‘Narcoterrorismo’: um olhar geográfico sobre o tema, por Gabriel de Pieri & Padilha

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Vitor Stuart Gabriel de Pieri e Marcela do Nascimento Padilha

Professores associados do Instituto de Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)

Folha de São Paulo, 06/11/2025

O emprego do termo “narcoterrorismo”, cada vez mais recorrente no debate político brasileiro para equiparar a violência urbana ao terrorismo, revela uma leitura distorcida das dinâmicas espaciais da criminalidade. O conceito confunde dimensões distintas: a criminalidade, orientada pelo lucro, e a subversão política, guiada por ideologias. Essa distorção se evidencia na forma diferenciada como cada um desses atores se relaciona e se projeta sobre o território.

O crime organizado é guiado por uma essência eminentemente lucrativa. Seu objetivo primário é o acúmulo incessante de capital por meio do domínio de atividades ilícitas, não a tomada de poder político.

Requer um ambiente operacional estável, buscando coexistência funcional com o Estado ou a ocupação de suas lacunas. A relação do crime organizado com o espaço é essencialmente pragmática e logística.

O controle de territorialidades, entendido como o conjunto de regras, símbolos e práticas de poder que um grupo impõe sobre determinado espaço, constitui um recurso logístico e econômico crucial, um ativo fundamental para otimizar o lucro das operações. Em síntese, o crime organizado instrumentaliza o controle do espaço como um ativo empresarial, garantindo a continuidade e a maximização de seus negócios ilegais.

Em nítido contraste, o terrorismo possui natureza predominamente política ou ideológico. Sua motivação fundamental não é financeira, mas a obtenção de poder e influência, orientando suas ações para a modificação estrutural da ordem estatal vigente. A violência é sua ferramenta primária de coerção.

A relação do terrorismo com o espaço não é de domínio para fins de lucro, mas de comunicação política: a violência é deliberadamente propagada no território —espaço geográfico sob soberania estatal—, convertendo-o em palco de mensagem ideológica e efeito simbólico.
O objetivo central é amplificar sua projeção política, espalhar o pânico social e impor sua agenda, mirando a alteração da própria estrutura estatal. Em síntese, o terrorismo instrumentaliza a violência no espaço para alcançar seu objetivo político.

A discrepância fundamental entre os dois conceitos é crucial: enquanto o crime organizado instrumentaliza o controle do espaço para garantir o negócio, o terrorismo, em geral, instrumentaliza a violência no espaço com finalidade política.
É vital reconhecer que facções criminosas geram terror, mas seu propósito primordial é a otimização de ganhos financeiros, não a subversão ideológica do Estado. Tais grupos exploram o vazio de controle estatal para prosperar em seus negócios, sem a meta de impor um novo sistema político.

Nesse sentido, o termo “narcoterrorismo” revela-se conceitualmente inadequado para descrever a natureza da criminalidade organizada no Brasil.

Sua aplicação acrítica e indiscriminada acarreta dois riscos conceituais de graves implicações: a banalização do conceito de terrorismo e o deslocamento da análise técnica e especializada em favor de classificações de caráter meramente político-ideológico.

Desse modo, tal mecanismo tende a legitimar práticas de exceção incompatíveis com os direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal, abrindo espaço para o alinhamento automático a agendas de segurança externas, expressão de um movimento de subordinação a um modelo hegemônico global que articula elementos de guerra cultural, estratégias de ataques preventivos e naturalização de zonas de influência.

Fugindo dos Consensos: Apresentação

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O livro “Fugindo dos Consensos: Realidade Global e Novas Reflexões” nasce com o objetivo de discutir assuntos econômicos referentes a economia brasileira e os cenários econômicos globais, abordando assuntos variados, desde os conflitos externos, os confrontos comerciais, as brigas econômicas entre nações, as disputas hegemônicas e variados assuntos que movimentam a economia global e suas repercussões sobre a economia nacional.

Os materiais publicados pelo livro descrito acima surgem como uma coletânea de artigos escritos no jornal Diário da Região nos anos de 2024 e 2025, um período onde o autor escreveu no caderno Conjuntura do referido jornal, refletindo sobre as grandes transformações econômicas globais e seus impactos sobre a sociedade brasileira, deixando de lado, diretamente, uma discussão sobre questões políticas mais evidentes, afinal, percebemos um conservadorismo latente na sociedade brasileira, muitas vezes, muito fanatizadas e incapaz de conduzir uma discussão mais madura, preferindo o chamado cancelamento e adotando uma agressividade verbal e, muitas vezes, se aproximando constantemente da violência física.

Os artigos disponíveis na mídia comercial estão sempre defendendo agendas ultrapassadas, exaltando o pensamento liberal ou neoliberal, criticando o Estado Nacional, degradando os serviços públicos e destruindo os funcionários públicos, sendo visto, todas as vezes, como ineficientes, despreparados e corruptos, contribuindo para defender a diminuição do papel do estado na sociedade nacional, fomentando a privatização, estimulando a abertura econômica, exaltando os serviços privados e criando um ambiente de que o mercado é o todo poderoso, se esquecendo de estudar a história econômica mundial e perceber, com maturidade, que os governos nacionais e as políticas de desenvolvimento, o planejamento estratégico e os investimentos públicos estão o centro do crescimento econômico e o chamado desenvolvimento, lembro ainda, que a atuação governamental contribuiu imensamente para que alguns países conseguissem seu desenvolvimento, mas muitas vezes, na maioria dos casos, os dispêndios dos governos não conseguiram alcançar o tão sonhado desenvolvimento.

No livro, o autor faz uma análise da conjuntura econômica nacional, destacando as grandes dificuldades na condução da economia nacional, ressaltando que vivemos numa sociedade marcada por grandes investimentos governamentais, onde os grupos políticos à direita criticam o assistencialismo estatal e as variadas políticas públicas e, se “esquecem” dos grandes dispêndios dos governos nacionais, estaduais e municipais que beneficiam os grupos mais poderosos na nação, com subsídios gigantescos, isenções fiscais e financeiras, onde nos caracterizamos como um dos poucos países que isentam dividendos e aprovam leis como a Lei Kandir, que garante grandes benefícios para um grupo específico, mesmo sabendo que este mesmo grupo, são os grandes beneficiados da sociedade, mudam governos e os benefícios continuam e, muitas vezes, crescem vertiginosamente em detrimento de grupos mais precarizados.

Vivemos numa sociedade marcada por grandes alterações estruturais, os governos nacionais estão se movimentando para defender seus setores econômicos e produtivos, garantindo recursos para a sobrevivência de suas organizações e garantindo, com isso, investimentos internos, geração de empregos e novos horizontes para as empresas.

Neste ambiente de forte competição, a concorrência não é mais local, nacional, a competição é global, envolvendo cadeias globais de produção transnacional, onde encontramos fornecedores mundiais, com padrões de qualidade e eficiência, exigindo que todos os atores estejam capacitados para a concorrência, sob pena de perderem espaços valiosos no mercado mundial.

O livro “Fugindo dos Consensos: Realidade Global e Novas Reflexões” analisa questões referentes ao comércio internacional, assunto deveras importante para a contemporaneidade, afinal, com as medidas adotadas pelo governo estadunidense de adotar um incremento nas tarifas comerciais para todos os parceiros dos Estados Unidos, acabou gerando uma verdadeira reviravolta no comércio global, aumentando as animosidades entre parceiros antigos e gerando novos constrangimentos no comércio mundial. O livro destaca que as medidas adotadas pelos Estados Unidos foram negativas para os próprios norte-americanos, afinal, foram eles mesmos os grandes perdedores, com aumento dos preços internos e impactos sobre a inflação interna, além de uma drástica redução da renda da população.

Para outros países, percebemos muitas nações se movimentando depois deste tarifaço, onde destacamos o Brasil, mesmo sentindo na pele, o governo federal conseguiu abrir novos espaços de comércio global, se aproximando de outras nações e garantindo o escoamento de produtos nacionais, mesmo assim, percebemos uma polarização crescente na sociedade brasileira, uns apoiando as medidas externas e criticando as medidas adotadas pelo governo federal.

O livro tem como pano de fundo uma discussão econômica sobre o Brasil, as oportunidades, as dificuldades nacionais, os rumos da sociedade brasileira e as limitações do desenvolvimento nacional, afinal, com taxas de juros neste patamar e uma propensão ao rentismo, dificilmente, conseguiremos alçar voos maiores no sempre sonhado sonho do desenvolvimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Novas disputas

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A sociedade internacional vem percebendo que o mundo contemporâneo está, cada vez mais, centrado na busca frenética pelo lucro monetário, os agentes econômicos e políticos buscam o incremento dos ganhos materiais, numa sociedade que transforma tudo em mercadoria, os conceitos que dominam a sociedade estão centrados no imediatismo, no hedonismo e no individualismo, desta forma, a comunidade deixa de falar em direitos, justiça ou igualdade e passam a falar em metas, custos e resultados.

No século XXI percebemos novos conflitos e novas disputas na sociedade internacional, neste cenário, percebemos que novas demandas movimentam a economia internacional, as apostas estão no domínio das chamadas terras raras e nas energias sustentáveis, que tem potencial para reconfigurar a estrutura de poder global, levando ganhadores centenários a amargar perdas consideráveis e, neste ambiente, de constante concorrência, percebemos o surgimento de novos eixos de poder, de influência e de hegemonia.

Neste cenário, encontramos uma verdadeira guerra entre nações, os interesses privados se consolidam e superam os interesses coletivos, os governos nacionais empenham trilhões de dólares para defender seus setores produtivos, ao mesmo tempo, divulgam os ideais do liberalismo, da livre concorrência e das vantagens dos mercados autorregulados, uma verdadeira falácia que muitos difundem como verdadeiros papagaios, defendendo pensamentos ultrapassados que levam os incautos a defenderem ideias e teorias que privilegiam os donos do poder e contribuem para perpetuar as desigualdades visíveis da sociedade. Como disse Millôr Fernandes “Quando uma ideologia fica bem velhinha, vem morar no Brasil”.

Neste momento, percebemos o crescimento de uma nova disputa geopolítica, antes as grandes potências vinham extrair riquezas das nações subdesenvolvidas, transformando estas matérias primas em produtos complexos e industrializados, exportando a preços exorbitantes e garantindo lucros astronômicos em detrimento de uma degradação dos países exportadores de produtos primários, lembrando que este modelo sempre se caracterizou pela espoliação com a conivência de uma elite financeira dos países subdesenvolvidos, perpetuando salários reduzidos, degradação da vida dos trabalhadores, educação de péssima qualidade, saúde precária e transporte pública degradado.

Em pleno século XXI, percebemos a mesma estratégia das nações desenvolvidas, intensificando as pressões econômicas e produtivas, além de esforços políticos para terem acesso as riquezas das nações em desenvolvimento, adquirindo estas matérias primas a preços baixos, prometendo cinicamente a participação nas cadeias globais e, como na história dos países desenvolvidos, continuam explorando as nações mais atrasadas, garantindo ganhos substanciais para seus setores produtivos, suas elites globais e garantindo ganhos para as elites locais que vendem suas riquezas e se comprazem com os restos dos sócios externos.

Vivemos num momento estratégico para países como o Brasil, uma nação repleta de riquezas naturais, energias alternativas, solos abundantes e uma grande quantidade de minerais estratégicos, como as terras raras. Tudo isso nos coloca no centro de uma grande disputa global, onde várias potências apresentam interesses, promessas ousadas e valores monetários atraentes. As escolhas estão na mesa e os caminhos devem ser feitos com soberania, buscando retornos imediatos para a população, garantindo transferência de tecnologias e fortes investimentos em capital humano, evitando, como sempre na história nacional, que os ganhos se concentrassem numa pequena elite endinheirada, que fala do nacionalismo e abraça uma bandeira estrangeira.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Economias e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Varoufakis: a lógica econômica dos genocídios

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Com massacre dos palestinos, bolsa de Tel-Aviv subiu mais de 160% e indústria bélica nada em dinheiro. Big techs testam tecnologias de vigilância, manipulação e seleção de alvos humanos por IA – as mesmas que querem usar contra todos nós

Yanis Varoufakis – OUTRAS PALAVRAS – 04/11/2025

No dia 23 de outubro, depus perante o Júri da Consciência, no contexto do Tribunal de Gaza. O foco de minha fala foi jogar luz sobre as forças econômicas que sustentam o genocídio do povo palestino. Eis o discurso:

Meu nome é Yanis Varoufakis. Sou economista, político e ativista, representando o MeRA25 da Grécia e também o movimento radical paneuropeu DiEM25. Estou aqui na condição de especialista sobre a maneira pela qual a dinâmica do capitalismo está alimentando e reforçando o genocídio do povo palestino.

Com o objetivo de auxiliar o júri a chegar a um veredito fundamentado, abordarei as forças econômicas que sustentam a cumplicidade do capital global, primeiro na limpeza étnica do povo palestino e, mais recentemente, em seu genocídio.

O júri deve ter em mente que o genocídio é lucrativo. E, como argumentarei adiante, é muito mais lucrativo agora, quando uma nova forma de capital está envolvida em sua execução. Para começar, o júri deve reconhecer que o capitalismo prospera com a miséria humana e com a pura destruição. Portanto, não há paradoxo algum no fato de que, em um momento em que a demanda, a produção e a confiança do consumidor estão caindo abruptamente em Israel, a Bolsa de Valores israelense não apenas não caiu desde que o genocídio em Gaza começou, mas, na verdade, subiu mais de 160%.

Isso reflete a Economia Política subjacente da Ocupação e, em particular, a maneira pela qual milhares de empresas israelenses estão entrelaçadas com megacorporações dos EUA, da Europa e da Coreia – incluindo os conglomerados financeiros mais influentes do mundo – formando uma rede internacional que entrou em funcionamento acelerado após outubro de 2023. No momento em que o orçamento de defesa israelense dobrou, ele atraiu maciços “investimentos” para a máquina de morte de Israel.

Para informações mais detalhadas sobre isso, o júri deve levar em consideração o Relatório para as Nações Unidas publicado por Francesca Albanese, Relatora Especial da ONU para os Territórios Palestinos Ocupados, intitulado “De uma Economia da Ocupação a uma Economia do Genocídio”.

É claro que nada disso é novo. A história nos ensina que os interesses econômicos foram propulsores e facilitadores cruciais dos empreendimentos coloniais e, frequentemente, dos genocídios que estes perpetraram. O setor corporativo é intrínseco ao colonialismo desde o seu início. As corporações – começando pelas Companhias das Índias Orientais holandesa e britânica – contribuíram historicamente para a violência, a exploração e, por fim, o despojo dos povos e terras indígenas, um modo de dominação conhecido como capitalismo colonial racial. A colonização israelense das terras palestinas ocupadas não poderia ser uma exceção.

O júri deve estar ciente da maneira como a Palestina hoje expõe as três fases da expropriação colonial. Primeiro, veio a fase da expropriação não sofisticada – a pilhagem brutal da terra e a conversão dos povos indígenas em mão de obra barata ou mesmo escrava. Essa fase, que levou ao surgimento do capitalismo no século XVIII, foi evidenciada na Palestina desde a Declaração Balfour e, muito mais, durante e após a Nakba. A terra palestina foi brutalmente expropriada e os palestinos foram transformados em refugiados ou confinados em bantustões, que acabaram fornecendo, pelo menos até a segunda intifada, mão de obra barata para os colonizadores.

A segunda fase do colonialismo moderno, também conhecida como neoimperialismo, não dizia tanto respeito à pilhagem de terras, mas sim a garantir mercados para o excedente de mercadorias das metrópoles capitalistas – excedente que elas não conseguiam absorver internamente devido à insuficiência da demanda doméstica. Essa dimensão neoimperialista também esteve presente na Palestina, ligada à situação do povo palestino, quando Israel começou a absorver quantidades enormes de armamentos importados dos EUA, da Alemanha e do Reino Unido, contribuindo, assim, significativamente para a demanda agregada desses países. E, mais recentemente, os fabricantes de armas israelenses conseguiram ingressar nesse jogo como exportadores – vendendo armamentos de alta tecnologia testados e comprovados na população palestina para países estrangeiros, incluindo (vergonhosamente) meu próprio país, a Grécia, mas também países árabes.

A terceira fase da acumulação de capital contemporânea, que alimenta a expropriação internamente e o colonialismo no exterior, é a que eu denomino de fase tecnofeudal – uma fase sustentada pelo acúmulo de uma nova forma radical de capital à qual dei o nome de capital na nuvem.

O júri deve notar que o capital na nuvem é uma rede de máquinas (composta por celulares, tablets, servidores e algoritmos) que faz algo notável: nós o treinamos para nos treinar a treiná-lo a nos conhecer bem e, por fim, a manipular nosso comportamento, conferindo assim aos proprietários desse capital na nuvem poderes exorbitantes para fazer coisas conosco contra nossa vontade, em benefício deles.

Nesse contexto, o júri deve levar em conta o fato de que nenhum país forneceu tanto acesso aos dados biométricos de uma população quanto Israel concedeu à IBM. Desde que o genocídio em Gaza começou, Microsoft, Amazon, Alphabet e Palantir vêm expandindo sua penetração de capital na nuvem em um ritmo alucinante. Softwares de reconhecimento facial, algoritmos de seleção de alvos e sistemas de execução automatizada estão sendo testados em tempo real, à vontade e com menos restrições éticas do que em experimentos com ratos de laboratório. As grandes corporações tecnológicas norte-americanas não poderiam estar mais satisfeitas.

A guerra, senhoras e senhores, sempre foi lucrativa. Os comerciantes de armas acumularam fortunas fornecendo armas ao maior pagador. Indiretamente, todo tipo de capital – incluindo o capital que produzia bens de consumo – acumulava-se mais rapidamente em tempos de guerra e destruição. Mas, nesta era tecnofeudal, o capital na nuvem acumula novos poderes nos campos de batalha diretamente, ao melhorar a capacidade de seus algoritmos de compreender e manipular os seres humanos. Nada ajuda mais o capital na nuvem a melhorar sua eficiência do que a experiência em tempo real de monitorar e manipular o comportamento dos combatentes, dos selecionadores de alvos, dos políticos que autorizam esses selecionadores e, sim, tragicamente, da população alvo de aniquilação.

O júri deve, portanto, estar ciente de que os dispositivos de direcionamento de mira por IA, que hoje maximizam a morte e a destruição em Gaza, na manhã seguinte estarão alimentando os algoritmos da Amazon, do Google ou da Microsoft – algoritmos que nos fazem comprar coisas de que não precisamos nem queremos; que envenenam nossas conversas nas redes sociais; que tornam proletários, motoristas, enfermeiros e trabalhadores de armazéns gigantes cada vez mais despossuídos.

Em outras palavras, apelo ao júri que observe como o que está acontecendo na Palestina – a limpeza étnica e o genocídio em curso – estão totalmente interligados com as formas de exploração e a toxificação do nosso meio social no resto do mundo. Nesse sentido, sim, a nossa liberdade no resto do mundo está completamente interligada com a libertação dos palestinos do colonialismo, da expropriação, do medo e da manipulação.

