, desemprego e os próprios gastos com a dívida. Quando as condições externas mudaram, especialmente a partir da crise de 2008, a dívida voltaria a subir rapidamente: a razão entre dívida e PIB, que em 2008 chegou a 47,7%, em 2013 já estava em 63,2%.

A partir de 2014, já em um cenário de franca operação do golpe de 2016, os indicadores desabam. Os preços das commodities em 2013 dão os primeiros sinais de desaceleração. O ano de 2014 pode ser considerado um ano de virada: cai abruptamente preços de minério de ferro, petróleo, soja e outras commodities exportadas pelo Brasil, com efeitos em cascata na economia brasileira. Há uma queda das receitas públicas: redução de arrecadação de impostos sobre exportações; diminuição de royalties e participações especiais do pré-sal. A taxa de desemprego saltou de cerca de 5% em 2014 para 11% em 2016. Neste quadro há a deterioração da dívida pública: com a desaceleração do crescimento aumenta a razão dívida/PIB, chegando em 2015 a 74%.

A crise é amplificada, em função do peso da dívida pública. Cai a receita pública, o PIB recua, juros aumentam em função do aumento do risco-país; juros mais altos exigem mais superávits primários para pagar os serviços da dívida, são feitos cortes em investimentos públicos e sociais, o que aumenta a recessão. É um ciclo perverso que se retroalimenta: recessão → elevação da dívida → cortes de gastos → recessão mais profunda. E assim por diante. As crescentes obrigações com a dívida, cada vez mais dão a tônica nas decisões de política pública. Os juros reais elevados durante este período, em torno de 5%, quase sempre o mais alto do mundo no período, representavam menos recursos para saúde, educação e desenvolvimento. Os países imperialistas em geral, operavam com taxas de juros reais próximas de zero ou negativas nesse período, o que destacava ainda mais a posição do Brasil como líder em juros reais mundiais.

Em 2023, o novo arcabouço fiscal substitui o teto de gastos, implantado pelo governo golpista de Michel Temer, que vigorava desde 1º de janeiro de 2017. Como sempre, o novo arcabouço manteve a lógica de todos os planos fiscais das últimas décadas. Criou uma fórmula de controle dos gastos primários, procurando manter o superávit nesses gastos, mas sem nenhuma medida voltada para o fulcro do problema, que são os gastos com a dívida. A partir de 2023, a dívida volta a subir, ainda que moderadamente, em função dos juros reais extremamente elevados e baixo crescimento da economia.

A economia brasileira nesse período, como até agora, é prisioneira da política de manter juros lá em cima, supostamente para controlar a inflação. Essa política impede investimentos e reduzem o crescimento. Essa combinação de política macroeconômica, que é a mesma, com nuances, independentemente do governo nas últimas décadas, conduz o país a um beco sem saída: os juros são aumentados para manter inflação sob controle, mas juros altos impedem investimento, reduzem crescimento, e com isso, impedem que a dívida caia em relação ao PIB. É um beco sem saída para o país como um todo, mas uma situação maravilhosa para quem ganha muito dinheiro com o ciclo especulativo que se forma a partir dele.

A observação da trajetória completa da dívida nas últimas décadas, revela um padrão, que é comum a todos os períodos, independentemente do ciclo econômico que esteja vigorando: sempre que há choques econômicos de todo tipo (inflação, câmbio, crise financeiras globais), há uma deterioração no quadro da dívida pública, e a resposta é sempre direcionada para os gastos primários que, em princípio, nada têm a ver com a dívida. Não são os gastos primários que deterioram a relação dívida/PIB, e sim a própria elevação dos juros, ou o baixo crescimento da economia. As ações de combate aos gastos primários, cortes de gastos sociais, redução do investimento público não só não resolvem o problema, como deterioram ainda mais a situação e tornam a economia ainda mais vulnerável aos choques futuros.

Longe de ser uma variável econômica dependente, os gastos com a dívida pública no Brasil, e o conjunto de medidas que são tomadas para garantir a normalidade do fluxo desses gastos, impedem o enfrentamento de problemas centrais da economia brasileira: vulnerabilidade a choques externos, fragilidade da base produtiva e desindustrialização e baixa taxa de investimentos. O mais impressionante nesse processo é que, independentemente da posição política dos governos, todos atacaram o problema fiscal exclusivamente sob a ótica dos gastos primários, mantendo intocado os lucros de banqueiros e especuladores.

Sofrimento individual tomou lugar do conflito de classe, diz sociólogo francês

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Folha de São Paulo, 09/11/2025

Ricardo Henriques, Economista, superintendente executivo do Instituto Unibanco, professor associado da Fundação Dom Cabral e presidente do Conselho da Anistia Internacional Brasil

[RESUMO] Em diálogo com o economista Ricardo Henriques, o sociólogo francês François Dubet analisa o papel do ressentimento e das múltiplas desigualdades que sustentam uma nova economia moral, o que levou à ascensão da extrema direita em diversos países, tema de seu livro “O Tempo das Paixões Tristes”. Embora hoje sobrem motivos para pessimismo, ainda há espaço para esperança em redes de solidariedade locais.

Nascido na sociedade industrial, mas atento às transformações do presente, o sociólogo francês François Dubet tem se dedicado a entender como as desigualdades sociais fragmentam identidades coletivas e transformam injustiças em sofrimentos individuais.

Essa nova economia moral enfraquece as lutas comuns e alimenta o populismo e o iliberalismo. No livro “O tempo das Paixões Tristes” (2019, editora Vestígio), Dubet analisa de que maneiras esse cenário impulsionou o ressentimento e a ascensão da extrema direita.

Seis anos depois, diante da escalada de violência e negacionismo nos EUA, ele reafirma a importância da convivência, das experiências locais e da construção de um novo pacto civilizatório. Nesta entrevista para a Folha, Dubet alerta: “Eu detesto as ideias radicais, elas têm consequências radicais e não correspondem à experiência das pessoas”.

Ao revisitar sua formação, Dubet reconhece que aprendeu sociologia em um tempo marcado pelos conflitos de classe. É nesse contexto que evoca a coruja de Minerva, símbolo da sabedoria que só alça voo ao entardecer, quando os acontecimentos já podem ser compreendidos com alguma distância.

Em “O Tempo das Paixões Tristes”, a expressão “paixão triste” é inspirada em Spinoza, e você descreve os climas emocionais das sociedades contemporâneas. Quais as características de nossa época você mais valoriza neste livro e como pensa as paixões tristes da sociedade contemporânea?

Preciso começar com uma confissão: nasci na sociedade industrial. Era leitor de Marx, Durkheim e Weber. Escrevi alguns livros com Alain Touraine. Vivi em uma sociedade na qual os problemas eram percebidos em termos de conflitos de classe, que organizavam a esquerda e a direita com representações do futuro.

Na França, pensamos nessas categorias por muito tempo, até os anos 1980. Aliás, como sempre, é quando a esquerda chega ao poder que seu mundo começa a desmoronar. É a coruja de Minerva. Aprendi sociologia assim e por muito tempo pensei nessas categorias.

O que aconteceu? As desigualdades de classe permaneceram, claro. Mas não são mais, do meu ponto de vista, estruturadas em volta das classes sociais. Ou seja, as pessoas não dizem mais: “nós, os trabalhadores”, “eles, os patrões”. Elas dizem “eu”. “Eu” sou desigual em função do meu diploma, das minhas origens, do meu gênero, da minha sexualidade, do lugar onde moro.

Há uma espécie de individualização das desigualdades. O que, aliás, faz com que a consciência de classe não resista mais ao desprezo de classe.

Então esta é a primeira transformação: o capitalismo desigual, brutal, que de certa forma destrói as classes sociais —não a classe dirigente, obviamente—, atomizou as classes sociais.

A segunda evolução é que, até os anos 1980, quando você falava de desigualdades aos atores sociais, eles respondiam e pensavam imediatamente nas grandes desigualdades, isto é, as desigualdades no trabalho, na renda, nas condições de vida.

A justiça social é a redução das desigualdades de condições. É fazer com que os trabalhadores sejam menos pobres, e os ricos, menos ricos.

Atualmente, se eu perguntar o que é justiça social na França, e mais ainda nos Estados Unidos, as pessoas dizem que é a luta contra as discriminações: se você é homem, mulher, homossexual, branco, negro, uma pessoa da cidade ou do campo etc. A desigualdade de chances de acesso aos recursos é percebida como a desigualdade principal.

E isso tem consequências. Quando você pensa em termos de desigualdades sociais, pode pronunciar a famosa frase “Proletários de todos os países, uni-vos”, temos todos os interesses em comum. Mas ao pensar em termos de discriminação, todos temos interesses contraditórios.

Temos uma cena de conflitos que se reunia em torno de uma consciência coletiva e que hoje explodiu, gerando ressentimentos. O conflito social à la Marx ou Weber é substituído pela ideia de que somos vítimas dos outros.

Há esse efeito sobre a subjetividade dos indivíduos de regimes de desigualdades múltiplas, como você chama. Se essa especificidade do mundo contemporâneo foi muito bem para o velho mundo civilizado, como isso repercute na construção da fraternidade e da solidariedade? Você tem uma reflexão sobre a gramática política da ação coletiva. Como pensa essa construção dos vínculos de solidariedade, de ação coletiva?

É muito complexo. Se eu raciocinar no quadro europeu, a fraternidade era a nação, com seu aspecto positivo (“eu gosto das pessoas que são como eu, que falam a mesma língua e que têm a mesma cultura, a mesma história’) e negativo, que é o nacionalismo (“eu detesto aqueles que não são como eu”).

Acreditava-se que a França, por exemplo, era um Estado nacional, uma burguesia nacional e uma cultura nacional. Não era verdade. Hoje todo mundo sabe muito bem que a burguesia francesa não é nacional. Que o Estado é extremamente fraco. E que a cultura está invadida pela cultura de massa, pelo mercado e pela guerra das identidades.

Nos anos 1970 e 1980, na França, diziam que um imigrante italiano ou português seria um futuro trabalhador francês. Hoje, os filhos dos imigrantes votam na extrema direita porque detestam os novos imigrantes que vêm de ainda mais longe.

Considero como um dos grandes problemas o fato de questões como fraternidade e identidade terem sido abandonados por intelectuais de esquerda para serem apropriados pela direita e extrema direita.

Quando há sucesso dos partidos de extrema direita na França, a esquerda diz que são racistas e fascistas. Evidentemente, são racistas e fascistas. Mas eles levantam uma questão: o que temos em comum? Ora, as únicas forças políticas que respondem a isso hoje são a direita e a extrema direita.

Quando escrevi sobre isso em 2019, não estava muito seguro de mim. Mas agora, com Trump, estou totalmente seguro. Porque é pior do que aquilo que havíamos imaginado.

A questão que nos é colocada para a esquerda mundial é: somos capazes de dizer o que temos em comum? O que temos em comum para que uns aceitem sacrifícios pelos outros? O que temos em comum para reconhecer a identidade dos outros sem sermos ameaçados?

Se não tivermos a sensação de algo em comum, as diferenças culturais tornam-se ameaças.
É nesse quadro que é possível identificar a intencionalidade de desconstrução do sentido de comum à sociedade e a imposição de visões que, por vezes, negam o próprio valor da ciência. Os métodos de Trump diante dos ataques às universidades, aos museus, ao Departamento de Educação, e sua ação neste domínio de violência contra as pessoas, sobretudo os progressistas, procuram simultaneamente negar o que lhe incomoda no campo dos valores e da ciência e impor uma visão particular (e diria excêntrica) do mundo que deveria ser compartilhada como o comum.

Há um ano eu jamais teria imaginado isso. Um presidente dos Estados Unidos que busca liquidar universidades, que tem comportamentos xenofóbicos e racistas… enfim, nunca teria imaginado.

E o problema é que Trump não é um conservador autoritário, ele é ultraliberal. É em nome do declínio da autoridade que temos essa violência. Ele diz: “vocês não vão se submeter à autoridade dos sábios, vocês não vão se submeter à autoridade dos especialistas”.

É uma escala de decadência contínua: não nos libertamos do desprezo senão desprezando os outros, ao dizer que não sou eu quem merece ser desprezado, são os outros.

Qual o caminho para produzirmos uma certa esperança?

Penso que a esperança é um dever. Acho que ainda existem coisas que funcionam. Por exemplo, redes de solidariedade: há uma vida associativa muito intensa e, pelo menos no caso francês, a vida social local é muito mais positiva do que a imagem nacional. As pessoas organizam festas, se ajudam. Então, não é verdade que todo mundo é dominado pelo ressentimento.

A segunda coisa, acho que seria preciso dar toda a importância ao trabalho. O que a força do movimento operário fez, de fato, foi dar dignidade aos trabalhadores.

Hoje existe na França um sindicato que tenta fazer isso, mas que ainda assim busca reconstruir uma dignidade a partir da qualidade do trabalho, do sentido de utilidade do trabalho.

Quando houve a pandemia da Covid e o confinamento, todo mundo descobriu que os motoristas de caminhão, as pessoas que recolhem o lixo e as caixas de supermercado eram pessoas formidáveis e indispensáveis. Bem, desde então já esquecemos disso.

Isso aconteceu da mesma forma aqui.

Sim. Parece-me que a ideia é a necessidade de redefinir o que é comum, tentar redefini-lo fora das categorias nacionalistas.
Acredito que é preciso revalorizar o trabalho, repensar a educação. Mas a experiência histórica mostra que isso não acontecerá em três semanas. E é verdade que é muito difícil resistir a uma espécie de pessimismo. Mas com certeza, entre nós, neste momento, deixamos o pessimismo de lado.

Os jovens também sonham com um futuro, não? Como você pensa em projetar uma visão para que os adultos, que viveram em outros momentos, possam construir isso? Não está relacionado ao teletrabalho fútil, mas ao futuro. Como garantir esse pertencimento? Como projetar futuros possíveis e desejáveis? Existe o risco de um pessimismo, de surgir um niilismo enorme, não?

A gente ficaria paralisado aqui se não pudéssemos projetar um futuro. Você me diz que, por ora, é muito difícil não ser pessimista.

Mas, para mim, é quase uma visão moral. Eu observo que muitas pessoas não se deixam levar: na França, há uma crise da educação, mas há muitos professores que fazem um trabalho formidável. Constato que o hospital não funciona muito bem, mas o pessoal é incrível.

Constato que a vida política, em geral, é um tanto catastrófica, mas a maioria dos franceses acha que o prefeito de sua cidade faz um trabalho formidável, seja de direita ou de esquerda; aliás, isso não é muito importante.

Na prática, o que se desfaz não é tanto a realidade da vida social. O que se desfaz são as representações da vida social.

Eu acredito que as razões para ter esperança hoje são os que dizem “eu atuo onde estou, localmente, na minha instituição de ensino, com meus alunos, no meu hospital, no meu município, com meu pequeno clube de futebol”. Enfim, em tudo que cria uma sociedade. Do local para o global.