Para concluir, gostaria de agradecer ao júri por seu trabalho importante e implorar a seus membros que prestem atenção à maneira pela qual a dinâmica capitalista, especialmente aquela que sustenta a reprodução do capital na nuvem, está alimentando e reforçando o genocídio do povo palestino

 

A Reforma como rito: A servidão financeira do Estado brasileiro, por João dos Reis da Silva Júnior

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João dos Reis da Silva Júnior – A Terra é Redonda – 01/11/2025
Sob o véu da eficiência, a reforma administrativa consolida a financeirização do Estado, convertendo o fundo público em ativo e o cidadão em cliente, num gesto que atualiza uma secular colonialidade do poder

A chamada Reforma Administrativa — a PEC 32 de 2020 — chega ao Brasil como eco tardio de um projeto global iniciado nos anos 1980, quando o neoliberalismo converteu o Estado social em Estado gerencial, servil às finanças. Aqui, a modernização chega deformada: enquanto o mundo revê o dogma neoliberal, o país o abraça como se fosse novo. Reformamos não para libertar o Estado, mas para aperfeiçoar sua servidão.

A Constituição de 1988 havia prometido um Estado social; a PEC 32 rompe esse pacto, convertendo o fundo público em ativo financeiro. Sob o pretexto da eficiência, instala-se a lógica da rentabilidade: o servidor torna-se custo, o cidadão, cliente. Como observa Leda Paulani (2017), “a financeirização transforma o fundo público no mais importante meio de sustentação do capital fictício.” A reforma é, portanto, o instrumento jurídico da financeirização — o Estado transformado em gestor do rentismo.

A estabilidade e a função pública cedem lugar a contratos precários e métricas empresariais. O “servidor” é substituído pelo “colaborador”. O Estado republicano se desfaz, e o serviço público torna-se empresa. Eleutério Prado (2021) descreve essa mutação como “subsunção real do Estado ao capital”: o poder público torna-se engrenagem do lucro. Em vez de planejar o futuro, o Estado curva-se ao curto prazo da valorização financeira.

O resultado é um Estado contábil que silencia a linguagem da justiça. Em nome da moralidade administrativa, sacrifica-se o sentido público. A reforma não combate privilégios — combate a própria ideia de política como mediação coletiva. Maria Lúcia Fattorelli (2020) adverte: “não é contra privilégios, é contra o Estado público e contra a democracia.” Ao flexibilizar vínculos e dissolver a estabilidade, a PEC 32 reabre as portas do patrimonialismo sob a máscara da eficiência.

A temporalidade é também perversa: enquanto os centros capitalistas enfrentam a crise de suas reformas, o Brasil as imita com atraso. Reformar-se tardiamente é repetir a história como caricatura. A modernização nunca significou emancipação — sempre significou ajuste. É o que Aníbal Quijano (1992) chamaria de colonialidade do poder: a reprodução da dependência sob o discurso da racionalidade moderna. Assim, o Brasil reforma o que nunca completou — um Estado social — e conserva, com nova linguagem, a velha subordinação.

A reforma administrativa é o rosto burocrático da desesperança. Desmonta-se o Estado democrático de 1988 e instala-se o Estado planilha. O servidor é número; o orçamento, ativo; o cidadão, consumidor. Quando a política se transforma em contabilidade, o futuro se reduz à perpetuação da crise.

O contexto político e a perda da palavra

A reforma administrativa amadurece num Brasil de crise prolongada, onde a democracia se esvazia sob o peso de uma racionalidade fiscal que se apresenta como neutra. Desde 2016, o país atravessa uma sequência de rupturas silenciosas: o impeachment sem crime, o avanço do ultraliberalismo, a militarização da política e a captura das instituições pela austeridade. É nesse ambiente que a PEC 32 surge — travestida de técnica, mas portando um programa de poder: transformar o Estado em empresa e o cidadão em cliente. Não se trata de corrigir excessos, mas de consolidar um regime novo — o da administração sem política.

O discurso da eficiência converteu-se em dogma. Fala-se em enxugar, otimizar, profissionalizar — mas sem dizer a serviço de quem. O verbo público da democracia é substituído pela gramática contábil do mercado. O Estado deixa de falar em direitos, justiça ou igualdade; fala em metas, custos e resultados. Essa mutação da linguagem é o primeiro sinal da perda da política: quando o poder fala o idioma das finanças, o povo deixa de compreender o que o Estado diz. A comunicação republicana é substituída por slogans gerenciais, e o espaço público se converte em vitrine de desempenho. A reforma administrativa é o sintoma desse empobrecimento da palavra pública — um Estado que já não articula o “nós”, apenas administra o “eles”.

Nas palavras de Eleutério Prado, o Estado curvado ao capital não apenas serve às finanças — internaliza sua moral. Essa submissão é também simbólica. As instituições passam a reproduzir a lógica do lucro, naturalizando a desigualdade como preço da estabilidade. A democracia, reduzida a ritual eleitoral, perde substância: os orçamentos são decididos por índices de confiança, as políticas públicas por agências de rating, e a soberania nacional por planilhas de investimento. O Estado deixa de mediar conflitos e passa a zelar pela dívida.

Perde-se a palavra — e com ela, a esperança. A política, esvaziada de conteúdo, é substituída pela gestão. A promessa de 1988, que unia cidadania e justiça social, dissolve-se no pragmatismo fiscal. O Estado deixa de projetar o futuro e se limita a administrar o presente. Como lembra David Harvey (2010), o neoliberalismo “não apenas transforma a economia, mas a própria imaginação do possível.” O Brasil vive essa redução do imaginável: o futuro foi hipotecado. O servidor torna-se descartável; o serviço público, custo; o Estado, operador do curto prazo.

O discurso da responsabilidade fiscal encobre a irresponsabilidade social. O Estado que se curva às finanças renuncia à escuta da sociedade. A reforma administrativa, mais do que um arranjo técnico, é o sintoma de uma democracia que perdeu a voz: fala em eficiência, mas silencia sobre justiça. A política se converte em contabilidade, e o cidadão é reduzido a usuário. Quando o Estado não fala em nome de todos, torna-se apenas administrador da desigualdade.

O peso da história do Estado brasileiro

A atual reforma administrativa é o capítulo mais recente de uma longa história de subordinação. Desde a Primeira República, o Estado brasileiro não se ergueu como expressão da soberania popular, mas como instrumento de conciliação entre elites. A política nasceu tutelada, e a administração pública foi extensão das relações de mando herdadas do escravismo e do patriarcalismo colonial. A burocracia moderna, quando surgiu, não apagou essas marcas — apenas as racionalizou.

Ao longo do século XX, cada reforma do Estado serviu menos à democracia e mais adaptação do capital. A República Velha atendeu às oligarquias cafeeiras; o Estado Novo, à industrialização autoritária; a ditadura militar, ao capital internacional que financiou o chamado milagre econômico. Reformas sempre vieram de cima, em nome da modernização — e essa modernização sempre foi excludente. Ampliou o aparato técnico, mas reduziu a participação popular. A reforma administrativa atual repete o padrão: reforma-se para submeter-se, agora sob a lógica das finanças globais.

A Constituição de 1988 representou um breve respiro: tentou erguer um Estado social num país desigual, reconhecendo o trabalho, a saúde e a educação como direitos universais. Mas as bases econômicas permaneceram intocadas. Nos anos 1990, a abertura financeira e a dependência de capitais externos corroeram a autonomia do Estado e limitaram a promessa democrática. As reformas seguintes, sob o manto da estabilidade, esvaziaram lentamente o pacto social. A reforma administrativa é o desfecho lógico desse percurso: retira do Estado o pouco que restava de seu conteúdo republicano.

Essa continuidade revela o peso da dependência. O Estado brasileiro nasceu subordinado e continua a reformar-se segundo receitas externas. Se antes havia tutela política das potências, hoje há tutela dos mercados. O FMI, o Banco Mundial e as agências de rating exercem a autoridade que antes cabia aos diplomatas e militares estrangeiros. A soberania, aqui, é exercício vigiado. Cada modernização promete autonomia, mas reforça o ajuste permanente à racionalidade do centro.

Essa é a modernização como servidão: o gesto de reformar-se para caber na ordem global. A colonialidade, como definiu Aníbal Quijano, persiste sob novas formas. Já não é o domínio militar, mas o domínio epistêmico e econômico — a convicção de que o progresso virá de fora. Por isso, o Brasil nunca completou o ciclo de construção de um Estado público e democrático. A cada avanço, uma contraofensiva restaura a função original: administrar a desigualdade.

As palavras de Quijano ecoam: a América Latina é o espaço em que o capitalismo mundial se forma como dependente e colonial. O Estado brasileiro, ao reformar-se, confirma essa condição. O discurso da eficiência substitui o da justiça; a modernização, o outro nome da servidão. Reformar é obedecer — e a obediência tornou-se nossa forma de modernidade.

Relações internacionais e a erosão do trabalho

A reforma administrativa brasileira não é um evento isolado, mas parte de uma reestruturação global que ajusta os Estados nacionais às exigências do capital financeiro. Desde a crise de 2008, a austeridade tornou-se linguagem universal, e o trabalho, um obstáculo à rentabilidade. Nos países centrais, desmontaram-se direitos; nas periferias, consolidou-se a dependência. O Brasil insere-se nessa lógica como executor tardio de um mesmo roteiro: o desmonte do público e a conversão da cidadania em risco fiscal.

A América Latina é o laboratório dessa política. A Argentina ilustra o ciclo: endividamento, cortes, deterioração do trabalho, sob o jugo do FMI. O Estado torna-se administrador da crise, e o orçamento, instrumento de punição. Em Portugal, sob a troika europeia, a administração pública foi reformada à imagem dos credores. O resultado é sempre o mesmo: redução dos direitos sociais e precarização do trabalho. O Brasil segue a receita, mas sem amortecedores sociais — aqui, o ajuste é direto e sem anestesia.

A reforma administrativa prolonga o efeito corrosivo das reformas trabalhistas de 2017. Ao flexibilizar vínculos e permitir terceirizações, leva ao setor público a mesma precariedade que já domina o privado. O servidor, antes símbolo da continuidade institucional, converte-se em trabalhador intermitente, sujeito às oscilações do orçamento e à vontade dos governos. O serviço público, antes expressão do coletivo, torna-se prestação eventual. A eficiência, nesse vocabulário, significa desproteção institucional. O Estado abandona a linguagem do direito para adotar a da produtividade.

Essa erosão do trabalho público é também erosão da soberania. O Brasil internaliza as reformas ditadas por organismos multilaterais e agências de risco, adotando o discurso da modernização como espelho burocrático da dependência. Reformar o Estado é, na prática, obedecer. O que em outros países é política doméstica, aqui é destino. A colonialidade reaparece não mais sob a espada, mas sob a forma financeira e epistêmica. O país deixa de pensar — imita. A dependência, agora, é modo de governar.

Ao alinhar-se à austeridade global, o Brasil renuncia ao futuro. A reforma administrativa, ao precarizar o trabalho e desmontar o público, aprofunda a subordinação e consolida a posição periférica no capitalismo mundial. A política perde o gesto emancipador e torna-se técnica de gestão da escassez. O servidor financeirizado — endividado, vulnerável, sem estabilidade — encarna a tragédia nacional: um país que se reforma não para mudar, mas para permanecer dependente.

Dependência para além da economia: Aníbal Quijano e a colonialidade do poder

O pensamento de Aníbal Quijano oferece a chave para compreender o que a teoria da dependência deixou em aberto: a subordinação latino-americana não é apenas econômica — é civilizatória. A modernidade, lembra ele, nasce da colonização da América. A América Latina não é o espaço atrasado da modernidade, mas seu ponto de origem e laboratório. O capitalismo mundial formou-se como sistema colonial, articulando exploração econômica e dominação epistêmica. As independências nacionais não romperam esse vínculo; apenas o traduziram em novas formas. A essa continuidade invisível, Quijano deu o nome de colonialidade do poder.

A colonialidade é o lado escuro e permanente da modernidade: o modo como as hierarquias raciais, de gênero, de saber e de trabalho se naturalizam dentro da ordem global. O trabalho forçado, a expropriação dos povos originários, o patriarcado e o eurocentrismo não são resquícios do passado — são mecanismos ativos do capitalismo mundial. O Brasil é exemplo eloquente dessa persistência. Sua modernização econômica nunca significou ruptura com a lógica colonial, mas sua atualização. A reforma administrativa, vista por essa lente, traduz em linguagem jurídica a subordinação histórica: transforma o Estado em aparelho de reprodução da dependência.

Em Quijano, a dependência deixa de ser mero vínculo externo e torna-se estrutura interna de poder, que organiza as formas de pensar, agir e governar. No Brasil, ela se manifesta em múltiplas dimensões: o Estado que precariza o trabalho é o mesmo que perpetua desigualdades raciais e regionais, e o mesmo que marginaliza os saberes populares. A racionalidade da eficiência administrativa é, no fundo, uma racionalidade colonial, que desqualifica o conhecimento local e exalta o modelo europeu de gestão como o único legítimo. O discurso técnico da reforma é, assim, a nova face do eurocentrismo.

Ao rastrear a formação da modernidade, Quijano mostra que o capitalismo mundial é, desde o início, um sistema global de hierarquias. A reforma administrativa brasileira, ao importar modelos de gestão e racionalidade fiscal, reatualiza essa hierarquia. É o mesmo gesto histórico: acreditar que o progresso virá de fora, que a modernidade é um produto de importação. Essa crença é o núcleo ideológico da colonialidade. Por isso, a reforma administrativa é regressiva e subalterna: copia o discurso da eficiência para perpetuar a dependência.

A crítica de Quijano vai além da economia: propõe uma descolonização do saber. Romper o monopólio epistemológico do Norte é condição para repensar o Estado e suas formas de racionalidade. Aplicada à administração pública, essa crítica exige recuperar o sentido de justiça social e a pluralidade dos saberes. Um Estado descolonizado não seria apenas eficiente — seria capaz de reconhecer a diversidade como fundamento. No Brasil, isso implicaria reconstruir o sentido do público a partir das experiências populares, e não das planilhas do mercado.

A colonialidade do poder, porém, sobrevive justamente por neutralizar essas possibilidades. A reforma administrativa é sua forma contemporânea: uma política de Estado que reafirma, sob o pretexto da modernidade, a velha servidão colonial. Sob a linguagem da gestão, reintroduz a hierarquia; sob a aparência do mérito, legitima a exclusão. O Brasil, ao reformar-se, reafirma a crença de que modernizar-se é imitar — e que pensar por conta própria seria atraso. É o triunfo silencioso da colonialidade epistêmica. Assim, a reforma administrativa não é apenas um programa técnico, mas um gesto de submissão intelectual: revela que a dependência deixou de ser relação econômica e tornou-se forma de consciência. A modernização, nesse contexto, é rito de fé — uma liturgia em que o país oferece seu futuro em troca da aprovação dos mercados.

Estado dependente e financeirizado: Jaime Osorio e Eleutério Prado

As reflexões de Jaime Osorio e Eleutério Prado revelam o ponto de chegada dessa longa trajetória. Ambos concordam que o Estado contemporâneo, especialmente nas economias dependentes, já não é mediador neutro entre capital e trabalho: é parte ativa da acumulação. O Estado financeirizado tornou-se operador da valorização fictícia do capital; seu orçamento, um campo de disputa entre a reprodução da vida e a reprodução do lucro.

Osorio, retomando a tradição marxista latino-americana, entende a dependência como relação estrutural e ativa, forma própria de existência do capitalismo periférico. Nela, o Estado é nacional apenas na forma; em sua função, é estrangeiro, ajustado à lógica da valorização global. O discurso da eficiência, que legitima a reforma administrativa, é o idioma técnico dessa submissão. O Estado atua para garantir a rentabilidade do capital mundializado, não para sustentar a cidadania.

Para Eleutério Prado, a financeirização desloca o centro da acumulação para as finanças. O capital fictício domina a reprodução social, subordinando produção e Estado à lógica rentista. No Brasil, a política fiscal, as reformas e até a linguagem da administração pública refletem essa hegemonia. O fundo público vira ativo, o servidor torna-se custo, o cidadão, variável contábil. O Estado deixa de mediar o conflito e passa a administrar a desigualdade. O que se apresenta como técnica é, na verdade, submissão política: o Estado age como engrenagem da valorização financeira.

Entre Osorio e Prado delineia-se uma convergência: o Estado dependente e financeirizado institucionaliza a servidão sob o disfarce da racionalidade. Se antes o Estado legitimava-se pela promessa de desenvolvimento, agora o faz pela obediência ao mercado. A cidadania cede lugar à confiança dos investidores; a democracia, ao ajuste permanente. A gestão substitui o governo; o cálculo substitui o juízo. O Estado financeirizado é, assim, a forma política da colonialidade econômica — um Estado que governa para fora e administra para dentro.

Essa metamorfose encerra o ciclo da modernização como projeto emancipador. O Estado já não promete progresso; promete estabilidade. O orçamento deixa de ser instrumento de redistribuição e torna-se mecanismo de acumulação financeira. O fundo público, antes pensado como base da universalização dos direitos, é capturado pelo rentismo. A financeirização transforma o Estado em operador da dívida, e a democracia em ritual de legitimação do poder dos mercados.

A convergência entre Osorio e Prado revela o conteúdo da reforma administrativa: ela é o código jurídico da dependência em sua forma financeira. O Estado brasileiro, que um dia se legitimou pela ideia de desenvolvimento, agora o faz pela austeridade. Modernizar, aqui, significa adaptar-se ao império das finanças. O gestor substitui o cidadão; o orçamento substitui o projeto; o ajuste substitui a imaginação. O Estado financeirizado é o espelho da dependência: reflete o capital global e apaga a sociedade que o sustenta.

Como advertia Quijano, a modernidade latino-americana é inseparável de sua colonialidade. Osorio e Prado completam essa crítica, mostrando que, no século XXI, essa colonialidade assume a forma da racionalidade financeira. O Brasil reforma-se sem projeto, racionaliza-se sem justiça e moderniza-se sem autonomia. O Estado converte-se em administrador da escassez, e a política em contabilidade. O futuro se reduz a uma equação fiscal. Enquanto o fundo público for tratado como ativo e o cidadão como passivo, a emancipação continuará adiada.

Conclusão

A reforma administrativa brasileira expressa mais que uma reorganização institucional: é o sintoma final de um ciclo histórico e da persistência de um padrão de subordinação que se reinventa a cada modernização. Sob o discurso da eficiência e da moralidade fiscal, o Estado se desfaz como espaço público e se consolida como instrumento de valorização financeira. A política cede lugar à gestão; a cidadania, à contabilidade; o futuro, à administração da crise.

Desde a República, o Brasil acostumou-se a reformar-se de fora para dentro. O Estado sempre se modernizou segundo as exigências do capital — nacional ou estrangeiro —, raramente a partir das demandas da sociedade. A reforma atual é a versão financeirizada dessa tradição: reconfigura o Estado como empresa, esvazia o sentido do serviço público e transforma o servidor em peça fiscal. O Estado, que deveria mediar o comum, passa a gerenciar a escassez.

A dependência, que antes se explicava pela economia, agora se reproduz pela linguagem. Como ensinou Aníbal Quijano, a colonialidade do poder não desapareceu: apenas trocou de vocabulário. Hoje, a submissão se expressa em jargões de gestão, planilhas de eficiência e dogmas de austeridade. O Brasil importa racionalidades e as toma como destino. Reformar é crer que a obediência técnica substitui o pensamento político.

Jaime Osorio e Eleutério Prado mostram que o Estado contemporâneo, especialmente nas economias dependentes, tornou-se parte do circuito de acumulação financeira. O Estado financeirizado é aquele que perdeu o poder de decidir sobre si e passou a operar como agente da valorização fictícia do capital. No Brasil, ele é dependente duas vezes: financeiramente, das exigências do mercado global; epistemicamente, das ideias que o convencem de que essa dependência é inevitável.

Reformar-se, nesse contexto, significa ajustar-se ao império das finanças. O fundo público, que poderia sustentar a vida, é capturado pelo rentismo. O servidor, que deveria garantir continuidade institucional, é transformado em custo. A democracia, privada de conteúdo social, torna-se rito. A reforma administrativa, ao consolidar esse processo, marca o ponto em que o Estado abdica da promessa de universalidade e se curva definitivamente ao cálculo do mercado.

O desafio, portanto, é epistemológico e político. Repensar o Estado exige descolonizar o pensamento, romper com a naturalização da dependência e recuperar a centralidade do trabalho e da vida. Enquanto a eficiência substituir a justiça e a gestão ocupar o lugar do cuidado, o Estado continuará a reproduzir a dominação que o funda. A verdadeira reforma não será administrativa, mas histórica: aquela que devolva à palavra pública o poder de nomear o comum e à política a capacidade de criar futuros.

O Brasil que um dia sonhou com o desenvolvimento agora administra a própria impotência. O desafio é reaprender a sonhar — não com o progresso ditado de fora, mas com a emancipação que nasce do próprio povo.

João dos Reis Silva Júnior é professor titular do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Autor, entre outros livros, de Educação, sociedade de classes e reformas universitárias (Autores Associados).

Referências

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QUIJANO, Aníbal. Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder. Buenos Aires: CLACSO, 2014.

A direita convida à política do medo, por Caíque Azael

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Sobram sinais de que no Rio houve chacina planejada, para levantar governador que, decaído, flerta apenas com o medo. Direita se agarrará à brutalidade das armas, consolo que lhe resta. Para outro Brasil, é preciso propor outra Segurança

Caíque Azael – OUTRAS PALAVRAS – 29/10/2025

O Rio de Janeiro viveu mais uma chacina nesta terça-feira (28/10). A operação mais letal da história do estado, até o momento. Há notícias que mencionam ao menos 110 pessoas mortas e mais de 2.500 agentes da polícia civil e militar envolvidos, tanto do BOPE como da CORE. Não por acaso, um ano antes das eleições para o cargo de governador. Assim como em 2021, quando vivemos uma das maiores chacinas na favela do Jacarezinho, com dezenas de execuções, houve o alastramento do pânico moral em toda a população, fato que se conecta diretamente com a abertura de um período de campanhas para a sucessão do governo.

O governador Cláudio Castro (PL), em franca disputa com o governo federal petista, tentou transformar o debate da chacina que ele conduziu na cidade em palanque para atacar um suposto abandono do presidente Lula (PT) diante da situação do Estado. A política do medo ocupou as ruas, em uma megaoperação que mais parecia um espetáculo, envolvendo milhares de trabalhadores das forças de segurança, com veículos blindados (mais conhecidos como Caveirões), helicópteros sobrevoando casas, escolas e serviços de saúde fechados, vidas sob cerco. Para além dos complexos do Alemão e da Penha, diretamente envolvidos nas operações nesta terça-feira, há relatos de retaliações por parte das facções em toda a região metropolitana, com fechamento de vias e saques em comércios.

Segurança pública é o tema que mais os brasileiros, e não por acaso aparece recorrentemente na agenda dos gestores das grandes cidades e estados, em uma certa confusão sobre a atribuição de cada ente do pacto federativo. Um problema que temos observado é que muitos vendem mais violência como solução: na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, o Prefeito Eduardo Paes (PSD) decidiu armar a guarda municipal, treinando-a militarmente, em um ato que contraria as principais indicações de pesquisadores e ativistas na área da segurança pública. Afinal, isso reproduz a lógica equivocada de que o aumento da força policial ou armamento garante segurança, quando, na prática, amplia a violência, reforça desigualdades e expõe ainda mais a população negra e periférica ao risco de morte. No caso da capital fluminense, o armamento da guarda significa maior repressão aos trabalhadores informais e a completa falência de um modelo de gestão que, incapaz de lidar com os conflitos urbanos cotidianos por meio de esforços intersetoriais, decide incrementar as ontologias militarizadas de governo.

Sem dúvidas, o Rio de Janeiro vive uma grande crise na segurança pública, que merece ser analisada a partir de esforços multidimensionais, intersetoriais e de longo prazo. Pesquisas e experiências nacionais e internacionais mostram que segurança pública efetiva se constrói por meio de prevenção, com políticas sociais, investimento em educação, saúde e infraestrutura comunitária, não com fuzis, blindados e operações espetaculares que transformam o medo em espetáculo. A experiência da Colômbia, por exemplo, demonstra como a redução da violência integra um programa articulado de inclusão social, diálogo comunitário e fortalecimento de instituições locais que promovam o acesso a direitos básicos e a reconstrução do tecido social. Isso mostra que segurança pública é, antes de tudo, um projeto de cuidado coletivo e prevenção, e que políticas baseadas na repressão e na espetacularização da violência só perpetuam ciclos de morte e medo, aprofundando desigualdades e fragilizando a cidadania.

No Rio de Janeiro, na contramão, vemos a intensificação de uma certa agenda de guerra urbana, coordenada pelo Estado, como parte das táticas de governança da extrema-direita, com o terror sendo o principal alicerce de um projeto ultraliberal de retirada de direitos da população. Por um lado, intensifica-se a violência de Estado nas favelas e periferias e, por outro, violam-se direitos dos trabalhadores.

Aliás, ao abordar o episódio de ontem, a mídia hegemônica deveria usar o nome adequado para se referir ao ocorrido. Não é operação policial, é chacina. E, talvez, a maior da história do país.

O endurecimento de práticas violentas de Estado ocupa um lugar central nessa agenda de retirada de direitos, como nos lembra Wacquant (em “Punir os Pobres”, livro publicado em 2001), pois a criminalização de pobreza e a militarização das políticas urbanas reforçam a lógica de exclusão social necessária para avançar agendas ultraliberais. Como elucidado pelo autor, o Estado neoliberal desloca seu eixo da proteção social para o controle penal, punindo os pobres em vez de protegê-los. O que se vê, ao longo do dia, são milhares de trabalhadores desesperados sem ter como voltar para suas casas, sem notícias precisas de suas famílias e dezenas de pessoas executadas, inclusive trabalhadores das forças de segurança. O pano de fundo das grandes operações policiais, que se inscrevem em uma agenda de extermínio das populações negras no Brasil, também se relaciona com a desarticulação de quaisquer possibilidades de organização da população, que vive sob cerco, sem direitos e sem perspectivas de uma vida digna e tranquila. Nesse cenário, a segurança pública deixa de ser uma garantia cidadã e se converte em método de controle social, eleitoral e econômico.

O resultado concreto é a morte em escala industrial e o aprofundamento de uma lógica de governança pelo terror. Uma política que substitui direitos por tiros, e cidadania por medo. Qual é o espaço para a esperança em um cotidiano marcado pela suspensão total de direitos — até mesmo do direito de sonhar? Essa militarização crescente, longe de resolver qualquer problema de segurança, amplia os abismos social e racial do Rio de Janeiro. Enquanto as favelas se tornam palco de guerra, outros espaços da cidade assistem, paralisados, ao espetáculo que naturaliza o extermínio como rotina. Será que os moradores de Ipanema viveram as mesmas preocupações que os moradores do Complexo da Penha?

O padrão da chacina como política de Estado

Pesquisas reunidas pelo Dicionário de favelas Marielle Franco (Fiocruz) demonstram que o Rio de Janeiro vive há mais de três décadas sob a recorrência de chacinas que se repetem com a mesma lógica, as mesmas vítimas e a mesma impunidade. O verbete chacinas favelas no Rio de Janeiro identifica esses episódios como parte de um padrão estrutural de atuação violenta do Estado, voltado especialmente contra populações negras e periféricas. Casos como Acari (1990), Candelária (1993), Vigário Geral (1993), Borel (2003), Complexo de Alemão (2007) e Jacarezinho (2021), entre tantos outros, revelam não eventos isolados, mas uma política contínua de extermínio, sustentada por práticas de militarização e ausência de responsabilização. A sucessão dessas tragédias evidencia que as chacinas não são desvios ou excessos pontuais, mas expressões permanentes de um projeto de segurança pública que naturaliza a morte nas favelas como forma de governo.

A continuidade da letalidade, mesmo diante de decisões judiciais que tentaram restringir operações (como a ADPF 635, conhecida como ADPF das favelas), revela a falência da política de segurança pública e a fragilidade da capacidade estatal de controlar suas próprias forças. Não se trata de uma polícia “fora de controle”; trata-se de uma política que, em muitos momentos, escolhe não controlar.

Enquanto a retórica da guerra ao tráfico insiste em transformar favelas em campos de batalha, o que se observa cotidianamente é que as operações letais e descoordenadas pouco alteram a estrutura do crime organizado. Estudos promovidos por instituições como o Grupo de Estudos dos Novos ilegalismo (GEN) ou pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) têm mostrado que as facções e milícias não se sustentam apenas pela venda de drogas nas comunidades, mas por redes complexas de circulação de armas, lavagem de dinheiro e corrupção institucional que operam fora delas, nas fronteiras, nos portos, nas instituições financeiras e nas próprias forças de segurança do Estado. Sufocar as favelas é enxugar gelo: a cada invasão violenta, o Estado reorganiza o próprio terreno da criminalidade, mantendo toda a população sitiada e produzindo medo e insegurança em larga escala, enquanto os verdadeiros fluxos do crime permanecem intocados.

Uma alternativa à política de extermínio passa por recolocar a inteligência e a coordenação entre os diferentes entes federativos no centro da estratégia de segurança pública. Aqui, não convoco a inteligência como uma entidade abstrata, mas justamente como um ator capaz de produzir investigações e métodos de trabalho que sejam menos letais e mais eficazes. Não é possível viver em um dos estados que mais gasta dinheiro com segurança pública (estudos apontam que o RJ é o estado que mais investe nas policiais no Brasil) e, ainda assim, não conseguir apontar horizontes de resolver o problema que se coloca para a população, sem combater os grupos civis armados vinculados ao tráfico de drogas ou aos grupos milicianos que também dominam grande parte dos territórios. Facções e milícias não são o oposto do Estado, mas se relacionam com esse modelo contemporâneo de governar a vida, como efeito de redes que emergem das brechas da corrupção, das desigualdades, da especulação imobiliária e da própria política de segurança pública.

As operações mais eficazes em apreensão de fuzis, drogas e munições, inclusive as que levaram à prisão de agentes como Ronnie Lessa (envolvido na execução da vereadora Marielle Franco, do PSOL), foram conduzidas sem tiros, com base em investigação, cruzamento de dados e cooperação entre órgãos. Por que não seguir sempre assim? Não foram em favelas, tampouco exigiram blindados ou helicópteros. Mostraram, na prática, que o enfrentamento à criminalidade organizada depende muito mais de método e integração do que de uma afirmação midiática de força. Esse contraste revela que o modelo militarizado não é a via mais eficaz, mas é a via que produz visibilidade política. Nossa segurança precisa de coordenação técnica e nitidez política do que deve ser enfrentado — e não de espetáculos de poder. A administração seletiva dos ilegalismos, portanto, permite que as engrenagens lucrativas do crime continuem rodando, enquanto vende soluções falsas para a segurança, associando pobreza e criminalidade em leituras modernas do positivismo criminológico.

O faroeste é terra sem lei (e não tem preceitos fundamentais)

As megaoperações em favelas do Rio de Janeiro já foram objeto de debate até mesmo no Supremo Tribunal Federal, por força da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, protocolada pelo PSB em conjunto com dezenas de movimentos sociais e instituições com atuação em favelas. A ADPF das Favelas, proposta em 2019, indicou a gravidade das operações e requereu limites concretos para incidir sobre a escalada de letalidade policial no estado. Entre as decisões preliminares do STF, estava o uso obrigatório de câmeras corporais pelos policiais, aviso prévio ao Ministério Público antes de operações, preservação das cenas do crime e restrições ao uso de helicópteros como plataforma de tiros, atos que reduziram temporariamente as mortes, sobretudo no contexto da pandemia de coronavírus.

Em 2025, quando concluiu o julgamento da ação, o Tribunal homologou parcialmente o plano do Estado de Rio de Janeiro para redução de letalidade policial, afrouxando certas restrições às operações policiais: por exemplo, foi autorizada a retirada da exigência de excepcionalidade para incursões nas favelas e foi permitida uma maior atuação dos helicópteros e blindados (os Caveirões) em operações rotineiras. Avanços normativos (como uso de câmeras e informes ao Ministério Público) sem monitoramento e responsabilização real tendem a se traduzir em letra morta.

O Estado do Rio não fornece dados consistentes e detalhados para justificar as operações, justamente porque não há um desenvolvimento com inteligência que as justifique. Não há fiscalização externa efetiva para dizer se helicópteros e blindados são usados conforme regras, ou se os protocolos de preservação de cena são realmente seguidos, pois a decisão final do STF não discrimina protocolos para tais ações ou responsáveis por elas. As próprias operações seguem sob justificativas de combate ao tráfico, como foi nesta terça-feira, que podem driblar a aplicação das regras.

Ainda assim, o governador parece preferir viver em um Estado sem lei, já que tem tratado a ADPF como problema, mesmo com tantas flexibilizações depois da decisão final do STF. Essa postura sinaliza que, para o projeto de poder atual, a lei não serve como mediação, mas como um entrave. O “faroeste” que ele prefere não é apenas terra sem lei; é um território onde a cidadania é permanentemente suspensa para que a governança pelo terror possa operar livremente. Não por acaso, o líder do governo na Alerj, deputado Rodrigo Amorim (PL), propôs que o estado voltasse a pagar a famosa ‘gratificação faroeste‘, que, na prática, instituiria um bônus financeiro para policiais que promovessem a neutralização de “criminosos” durante operações, além da apreensão de armas de grosso calibre.

Essa emenda ao projeto de reestruturação da Polícia Civil, aprovada pela Alerj em setembro, significaria a legalização da política de extermínio e a transformação da letalidade em meta de trabalho. Ela pretendia institucionalizar um incentivo financeiro para a lógica do abate que a própria ADPF 635 tentava conter.

O governador, pressionado pelos movimentos sociais, STF e pelo Ministério Público, vetou a emenda na semana passada (23/10). Contudo, a justificativa oficial para o veto não se baseou na defesa da vida ou nos preceitos constitucionais, mas em supostas questões técnicas e financeiras, ligadas ao Regime de Recuperação Fiscal. Isso expõe a controvérsia que tratamos aqui: há um grupo político que tenta institucionalizar um mundo sem leis, com incentivos discursivos e até mesmo financeiros para que mais mortes sejam operadas pelo Estado. Essa encenação compõe um roteiro político. Em entrevistas, o governador preferiu atacar publicamente a ADPF, creditando o seu fracasso como gestor aos mecanismos de controle da barbárie, em uma certa articulação entre intervenções na cidade e militarização do medo, das favelas ao asfalto.

Aumentar as mortes para aumentar os votos? Outro mundo precisa ser possível

Por enquanto, as esperanças estão dispersas entre tantas operações. O que precisamos entender, nesse momento, é que a recorrência das chacinas em períodos eleitorais não é coincidência. Nos últimos anos, grandes intervenções militarizadas de alta letalidade se intensificaram em momentos de disputa política. Como esquecer a intervenção militar no Rio em 2018, logo antes de se escancarar os portões do inferno que possibilitaram a eleição de Bolsonaro e Wiztel? Como esquecer cada operação policial, sempre quebrando recordes de letalidade, ao mesmo tempo em que os grupos civis armados (tanto tráfico como milícias) apenas aprofundam seu poderio no Estado?

A cada ano, a retórica da guerra é reativada porque ela tem a capacidade de reposicionar lideranças políticas diante da opinião pública. Mesmo com a guerra constante, nunca vivemos um período real e duradouro de contenção das dinâmicas do crime organizado por aqui. O pânico moral, pelo contrário, é uma ferramenta de marketing de longa duração: a violência é apresentada como demonstração de força e controle — com megaoperações, enquanto a insegurança cotidiana produzida por essa política ineficaz é transformada em justificativa para o autoritarismo do Estado. Essa tática, característica de um modo bolsonarista de fazer política, reforça o medo como linguagem de governo e alimenta o ciclo que torna a morte uma cena pública legitimada.

Não podemos naturalizar a narrativa de Claudio Castro de que os direitos humanos seriam obstáculos à segurança. O governador diz que “não acredita que segurança se faz politizando”, mas politiza quando segue o padrão de governo no qual o direito de viver é substituído pelas bonificações por atirar.

Que a gente não se esqueça, contudo, que há frestas de resistência: grupos de mães, movimentos e coletivos constroem lutas por outro mundo, com diversas ações de enfrentamento à violência de Estado. É preciso transformar essa potência em projeto e disputar o sentido da segurança pública.

Superar a lógica da morte exige deslocar o debate da segurança pública do campo da violência para o campo dos direitos humanos. Uma política de segurança cidadã precisa caminhar junto de políticas de educação, cultura, saúde e infraestrutura. Segurança se constrói com confiança, cuidado e proteção, não com Caveirão e fuzil. Isso implica relocalizar a presença do Estado nas favelas, construindo esperança de que a vida pode ser melhor.

Por que Brasil virou refém de Lula para preservar democracia, por Marcio Aith

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Marcio Aith, Advogado e jornalista, foi secretário de comunicação do Supremo Tribunal Federal e do Estado de São Paulo (governo Alckmin). Foi também correspondente da Folha em Tóquio e Washington

Folha de São Paulo, 02/11/2025

[RESUMO] Na Indonésia, Lula encerrou o teatro: disputará novamente a Presidência em 2026, aos 81 anos. Há quatro décadas ele eclipsa a política brasileira, renascendo das cinzas a cada crise — da prisão ao encontro com Trump na Malásia. Mas na sombra dele cresce apenas o deserto político, sem alternativas, que ele mesmo ajudou a criar.

Quando Lula sentou-se ao lado do turbulento Donal Trump em Kuala Lumpur, no domingo passado, o encontro tinha todos os ingredientes do impossível. Três meses antes, Washington havia imposto tarifas de 50% sobre produtos brasileiros e sanções a ministros do Supremo Tribunal Federal. A crise bilateral era a mais grave em dois séculos de relações diplomáticas.

E ali estava Lula —perseguido, preso, com processos anulados pelo STF, reeleito— conversando de igual para igual com Trump, que declarou admirar a carreira política do brasileiro, eleito três vezes presidente da República.

A cena na Malásia é a síntese perfeita da extraordinária capacidade de sobrevivência política de Lula. Ele renasce das cinzas. Da prisão em Curitiba ao Palácio do Planalto em menos de cinco anos. Do político com processos judiciais ao estadista que negocia com potências. Essa capacidade de renascimento, porém, tornou-se também sintoma de uma debilidade nacional: nossa democracia não consegue produzir alternativas ao seu protagonista mais longevo.