Na França, os políticos de esquerda ou passam para o populismo de esquerda, ou nada dizem, ou dizem “não podemos dizer nada”. Então, acrescenta-se a esse sentimento de crise o fato de termos um Estado-providência extremamente complexo, relativamente eficiente, porém é um Estado ilegível, incompreensível, o que faz com que todos tenham a sensação de estarem sendo roubados pelo sistema.

Devemos tornar o Estado-providência legível, para que cada um entenda o que paga e o que recebe.
Você sustenta que a Justiça deve estar atenta às condições reais de vida. Como pensa que podemos inspirar não apenas a educação, mas políticas públicas mais inclusivas?

Eu sou favorável a compromissos de justiça. Quero dizer com isso que uma sociedade de pura liberdade é a sociedade libertária, é um mundo selvagem absoluto. Uma sociedade de pura igualdade, já conhecemos isso, é o stalinismo, é a China de Mao Tsé-tung; se não houver liberdade, não há igualdade. Uma sociedade puramente meritocrática é uma sociedade darwiniana. Ou seja, os melhores vencem, e os outros perdem.

A boa sociedade é aquela que combina, que faz com que a liberdade, a igualdade e o mérito se combinem de maneira moderada. É por isso que detesto as ideias radicais, elas têm consequências radicais e não correspondem à experiência das pessoas.

Minha hipótese é que nos Estados Unidos, na Alemanha, na Grã-Bretanha, na França, na Itália, o voto da extrema direita é o voto das pessoas que falharam na escola. É o voto antielite, de ressentimento, é o voto contra os mais pobres. Portanto, se você considera que a igualdade de chances meritocrática é um sistema um pouco darwiniano, os vencidos se vingam.

E, mesmo assim, é terrível. Não consigo me livrar da imagem da entronização de Trump, que para mim foi o choque. Trump está cercado por todos os bilionários do planeta e fala em nome dos pobres. Os pobres encontraram nesse homem a expressão de seu ressentimento contra os formados, as elites. É realmente inacreditável.

A nuance que você propõe, equilibrar o mérito entre os plurais, é central para uma estratégia que reconheça as desigualdades, mas também promova equidade, equilibrando mérito, liberdade e igualdade. Talvez estejamos falando de caminhos para a esperança. Na Assembleia Mundial da Anistia Internacional deste ano, Ammar Dweik, diretor-geral da Comissão Independente de Direitos Humanos da Palestina, fez uma conferência contundente sobre a situação de Gaza. Falou com lucidez impressionante em meio às dores na região. Terminou dizendo que, apesar da fome e do horror, os palestinos continuarão ensinando amor aos filhos, plantando oliveiras e escrevendo poemas. Foi um testemunho de resistência e esperança de quem decidiu não morrer.

Nem todos sobreviveram, mas aqueles que sobreviveram decidiram que não morreriam. Penso muitas vezes em São Tomás, que diz que a virtude essencial é a esperança. E nestes tempos é preciso ter esperança. É exatamente o que diz seu amigo palestino, seja o que for que aconteça, é preciso ter esperança, não se deve mais esperar pelo fim.

Os dois lados da dívida pública, por Samuel Pessoa

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Samuel Pessoa, Pesquisador do BTG Pactual e do FGV IBRE e doutor em economia.

Folha de São Paulo, 09/11/2025.

No caderno de fim de semana do jornal Valor Econômico da semana passada, o economista André Lara Resende (ALR) nos lembrou que a dívida pública tem dois lados. É um passivo do setor público, mas é riqueza, ativo, para o setor privado. Qualquer plano de consolidação fiscal que pretenda reduzir o endividamento público precisa se lembrar dessa dualidade.

Se o setor público pretende promover uma consolidação fiscal que irá reduzir o endividamento de um país, cabe a questão: essa ação será um equilíbrio do ponto de vista dos detentores da dívida pública? Há o desejo, por parte do setor privado, de reduzir seu carregamento de dívida pública?

Há sociedades que são muito poupadoras. O excesso de poupança estrutural do setor privado faz com que essas sociedades experimentem permanentemente uma situação de excesso de oferta sobre a demanda. Há uma pressão deflacionária permanente. Nesse caso, o setor público precisa incorrer em déficits permanentes para ocupar o espaço de demanda que o setor privado não ocupa.

O aumento do endividamento financia a demanda pública necessária para manter e economia a pleno emprego e compensar a carência de demanda do setor privado. Tecnicamente, diz-se que o setor público tem a função de demandante residual no mercado de bens e serviços.

Na coluna de 18 de maio do ano passado, mostrei que a dívida pública do Japão era de 252% do PIB em 2023. Os juros reais para o período dos 23 anos anteriores foram negativos em 0,3%, e a inflação, positiva em 0,4%, ambas as taxas anualizadas.

A taxa de poupança do Japão nos mesmos 23 anos foi de incríveis 28% do PIB, apesar do envelhecimento da população.

De sorte que o setor privado carrega nos seus portfólios os 252% do PIB de dívida pública e ainda sobram 80% do PIB para acumular no exterior: o setor privado japonês tem 80% do PIB de ativos contra não residentes. De fato, nesses 23 anos o Japão apresentou superávit de transações correntes de 2,9% do PIB!

Ou seja, o Japão é um caso que descreve bem o fenômeno descrito por ALR em sua coluna. Se o governo japonês quiser proceder a uma forte consolidação fiscal, gerará uma recessão. Haverá carência de demanda agregada, os juros nominais serão zero, e a economia entrará em uma espiral deflacionária. A taxa de desemprego elevar-se-á.

Certamente essa não é a situação da economia brasileira. Nos 23 anos terminados em 2023, a taxa real de juros foi de 5,1%, e a inflação, de 6,5%, já considerando a taxa anualizada.

A taxa média de poupança no período foi de ridículos 16,2% do PIB, e houve déficit nas contas externas de 2,1% do PIB. A consequência é que, em vez de termos ativos no exterior, temos passivos no valor de 39% do PIB.

A expressão de que no Brasil o setor privado não está muito disposto a carregar quantidades expressivas de dívida pública é dada, olhando a dinâmica das quantidades, pelo fato de termos acumulado um passivo contra o resto do mundo —se houvesse uma situação de forte demanda por ativos, acumularíamos no exterior—, e, olhando a dinâmica dos preços, pelo fato de a taxa de juros reais ser muito elevada.

Assim, para o Brasil, se houvesse uma fada que reduzisse fortemente o endividamento público, haveria uma força na direção de redução das taxas de juros domésticas.

Quais as causas da riqueza das nações? por Marcos Lisboa

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Marcos Lisboa, Economista, ex-presidente do Insper e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005, governo Lula).

Folha de São Paulo, 09/11/2025

Nos últimos 250 anos, houve uma revolução na vida cotidiana. Até o fim do século 19, a expectativa de vida nos países mais ricos era perto de 40 anos. A cesta de consumo de uma pessoa de renda média nesses países custaria cerca de R$ 10 por dia em valores atuais.
Pouco mais de dois séculos depois, a expectativa de vida dobrou nas principais economias e a renda por habitante multiplicou cerca de 50 vezes, em alguns casos ainda mais.

Estudar as causas desse fenômeno foi um dos temas fundadores da economia. Nos últimos 30 anos, houve avanços nessa agenda de pesquisa, que resultaram em vários Prêmios Nobel de Economia, inclusive o deste ano, conferida a Joel Mokyr, Philippe Aghion e Peter Howitt.

O desenvolvimento ocorreu nos diversos países, mas de forma desigual. Ele se inicia na Inglaterra e na Holanda no fim do século 18, se espalha pelos Estados Unidos, depois na Europa ocidental do Norte e, mais tarde, na América Latina. O restante da Europa e o sudoeste da Ásia tiveram desempenho impressionante desde 1990.

Robert Fogel, Nobel de 1993, e Angus Deaton, Nobel de 2015, mostram como os avanços são impressionantes, porém esse processo não é homogêneo, nem linear. No começo do século 19, por exemplo, parte da população urbana da Inglaterra apresentou indícios de perda da qualidade de vida, com redução da altura média e aumento dos índices de mortalidade.

A imensa migração dos campos para as cidades e a falta de políticas públicas resultaram nessa piora temporária.

Em algumas décadas, o quadro se reverteu. Os salários começaram a aumentar com a produtividade e se iniciou um aumento da expectativa de vida, de perto de 50 anos em 1900 para mais de 60 anos em 1930.

Avanços desmedidos, mas com alguns retrocessos localizados, continuaram no último século.

Esse processo foi reforçado por reformas na política pública. O fim do século 19 inicia uma agenda de seguridade social, de políticas de segurança e de meio ambiente, entre outras.

O desenvolvimento das técnicas de estimação de impacto e a construção de grandes bases de dados nos últimos 30 anos têm permitido avanços na pesquisa em economia sobre temas como educação, discriminação e crescimento, entre outros.

Amory Gethin, com uma imensa base de dados global e metodologia inovadora, identificou que, de 1980 a 2019, a educação contribuiu com cerca de 50% do crescimento, 70% do aumento de renda dos 20% mais pobres e 40% da queda da extrema pobreza.

O desenho das regras da política pública e do funcionamento dos mercados é igualmente fundamental para explicar o crescimento. Instituições importam, como sistematizam Daron Acemoglu, Simon Johnson e James Robinson, vencedores do Nobel do ano passado.

As sutilezas de como o sistema Judiciário é desenhado, as normas dos mercados de crédito, as regras de comércio exterior e a regulação dos setores de infraestrutura, por exemplo, estão associadas ao desempenho relativo dos países.

Nos anos 1980, Paul Romer, Nobel de 2018, desenvolveu modelos que contribuíram para analisar o problema. Parte essencial do desenvolvimento econômico decorre de inovações que resultam em aumentos de produtividade.

Ideias bem-sucedidas geram ganhos persistentes porque são não rivais. A mesma descoberta pode ser utilizada simultaneamente por muitos agentes e gerar retornos crescentes de escala: pode-se produzir mais com a mesma quantidade de insumos.

No começo dos anos 1990, Aghion e Howitt desenvolveram um modelo sofisticado para analisar a interação entre concorrência, inovação e crescimento.

O eixo é simples: mercados e concorrência, conhecido desde Karl Marx. As inovações bem-sucedidas de gestão, de tecnologia e de produtos permitem ganhos extraordinários para os seus responsáveis, o que incentiva a criatividade e o empreendedorismo. O resultado são as transformações frequentes a que assistimos no cotidiano.

Os detalhes dessa história, contudo, são sutis. Firmas bem-sucedidas por vezes tentam bloquear o surgimento de competidores, o que restringe a inovação. As regras para garantir o funcionamento adequado de diversos setores são complexas.

Para agravar, as formas de intervenção da política pública dependem das circunstâncias, como as características da tecnologia ou do acesso à informação.

Em “The Power of Creative Destruction” (O Poder da Destruição Criativa)”, Aghion e coautores sistematizam os imensos benefícios da concorrência e da inovação para os ganhos de produtividade e os desafios da política pública para garantir um processo saudável de concorrência e de inovação.

Mokyr foi o Prêmio Nobel mais inesperado e merecido. Seu monumental trabalho em história econômica documenta o papel das ideias nos mercados e na política. Uma concorrência permanente de interesses diversos, abordagens alternativas.

Ao contrário do maniqueísmo usual, nem sempre as ideias refletem interesses, nem sempre os grupos mais fortes acabam por dominar o debate. No enfrentamento de ideias, as negociações na política resultam em escolhas das regras, por vezes bem-sucedidas, outras não.

O mesmo ocorre com as inovações nos mercados. Ao contrário da visão usual, por exemplo, de uma Revolução Industrial, houve um processo com muitas inovações, com, por exemplo, centenas de patentes apenas para a máquina a vapor ao longo de décadas.

As primeiras máquinas não eram muito melhores do que os processos tradicionais. Seguidas inovações foram aperfeiçoando-as e as gerações sucessivas foram, lentamente, aprendendo a utilizar a nova tecnologia, que se transformava continuamente.

O mesmo processo ocorreu na agricultura inglesa nos séculos 16 e 17, com aumento da produção de trigo por hectare. Ele continua a ocorrer nas mais diversas atividades produtivas, como os ganhos de produtividade do nosso agronegócio ou nas inovações em medicamentos no resto do mundo. A interação entre concorrência, adequadas políticas públicas e ciência transforma nosso cotidiano.

Em “The Enlightened Economy”, Mokyr conta com detalhes a longa e profunda transformação que começou na Inglaterra, nas ideias, nas instituições e na economia que terminaram por transformar o mundo.

‘Terrorismo’ também implode o Estado de Direito, por Frei Betto.

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Frei Betto, Escritor, e autor de ‘Diário de Fernando – Nos Cárceres da Ditadura Militar Brasileira” (ed. Rocco), entre outros livros

Folha de São Paulo, 09/11/2025

Nas últimas décadas, o conceito de terrorismo tornou-se um dos mais poderosos instrumentos políticos e jurídicos para subverter os princípios do direito. Criado para descrever ações violentas com motivações ideológicas ou políticas, o termo se transformou em categoria jurídica e moral capaz de justificar exceções à lei e à própria ideia de justiça.

O que começou como resposta legítima a ameaças reais, acabou se tornando uma ferramenta perigosa em mãos de Estados e governos que, em nome da segurança, subverteram princípios do direito internacional e das liberdades individuais.

O ponto de inflexão ocorreu após 2001, com a derrubada das Torres Gêmeas. Diante do trauma coletivo, os EUA e seus aliados declararam a chamada “guerra ao terror”. Sob essa bandeira, práticas antes consideradas ilegais, como detenções sem mandado, tortura, sequestros internacionais e prisões secretas, foram normalizadas.

O centro de detenção de Guantánamo, em território cubano, simboliza esse novo paradigma. Ali, centenas de pessoas são mantidas presas e submetidas a torturas por tempo indeterminado, sem acusação formal ou julgamento, sob a justificativa de que a luta contra o terrorismo exige “novas regras”.

Essa “exceção permanente”, segundo o filósofo italiano Giorgio Agamben, abriu um precedente devastador. Em nome da segurança nacional, diversos países passaram a operar fora dos limites legais e éticos, e tratam o suspeito de terrorismo não como cidadão com direitos, mas como inimigo absoluto, alguém que pode ser neutralizado antes mesmo de se provar sua culpa. O direito à defesa, ao julgamento justo e à presunção de inocência foi substituído pela lógica de antecipação e punição preventiva.

O preocupante é que essa erosão da legalidade não se restringiu ao combate ao terrorismo internacional. A mentalidade de “guerra permanente” contaminou outras áreas da segurança pública.

Nos últimos anos, diversos governos, inclusive democráticos, passaram a aplicar a mesma lógica de exceção contra facções criminosas e organizações de narcotráfico. Operações policiais e militares têm adotado o discurso de que certos grupos representam uma ameaça tão grave à ordem pública que o Estado pode agir sem os freios da lei.