Poucos dias antes, em Jacarta (Indonésia), Lula havia encerrado qualquer suspense sobre 2026. “Eu vou completar 80 anos, mas pode ter certeza que eu estou com a mesma energia de quando tinha 30 anos. Vou disputar um quarto mandato no Brasil”, declarou ao lado do presidente indonésio Prabowo Subianto. E completou, com uma franqueza reveladora: “Estou preparado para disputar outras eleições.”

Com essa frase, acabou o falatório mais previsível da política brasileira. Em 2022, o mesmo Lula dizia: “Quando chegar 31 de dezembro de 2026, quando a gente entregar esse mandato para outra pessoa, o país estará bem”.

Pois bem. Chegou o segundo ato. Prometeu mudar tudo e mudou de ideia. Jurou sair, mas só jurou. A indecisão foi teatro. O final, previsível.

Ao confirmar que disputará um quarto mandato, Lula encerra o teatro da dúvida e revela um país incapaz de substituí-lo. Neste ponto, o autor se vê obrigado a corrigir o próprio texto: não se trata de disputar um quarto mandato, mas de uma sétima tentativa presidencial. Lula foi candidato em 1989, 1994, 1998, 2002, 2006, 2022 e agora será novamente em 2026. Antes disso, foi eleito deputado federal em 1986 e derrotado ao governo de São Paulo em 1982.

Ou seja: há 43 anos Lula é candidato a alguma coisa. E talvez o país tenha se acostumado tanto a vê-lo disputar que, quando vota nele, parece reencenar o mesmo ato.

A questão, portanto, não é a idade, mas a longevidade. Não a biológica, mas a política: o fato de o Brasil, quatro décadas depois, ainda depender do mesmo nome para salvar a democracia, articular esperança, poder e estabilidade. A política brasileira parece um carrossel: gira, mas o eixo continua sendo Lula.

Nascido em 27 de outubro de 1945, ele chegará ao primeiro turno de 2026 com 80 anos e 11 meses; ao segundo, com 81. Nenhum presidente em democracia consolidada chegou tão longe em idade e, sobretudo, em tempo de influência contínua. Mas não é o corpo que preocupa. É o vazio em volta.

A energia de Lula aos 80 é, de fato, notável. Viajou 22 horas de avião até a Indonésia. Participou de cerimônias, firmou acordos comerciais, ganhou uma festa de aniversário antecipada com o presidente Subianto (que fez 74 anos dias antes). Seguiu para a Malásia. Reuniu-se com Trump por 50 minutos. Negociou tarifas, defendeu ministros do STF, propôs mediação na Venezuela. Voltou ao Brasil após uma semana de agenda intensa.

Não há sinais de fadiga cognitiva. Não há perda de comando. Lula mantém o instinto político, o carisma, a capacidade de improvisação —que, de tão eficiente, às vezes tropeça na autoconfiança e comete gafes, como a de dizer que traficantes são vítimas de usuários. Sua lucidez aos 80 anos supera a de muitos líderes mais jovens.

Individualmente, tanta vitalidade é admirável. Coletivamente, nosso problema é a ausência de energia ao redor dele. Lula persiste porque o sistema não produziu alternativas —e ele mesmo não permitiu que existissem.

Em 2010, obrigado a deixar o cargo, Lula tinha capital político para eleger qualquer um. Havia quadros preparados, lideranças jovens, ministros de talento. Ele escolheu Dilma Rousseff, uma técnica sem trajetória eleitoral, com origem em outro partido.

O objetivo era claro: não o ameaçar. Dilma não foi projetada para liderar, mas para guardar o lugar até o retorno do chefe. Lula quis voltar em 2014? Os que o conhecem de perto dizem que sim. Não voltou por resistência da própria Dilma, em um episódio nunca satisfatoriamente esmiuçado por jornalistas, historiadores e cientistas políticos.

Fernando Haddad, desprezado em 2010, só virou alternativa na missão impossível de 2018, quando Lula estava preso, e Bolsonaro varreu o país. E Haddad, agora, carrega pedras no Ministério da Fazenda. É assim que Lula move as suas peças

(Aqui, o autor se vê obrigado a corrigir novamente o próprio texto. Mesmo da prisão, em 2018, Lula se lançou candidato, mas foi barrado pela Justiça Eleitoral. O que leva a oito o número de suas tentativas presidenciais.)

Dilma não foi herdeira, foi interregno. Haddad virou preposto. Gleise Hoffmann é bedel, não alternativa. Nenhum sucessor sobreviveu dentro do PT. O partido envelheceu sob a sombra do homem que o fundou. E ali ficou. Na sombra. Houve várias oportunidades de forjar novas lideranças ao longo de décadas. E 2010 talvez tenha sido o momento mais adequado para uma verdadeira renovação.

Em 2022, Lula literalmente segurou a democracia pelo colarinho. Por pouco. Mas 2026 será outra história. O golpismo bolsonarista, que venceu, foi contido e punido. O próximo pleito promete correr dentro da normalidade democrática. A direita terá seu nome. À esquerda, só há Lula. Ao redor dele, o deserto político que ele mesmo ajudou a criar.

E sempre há uma justificativa para Lula concorrer. Desta vez, é o avanço da direita no eleitorado. Só ele poderia se contrapor a essa onda. Só ele manteria a esquerda no poder. A lógica se renova a cada ciclo, mas o protagonista permanece o mesmo.

A crítica, repito, não é ao octogenário candidato, mas ao sistema político que o torna indispensável, ao partido que se dissolveu nele e ao país que não soube criar alternativas.

Lula é populista. E isso não é ofensa, é constatação. Dispenso o aval acadêmico: a palavra tem valor descritivo, não depreciativo. Quando “Vem fazer o L” substitui programa partidário, fica óbvio que não há mais partido, apenas um homem.

O homem que fala “como o povo” há décadas aprendeu a ser o próprio povo. Seu populismo é democrático, performático, conciliador e centrado em si. Fala aos de baixo contra os de cima, encarna o injustiçado que venceu, transforma a biografia em mito. Promove inclusão social sem romper o pacto dos privilegiados: rentistas, conglomerados erguidos por crédito estatal.

Seria injusto, porém, tratar Lula como aberração. Os modelos de representação mudaram no mundo todo, como bem demonstrou o cientista político francês Bernard Manin, falecido em novembro de 2024. Segundo ele, as democracias contemporâneas deixaram de ser de partido para se tornarem “democracias de público”.

Nelas, os eleitores não se guiam mais por ideologias ou programas coletivos, mas por vínculos afetivos com figuras carismáticas. A política virou espetáculo, e o voto, ato de identificação pessoal. O líder passa a representar o sentimento difuso da maioria —não uma plataforma, mas um personagem.

Nesse ambiente, o populismo não é desvio nem destino: é uma possibilidade constante. Surge quando a representação política se confunde com a performance, e o público transforma o político em protagonista. A democracia de partido deu lugar à democracia do público.

Há outro fator a se registrar. Lula também é filho legítimo do sistema que o cerca, o mesmo que manteve oligarquias no poder por décadas. Alckmin governou São Paulo durante 12 anos no período de hegemonia tucana; Sarney controlou o Maranhão por quase meio século; ACM transformou a Bahia em dinastia; Maluf, Quércia, Garotinho e Barbalho são variações regionais do mesmo padrão. No Brasil, o poder raramente troca de mãos.

Lula, portanto, não inventou a perpetuação, apenas a democratizou. Construiu sua longevidade no voto direto, na popularidade genuína e no carisma pessoal. No entanto, o resultado é o mesmo: a incapacidade do sistema de produzir renovação.

E não apenas nas eleições majoritárias. Como observa o cientista político Antonio Lavareda, o voto proporcional em “lista aberta” é, na prática, uma lista desordenada, um convite para escolher rostos, não ideias. O modelo transforma cada candidatura em uma franquia pessoal de poder. O voto deixa de representar um projeto coletivo e vira ativo privado.

As legendas, dominadas por seus donos de voto, perdem a capacidade de se renovar. O resultado é um Congresso imóvel, de caciques vitalícios e reeleições sem fim. É nesse terreno que o populismo prospera —e que Lula se torna, mais do que líder, uma instituição.

Democracias tendem a se apegar a líderes que parecem insubstituíveis, como os Estados Unidos fizeram com Franklin D, Roosevelt, eleito quatro vezes seguidas entre 1933 e 1945. Sua permanência no poder foi tamanha que o país criou, em 1951, a 22ª Emenda, limitando todos os presidentes a dois mandatos. A medida nasceu do medo de ver uma democracia transformar-se em monarquia eletiva.

O Brasil, ao permitir a reeleição em 1997 através da Emenda Constitucional nº 16, seguiu caminho oposto. Acreditou que a limitação a dois mandatos consecutivos, ainda que com a possibilidade de retorno depois de um interregno, seria suficiente para evitar a perpetuação.

Ignorou, porém, a lição que o caso Roosevelt havia ensinado: um líder não precisa de golpe ou fraude para se perpetuar. Bastam a popularidade e a falta de alternativas. Foi exatamente isso que os americanos temeram: não o abuso do poder, mas a dependência em relação ao líder.

Lula, como Roosevelt, não governa pela força, mas pela ausência de quem possa substituí-lo. E, como Roosevelt, tornou-se o fiador de uma estabilidade que, também, esconde a fragilidade das instituições. A diferença é que os americanos aprenderam a lição em 1951. O Brasil ainda a adia.

Lula, aos 81, será o mais velho candidato de uma democracia estável. E o mais longevo líder popular da história do país. Getúlio Vargas, é verdade, governou por mais tempo —18 anos e meio, entre 1930 e 1954. Mas desses, apenas seis anos e meio foram em governos democráticos (1934 a 1937, eleito pela Assembleia Nacional Constituinte, e 1951 a 1954, dessa vez pelo voto popular). Oito anos foram de ditadura declarada, no Estado Novo (1937-1945). Quatro anos, de governo provisório sem eleições (1930-1934), após tomar o poder pela Revolução de 1930. Getúlio construiu sua longevidade também pela força, pelo golpe, pela supressão do voto.

Lula, ao contrário, construiu a sua exclusivamente pelo voto direto, pela popularidade genuína, pela capacidade de se reinventar dentro das regras democráticas. É exatamente isso que torna sua longevidade ainda mais emblemática: não apenas o tempo no poder impressiona, mas sobretudo os 43 anos de influência política ininterrupta, de candidaturas sucessivas, de presença constante no imaginário nacional.

Um feito admirável e, ao mesmo tempo, um sintoma alarmante: o de uma nação que confunde continuidade com futuro. A democracia envelhece quando o futuro é tratado como risco, e o passado, como zona de conforto.

O encontro com Trump provou que Lula ainda tem energia, sagacidade e presença de palco. Mas também revelou algo mais profundo: o Brasil, após 43 anos, ainda precisa dele para se fazer ouvir no mundo. O Brasil não envelheceu com Lula. O Brasil envelheceu por não conseguir sair de dentro dele.

 

Contas externas testam limites da economia, por Samuel Pessoa

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Samuel Pessoa, Pesquisador do BTG Pactual e do FGV IBRE e doutor em economia.

Folha de São Paulo, 02/11/2025

A formulação da política econômica nos governos petistas faz com que a economia teste os limites da capacidade produtiva.

Na área externa, há uma clara piora recente no balanço de transações correntes. Neste, são contabilizadas todas as transações entre residentes e não residentes de um país.

Há quatro contas: balança comercial de mercadorias; balança comercial de serviços; balanço das rendas primárias; e da renda secundária, antigamente conhecida como transferências unilaterais.

Os serviços correspondem a turismo, fretes, aluguéis de equipamento, streamings, uso de nuvens etc. A renda primária corresponde à remuneração dos investimentos que brasileiros fizeram no exterior, líquido da remuneração dos investimentos de estrangeiros no Brasil. Trata-se dos juros pagos e dividendos distribuídos. A renda secundária corresponde às remessas de imigrantes aos seus familiares, doações e ajuda internacional, além de transferências do país para o custeio das agências multilaterais.

Nos 12 meses terminados em setembro, o saldo das transações correntes foi negativo em US$ 79 bilhões. Representa uma piora de US$ 57 bilhões sobre os 12 meses terminados em fevereiro do ano passado. A deterioração em pouco mais de um ano e meio impressiona. Como proporção da economia, saímos de um déficit de 1%, em fevereiro de 2024, para 3,6% do PIB, em setembro passado.

A piora de US$ 57 bilhões das transações correntes divide-se em US$ 45 bilhões para a balança de mercadorias, US$ 9 bilhões para a balança dos serviços e US$ 3 bilhões de piora para as duas balanças de rendas. A balança de mercadorias responde por 79% da piora (45/57).

Um sinal claro de que a economia testa os limites de sua capacidade, isto é, os limites da demanda sobre a oferta, é que somente a elevação das importações foi de US$ 37 bilhões, ou 65% da piora de US$ 57 bilhões das transações correntes. O valor das importações elevou-se muito em um período no qual os preços dos bens importados caíram. O que indica que a piora deveu-se à elevação das quantidades importadas. De fato, elas responderam, de fevereiro de 2024 até setembro passado, por uma piora de US$ 55 bilhões.

A elevação das importações é sinal de que a oferta doméstica não tem conseguido atender à demanda. Como tenho escrito neste espaço, a elevada inflação de serviços é outro sinal do excesso da demanda sobre a oferta. A maior parcela dos serviços é de oferta doméstica e, para estes, o excesso de demanda sobre a oferta se transforma em elevação do preço doméstico, isto é, em inflação.

Esperamos que a desaceleração em curso da atividade irá reduzir as importações e melhorar o saldo das transações correntes em 2026.

De qualquer forma, o saldo tão negativo das transações correntes, 3,6% do PIB, como vimos, expressa a característica básica de nós sermos uma economia de baixa poupança. Com superávit comercial na balança de petróleo e derivados de US$ 33 bilhões em 2025, deveríamos ter conta-corrente bem melhor. O mesmo se aplica às contas públicas: com a contribuição para as contas da União das receitas de impostos ligados ao setor petrolífero de R$ 261 bilhões, deveríamos observar superávit primário nas contas públicas.

Já estamos produzindo 4 milhões de barris por dia de petróleo. Na prática, o bilhete premiado das reservas petrolíferas do pré-sal está virando consumo corrente. Não é necessariamente ruim, mas contribui para perpetuar nossa mediocridade.

 

O custo econômico da violência, por Bráulio Borges

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Bráulio Borges, doutorando em economia da FGV EESP, mestre em economia na FEA-USP, é diretor da LCA Consultores e pesquisador-associado do FGV Ibre.

Folha de São Paulo, 31/10/2025

A megaoperação policial que deixou mais de 120 mortos no Rio de Janeiro reacende um debate crucial para o Brasil: qual é o custo real da violência e da criminalidade para nosso desenvolvimento econômico e social? Esse episódio ilustra de forma bastante dramática um problema que deve estar custando ao Brasil pontos preciosos de crescimento econômico, entre outros impactos deletérios.

Há diversas métricas para medir o grau de violência e a criminalidade. Um dos mais acompanhados é o número de homicídios cometidos a cada 100 mil habitantes. No caso do Brasil, esse indicador vinha em tendência de alta desde o começo dos anos 1990, atingindo um pico em 2017, com cerca de 31 homicídios por 100 mil habitantes.

Desde então, houve um recuo expressivo desse indicador, inclusive em 2023 e 2024, chegando a cerca de 20 no ano passado (e continua caindo em 2025). Trata-se de uma queda expressiva, de quase 40% ante 2017. Não obstante, o patamar da violência em nosso país ainda é muito elevado: a média mundial desse indicador é de cerca de 5 homicídios.

Qual o custo econômico desse desvio tão elevado da taxa de homicídios brasileira ante a média mundial? Um estudo publicado pelo Fundo Monetário Internacional no final de 2023 dá uma ideia disso: reduzir as taxas de homicídio na América Latina ao nível da média mundial poderia elevar o crescimento econômico anual da região em 0,5 ponto percentual. Para países com alto grau de violência, como é o caso brasileiro, fechar completamente essa lacuna poderia elevar o crescimento do PIB em cerca de 0,8 ponto percentual.

O estudo identificou os canais de transmissão: a violência prejudica a acumulação de capital ao afastar investidores que temem roubos e violência, além de reduzir a produtividade ao desviar recursos para investimentos menos produtivos (como segurança patrimonial).

Nesse contexto, muitos vêm advogando pela replicação da experiência recente de El Salvador. A taxa de homicídios no país despencou de 108 por 100 mil habitantes em 2015 para cerca de 2,0 em 2024, refletindo a política linha-dura do presidente Nayib Bukele.

Contudo, esse aparente sucesso veio acompanhado de um custo elevado: cerca de 2% da população do país foi detida, com registro de prisões arbitrárias, desaparecimentos, mortes sob custódia e tortura. A Freedom House rebaixou El Salvador de um país “livre” para “parcialmente livre”, com sua pontuação caindo de 67 em 2019 para 47 em 2025 (o Brasil recebeu nota 72 em 2025, classificado como “livre”).

O crescimento econômico salvadorenho, ao menos até agora, não se acelerou, tendo-se mantido em torno de 2,5% a.a, indicando que reduzir a violência através da erosão democrática pode neutralizar ou mesmo reverter os ganhos associados à redução da taxa de homicídios.

Não muito longe do Brasil, temos o caso do Chile: embora tenha passado de cerca de 3 para 6 por 100 mil ao longo da última década, a taxa de homicídio no país ainda é relativamente baixa em ampla comparação internacional (é semelhante àquela dos EUA). E o país tem sustentado isso sem sacrificar o Estado de Direito (pontuação de 95 no indicador da Freedom House). Certamente esse é um dos fatores por trás do sucesso deles em termos de desenvolvimento: o PIB per capita chileno praticamente triplicou entre 1990 (último ano da ditadura iniciada em 1973) e 2024, ao passo que o brasileiro cresceu menos de 60% nesse mesmo período.

No caso do Brasil, não há uma “bala de prata” para gerar uma redução adicional expressiva da violência. É preciso investir em uma abordagem multifacetada, combinando gestão estratégica, articulação entre União, estados e municípios, inteligência, controle de armas, gestão de dados e políticas baseadas em evidências.

 

Massacre do Rio: o dedo da Faria Lima, por Ricardo Queiroz Pinheiro

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O “ajuste fiscal” prepara o terreno: corta futuro, elimina alternativas, cria inimigos. Polícia executa. Círculo perfeito: quem perde tudo vira ameaça e é morto como exemplo. A mão que nutre as fintechs aperta o gatilho e derruba o moleque-avião

Ricardo Queiroz Pinheiro – Outras Palavras – 30/10/2025

Foi ontem. O Rio de Janeiro, mais uma vez, serviu de palco habitual das mazelas da República. Helicópteros rasgaram o céu da favela; rajadas, correria, corpos rolando no chão. Mães se agarraram às portas, celulares trêmulos tentando registrar o que restava de luz. Horas depois, o governador miliciano Cláudio Castro surgiu em cadeia nacional para converter o sangue em manchete: “operação concluída, a inteligência atuou”. Estava inaugurada a campanha de 2026.

O sociologo Loïc Wacquant em uma frase deu o quadro há décadas: quando o Estado social se retrai, o Estado penal se impõe. No Rio (não só), essa retração é programada. A austeridade corta horizontes, desmonta escolas, precariza vidas; em seguida, o aparelho punitivo toma seu lugar, disciplinando corpos sem futuro. A violência é a ferramenta de regulação. A política econômica e a política da bala são faces do mesmo projeto.

É oportuno olhar o Atlas da Violência 2025, produzido pelo IPEA. Ali, se formaliza o que a rua já conhece: enquanto o país vê uma pequena queda nas taxas gerais, o Rio caminhou na direção oposta, com aumento de 13,6% nos homicídios. Esses números têm endereço: são jovens negros sem empregos, sem escola, sem perspectiva. Onde faltam políticas públicas, cresce a justificativa punitiva — e com ela, o aplauso de uma parte significativa do eleitorado que aprendeu a ver ordem na bala.

A juventude é o alvo. As estatísticas mostram aumento nas mortes entre 15 e 29 anos; entre adolescentes, a explosão é ainda mais brutal. E quando a contabilidade alcança crianças — 50% de aumento nas mortes entre 5 e 14 anos —, fica claro que não se trata de “efeitos colaterais”: é desenho político. A execução aparece como resposta ao vazio social que a própria política de austeridade ajudou a produzir.

A pesquisadora Alba Zaluar vem insistindo numa leitura que hoje é central: a violência do Rio é um ecossistema, sustentado por circulação de armas, cumplicidade institucional e abandono social. O que era economia ilegal encontrou tradução na gestão pública — e o Estado passou a operar como parceiro e restaurador de uma “ordem” que sacrifica vidas. No governo atual, essa simbiose se institucionalizou: as operações são mensagens, as mortes, métricas; o aparelho repressivo se consolida, bloco por bloco.

Houve um momento de interrupção possível. A ADPF 635 mostrou que limitar procedimentos letais produz efeitos reais: mortes por intervenção policial caíram drasticamente — de 1.814 em 2019 para 699 em 2024 — e, com isso, também diminuíram homicídios dolosos e roubos. Mas a contenção foi interpretada pelo governo como perda simbólica, não como ganho civilizatório. Assim, a estratégia foi reverter limites e reafirmar a estética do choque: liberar helicópteros, permitir operações perto de escolas, normalizar a artilharia urbana.

Esse movimento é um processo — a construção deliberada do nosso aparelho repressivo. É um projeto com roteiro eleitoral, pois parte da população legitima como única solução possível. A violência funciona como espetáculo para uma plateia que, empobrecida e esmagada pela Bíblia neoliberal da eficiência, recebe no massacre a sensação imediata de “ordem”. O bordão — “bandido bom é bandido morto” — é pedagogia política que convence porque promete simplicidade onde faltam políticas públicas complexas.

O austericídio transformou a privação econômica em argumento moral. A austeridade prepara o terreno: corta futuro, elimina alternativas, cria inimigos; depois o aparelho punitivo executa a lição. O resultado é um círculo perfeito: quem perde tudo passa a ser identificado como ameaça; quem cruza esse limiar é punido com morte e exposto como exemplo. O Estado, assim, não só permite a violência — ele a modela, a racionaliza e a capitaliza politicamente.

A mesma mão que afaga as fintechs — vitrines reluzentes da austeridade — é a que customiza a lavagem de dinheiro das grandes redes do tráfico, arma a polícia e derruba o moleque-avião. O garoto que largou a escola para virar vapor, buscando uma grana pra sobreviver, é abatido pela mesma máquina que financia o seu patrão invisível. O circuito é perfeito: o capital se legitima no alto, a bala fecha a conta embaixo.

Ainda assim, a engrenagem encontra resistência — ruidosa e concreta. A mãe que não permite o silêncio, moradores que filmam e denunciam, defensores públicos que acumulam processos, jornalistas que persistem em nomear o que se tenta apagar. Esses gestos não são românticos: são a última barreira contra a normalização completa do extermínio. Na medida em que o aparelho repressivo se organiza, cada denúncia retém um pouco da liquidação moral que o poder busca.

O massacre de ontem funciona como demonstração de continuidade e recado. Ele disse o que o capital, vocalizado pela extrema direita, quer que o país saiba: que a ordem se restabelece com medo, que a pobreza é punida com letalidade, que o ódio rende voto e garante o abismo social. Reconhecer isso é o primeiro passo para desmontar o aparelho que transforma a política em matança

Indústria do mundo

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 Nas últimas décadas a sociedade internacional vem passando por muitas reviravoltas e inúmeras transformações, o surgimento de novos modelos de negócios vem ganhando espaço, uma verdadeira revolução no mundo do trabalho, com novas tecnologias e o incremento da inteligência artificial, além do crescimento vertiginoso da economia chinesa que se transformou na indústria do mundo, responsável por uma grande parte das mercadorias comercializadas no cenário global.

A ascensão chinesa deslocou setores industriais inteiros de seus países de origem para grandes investimentos produtivos nas cidades chinesas, levando regiões atrasadas e dependentes de produtos primários para se transformarem em grandes produtores de produtos industrializados, com fortes investimentos governamentais em capital humano, grandes recursos financeiros canalizados para setores de pesquisa e inovação científica. O resultado desta política foi a construção de grandes metrópoles, como Shenzhen, uma aldeia de camponeses, nos anos 1980 com apenas 120 mil habitantes que, atualmente, se transformou numa metrópole de 17 milhões de pessoas, com um setor produtivo inovador, dinâmico e dotado de grande capacidade empreendedora.

Neste período, a China passou por inúmeras revoluções, marcadas por uma política industrial rigorosa e muito disciplinada, onde os setores estratégicos receberam grandes aportes financeiros, exigindo parcerias com empresas estrangeiras que tinham interesses em produzir no mercado chinês, com câmbio desvalorizado, juros baixos, créditos fartos, mão de obra barata e fortes investimentos em capital humano, além de estímulos crescentes nas áreas de pesquisa científica e cobranças sistemáticas para angariar novos mercados internacionais.

Nos últimos vinte anos, a economia chinesa ganhou musculatura, eficiência e produtividade, levando os países ocidentais a sentirem receio da ascensão chinesa, atualmente o maior competidor dos Estados Unidos. Em 2006, 148 países e territórios tinham mais trocas comerciais com os EUA do que com a China, em 2024 o cenário passou por grandes alterações: 141 nações priorizam os chineses enquanto 82 fazem mais negócios com os americanos.

Nestas duas décadas, os chineses ganharam novos parceiros comerciais, inicialmente começaram na Oceania, depois se aproximaram da África, espalharam seu comércio para as Américas, ganhando relevância na região e se transformaram no maior parceiro comercial da América Latina, desbancando os Estados Unidos. Atualmente, os europeus passaram a se aproximar dos chineses e a Europa ganhou relevância no comércio exterior, muitos países da região estão integrados na iniciativa Um Cinturão, Uma Rota, onde o país asiático vai despejar trilhões de dólares em setores de infraestrutura e de logística em países que são parceiros comerciais, com isso a China se transformou na maior fábrica do mundo, responsável por mais de US$ 4 trilhões em produtos industrializados, transformando a China, para muitos especialistas, no detentor do maior produto interno bruto (PIB) do mundo, superando o estadunidense.

Em equipamentos e maquinaria elétrica, a China detém sozinho 32% do mercado global de exportação. Em computadores pessoais a China foi responsável por 75% do valor e volume das exportações mundiais. Na indústria fotovoltaica o gigante asiático responde por cerca de 80% da produção em toda a cadeia de valor. Neste cenário de instabilidades constantes, o incremento industrial chinês pode ser visto como inspirador da recuperação industrial brasileira, valorizando inovação, garantindo oportunidades e políticas industriais ativas, vislumbrando um país industrializado, aproveitando novas oportunidades, alavancando tecnologias e abandonando os resquícios de exportadores de produtos primários de baixo valor agregado.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Duelos de gigantes

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A sociedade mundial vem passando por grandes abalos econômicos, sociais e políticos nestes últimos meses, que estão impactando toda a comunidade internacional. O crescimento das políticas protecionistas adotada pelos governos, onde destacamos o tarifaço adotado pelo governo estadunidense, impactando sobre países de todas as regiões do mundo, gerando fortes constrangimentos econômicos e produtivos nas nações parceiras e aliadas e países mais distantes, com visões ideológicas diferentes e sem alinhamento político com os Estados Unidos.

Neste momento, o que nos chama a atenção é o confronto entre as duas maiores economias do mundo, China e Estados Unidos. Este confronto econômico e político deve nortear as discussões estratégicas nos próximos anos, quem sabe décadas, que devem estimular medidas protecionistas variadas para angariar espaço e vantagens na economia internacional.

De um lado, encontramos uma nação que vem perdendo espaço no cenário global, caracterizada como a mais relevante do ambiente internacional no século passado. Nesta época, os Estados Unidas da América se caracterizaram como a maior economia do mundo, detentora do maior setor indústria e bélico, responsável pela emissão da moeda referência dos setores comercial e financeiro, responsável pelos maiores investimentos científicos e tecnológicos do mundo e dona da classe média vista como referência global.

Do outro lado encontramos uma nação milenar, detentora de uma das maiores populações do globo, responsável por um feito histórico da sociedade mundial, a única nação do mundo que conseguiu retirar da pobreza extrema mais de 800 milhões de pessoas num período de quarenta anos. Uma nação que se transformou rapidamente, com fortes investimentos em ciência, pesquisa e tecnologia, se transformando na indústria do mundo e transformando toda sua estrutura produtiva, com forte planejamento estatal e empresas referências na economia mundial.

Neste confronto, os estadunidenses tentaram impedir a comercialização de semicondutores, os chamados chips, para seu maior competidor, impedindo que as grandes empresas norte-americanas vendessem este produto para os produtores chineses, desta forma, sem este produto, os asiáticos não conseguiriam construir o seu setor produtivo global, fragilizando seu setor industrial e obrigando-os a aceitar as exigências do governo dos Estados Unidos. Para infelicidade dos estadunidenses, o governo chinês canalizou grandes investimentos para as áreas científica e tecnológica, fortalecendo a produção local, garantindo sua soberania política e fomentando sua autonomia econômica.

Em contrapartida, recentemente, os chineses passaram a limitar as exportações das chamadas terras raras para os Estados Unidos, já que a China detém mais de 80% da produção global, gerando grandes preocupações para os setores de tecnologia e de defesa, afinal, estas terras raras são minerais estratégicos que entram na cadeia global dos setores de alta tecnologia.

Neste duelo de gigantes, cada um dos lados busca arregimentar nações parceiras, ganhando musculatura para enfrentar o confronto do século e angariar novas alianças e novos espaços de comércio e integração produtiva. Neste cenário, marcado por um conflito desta envergadura, não podemos esquecer a possibilidade, ainda real, de um conflito militar entre estas potências que, com certeza, podem inviabilizar a vida humana no planeta Terra, uma guerra fratricida desta proporção, pode destruir a humanidade, o que seria um risco gigantesco e   uma possibilidade real, ainda mais sabendo que, nos últimos anos, a incivilidade e a crueldade vem dominando a sociedade global.

Ary Ramos da Silva Júnior, bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

 

Turma 2025 – Ciências Econômicas – Universidade Paulista (UNIP) – São José do Rio Preto

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Empregabilidade e empreendedorismo, por Ricardo Antunes

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Ricardo Antunes – A Terra é Redonda – 21/10/2025

O que se anuncia como a modernidade do trabalho por aplicativos é, na verdade, a legalização de um arcaísmo social, onde a flexibilidade significa a morte lenta de direitos e, literalmente, a morte de trabalhadores

Da fraude da “empregabilidade” ao contorcionismo do “empreendedorismo”, estamos presenciando uma fase de profunda derrelição dos direitos e das condições de trabalho no Brasil.

Podemos recordar o engodo da falta de “empregabilidade” como pretexto para as demissões no passado recente. Quem perdia seu emprego recebia esta justificativa: não havia empregabilidade! Nem o dicionário do mestre Aurélio conhecia esta inusitada palavra, inventada pelo ideário desprezível dos CEOs.

Para eliminar trabalho, era preciso ter uma “explicação”. Esperar que as grandes corporações exibissem coágulos de sinceridade é como imaginar que no deserto do Saara se possa ter gelo o ano inteiro! É por isso que, mesmo quando trabalhadores e trabalhadoras faziam cursos de todo tipo, das especializações às pós-graduações, não tinha jeito: sem “empregabilidade”, uma hora vinha a demissão!

Mas a classe trabalhadora percebeu, algum tempo depois, que seu emprego estava de fato sendo eliminado pelos novos inventos tecnológicos, que são preferencialmente programados para eliminar trabalho vivo. Era preciso, então, “culpar” a classe trabalhadora e responsabilizá-la pelo desemprego, na passagem do taylorismo-fordismo para o toyotismo e sua empresa flexível e enxuta (lean production).

Adentramos, então, uma nova era de financeirização do capital (do arcabouço fiscal que tem a face de calabouço social) impondo a demolição do trabalho regulamentado. Fenômeno global, basta recordar o trabalho contingente e dos jovens que compreendem os cyber-refugiados no Japão, sem esquecer os imigrantes nos Estados Unidos, as maquiladoras no México, o “trabalho atípico” na Itália ou os recibos verdes em Portugal, só para dar alguns exemplos.

No Brasil, vimos esparramarem-se as “falsas” cooperativas, depois a terceirização, inicialmente das atividades-meio e depois das atividades-fim. Todas concebidas, moldadas e calibradas pelo mundo do capital, visando à sistemática corrosão dos direitos do trabalho, que dilapidou ainda mais as condições de trabalho e de remuneração da classe trabalhadora, intensificando os níveis de exploração e de precarização da força de trabalho, da qual cerca de 40% trabalha na informalidade.

Com o neoliberalismo entrelaçado à financeirização, impôs-se também a privatização dos serviços públicos, turbinada pelas novas tecnologias digitais. Os objetivos e os resultados se evidenciam: quanto mais trabalho morto, com algoritmos e inteligência artificial, melhor. Mas como é impossível a eliminação completa do trabalho humano – e este é o calcanhar de Aquiles do capital – urge devastá-lo e depauperá-lo ao limite, eliminando tudo que um dia significou algum direito real.

Para que tal empreitada fosse efetivada, o léxico do capital ganhou uma impulsão frenética: era preciso adulterar profundamente o sentido etimológico original das palavras pelo novo dicionário empresarial: trabalhadores(as) tornaram-se “parceiros(as)”, “colaboradores(as)”; assalariados(as) converteram-se em “empreendedores(as)”.

A cada nova onda corporativa, a enxurrada de adulterações ganhava mais lustre catártico: “líder”, “times”, “metas”, “gestão de pessoas”, “inovação”, “sinergia”, “resiliência”.

Assim, proliferou-se o “novo” palavrório obrigatório da desmedida empresarial. Tudo cuidadosamente concebido para obliterar o assalariamento, como se vê na pejotização e no trabalho uberizado, de modo a recuperar modalidades de trabalhos vigentes nos séculos XVIII e XIX, agora recheadas com sabor algorítmico e digital e, “coincidentemente”, cada vez mais com menos direitos do trabalho.

O resultado é explosivo: mais informalidade, precarização, subemprego, desemprego, trabalho intermitente etc. A terceirização – que no fordismo se restringia à setores como limpeza, segurança, transporte, alimentação –, de exceção, vem se tornando regra (até mesmo no trabalho público) e se amplificando na era da inteligência artificial, “abrindo a porteira” para formas de contratação como PJ, MEI, microtrabalhos, crowdwork, à margem da legislação protetora do trabalho.

Suas consequências são profundas: como as “metas” são interiorizadas cotidianamente na subjetividade da classe trabalhadora (em substituição ao também nefasto cronômetro taylorista), aflora um resultado assustador: aproximadamente 30% da força de trabalho ocupada no Brasil sofre de burnout, doença que se caracteriza “pelo esgotamento físico e mental relacionado ao trabalho” (conforme dados da Associação Nacional de Medicina do Trabalho – ANAMT), o que nos coloca em segundo lugar no ranking mundial desta doença, que tristemente singulariza nosso tempo.

Adoecimentos mentais, assédios, depressões, suicídios, então, não podem ser efetivamente compreendidos se não se considera a realidade do trabalho precarizado no Brasil atual. O exemplo do trabalho em plataformas é também desolador: na cidade de São Paulo, em média, mais de um entregador por aplicativo morre por dia por acidente de trabalho. E a pesquisa recém-divulgada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em 17 de outubro de 2025, mostra que a jornada de trabalho realizada pelos trabalhadores de plataformas vem se ampliando: em 2024 ela foi, em média, 5,5 h mais extensa que a dos demais trabalhadores. É essa a dura realidade do trabalho “moderno” no Brasil.

É nesse cipoal que o STF terá que refletir e decidir, seja ao tratar do Tema 1389, sobre a pejotização, seja ao julgar as demandas do IFood e da Uber que pretendem legitimar essa modalidade de trabalho uberizado e sem direitos no Brasil, desconsiderando tanto as decisões do TST, como o princípio protetor do trabalho que consta do artigo 7º da Constituição de 1988. [1]

Como procederá o Supremo? Será seu nome escrito em maiúsculo, como tem feito na luta contra o golpismo em nosso país, ou será escrito em minúsculo, tornando-se diretamente responsável por uma irreversível regressão na legislação protetora do trabalho no Brasil?

Ricardo Antunes é professor titular de sociologia na Unicamp. Autor, entre outros livros, de O capitalismo pandêmico (Boitempo).

[1] Sobre os direitos dos trabalhadores em plataformas digitais, ver o recém-publicado Direitos de verdade: essa história também é sobre você. São Paulo: Boitempo, 2025, distribuição gratuita. Sobre as decisões de tribunais europeus e os processos de regulamentação no Brasil ver Trabalho em plataformas: regulamentação ou desregulamentação? São Paulo: Boitempo, 2024, distribuição gratuita. Ver também a campanha pública informativa do Ministério Público do Trabalho-15ª. Região, resultado de Projeto conjunto com o Grupo Mundo do Trabalho e suas Metamorfoses, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.

‘Pobreza não é fracasso pessoal’ por Ana Cristina Rosa

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Ana Cristina Rosa, Jornalista especializada em comunicação pública e vice-presidente de gestão e parcerias da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPública).

Folha de São Paulo, 20/10/2025

A pobreza não é um fracasso pessoal, é uma falha sistêmica, uma negação da dignidade e dos direitos humanos. A afirmação feita pelo secretário-geral da ONU, Antônio Guterres, no Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza (17/10), diz muito sobre a realidade do povo brasileiro.

Pessoas negras (pretos e pardos) representam a maioria dos que se encontram em situação de pobreza no nosso país. Para se ter uma ideia, entre 2012 e 2023, mais de 60% dos negros tinham renda de no máximo um salário-mínimo. Nesse período, a renda média nos domicílios com pretos e pardos foi menos da metade da auferida nos domicílios sem negros (Cedra).

No Brasil, a expectativa de vida de mulheres e homens negros chega a ser seis anos menor do que a dos brancos em razão de fatores decorrentes da pobreza, que expõe os mais pobres a doenças ligadas à falta de saneamento básico, à alimentação inadequada e à violência urbana.