Sob o pretexto de combater o crime organizado, como ocorreuagora no Rio de Janeiro, multiplicam-se execuções extrajudiciais, desaparecimentos e intervenções letais em comunidades pobres. O inimigo agora não é o “terrorista estrangeiro”, mas o “traficante”, o “miliciano” ou o “membro de facção” —rótulos amplos e fluidos que permitem justificar ações fora do devido processo legal. Em muitos casos, a sociedade, movida pelo medo e pela descrença nas instituições, aplaude essa postura, sem perceber que mina as bases da própria democracia.

Ao transformar o combate ao crime em guerra, o Estado abre mão do papel de garantidor da lei para se tornar juiz e carrasco. A fronteira entre justiça e vingança se apaga. A morte passa a substituir o julgamento; a suspeita, a prova; e o inimigo, o cidadão. Esse processo corrói os princípios que sustentam o Estado de Direito, como a universalidade da lei, a proporcionalidade da punição e a dignidade da pessoa humana.

A força da lei não está em seu predicado de punir, mas em sua capacidade de limitar o poder. Quando o Estado reivindica o direito de matar sem julgar, ele nega a essência do contrato social.

Ao admitir que alguns indivíduos ou grupos podem ser eliminados sem defesa, a sociedade regride à barbárie, em que o mais forte impõe sua vontade sobre o mais fraco.

O desafio agora é resgatar a primazia da legalidade em um mundo que se acostumou à exceção. O combate ao terrorismo e ao crime organizado é legítimo e necessário, mas precisa submeter-se ao controle jurídico e ao respeito aos direitos humanos. Não há segurança duradoura quando o medo se torna justificativa para a suspensão da justiça.

Se o século 21 começou com a promessa de um mundo interconectado, rapidamente revelou o perigo de uma liberdade condicionada pelo terror. Hoje vivemos as consequências de um paradigma que transformou o inimigo em categoria política e o direito em instrumento de exceção. A luta contra o “narcoterrorismo” deve ser travada dentro da lei, nunca acima dela. Do contrário, o Estado, ao tentar nos proteger, acabará por destruir aquilo que mais deveria preservar: a própria ideia de justiça.

O neoliberalismo produz sujeitos para o autoritarismo, por Michel Aires de Souza Dias

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Michel Aires de Souza Dias – A Terra é Redonda – 05/11/2025

Mais que um modelo econômico, o neoliberalismo é uma engenharia social que, ao produzir indivíduos isolados e psicologicamente fragilizados, cria o terreno fértil para o florescimento de tendências autoritárias e fascistas

Hoje, o neoliberalismo é mais do que uma racionalidade política e econômica. É uma forma de engenharia social que molda as relações sociais, determina os modos de viver, as formas de comportamento e produz novas formas de subjetividade. Sob seu domínio, os indivíduos se transformam em seres genéricos, em átomos sociais isolados, sem autonomia crítica, incapazes de compreender a totalidade reificada que os subjuga. Nesse contexto, a racionalidade neoliberal enfraquece os indivíduos formando o caráter autoritário. Assim, mobiliza processos psicológicos e afetivos, orientando-os para fins políticos e econômicos.

Com o avanço do neoliberalismo no final dos anos 1980 na Europa e Estados Unidos (e no Brasil, nos anos 1990), ocorreram privatizações, desregulamentação da economia, cortes de gastos públicos e o enfraquecimento dos sindicatos, reduzindo a proteção social. As pessoas passaram a enfrentar sozinhas o desemprego, a precarização do trabalho e a crescente desigualdade. O resultado disso foi um maior enfraquecimento dos indivíduos, que diante das forças opressivas da realidade sentiram-se impotentes e frustrados. A partir disso, pode se observar a retomada das tendências fascistas na sociedade.

Como avaliou Bresser-Pereira (2020), quando há uma crise da democracia, ela se torna alvo de grupos minoritários neofascistas. Desse modo, a crise atual da democracia não se reduz a uma crise política, mas envolve dimensões econômicas e sociais profundas. A crise ocorre não porque as instituições democráticas falharam, mas sim porque o modelo econômico fracassou, produzindo consequências no plano social e político. Foi o fracasso das políticas neoliberais que fomentou essa onda de governos neofascistas pelo mundo. Os regimes autoritários surgem no seio da democracia por causa da emergência de uma forma histórica de capitalismo extremamente “agressiva, desestabilizadora e desestruturante” (BRESSER-PEREIRA, 2020, p. 52).

Hoje, a sociedade neoliberal tornou-se uma sociedade cada vez mais administrada, que enclausura os indivíduos determinando os padrões de pensamento e comportamento socialmente estabelecidos. Nesse sentido, o neoliberalismo se define pela união entre o capital e as instituições democráticas, buscando uma maior racionalidade e eficiência técnica e administrativa, a fim de se obter melhor organização, controle e planejamento dos indivíduos. Desse modo, a organização social continua sendo heterônoma, isto é, nenhuma pessoa pode existir na sociedade capitalista realmente conforme suas próprias determinações. O ego ajustado à realidade aprendeu a ordem e a subordinação por meio do aparato econômico que a tudo engloba (ADORNO, 1985).

Os defensores do neoliberalismo sempre se orgulharam de serem os porta-vozes da liberdade, sempre pregaram a ideia de uma economia livre e de um Estado que garanta as liberdades individuais. Contudo, essa liberdade é somente aparente. Apesar de não intervir na coordenação da atividade econômica, o Estado continua intervindo na esfera privada e dos conflitos sociais. Segundo Safatle (2020, p. 21-2): “[…] o que o neoliberalismo pregava eram intervenções diretas na configuração dos conflitos sociais e na estrutura psíquica dos indivíduos. Mais do que um modelo econômico, o neoliberalismo era uma engenharia social”. A partir desse modus operandi, o objetivo do neoliberalismo era eliminar toda forma de discurso crítico de entidades, sindicatos, organizações e associações da sociedade civil, que buscam questionar a liberdade neoliberal.

O pensador francês Michel Foucault (2008) compreendeu o neoliberalismo não apenas como uma política econômica, mas como uma forma de racionalidade que se escreve no âmbito das práticas de governar. Governar no sentido de racionalmente coordenar e organizar a existência humana, controlando e dirigindo as condutas dos indivíduos, assim como constrangendo suas ações e reações.

Desse modo, o neoliberalismo é uma forma de governamentalidade que impõe um sistema normativo e uma racionalidade que se estende a todas as esferas da vida social. O corpo humano e os processos biológicos tornam-se o centro de estratégias de poder. Há um gerenciamento da vida das populações que passam a ser administradas pelo Estado, como os índices de natalidade, as pandemias, a sexualidade, a higiene e as doenças. O objetivo é tornar o corpo do indivíduo útil à produtividade.

Em seu livro, La Nouvelle Raison du Monde (2009), Dardot e Laval procuraram mostrar, a partir do conceito de governamentalidade em Foucault, que o neoliberalismo é uma forma de racionalidade que molda as formas de comportamento, as relações sociais e as instituições políticas nas democracias ocidentais. Essa racionalidade normativa transforma as relações humanas, determinando os modos de viver e produzindo novas formas de subjetividade. Nesse sentido, o neoliberalismo deve ser compreendido como um sistema coordenado e organizado de normas e práticas, que impõe a concorrência entre os indivíduos como o fundamento da sociedade. Esse modelo concorrencial não seria apenas uma característica do mercado ou do Estado, mas transforma os indivíduos em empresários de si mesmos, incentivando a autoexploração, a competição e os conflitos de classe.

A partir dessa mesma linha de raciocínio, em seu livro A Sociedade do Cansaço, o sul-coreano Byulg-Chul Han procurou argumentar que vivemos hoje numa sociedade do desempenho, da autoexploração e do excesso de trabalho. Não se trata mais de uma sociedade disciplinar, que desde o século XIX usou técnicas e práticas para coordenar e organizar a vida dos indivíduos: “A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho” (HAN, 2015, p. 14). Cada indivíduo torna-se responsável por si mesmo, por seu sucesso ou fracasso. Há uma obrigação constante de produtividade e de autossuperação. Nessa forma de sociedade, o indivíduo se explora voluntariamente. A ilusão está no falso sentimento de liberdade que a pessoa sente ao ser cada vez melhor, cada vez mais produtiva. Ao acreditar que está se autorrealizado, ela está na verdade se explorando até a exaustão. O resultado disso são as doenças mentais, como a depressão, os déficits de atenção, a síndrome de burnout e as crises de ansiedade.

O que experimentamos hoje é o enfraquecimento psicológico dos indivíduos, que se tornam impotentes diante do aparato tecnológico do mundo industrial capitalista. Esse enfraquecimento fomentou as tendências fascistas na sociedade que temos visto em pleno século XXI. Para Gurski e Perrone (2021), esse novo fascismo seria um fenômeno globalizado que não possui características homogêneas. Ele possui múltiplas características, uma vez que se constitui como uma mistura de nacionalismo, xenofobia, racismo, lideranças carismáticas, identitarismo reacionário e políticas antiglobalização regressivas, que podem assumir diferentes matizes e que afrouxam naturalmente os vínculos de solidariedade da vida social. Por isso, no século XXI, a luta de classes se baseia na mobilização psicológica das massas – ou seja, em recursos internos, como as emoções e afetos. Daí o ressurgimento do fascismo em suas novas vestes e simbologias, tomando força no cotidiano das massas pela formação da subjetividade. Modificando os valores, transformando os conceitos e mistificando a realidade. Esse novo fascismo se consolida como uma ideologia que forma a subjetividade, por meio de uma visão de mundo utilitarista e fragmentada, que sustenta uma política econômica neoliberal perversa, de acordo com a nova fase de financeirização do capital (SCHLESENER, 2021).

Para o sociólogo brasileiro Octavio Ianni, o neoliberalismo não é apenas uma doutrina socioeconômica que preconiza os antigos valores do liberalismo clássico, mas ele representa, antes de tudo, formas de socialização que “implica a crescente administração das atividades e ideias de indivíduos e coletividades” (IANNI, 1998, p. 112). Nesse sentido, a racionalidade neoliberal generaliza tensões, contradições e lutas sociais, com o objetivo de condicionar a dinâmica da economia e da reprodução ampliada do capital. Como os governos neoliberais não conseguem convencer os indivíduos com argumentos, uma vez que sua política econômica suprime direitos sociais, precariza o trabalho e acentua as desigualdades, então sua ação se volta à manipulação psicológica, mobilizando processos inconscientes, irracionais e afetivos. O objetivo é canalizar as frustrações dos indivíduos para um determinado fim: “Daí as reivindicações, os protestos e as lutas sociais, com frequência mesclados de etnicismo, xenofobias, racismo, sexismo, fundamentalismo e outras expressões das desigualdades sociais multiplicadas pelo mundo afora” (IANNI, 1998, p. 113).

Apesar do discurso neoliberal sempre reafirmar o seu compromisso com a democracia, com as liberdades individuais, com o livre comércio e com o livre mercado, “a verdade é que sua ‘religião’ é o nazifascismo” (IANNI, 1998, p. 114). Para Ianni (1998), o nazifascismo deve ser compreendido como um produto extremo e exacerbado das mesmas forças sociais predominantes na sociedade administrada global em moldes neoliberais. É uma forma de racionalidade que produz as desigualdades, as tensões e as contradições que atravessam todo o corpo social.

O que podemos observar no mundo globalizado é que o neoliberalismo tanto produz quanto se aproveita da fraqueza interior dos indivíduos, criando uma atmosfera de agressividade irracional, ao mobilizar processos psicológicos e afetivos, guiando os indivíduos para seus fins políticos e econômicos. Com isso, colabora para formar o caráter autoritário, por diversos canais, como a indústria cultural, as instituições do Estado, a família, a igreja, a internet e as redes sociais, fomentando nos indivíduos sentimentos e emoções, desenvolvendo tensões, ressentimentos, preconceitos, ódio e valores individualistas. Como observou Adorno (2015a, p. 184): “Pode muito bem ser o segredo da propaganda fascista que ela simplesmente tome os homens pelo que eles são: verdadeiros filhos da cultura de massa padronizada de hoje, em grande parte subtraído de sua autonomia e espontaneidade” (ADORNO, 2015a, p. 184).

O estímulo da personalidade fascista pelo neoliberalismo tem a indústria cultural como seu principal meio de disseminação. É notório que os conteúdos e as imagens da semicultura são manipuladas pela indústria cultural, que dá grande ênfase à violência. Ela retrata apenas o que é de interesse para o capital, enfatizando apenas uma dimensão dos fatos, em especial, aquele que é espetacular: “O apelo a cenas surpreendentes e impactantes logo traz consigo cenas chocantes ou brutais. Ocorre uma estetização da violência” (IANNI 1998, p. 116). Com o avanço do neoliberalismo em escala global, preconceitos como o racismo, a xenofobia e o antissemitismo, que haviam diminuídos, ressurgem como fantasmas de um passado a assombrar o presente e a ameaçar as conquistas civilizatórias. Com isso, a indústria cultural alimenta a subjetividade de seus telespectadores e leitores, canalizando seus impulsos agressivos contra os excluídos socialmente.

Ela criminaliza certas camadas ou grupos sociais, tornando-os culpados pelos problemas sociais.
Por exemplo, se constrói a imagem do árabe como terrorista a pretexto de combater o fundamentalismo. O homossexual torna-se pervertido e destruidor dos valores cristãos e da família. O pobre é visto como preguiçoso e indolente, sendo acusado de viver de políticas sociais. Os miseráveis, pobres e excluídos da sociedade se tornam bodes expiatórios das mazelas do mundo e não suas vítimas. Assim, condenam-se indivíduos, coletividades, povos, nações e nacionalidades (IANNI, 1998).

É possível notar que as tendências fascistas são estimuladas em filmes, novelas, programas de auditório e no jornalismo televisivo: violência e agressividade; exaltação da autoridade e das forças policiais; apelo às convenções; estímulo ao conformismo; pensamento estereotipado; ódio ao que é diferente, pensamento supersticioso, realismo exagerado etc. Todas essas características conservadoras são estimuladas pela indústria cultural. O objetivo é ativar as forças emocionais para direcionar a vontade dos indivíduos para interesses políticos e econômicos. Como afirma Kehl (2000, p. 149): “Uma sociedade em que o imaginário prevalece, em que as formações imaginárias é que elaboram o real – esse real ao qual não temos acesso – é uma sociedade de certa forma totalitária, independentemente de qual seja a situação do governo, do Estado, da polícia”.
Outro instrumento empregado pelo neoliberalismo para coordenar e controlar as massas é a disseminação do medo. Hoje, os homens não precisam mais temer as forças míticas da natureza ou os animais selvagens, mas devem temer as forças aniquiladoras da sociedade. O medo da fome, da miséria, da criminalidade, da violência e da exclusão social substituiu o medo do homem primitivo das forças da natureza: “Tal como o medo ancestral do herói grego de sucumbir à natureza, no indivíduo burguês esse temor é atualizado em sua relação com o mercado: a concorrência é sentida como uma ameaça, devendo-se vencê-la ou ser derrotada por ela” (BATISTA, 2008, p. 9).