Quem vive em situação de pobreza experimenta múltiplas privações que se conectam reforçando as carências e dificultando o acesso efetivo a direitos e garantias constitucionais. Um rol exemplificativo inclui o direito à moradia digna, nutrição adequada, trabalho decente, inclusão social, educação de qualidade e saúde.

Verdade que o país entrou num ciclo de redução da pobreza e da desigualdade nos últimos quatro anos, o que permitiu que quase 9 milhões de pessoas deixassem a chamada linha da pobreza (IBGE). Mas é muito importante lembrar que a pobreza é dinâmica, ou seja, as famílias muitas vezes entram e saem dessa condição de maneira cíclica

Nesse sentido, impedir que as pessoas voltem para a pobreza é tão importante quanto tirá-las dessa condição.

E é aí que entram programas sociais de transferência de renda e políticas públicas de redução das desigualdades. O combate à pobreza abrange a promoção da equidade racial, o acesso à justiça e a inclusão racial. Afinal de contas, pobreza não é um fracasso pessoal.

 

 

O futuro do trabalho ou o trabalho sem futuro? por Marcelo Augusto Vieira Graglia

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Marcelo Augusto Vieira Graglia – Revista Cult – 03/09/2023

Billy Turnbull era um rapaz astuto, nos seus recém-completados 14 anos de vida. Naquela manhã fria de maio de 1831, caminhava pela rua principal de Bedlington em direção à mina que ficava no lado oeste da cidade, próxima à estrada que levava ao norte. Por entre a névoa, Billy já distinguia as pedras da igreja de São Authbert. Cerca de 400 metros abaixo, virou à esquerda, após a casa de Walter Daglass. Três portas acima, havia um arco que levava a um pátio com seis residências e um pomar. As casas eram decrépitas, para dizer o mínimo. O campo de batatas ficava do outro lado da parede dos fundos, seguia por ali para cortar caminho.

Naquela manhã fria, quando Billy Turnbull finalmente chegou à entrada da mina, a querela já estava armada. Dezenas de homens, vestidos em seus farrapos e com seus rostos tingidos pelo pó preto do carvão, se aglomeravam em torno da máquina a vapor recém-adquirida pelo Sr. Stephens. Com suas pás e picaretas, amotinados, golpeavam o equipamento que respondia emitindo longos chiados. Em pouco tempo, a máquina parecia morta, imóvel e silenciosa. Assustado, Billy viu Brian Llewellin saindo do meio dos mineiros e vindo em sua direção. Quando o amigo se aproximou, perguntou: O que está havendo, Brian? Ao que este respondeu: Não sou Brian, meu nome é Ned Ludd.

A história acima foi construída a partir de personagens fictícios, mas baseada em fatos históricos. Ned Ludd era a alcunha utilizada por muitos dos trabalhadores envolvidos em protestos e sabotagens. O ludismo foi um movimento de trabalhadores iniciado na Inglaterra no início do século 19, que utilizou a destruição de máquinas como forma de pressionar os empregadores contra as condições precárias e contra a mecanização que causava demissões e substituição de funções mais qualificadas por outras de pouca exigência técnica e mais mal remuneradas.

No campo do trabalho humano, é histórico o temor pelos efeitos potencialmente destruidores da tecnologia sobre os postos de trabalho, simbolicamente representado pelo movimento ludista. Nesta segunda década do século 21, novamente a emergência de uma nova onda de inovação tecnológica reacende a polêmica com visões diametralmente opostas: de um lado, a daqueles que vislumbram um futuro brilhante, no qual a tecnologia libertaria a humanidade da obrigação do trabalho duro, repetitivo, desestimulante, ao mesmo tempo que elimina doenças, promove a longevidade, o conforto e o deleite com novas possibilidades lúdicas e sensoriais trazidas por artefatos tecnológicos e ambientes digitais; de outro, em posição antagônica, há aqueles que temem as consequências potencialmente nefastas da proliferação da tecnologia de forma intensa por tantos campos sensíveis. Soma-se ainda o risco da desumanização das relações e da interferência voraz de sistemas de inteligência artificial (IA) em campos eminentemente humanos, num cenário de pós-humanismo cibernético.

O que alimenta esses temores? Embora a automação tenha sido historicamente confinada a tarefas rotineiras envolvendo atividades baseadas em regras explícitas, a IA está entrando rapidamente em domínios dependentes de reconhecimento de padrões e pode substituir os humanos em uma ampla gama de tarefas cognitivas não rotineiras, seja em relação ao trabalho industrial, de serviço ou de conhecimento. Nessa transformação, há aspectos claramente positivos e outros que inspiram maior reflexão.

Parafraseando a célebre frase narrada por Tucídides, na colossal obra História da Guerra do Peloponeso, quando a delegação da cidade de Corinto se empenhava em convencer os relutantes espartanos a abandonar seu temor em declarar guerra a Atenas: não devemos temer a tecnologia (Atenas), o que devemos temer são a nossa ignorância, a nossa indiferença e a nossa inércia. A ignorância, no sentido de não entendermos ou não buscarmos entender o processo histórico que ora se movimenta; a indiferença, no sentido de não nos sensibilizarmos com os efeitos deletérios possíveis, especialmente sobre grandes parcelas menos protegidas ou desfavorecidas da nossa sociedade, de ignorarmos os riscos; ademais, a inércia, traduzida pelo não agir, enquanto indivíduos, sociedade e governos não se preparam devidamente, não estabelecem estratégias adequadas, não constroem seus diques, seus programas, projetos e políticas públicas robustas e suficientes para enfrentar um mundo em transformação.

John Maynard Keynes, em Economic possibilities for our grandchildren (1930), argumentava que o aumento da eficiência técnica havia ocorrido de forma mais rápida do que seria possível para lidar com o problema da absorção da força de trabalho. A depressão mundial – consumada com a quebra da Bolsa de Nova York em 1929 e a enorme anomalia do desemprego que se estabeleceu – impedia a clareza de visão necessária para que muitos pudessem captar as tendências que se afiguravam, como a do desemprego estrutural. Para Keynes, isso significava “desemprego devido à nossa descoberta de meios de economizar o uso do trabalho ultrapassando o ritmo em que podemos encontrar novos usos para o trabalho”. O economista previa que, mantidas as taxas de crescimento da produtividade geradas pela incorporação de tecnologias nos processos produtivos, e outras condições, em 100 anos o problema econômico mundial da escassez poderia ser resolvido. Em contrapartida, esse ganho de produtividade se daria, principalmente, pela substituição do trabalho humano; portanto, não seria necessário no futuro um contingente tão grande de pessoas trabalhando. Dessa forma, o principal problema econômico seria de distribuição de riqueza, não mais de escassez.

A nova onda de inovação tecnológica tem características que a diferem das anteriores, como as da eletricidade, do automóvel, do computador, da internet. Entre elas, a ruptura do padrão de crescimento dos empregos concomitante ao crescimento econômico. Isso nos leva a três questões distintas. Em primeiro lugar, a questão da distribuição de renda enquanto processo a ser revisto e adequado aos novos tempos; em segundo, a questão da transição segura de uma sociedade economicamente baseada na renda do trabalho e emprego para outra em que não haja para muitos; e, por último, mas não menos importante e desafiador, a construção e a viabilização de alternativas para a falta do trabalho enquanto fonte de significado e propósito subjetivos de vida.

A chegada dos chamados modelos de IA do tipo LLM – Large Language Models –, treinados a partir de algoritmos de aprendizagem profunda, com uso de quantidades colossais de dados, permitiu o desenvolvimento de produtos surpreendentes, como o ChatGPT, o Bard e o Midjourney. Esses produtos furaram a bolha técnica onde essa tecnologia vinha sendo desenvolvida, ao possibilitar que milhões de pessoas e organizações pudessem utilizar seus recursos nas mais diferentes aplicações. Ao mesmo tempo, trouxeram a concretude das possibilidades de substituição de inúmeras tarefas e funções humanas, reacendendo antigos temores.

Neste momento, há enormes diferenças entre as pesquisas e as projeções sobre o impacto dessas tecnologias. Há argumentos frágeis, e mesmo outros desonestos, tentando desqualificar as preocupações com o risco da eliminação de muitos postos de trabalho. Alguns destes apelam para uma aritmética primitiva e descabida, de que novos empregos e profissões surgirão e compensarão aqueles perdidos. Há dois equívocos nesta lógica: a de que o futuro sempre repete o passado e a de que se trata de uma conta de subtração. A realidade põe por terra esses argumentos: por um lado, milhões de pessoas desempregadas ou subempregadas, por outro, milhares de vagas não preenchidas pelas empresas por conta da sofisticação das competências exigidas. Isto sem falar do fenômeno da precarização do trabalho, bem representado pelos modelos de plataformas digitais. O pensamento de risco sugere que deveríamos considerar um cenário de intensa substituição de postos de trabalho por sistemas, robôs e máquinas e de crescimento da oferta de postos de trabalho precarizados. Não há mal algum, nessas circunstâncias, em nos prepararmos para isto. A história nos mostra o quanto é mais sábio prevenir do que remediar. E, preparados para o adverso, sabendo que a imagem do futuro não está ainda formada, poderemos esperar pela serendipidade.

Marcelo Augusto Vieira Graglia é engenheiro mecânico e mestre em Engenharia pela Unesp. Doutor em Tecnologias da Inteligência e pós-doutor em Inteligência Artificial pela PUC-SP, onde é professor do Departamento de Administração e coordenador do PEPG em Tecnologias da Inteligência e Design Digital.

Christian Laval: “Para que educar?”

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Sociólogo francês aponta: reduzida à eficiência, competição e performance, finalidade educativa perdeu o sentido. Leva jovens a frustração e alimenta a anomia – onde a lógica empresarial ocupa o vácuo. Como transformar a resistência em ofensiva?

Christian Laval – OUTRAS MÍDIAS – 16/10/2025

Por que aprendemos o que aprendemos? E de que forma o discurso comum sobre a educação, ainda que de maneira instintiva, ecoa políticas econômicas dominantes, instaurando a lógica da competição de mercado até mesmo dentro do setor público?

Esse é um roteiro bem conhecido e frequentemente questionado por educadores.  Aos poucos, a escola vai sendo colocada sob pressão por metas de desempenho e exigências de rentabilidade. Com isso, o clima escolar, ou seja, a forma como professores e demais profissionais da educação vivenciam o cotidiano da comunidade escolar, acaba sendo diretamente afetado.

“A escola deveria ser o lugar onde se formam cidadãos capazes de pensar e participar da vida coletiva — não apenas indivíduos treinados para o mercado.” A afirmação é do sociólogo francês Christian Laval, professor emérito da Universidade Paris-Nanterre, e sintetiza uma de suas principais críticas ao avanço do neoliberalismo na educação.

Reconhecido internacionalmente por seus estudos sobre o tema, Laval é autor de obras fundamentais como A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal e A escola não é uma empresa. Nessas publicações, ele analisa como a lógica da concorrência, da performance e da rentabilidade passou a moldar não apenas as políticas públicas, mas também a cultura escolar e a subjetividade dos indivíduos.

Em entrevista ao Porvir em São Paulo (SP), antes de participar do Seminário Educação Insurgente, promovido pela Escola da Árvore, em Brasília (DF), Laval reflete sobre os efeitos dessa racionalidade neoliberal na vida cotidiana de escolas e universidades, nas relações entre professores e alunos, e no próprio sentido de educar.

Para ele, o desafio contemporâneo está em recuperar o ideal de uma educação comum e democrática, capaz de promover a reflexão crítica e fortalecer a vida coletiva. “Quando a escola se torna uma empresa, perdemos de vista sua verdadeira missão: formar sujeitos livres e solidários.” Leia abaixo destaques da conversa.

Como o neoliberalismo transcende a economia para impactar políticas educacionais e o cotidiano de escolas e universidades?

Para entender isso, é preciso começar dizendo que o que entendemos por neoliberalismo não é simplesmente uma política econômica particular, uma política monetária ou uma política de oferta. O neoliberalismo é, na verdade, muito mais uma lógica geral de governo da sociedade e dos indivíduos. Creio que este é o ponto fundamental.

Não se trata apenas de gerir as finanças, as contas públicas de outra forma, ou de favorecer apenas as empresas. É mais complicado. O neoliberalismo é a ideia de que toda a sociedade deve ser submetida a uma lógica de concorrência, a uma forma empresarial. É a ideia de que o mercado e a empresa são formas universais que devem ser aplicadas a todas as atividades e esferas institucionais.

Uma vez que compreendemos isso, podemos nos perguntar como essa lógica se aplica a diferentes setores como a saúde, a justiça e, claro, a educação. Concretamente, políticas neoliberais na educação promovem a concorrência entre os setores público e privado, e até mesmo dentro do setor público. A doutrina neoliberal supõe que a concorrência é um fator de eficiência e um estímulo que pressiona os profissionais a darem o melhor de si.

Poderia exemplificar?

Isso significa entrar em uma lógica de mercado, onde cada instituição de ensino deve se ver como uma unidade em um mercado educacional. Essa ideia tem efeitos diretos na organização interna: o diretor da escola se torna um “manager”, um chefe de empresa, e os professores são vistos como funcionários que devem seguir uma lógica de rentabilidade e performance.

Cria-se, então, uma lógica bizarra, especialmente no setor público. O serviço educacional, que a priori não é um serviço comercial, passa a ser tratado como se fosse. Introduzem-se critérios e ferramentas de avaliação que transformam a educação em uma “quase-mercadoria”. Ela não tem necessariamente um preço, como no setor privado, mas é tratada como uma mercadoria fictícia.

Isso altera todas as relações…

Sim. Altera as relações entre professores e alunos, e entre professores e famílias, que passam a se ver como “consumidores” de escola ou “investidores” em educação. A própria linguagem da educação muda. Não se formam mais cidadãos ou seres humanos adultos; formam-se consumidores e investidores. A grande mudança é na mentalidade, na subjetividade.

O que se desenvolveu foi um utilitarismo profundo e generalizado, que afeta a relação dos alunos com o saber. Por que se aprende? Para obter um diploma. Por que obter um diploma? Para ter uma boa profissão e ganhar dinheiro. O saber se torna uma ferramenta econômica para alcançar uma posição social e renda, perdendo seu valor intrínseco e passando a ter apenas um valor instrumental.

Em diferentes contextos, o foco em métricas de eficiência e desempenho não está apenas gerando insegurança. Ele não estaria também esvaziando o debate sobre a própria finalidade democrática da escola?

Sim, você toca no ponto importante: para que educar? Qual é a finalidade da educação? Essa questão foi amplamente deixada de lado em favor de considerações sobre meios, eficiência e performance, o que é típico de uma lógica empresarial. A discussão se resume à relação entre “input” (investimento) e “output” (resultados), despolitizando a educação como se ela fosse apenas uma questão econômica.

Esquecemos pelo caminho que a finalidade educativa poderia ser a de construir uma sociedade democrática, com igualdade real e cidadãos capazes de participar da vida coletiva, deliberar e decidir. Esse ideal iluminista, republicano, de formar cidadãos com capacidade de reflexão e crítica, foi descartado para formar o que chamo de “homem econômico”, alguém feito essencialmente para a economia.

O que o “homem econômico” representa na educação?

Essa ideia gera uma profunda perda de sentido na educação. Para aqueles com vantagens sociais, o sistema funciona. Mas para as classes populares, a promessa de que a escola lhes trará uma posição melhor não se cumpre, devido à reprodução social. Isso cria uma frustração enorme e uma visão da democracia como algo sem sentido. Esse cenário favorece o que os sociólogos chamam de anomia (a perda de normas), gerando insegurança e delinquência.

A ideia de que a economia poderia dar sentido à educação é um fracasso. Em resposta a essa anomia, os setores mais autoritários, a extrema-direita, propõem o reforço da autoridade. Eles acreditam que, se a economia não é suficiente para dar sentido e integrar a todos, a solução é mais repressão e mais autoridade. É compreensível que, à economização da vida, se responda com uma politização autoritária, uma resposta que eu qualificaria como neofascista, tendência que vemos em todo o mundo.

Professor, seu livro sobre educação democrática fala em passar da crítica para uma “ofensiva da democracia”. Como podemos transformar a resistência em construção, criando alternativas concretas na educação e na sociedade?

O sentimento de ter que resistir a essa lógica mundial é algo universal entre os professores. Muitos resistem, seja de forma passiva, limitando os efeitos negativos das políticas neoliberais, ou de forma ativa, com mobilizações sociais e sindicais.

No entanto, a resistência por si só é insuficiente. Todos que resistem se perguntam: “O que podemos fazer? O que podemos propor?”. Não basta recusar; é preciso afirmar uma nova finalidade, uma nova organização para o ensino. É preciso uma refundação do ensino.

Quais os entraves para a refundação do ensino?

O que nos enfraquece e nos leva ao desespero é a falta de um objetivo claro. Perdemos o sentido do projeto: que educação construir? Como refundar a escola e a universidade?

É isso que busquei abordar com meu colega Francis Vergne no livro Educação democrática – A revolução escolar iminente (Editora Vozes, 272 páginas). Usamos a expressão do filósofo Jacques Derrida sobre fazer “propostas ofensivas”. É o que tentamos fazer neste livro.

Diante deste cenário, o senhor defende uma abordagem baseada em princípios como a liberdade de pensamento, produção da igualdade, cultura comum, pedagogia da cooperação e autogestão. Como podemos colocá-los em prática?

Tudo é e será muito difícil. Para compreendê-la, é preciso entender que nosso objetivo é tornar visível um sistema educacional coerente, fundamentado em uma abordagem sistêmica. Não se trata de melhorias pontuais, mas de conceber uma nova estrutura para a educação, alinhada a um propósito genuinamente democrático. Primeiramente, é necessário ter clareza sobre qual modelo de sociedade buscamos.

O que define uma sociedade democrática? Christian Laval – Em linhas gerais, uma sociedade democrática é aquela em que todos os indivíduos, em condições de igualdade, podem deliberar e participar das decisões que os afetam diretamente. O princípio fundamental da democracia é o autogoverno. A questão que se impõe é: como seria uma sociedade com um autogoverno mais desenvolvido?

Abraham Lincoln definiu a democracia como “o governo do povo, pelo povo e para o povo”. Essa é a base de tudo. Ao considerarmos essa premissa, percebemos que não vivemos, de fato, em uma sociedade plenamente democrática, pois estamos submetidos a decisões das quais não participamos. Portanto, o desafio central é construir uma sociedade democrática efetivamente fundada no autogoverno.

A partir dessa definição, podemos, então, desenhar um sistema educacional correspondente. Não nos iludamos: a revolução escolar que idealizamos só ocorrerá em conjunto com uma reorganização mais ampla da sociedade, baseada em finalidades verdadeiramente democráticas.

Com a pressão por uma formação que prioriza o mercado de trabalho, que cultura escolar é possível construir para garantir o desenvolvimento integral dos estudantes?

Uma cultura para a democracia. Uma cultura que vá além das competências exigidas pelas empresas. Embora seja evidente que o sistema educativo deva formar trabalhadores qualificados, isso não é suficiente para a formação de um adulto responsável. Nós pertencemos a uma coletividade com interesses comuns. Uma educação hiperespecializada cria o perigo de que as pessoas não tenham mais como se comunicar umas com as outras.

A questão sobre o que constitui uma cultura comum existe desde o século 18. Hoje, essa cultura deve incluir conhecimentos essenciais para o exercício democrático. Isso significa conhecimentos de sociologia, política e, fundamentalmente, ecologia. É um dever de todo educador oferecer aos alunos com o mínimo saber sobre a crise climática, por exemplo.

Além disso, a cultura comum supõe uma reorganização dos saberes. A separação estrita entre as ciências sociais e as ciências naturais é um grande problema, pois as questões atuais, como a ecológica, exigem uma compreensão da interação entre as atividades humanas e a natureza. Precisamos pensar em um saber mais integrador.

Com a chegada da inteligência artificial, como a educação pode desenvolver uma abordagem crítica para integrar essa tecnologia, sem cair na armadilha do tecnocentrismo?

Esse é um perigo iminente. O que está acontecendo é uma transferência do conhecimento humano para a máquina, como a inteligência artificial generativa. Isso se assemelha ao que Marx analisou no século 19 sobre a maquinaria industrial: um processo que transfere o saber-fazer humano para um sistema maquínico e, ao mesmo tempo, individualiza a relação de cada um com a máquina.

O que está em risco é a aprendizagem coletiva. Embora cada um aprenda de forma singular, há uma dimensão coletiva e cooperativa no aprendizado: aprendemos juntos, conversando, trabalhando juntos. Para compensar a individualização tecnológica, a escola deve desenvolver ao máximo todas as práticas de cooperação possíveis: trabalhos em grupo, trocas entre alunos, etc.

Isso é fundamental, pois é na escola que se aprende a “colocar em comum” nossos saberes e desejos, que é a chave da democracia. Fomos muito influenciados por pedagogos como John Dewey, que dizia que a democracia se aprende através da experiência democrática na própria escola. Não se trata de despejar um saber sobre os alunos, mas de colocá-los para trabalhar juntos para que adquiram conhecimento coletivamente.

O debate educacional no Brasil tem buscado valorizar a diversidade do país. O que é necessário para construir uma educação que reconheça os saberes locais e respeite as raízes indígenas e afro-brasileiras, em vez de se limitar a testes padronizados e a um currículo homogêneo?

O projeto de se libertar da uniformização ocidental é um desafio enorme, especialmente quando modelos como o capitalismo e o Estado-nação já foram importados.

A questão é: como, a partir dessa imposição, podemos traçar um caminho original? Em meu trabalho com Pierre Dardot (“A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal?, Boitempo Editorial, 416 páginas), argumentamos pela necessidade de uma pluralidade de mundos. A mudança não virá de cima. Acredito que são as dinâmicas sociais, as lutas e os movimentos de base, como os movimentos indígenas, que podem reinventar a sociedade a partir de traços originais.

Esses movimentos, ao lutarem por sua autonomia, necessariamente pensarão no tipo de educação de que precisam. A dificuldade está em como mesclar esses traços originais com uma cultura comum democrática. O interessante é que os movimentos indígenas, por exemplo, não buscam apenas o isolamento. Eles se dirigem ao mundo dizendo: “Temos algo a lhes oferecer”, como uma nova relação com a natureza que pode servir a todos. A luta deles contra o agronegócio e o desmatamento, por exemplo, pode inspirar e renovar a cultura crítica global.

O que esses movimentos podem trazer para a educação de todos é precisamente uma consciência ecológica e uma nova relação com a natureza. Isso me parece absolutamente urgente e indispensável.

Que saberes e competências são essenciais ao educador que atuará na linha de frente para construir a sociedade democrática, cooperativa e autônoma que o senhor propõe?

Esta é uma questão central, uma questão decisiva: como educar os educadores?

O maior problema está na reprodução dos mesmos modelos. Quem foi formado em uma escola tradicional, marcada por métodos autoritários e centrados na exposição oral do professor, tende a reproduzir os únicos modelos que conheceu. Foi moldado dessa forma. Então, como esse educador poderia se transformar?

Minha resposta é simples: pela experiência democrática. Somente vivenciando a democracia os educadores podem transformar-se de fato. E o que isso significa? Que a escola, a meu ver, deve formar pessoas capazes de se autogovernar.

Por onde começar?

Dentro da própria escola, que também precisa incorporar formas de autogestão.

Se o educador está preso a relações hierárquicas rígidas, subordinado a um diretor ou inserido em uma burocracia local, ele vive uma experiência de obediência e controle. E como esperar que alguém que apenas cumpre ordens forme sujeitos autônomos? Ele acaba reproduzindo o que vivencia. A única saída possível é que o próprio educador seja autônomo. Mas não estamos falando de uma autonomia individualista, e sim de uma autonomia coletiva.

Os professores precisam assumir responsabilidades em suas escolas e enxergar-se como agentes do autogoverno educacional. Isso significa criar espaços e práticas de autogestão nos ambientes escolares. Claro, isso não quer dizer que cada um faça o que quiser. É necessário estabelecer um marco legal e institucional, com regras claras. Mas, dentro desse marco, deve-se cultivar o sentido de responsabilidade coletiva.

E qual caminho evitar? 

O pior cenário é o do autoritarismo local, ou seja, a dependência de um chefe que centraliza o poder. Nesse modelo, o professor apenas repete o que sofre. Educar os educadores significa dar a eles condições para autogovernar suas escolas.

Isso vale também para o trabalho pedagógico. Professores, por exemplo, poderiam reunir-se por área para discutir o currículo, propor mudanças e refletir coletivamente sobre os métodos de ensino. Em todos os níveis, os educadores devem atuar como adultos responsáveis. Afinal, são eles que detêm o conhecimento, são os responsáveis por ensinar e também devem ter voz nas decisões sobre como ensinar.

Hoje, na França, isso faz muita falta. A formação de educadores é um desafio grave: há pouca ou nenhuma formação continuada. E, quando há, ela raramente se baseia na auto-organização docente. Acredito profundamente na ideia de que os professores devem poder se organizar por escola e por disciplina, para decidir juntos, em diálogo com universidades, pesquisadores e outros atores, o que é mais relevante ensinar.

Para mim, essa é a essência de uma escola democrática: educadores democráticos, com autonomia e responsabilidade coletivas.

Aposta na vassalagem, por Thomas Palley

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Socorro financeiro de Trump e FMI tem objetivos claros: sustentar Milei e seu projeto até as eleições, fazer de Buenos Aires a fortaleza de Washington na América Latina e contrapor-se à presença chinesa. Mas e se o povo argentino disser não?

Thomas Palley – OUTRAS PALAVRAS – 15/10/2025

A Argentina voltou aos noticiários com a renovada turbulência financeira impulsionada pela má reputação política do presidente Milei. Essa má reputação é fruto da indignação com o péssimo desempenho econômico da Argentina e da corrupção maciça dentro do governo Milei, e é um mau presságio para o desempenho de seu partido nas próximas eleições de outubro de 2025.

Em resposta, o FMI e os EUA entraram em ação para salvar o governo de Milei. O FMI já havia fornecido um resgate de US$ 20 bilhões em abril de 2025. Agora, o governo dos EUA forneceu outros US$ 20 bilhões (na forma de uma linha de swap cambial entre bancos centrais). Além disso, os EUA expressaram disposição para fornecer crédito stand-by adicional e até mesmo comprar dívida do governo argentino.

A mídia tem se concentrado na longa e problemática história financeira da Argentina, na difícil situação inflacionária que o presidente Milei herdou e na afinidade política do presidente Trump com Milei. No entanto, isso não explica por que o FMI e os EUA forneceram uma assistência tão grande à Argentina, dada a sua falta de credibilidade.

O apoio a Milei deve ser entendido como uma continuação dos empréstimos passados aos presidentes Macri (2015-2019) e Menem (1989-1999). O objetivo é enraizar o neoliberalismo na Argentina e aprisioná-la com dívida em dólar. Ele é apoiado pelas elites locais porque elas são as beneficiárias do neoliberalismo e também porque conseguem saquear o Estado argentino por meio do processo de endividamento.

  1. A complicada verdade na Argentina

Chegar à verdade na Argentina é como “descascar uma cebola”. Primeiro, é preciso descobrir a real situação econômica, que é fundamentalmente diferente daquela descrita pela mídia mainstream. Em seguida, é preciso introduzir a política e trazer à tona as reais agendas que impulsionam os eventos. Depois, é preciso explicar como esses eventos funcionam e suas consequências.

Uma vez descascada a cebola, a imagem que surge é a de que a assistência financeira do FMI e dos EUA é uma interferência eleitoral visando salvar o presidente Milei e seu programa neoliberal extremista; diminuir a influência econômica da China; e algemar financeiramente a Argentina por meio do endividamento em dólar. Além disso, a assistência permite o saque tácito do Estado argentino pelas elites argentinas e multinacionais americanas. Esse é um quadro muito diferente daquele apresentado pela grande mídia e pelos principais economistas.

  1. O mito do milagre econômico de Milei

O ponto de partida é o desempenho econômico da Argentina, que tem sido descrito de forma efusiva pela grande mídia como um “milagre econômico”. Por exemplo, o New York Times declarou que Milei estava “à beira de alcançar um milagre econômico” antes da recente turbulência financeira. Essa formulação é crucial porque distorce a percepção pública, dando legitimidade econômica aos empréstimos do FMI e dos EUA.

A verdade é que não houve milagre. As políticas de Milei foram uma catástrofe tanto para os argentinos comuns quanto para o futuro da Argentina. Essa realidade explica a impopularidade política de Milei, que gerou temores no mercado financeiro.

Milei assumiu o cargo em dezembro de 2023, e a Argentina está em profunda recessão desde então. A recessão foi causada por uma austeridade fiscal extrema que reduziu drasticamente os serviços públicos e o investimento; uma taxa de câmbio extremamente sobrevalorizada que enfraqueceu a balança comercial; e uma desregulamentação que aumentou os lucros às custas dos salários.

A recessão é visível no colapso da produção industrial e do crescimento do PIB. A produção industrial permanece em queda, mas algum crescimento do PIB finalmente retornou (como sempre iria acontecer porque as economias não encolhem para sempre). No entanto, a recuperação foi fraca e a economia encolheu.

Além disso, o quadro é ainda pior porque o PIB não capta miséria, fome e insegurança. A insegurança alimentar e a fome inicialmente dispararam, com o escorbuto aumentando entre os pobres. A taxa oficial de pobreza agora diminuiu novamente, mas ela subestima a situação por não reconhecer os preços massivamente mais altos da água, gás e eletricidade. As pensões dos aposentados foram dizimadas, os preços dos medicamentos prescritos dispararam, e o governo Milei também reprimiu brutalmente os protestos de aposentados.

As políticas de Milei não apenas causaram uma recessão econômica, mas também sabotaram o futuro da Argentina. O colapso do investimento público e privado significa um estoque de capital menor. Os cortes nos gastos com educação e saúde significam uma população menos educada e mais doente. E o corte no apoio às universidades e às artes é um ataque às indústrias de alto valor do futuro (como tecnologia da informação, ciências médicas e produção cinematográfica), e contribuiu para uma maior fuga de cérebros da Argentina.

Os empréstimos estrangeiros de Milei também significam aumento nos pagamentos de juros futuros, o que sobrecarregará o orçamento do governo, limitará as possibilidades de política econômica e ameaçará permanentemente uma crise financeira.

O único resultado econômico positivo é a taxa de inflação, que caiu significativamente, mas mesmo aqui a história é complicada. A inflação inicialmente aumentou significativamente sob Milei. Embora tenha voltado a cair, ainda está em 35% ao ano. O governo anterior de Fernández perdeu o controle da inflação, mas também herdou uma taxa de inflação de 50% do governo Macri anterior. Além disso, a inflação só acelerou em 2022 quando as consequências da pandemia de Covid surgiram. A taxa de inflação da Argentina saltou cinco vezes, como também aconteceu em outros países. No entanto, dada a alta inflação inicial da Argentina e sua vulnerabilidade estrutural à inflação, o aumento absoluto foi muito maior.

Em suma, não houve nenhum “milagre econômico”. O programa de Milei nunca poderia ou pretendeu produzir prosperidade compartilhada na Argentina. Em vez disso, é um programa ultra-neoliberal que visa baixar a inflação por meio de uma recessão profunda e uma taxa de câmbio sobrevalorizada; aumentar os lucros às custas dos salários por meio da desregulamentação e do enfraquecimento do trabalho; permitir que o capital explore os recursos naturais da Argentina; e usar a austeridade fiscal para destruir as instituições sociais que promovem o bem-estar e o progresso da sociedade.

  1. O FMI e os EUA: a política do saque e do endividamento

O caráter desastroso do programa econômico de Milei levanta a questão de por que o FMI e os EUA se apressaram em fornecer um resgate financeiro. Isso introduz a questão política. Para Milei, um resgate financeiro é essencial para seu futuro político. As elites argentinas também o apoiam, pois são as beneficiárias do programa. Mas e quanto ao FMI e aos EUA?

3.a O FMI como uma ferramenta útil dos EUA

O FMI é o mais fácil de entender. Ele é dominado pelos EUA e há muito é um bastião do neoliberalismo, ajudando a espalhar e impor esse sistema global nos últimos 40 anos. Isso torna fácil apoiar Milei, que é submisso aos EUA e alinhado com ao ultra-neoliberalismo.

O aspecto incomum do momento atual é a cumplicidade aberta do FMI, que o leva a violar seus próprios protocolos de maneiras que o colocam em risco legal no futuro. As marcas da corrupção política estão por toda parte no empréstimo de US$ 20 bilhões do FMI.

Primeiro, apesar da significativa oposição ao empréstimo dentro do Conselho Executivo do FMI com base no argumento de que o empréstimo não atendia aos padrões de crédito, ele ainda foi forçado a passar pelos EUA e seus aliados. Quando somados aos empréstimos pré-existentes, mais de 40% do total de empréstimos do FMI serão para a Argentina, o que potencialmente coloca a solvência financeira do FMI em risco.

Em segundo lugar, o novo empréstimo foi concedido sem rigorosas condicionalidades econômicas, que são parte integrante dos pacotes de empréstimos do FMI. Essa ausência não se deve à mudança de postura neoliberal do FMI. Trata-se, sim, de uma condição que prejudicaria a economia argentina, comprometendo assim o propósito político do empréstimo, que é ajudar Milei a vencer as eleições de outubro de 2025.

O propósito abertamente político do empréstimo do FMI fica evidente nos comentários de abril de 2025 da Diretora-Geral do FMI, Kristalina Georgieva, que declarou publicamente na reunião anual de primavera do FMI: “O país terá eleições em outubro e é muito importante que elas não descarrilem a vontade de mudança. Até o momento, não vemos o risco se materializando, mas eu instaria a Argentina a manter o rumo.” Suas declarações violam os protocolos fundamentais do FMI que proíbem interferência política.

  1. Os EUA e a interferência eleitoral na Argentina

O fornecimento de assistência financeira dos EUA não passa nos testes econômicos convencionais, e seu propósito é político. O objetivo é salvar o governo Milei, excluir a China e aprisionar a Argentina com dívida em dólar.

Os EUA intervieram em nome de Milei porque ele é ideologicamente pró-EUA e pró-empresas americanas, enquanto seus rivais são nacionalistas argentinos pragmáticos. Eles acreditam que as empresas (incluindo as multinacionais americanas) devem responder ao Estado argentino e estão dispostos a negociar com a China se isso for em benefício da Argentina. Isso é um anátema para Washington, D.C.

Para os EUA, Milei é o “nosso cara”, que está do lado dos EUA e trata as multinacionais americanas de forma favorável. Emprestar dinheiro à Argentina é uma interferência eleitoral. A esperança é que um empréstimo maciço possa evitar uma crise financeira até depois das eleições para o Congresso em outubro, salvando assim o governo de Milei.

Inicialmente, os EUA pensaram que conseguiriam levar Milei até o fim com empréstimos do FMI, do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). No entanto, isso se mostrou insuficiente, obrigando o Tesouro americano a intervir diretamente.

Entre parênteses, esse processo de empréstimos do FMI (e do Banco Mundial e do BID) para fins de interferência eleitoral não é novo. As mesmas táticas foram usadas em 2019 para apoiar o presidente Macri, então o candidato favorito dos EUA. O FMI emprestou US$ 40 bilhões ao governo Macri, o maior empréstimo da história do FMI. Macri perdeu a eleição, os US$ 40 bilhões evaporaram e o governo seguinte ficou com o ônus disso.

O ânimo anti-chinês que motiva a política americana é evidente na condição de que a assistência americana esteja condicionada à substituição do atual acordo de swap cambial da Argentina com a China por um acordo apoiado pelos EUA. O acordo de swap China-Argentina foi estabelecido em 2009. Ele se baseia na lógica comercial, visto que os países mantêm um comércio massivo e mutuamente benéfico envolvendo produtos manufaturados e agrícolas argentinos. Os EUA querem sabotar essa relação, protegendo a Argentina dos EUA, reduzindo assim seu poder.

Por fim, há indícios de negociações privadas impróprias por parte do Secretário do Tesouro dos EUA, Bessent. Há relatos de que Bessent impulsionou tanto o empréstimo de abril do FMI quanto a proposta americana de setembro para resgatar seu sócio em Wall Street, Robert Citrone, e outros fundos de Wall Street que haviam apostado especulativamente em títulos argentinos. Essas apostas fracassaram com as crescentes dificuldades políticas de Milei. O resgate de Bessent impulsionou uma recuperação do preço dos títulos argentinos que salvou e beneficiou Wall Street.

  1. A mecânica do saque e do endividamento da Argentina

A parte óbvia dessas negociações é a interferência eleitoral e o endividamento em dólar. A parte menos óbvia é a mecânica do saque.

O processo de saque centra-se na taxa de câmbio sobrevalorizada que artificialmente torna o peso mais valioso. Isso significa que aqueles com pesos excedentes (ou seja, a elite argentina) podem lucrar com a sobrevalorização comprando dólares a um preço subsidiado. A conta é paga pelo Estado argentino, que vende os dólares que tomou emprestado e se endivida em dólar. Este processo tem sido usado repetidamente por governos argentinos anteriores, pró-negócios e pró-EUA. Ele explica como o empréstimo anterior de US$ 40 bilhões do FMI em 2019 ao presidente Macri evaporou sem deixar rastro.

O processo ficou evidente após o novo empréstimo do FMI. A Argentina suspendeu imediatamente a maioria de seus controles de capital, permitindo que empresas e indivíduos ricos comprassem dólares subsidiados.

O processo também ficou evidente após a declaração de apoio dos EUA. A Argentina suspendeu temporariamente o imposto de exportação de grãos e soja, e houve uma onda massiva instantânea de exportações. Essas exportações saíram isentas de impostos, beneficiando grandes exportadores agrícolas que apoiam a Milei. O Estado argentino perdeu uma enorme quantidade de receita de impostos de exportação, que é essencial para as finanças públicas argentinas. Dado o enfraquecimento dos controles de capital, essas vendas de exportação abundantes puderam então ser convertidas em dólares, causando um golpe duplo. Os exportadores agrícolas sonegaram impostos e compraram dólares subsidiados. O Estado argentino perdeu receita tributária e se endividaram em dólares.