No capitalismo neoliberal, para sobreviver os indivíduos precisam se submeter aos imperativos de eficiência e da produtividade. Com o avanço técnico e científico, não seria mais necessária a luta dos indivíduos pela existência, uma vez que a humanidade criou todas as condições materiais e intelectuais para acabar com a fome, a miséria e a luta pela vida. Contudo, para manter seu poder e a hegemonia, o capitalismo fixou os instintos numa época anterior da evolução humana e manteve a luta pela existência. Os homens são obrigados a regredirem seus instintos a estágios antropologicamente mais primitivos. Essa condição regressiva caracteriza as sociedades modernas reificadas. É fundamental para a manutenção do modo de produção capitalista. Como avalia Adorno (2015b, p. 77): “O medo de ser excluído [Angst], a sanção social do comportamento econômico, internalizou-se há muito através de outros tabus, sedimentando-se no indivíduo. Tal medo transformou-se historicamente em segunda natureza.”

Se no homem primitivo o Ego se forma por causa do medo da morte, diante das forças destrutivas da natureza; no homem moderno o Ego se forma por causa do medo das forças aniquiladoras da sociedade. É pelo mesmo instinto de autoconservação que o Ego se desenvolve. Tal como o homem primitivo mimetizava as forças míticas da natureza para preservar sua vida, o homem moderno mimetiza as forças opressoras da sociedade para sobreviver. O indivíduo imita os padrões de comportamento, pensamento e conduta socialmente necessários para a preservação de sua existência. Ele identifica-se com a realidade. Como ser extremamente integrado e atomizado, ele racionaliza sua ação e seu comportamento com o único objetivo de ganhar a vida. Como afirma Horkheimer (2002, p. 46):

“Através da repetição e imitação das circunstâncias que o rodeiam, da adaptação a todos os grupos poderosos a que eventualmente pertença, da transformação de si mesmo de um ser humano em um membro da organização, do sacrifício de suas potencialidades em proveito da capacidade de adaptar-se e conquistar influência em tais organizações, ele consegue sobreviver. A sua sobrevivência se cumpre pelo mais antigo dos meios biológicos de sobrevivência, isto é, o mimetismo”.

A disseminação do medo como forma de controle e coordenação dos indivíduos é típico da racionalidade neoliberal. Segundo Schlesener (2021), o medo de perder o emprego, de passar fome, de não ter como morar, nem como proteger os filhos, paralisa os trabalhadores e os faz aceitar qualquer oferta de trabalho ou desistir de procurar trabalho, tentando sobreviver com alternativas humilhantes. Mais do que a violência física, a violência psicológica vivida cotidianamente por grande parcela da população dificulta qualquer forma de resistência. Se os indivíduos buscam viver em sociedade, não há outra saída senão se adaptar as condições de existência, precisam se conformar e desistir de sua subjetividade autônoma, que remete a ideia de democracia (ADORNO, 1995).

Em uma passagem de Mínima Moralia, “Devagar e Sempre”, Adorno (2008) compara a pressa dos indivíduos nos grandes centros urbanos ao medo do homem primitivo ao correr de um animal na selva. O homem contemporâneo carrega traços mnemônicos de épocas passadas. Hoje, mesmo que os indivíduos se beneficiem dos confortos propiciados pelo progresso técnico e científico, não temendo os animais selvagens, eles ainda temem as forças aniquiladoras da sociedade, que se tornam uma segunda natureza. Por este motivo, eles estão sempre com pressa para cumprir seus compromissos: “Houve tempo em que se corria de perigos que não admitiam descanso, e inadvertidamente ainda o demonstra quem corre atrás do ônibus. A ordenação do tráfego não mais precisa preocupar-se com animais selvagens, mas não chegou a pacificar a corrida, estranha ao caminhar burguês. Torna-se visível a verdade de que não se está seguro da segurança, que estamos condenados a fugir das potências desenfreadas da vida, mesmo quando meros veículos” (ADORNO, 2008, p. 158).

Ao produzir o medo nas pessoas, o objetivo do neoliberalismo é tornar os indivíduos cada vez mais dóceis e adaptados. A luta pela sobrevivência deve se transformar em eficiência padronizada. Em uma sociedade em que o indivíduo deve se transformar em empresário de si mesmo, ele tem que se tornar uma mercadoria desejável. Ele deve buscar no mercado as competências, as habilidades e os conhecimentos para que se torne cada vez melhor como uma mercadoria. Seu crescimento individual depende cada vez mais de sua capacidade de adaptação, de submissão aos imperativos da realidade.

Desse modo, “o desempenho individual é motivado, guiado e medido por padrões externos ao indivíduo, padrões que dizem respeito a tarefas e funções predeterminadas” (MARCUSE, 1999, p. 78).

Michel Aires de Souza Dias é doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP).
Este texto é parte do artigo “Neoliberalismo e a produção da subjetividade fascista”, publicado em Aurora: revista de arte, mídia e política, São Paulo, v.17, n.51, p. 63-81, janeiro-abril 2025

Referências
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ADORNO, Theodor W. Teoria Freudiana e o padrão da propaganda fascista. In: ADORNO, Theodor W. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. São Paulo: Unesp, 2015a, p.153-189.

ADORNO, Theodor W. Sobre a relação entre sociologia e psicologia. In: ADORNO, Theodor W. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. São Paulo: Unesp, 2015b, p.71-135.

ADORNO, Theodor W. Minima Moralia: reflexões da vida lesada. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008.

ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

BATISTA, Maria. A formação do indivíduo no capitalismo tardio: um estudo sobre a juventude contemporânea, São Paulo. Tese (Doutorado –Psicologia Social), PUC-SP, 2008.

BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. A democracia não está morrendo: foi o neoliberalismo que fracassou. Lua Nova, São Paulo, nº 111, p. 51-79, 2020.

DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Editora Boi Tempo, 2016.

FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

GURSKI, Rose; PERRONE, Claudia Maria. O Jovem ‘Sem Qualidades’ e o Desejo de Fascismo: enlaces entre psicanálise, educação e política. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 46, n. 1, 2021, p. 2-19.

HAN, Byung-Chul Sociedade do Cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.
HORKHEIMER, Max. Eclipse da Razão. São Paulo: Centauro, 2002.

IANNI, Octávio. Neoliberalismo e nazifascismo. Crítica Marxista, São Paulo, nº7, 1998, p. 112-121.

KEHL; Maria Rita. Televisão e violência do imaginário. In: BUCCI, Eugênio (org.). A TV aos 50: criticando a televisão brasileira no seu cinquentenário. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2000.

MARCUSE, Herbert. Algumas Implicações Sociais da Tecnologia Moderna. In: Tecnologia, Guerra e Fascismo, São Paulo: Editora Unesp, 1999, p.71-104.

SAFATLE, Vladimir; JUNIOR, Nelson da Silva; DUNKER, Christian Dunker (orgs.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte, Autêntica, 2020.

SCHLESENER, Anita. Educação repressiva e educação emancipadora: notas acerca da personalidade autoritária e seus desdobramentos na educação. Revista Katálises, Florianópolis, v.24, n. 2, 2021, p. 417-426.

O que explica o fenômeno “pobre de direita”? por Falcão Filho.

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O livro “Pobre de direita – a vingança dos bastardos”, do sociólogo Jesse Souza, caiu no gosto popular após as eleições municipais

Aluizio Falcão Filho – Veja – 05/11/2024

O livro “Pobre de direita – a vingança dos bastardos”, do sociólogo Jesse Souza, está no topo dos best-sellers de não-ficção da revista Veja pela segunda semana consecutiva. O texto caiu no gosto popular logo após as eleições municipais, que apontaram uma derrota fragorosa da esquerda, que perdeu quase metade de suas prefeituras. O título, assim, traria uma explicação para a votação significativa do conservadorismo no último pleito, que não seria obtida sem a adesão das camadas sociais de baixo poder aquisitivo.

Não se trata, porém, de uma publicação que exalta conservadores. Pelo contrário. A narrativa traz críticas (veladas ou não) aos direitistas e às diferenças sociais do capitalismo. Além disso, boa parte de seu conteúdo é dedicado a discutir o racismo no Brasil.

Há três pontos, no entanto, que merecem destaque.

O primeiro é que Jessé Souza busca entender o fenômeno sem desmerecer o eleitor de classe baixa que decidiu votar em candidatos direitistas. “Dizer que o pobre de direita é burro, ‘bolsominion’, ou que a raiz do problema é a filiação religiosa ou o caráter intrinsecamente conservador da pessoa, como muitos fazem, não ajuda muito. Afinal, como já foi dito, o que importa é saber o que motivou a escolha por determinada filiação religiosa e aprofundar ‘o que’ a inclinação ‘conservadora’ lhe proporciona”, escreve o autor.

A tese de Souza é a de que a religião tem papel importante na aproximação dos pobres com a direita – mas há outros fatores que explicam esse fenômeno. “Foi o decidido apoio do mundo evangélico que funcionalizou o voto do negro a favor de [Jair] Bolsonaro. Mas o decisivo aqui é que o negro não se identifica integralmente com Bolsonaro, enquanto o branco pobre, sim. O que está por trás da relação tão especial de Bolsonaro com os brancos pobres? A identificação afetiva e irracional é o mecanismo decisivo, e é o que explica o irracionalismo das massas”, interpreta o sociólogo.

Por fim, o autor aponta como “razão maior” o “ressentimento e a raiva juntos, na medida em que “o acesso a boas escolas e boas universidades é restrito para a classe média branca e ‘real’ e o branco pobre foi injustamente excluído dessas chances pelo nascimento em uma família pobre”. Souza vai adiante: “Se ele fosse consciente de sua opressão, então poderia transformar a raiva e o ressentimento em indignação – o que o levaria para a luta política junto com os demais oprimidos.

Mas não é isso o que acontece. Ninguém explica, muito menos nossa imprensa venal, quem causa seu sofrimento. Como a relação com a classe média ‘real’ e a elite é ambivalente, misturando inveja e admiração, então ele se torna presa de seu próprio desconhecimento.

Como se vê, é a visão de um sociólogo de esquerda tentando encontrar as razões de um fenômeno que vem drenando eleitores do PT, PSOL e congêneres. Além disso, trata-se de um livro escrito antes das eleições municipais – daí as menções constantes ao ex-presidente Bolsonaro. Mas pelo menos duas razões listadas por Souza – a interferência da religião e o ressentimento reinante em boa parte da sociedade – devem ser analisadas com maior profundidade.

O livro se baseia fortemente no teor de entrevistas feitas com eleitores que se encaixam no perfil abordado pelo autor – e frequentemente mistura direita e extrema-direita, como se fossem uma coisa só. Mas é uma leitura que deve ser feita, mesmo com o risco de desagradar muitos leitores. Os de esquerda podem se sentir desconfortáveis com o cenário descrito por Souza, que lhes é desfavorável – e os de direita seguramente não vão gostar de certas opiniões, francamente alinhadas com a chamada pauta progressista. Para aproveitar o que o texto tem a oferecer, portanto, é preciso se livrar de boa parte dos preconceitos políticos que a maioria de nós carrega. E usar o livro como ponto de partida para suas próprias reflexões.

A tragédia como política, por Cidoval Morais de Sousa

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Cidoval Morais de Sousa – A Terra é Redonda – 04/11/2025

A violência estatal letal não é um fracasso da ordem, mas a trágica realização de uma ordem que hierarquiza vidas e transforma a morte do “outro” em espetáculo e capital político
A manhã do dia 28 de outubro de 2025 amanheceu com o céu encoberto sobre o Complexo da Penha, no Rio de Janeiro, mas não foi a meteorologia que trouxe escuridão à cidade. A operação policial batizada de “Contenção” mobilizou mais de 2.500 agentes das forças de segurança, blindados, helicópteros e drones armados.

O saldo: 124 mortos, entre eles adolescentes, trabalhadores e moradores que sequer tinham relação com o tráfico. A ação foi considerada a mais letal da história do estado, superando inclusive o massacre do Jacarezinho em 2021. A justificativa oficial: combate ao crime organizado. A realidade: uma política de extermínio que se repete, se intensifica e se naturaliza.

A repercussão internacional foi imediata. A ONU emitiu nota de preocupação com o uso desproporcional da força e a violação sistemática dos direitos humanos. O The Guardian classificou a operação como “um banho de sangue estatal”, enquanto o El País apontou para “a falência da democracia brasileira nas periferias”. O Le Monde destacou o silêncio cúmplice das instituições, e o Washington Post questionou a ausência de responsabilização. Mas, dentro do Brasil, a reação foi marcada por polarização: enquanto parte da sociedade se indignava, outra aplaudia, alimentada por discursos de ódio e pela lógica do inimigo interno.

Essa tragédia não é um ponto fora da curva. É parte de um padrão. Em agosto de 2023, na Bahia, uma série de operações policiais deixou mais de 40 mortos em menos de uma semana, em bairros periféricos de Salvador. Em julho de 2022, em São Paulo, a Operação Escudo matou 16 pessoas na Baixada Santista, após a morte de um policial. No Rio de Janeiro, os massacres se acumulam como capítulos de uma história escrita com sangue: Jacarezinho (2021), Vila Cruzeiro (2022), Salgueiro (2021), Maré (2014), e tantos outros que sequer ganharam manchetes. A violência policial no Brasil não é exceção – é política de Estado.

O que está em curso é a consolidação de um projeto político autoritário, que transforma a segurança pública em campo de guerra. A militarização das polícias, o uso de armamento pesado, a lógica da ocupação territorial e a ausência de controle externo revelam uma concepção bélica da gestão urbana. O inimigo não é o crime, mas o pobre, o negro, o favelado. Como afirma Achille Mbembe, vivemos sob a lógica da necropolítica, onde o Estado decide quem pode viver e quem deve morrer. “A soberania se manifesta como o poder de matar, de deixar viver ou de expor à morte”, escreve o filósofo camaronês. No Brasil, essa ‘soberania’ se exerce diariamente nas vielas e becos das periferias.

A banalização da morte é acompanhada pela espetacularização da violência. Imagens de corpos caídos, helicópteros atirando, blindados invadindo casas circulam nas redes sociais como se fossem cenas de videogame. A mídia tradicional, em muitos casos, reforça a narrativa oficial, reproduzindo termos como “suspeitos”, “confronto” e “troca de tiros”, mesmo quando não há evidência de resistência. A linguagem se torna cúmplice da barbárie. Como diria Hannah Arendt, “o mal pode ser banal, mas nunca inocente”. A repetição da violência sem questionamento é a normalização do inaceitável.

Vivemos uma crise civilizatória profunda. A vida humana perdeu centralidade no debate público. O neoliberalismo, ao transformar tudo em mercadoria, também mercantiliza a existência. A segurança pública se torna produto, vendido como promessa de ordem e progresso. A política se reduz à gestão da morte. Como aponta Zygmunt Bauman, “a modernidade líquida dissolve os vínculos sociais, tornando o outro um estranho, um inimigo, um risco”. A solidariedade dá lugar ao medo, e o medo justifica a violência.

A operação policial no Rio não foi apenas um massacre – foi uma performance. Uma demonstração de força para consolidar um projeto político que se alimenta da morte. A extrema direita, utiliza essas ações como capital simbólico, reforçando sua base eleitoral e sua narrativa de “ordem contra o caos”. A vida humana se torna moeda de troca.

Diante desse cenário, é urgente recuperar o sentido da vida como valor absoluto. A sociologia crítica tem o dever de desvelar os mecanismos da violência, denunciar sua naturalização e propor caminhos de resistência. Este ensaio é mais um grito de alerta: nenhuma política pode ser legítima se se constrói sobre cadáveres. Como escreveu Eduardo Galeano, “a história é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi, e contra o que foi, anuncia o que será”. Este texto é, em síntese, um anúncio de indignação.

Desvelando o projeto político por trás da violência

A violência policial no Brasil não é um desvio, tampouco um erro operacional. Ela é parte constitutiva de um projeto político que se alimenta, como já mostramos acima, da lógica do inimigo interno, da eliminação do indesejável e da normalização da morte. O Estado, ao invés de garantir direitos, sem julgamento, sentencia e executa a pena de morte. A favela, o quilombo urbano, o território periférico, tornam-se zonas de sacrifício, onde a vida é precária e descartável.

A lógica do inimigo interno é um dispositivo de poder que constrói uma figura a ser combatida, não por seus atos, mas por sua existência. O inimigo não é o crime, mas o corpo racializado, pobre, periférico. Como explica Michel Foucault, o poder moderno não se limita a reprimir, ele produz verdades, identidades e inimigos. O “bandido” é uma construção discursiva que permite justificar o uso extremo da força. A frase “bandido bom é bandido morto” não é apenas uma opinião – é uma política. Ela autoriza o Estado a matar sem julgamento, sem processo, sem culpa.

Essa lógica se expressa em frases como “limpamos o lixo”, “fizemos uma faxina”, “restauramos a ordem”. O vocabulário da limpeza revela uma política higienista, que vê determinados corpos como sujeira a ser removida. É o mesmo discurso que sustentou regimes autoritários ao longo da história: o nazismo com sua “solução final”, o apartheid com sua “segregação sanitária”, e as ditaduras latino-americanas com suas “operações de pacificação”. No Brasil contemporâneo, essa retórica é reciclada e aplicada às periferias urbanas.

A eliminação do indesejável é parte da necropolítica, conceito desenvolvido por Achille Mbembe. Para ele, o Estado moderno exerce poder não apenas sobre a vida, mas sobre a morte. “A necropolítica é o poder de decidir quem pode viver e quem deve morrer”, afirma Achille Mbembe. No Brasil, essa decisão é racializada e territorializada. Os corpos negros e pobres são os principais alvos das operações policiais. A geografia da morte é precisa: ela se concentra nos morros, nas favelas, nos bairros esquecidos pelo Estado.

A normalização da morte como política pública é um dos traços mais perversos da nossa crise civilizatória. A cada nova chacina, a reação institucional é a mesma: justificativas, números, promessas de investigação. Mas a estrutura permanece intacta. A morte se torna rotina, estatística, ruído. Como escreveu Giorgio Agamben, vivemos sob o estado de exceção permanente, onde a suspensão dos direitos se torna regra. O morador da favela é tratado como homo sacer – aquele que pode ser morto, mas não sacrificado; aquele cuja morte não é crime, nem luto.

A indiferença diante da tragédia é sintoma de uma sociedade adoecida. Quando autoridades afirmam que “para mim, só tivemos como vítima os policiais que morreram”, revelam não apenas insensibilidade, mas cumplicidade. Essa frase não é um deslize – é uma doutrina. Ela expressa a hierarquização da vida, onde alguns corpos valem mais que outros. Como aponta Judith Butler, “a vida precária é aquela cuja perda não é lamentada, cuja morte não é reconhecida como perda”. No Brasil, a vida periférica é precária por definição.

O projeto político por trás dessa violência é autoritário, neoliberal e ultraconservador. Autoritário porque concentra poder nas mãos das forças de segurança, com pouca ou nenhuma fiscalização. Neoliberal porque transforma a segurança em mercadoria, vendida como solução para o medo. Ultraconservador porque se apoia em valores punitivistas, racistas e patriarcais. A extrema direita brasileira utiliza a violência como capital político, mobilizando afetos como medo, raiva e ressentimento. A morte se torna espetáculo, campanha, propaganda.

Cidoval Morais de Sousa, professor do Departamento de Comunicação da Universidade Estadual da Paraíba, é secretário regional da SBPC Paraíba.

Segurança Pública: O que fazer, por Soares, Rolim & Krenzinger

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Após ação brutal no Rio, direita busca explorar eleitoralmente o medo e colocá-lo no centro da agenda brasileira. Governo hesita. Mas alternativas, concretas e já testadas em diversos pontos do mundo, pode refundar a Segurança e as Polícias
Luiz Eduardo Soares, Marcos Rolim e Míriam Krenzinger

OUTRAS PALAVRAS – 06/11/2025

O controle territorial por grupos armados no Rio de Janeiro submete a população residente nessas áreas a um domínio tirânico e a toda sorte de abusos, incluindo a cobrança de taxas por bens e serviços e interdições ao exercício de direitos básicos. Trata-se, portanto, não apenas de um sério problema de segurança pública como de uma forma de negar aos mais pobres o respeito e a condição plena de cidadania. Esse controle territorial armado é exercido por dois tipos de organizações criminosas: as fações criminais e as milícias.

Durante o governo Cláudio Castro, as facções e as milícias expandiram seus territórios, sendo que as milícias mais que dobraram o número de pessoas sob seu domínio. Atualmente, mais de dois milhões de pessoas vivem em áreas controladas por milícias no Rio. Por qualquer indicador de gravidade possível, o desafio de desmontar as organizações milicianas é, de longe, o mais urgente e o mais importante pela simples razão de que as milícias são formadas sobretudo por policiais e ex-policiais e não há como se pensar em qualquer política de segurança séria no RJ se as instituições policiais seguirem infiltradas pelo crime organizado.

O crime organizado se infiltrou nas instituições policiais, porque elas operam em uma moldura institucional de ampla autonomia e nenhum controle. A Constituição Federal atribuiu ao Ministério Público (MP) a missão do controle externo da atividade policial, missão que nunca foi cumprida efetivamente. No caso do RJ, a omissão institucional é mais pronunciada e tem se confundido com a conivência com a violência policial e as práticas de extermínio. Entre 2003 e 2024, 22.361 pessoas foram mortas por ações policiais no estado do Rio de Janeiro. Menos de 10% dos casos chegaram a julgamento. O MP do RJ tem se colocado como aliado do governo do Estado; foi contrário à ADPF 635 e, diante do questionamento que o procurador federal Dr. Julio Araújo dirigiu ao governador, depois da chacina, solicitou ao Conselho Nacional do MP que impedisse sua atuação.

Também nesse ponto, o governador Cláudio Castro ofereceu valiosa contribuição às milícias no momento em que garantiu às Polícias Civil e Militar duas Secretarias de Estado não subordinadas a um órgão centralizado de gestão. A mensagem, desde o início, não poderia ser mais clara: “façam o que vocês quiserem”. As milícias apreciaram muito.

A ausência de controle efetivo sobre as polícias é funcional à violência e à corrupção, irmãs siamesas que crescem nas gestões ineptas ou sócias do crime e se disseminam em metástase pela máquina pública. Vejamos o exemplo clássico do fenômeno que esteve na gênese da degradação policial fluminense: quando a autoridade superior concede ao policial na ponta liberdade para matar (não se trata de legítima defesa, por óbvio), concede-lhe também liberdade para, em vez de matar, negociar a sobrevivência do suspeito. A vida converte-se numa moeda, que se inflaciona célere e indefinidamente. Os policiais dispostos a vender a sobrevida do suspeito se organizam e as permutas escalam do varejo ao atacado, até que se firmem pactos, acordos, os “arregos”, fazendo com que muitos profissionais da segurança sejam sócios do crime. Nascem dessa dinâmica perversa não apenas os esquadrões da morte e scuderies policiais, como as próprias milícias. Vendo os acordos e pagamentos se processando sem pudor, desde cedo, os jovens dos bairros pobres aprendem a olhar com desconfiança não só as polícias, mas também a Justiça criminal, a política e o conjunto das instituições.

O resultado tem sido expresso por elevados indicadores de letalidade por ação policial e pela absoluta ineficiência das “operações” sempre realizadas em comunidades pobres nas quais jovens pretos são chacinados e policiais são expostos a riscos desnecessários. Nos episódios necrófilos de 28 de outubro, que envolveram mutilações, facadas e decapitação de suspeitos, o Estado não controlou o território sequer por um dia. Logo após a matança de suspeitos e a morte de quatro policiais, as dinâmicas criminais anteriores retomaram seu curso e o domínio territorial do tráfico seguiu inabalado.

A situação dramática em que nos encontramos na área da Segurança é exatamente o legado de anos em que se faz mais do mesmo, sobretudo no Rio de Janeiro: mais descaso ante o tráfico de armas e a epidemia de homicídios, mais descaso com a perícia e a investigação inteligente, mais descoordenação entre as instituições, mais tolerância com a corrupção e a brutalidade policiais, mais negligência com o controle das polícias, mais encarceramento, mais abandono do sistema penitenciário, mais guerra às drogas, mais descaso com os policiais como profissionais e cidadãos – inclusive com sua formação, sua saúde e segurança -, mais recusa em repensar a arquitetura institucional da segurança pública que herdamos da ditadura, mais indiferença no tratamento de dados, pesquisas, evidências e avaliações, mais improviso voluntarista e reativo, mais cumplicidade corporativista – mais cloroquina e negacionismo, menos vacina, prevenção e conhecimento.

Diante de um quadro dessa gravidade, as posições sustentadas pelo governo federal tem sido, até agora, parte do problema e não das soluções. É inadmissível que o Brasil, um dos países mais violentos do mundo, não conte sequer com um Ministério da Segurança Pública capaz de exercer a governança no setor e ser o centro proponente de políticas públicas com base em evidências. Ao se afastar do tema da segurança, o governo federal preferiu habitar o deserto herdado, permitindo que os seres do deserto, como Cláudio Castro, falassem sozinhos.

Para enfrentar os complexos problemas da Segurança Pública no Rio de Janeiro, seria preciso adotar medidas iniciais e estruturantes. Entre elas, propomos 25 iniciativas:
• Restabelecer a autoridade da secretaria de segurança sobre as polícias, que deixariam de se vincular a secretarias próprias;

• Promover a independência da Perícia;

• Contando com o apoio da Polícia Federal – responsável pela questão -, impedir o envolvimento de policiais no agenciamento de segurança privada informal e ilegal, o que exigirá revisão das bases salariais;

• Construir um pacto com a sociedade civil e com os Poderes em torno da redução dos homicídios como centro de uma política de segurança capaz de proteger o bem essencial, aos moldes do Pacto Pela Paz proposto pelo Instituto Cidade, atuando em cidades como Niterói (RJ) e Pelotas (RS), apontadas internacionalmente como exemplos na redução de homicídios;

• Desenvolver a estratégia de policiamento conhecida como “Dissuasão Focada” para a redução dos homicídios, aplicada com sucesso em todo o mundo e já com experiências concretas em alguns municípios brasileiros. A estratégia supõe a qualificação das áreas de investigação e perícia e exige sua independência;

• Definir política de repressão qualificada ao tráfico de armas, interceptando seu fluxo, evitando que cheguem aos bunkers criminosos e substituindo incursões de tipo bélico por ações cirúrgicas inteligentes fora das favelas;

• Definir uma estratégia de policiamento de “hot spots”, uma das iniciativas reconhecidamente mais impactantes na prevenção situacional do crime em todo o mundo, rompendo com a dinâmica inoperante do policiamento aleatório;

• Iniciar a reforma da execução penal implementando projeto piloto de tratamento com base no modelo de Risco, Necessidade e Responsividade (Modelo RNR), comprovadamente capaz de reduzir reincidência;

• Implantar o modelo das APACs (Associações de Proteção e Assistência aos Condenados) em todo o estado para construir um caminho efetivo de desistência do crime com foco em jovens vinculados ao tráfico;

• Implantar política séria de uso de câmeras corporais no policiamento que registre todas as intervenções policiais e seus contatos com os residentes;

• Realizar pesquisa de vitimização sobre os policiais fluminenses para diagnóstico do tipo e da intensidade da violência, abandono e estresse vividos pelos profissionais da segurança pública, com a competente definição de um programa efetivo de saúde mental;

• Prevenir roubos e furtos de celulares aos moldes da política exitosa desenvolvida pela polícia no Piauí que, em três anos, reduziu esses crimes em 50%;

• Definir com a sociedade civil políticas específicas para proteção de grupos em maior vulnerabilidade social como mulheres, público LGBTQIAP+ e pessoas com transtornos mentais, desenvolvendo protocolos específicos para a abordagem desses grupos;

• Produzir uma estratégia de policiamento antirracista e desenvolver política efetiva de letramento racial no Poder Público e de rigoroso protocolo de abordagens de suspeitos, colocando em xeque procedimentos e métodos que tendem a reproduzir o viés racista e a seletividade social nas ações policiais;

• Suprimir o uso de tecnologias, que, sob aparência de neutralidade e mera efetividade operacional, reproduzem o viés de raça, classe e território, como é o caso da identificação facial;

• Instituir a Ouvidoria das Polícias independente, a partir de indicações da sociedade civil, aos moldes do realizado pelas Defensorias Públicas, com mandato, recursos e autoridade para receber denúncias contra policiais e de policiais contra suas instituições, e dar sequência à responsabilização administrativa e judicial;

• Autorizar a PM a lavrar Termos Circunstanciados de Ocorrência, sem necessidade de condução do caso à delegacia de Polícia Civil, quando se tratar de transgressão da Lei 9.099 (crimes de pequeno potencial ofensivo);

• Mobilizar o poder regulador municipal para identificar e mitigar funcionamento irregular de transporte e comércio, em territórios vulnerabilizados, propondo que as Guardas Municipais atuem em conflitos de baixa intensidade que degradam a vida dos residentes como disputas entre vizinhos e incivilidades;

• Articular o trabalho de inteligência e investigativo (das Polícias Civil e Federal) às ações administrativas municipais, visando identificar fluxos de lavagem de dinheiro, extorsão e monopolização no acesso à energia, bens imobiliários e outros bens.

• Afastar das tarefas externas, temporariamente, policiais envolvidos em confrontos, e lhes fornecer atendimento psicológico, estendendo a atenção terapêutica àqueles que demonstrem sofrimento psíquico, relacionados ou não à drogadição (uso abusivo de álcool e outras drogas, lícitas ou não);

• Dado o contexto fluminense, é indispensável suprimir o princípio de que a palavra do policial deve prevalecer, incondicionalmente, sobre a de testemunhas;

• Investir no encarceramento que decorra de investigação – sobretudo de homicidas, feminicidas, criminosos sexuais e corruptos -, revertendo a dinâmica irracional de prisões em
flagrante presumido, as quais, além de ineficientes, superlotam as penitenciárias e reforçam as facções;

• Revisar o plano de acompanhamento de jovens que cumprem medidas socioeducativas, cuja internação é supervisionada pelo Estado e o período subsequente, aberto, é coordenado pela assistência social dos municípios, desprovida, entretanto, de recursos e pessoal suficientes para função tão delicada e importante. O desenho atual é interessante, mas as atribuições deveriam corresponder à dotação dos meios pertinentes;

• Em parceria com o ministério e a secretaria estadual de Educação, mobilizando entidades da sociedade civil no esforço comum, é urgente implementar iniciativas voltadas para a redução da evasão escolar;

• Embora o tema provoque resistência severa e escape ao poder de instituições políticas estaduais, é urgente insistir no debate público em torno da necessidade imperiosa de mudar a política de drogas, que têm promovido encarceramento em massa de jovens varejistas do comércio de substâncias ilícitas, forçando-os a vincular-se, para sobreviver, às facções criminosas que dominam unidades prisionais, ante o descumprimento da Lei de Execuções penais por parte do Estado. O proibicionismo, o predomínio do flagrante presumido (posto que a PM é proibida de investigar) no encarceramento e o descaso com o sistema penitenciário constituem o principal mecanismo de reprodução ampliada das facções criminosas.

Pensando os desafios da Segurança Pública no Brasil, é urgente e imprescindível que o Governo Federal tome iniciativas concretas como a construção do ministério da Segurança Pública, aglutinando, nesse espaço de governança, policiais qualificados, pesquisadores de ponta e técnicos com experiência em gestão e bloqueando, pelo menos nesse ministério, as dinâmicas tradicionais do clientelismo político e das nomeações desqualificadas.

Uma vez formado o ministério, se poderá abrir no Brasil uma agenda de reformas na Segurança Pública, envolvendo mudanças de médio e longo prazos, como, por exemplo, a refundação do modelo de polícia herdado do Império e da ditadura. Nesse tema, destacamos a importância de que cada polícia tenha apenas uma carreira, como ocorre em todo o mundo, de modo que se assegure aos policiais as condições necessárias de valorização e progressão funcional e que se rompa com as práticas autoritárias internas às corporações e que vitimam os policiais em posições subalternas. A introdução do ciclo completo para todas as polícias é outra reforma essencial para que o Brasil possa ter mais eficiência na área; assim como o estabelecimento de padrões nacionais de recrutamento e formação policial; padronização de registros; garantia de transparência e nova sistemática de controle externo.

O momento, sobretudo, exige discernimento, ousadia e disposição para pensar políticas em diálogo com as evidências científicas e para ouvir os bons policiais e a população oprimida por uma “guerra” que só produz mais sofrimento e votos para demagogos.

* Antropólogo e cientista político, professor da Cátedra Patricia Acioli do Colégio Brasileiro de Altos Estudos da UFRJ, ex-secretário nacional de Segurança Pública, ex-subsecretário de Segurança do estado do Rio de Janeiro e ex-secretário municipal de Prevenção da Violência em Porto Alegre e Nova Iguaçu, autor de “Escolha sua distopia; ou pense pelo avesso” (Edições 70, 2025).

** Pesquisador, membro fundador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Professor da Universidade Lasalle em Canoas (RS). Autor, entre outros de: “A Síndrome da Rainha Vermelha, policiamento e segurança pública no séc. XXI” (Zahar) e “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema (Appris).

*** Professora titular do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFRJ. Líder do Grupo de Pesquisa do CNPq “Núcleo Políticas de Prevenção da Violência, Acesso à Justiça, Educação em Direitos Humanos e Gênero”. Co-coordenadora do Observatório dos Conselhos e Observatório do Feminicídio no Estado do Rio de Janeiro. Ex-diretora do Centro de Observação Criminológica do Rio Grande do Sul.

‘Narcoterrorismo’: um olhar geográfico sobre o tema, por Gabriel de Pieri & Padilha

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Vitor Stuart Gabriel de Pieri e Marcela do Nascimento Padilha

Professores associados do Instituto de Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)

Folha de São Paulo, 06/11/2025

O emprego do termo “narcoterrorismo”, cada vez mais recorrente no debate político brasileiro para equiparar a violência urbana ao terrorismo, revela uma leitura distorcida das dinâmicas espaciais da criminalidade. O conceito confunde dimensões distintas: a criminalidade, orientada pelo lucro, e a subversão política, guiada por ideologias. Essa distorção se evidencia na forma diferenciada como cada um desses atores se relaciona e se projeta sobre o território.

O crime organizado é guiado por uma essência eminentemente lucrativa. Seu objetivo primário é o acúmulo incessante de capital por meio do domínio de atividades ilícitas, não a tomada de poder político.

Requer um ambiente operacional estável, buscando coexistência funcional com o Estado ou a ocupação de suas lacunas. A relação do crime organizado com o espaço é essencialmente pragmática e logística.

O controle de territorialidades, entendido como o conjunto de regras, símbolos e práticas de poder que um grupo impõe sobre determinado espaço, constitui um recurso logístico e econômico crucial, um ativo fundamental para otimizar o lucro das operações. Em síntese, o crime organizado instrumentaliza o controle do espaço como um ativo empresarial, garantindo a continuidade e a maximização de seus negócios ilegais.

Em nítido contraste, o terrorismo possui natureza predominamente política ou ideológico. Sua motivação fundamental não é financeira, mas a obtenção de poder e influência, orientando suas ações para a modificação estrutural da ordem estatal vigente. A violência é sua ferramenta primária de coerção.

A relação do terrorismo com o espaço não é de domínio para fins de lucro, mas de comunicação política: a violência é deliberadamente propagada no território —espaço geográfico sob soberania estatal—, convertendo-o em palco de mensagem ideológica e efeito simbólico.
O objetivo central é amplificar sua projeção política, espalhar o pânico social e impor sua agenda, mirando a alteração da própria estrutura estatal. Em síntese, o terrorismo instrumentaliza a violência no espaço para alcançar seu objetivo político.

A discrepância fundamental entre os dois conceitos é crucial: enquanto o crime organizado instrumentaliza o controle do espaço para garantir o negócio, o terrorismo, em geral, instrumentaliza a violência no espaço com finalidade política.
É vital reconhecer que facções criminosas geram terror, mas seu propósito primordial é a otimização de ganhos financeiros, não a subversão ideológica do Estado. Tais grupos exploram o vazio de controle estatal para prosperar em seus negócios, sem a meta de impor um novo sistema político.

Nesse sentido, o termo “narcoterrorismo” revela-se conceitualmente inadequado para descrever a natureza da criminalidade organizada no Brasil.

Sua aplicação acrítica e indiscriminada acarreta dois riscos conceituais de graves implicações: a banalização do conceito de terrorismo e o deslocamento da análise técnica e especializada em favor de classificações de caráter meramente político-ideológico.

Desse modo, tal mecanismo tende a legitimar práticas de exceção incompatíveis com os direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal, abrindo espaço para o alinhamento automático a agendas de segurança externas, expressão de um movimento de subordinação a um modelo hegemônico global que articula elementos de guerra cultural, estratégias de ataques preventivos e naturalização de zonas de influência.

Fugindo dos Consensos: Apresentação

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O livro “Fugindo dos Consensos: Realidade Global e Novas Reflexões” nasce com o objetivo de discutir assuntos econômicos referentes a economia brasileira e os cenários econômicos globais, abordando assuntos variados, desde os conflitos externos, os confrontos comerciais, as brigas econômicas entre nações, as disputas hegemônicas e variados assuntos que movimentam a economia global e suas repercussões sobre a economia nacional.

Os materiais publicados pelo livro descrito acima surgem como uma coletânea de artigos escritos no jornal Diário da Região nos anos de 2024 e 2025, um período onde o autor escreveu no caderno Conjuntura do referido jornal, refletindo sobre as grandes transformações econômicas globais e seus impactos sobre a sociedade brasileira, deixando de lado, diretamente, uma discussão sobre questões políticas mais evidentes, afinal, percebemos um conservadorismo latente na sociedade brasileira, muitas vezes, muito fanatizadas e incapaz de conduzir uma discussão mais madura, preferindo o chamado cancelamento e adotando uma agressividade verbal e, muitas vezes, se aproximando constantemente da violência física.

Os artigos disponíveis na mídia comercial estão sempre defendendo agendas ultrapassadas, exaltando o pensamento liberal ou neoliberal, criticando o Estado Nacional, degradando os serviços públicos e destruindo os funcionários públicos, sendo visto, todas as vezes, como ineficientes, despreparados e corruptos, contribuindo para defender a diminuição do papel do estado na sociedade nacional, fomentando a privatização, estimulando a abertura econômica, exaltando os serviços privados e criando um ambiente de que o mercado é o todo poderoso, se esquecendo de estudar a história econômica mundial e perceber, com maturidade, que os governos nacionais e as políticas de desenvolvimento, o planejamento estratégico e os investimentos públicos estão o centro do crescimento econômico e o chamado desenvolvimento, lembro ainda, que a atuação governamental contribuiu imensamente para que alguns países conseguissem seu desenvolvimento, mas muitas vezes, na maioria dos casos, os dispêndios dos governos não conseguiram alcançar o tão sonhado desenvolvimento.

No livro, o autor faz uma análise da conjuntura econômica nacional, destacando as grandes dificuldades na condução da economia nacional, ressaltando que vivemos numa sociedade marcada por grandes investimentos governamentais, onde os grupos políticos à direita criticam o assistencialismo estatal e as variadas políticas públicas e, se “esquecem” dos grandes dispêndios dos governos nacionais, estaduais e municipais que beneficiam os grupos mais poderosos na nação, com subsídios gigantescos, isenções fiscais e financeiras, onde nos caracterizamos como um dos poucos países que isentam dividendos e aprovam leis como a Lei Kandir, que garante grandes benefícios para um grupo específico, mesmo sabendo que este mesmo grupo, são os grandes beneficiados da sociedade, mudam governos e os benefícios continuam e, muitas vezes, crescem vertiginosamente em detrimento de grupos mais precarizados.

Vivemos numa sociedade marcada por grandes alterações estruturais, os governos nacionais estão se movimentando para defender seus setores econômicos e produtivos, garantindo recursos para a sobrevivência de suas organizações e garantindo, com isso, investimentos internos, geração de empregos e novos horizontes para as empresas.

Neste ambiente de forte competição, a concorrência não é mais local, nacional, a competição é global, envolvendo cadeias globais de produção transnacional, onde encontramos fornecedores mundiais, com padrões de qualidade e eficiência, exigindo que todos os atores estejam capacitados para a concorrência, sob pena de perderem espaços valiosos no mercado mundial.

O livro “Fugindo dos Consensos: Realidade Global e Novas Reflexões” analisa questões referentes ao comércio internacional, assunto deveras importante para a contemporaneidade, afinal, com as medidas adotadas pelo governo estadunidense de adotar um incremento nas tarifas comerciais para todos os parceiros dos Estados Unidos, acabou gerando uma verdadeira reviravolta no comércio global, aumentando as animosidades entre parceiros antigos e gerando novos constrangimentos no comércio mundial. O livro destaca que as medidas adotadas pelos Estados Unidos foram negativas para os próprios norte-americanos, afinal, foram eles mesmos os grandes perdedores, com aumento dos preços internos e impactos sobre a inflação interna, além de uma drástica redução da renda da população.

Para outros países, percebemos muitas nações se movimentando depois deste tarifaço, onde destacamos o Brasil, mesmo sentindo na pele, o governo federal conseguiu abrir novos espaços de comércio global, se aproximando de outras nações e garantindo o escoamento de produtos nacionais, mesmo assim, percebemos uma polarização crescente na sociedade brasileira, uns apoiando as medidas externas e criticando as medidas adotadas pelo governo federal.

O livro tem como pano de fundo uma discussão econômica sobre o Brasil, as oportunidades, as dificuldades nacionais, os rumos da sociedade brasileira e as limitações do desenvolvimento nacional, afinal, com taxas de juros neste patamar e uma propensão ao rentismo, dificilmente, conseguiremos alçar voos maiores no sempre sonhado sonho do desenvolvimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Novas disputas

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A sociedade internacional vem percebendo que o mundo contemporâneo está, cada vez mais, centrado na busca frenética pelo lucro monetário, os agentes econômicos e políticos buscam o incremento dos ganhos materiais, numa sociedade que transforma tudo em mercadoria, os conceitos que dominam a sociedade estão centrados no imediatismo, no hedonismo e no individualismo, desta forma, a comunidade deixa de falar em direitos, justiça ou igualdade e passam a falar em metas, custos e resultados.

No século XXI percebemos novos conflitos e novas disputas na sociedade internacional, neste cenário, percebemos que novas demandas movimentam a economia internacional, as apostas estão no domínio das chamadas terras raras e nas energias sustentáveis, que tem potencial para reconfigurar a estrutura de poder global, levando ganhadores centenários a amargar perdas consideráveis e, neste ambiente, de constante concorrência, percebemos o surgimento de novos eixos de poder, de influência e de hegemonia.

Neste cenário, encontramos uma verdadeira guerra entre nações, os interesses privados se consolidam e superam os interesses coletivos, os governos nacionais empenham trilhões de dólares para defender seus setores produtivos, ao mesmo tempo, divulgam os ideais do liberalismo, da livre concorrência e das vantagens dos mercados autorregulados, uma verdadeira falácia que muitos difundem como verdadeiros papagaios, defendendo pensamentos ultrapassados que levam os incautos a defenderem ideias e teorias que privilegiam os donos do poder e contribuem para perpetuar as desigualdades visíveis da sociedade. Como disse Millôr Fernandes “Quando uma ideologia fica bem velhinha, vem morar no Brasil”.

Neste momento, percebemos o crescimento de uma nova disputa geopolítica, antes as grandes potências vinham extrair riquezas das nações subdesenvolvidas, transformando estas matérias primas em produtos complexos e industrializados, exportando a preços exorbitantes e garantindo lucros astronômicos em detrimento de uma degradação dos países exportadores de produtos primários, lembrando que este modelo sempre se caracterizou pela espoliação com a conivência de uma elite financeira dos países subdesenvolvidos, perpetuando salários reduzidos, degradação da vida dos trabalhadores, educação de péssima qualidade, saúde precária e transporte pública degradado.

Em pleno século XXI, percebemos a mesma estratégia das nações desenvolvidas, intensificando as pressões econômicas e produtivas, além de esforços políticos para terem acesso as riquezas das nações em desenvolvimento, adquirindo estas matérias primas a preços baixos, prometendo cinicamente a participação nas cadeias globais e, como na história dos países desenvolvidos, continuam explorando as nações mais atrasadas, garantindo ganhos substanciais para seus setores produtivos, suas elites globais e garantindo ganhos para as elites locais que vendem suas riquezas e se comprazem com os restos dos sócios externos.

Vivemos num momento estratégico para países como o Brasil, uma nação repleta de riquezas naturais, energias alternativas, solos abundantes e uma grande quantidade de minerais estratégicos, como as terras raras. Tudo isso nos coloca no centro de uma grande disputa global, onde várias potências apresentam interesses, promessas ousadas e valores monetários atraentes. As escolhas estão na mesa e os caminhos devem ser feitos com soberania, buscando retornos imediatos para a população, garantindo transferência de tecnologias e fortes investimentos em capital humano, evitando, como sempre na história nacional, que os ganhos se concentrassem numa pequena elite endinheirada, que fala do nacionalismo e abraça uma bandeira estrangeira.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Economias e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Varoufakis: a lógica econômica dos genocídios

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Com massacre dos palestinos, bolsa de Tel-Aviv subiu mais de 160% e indústria bélica nada em dinheiro. Big techs testam tecnologias de vigilância, manipulação e seleção de alvos humanos por IA – as mesmas que querem usar contra todos nós

Yanis Varoufakis – OUTRAS PALAVRAS – 04/11/2025

No dia 23 de outubro, depus perante o Júri da Consciência, no contexto do Tribunal de Gaza. O foco de minha fala foi jogar luz sobre as forças econômicas que sustentam o genocídio do povo palestino. Eis o discurso:

Meu nome é Yanis Varoufakis. Sou economista, político e ativista, representando o MeRA25 da Grécia e também o movimento radical paneuropeu DiEM25. Estou aqui na condição de especialista sobre a maneira pela qual a dinâmica do capitalismo está alimentando e reforçando o genocídio do povo palestino.

Com o objetivo de auxiliar o júri a chegar a um veredito fundamentado, abordarei as forças econômicas que sustentam a cumplicidade do capital global, primeiro na limpeza étnica do povo palestino e, mais recentemente, em seu genocídio.

O júri deve ter em mente que o genocídio é lucrativo. E, como argumentarei adiante, é muito mais lucrativo agora, quando uma nova forma de capital está envolvida em sua execução. Para começar, o júri deve reconhecer que o capitalismo prospera com a miséria humana e com a pura destruição. Portanto, não há paradoxo algum no fato de que, em um momento em que a demanda, a produção e a confiança do consumidor estão caindo abruptamente em Israel, a Bolsa de Valores israelense não apenas não caiu desde que o genocídio em Gaza começou, mas, na verdade, subiu mais de 160%.

Isso reflete a Economia Política subjacente da Ocupação e, em particular, a maneira pela qual milhares de empresas israelenses estão entrelaçadas com megacorporações dos EUA, da Europa e da Coreia – incluindo os conglomerados financeiros mais influentes do mundo – formando uma rede internacional que entrou em funcionamento acelerado após outubro de 2023. No momento em que o orçamento de defesa israelense dobrou, ele atraiu maciços “investimentos” para a máquina de morte de Israel.

Para informações mais detalhadas sobre isso, o júri deve levar em consideração o Relatório para as Nações Unidas publicado por Francesca Albanese, Relatora Especial da ONU para os Territórios Palestinos Ocupados, intitulado “De uma Economia da Ocupação a uma Economia do Genocídio”.

É claro que nada disso é novo. A história nos ensina que os interesses econômicos foram propulsores e facilitadores cruciais dos empreendimentos coloniais e, frequentemente, dos genocídios que estes perpetraram. O setor corporativo é intrínseco ao colonialismo desde o seu início. As corporações – começando pelas Companhias das Índias Orientais holandesa e britânica – contribuíram historicamente para a violência, a exploração e, por fim, o despojo dos povos e terras indígenas, um modo de dominação conhecido como capitalismo colonial racial. A colonização israelense das terras palestinas ocupadas não poderia ser uma exceção.

O júri deve estar ciente da maneira como a Palestina hoje expõe as três fases da expropriação colonial. Primeiro, veio a fase da expropriação não sofisticada – a pilhagem brutal da terra e a conversão dos povos indígenas em mão de obra barata ou mesmo escrava. Essa fase, que levou ao surgimento do capitalismo no século XVIII, foi evidenciada na Palestina desde a Declaração Balfour e, muito mais, durante e após a Nakba. A terra palestina foi brutalmente expropriada e os palestinos foram transformados em refugiados ou confinados em bantustões, que acabaram fornecendo, pelo menos até a segunda intifada, mão de obra barata para os colonizadores.

A segunda fase do colonialismo moderno, também conhecida como neoimperialismo, não dizia tanto respeito à pilhagem de terras, mas sim a garantir mercados para o excedente de mercadorias das metrópoles capitalistas – excedente que elas não conseguiam absorver internamente devido à insuficiência da demanda doméstica. Essa dimensão neoimperialista também esteve presente na Palestina, ligada à situação do povo palestino, quando Israel começou a absorver quantidades enormes de armamentos importados dos EUA, da Alemanha e do Reino Unido, contribuindo, assim, significativamente para a demanda agregada desses países. E, mais recentemente, os fabricantes de armas israelenses conseguiram ingressar nesse jogo como exportadores – vendendo armamentos de alta tecnologia testados e comprovados na população palestina para países estrangeiros, incluindo (vergonhosamente) meu próprio país, a Grécia, mas também países árabes.

A terceira fase da acumulação de capital contemporânea, que alimenta a expropriação internamente e o colonialismo no exterior, é a que eu denomino de fase tecnofeudal – uma fase sustentada pelo acúmulo de uma nova forma radical de capital à qual dei o nome de capital na nuvem.

O júri deve notar que o capital na nuvem é uma rede de máquinas (composta por celulares, tablets, servidores e algoritmos) que faz algo notável: nós o treinamos para nos treinar a treiná-lo a nos conhecer bem e, por fim, a manipular nosso comportamento, conferindo assim aos proprietários desse capital na nuvem poderes exorbitantes para fazer coisas conosco contra nossa vontade, em benefício deles.

Nesse contexto, o júri deve levar em conta o fato de que nenhum país forneceu tanto acesso aos dados biométricos de uma população quanto Israel concedeu à IBM. Desde que o genocídio em Gaza começou, Microsoft, Amazon, Alphabet e Palantir vêm expandindo sua penetração de capital na nuvem em um ritmo alucinante. Softwares de reconhecimento facial, algoritmos de seleção de alvos e sistemas de execução automatizada estão sendo testados em tempo real, à vontade e com menos restrições éticas do que em experimentos com ratos de laboratório. As grandes corporações tecnológicas norte-americanas não poderiam estar mais satisfeitas.

A guerra, senhoras e senhores, sempre foi lucrativa. Os comerciantes de armas acumularam fortunas fornecendo armas ao maior pagador. Indiretamente, todo tipo de capital – incluindo o capital que produzia bens de consumo – acumulava-se mais rapidamente em tempos de guerra e destruição. Mas, nesta era tecnofeudal, o capital na nuvem acumula novos poderes nos campos de batalha diretamente, ao melhorar a capacidade de seus algoritmos de compreender e manipular os seres humanos. Nada ajuda mais o capital na nuvem a melhorar sua eficiência do que a experiência em tempo real de monitorar e manipular o comportamento dos combatentes, dos selecionadores de alvos, dos políticos que autorizam esses selecionadores e, sim, tragicamente, da população alvo de aniquilação.

O júri deve, portanto, estar ciente de que os dispositivos de direcionamento de mira por IA, que hoje maximizam a morte e a destruição em Gaza, na manhã seguinte estarão alimentando os algoritmos da Amazon, do Google ou da Microsoft – algoritmos que nos fazem comprar coisas de que não precisamos nem queremos; que envenenam nossas conversas nas redes sociais; que tornam proletários, motoristas, enfermeiros e trabalhadores de armazéns gigantes cada vez mais despossuídos.

Em outras palavras, apelo ao júri que observe como o que está acontecendo na Palestina – a limpeza étnica e o genocídio em curso – estão totalmente interligados com as formas de exploração e a toxificação do nosso meio social no resto do mundo. Nesse sentido, sim, a nossa liberdade no resto do mundo está completamente interligada com a libertação dos palestinos do colonialismo, da expropriação, do medo e da manipulação.

Para concluir, gostaria de agradecer ao júri por seu trabalho importante e implorar a seus membros que prestem atenção à maneira pela qual a dinâmica capitalista, especialmente aquela que sustenta a reprodução do capital na nuvem, está alimentando e reforçando o genocídio do povo palestino

 

A Reforma como rito: A servidão financeira do Estado brasileiro, por João dos Reis da Silva Júnior

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João dos Reis da Silva Júnior – A Terra é Redonda – 01/11/2025
Sob o véu da eficiência, a reforma administrativa consolida a financeirização do Estado, convertendo o fundo público em ativo e o cidadão em cliente, num gesto que atualiza uma secular colonialidade do poder

A chamada Reforma Administrativa — a PEC 32 de 2020 — chega ao Brasil como eco tardio de um projeto global iniciado nos anos 1980, quando o neoliberalismo converteu o Estado social em Estado gerencial, servil às finanças. Aqui, a modernização chega deformada: enquanto o mundo revê o dogma neoliberal, o país o abraça como se fosse novo. Reformamos não para libertar o Estado, mas para aperfeiçoar sua servidão.

A Constituição de 1988 havia prometido um Estado social; a PEC 32 rompe esse pacto, convertendo o fundo público em ativo financeiro. Sob o pretexto da eficiência, instala-se a lógica da rentabilidade: o servidor torna-se custo, o cidadão, cliente. Como observa Leda Paulani (2017), “a financeirização transforma o fundo público no mais importante meio de sustentação do capital fictício.” A reforma é, portanto, o instrumento jurídico da financeirização — o Estado transformado em gestor do rentismo.

A estabilidade e a função pública cedem lugar a contratos precários e métricas empresariais. O “servidor” é substituído pelo “colaborador”. O Estado republicano se desfaz, e o serviço público torna-se empresa. Eleutério Prado (2021) descreve essa mutação como “subsunção real do Estado ao capital”: o poder público torna-se engrenagem do lucro. Em vez de planejar o futuro, o Estado curva-se ao curto prazo da valorização financeira.

O resultado é um Estado contábil que silencia a linguagem da justiça. Em nome da moralidade administrativa, sacrifica-se o sentido público. A reforma não combate privilégios — combate a própria ideia de política como mediação coletiva. Maria Lúcia Fattorelli (2020) adverte: “não é contra privilégios, é contra o Estado público e contra a democracia.” Ao flexibilizar vínculos e dissolver a estabilidade, a PEC 32 reabre as portas do patrimonialismo sob a máscara da eficiência.

A temporalidade é também perversa: enquanto os centros capitalistas enfrentam a crise de suas reformas, o Brasil as imita com atraso. Reformar-se tardiamente é repetir a história como caricatura. A modernização nunca significou emancipação — sempre significou ajuste. É o que Aníbal Quijano (1992) chamaria de colonialidade do poder: a reprodução da dependência sob o discurso da racionalidade moderna. Assim, o Brasil reforma o que nunca completou — um Estado social — e conserva, com nova linguagem, a velha subordinação.

A reforma administrativa é o rosto burocrático da desesperança. Desmonta-se o Estado democrático de 1988 e instala-se o Estado planilha. O servidor é número; o orçamento, ativo; o cidadão, consumidor. Quando a política se transforma em contabilidade, o futuro se reduz à perpetuação da crise.

O contexto político e a perda da palavra

A reforma administrativa amadurece num Brasil de crise prolongada, onde a democracia se esvazia sob o peso de uma racionalidade fiscal que se apresenta como neutra. Desde 2016, o país atravessa uma sequência de rupturas silenciosas: o impeachment sem crime, o avanço do ultraliberalismo, a militarização da política e a captura das instituições pela austeridade. É nesse ambiente que a PEC 32 surge — travestida de técnica, mas portando um programa de poder: transformar o Estado em empresa e o cidadão em cliente. Não se trata de corrigir excessos, mas de consolidar um regime novo — o da administração sem política.

O discurso da eficiência converteu-se em dogma. Fala-se em enxugar, otimizar, profissionalizar — mas sem dizer a serviço de quem. O verbo público da democracia é substituído pela gramática contábil do mercado. O Estado deixa de falar em direitos, justiça ou igualdade; fala em metas, custos e resultados. Essa mutação da linguagem é o primeiro sinal da perda da política: quando o poder fala o idioma das finanças, o povo deixa de compreender o que o Estado diz. A comunicação republicana é substituída por slogans gerenciais, e o espaço público se converte em vitrine de desempenho. A reforma administrativa é o sintoma desse empobrecimento da palavra pública — um Estado que já não articula o “nós”, apenas administra o “eles”.

Nas palavras de Eleutério Prado, o Estado curvado ao capital não apenas serve às finanças — internaliza sua moral. Essa submissão é também simbólica. As instituições passam a reproduzir a lógica do lucro, naturalizando a desigualdade como preço da estabilidade. A democracia, reduzida a ritual eleitoral, perde substância: os orçamentos são decididos por índices de confiança, as políticas públicas por agências de rating, e a soberania nacional por planilhas de investimento. O Estado deixa de mediar conflitos e passa a zelar pela dívida.

Perde-se a palavra — e com ela, a esperança. A política, esvaziada de conteúdo, é substituída pela gestão. A promessa de 1988, que unia cidadania e justiça social, dissolve-se no pragmatismo fiscal. O Estado deixa de projetar o futuro e se limita a administrar o presente. Como lembra David Harvey (2010), o neoliberalismo “não apenas transforma a economia, mas a própria imaginação do possível.” O Brasil vive essa redução do imaginável: o futuro foi hipotecado. O servidor torna-se descartável; o serviço público, custo; o Estado, operador do curto prazo.

O discurso da responsabilidade fiscal encobre a irresponsabilidade social. O Estado que se curva às finanças renuncia à escuta da sociedade. A reforma administrativa, mais do que um arranjo técnico, é o sintoma de uma democracia que perdeu a voz: fala em eficiência, mas silencia sobre justiça. A política se converte em contabilidade, e o cidadão é reduzido a usuário. Quando o Estado não fala em nome de todos, torna-se apenas administrador da desigualdade.

O peso da história do Estado brasileiro

A atual reforma administrativa é o capítulo mais recente de uma longa história de subordinação. Desde a Primeira República, o Estado brasileiro não se ergueu como expressão da soberania popular, mas como instrumento de conciliação entre elites. A política nasceu tutelada, e a administração pública foi extensão das relações de mando herdadas do escravismo e do patriarcalismo colonial. A burocracia moderna, quando surgiu, não apagou essas marcas — apenas as racionalizou.

Ao longo do século XX, cada reforma do Estado serviu menos à democracia e mais adaptação do capital. A República Velha atendeu às oligarquias cafeeiras; o Estado Novo, à industrialização autoritária; a ditadura militar, ao capital internacional que financiou o chamado milagre econômico. Reformas sempre vieram de cima, em nome da modernização — e essa modernização sempre foi excludente. Ampliou o aparato técnico, mas reduziu a participação popular. A reforma administrativa atual repete o padrão: reforma-se para submeter-se, agora sob a lógica das finanças globais.

A Constituição de 1988 representou um breve respiro: tentou erguer um Estado social num país desigual, reconhecendo o trabalho, a saúde e a educação como direitos universais. Mas as bases econômicas permaneceram intocadas. Nos anos 1990, a abertura financeira e a dependência de capitais externos corroeram a autonomia do Estado e limitaram a promessa democrática. As reformas seguintes, sob o manto da estabilidade, esvaziaram lentamente o pacto social. A reforma administrativa é o desfecho lógico desse percurso: retira do Estado o pouco que restava de seu conteúdo republicano.

Essa continuidade revela o peso da dependência. O Estado brasileiro nasceu subordinado e continua a reformar-se segundo receitas externas. Se antes havia tutela política das potências, hoje há tutela dos mercados. O FMI, o Banco Mundial e as agências de rating exercem a autoridade que antes cabia aos diplomatas e militares estrangeiros. A soberania, aqui, é exercício vigiado. Cada modernização promete autonomia, mas reforça o ajuste permanente à racionalidade do centro.

Essa é a modernização como servidão: o gesto de reformar-se para caber na ordem global. A colonialidade, como definiu Aníbal Quijano, persiste sob novas formas. Já não é o domínio militar, mas o domínio epistêmico e econômico — a convicção de que o progresso virá de fora. Por isso, o Brasil nunca completou o ciclo de construção de um Estado público e democrático. A cada avanço, uma contraofensiva restaura a função original: administrar a desigualdade.

As palavras de Quijano ecoam: a América Latina é o espaço em que o capitalismo mundial se forma como dependente e colonial. O Estado brasileiro, ao reformar-se, confirma essa condição. O discurso da eficiência substitui o da justiça; a modernização, o outro nome da servidão. Reformar é obedecer — e a obediência tornou-se nossa forma de modernidade.

Relações internacionais e a erosão do trabalho

A reforma administrativa brasileira não é um evento isolado, mas parte de uma reestruturação global que ajusta os Estados nacionais às exigências do capital financeiro. Desde a crise de 2008, a austeridade tornou-se linguagem universal, e o trabalho, um obstáculo à rentabilidade. Nos países centrais, desmontaram-se direitos; nas periferias, consolidou-se a dependência. O Brasil insere-se nessa lógica como executor tardio de um mesmo roteiro: o desmonte do público e a conversão da cidadania em risco fiscal.

A América Latina é o laboratório dessa política. A Argentina ilustra o ciclo: endividamento, cortes, deterioração do trabalho, sob o jugo do FMI. O Estado torna-se administrador da crise, e o orçamento, instrumento de punição. Em Portugal, sob a troika europeia, a administração pública foi reformada à imagem dos credores. O resultado é sempre o mesmo: redução dos direitos sociais e precarização do trabalho. O Brasil segue a receita, mas sem amortecedores sociais — aqui, o ajuste é direto e sem anestesia.

A reforma administrativa prolonga o efeito corrosivo das reformas trabalhistas de 2017. Ao flexibilizar vínculos e permitir terceirizações, leva ao setor público a mesma precariedade que já domina o privado. O servidor, antes símbolo da continuidade institucional, converte-se em trabalhador intermitente, sujeito às oscilações do orçamento e à vontade dos governos. O serviço público, antes expressão do coletivo, torna-se prestação eventual. A eficiência, nesse vocabulário, significa desproteção institucional. O Estado abandona a linguagem do direito para adotar a da produtividade.

Essa erosão do trabalho público é também erosão da soberania. O Brasil internaliza as reformas ditadas por organismos multilaterais e agências de risco, adotando o discurso da modernização como espelho burocrático da dependência. Reformar o Estado é, na prática, obedecer. O que em outros países é política doméstica, aqui é destino. A colonialidade reaparece não mais sob a espada, mas sob a forma financeira e epistêmica. O país deixa de pensar — imita. A dependência, agora, é modo de governar.

Ao alinhar-se à austeridade global, o Brasil renuncia ao futuro. A reforma administrativa, ao precarizar o trabalho e desmontar o público, aprofunda a subordinação e consolida a posição periférica no capitalismo mundial. A política perde o gesto emancipador e torna-se técnica de gestão da escassez. O servidor financeirizado — endividado, vulnerável, sem estabilidade — encarna a tragédia nacional: um país que se reforma não para mudar, mas para permanecer dependente.

Dependência para além da economia: Aníbal Quijano e a colonialidade do poder

O pensamento de Aníbal Quijano oferece a chave para compreender o que a teoria da dependência deixou em aberto: a subordinação latino-americana não é apenas econômica — é civilizatória. A modernidade, lembra ele, nasce da colonização da América. A América Latina não é o espaço atrasado da modernidade, mas seu ponto de origem e laboratório. O capitalismo mundial formou-se como sistema colonial, articulando exploração econômica e dominação epistêmica. As independências nacionais não romperam esse vínculo; apenas o traduziram em novas formas. A essa continuidade invisível, Quijano deu o nome de colonialidade do poder.

A colonialidade é o lado escuro e permanente da modernidade: o modo como as hierarquias raciais, de gênero, de saber e de trabalho se naturalizam dentro da ordem global. O trabalho forçado, a expropriação dos povos originários, o patriarcado e o eurocentrismo não são resquícios do passado — são mecanismos ativos do capitalismo mundial. O Brasil é exemplo eloquente dessa persistência. Sua modernização econômica nunca significou ruptura com a lógica colonial, mas sua atualização. A reforma administrativa, vista por essa lente, traduz em linguagem jurídica a subordinação histórica: transforma o Estado em aparelho de reprodução da dependência.

Em Quijano, a dependência deixa de ser mero vínculo externo e torna-se estrutura interna de poder, que organiza as formas de pensar, agir e governar. No Brasil, ela se manifesta em múltiplas dimensões: o Estado que precariza o trabalho é o mesmo que perpetua desigualdades raciais e regionais, e o mesmo que marginaliza os saberes populares. A racionalidade da eficiência administrativa é, no fundo, uma racionalidade colonial, que desqualifica o conhecimento local e exalta o modelo europeu de gestão como o único legítimo. O discurso técnico da reforma é, assim, a nova face do eurocentrismo.

Ao rastrear a formação da modernidade, Quijano mostra que o capitalismo mundial é, desde o início, um sistema global de hierarquias. A reforma administrativa brasileira, ao importar modelos de gestão e racionalidade fiscal, reatualiza essa hierarquia. É o mesmo gesto histórico: acreditar que o progresso virá de fora, que a modernidade é um produto de importação. Essa crença é o núcleo ideológico da colonialidade. Por isso, a reforma administrativa é regressiva e subalterna: copia o discurso da eficiência para perpetuar a dependência.

A crítica de Quijano vai além da economia: propõe uma descolonização do saber. Romper o monopólio epistemológico do Norte é condição para repensar o Estado e suas formas de racionalidade. Aplicada à administração pública, essa crítica exige recuperar o sentido de justiça social e a pluralidade dos saberes. Um Estado descolonizado não seria apenas eficiente — seria capaz de reconhecer a diversidade como fundamento. No Brasil, isso implicaria reconstruir o sentido do público a partir das experiências populares, e não das planilhas do mercado.

A colonialidade do poder, porém, sobrevive justamente por neutralizar essas possibilidades. A reforma administrativa é sua forma contemporânea: uma política de Estado que reafirma, sob o pretexto da modernidade, a velha servidão colonial. Sob a linguagem da gestão, reintroduz a hierarquia; sob a aparência do mérito, legitima a exclusão. O Brasil, ao reformar-se, reafirma a crença de que modernizar-se é imitar — e que pensar por conta própria seria atraso. É o triunfo silencioso da colonialidade epistêmica. Assim, a reforma administrativa não é apenas um programa técnico, mas um gesto de submissão intelectual: revela que a dependência deixou de ser relação econômica e tornou-se forma de consciência. A modernização, nesse contexto, é rito de fé — uma liturgia em que o país oferece seu futuro em troca da aprovação dos mercados.

Estado dependente e financeirizado: Jaime Osorio e Eleutério Prado

As reflexões de Jaime Osorio e Eleutério Prado revelam o ponto de chegada dessa longa trajetória. Ambos concordam que o Estado contemporâneo, especialmente nas economias dependentes, já não é mediador neutro entre capital e trabalho: é parte ativa da acumulação. O Estado financeirizado tornou-se operador da valorização fictícia do capital; seu orçamento, um campo de disputa entre a reprodução da vida e a reprodução do lucro.

Osorio, retomando a tradição marxista latino-americana, entende a dependência como relação estrutural e ativa, forma própria de existência do capitalismo periférico. Nela, o Estado é nacional apenas na forma; em sua função, é estrangeiro, ajustado à lógica da valorização global. O discurso da eficiência, que legitima a reforma administrativa, é o idioma técnico dessa submissão. O Estado atua para garantir a rentabilidade do capital mundializado, não para sustentar a cidadania.

Para Eleutério Prado, a financeirização desloca o centro da acumulação para as finanças. O capital fictício domina a reprodução social, subordinando produção e Estado à lógica rentista. No Brasil, a política fiscal, as reformas e até a linguagem da administração pública refletem essa hegemonia. O fundo público vira ativo, o servidor torna-se custo, o cidadão, variável contábil. O Estado deixa de mediar o conflito e passa a administrar a desigualdade. O que se apresenta como técnica é, na verdade, submissão política: o Estado age como engrenagem da valorização financeira.

Entre Osorio e Prado delineia-se uma convergência: o Estado dependente e financeirizado institucionaliza a servidão sob o disfarce da racionalidade. Se antes o Estado legitimava-se pela promessa de desenvolvimento, agora o faz pela obediência ao mercado. A cidadania cede lugar à confiança dos investidores; a democracia, ao ajuste permanente. A gestão substitui o governo; o cálculo substitui o juízo. O Estado financeirizado é, assim, a forma política da colonialidade econômica — um Estado que governa para fora e administra para dentro.

Essa metamorfose encerra o ciclo da modernização como projeto emancipador. O Estado já não promete progresso; promete estabilidade. O orçamento deixa de ser instrumento de redistribuição e torna-se mecanismo de acumulação financeira. O fundo público, antes pensado como base da universalização dos direitos, é capturado pelo rentismo. A financeirização transforma o Estado em operador da dívida, e a democracia em ritual de legitimação do poder dos mercados.

A convergência entre Osorio e Prado revela o conteúdo da reforma administrativa: ela é o código jurídico da dependência em sua forma financeira. O Estado brasileiro, que um dia se legitimou pela ideia de desenvolvimento, agora o faz pela austeridade. Modernizar, aqui, significa adaptar-se ao império das finanças. O gestor substitui o cidadão; o orçamento substitui o projeto; o ajuste substitui a imaginação. O Estado financeirizado é o espelho da dependência: reflete o capital global e apaga a sociedade que o sustenta.

Como advertia Quijano, a modernidade latino-americana é inseparável de sua colonialidade. Osorio e Prado completam essa crítica, mostrando que, no século XXI, essa colonialidade assume a forma da racionalidade financeira. O Brasil reforma-se sem projeto, racionaliza-se sem justiça e moderniza-se sem autonomia. O Estado converte-se em administrador da escassez, e a política em contabilidade. O futuro se reduz a uma equação fiscal. Enquanto o fundo público for tratado como ativo e o cidadão como passivo, a emancipação continuará adiada.

Conclusão

A reforma administrativa brasileira expressa mais que uma reorganização institucional: é o sintoma final de um ciclo histórico e da persistência de um padrão de subordinação que se reinventa a cada modernização. Sob o discurso da eficiência e da moralidade fiscal, o Estado se desfaz como espaço público e se consolida como instrumento de valorização financeira. A política cede lugar à gestão; a cidadania, à contabilidade; o futuro, à administração da crise.

Desde a República, o Brasil acostumou-se a reformar-se de fora para dentro. O Estado sempre se modernizou segundo as exigências do capital — nacional ou estrangeiro —, raramente a partir das demandas da sociedade. A reforma atual é a versão financeirizada dessa tradição: reconfigura o Estado como empresa, esvazia o sentido do serviço público e transforma o servidor em peça fiscal. O Estado, que deveria mediar o comum, passa a gerenciar a escassez.

A dependência, que antes se explicava pela economia, agora se reproduz pela linguagem. Como ensinou Aníbal Quijano, a colonialidade do poder não desapareceu: apenas trocou de vocabulário. Hoje, a submissão se expressa em jargões de gestão, planilhas de eficiência e dogmas de austeridade. O Brasil importa racionalidades e as toma como destino. Reformar é crer que a obediência técnica substitui o pensamento político.

Jaime Osorio e Eleutério Prado mostram que o Estado contemporâneo, especialmente nas economias dependentes, tornou-se parte do circuito de acumulação financeira. O Estado financeirizado é aquele que perdeu o poder de decidir sobre si e passou a operar como agente da valorização fictícia do capital. No Brasil, ele é dependente duas vezes: financeiramente, das exigências do mercado global; epistemicamente, das ideias que o convencem de que essa dependência é inevitável.

Reformar-se, nesse contexto, significa ajustar-se ao império das finanças. O fundo público, que poderia sustentar a vida, é capturado pelo rentismo. O servidor, que deveria garantir continuidade institucional, é transformado em custo. A democracia, privada de conteúdo social, torna-se rito. A reforma administrativa, ao consolidar esse processo, marca o ponto em que o Estado abdica da promessa de universalidade e se curva definitivamente ao cálculo do mercado.

O desafio, portanto, é epistemológico e político. Repensar o Estado exige descolonizar o pensamento, romper com a naturalização da dependência e recuperar a centralidade do trabalho e da vida. Enquanto a eficiência substituir a justiça e a gestão ocupar o lugar do cuidado, o Estado continuará a reproduzir a dominação que o funda. A verdadeira reforma não será administrativa, mas histórica: aquela que devolva à palavra pública o poder de nomear o comum e à política a capacidade de criar futuros.

O Brasil que um dia sonhou com o desenvolvimento agora administra a própria impotência. O desafio é reaprender a sonhar — não com o progresso ditado de fora, mas com a emancipação que nasce do próprio povo.

João dos Reis Silva Júnior é professor titular do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Autor, entre outros livros, de Educação, sociedade de classes e reformas universitárias (Autores Associados).

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