O dólar sobrevalorizado também tem sido usado para saquear a classe média argentina. Essas famílias acumulam dólares como uma forma de poupança para “tempos difíceis”. A recessão econômica causada pelas políticas de Milei as compeliu a vender dólares para chegar ao final do mês. A taxa de câmbio sobrevalorizada significa que elas receberam menos, e seus dólares foram aspirados por aqueles com pesos excedentes. Isso, assim, contribuiu para uma maior redistribuição adversa de riqueza dentro da Argentina.

  1. Os empréstimos do FMI e dos EUA são “dívida odiosa”

Dívida odiosa, também conhecida como dívida ilegítima, é uma doutrina do direito internacional segundo a qual dívidas contraídas ilegitimamente não precisam ser quitadas. Normalmente, ela é vista pela ótica do caráter do mutuário, mas a fraude também pode ser cometida por credores e mutuários que colaboram. De fato, é mais fácil quando isso acontece.

Para garantir o uso adequado do crédito, os credores têm uma responsabilidade e dever legal de garantir que os fundos sejam usados adequadamente e que os mutuários sejam capazes de reembolsá-los. Os empréstimos do FMI e dos EUA falham nesse teste fundamental, tornando-os dívida odiosa. Os empréstimos foram feitos explicitamente para fins políticos, e não comerciais, e não passam nos testes apropriados de credibilidade.

Além disso, o empréstimo do FMI de abril de 2025 contornou uma lei argentina de 2021 que exigia aprovação congressional para empréstimos do FMI. Essa lei foi explicitamente aprovada para evitar a repetição do saque que ocorreu com o empréstimo de US$ 40 bilhões do FMI em 2019 ao presidente Macri. No entanto, Milei autorizou as negociações por decreto executivo, que só pode ser anulado por uma maioria de dois terços em ambas as casas do Congresso. O FMI e os EUA estão ambos cientes dessa manobra política, o que os incrimina ainda mais.

Nesta fase, para parar o saque adicional e o endividamento em dólar da Argentina, a oposição política deve declarar que as novas dívidas com o FMI e os EUA serão tratadas como odiosas e não pagas. Mesmo que a declaração não tenha força legal imediata, ela deve desencorajar empréstimos adicionais e deslegitimar ainda mais qualquer empréstimo adicional que venha a ocorrer.

  1. Colonização pela dívida: quo vadis, Argentina?

A história de Milei é a história dos presidentes Macri e Menem, apenas mais cruel. Cada um perseguiu políticas neoliberais extremas baseadas em uma taxa de câmbio sobrevalorizada, endividamento externo, aperto da classe trabalhadora e privatização e desregulamentação.

Cada um deles foi apresentado como um “milagre econômico”, mas nunca foi o caso. Em todas as ocasiões, o Estado argentino foi retratado como o problema fundamental, e em todas as ocasiões o Estado foi saqueado e ainda mais aprisionado por dívidas em dólares, enquanto sua riqueza era transferida para as elites econômicas. E em todas as ocasiões, o FMI e os EUA foram os principais facilitadores.

Os presidentes Milei, Macri e Menem são todos parte de uma história comum. Essa história é o saque neoliberal e o endividamento da Argentina. A interferência eleitoral do FMI e dos EUA pode ainda garantir a vitória de Milei. Se isso acontecer, a Argentina se tornará uma colônia de dívida dos EUA. Também se tornará ainda mais desigual com um ultraneoliberalismo enraizado. A grande mídia e os economistas a descreverão como um milagre, mas será miséria para aqueles que vivenciarem o milagre.

Caminhos para superar a Grande Distorção, por Ladislau Dowbor

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Quando o sistema financeiro captura a democracia e a tecnologia avança mais rápido que nossa capacidade de governar e planejar o futuro, é a hora de rupturas. O caminho: novo pacto global que conecte economia, política e sustentabilidade

Ladislau Dowbor – OUTRAS PALAVRAS – 14/10/2025

Dificilmente podemos ainda ser chamados de cidadãos. Em vez disso, uma plateia, espectadores de um ritmo acelerado de mudança sobre o qual não temos controle. A lente política que herdamos, socialismo e capitalismo, estado e corporação, esquerda e direita, nos dá uma visão distorcida e trêmula. Adam Smith, Karl Marx, Joseph Schumpeter, J.M. Keynes? Uma nova e poderosa geração de economistas criativos certamente nos fornece imagens atualizadas, mas o denominador comum é que a catástrofe em câmera lenta não é mais lenta, mesmo que a orquestra ainda esteja tocando.

Permitam-me uma visão geral. Em primeiro lugar, a população mundial está prestes a se estabilizar em torno de 9 a 10 bilhões de habitantes na década de 2050, e é para isso que temos que organizar nosso planeta, pensando a longo prazo, com condições de vida razoáveis e sustentáveis para todos. Certamente é possível. Mas ainda estamos em uma absurda corrida de “salve-se quem puder”, lutando por privilégios, chegando ao topo à custa dos outros, saqueando e destruindo recursos não renováveis, poluindo tudo no planeta e enchendo nossas cabeças com idiotices que buscam chamar a atenção. Nosso problema não está nos problemas, mas em nossa persistência em criá-los mesmo vendo as consequências, e nossa impotência para reverter seu aprofundamento. Bem-vindos ao mundo rico, high-tech e autodestrutivo do século XXI. E eu sou um otimista.

Rico? Tomemos o fato básico de que o PIB mundial atingiu US$ 115 trilhões em 2025, o que significa que o que produzimos em bens e serviços equivale a aproximadamente US$ 5.000 por mês para uma família de quatro pessoas. Trago os trilhões enormes para o nível familiar, porque isso nos faz pisar no chão: produzimos o suficiente para todos. Pode-se brincar com esse número, apresentar a renda nacional líquida em vez do produto interno bruto, e também adicionar o enorme capital acumulado que não é contabilizado nas cifras do PIB, mas o fato básico e enorme é que produzimos o suficiente para todos nós termos uma vida confortável e próspera, como Tom Malleson gosta de chamar. Sei que estou me repetindo com esses números, mas é um ponto de referência para qualquer raciocínio sobre nossos desafios estruturais: temos que colocá-los aqui como ponto de partida.

Portanto, a questão não é produzir mais e glorificar as porcentagens de crescimento, mas desacelerar, recuperar o fôlego e olhar mais profundamente para o que estamos produzindo, para quem e com quais consequências ambientais. Bem, a comida que produzimos é suficiente para 12 a 14 bilhões de pessoas, de acordo com a FAO, no entanto temos 750 milhões passando fome, 2,3 bilhões em insegurança alimentar, 150 milhões de crianças menores de cinco anos sofrendo de nanismo, além de 42,8 milhões sofrendo de emagrecimento patológico¹. Cerca de 6 milhões morrem dessas condições todos os anos. Isso não é uma crise repentina, é uma tendência permanente de longo prazo, uma falha estrutural. Fechar os olhos para esta tragédia não significa necessariamente que sejamos bárbaros, como indivíduos, mas certamente significa que ainda estamos em tempos bárbaros como sociedade. MAGA, alguém?

Este artigo não trata de alertar para os nossos dramas; temos a catástrofe das mudanças climáticas, a perda de biodiversidade, a poluição por plástico, produtos químicos em cada curso d’água, a destruição das florestas tropicais, e temos o noticiário da noite mostrando os incêndios, as inundações, a violência. E reuniões intermináveis sobre todas essas questões. Este artigo trata de como estamos desorganizados e de como podemos nos organizar. Participei ativamente da Cúpula Mundial sobre Sustentabilidade de 1992 no Rio de Janeiro, organizando a exposição de tecnologias sustentáveis em São Paulo, um evento paralelo. Isso foi há 33 anos, já sabíamos o que precisava ser feito e tínhamos os meios tecnológicos. Ainda estou lutando por essas questões, esperando que atinjamos 20% dos objetivos de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030. Esta é uma medida de nossas conquistas, esperar por 20% dos objetivos. Com mais de 30 COPs, discutimos todos os anos o quão fundo estamos nos metendo em problemas. Esta é uma medida de quão impotentes somos. Davos, alguém?

Então, temos os meios financeiros, sabemos o que deve ser feito e temos as reuniões. E em 2025, temos um poderoso presidente de um país rico proclamando “Perfure, baby, perfure” e tirando os Estados Unidos das metas da Conferência de Paris novamente, em uma espécie de jogo de ioiô. O problema aqui não é Donald Trump; temos demagogos aos montes para cada eleição em cada país. O problema é que, não obstante os óbvios desafios que enfrentamos, e o fato de que temos os recursos, bem como as medidas passo a passo que devem ser tomadas, estamos elegendo esse tipo de político. Com um presidente eleito tendo 13 bilionários sorridentes atrás dele na cerimônia de posse, o problema está com o demagogo. Significa que o dinheiro no topo está divorciado de contribuir para o bem comum. Significa também que a narrativa fundamental, de que maximizar o lucro é legítimo, independentemente das consequências para a sociedade e para o meio ambiente, assumiu o controle tanto do processo de decisão econômico quanto do político.

É uma tendência destrutiva, ainda assim as pessoas votaram nela, os congressistas votam nela, Wall Street está entusiasmada, temos um mercado em alta, o que significa que o sistema de recompensas e feedback positivo nos empurra corredeira abaixo. Não é um erro social; é um equívoco social, político e econômico. A questão é que esse tipo de deformação sistêmica exige mudança estrutural, e não temos o contrapoder político correspondente. Se fosse apenas os EUA, mas está se fortalecendo em tantos países. Não se trata de esperar a próxima eleição, trata-se do que aconteceu com a eleição, com a democracia em geral, e quão profunda é a mudança estrutural. É essencial chegar às engrenagens motrizes dessa transformação.

Temos todos os dados de que precisamos sobre a dramática desigualdade que progride no mundo. As engrenagens são simples: a maioria das pessoas no mundo tem dificuldade para chegar ao fim do mês, ou está endividada, enquanto as pessoas ricas, uma vez satisfeitas suas amplas necessidades básicas, têm dinheiro para “investir”. E quanto mais dinheiro sobrando você tem para investir, mais rico você fica: este é o efeito bola de neve financeiro, quanto mais dinheiro você tem, mais dinheiro você ganha. E não é um investimento produtivo, mas um investimento financeiro. A Forbes nos dá os números: 3.028 bilionários têm uma fortuna de US$ 16 trilhões, enquanto a metade mais pobre da população, 4,1 bilhões de pessoas, tem uma riqueza total de US$ 5 trilhões. Era inevitável que esse nível de poder econômico no topo gerasse o correspondente poder político.

A mudança curiosamente chamada Citizens United na Constituição americana, em 2010, permitindo que dinheiro corporativo financie eleições, é uma deformação estrutural do que ainda chamamos de democracia. Não é simplesmente um problema; é uma falha estrutural em nossa capacidade de resolver problemas. Isso é muito mais do que o poder dos ricos, a plutocracia. É uma deformação do processo decisório no topo. As maiores corporações de gestão de ativos detinham US$ 50 trilhões em 2022, aproximadamente metade do PIB mundial. A BlackRock sozinha, em 2025, gerencia US$ 12 trilhões. Apenas como lembrete, o orçamento federal dos EUA é de US$ 6 trilhões. Essas plataformas enormes capturam dinheiro de todo o mundo, em uma rede de dinheiro virtual, e Larry Fink não tem escolha a não ser maximizar os retornos sobre esses investimentos financeiros. O mesmo vale para UBS, JP Morgan, State Street, Vanguard, Fidelity e afins.

Tantas fortunas ao redor do mundo dependem desse sistema extrativista, capitalismo extrativista como tem sido chamado, que ele se tornou poderoso demais para ser movido. O gigantesco sistema de especulação financeira em escala mundial detém aproximadamente seis vezes o valor do PIB mundial, mais de US$ 600 trilhões, apenas em derivativos. Dinheiro demais e interesses demais estão entrelaçados nessa teia de interesses para que o sistema se mova. As mensagens anuais excessivamente adocicadas de Larry Fink, para “investidores” ao redor do mundo, são o equivalente financeiro da mensagem “perfure, baby, perfure” para as corporações de petróleo e gás. Os gestores não são estúpidos; estão perfeitamente cientes das consequências, até afirmam aderir aos princípios ESG, mas estão presos na teia, e o fato de que também ficam tão ricos não ajuda. Estamos enfrentando uma falha estrutural.

Isso vai muito além do que chamávamos de capitalismo, quando enriquecer também significava que você produzia algo útil. E com o dinheiro virtual, apenas um número em computadores, percorrendo o mundo em frações de segundo, perdemos completamente o controle: os bancos centrais são basicamente instituições nacionais, enquanto o dinheiro é global. E não temos regulação internacional, as instituições de Bretton Woods datam de 80 anos atrás e são impotentes, o BIS (Banco de Compensações Internacionais) apenas dá alguns conselhos e informações sobre derivativos pendentes. A facilidade com que as plataformas financeiras – acho que este é o nome apropriado para essas instituições, já que são essencialmente uma rede de gestão de dinheiro em nuvem – transferem recursos gigantescos no espaço global criou uma falha sistêmica naquilo que antes era um sistema financeiro a serviço do investimento produtivo, transformando nossas poupanças em produção, bens e serviços.

Uma questão essencial é que o sistema de maximização financeira em escala mundial de dinheiro virtual – “cloud-money” (dinheiro em nuvem) é um nome apropriado nos escritos de Yanis Varoufakis – naturalmente transforma a lógica das mais diferentes áreas de atividade econômica². Peter Phillips nos traz uma apresentação excepcionalmente bem organizada da nova estrutura de poder econômico global que resulta dessa financeirização geral, em seu estudo Titans of Capital³. Os interesses financeiros das 10 maiores plataformas globais de gestão de ativos lhes permitem exercer controle sobre as principais plataformas de mídia social (Alphabet, Meta, Amazon e grupos de alta tecnologia em geral), mas também sobre as principais empresas de tabaco, corporações de petróleo e gás, indústria militar e até mesmo redes de prisões privadas.

Um controle similar pelos Titãs é exercido sobre grandes empresas no Brasil, por exemplo, com bancos como Itaú ou Bradesco, empresas de energia, planos de saúde e assim por diante. Essa economia de proprietário ausente, com drenagens internacionais sobre atividades produtivas ou financeiras em todo o mundo, é estruturalmente diferente do capitalismo industrial que conhecíamos, mesmo que o Fórum Econômico Mundial em Davos goste de chamá-lo de Indústria 4.0, significando o mesmo sistema com um passo à frente tecnológico. Não há uma “mão invisível” para regular atividades nessa escala, e o livro de Phillips mostra que os gestores dos principais gigantes financeiros participam simultaneamente do processo de decisão das mais diferentes corporações, gerando políticas globais convergentes.

Quão instável o mundo se tornou, com todas essas riquezas e todas essas tecnologias? Quão frágeis são nossas vidas e a própria natureza neste pequeno planeta. É inescapável que precisamos de um novo Bretton Woods, um Global Green New Deal (Novo Acordo Verde Global) como tem sido chamado, mas parece que temos que esperar até que a catástrofe se aprofunde muito mais para que o mundo crie o impulso político e cultural correspondente para que isso aconteça. Demis Hassabis, ganhador do Nobel, considera que esta revolução digital que estamos vivendo “será 10 vezes maior que a Revolução Industrial e talvez 10 vezes mais rápida”. Mas a política está firmemente presa no século passado. A fratura entre o ritmo tecnológico e a política estagnada está se aprofundando.

A questão básica é que estamos vivendo neste processo acelerado de mudança sistêmica, enquanto nossa capacidade de governança permanece presa no mundo analógico do século passado, nas rivalidades nacionais e na competição destrutiva. O desafio é mobilizar nossas enormes capacidades financeiras, tecnológicas e de rede para nos recolocar nos trilhos. 2050, em termos históricos, é um piscar de olhos⁴.

Trabalho contemporâneo

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A sociedade contemporânea vem vivendo uma verdadeira mutação em todas as áreas e setores, com impactos sobre os setores produtivos, organizações e indivíduos. Nestas transformações cotidianas, motivadas pelo incremento da tecnologia e da inovação, um dos setores mais sensíveis da contemporaneidade é o mundo do trabalho, onde os avanços da tecnologia estão moldando um mundo novo, mais complexo e cheio de desafios e oportunidades.

Especialistas em carreira nos mostram que muitas profissões tendem a desaparecer por completo e, ao mesmo tempo, novas ocupações tendem a ganhar espaço nas organizações, exigindo novas habilidades, novos comportamentos e novos valores. Neste ambiente, marcado por alterações cotidianas, percebemos o crescimento das incertezas, o incremento dos medos e das ansiedades, impulsionando comportamentos extremados e violências generalizadas, além do aumento significativo da depressão e dos suicídios.

Neste ambiente de grandes transformações estruturais, encontramos novas profissões, que exigem novas habilidades e novos comportamentos, onde destacamos especialista em IA e aprendizagem de máquina, especialista em sustentabilidade, analista em inteligência de negócios, analista de segurança da informação, engenharia de Fintech, especialistas em transformação digital, cientistas e analistas de dados, além dos conhecidos youtubers, influenciadores e motoristas de aplicativos, que estão revolucionando a sociedade contemporânea, gerando novas oportunidades e exigindo, da comunidade, a construção de novas estratégias e muita criatividade para empregarem os trabalhadores, evitando que muitos grupos econômicos e sociais fiquem excluídos.

O mundo do trabalho passou por grandes modificações, o século XX foi caracterizado pelos modelos fordista e taylorista, uma sociedade industrial, marcada pela quantidade de trabalhadores, pela disciplina e pelo comando centralizado. No modelo contemporâneo percebemos uma transformação estrutural, os valores são outros, o setor de serviços ganhou espaço da indústria, o setor financeiro, que anteriormente financiava os setores industriais, passou a impor valores, adquirindo empresas e passaram a gerenciar os setores industriais, gerando instabilidades e incertezas, com impactos generalizados sobre o emprego e a empregabilidade, além de exigir da mão-de-obra novas habilidades, novas qualificações e novas capacitações.

A tecnologia contemporânea está alterando estruturalmente as relações trabalhistas, novas ocupações demandam novas habilidades, o desenvolvimento de novas tecnologias e novas formas de comunicação, os relacionamentos profissionais estão em movimento, cada vez mais marcada pelo individualismo e pelo imediatismo que reina na sociedade, onde a competição e a concorrência são as tônicas crescentes da comunidade. Neste cenário de individualismos crescentes, os setores econômicos e produtivos demandam flexibilidades, inteligência emocional, agilidade e empatia, lembrando que muitas destas habilidades demandadas no mundo dos negócios, confrontam cotidianamente com este ambiente de competição e de individualismo exacerbados, mais uma das contradições da sociedade contemporânea.

Neste ambiente, percebemos o crescimento de um sistema que promete liberdade através do desenvolvimento de plataformas e tecnologias digitais mas, ao mesmo tempo, está entregando o controle de algoritmos e transformando o sonho de empreender num verdadeiro pesadelo das jornadas intermináveis, extenuantes e ausência de direitos sociais ou horizontes coletivos, gerando frustrações, endividamentos, ansiedade e depressões constantes. Como diz o filósofo germânico – coreano, Byng Chul Han, na obra A sociedade do cansaço, estamos vivendo a sociedade do desempenho, onde o sonho de ser empresário de si mesmo está se tornando um verdadeiro calvário de endividamento e depressão.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário