Conjuração internacional bolsonarista, por Oscar Vilhena Vieira

0

O objetivo do presidente americano é constranger o governo e intimidar o STF, que apenas cumpriu sua obrigação

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023)

Folha de São Paulo, 12/07/2025

Aplicar o direito não é uma tarefa fácil, especialmente quando o peso da lei recai sobre pessoas poderosas ou que têm amigos poderosos. Juízes já foram mortos por condenar mafiosos, em países como a Itália ou a Colômbia; colocados na prisão por não atenderem as determinações de ditadores, como na Turquia ou no Irã; ou apenas afastados de seus tribunais por simplesmente não se curvarem aos poderosos de plantão, em diversas partes do mundo.

O presidente americano vem promovendo há muitos anos um processo de intimidação e subordinação do Judiciário de seu país. A cada decisão contrária aos seus interesses, achincalha magistrados, acusando-os de “lunáticos esquerdistas”. Seus apoiadores os ameaçam de impeachment. A juíza Ketanji Brown Jackson, da Suprema Corte, “teme pela democracia dos Estados Unidos”.

O ataque ao Poder Judiciário brasileiro, no entanto, consiste num novo capítulo na relação de populistas iliberais contra o Estado de Direito. Trata-se de uma inusitada tentativa de interferência na Justiça de um outro país.

Na presente escaramuça, o presidente americano acusa o Supremo Tribunal Federal de perseguir Bolsonaro, ameaçando retaliar o Brasil com sua artilharia tarifária. O objetivo é constranger o governo e intimidar o Supremo, que apenas cumpriu sua obrigação de julgar Bolsonaro e golpistas, com base em uma lei aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo próprio Bolsonaro.

Outros motivos, como a reunião do Brics, no Rio, ou a decisão do Supremo de aperfeiçoar o regime de responsabilidade das plataformas, também podem ter pesado na decisão americana. Tudo, porém, pode ser apenas uma bravata, para legitimar uma eventual fuga de Bolsonaro, ou mesmo a suspensão das taxas a seu pedido.

A relação de populistas com o Estado de Direito e as instituições responsáveis pela aplicação da lei são sempre conflitivas. Populistas acusam a Justiça de impedi-los de realizarem a vontade do povo, do qual reivindicam ser os únicos e autênticos representantes. Sob o pretexto de defenderem a democracia, atacam o Estado de Direito.

Conceitualmente, democracia e direito são coisas distintas. À democracia importa, sobretudo, a realização da vontade dos cidadãos. Ao direito, por sua vez, importa a criação de um sistema de regras, que contribua para estabilizar expectativas e conter o arbítrio.

A convergência entre democracia e direito, que resulta na ideia de Estado democrático de Direito, foi originalmente concebida por Rousseau, ao reivindicar que um governo somente seria legítimo se resultasse da vontade dos cidadãos, expressa por meio de leis. Nesse sentido, os cidadãos apenas seriam autônomos quando fossem capazes de se autogovernar, por meio das leis.

Não é assim que pensam populistas. Para eles, somente a vontade da maioria, expressa pela palavra do líder, importa. Valorizam seus comandos. São avessos à ideia de uma ordem baseada na lei. Difícil entender como pessoas que dizem prezar a liberdade caem na esparrela de populistas.

As ameaças do presidente americano ao Brasil, em defesa daqueles que atentaram contra nosso Estado democrático de Direito, obrigará nacionalistas, conservadores, além da direita liberal brasileira, a tomar posição: ficarão a favor dos interesses nacionais, das nossas instituições, da agricultura e da indústria brasileira, ou ao lado daqueles que conjuraram contra o Brasil?

 

Kardec e uma espiritualidade livre, por Dora Incontri.

0

A espiritualidade livre pode ser solitária, até individualista; mas é aberta ao diálogo e à busca das verdades espirituais

Dora Incontri – GGN – 13/03/2024

O último censo revelou algo muito significativo sobre as tendências religiosas dos brasileiros. O tema de hoje parte da seguinte informação: enquanto 8% da população brasileira não tem religião (em 1960 era apenas 0,5%); entre jovens de 16 a 24 anos, essa porcentagem chega a 25%. E essa não é apenas uma tendência nossa, mas mundial. Se por um lado, cresce o fundamentalismo religioso de todos os matizes, a negação da religião institucionalizada também avança, sobretudo entre os jovens. Mas tanto no Brasil, como em outros países, a declaração de não ter uma religião não significa necessariamente ateísmo. A maioria mantém ou busca alguma forma de fé ou prática espiritual.

Há possíveis interpretações para esse fato, mas parece que os jovens procuram uma espiritualidade mais livre, não direcionada por sacerdócios, não sujeita a regras rígidas e, sobretudo, mais aberta à fusão de diferentes modos de crer. Querem abertura, diálogo e leveza.

É verdade que essa busca não garante que a pessoa se livre das explorações e dos abusos parecidos com os que são cometidos por alguns setores ou por certas lideranças do campo tradicional. Há uma espiritualidade livre que é cooptada por gurus improvisados, sem nenhuma consistência, que oferecem autoajuda, cursos sincréticos, livros de coach espiritual – tudo muito bem embalado numa comercialização própria do mercado da fé. Em alguns casos, incluindo abusos sexuais e formação de seitas.

Por outro lado, a libertação de uma religião específica pode impedir a possibilidade de um aspecto, que estudiosos consideram um elemento importante para a saúde mental do indivíduo: a sensação de pertencimento a um grupo, a presença de uma rede de apoio nas adversidades da vida. O grupo pode por um lado se tornar opressor em certas circunstâncias, mas se não for fanático e estruturado com excessiva rigidez, pode também salvar alguém da solidão, do adoecimento psíquico e do suicídio.

A espiritualidade livre pode ser, portanto, solitária, até individualista; mas é aberta ao diálogo e à busca das verdades espirituais que estão em toda parte.

Essas reflexões levam a evocar a figura de Allan Kardec, fundador do espiritismo na França do século 19, sobre quem estou lançando nesse mês o livro Kardec para o século 21.

Durante todo o processo de escrita de suas obras, Kardec se debateu com o conceito de religião. Não queria de jeito nenhum atribuí-lo ao espiritismo. E de fato, na filosofia por ele fundada, não há igreja, sacerdócio organizado, rituais e nem dogmas de fé. Por outro lado, ele escreveu O Evangelho segundo o espiritismo (que sintetiza a proposta de Jesus no seu aspecto ético apenas) e preconizou a oração como algo necessário e positivo. Ora, a oração é um ato religioso, embora ele racionalize e explique os benefícios dessa prática. Num de seus últimos discursos, admite que o espiritismo tem alguns aspectos que possam ser considerados religiosos.

No Brasil, entretanto, como inúmeros sociólogos e antropólogos e muitos espíritas críticos analisam, o espiritismo se tornou sim uma religião, no sentido tradicional do termo. Isso é interpretado por muitos como um afastamento da proposta de Kardec.

O fato é que o fundador do espiritismo dessacralizou a religião, democratizou o acesso ao mundo espiritual – já que qualquer pessoa pode ser médium e ter contato com esse mundo – racionalizou esse contato e aboliu o conceito de sobrenatural. Ao mesmo tempo, criticou os abusos das religiões, as intolerâncias, as opressões e as violências por elas praticadas nos séculos afora. E admitiu que a verdade está em toda parte e não é exclusividade de uma tradição espiritual específica, nem mesmo a que ele próprio fundou.

Como se vê, podemos definir essa forma de fé como Kardec fez, sendo uma fé raciocinada, como uma espiritualidade livre, crítica e universalista. E isso dialoga de maneira muito instigante com essa tendência atual de busca dos jovens de se desligarem das amarras de uma religiosidade rígida.

O problema que se apresenta para que essa mensagem libertadora de Kardec chegue às novas gerações, é que o espiritismo no Brasil (o país mais espírita do mundo), foi modelado por um religiosismo conservador, sob a liderança da Federação Espírita Brasileira. Mais recentemente, como ocorreu em outros campos, o bolsonarismo tomou conta de lideranças e de centros espíritas e expulsou muitos adeptos progressistas.

Por isso, a necessidade de se recolocar a proposta de Kardec numa reflexão mais profunda e adequada para nossos tempos. E é a isso, que o livro que está sendo lançado, se propõe. Porém, como adverte Alysson Mascaro no prefácio que escreveu, trata-se “de uma obra de forja intelectual, não moral, nem pastoral”. Ou seja, nada de proselitismo e catequese, mas de análise e reflexão para espíritas e não espíritas, para melhor entendimento da contribuição de Kardec, com seus limites históricos e sua atualização possível.

Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pampédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.

 

PSDB perdeu a direita e cavou a própria cova com rachas e traições, pot Marcio Aith

0

Como os tucanos, depois de voo alto nos anos 90, sofreram queda brusca e hoje lutam contra extinção

Marcio Aith, Advogado e jornalista, foi secretário de comunicação do Supremo Tribunal Federal e do Estado de São Paulo (governo Alckmin). Foi também correspondente da Folha em Tóquio e Washington

Folha de São Paulo, 06/07/2025

[RESUMO] Partido do Real e da modernização do Estado brasileiro, o PSDB por duas décadas protagonizou com o PT os rumos da política nacional, vangloriando-se de possuir os mais bem preparados quadros políticos e técnicos do país. Com o mesmo esmero, suas lideranças dedicavam-se nos bastidores a sucessivas traições e sabotagens. Denúncias de corrupção e o surgimento de Bolsonaro acentuaram a crise e rasgaram a superfície de polida competência do partido, que hoje depende de fusão ou federação com outras siglas para sobreviver.

Era uma manhã de março de 2016 quando o destino tocou a campainha do Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista. Aécio Neves, então senador, recém-desembarcado em Congonhas, atravessava a cidade com uma comitiva de repórteres. Não vinha para conversar. Queria arrastar o governador Geraldo Alckmin até a avenida Paulista, onde fervilhava a maior manifestação pró-impeachment de Dilma Rousseff.

“Isso é uma armadilha”, murmurou o governador, seco, a dois assessores. Sabia que, se não fosse, os jornais do dia seguinte o carimbariam como o responsável pelo racha tucano. Suspirou, entrou na van e partiu. No trajeto, os dois homens, que um dia representaram o futuro do país, viajaram lado a lado, calados, como estranhos no mesmo velório.

Na Paulista, antes do cheiro de fritura dos ambulantes, vieram as vaias. Cartazes pediam cadeia. Um manifestante gritou “corrupto” diretamente a Aécio. Para quem conhecia o ninho tucano por dentro, era o início do fim de um projeto que prometera civilizar a política nacional —e acabava linchado no meio da rua.

Alckmin via nas pedaladas fiscais atribuídas ao governo Dilma não um crime mas uma farsa.  Dizia aos próximos que, sob aquele microscópio ideológico, nenhum prefeito passaria sem arranhões. Para ele, o impeachment era juridicamente frágil e politicamente perigoso, um precedente que poderia ser usado contra qualquer governante.

A irritação do governador não era só jurídica. O PSDB começava a flertar com um terreno que jamais fora o seu: polarização sem freios, rua ensandecida, populismo do ódio. “Já não era um movimento que nos cabia bem”, admite hoje Aécio Neves, em entrevista à Folha. “Era uma coisa esquisita, radicalizada.”

Quem também enxergou o erro, tarde demais, foi Aloysio Nunes Ferreira, vice na chapa de Aécio em 2014. “Naquele processo de impeachment, estávamos misturados com gente da extrema direita. Quando surgiu um líder de extrema direita, o eleitorado foi embora.”

Da queda de Fernando Collor (1992) à chegada de Jair Bolsonaro ao Planalto (2019), o Brasil deslizou para a direita nos costumes, mas não gerou um líder conservador à altura do palco nacional. O PSDB ocupou esse vácuo como figurante de luxo. Colheu votos, mas perdeu a alma. Quando Bolsonaro enfim surgiu, o público voltou ao seu “galinheiro ideológico”.

A travessia do impeachment à pandemia foi uma sangria lenta. O partido definhou em discurso, quadros e votos. Alckmin filiou-se ao PSB e virou vice de Lula. Fernando Henrique Cardoso e José Serra recolheram-se. Aloysio saltou do barco, assim como os governadores Eduardo Leite e Raquel Lyra. Sobrou Aécio, condômino solitário de uma legenda vazia.

O desastre estourou nas urnas: 59 deputados federais eleitos em 2002; 43 em 2006; 53 em 2010; 54 em 2014; 29 em 2018; míseros 13 em 2022. Testemunhei essa derrocada de perto, mais especificamente de 2010 a 2018, nas campanhas presidenciais de Serra em 2010 e de Alckmin em 2018. Entre essas duas datas, fui secretário de comunicação de Alckmin no governo do Estado de São Paulo.

Hoje o PSDB vaga como um zumbi institucional, respira por aparelhos fornecidos pela cláusula de barreira e só se mantém de pé graças à esperança de uma fusão ou federação que lhe garanta tempo de TV e verba do fundo partidário.

A contradição de origem

O PSDB já foi o partido do Plano Real e dos quadros mais bem preparados da política brasileira. Durante duas décadas, encarnou o espírito do diálogo e do consenso. Entre 1994 e 2014, o Brasil viveu sob um duopólio imperfeito. Os tucanos sustentaram seu lado da equação com técnica, compostura institucional e ambição modernizante.

Esse foi o retrato traçado, com certa nostalgia contida, pelo vice-presidente da República. Fundador do PSDB, Alckmin disse à Folha que o partido foi “promotor de grandes avanços sociais e econômicos”, defensor intransigente da democracia. Falava como quem olha para trás com gratidão. Sem ressentimento, sem deslealdade. Talvez apenas com uma ponta de melancolia.

Atrás da superfície polida da competência, o PSDB carregava, desde a origem, uma contradição estrutural. Nunca foi exatamente um partido. Era mais uma federação de caciques, amarrados por conveniências eleitorais e antipetismo comum. Uma social-democracia sem sindicatos. Um clube de notáveis que confundia excelência técnica com legitimidade popular. Seu maior trunfo, o rigor gerencial, foi também seu limite. Sobraram planilhas, mas faltou povo.

Em 2015, FHC parecia ter compreendido o impasse com a clareza dos que já não disputam o poder. Essa lucidez se manifestava nas sessões de pôquer que promovia em seu apartamento, ou no de João Rodarte, jornalista e parceiro de cartas, das quais eu participava.

As apostas eram modestas: quem vencia saía, no máximo, com R$ 200. FHC não blefava. Seu hobby era desmascarar os blefadores —como se aquele jogo lhe oferecesse um simulacro controlado da política real, onde tudo era engano, mas ao menos havia regras.

À volta da mesa, copos d’água e silêncios longos acompanhavam alguns dos cérebros mais afiados da vida intelectual brasileira —o sociólogo Leôncio Martins Rodrigues, o historiador Boris Fausto.

Em meio às rodadas, FHC deixava escapar, entre ironias e desabafos, seus diagnósticos sobre o partido que fundara. “A maternidade do PSDB encerrou suas atividades”, dizia, meio rindo, meio resignado. “Não nasce mais ninguém. São os mesmos desde 1994. Vão todos ficando velhos. O único que não envelhece aqui sou eu.”

Em outra conversa, o ex-presidente confessaria: “Se voltasse no tempo, teria me dedicado muito mais ao PSDB”. Soava como um pecado venial, mas ecoava como um epitáfio precoce de um projeto que envelheceu antes de aprender a se renovar.

A ironia era afiada: o sucesso do Plano Real destruiu qualquer senso de urgência pela construção partidária. Com FHC no Planalto e os tucanos distribuídos por governos estaduais e prefeituras, quem precisava de diretórios fortes, convenções vibrantes ou quadros novos? O poder embriagava. A gestão deslumbrava. Mas não deixava descendência.

2004 e 2008: A traição paulistana

A sequência de autossabotagens selou o destino tucano. Das punhaladas internas aos predadores externos, o PSDB construiu sua própria erosão com esmero.

Uma das primeiras emboscadas ocorreu em 2004, com a traição paulistana. Houve um telefonema que poderia ter mudado o rumo da política brasileira.

No apartamento do velejador Lars Grael, filiado ao então PFL, o aparelho tocou. Do outro lado, José Serra fazia um convite improvável: queria o medalhista olímpico como seu vice na disputa pela Prefeitura de São Paulo. Gestor competente, com passagem pelo Ministério do Esporte no governo FHC, Lars era, para Serra, o tipo ideal de político: alguém que ainda não era político.

A base reagiu com instinto feroz. Tucanos e pefelistas, unificados como raramente se viu, lançaram o ultimato: “Se o vice não for Kassab, a candidatura não vai pra rua”. Serra, pragmático como sempre, cedeu. E Gilberto Kassab, então deputado federal pelo PFL, virou o vice e um dos mais fiéis parceiros do tucano.

Serra foi eleito prefeito naquela eleição de 2004. Quinze meses depois, em março de 2006, quebrou a promessa de cumprir o mandato e renunciou ao cargo para disputar o governo do Estado. Deixou a prefeitura nas mãos de Kassab, que mais tarde construiria o PSD.

Em 2008, o PSDB expôs à luz do dia sua primeira grande fissura. Serra, governador de São Paulo, jogou todas as fichas na reeleição de Kassab na prefeitura da capital, ignorando sem cerimônia a candidatura de seu correligionário Geraldo Alckmin. Kassab venceu. Alckimin nem chegou ao segundo turno. Mais que uma derrota eleitoral, foi uma humilhação moral para o PSDB.

A ironia histórica foi dessas que a política arquiva com gosto. Se Lars Grael tivesse sido vice de Serra em 2004, Kassab jamais teria herdado a Prefeitura de São Paulo. Sem essa vitrine, talvez não tivesse construído o partido que hoje comanda como uma orquestra regida por pragmatismo implacável: o PSD.

2010: O teatro de Belo Horizonte

A partir de São Paulo, o PSDB se especializou em fazer oposição a si mesmo. Em 2010, foi a vez de Minas Gerais entrar no palco. O teatro da harmonia entre Aécio e Serra encenado em Belo Horizonte escondia, nos bastidores, a disputa mais silenciosa —e mais venenosa— do partido.

Era 4 de março. A insegurança da Cidade Administrativa parecia o que de fato era: o lançamento não declarado de uma candidatura presidencial, Serra, convidado de honra, sorria para as câmeras em sincronia com Aécio, então governador de Minas, como quem sabe que está num jogo, mas finge que não decidiu se quer jogá-lo.

Ambos conheciam o roteiro: 2010 parecia um beco sem saída. Lula, no final de seu segundo mandato, batia recordes de aprovação; Dilma Rousseff carregava o carisma transferido pelo padrinho.

Aécio, favorito natural das prévias tucanas, já havia deixado, discretamente, a disputa. Queria que o provável sacrifício ficasse com Serra, a quem tratava com juras de lealdade, incentivando-o a embarcar na disputa e prometendo o apoio de Minas. O mineiro sabia que a provável derrota do paulista deixaria o campo livre em 2014, quando, calculava, o ciclo do PT no Planalto chegaria ao fim.

O golpe colou, mas Serra e Aécio jamais confiaram um no outro. Viviam mergulhados em clima de paranoia mútua. Aécio suspeitava que Serra espalhava rumores sobre seu suposto uso de drogas. Serra, por sua vez, culpava Aécio por matérias publicadas na imprensa sobre supostos esquemas de corrupção do PSDB paulista.

Na campanha de 2010, levantamentos encomendados sob sigilo por Serra ao cientista político Antônio Lavareda davam sinais dúbios. Apontavam o governador de São Paulo na frente, mas também indicavam que Dilma teria grandes chances de vitória em um eventual segundo turno. Não era o que Serra queria ouvir. O diagnóstico o incomodou tanto que Lavareda foi temporariamente posto na geladeira, sem novas pesquisas encomendadas a ele por um tempo.

Meses depois, Serra voava de Belo Horizonte para São Paulo quando ouviu de um assessor irreverente a pergunta dissonante: “Você já assistiu a ‘O Show de Truman?” Fazia uma comparação entre o filme de 1998, no qual o ator Jim Carrey é um homem que desconhece que sua vida é uma realidade simulada por um programa de TV, e a campanha presidencial tucana.

Nas imagens, viam-se quarteirões tomados por militantes, bandeiras tremulando, aplausos esfuziantes. Tudo parecia apontar para a vitória. Bastava, contudo, andar dois quarteirões além do palanque para ver o que as lentes não mostravam: ruas desertas, ônibus fretados discretamente estacionados, motoristas confessando que os passageiros haviam vindo em troca de um lanche e algum trocado. Era uma encenação meticulosa. Um “Show de Truman” tucano.

As urnas confirmaram a profecia de Lavareda. Dilma venceu Serra no segundo turno. E pior: mesmo com Aécio oficialmente “ao seu lado”, o tucano foi atropelado pela petista em Minas Gerais: 58,45% contra 41,55%. O estado em que o PSDB dominava o governo tornava-se, ironicamente, seu território mais ingrato.

2014: A última chance

Quatro anos depois, seria a vez de Aécio testar o próprio nome nas urnas. Na noite de 26 de outubro, no início da apuração dos votos, o mineiro estava na frente. O ciclo tucano, adormecido desde FHC, parecia prestes a ser religado.

A reviravolta começou pelo Nordeste. Urna após urna, Dilma virou o jogo e consolidou a vitória apertada, 51,64% contra 48,36%, à menor margem já registrada em uma eleição presidencial brasileira até então. O fantasma de Minas assombrou os tucanos de forma ainda mais intensa: Aécio perdeu em sua própria base eleitoral. Para o PSDB, foi ao mesmo tempo a maior chance de voltar ao Planalto em 12 anos e o último suspiro de relevância nacional.

Quatro dias depois do segundo turno, o partido protocolou no TSE um pedido de auditoria especial nos resultados da votação. Era o início de um novo paradigma: difundiu-se a ideia de que eleições poderiam ser colocadas sob suspeita quando o resultado desagradasse.

Aécio, até hoje, rejeita essa leitura com veemência. “Essa versão foi espalhada pelo PT, e muita gente comprou”, afirma. “Nunca contestamos o resultado. Às 20h30 do domingo da eleição, liguei para a presidente Dilma e a cumprimentei pela vitória.”

Segundo ele, o pedido de auditoria nasceu de pressões externas. Inundado por mensagens relatando falhas em urnas, o partido se sentiu compelido a dar uma resposta institucional. “Eu, pessoalmente, não duvido do resultado da eleição. Mas acho que uma parcela razoável da população tem dúvidas. E defendo, muito antes de o Bolsonaro existir, um sistema que possa eliminá-las.”

Para Aécio, o problema não está nas urnas eletrônicas, mas na falta de transparência percebida pelo eleitorado. “Isso alimenta o processo contínuo de contestação, principalmente por parte da direita mais radical.”

2016: O usurpador do tucanato

A entrada de João Doria no PSDB foi o atestado de óbito da última tentativa orgânica de reconstrução tucana. Nos bastidores das prévias para a Prefeitura de São Paulo, o governador Alckmin oscilava entre a indecisão e o controle. Andrea Matarazzo era o nome natural do partido, respaldado por FHC, Serra e outras lideranças históricas.

Uma reunião pró-Matarazzo aconteceu na casa de José Gregori, ministro da Justiça no governo tucano. A alta cúpula do partido estava presente, incluindo Serra e FHC.

Alckmin foi convidado por e-mail. Na verdade, ninguém o queria lá, o que o deixou extremamente irritado. Leu a articulação como um ato de traição. O fato é que chamou Doria no dia seguinte e disse: “Agora vá lá e ganhe essa convenção”, contou uma testemunha do episódio.

Uma das leituras é que o apoio de Alckmin a Doria foi também um acerto de contas. Afinal, a lembrança de 2008, quando foi derrotado por um Kassab apoiado por Serra, ainda doía.

Eleito nas prévias tucanas com gastos próprios até então nunca vistos pelo partido, Dória demoliu nas urnas o petista Fernando Haddad, que buscava a reeleição.

A boa relação de criador e criatura, contudo, durou pouco. Pouco após assumir a Prefeitura de São Paulo, Doria embarcou com Alckmin rumo a Nova York para participar de um roadshow com investidores.

No palco, vendiam o mesmo Estado. O governador fez a defesa burocrática do modelo paulista. O prefeito veio em seguida e apresentou-se como o gestor de que o Brasil precisava. Não fez nenhuma menção a seu padrinho político. Nenhum gesto de deferência.

Na mesa ao lado, o secretário estadual Saulo de Castro cochichou no ouvido do governador: “Viu, Geraldo? Ele acabou de se lançar candidato à Presidência”. No íntimo, Alckmin esperava que Doria o consagrasse como o próximo presidente do Brasil. Começou ali um processo rápido e irreversível de arrependimento e ódio.

Em 2018, Doria repetiu a tática de Serra. Rompeu a promessa feita ao eleitor e candidatou-se ao governo estadual, vencendo no segundo turno. Em 2022, venceu as prévias para concorrer ao Planalto, mas depois desistiu da corrida, alegando sabotagem do partido. Pela primeira vez desde sua fundação, o PSDB ficou sem candidato à Presidência do Brasil.

O ex-deputado tucano José Aníbal assim classifica a introdução de Doria no partido: “Eu disse desde o início. Ele seria o cupim do PSDB”. Aécio Neves concorda: “A entrada do Doria foi o episódio mais trágico da história recente do partido.”

A reportagem procurou João Doria. O ex-governador preferiu não conceder entrevista. Enviou, por escrito, uma mensagem com pedido explícito de publicação na íntegra.

“Venci as três prévias do PSDB que disputei com bons candidatos do partido. Na sequência, venci as eleições para prefeito de São Paulo no primeiro turno, em 2016 —fato único na história política da cidade até hoje. Depois, venci as eleições para governador do Estado, com mais de 11 milhões de votos, em 2018. Já em 2022, venci novamente as prévias do PSDB para presidente da República, disputando com expressivos candidatos do partido. Embora tenha sido vitorioso, o PSDB não honrou o resultado das prévias nem a vontade dos seus filiados. Tomei, então, a decisão de desligar-me do partido. Não tenho mágoas nem ressentimentos de ninguém. E desejo boa sorte ao PSDB.”

2017: A fuga pela garagem

Quando viram que havia imprensa do lado de fora, as pessoas fugiram pela garagem. Era maio de 2017, e a cena, na residência de Aécio Neves em Brasília, tinha todos os elementos de uma tragédia política.

Dias antes, gravações da JBS encaminhadas à Procuradoria-Geral da República, como tentativa de um acordo de delação premiada, mostravam Aécio pedindo R$ 2 milhões ao empresário Joesley Batista. O diálogo rapidamente se tornou símbolo da degradação política nacional.

Aécio convocou uma reunião de emergência com a cúpula partidária para explicar-se e pedir respaldo. A cena beirava o surreal. Ele disse que pediu o dinheiro como um empréstimo pessoal, e não em um ato de corrupção, para pagar honorários advocatícios decorrentes da eleição de 2014.

Contou que tentou vender seu apartamento no Rio, mas ninguém quis. Estava desesperado. Teria acertado com Joesley Batista a entrega do imóvel como forma de pagamento.

Aécio convocou a imprensa acreditando que, ao fim da reunião, os colegas sairiam em sua defesa. Não saíram. Ou melhor, saíram pela garagem, uma fuga em massa, ao verem jornalistas na porta. Nenhuma palavra foi dada em favor do companheiro em apuros.

“A solidariedade nunca foi mesmo matéria-prima do PSDB”, reconhece Aécio em tom amargo. Acusado de corrupção passiva, ele foi depois absolvido pela Justiça.

2018: o partido nu

O PSDB chegou a 2018 fragilizado, sem o voto antipetista que antes o cobria e com a imagem de lisura arranhada pela Lava Jato. Em acordos de delação premiada firmados com a Procuradoria-Geral da República, executivos da Odebrecht disseram ter repassado milhões de reais em caixa dois para as campanhas eleitorais de Serra, Alckmin e Aécio, entre outros figurões do partido.

Ao longo dos anos também acumularam-se denúncias sobre supostos pagamentos de propina e formação de conluios para a elaboração de projetos e construção das linhas do Metrô e da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) nas gestões tucanas de São Paulo.

Em 2018 Alckmin partiu para sua segunda candidatura presidencial. A despeito de tudo, havia algum motivo para confiança, pois sua gestão como governador seguia bem avaliada.

A realidade, contudo, impôs outro roteiro. Em São Paulo, reduto histórico do tucanato, estado no qual foi o político que por mais tempo ocupou o cargo de governador após a ditadura, Alckmin ficou em quarto lugar, atrás de Bolsonaro, Haddad e Ciro Gomes.

Mais que um tropeço, foi uma humilhação histórica. Alckmin, apoiado por oito partidos e dono de 44% do tempo total de TV, terminou o primeiro turno também em quarto lugar no país. Obteve apenas 4,76% dos votos válidos, o pior desempenho presidencial do PSDB desde sua fundação.

A tragédia tucana foi intensificada pelo abandono. Ao perceber o fracasso iminente, João Dória incentivou nos bastidores o voto BolsoDoria, aprofundando a cisão interna.

Naquela eleição as pessoas viraram as costas para a televisão e passaram a ser bombardeadas por WhatsApp e redes sociais. Bolsonaro, com apenas 8 segundos de tempo de TV, soube explorar esse novo ambiente. O PSDB não percebeu que o jogo havia mudado.

Pela primeira vez em quase três décadas, disputou sem contar com o voto antipetista de direita, que passou a ter dono. Ao contrário, fez uma campanha de centro-esquerda, poupando o PT e criticando duramente Bolsonaro. Revelou-se o que era: um partido dúbio, esvaziado, órfão de base social, de narrativa e ambição.

O diagnóstico e o plot twist

O PSDB contratou recentemente o instituto Quaest para avaliar a opinião da população sobre o partido. O diagnóstico foi brutal. O principal problema constatado tem nome e sobrenome: Aécio Neves. A rejeição do mineiro, segundo a pesquisa, contamina toda a legenda.

Numa reviravolta digna da política brasileira, o PSDB negocia hoje a volta de Ciro Gomes depois de 28 anos. Nesse período, Ciro transformou em esporte ataques cruéis a FHC. Desde as eleições de 2018, porém, tem caminhado para a direita, enquanto seu atual partido, o PDT, insiste em participar do governo Lula. Estariam ambos, Ciro e o PSDB, na centro-direita do espectro político.

Desde que deixou os tucanos, Ciro peregrinou por vários partidos: PPS (hoje Cidadania), PSB, PROS e, desde 2015, PDT. Hoje vê na legenda tucana o espaço para reafirmar seu projeto de oposição ao PT.

O movimento ganhou força após revelações de fraudes no INSS, descobertas na gestão petista. Apesar de atuar para o desembarque dos pedetistas da base aliada de Lula, Ciro foi voto vencido, e o PDT optou por seguir no governo.

Epitáfio de uma era

Na década de 1990, o PSDB foi o partido da modernização. Nos anos 2000, representou a imagem anti-PT. Em 2010, ainda parecia competitivo. Em 2014, chegou perto com Aécio. Em 2018, tornou-se irrelevante. Em 2022, saiu de cena. Passou da glória do Plano Real ao próprio funeral.

Em São Paulo, berço tucano, está fora do governo estadual, posto que ocupou de 1995 a 2022, e da prefeitura da capital.

Aécio, que restou como guardião das ruínas, ainda cultiva ambições mais nobres. “Nosso objetivo não pode ser só superar a cláusula de desempenho. Queremos dar musculatura a um projeto de centro, mesmo que não seja para vencer as próximas eleições.”

É o que resta: um projeto de centro. Depois do fracasso nas negociações com o Podemos, o partido agora aposta numa federação com MDB e Republicanos. “Há um interesse grande. A questão é que o MDB está muito no governo”, diz Aécio.

Aloysio Nunes observa o esforço de longe, com a lucidez dos que assistem ao próprio epitáfio ainda sendo rabiscado. “Acho que o PSDB está fazendo um movimento correto na luta pela sobrevivência. Só espero que consigam se livrar da hipoteca do bolsonarismo e caminhem para um centro democrático.” E arremata: “Aliás, é onde o Kassab soube perfeitamente posicionar o PSD”.

Com a morte do PSDB, não morre só um partido —morre uma forma de fazer política. A política da expertise, do debate racional, da moderação como princípio. A política que acreditava que bastava estar certo para convencer, ser competente para vencer, ter boas intenções para ser perdoado.

Morre também uma geração. A geração que fez a transição democrática, criou o Plano Real, inseriu o Brasil na modernidade. Homens que, com todos os defeitos, praticavam uma política mais civilizada, mais institucional, mais respeitosa.

Serra, afastado da vida pública devido à doença de Parkinson recebeu a Folha em sua casa. Disse uma frase que resume mais do que a situação de seu partido. “Tínhamos os melhores administradores e líderes do país. Obviamente, cometemos equívocos, mas isso talvez não tenha mais importância. A política vive hoje tempos de terra arrasada.”

A democracia brasileira ficou mais pobre. Não porque o PSDB seja insubstituível, mas porque a diversidade partidária é um valor democrático. Um país com dois polos —esquerda e direita populista— é um país com menos possibilidades, menos nuances, mais riscos.

 

Ladainha da responsabilidade fiscal, por Fernando Nogueira da Costa

0

Fernando Nogueira da Costa – A Terra é Redonda – 24/06/2025

Austeridade fiscal é a liturgia neoliberal que sacrifica vidas no altar da dívida. Enquanto os mercados rezam por juros altos, o povo paga a conta com saúde e educação. A justiça tributária? Uma heresia no catecismo do capital

O discurso da austeridade fiscal é um dos mais saturados por eufemismos tecnocráticos e “palavrinhas mágicas”. Elas naturalizam o sacrifício das maiorias em nome de uma suposta responsabilidade.

Abaixo, apresento um texto padrão, com linguagem típica da imprensa ou de Inteligências Artificiais. Depois, contraponho uma versão crítica, taxativa e politicamente situada.

Texto padrão (estilo imprensa/ inteligência artificial) neoliberal

“Ajuste fiscal e sustentabilidade das contas públicas”

“Diante do cenário de crescimento da dívida e limitações orçamentárias, muitos países — incluindo o Brasil — enfrentam o desafio de equilibrar suas contas públicas. Nesse contexto, políticas de austeridade, como a contenção de gastos, são frequentemente adotadas para garantir a sustentabilidade fiscal e preservar a confiança dos investidores.

Especialistas defendem o controle de despesas ser fundamental para evitar desequilíbrios; Eles comprometem o crescimento econômico de longo prazo. Embora haja debate sobre os efeitos sociais dessas medidas, elas são vistas por muitos analistas como necessárias para manter a credibilidade e atrair investimentos.

Ainda assim, é importante buscar formas de preservar os programas sociais essenciais, enquanto se promove uma gestão responsável dos recursos públicos.”

Versão crítica, taxativa e sistêmica (e vista como esquerdista)

“Austeridade fiscal é um projeto de classe”

“O discurso da austeridade — baseado no corte de gastos sociais em vez da taxação dos mais ricos — não é uma necessidade econômica, mas uma escolha política orientada por interesses de classe.

A ideia de o “controle de gastos” ser condição para a “confiança dos investidores” serve como chantagem permanente contra qualquer política de redistribuição. O chamado de “sustentabilidade fiscal” é, na prática, a priorização sistemática do pagamento de juros da dívida pública em detrimento da saúde, educação, moradia e infraestrutura.

Enquanto isso, a tributação sobre lucros, dividendos e grandes fortunas continua simbólica ou inexistente. A carga tributária brasileira segue fortemente regressiva: penaliza o consumo e a renda do trabalho, enquanto preserva os privilégios do capital.

O ajuste fiscal não é neutro: impõe o custo da “responsabilidade” aos de baixo para proteger a rentabilidade dos de cima. Cortar despesas sociais, enquanto se recusa a mexer nas receitas, é uma forma disfarçada de manutenção da desigualdade estrutural.

A saída não passa por mais cortes, mas por uma reforma tributária verdadeiramente progressiva. Ela enfrentará os interesses do topo e reoriente o orçamento para a reprodução da vida — não da dívida.”

Seja à direita, seja à esquerda, os lugares-comuns são contumazes e cansativos. Tampouco são operantes. Afinal, os leitores saltam o já sabido… e não se surpreendem com “mais do mesmo” como a eterna “denúncia do capitalismo”.

A sátira é uma irônica ferramenta pedagógica para desnaturalizar esses discursos hegemônicos. É engraçada uma narrativa satírica em forma de ladainha neoliberal, inspirada no estilo jornalístico econômico em Terrae Brasilis — repleta de “palavrinhas mágicas”, jargões corporativos e abstrações vazias. Eles se repetem como um mantra tecnocrático.

Ladainha da responsabilidade fiscal: um rosário neoliberal em sete pontos

Em nome do tripé, da âncora e da confiança, amém.

Irmãos e irmãs, é chegada a hora de fazer o dever de casa.

Pois o cenário desafiador exige ajustes estruturais — em nome do ambiente de negócios e da previsibilidade macroeconômica.

O Estado inchado deve ser contido com firmeza e responsabilidade.

Cortar é preciso, sangrar é necessário, pois gastar mais não é solução sustentável.

Afinal, não há almoço grátis — salvo para quem lucra com os juros.

Louvados sejam o teto de gastos e o arcabouço fiscal, instrumentos sagrados capazes de nos livrarem da tentação de investir em gente.

Porque o foco deve estar na eficiência, e a eficiência, como sabemos, mora onde o Estado não chega.

Tributação sobre grandes fortunas?!

Tema complexo, pouco viável, difícil de implementar.

Melhor ampliar a base, modernizar os cadastros… e, acima de tudo, estimular o empreendedorismo.

O rico, afinal, é um herói da meritocracia, não um contribuinte.

O Mercado reagiu bem.

O relatório foi bem recebido.

A agência de avaliação de risco elevou a perspectiva.

E a confiança do investidor, essa entidade mística e exigente, sorriu discretamente diante do novo contingenciamento na saúde.

Persistem, é claro, os desafios sociais.

Mas é importante preservar o compromisso com as reformas.

Avançar na consolidação fiscal, reduzir ineficiências, ajustar o mix de políticas públicas ao novo normal do capital globalizado.

Em nome do primário positivo, do spread controlado e da governança intertemporal da dívida, seguimos na fé da sustentabilidade fiscal de longo prazo.

E oremos para nunca nos faltar a confiança dos mercados, mesmo caso nos falte pão.

Amém.

Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP)

 

Bagunça generalizada

0

Vivemos numa sociedade internacional marcada por uma verdadeira bagunça generalizada, marcada por interesses mesquinhos, políticas protecionistas em excesso, intervenções em outras nações, incremento dos subsídios nacionais, crescimento de um falso nacionalismo, aumento de mentiras e muitas bravatas que espalham volatilidades, incertezas e instabilidades em todos os cantos da economia mundial.

Este cenário leva as nações a buscarem novos espaços de comércio exterior e integração econômica, buscando fortalecer seus sistemas econômico e produtivo, diversificando seus parceiros comerciais, investindo fortemente em novos modelos de negócios para diversificar sua pauta de comércio internacional, reduzindo a dependência externa, num mundo, cada vez mais integrado e interdependente, onde as instabilidades se espalham para toda a cadeia produtiva, impactando sobre todas as nações e gerando riscos crescentes, tudo isso afugenta os investimentos produtivos e alimenta uma financeirização da economia mundial, aumentando os ganhos dos mais ricos e degradando, os mais pobres, culminando na piora da distribuição de renda das nações.

Neste momento, destacamos uma grande bagunça internacional, países atacam outras nações e iniciam guerras fratricidas com milhares de mortes, meio ambiente degradado e florestas sendo devastadas para expandir seus setores agrícolas, regras internacionais construídas no pós segunda guerra estão sendo deixadas de lado, instituições multilaterais perderam espaço e relevância, onde podemos destacar a Organização das Nações Unidas (ONU), instituição criada para estimular ambiente de solidariedade entre países, cujo poder está cada vez mais reduzido, sem voz e sem relevância global.

Na contemporaneidade, percebemos movimentos globais para fragilizar as moedas nacionais e fortalecer as criptomoedas, reduzindo o poder das Autoridades Monetárias, limitando a capacidade de intervenção dos governos nacionais, desta forma, percebemos o crescimento do poder dos atores privados e dos grandes grupos financeiros internacionais, que garantem o incremento de recursos dos grandes fundos de investimentos e seus congêneres, os grandes conglomerados de informação e de tecnologias, as chamadas Big Techs.

Nesta bagunça generalizada, percebemos ataques crescentes a democracia liberal, onde grandes grupos econômicos e financeiros, dotados de poderes monetários inimagináveis, dispendem grandes recursos para eleger seus políticos de estimação, que servem para colocar em pauta seus interesses mesquinhos e imediatos, seus ganhos estratosféricos e servem ainda, para garantir e perpetuar os seus privilégios e suas isenções fiscais e tributárias, se afastando das necessidades básicas da população e contribuindo para criminalizar a política, o Estado e a Democracia, além de perpetuar as iniquidades.

Neste momento, marcado por uma bagunça generalizada, percebemos que a maior economia do mundo vem aplicando tarifas escorchantes para todos os seus parceiros comerciais, elevando tarifas comerciais e gerando impactos para todos os setores produtivos, aumentando os preços internos e a inflação, elevando as incertezas, espalhando rastros de instabilidades, além de desemprego, informalidade e desesperança.

A elevação das tarifas comerciais dos EUA vislumbrava a atração de novos investimentos internacionais, o incremento do emprego interno e a melhora na renda agregada dos trabalhadores norte-americanos, mas essas políticas unilaterais tendem a criar novos constrangimentos, aumento dos preços e instabilidades crescentes da economia. Num mundo de incertezas, como o atual, medidas unilaterais contribuem para o crescimento da bagunça generalizada e nos mostra que, num mundo integrado, interdependente e multilateral, precisamos construir consensos e não destruir seus semelhantes.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

 

Taxar grandes fortunas é agenda global, não tem nada de eles contra nós, por Bianca Santana.

0

Bilionários como Abigail Disney defendem pagar mais imposto para reduzir desigualdades e proteger democracias

Bianca Santana, Doutora em ciência da informação, mestra em educação e jornalista. Autora de “Quando me Descobri Negra”.

Folha de São Paulo, 07/07/2025

Crescem a extrema direita e as ameaças à democracia. Mas cresce também, internacionalmente, a proposta de enfrentar desigualdades tributárias, taxando os super-ricos.

Além dos sindicatos, dos partidos e de governos de esquerda, há super-ricos —pasmem— que também defendem a taxação de grandes fortunas. Eu já havia lido sobre alguns deles que, nos Estados Unidos, reuniram-se em um coletivo chamado “Patriotic Millionaires”, inicialmente “Patriotic Millionaires for Fiscal Strength” (milionários patrióticos pela força fiscal).

Em maio deste ano tive a oportunidade de conhecer uma das mais atuantes vozes do grupo: Abigail Disney, neta de Roy Disney, cofundador da Walt Disney Company. Abigail esteve em Fortaleza, ao lado de Cássio França e Inês Mindlin Lafer, para a abertura do Congresso Gife: Desconcentrar Poder, Conhecimento e Riquezas, que reuniu 1.200 pessoas interessadas em debater o investimento social privado e filantropia.

Ela defende uma reestruturação do sistema tributário para corrigir privilégios. Mesmo que reconheça a importância da filantropia e da caridade, Abigail mesma já doou cerca de US$ 70 milhões de sua fortuna de cerca de US$ 120 milhões. Ela afirma que a caridade não garante serviços públicos, não reduz desigualdades estruturais, não democratiza o poder. Se o sistema tributário privilegia os ultrarricos para que sejam cada vez mais ricos, ele precisa ser alterado para corrigir desigualdades.

É sabido que investidores pagam menos impostos que professores, enfermeiros, policiais; que grandes heranças podem ser transmitidas sem que se pague muitos impostos. Os “Patriotic Millionaires” reconhecem isso e alertam que, além de injusta, a desigualdade é perigosa. Na avaliação deles, fragiliza democracias diante da concentração de poder em quem tem muito dinheiro, vide a importância de Elon Musk para a eleição de Donald Trump, mesmo que agora não sejam mais amigos.

Bilionários podem comprar plataformas digitais, veículos de mídia, influenciar eleições e definir a agenda pública. A concentração de riqueza significa concentração de poder político e, como temos visto em todo o mundo, crescimento do populismo autoritário. Segundo o grupo, tributar mais os super-ricos é a forma mais eficiente de reduzir desigualdades extremas.

Não se trata de punir o sucesso ou sufocar a iniciativa privada, mas de garantir que quem mais se beneficiou do sistema tributário contribua, proporcionalmente, para que ele retorne ao conjunto da população. Em vez de multiplicar aplicações e contas bancárias, pequenas partes das grandes fortunas revertidas em impostos podem financiar saúde, educação, segurança, infraestrutura e políticas climáticas.

Em entrevista a esta Folha, Abigail contou que nos inúmeros artigos que já escreveu sobre o tema, as mensagens mais raivosas que recebe não são de super-ricos. “Acho incrível isso, mas é que existe essa ideia de que, ‘se eu algum dia tiver esse dinheiro, não pagarei essa taxa’.”

Taxar grandes fortunas não tem nada de eles contra nós. É sobre justiça fiscal e econômica. Sobre sociedades mais equilibradas e o futuro das democracias.

 

Há uma luta de classes, e os ricos estão ganhando, por Camila Rocha.

0

Os tais 10% da faixa proposta aos super-ricos brasileiros corresponde à faixa mais baixa dos contribuintes norte-americanos

Camila Rocha, Doutora em ciência política pela USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.

Folha de São Paulo, 07/07/2025

Warren Buffett é o quinto homem mais rico do mundo. Sua fortuna é estimada em US$ 166 bilhões, quase R$ 1 trilhão. No dia 26 de novembro de 2006, o escritor e comentarista político Ben Stein escreveu uma coluna para o The New York Times sobre uma conversa que teve com Buffett sobre algo que preocupava o bilionário: o sistema tributado.

Nos Estados Unidos, há um sistema progressivo de taxação. As faixas variam de 10% a 37%. Em 2025, por exemplo, quem ganhar até pouco menos de US$ 12 mil anuais irá pagar 10%. Quem ganhar mais de US$ 626 mil anuais está na faixa mais alta de contribuição, 37%.

A despeito do sistema progressivo de taxação, naquele ano, Buffet, com uma renda gigantesca proveniente de dividendos e ganhos de capital, pagou muito menos imposto do que qualquer outra pessoa em seu escritório. Buffett não fazia nenhum tipo de planejamento tributário, simplesmente pagava o que o Código da Receita Federal exigia. “Como isso pode ser justo?”, perguntou Buffett.

Stein concordou, mas disse que sempre que alguém tentava levantar a questão era acusado de fomentar uma luta de classes. Buffett então respondeu: “Há uma luta de classes, sim. Mas é a minha classe, a classe rica, que está fazendo a guerra, e estamos ganhando”.

Há um mês, em uma entrevista ao jornalista Reinaldo Azevedo, a deputada federal Tabata Amaral (PSB), afirmou que, a despeito da coragem do governo em propor a taxação dos mais ricos, a proposta ainda é injusta. Em sua visão, “o governo não foi tão ousado como deveria”.

E se perguntou: “Quem recebe R$ 1 milhão por mês vai pagar 10% de imposto e quem recebe R$ 10 mil, R$ 20 mil, vai pagar 27,5% de imposto? O país mais capitalista do mundo cobra mais impostos dos super-ricos do que a gente, Estados Unidos da América”.

Curiosamente, os tais 10% da faixa proposta aos super-ricos brasileiros corresponde justamente à faixa mais baixa dos contribuintes norte-americanos. Ou seja, se nos Estados Unidos os ricos estão ganhando a luta de classes, no Brasil há um verdadeiro massacre.

Em uma das melhores passagens do livro “A Boba da Corte” (2025), Tati Bernardi revela a primeira vez que se deu conta de quem são e como vivem os super-ricos brasileiros. Quando era estagiária de uma das principais agências de propaganda do país, ela foi “desconvidada” para o aniversário de um dos redatores, em um restaurante caro.

Porém, quando perguntou porque todos os estagiários, menos ela, foram convidados, o redator sorriu e disse: “Os estagiários dessa agência são mais ricos que o presidente. Todos são filhos de clientes. Nunca reparou naqueles carros pretos parados na garagem? São os seguranças dos estagiários”.

No fim do mês passado, o Cannes Lions, festival de criatividade mais importante do mundo, cassou o grande prêmio conquistado pela agência DM9 neste ano. O motivo da “despremiação” foi o uso de inteligência artificial para apresentar informações imprecisas ao júri.

Alguém poderia dar o tal prêmio para a campanha “Hugo nem se importa”. Pelo menos, ao contrário da DM9, a inteligência artificial foi usada para apresentar informações precisas à população brasileira.

 

O Nordeste subsidiou o Sudeste, por Rodrigo Zeidan

0

Não faz sentido reclamar que nossas regiões mais ricas subsidiam as mais pobres

Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Folha de São Paulo, 05/07/2025

O que a Dinamarca, China, as duas Coreias e o Brasil têm em comum? Seus governos em algum momento geraram fome em nome de rápida industrialização. Em alguns países, isso ainda explica parte da diferença de renda entre regiões.

No Brasil, já ouvi de gente do Sul e Sudeste que nosso atraso está ligado à necessidade de regiões ricas subsidiarem as mais pobres. Mas é aí que está a questão: nunca foi requerimento empobrecer o Norte e Nordeste para o Brasil crescer, mas foi esse o caminho escolhido pelos governos militares, responsáveis pela aceleração da industrialização brasileira.

Os militares usaram tática comum em muitos países: transferir recursos da agricultura para áreas industriais. Com aumento do empobrecimento e criação de oportunidades em outras regiões, o que seria migração natural se transforma em êxodo rural. As regiões mais ricas começam a sugar pessoas fugindo das condições funestas das áreas agrícolas, em um círculo vicioso que pode durar décadas.

A Coréia do Sul fez algo similar nos anos 1960 e 70, suprimindo preços agrícolas para aumentar a renda dos trabalhadores urbanos, mas abandonou isso por uma industrialização mais inclusiva. A Coréia de Norte faz isso até hoje. Tem tecnologia de ponta em várias áreas, à custa de uma população rural mal nutrida.

Na China, a industrialização forçada causou milhões de mortes como consequência do Grande Salto para a Frente, fartamente estudado pelo mundo afora. Brasil, Dinamarca e outros países viveram algo parecido, mas em muito menor escala (mais de 10% da população dinamarquesa fugiu para os EUA de 1868 a 1908).

Não é coincidência que a família do nosso presidente tenha chegado em São Paulo nos anos 1950, fugindo da fome e da seca, quando se iniciava esse processo.

Migração rural é natural em qualquer processo de industrialização, mas êxodo rural, no qual as pessoas fogem do pior, é escolha política. O erro da China nos anos 1950 não foi repetido no período de 1980 a 2010, quando o país cresceu mais de 10% ao ano e a população urbana saiu de 15% para quase 50%.

O processo foi feito sem suprimir o setor agrícola e por isso ainda está longe de acabar, com 40% da população chinesa ainda em áreas rurais. O que motiva o migrante interno chinês é renda extra e não fome e seca, como no Brasil dos anos 1950 a 1980. Se o Nordeste é mais pobre hoje, é porque sua população foi usada, contra sua vontade, para acelerar a industrialização brasileira.

Não precisava ter sido assim. Talvez não tivéssemos tido o “milagre econômico” (um mito de qualquer forma, pois causou diretamente a hiperinflação). Contudo, um desenvolvimento industrial mais lento seria mais que compensado pela possibilidade de menores disparidades regionais. Talvez o Nordeste fosse mais próspero. Mas nunca vamos saber.

Os militares escolheram empobrecer o sertão para acelerar a migração. Entregaram favelas e desigualdade nos centros urbanos e fome e seca nas áreas rurais. Ainda estamos nos recuperando disso. Serão décadas antes que as regiões brasileiras venham a convergir. Enquanto isso, não faz sentido alguém do Sul reclamar de subsidiar alguém do Norte. Afinal, foram subsidiados pelo Nordeste. Só que não com dinheiro e sim com vidas. Milhões delas.

 

Sem mágicas no Brasil real, por Maria HermíniaTavares.

0

O conservadorismo do Congresso não é o efeito espúrio do sistema eleitoral

Maria Hermínia Tavares, Professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, é pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Folha de São Paulo, 03/07/2025

O conflito entre o Executivo e o Congresso sobre o aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) põe a nu tensões de várias origens.

De um lado, trata-se de um capítulo do rearranjo das relações entre os dois Poderes, requerido pelas mudanças nas respectivas forças relativas.

Como se sabe, a Presidência perdeu em parte sua capacidade de controlar a agenda legislativa e o Parlamento ganhou mais protagonismo, por força de mudanças institucionais que se sucederam ao longo dos anos. Entre elas, a regulamentação das medidas provisórias; o crescimento, em tipo e valor, das emendas impositivas; e o aumento do fundo partidário, que fortaleceu as lideranças das legendas representadas na Câmara e no Senado.

A principal consequência disso tudo foi a diminuição do controle que o governo exercia sobre a parte do Orçamento da União não destinada a despesas obrigatórias —aquela que permitia ao governo de turno fazer suas políticas e dar marca própria à sua gestão. Os efeitos dessa mudança estão detalhados no artigo da cientista política Lara Mesquita, também colunista desta Folha.

A outra fonte de tensão é propriamente política e vem do fato de o presidente Lula, de centro-esquerda, ser minoritário do Congresso e, em consequência, depender de uma coalizão de governo com grande participação de partidos da direita mais pragmática. Esse descompasso não é incomum no país. O grande economista Celso Furtado já apontara o conflito entre presidente progressista e Congresso conservador no artigo “Os obstáculos políticos ao desenvolvimento econômico”, de 1965, que se tornou um clássico. E perdurará enquanto as escolhas do eleitorado continuarem produzindo esse desacerto.

Coalizões congressuais heterogêneas são mais difíceis de disciplinar. Especialmente quando o governo deixa de contar com alguns dos instrumentos para ganhar o apoio de parlamentares dispostos a deixar de lado convicções conservadoras em troca de seja lá o que lhes aumente o cacife para a reeleição.

De toda forma, apesar das importantes derrotas sofridas pelo governo no Congresso, produzidas por sua base indisciplinada, levantamento publicado por O Estado de S. Paulo, no domingo (29), mostra que os partidos na Câmara merecedores de ministérios apoiaram o governo em 72% das votações por ele orientadas. Um percentual e tanto, mesmo ao se levar em conta que o índice ficou 18 pontos aquém dos 90% das gestões anteriores do presidente Lula.

Além disso, é inegável que uma base congressual que inclua a direita pragmática limita o alcance de políticas de mudança ao gosto da esquerda. A discussão sobre o ajuste fiscal e uma reforma progressiva do Imposto de Renda bem o demonstram.

De toda forma, convém ter em mente duas realidades: uma é que o conservadorismo do Congresso não é o efeito espúrio de um sistema eleitoral que perverta a representação —mas das inclinações do eleitorado. A outra é que o presidencialismo de coalizão, a forma possível de governar por aqui, passa por mudanças sem volta no seu modus operandi, requerendo ainda mais negociação entre os jogadores.

No Brasil real, não há soluções mágicas nem instituições ótimas.

 

Lula vs. Congresso ou justiça tributária? por Thiago Amparo

0

A imprensa está perdendo a oportunidade de debater seriamente a justiça tributária

Thiago Amparo, Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

Folha de São Paulo, 03/07/2025

A cobertura da imprensa nacional, inclusive da Folha, sobre o decreto do IOF superdimensiona a linha editorial Lula vs. Congresso e, assim, perde a oportunidade de debater seriamente a justiça tributária.

Ao leitor vende-se a ideia de que a notícia do dia é, para usar a famosa metáfora jornalística, que o cachorro mordeu seu dono, quando na verdade estamos diante da rara situação em que desta vez foi o dono que mordeu seu cão: no debate sobre IOF, estamos diante não de mais um episódio corriqueiro de picuinhas políticas, mas sim de um momento atípico, em que se discutem, finalmente, projetos distintos de país.

No vale-tudo dos jornais —no qual o debate sobre taxação de super-ricos é traduzido como pauta antiCongresso e de polarização social—, sabe-se mais sobre quem almoçou com quem e quem ignorou a ligação de quem e menos sobre os interesses privados que sustentam a pouca ou nula taxação de super-ricos no país e como esses interesses interseccionam com os de parlamentares dispostos a sacrificar a estabilidade fiscal.

Até como picuinha o roteiro jornalístico fica ruim: se é para sabermos fofocas, ao menos deveríamos saber quais empresários pressionaram Hugo Motta e colegas e deveríamos ser lembrados de que minorias parlamentares (caso do atual governo) procurarem o STF não é afronta, mas o arroz e feijão do controle constitucional desde 1803.

Carecem de ser feitas perguntas vitais.

Qual é o tamanho dos benefícios dos setores que apoiam o centrão e a direita no Congresso? Em comparação a outras economias capitalistas, qual a dimensão da lambança tributária do andar de cima? Por que o dito mercado não se escandaliza com a gastança pouco transparente de emendas parlamentares mas se delicia com medidas antiestabilidade fiscal como a derrubada do decreto do IOF? Qual é a opinião da população sobre a taxação de super-ricos e a redução de impostos para pobres e classe média? Sem essas respostas (ou sequer perguntas), falta cobertura jornalística.

 

Problemas fiscais

0

Vivemos momentos de grandes incertezas na sociedade internacional. Conflitos políticos, fragilização da democracia, crises fiscais e financeiras, crescimento da concorrência, mudanças no mundo do trabalho, degradação ambiental, crescimento do crime organizado, diminuição da esperança da população mundial, dentre outros, nos colocando em num momento de grandes vulnerabilidades civilizacionais.

Neste cenário, percebemos o crescimento da dívida soberana das nações, que impactam fortemente sobre as políticas públicas e limitam os investimentos governamentais, levando os governos a impulsionarem as parcerias públicas e privadas e criando estratégias para a construção de instrumentos fiscais que atraiam investimentos privados. Atualmente, percebemos que a grande maioria das nações apresenta dívidas elevadas e fortes desequilíbrios fiscais, exigindo uma reestruturação fiscal dos governos nacionais, cortando gastos públicos, reduzindo investimentos e evitando desperdícios.

Neste ambiente onde as nações estão assoladas com dificuldades fiscais, a pergunta que todos nós nos fazemos é onde os governos nacionais deveriam começar os cortes dos gastos neste momento de reestruturação fiscal? Afinal, todos falamos, cotidianamente, das dificuldades fiscais e dos desperdícios dos governos e, ao mesmo tempo, exigimos ajuste estrutural, mas evitamos pagar a conta deste desequilíbrio fiscal, queremos, sempre, que o ajuste recaia sobre os ombros alheios, como nos ensinou Jean Paul Sartre “o inferno é os outros”.

No caso brasileiro, é importante destacar que vivemos numa sociedade marcada por desigualdades estruturais, profundamente arraigadas no processo de formação econômica e social do país, neste caso, seria prudente começarmos esta reestruturação estrutural diminuindo os inúmeros privilégios de pequena parte da população nacional, como a redução dos subsídios e das isenções fiscais que totalizam mais de 600 bilhões de reais. Se o governo conseguir reduzir em apenas 30% deste montante, teríamos recursos para melhorar a infraestrutura nacional, aumentando a capacidade produtiva e alavancando os gastos em educação que garantiriam, no futuro, grandes retornos para sociedade brasileira.

Sabemos que somos um dos três únicos países do mundo, além de Estônia e Letônia, que não tributam dividendos distribuídos a acionistas de empresas, uma excrescência criada nos anos 1990 que foi colocada para beneficiar poucos iluminados e detentores de grande capacidade de influência política, criando mais uma deturpação do sistema tributário nacional.

Precisamos reestruturar o sistema tributário nacional, fortemente concentrado no consumo da população em detrimento da renda, com isso, percebemos que os detentores de grandes recursos ganham fortunas e pagam poucos tributos e, em contrapartida, grupos de classe média e classe média baixa são fortemente tributados, criando, desta forma, um monstrengo tributário que concentra renda no topo da pirâmide social e onera fortemente os grupos menos abastados, perpetuando as desiguais que reinam na sociedade brasileira.

Precisamos falar ainda dos recursos monetários enviados para as emendas parlamentares que perpassam mais de 50 bilhões de reais, que geram vantagens adicionais ao Legislativo e um espaço crescente de desperdícios de recursos orçamentários, corrupção sistêmica e servem para limitar a capacidade do governo federal.

Neste momento, os problemas fiscais são reais e precisam ser encarados pela sociedade. Precisamos ter maturidade para escolhermos caminhos estruturais, antes de limitar as políticas públicas que geram benefícios para milhões de cidadãos, precisamos reduzir os privilégios de poucos, aqueles que criticam as políticas públicas e, ao mesmo tempo, vivem abraçados nos subsídios, nas isenções e nas taxas escorchantes de juros.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Maternidade em baixa traz desafios para o país, por FSP.

0

Taxa de fecundidade brasileira cai ao menor nível desde 1940; impactos exigirão mais do Estado em políticas de seguridade

Editorial – Folha de São Paulo, 01/07/2025

A redução na taxa de fecundidade (o número médio de filhos que uma mulher teria ao longo de sua vida reprodutiva) está relacionada ao progresso do estrato feminino. O fenômeno indica que mulheres têm mais acesso a informação, a métodos contraceptivos, aos estudos e ao mercado de trabalho.

Tal aspecto positivo, no entanto, vem acompanhado de desafios não triviais, como o impacto nas contas previdenciárias. Trata-se de tendência global, e dados do Censo 2022 divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que o Brasil não é exceção.

Em 2022, a taxa foi de 1,55 filho por mulher. Esse patamar é o menor da série histórica, iniciada em 1940, e está abaixo do chamado nível de reposição (2,1 filhos por mulher) —a média necessária para que o tamanho da população se mantenha estável. A taxa começou a cair a partir de 1960, quando era de 6,28.

Também verificou-se elevação na idade média na qual mulheres tornam-se mães, de 26,3 anos para 26,8 anos entre 2000 e 2010, até chegar a 28,1 anos em 2022.

Ademais, aumentou a porcentagem de pessoas do sexo feminino na faixa entre 50 e 59 anos que não têm filhos: 16,1% em 2022, ante 11,8% em 2010 e 10% em 2000.

A taxa de fecundidade no Brasil (1,55) é igual à da média da OCDE. Mas, diferentemente das nações mais ricas da entidade, o país não aproveitou a janela de oportunidade do bônus demográfico para se desenvolver. Essa janela, agora, está se fechando.

Segundo estudo da organização, 2064 marcará o ano na história moderna em que pela primeira vez o índice global de mortalidade superará o de natalidade.

O resultado é a queda da parcela economicamente ativa da população, o que tende a implicar encarecimento inflacionário da mão de obra, acompanhada por alta de despesas com aposentadorias, pensões e saúde, sobrecarregando as contas públicas.

No Brasil, os pagamentos do INSS, que até caíram após a reforma de 2019, alcançaram 8% em 2024 e a projeção oficial é de alta até 10% por volta de 2050, evidenciado a necessidade de novos ajustes no sistema, nos regimes de servidores civis e militares e de novas formas de contribuição alinhadas a variadas modalidades de trabalho.

Será necessário ainda fortalecer o SUS, em particular nas políticas voltadas para a população mais idosa, repensar normas de imigração e mitigar o encolhimento da força de trabalho. Todas essas deixaram de ser questões a serem tratadas apenas em um futuro distante.

 

Como se formam os golpistas? por Eugênio Bucci

0

Eugênio Bucci – A Terra é Redonda – 27/06/2025

Fora o acerto da lei, o que vemos hoje na corte não é bom. Algo na voz dos réus, na sua maneira de olhar ou de desviar o olhar, deixa ver que, para eles, o golpismo é um ato de bravura

1.

Pela primeira vez na história do Brasil, militares de alta patente, acompanhados de um ex-presidente da República, tomam assento no banco dos réus. Eles são acusados de organização criminosa armada e tentativa de abolição violenta do Estado democrático de direito, entre outros crimes. A notícia é tão inusitada que parece boa, mas, na verdade, é apenas um começo.

Por certo, o processo que corre no Supremo Tribunal Federal reluz pelo ineditismo. Diferentemente do que se via no passado, o Brasil não deixa mais por isso mesmo. Agora, há um esforço para responsabilizar os que atentaram contra a normalidade democrática. As coisas avançam semana a semana. Os integrantes do “núcleo crucial” da trama, conforme o nomeou a Procuradoria Geral da República, tiveram de comparecer aos interrogatórios. Agora, houve uma acareação momentosa entre o tenente-coronel Mauro Cid e o general Walter Braga Netto.

O andamento, contudo, é difícil. Para atrapalhar os ritos, surgiram lances de clamoroso cinismo. O réu Jair Bolsonaro, enquanto era interrogado, deu de convidar o ministro Alexandre de Moraes, que conduzia a sessão, para figurar como vice em sua chapa para a Presidência da República em 2026. O tom foi jocoso: piada à queima-roupa. O magistrado apenas sorriu, num clima de quase descontração judicial, e, no seu linguajar característico, declinou. Pilhéria indeferida.

O que nos aguarda? O processo vai transcorrer em risadas? Vai transitar em julgado amaciado? Vai dar cadeia? Virá uma anistia? Uma pizza? Não há como saber. O enredo que nos trouxe até aqui, misturando degradação institucional, escárnio escrachado e realismo fantástico, tem se mostrado imprevisível.

Primeiro, tentou-se derrubar a República numa tramoia que incluiu acampamentos à frente de quartéis, fake news torrenciais sobre as urnas eletrônicas, depredação dos palácios dos três poderes e um plano para assassinar o chefe de Estado, seu vice e um ministro do Supremo. Depois, no julgamento, veio o espetáculo acintoso. Os acusados não se envergonham do que é vergonhoso. Desdenham da autoridade judiciária. Agem como se estivessem acima das leis dos comuns.

2.

O historiador Carlos Fico estuda há décadas “o desprezo dos militares pela política, seu autoentendimento como superiores aos civis”. O retrato que ele nos entrega dessa história, no livro Utopia autoritária brasileira: Como os militares ameaçam a democracia brasileira desde o nascimento da República até hoje (Editora Planeta do Brasil), é desalentador. A virada de mesa tem sido uma constante das Forças Armadas. Trata-se de um vício que se reproduz impunemente.

“Todas as crises políticas brasileiras caracterizadas por ruptura da legalidade constitucional (vou denominá-las ‘crises institucionais’) foram causadas por militares”, afirma Carlos Fico. “As Forças Armadas violaram todas as constituições da República. (…) Indisciplina e subversão marcam a trajetória dos militares no Brasil. Eles foram responsáveis por todas as crises institucionais do país desde a Proclamação da República e jamais foram efetivamente punidos”.

O livro demonstra que, neste país, o golpe compensa – mesmo quando fracassa. Com a palavra, o historiador: “Quando afirmo que nunca houve, no Brasil, a efetiva punição de militares golpistas, me refiro às anistias que foram aprovadas pelo Congresso Nacional beneficiando os oficiais envolvidos nas tentativas fracassadas de 1904, 1922, 1924, 1956, 1959 e 1961. É claro que não cabe falar em punição no caso dos golpes bem-sucedidos (1889, 1930, 1937, 1945, 1954, 1955 e 1964)”.

Por que “não cabe falar em punição no caso dos golpes bem-sucedidos”? Muito simples: quando o golpe dá certo, o ordenamento jurídico que poderia puni-lo não fica de pé para aplicar a lei. Passa a valer o inverso. Por exemplo: com a tomada do poder pelas tropas em 1964, quem fixou residência na prisão não foram os golpistas, mas os que se opunham à quartelada. Eis por que a legislação atual, com acerto, estabelece como crime a tentativa de golpe, não o golpe consumado. A tentativa basta para configurar o tipo penal.

Fora o acerto da lei, o que vemos hoje na corte não é bom. Algo na voz dos réus, na sua maneira de olhar ou de desviar o olhar, deixa ver que, para eles, o golpismo é um ato de bravura. A fixação maníaca na ideia de assalto ao poder constitui um traço cultural que se mantém intacto no ideário das tropas. O que explica essa permanência? De onde vem isso?

A resposta lógica aponta para as escolas em que se formam os oficiais. Se a formação fosse outra, a mentalidade da farda já seria diferente. Será razoável que o currículo das academias das Forças Armadas e das Polícias Militares fique inteiramente a cargo da caserna? Ou será que isso deveria ser da competência da sociedade e do Estado Democrático de Direito?

De forma respeitosa, dialogada e serena, é preciso enfrentar a questão. Ou o Brasil encara essa agenda espinhosa ou talvez não tenhamos como sair dessa espiral em que o populismo de coturnos, quando vai ao banco dos réus, vai em trajes de galhofa.

Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica).

 

Quem paga a conta? por Ederson Duda

0

Ederson Duda – A Terra é Redonda – 28/06/2025

Enquanto a justiça tributária permanecer refém de privilégios, a democracia brasileira seguirá manca, incapaz de romper o ciclo perverso que transforma desigualdade em destino. É preciso coragem política para confrontar os mitos meritocráticos que blindam a riqueza e estrangulam o futuro coletivo

1.

A sociedade brasileira é marcada historicamente por desigualdades estruturais, profundamente arraigadas no processo de formação econômica e social do país. No centro da reprodução dessas desigualdades encontra-se o conflito distributivo, entendido não apenas como disputa por parcelas da renda nacional, mas como expressão material das lutas de classe em torno da apropriação da riqueza socialmente produzida.

A forma como o sistema tributário brasileiro está estruturado aprofunda ainda mais as desigualdades sociais. A carga tributária regressiva, incidindo fortemente sobre o consumo, penaliza proporcionalmente mais os mais pobres, enquanto os estratos superiores da distribuição de renda são beneficiados por isenções, deduções e pela baixa tributação sobre lucros, dividendos e grandes patrimônios.

Em outras palavras, quem tem menos paga mais, e quem concentra renda e riqueza encontra formas legais de minimizar sua contribuição ao financiamento das políticas públicas (Gobetti; Odair, 2022; Medeiros, 2016; Souza, 2018).

O imposto sobre grandes fortunas, previsto desde a Constituição de 1988, jamais foi regulamentado, enquanto isenções como a de lucros e dividendos (vigente desde 1996) persistem mesmo diante de evidências de sua iniquidade. O resultado é a consolidação de um modelo tributário que penaliza os mais pobres e protege os mais ricos.

Segundo estudo do Ipea com base em dados da Receita Federal, 800 mil contribuintes que ganham em média R$ 449 mil por ano pagam uma alíquota do Imposto de Renda (IR) de no máximo 14,2% – valor equivalente ao que paga um trabalhador assalariado ganhando R$ 6 mil mensais. [I]

De maneira desproporcional, conforme a renda aumenta, a alíquota cai e, com isso, quem ganha R$ 1 milhão paga 13,6%, quem ganha R$ 5 milhões paga 13,2%, e quem recebe R$ 26 milhões paga apenas 12,9%. Trata-se, portanto, de uma clara regressividade, na qual a renda do capital é tributada muito menos que a do trabalho.

A Emenda Constitucional nº 132/2023, que institui uma ampla Reforma Tributária sobre o consumo, representa um avanço institucional relevante ao simplificar tributos e unificar regras entre União, estados e municípios. No entanto, ela mantém inalterado o núcleo regressivo da tributação brasileira: não altera significativamente a estrutura de impostos sobre renda, patrimônio e riqueza.

A não inclusão da tributação sobre lucros e dividendos, assim como a falta de medidas robustas sobre heranças e grandes fortunas, revela os limites políticos da reforma diante da correlação de forças no Congresso Nacional – cuja maioria se articula em frentes conservadoras contra o aumento do imposto sobre quem recebe mais.

Essa configuração faz com que os mais pobres e as classes médias acabem financiando proporcionalmente mais o Estado, em contraste com os muito ricos – que, além de concentrarem a renda, usufruem de mecanismos legais para escapar da tributação direta.

Segundo dados do Ipea, os tributos indiretos – como ICMS, IPI, PIS/Cofins – representam uma carga significativamente maior para os 40% mais pobres, consumindo cerca de 30% de sua renda, enquanto representam apenas cerca de 10% da renda dos 10% mais ricos, evidenciando o caráter regressivo da tributação sobre consumo (Soares; Zockun; Mendonça, 2022).

Além disso, os tributos sobre bens e serviços respondem por 40,2% da arrecadação tributária nacional, comprometendo cerca de 21,2% da renda dos mais pobres, ao passo que os 10% mais ricos destinam apenas 7,8% de sua renda a esse tipo de tributação. [II]

Nesse sentido, a proposta de reforma do Imposto de Renda apresentada pelo governo federal em 2025, que amplia a isenção até R$ 5.000 mensais e institui uma alíquota mínima para rendas superiores a R$ 50 mil, [III] ainda que tímida diante das distorções estruturais do sistema, representa um avanço por contrariar a hegemonia fiscal orientada pela defesa dos interesses do capital financeiro e das elites patrimoniais.

A proposta institui uma alíquota mínima para os super-ricos – menos de 0,2% dos contribuintes –, atuando diretamente sobre o núcleo do conflito distributivo no Brasil, ao corrigir um sistema historicamente regressivo que afeta principalmente os trabalhadores pobres e as classes médias. Enquanto os mais pobres se beneficiam indiretamente, via maior capacidade de consumo e da ampliação das políticas públicas, para as classes médias a medida representa uma ampliação da faixa de isenção, a correção de distorções da tabela e um ganho real de renda. A proposta, assim, contribui para reequilibrar um sistema que há décadas favorece a concentração de renda no Brasil.

2.

Esse desequilíbrio tributário não é apenas técnico, mas profundamente político. A resistência à reforma tributária progressiva, historicamente liderada por setores empresariais e respaldada por parcelas expressivas da classe média, revela um campo de disputa central do conflito distributivo no Brasil. Ainda que as classes médias não estejam no topo da pirâmide, sua rejeição à tributação progressiva expressa um alinhamento ideológico com as frações superiores da elite econômica – seja pelos valores meritocráticos, seja pela defesa do patrimônio herdado ou acumulado.

Fato peculiar na sociedade brasileira é que, desde pelo menos os anos de 1970, o conflito distributivo tem ocorrido principalmente entre as classes médias e as classes populares (Morgan, 2018). Nesse período, o sucesso no aumento da participação da riqueza social por parte de uma classe tem dependido do insucesso da outra. Enquanto isso, os mais ricos têm conseguido manter sua parte na riqueza social praticamente inalterada ao longo do tempo (Souza, 2018).

Essa dinâmica se evidenciou durante os governos petistas (2003-2016), quando o conflito distributivo assumiu uma nova configuração. A ampliação do acesso a bens de consumo, serviços públicos e políticas sociais e afirmativas – como a valorização do salário mínimo, a expansão do crédito, os programas de transferência de renda, as cotas raciais das universidades e a inclusão educacional – proporcionou mobilidade social ascendente às classes populares.

No entanto, à medida que a base da pirâmide social passou a acessar bens e serviços antes exclusivos das classes dominantes, as classes médias vivenciaram um processo de estagnação relativa, tanto em termos de renda como de prestígio social. Já os mais ricos mantiveram sua apropriação da renda praticamente intocável – chegando ao patamar de 30% entre 2014-2016 (Morgan, 2018; Souza, 2018).

As classes médias, ao perceberem que o seu lugar na hierarquia social estava sendo tensionado, reagiram politicamente. Imbuídas de valores meritórios, passaram a atribuir às políticas sociais e afirmativas a responsabilidade pelos obstáculos à sua reprodução social. A narrativa que sustentou essa reação baseava-se na ideia de que os mais pobres, ao serem favorecidos pelas políticas de governo, estavam “furando a fila” da mobilidade social. Ou seja, teriam ascendido não por mérito próprio, mas pela intervenção do Estado no ordenamento social.

A reação às políticas sociais e afirmativas dos governos petistas encontrou sua expressão mais visível nas manifestações de 2015 e 2016 pelo impedimento de Dilma Rousseff. A formação de uma coalizão conservadora teve como objetivo reverter os ganhos das classes populares em defesa de um padrão de acumulação capitalista altamente excludente.

A luta contra a corrupção, nesse contexto, operou como um expediente tático das classes médias, historicamente utilizado de forma seletiva (Martucelli, 2016). As políticas de austeridade aplicadas pelos governos Temer e Bolsonaro – como a reforma trabalhista, a reforma da previdência e a PEC do teto dos gastos – aprofundaram o enfraquecimento do poder de barganha dos trabalhadores, sem, no entanto, eliminar a corrupção (Rugitsky, 2016; Krein; Oliveira; Figueiras, 2019).

Nesse cenário de regressão institucional e fortalecimento de agendas regressivas, a disputa em torno da tributação das grandes fortunas se apresenta como um importante campo de disputa sobre os rumos da sociedade.

3.

A atual proposta de taxação de grandes fortunas, reintroduzida com força no debate político desde a pandemia e reanimada com o governo Lula III, reacende o conflito distributivo em sua forma mais explícita. A resistência dos setores dominantes e segmentos das classes médias à criação de um sistema fiscal mais progressivo revela os limites da solidariedade de classe no Brasil.

Embora o discurso público seja, em parte, favorável à justiça social, verifica-se forte adesão a ideias como “taxar grandes fortunas pode inviabilizar investimentos”, “incentivar a fuga de capitais” ou “punir o sucesso individual”.

O paradoxo aqui é que a própria preservação do modelo regressivo de tributação alimenta a crise fiscal do Estado e o colapso da capacidade de provisão pública, o que, por sua vez, reforça a insatisfação social e legitima agendas privatistas. Temos, assim, um círculo fechado: a desigualdade produzida pela estrutura tributária gera descontentamento nas classes médias, que respondem apoiando projetos regressivos, os quais, por sua vez, reforçam o problema original.

O dilema social que se impõe às classes médias está no confronto entre a defesa da ordem democrática baseada em direitos e a manutenção dos seus privilégios de classe, baseada em seus valores meritocráticos. De um lado, sustentar os valores democráticos requer enfrentar os interesses imediatos dos mais-ricos e aceitar transformações estruturais que afetem seu modo de vida.

De outro, insistir na ideologia meritocrática e na seletividade moral do discurso anticorrupção significa legitimar a superexploração e o privilégio de alguns em detrimento de muitos. Em última instância, o rumo do conflito distributivo dependerá da capacidade das classes populares de se organizarem politicamente e alterarem a correlação de forças, de modo a construir uma nova lógica de apropriação da riqueza social.

Diante desse cenário, iniciativas como o Plebiscito Popular por Justiça Tributária, organizadas por movimentos sociais em 2025, representam uma grande oportunidade de romper com a naturalização da desigualdade tributária e avançar no debate sobre a taxação de grandes fortunas e a ampliação da isenção do Imposto de Renda.

A pressão de baixo para cima, combinada à articulação entre movimentos sociais e outros atores políticos, é uma via concreta para disputar os sentidos da solidariedade no Brasil e transformar um sistema tributário historicamente injusto.

Ederson Duda é doutorando em ciências sociais na Unifesp.

Referências

COSTA, Gilberto. Estudo do Ipea aponta injustiça tributária no Brasil. Agência Brasil, 29/10/2024.

GOBETTI, Sérgio Wulff; ORAIR, Rodrigo Octávio Orair. Tributar lucros e dividendos: efeitos potenciais sobre a progressividade e a arrecadação do IRPF no Brasil. Texto para Discussão, n. 2554. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea, 2020.

KREIN, José Darin; OLIVEIRA, Roberto Véras; FILGUEIRAS, Vitor Araújo. Reforma trabalhista no Brasil: promessas e realidade. Campinas: Editora Curt Nimuendajú, 2019.

MARTUSCELLI, Danilo. As lutas contra a corrupção nas crises políticas brasileiras recentes. Crítica e Sociedade: revista de cultura política, Uberlândia, v. 6, n. 2, 2016.

MÁXIMO, Wellton. Entenda a reforma do Imposto de Renda enviada ao Congresso. Agência Brasil, 19/03/2025.

MEDEIROS, Marcelo. Meio século de desigualdades no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 31, nº 90, 2016.

NASCIMENTO, Houldine. Tributos sobre o consumo dominam arrecadação no Brasil. Poder 360, 06/03/2024.

SOARES, Sergio Gobetti; ZOCKUN, Carlos; MENDONÇA, Marcos. Estimativas de alíquotas efetivas da tributação indireta no Brasil: evidências de regressividade e implicações para o debate distributivo. Texto para Discussão, n. 2823. Brasília: Ipea, 2022.

SOUZA, Pedro H. G. Ferreira de. Uma história da desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil, 1926-2013. São Paulo: Hucitec: Anpocs, 2018.

RUGITSKY, Fernando. Milagre, miragem, antimilagre: a economia política do governo Lula e as raízes da crise atual. Revista Fevereiro, n°. 9, págs. 40-50 2016.

O drama do Brasil de hoje, por Luis Felipe Miguel

0

Luis Felipe Miguel – A Terra é Redonda – 27/06/2025

Congresso corrupto cresce diante de governo apático

1.

A derrota de ontem confirmou, de maneira cabal, o que já sabíamos. O eixo do poder mudou no Brasil. A presidência da República está enfraquecida e mergulhamos em um parlamentarismo sui generis, em que o Congresso manda, mas não assume responsabilidades. É o pior dos mundos.

Lula e o PT sempre atuaram partindo da premissa de que a presidência era tudo o que importava. A política brasileira era como o quadribol, o jogo dos livros de Harry Potter, em que as equipes podem fazer pontos à vontade, mas ganha quem captura o pomo de ouro.

Câmara, Senado, governos estaduais, nada disso tinha peso diante da presidência. Por isso, os petistas se coligavam com qualquer partido, dando votos para ampliar suas bancadas, e cediam governos para os Sérgios Cabrais da vida, desde que garantissem a eleição do presidente.

Isto mudou, está claro que mudou, não é de hoje – vem do segundo mandato de Dilma Rousseff, aprofundou-se com Jair Bolsonaro. Mas Lula e o PT continuam desnorteados.

Os gângsteres que comandaram a derrota dos três decretos sobre o IOF, Hugo Motta e Davi Alcolumbre, chegaram aos seus cargos com apoio do governo. No entanto, estão prontos a inviabilizar este mesmo governo, sem ligar para as consequências para o país.

Davi Alcolumbre depois deu entrevista dizendo que os parlamentares “estão há dois anos e meio” ajudando Lula. E que o problema foi que o decreto do IOF “começou mal” e “foi rapidamente rechaçado pela sociedade brasileira”. Uma aula de cinismo.

O rentismo não é “a sociedade brasileira”. Os incentivos fiscais de R$ 197 bilhões, que os consumidores pagarão na energia elétrica, estes certamente são rechaçados pela sociedade brasileira, o que não impediu o Congresso de derrubar os vetos presidenciais (incluindo os votos da ampla maioria do PT). Uma medida com as implicações do aumento do IOF não é descartada sem discussão e sem negociação, como ocorreu agora. O Congresso não ajuda o governo, muito menos ajuda a sociedade: ele achaca o governo e vira as costas para o povo.

2.

Não é “polarização política”, que ocorre quando a oposição tenta bloquear as ações do presidente a fim de desgastá-lo, como os republicanos tentaram fazer com Joe Biden, por exemplo. Aqui, o caso é outro. O Congresso, quer dizer, o Centrão, que é sua espinha dorsal, quer simplesmente garantir seu domínio. Quer controlar o dinheiro e não sofrer as consequências de suas próprias decisões.

É claro que cortar um aumento de imposto que atingiria o topo da pirâmide satisfaz os patrocinadores dos nossos egrégios representantes. A possibilidade de usar o “desequilíbrio fiscal” para mexer no piso constitucional de Educação e Saúde é outro bônus. Mas a retaliação veio mesmo porque o governo Lula teve a ousadia de responsabilizar os parlamentares pela decisão que eles mesmos tomaram, relativa à conta de luz.

Como o governo vai reagir? Pelo que se lê na imprensa, nem vai reagir.

Embora a decisão seja provavelmente inconstitucional, já que o decreto era relativo a uma atribuição clara do Executivo, o Planalto reluta em levar a questão ao Supremo. Não quer “piorar a relação com o Legislativo”, não quer melindrar Hugo Motta e Davi Alcolumbre.

É um governo que apanha e não reage, que está sempre esperando a boa-fé, a compreensão, o cumprimento de acordos, quem sabe o sentido cívico do Centrão.

Demitir os ministros dos partidos de direita que votaram de forma praticamente unânime contra o governo? Certamente não.

Na Câmara, o PP, do ministério dos Esportes votou unanimemente pela derrubada dos decretos. No União Brasil, do ministério do Turismo, foram 97% – dois deputados não registraram voto. Mesma coisa nos Republicanos, do ministério dos Portos, em que o índice chegou a 95%; no MDB, dos ministérios das Cidades, dos Transportes e do Planejamento, foram 93%.

No PSD, que controla Minas e Energia, Agricultura e também Pesca, o percentual contra o governo foi menor, de 60% (ainda assim majoritário). Mesmo escore do PSB, que tem a vice-presidência e os ministérios da Indústria e Comércio e do Empreendedorismo. No PDT, que controla os ministérios do Desenvolvimento Regional e da Previdência, mantendo este último mesmo depois do escândalo que desgastou o governo, 94% dos deputados votaram pela derrubada dos decretos (um único deixou de votar).

Os ministros podem ficar tranquilos. O cargo é deles, não importa que não entreguem ao governo nada, nem em apoio político, nem em capacidade de gestão.

Lula insiste em cortejar a elite – ou talvez o termo correto seja escória – parlamentar, embora já esteja mais do que claro de que não receberá em troca nenhum tipo de compromisso ou de lealdade. Abriu as torneiras para liberar emendas parlamentares nos últimos dias e o resultado foi o que vimos.

Seria, talvez, o caso de partir para uma estratégia de maior confronto. Exigir algo em troca do que dá. Demitir ocupantes de cargos públicos, cortar a liberação de verbas. Fazer com que exista algum ônus em trair os acordos com o governo.

3.

Por que Lula não convoca uma cadeia de rádio e televisão para explicar ao povo brasileiro o que está acontecendo, para explicar o sentido político da tributação sobre os mais ricos e para responsabilizar o Congresso pela parte que lhe cabe na sua paralisia?

Mas é claro que não vai fazer isso. Tudo que ele faz é ceder mais, mesmo sem nenhum resultado. E cada vez que cede se enfraquece mais e mais.

Lula 3 é a Dilma 2. Desvaloriza seus recursos aos entregá-los a troco de nada.

O governo não tem rumo. Não conseguiu realizar quase nada do pouco que se propunha, nas condições particularmente desafiadoras em que assumiu. E, como dizia Sêneca, “não há vento favorável para quem não sabe para onde vai”.

Lula tem medo de quê? De sofrer um impeachment? Os senhores do Congresso não parecem muito interessados nesta saída. Para eles, é mais interessante ter um governo nas cordas, assumindo o desgaste e entregando tudo para eles.

E Lula quer se arrastar por mais um ano e meio, como um presidente que não preside, que nem sequer luta com os recursos que o cargo ainda lhe dá, para depois, com sorte, se reeleger e termos mais quatro anos deste martírio? Este é o projeto?

A paralisia governativa é, em parte, fruto da captura do orçamento pelo poder legislativo. Em parte, fruto da heterogeneidade da coalizão que o presidente tenta pilotar. Em parte, fruto do despreparo de muitos gestores, colocados nos cargos para satisfazer pressões de grupos ou para simbolizar visibilidades identitárias.

Mas a paralisia política, esta é inequivocamente de responsabilidade de Lula e da cúpula de seu governo.

Que me desculpem os incondicionais do lulismo: o presidente que elegemos em 2022 (e que, tudo indica, teremos que lutar para reeleger ano que vem) não está à altura do momento histórico.

A situação que vivemos é descrita pelo vocabulário científico com a expressão “no mato sem cachorro”.

Uma parte da Ciência política brasileira insiste em dizer que está tudo indo bem, muito bem. O mandato de Jair Bolsonaro, dizem alguns, foi a prova da “resiliência” de nossas instituições. Mesmo um pesquisador sério como Fernando Limongi vem a público reclamar que “há uma tendência de desrespeitar o Legislativo como uma expressão da sociedade”. Segundo ele, “nosso sistema permite, pelo Congresso, que a sociedade seja ouvida”.

É o formalismo que equivale voto a representação. Sim, todo mundo que está no parlamento foi eleito. Mas isto não impede que eleitos se distanciem de eleitores, que expressem pouquíssimo os interesses da base, que os manipulem, que sirvam apenas aos lobbies poderosos e a seus próprios apetites.

O sistema está funcionando, sim, mas para garantir a continuidade desse estado de coisas – uma sociedade desigual e atrasada, uma população desprovida de poder, uma democracia de fachada em que as vontades das maiorias podem ser desprezadas impunemente. A destruição do presidencialismo foi a pá de cal na esperança de uma mudança por dentro.

Como escreveu elegantemente Wanderley Guilherme dos Santos, logo depois que o golpe de 2016 acelerou este processo, o projeto é edificar uma “ordem de dominação nua de propósitos conciliatórios com os segmentos dominados”.

E o povo brasileiro assiste bestializado (para usar a expressão imortal de Aristides Loboa mais um capítulo da derrocada de seu país, narcotizado por fake news, bets, rede sociais, igrejas, empreendedorismo, o diabo a quatro.

Um Executivo débil, um Legislativo corrupto, um Judiciário negocista, umas Forças Armadas golpistas, uma classe dominante predatória. Uma grande parte da pequena esquerda envolvida em quizílias secundárias, incapaz de definir prioridades, ou então empolgada com as migalhas de poder, com os cargos que sobram para ela. É difícil vislumbrar qualquer solução dentro das instituições. É difícil ver alguma saída que não passe por uma revolução.

Claro que, da mesma maneira como os golpes de hoje podem prescindir de protagonistas fardados e de tanques na rua, a revolução de que estou falando não precisa passar por alguma tomada do Palácio de Inverno. Mas é necessária uma transformação “revolucionária” do padrão histórico de relacionamento do Estado brasileiro com as elites e com as classes populares. Uma transformação que é implausível no contexto atual, em que os sistemas de freios e contrapesos servem, na prática, para frear qualquer contestação ao açambarcamento do poder pela minoria que o detém.

Precisamos de uma revolução, mas não há quem a faça. Este, em poucas palavras, é o drama do Brasil de hoje.

Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil (Autêntica)

Conjunturas

0

Vivemos momentos de grandes conflagrações na sociedade internacional, com repercussões em todas as nações, gerando confrontos, violências generalizadas, crescimento dos movimentos migratórios, conflitos políticos, impasses econômicos, guerras comerciais e tarifárias, aumento substancial dos gastos militares, violências verbais e muitas inverdades travestidas em narrativas que aumentam as incertezas, os medos e a desesperança.

Neste cenário, percebemos que as instituições internacionais, criadas no pós segunda guerra mundial, vem sendo destruídas sistematicamente todos os dias, agressões ás leis internacionais em prol dos interesses das nações mais desenvolvidas, conflitos militares crescem diuturnamente, gerando mais instabilidades e o crescimento constante daquilo que chamamos de individualismo e a diminuição da solidariedade humana entre os povos, onde cada nação busca seus interesses imediatos, seus ganhos monetários ou políticos, olhando apenas para seus interesses, deixando de lado outros países, outros povos, outras culturas e seus interesses imediatos, desta forma, não é difícil percebermos o aumento dos conflitos militares, o incremento dos dispêndios militares e o incremento da cultura da destruição, da violência e da devastação da natureza como forma de garantir ganhos imediatos e se esquecendo dos efeitos devastadores do longo prazo.

Neste cenário de incertezas e instabilidades crescentes, percebemos uma escalada militar entre nações, países que sempre se caracterizaram pelo pacifismo estão canalizando grandes recursos orçamentários para alavancar a defesa interna. A Europa é um exemplo cabal da insanidade militar, inicialmente criam uma ameaça externa para justificar seus gastos militares e, ao mesmo tempo, reduzir seus dispêndios nas políticas públicas exitosas que sempre garantiram na sociedade uma qualidade de vida maior para seu povo, estas políticas públicas exitosas estão na mira dos governantes e, usam a ameaça externa para legitimar a redução dos gastos sociais e, em contrapartida, defender os elevados gastos militares que beneficiam poucos grupos privilegiados.

A conjuntura mundial está envolta em grandes volatilidades e incertezas crescentes que trazem benefícios para os grupos detentores do capital financeiro internacional, são eles que constroem a agenda econômica das nações, elegem os congressistas, conseguem passar matérias que geram grandes privilégios e isenções fiscais e tributárias, usam seu lobby para evitar a tributação dos grupos mais abastados, exigem redução dos repasses monetários para as políticas públicas e, ao mesmo tempo, exigem somas altíssimas para rolar a dívida das nações, como percebemos no caso brasileiro que, com uma taxa de juros estratosférica, Selic 15%, exigem uma transferência de quase 1 trilhão de reais da sociedade para o bolso dos rentistas, dos herdeiros e dos financistas, defensores da falácia da meritocracia.

No caso brasileiro, percebemos uma conjuntura interessante e muito atípica, de um lado percebemos uma gritaria geral falando do descontrole inflacionário, que atingiu 4,73% ao ano nos últimos dois anos, mesmo sabendo que nos últimos quatro anos a inflação ficou na casa do 6,17% e abaixo da média dos últimos trinta anos (6,5% ao ano). O desemprego está na casa dos 6,6% no primeiro semestre, a informalidade caiu para 37,9%, menor na série histórica iniciada em 2015. A desigualdade de renda medida no índice de Gini foi a mais baixa no ano passado e o crescimento econômico gira em torno de 3% ao ano e, mesmo assim, percebemos que para os donos do dinheiro a conjuntura econômica é sempre desastrosa e usam seus poderes para degradar as condições econômicas e eleger seus apaniguados.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Univ

Os bastardos de Hayek, por Amaro Fleck

0

Amaro Fleck – A Terra é Redonda – 10/06/2025

Comentário sobre o livro, recém-lançado, de Quinn Slobodian

“Este livro mostra que muitas das manifestações contemporâneas da Extrema Direita surgiram dentro do neoliberalismo, e não em oposição a ele. Elas não propuseram uma rejeição total do globalismo, mas sim uma variedade dele — uma que aceita a divisão internacional do trabalho, com fluxos transfronteiriços robustos de mercadorias e até acordos comerciais multilaterais, ao mesmo tempo em que endurece os controles sobre certos tipos de migração. Por mais repulsiva que sua política possa parecer, esses pensadores radicais não são bárbaros às portas do globalismo neoliberal, mas sim filhos bastardos dessa própria linha de pensamento. O suposto choque de opostos é, na verdade, uma briga de família.” (Quinn Slobodian, p. 24)

A tese central do novo livro do historiador canadense Quinn Slobodian afirma não haver uma ruptura entre o neoliberalismo da Sociedade Mont Pèlerin e a extrema direita contemporânea. Tampouco se trata de uma mera continuidade. Como o próprio título indica, essa extrema direita seria uma espécie de filha bastarda dos neoliberais clássicos. Em outras palavras, uma descendência, mas não uma descendência querida ou deliberada.

 

Quinn Slobodian, professor de história internacional da Boston University, foca sobretudo na “nova fusão” [new fusionism] ocorrida no começo da década de 1990 entre os paleolibertários e os paleoconservadores. Essa aliança forma a matriz do pensamento de extrema direita contemporâneo e se cristaliza numa organização, o John Randolph Club.

Trata-se de uma “nova” fusão pois ela remete a outra: a original é aquela ocorrida na década de 1950 por meio de uma aliança entre libertários e tradicionalistas promovida sobretudo pela National Review sob direção de William F. Buckley Jr, fusão essa responsável pela criação do tripé do conservadorismo norte-americano tal como o conhecemos: tradicionalismo moral, liberdade econômica e forte defesa nacional.

A aliança paleo

Os paleolibertários são, basicamente, os anarcocapitalistas com posturas tradicionalistas em questões de costumes e de gosto, ou, em outras palavras: eles sonham com mercados livres em sociedades opressivas, marcadas pela coação nos mínimos detalhes das vidas de seus indivíduos, nas quais os defensores da ordem e dos bons costumes podem decidir com quem eles podem se deitar, no que podem acreditar ou quais substâncias podem consumir (seus principais expoentes são Murray Rothbard, Lew Rockwell e Hans-Hermann Hoppe).

Os paleolibertários nada tem de antigos, eles são resultado de uma cisão tardia no movimento libertário americano, uma contraposição à sua versão clássica minarquista com sua defesa da menor intervenção possível do Estado tanto nos costumes quanto na economia (pense-se, sobretudo, em Robert Nozick). Além disso, os paleolibertários são antiigualitários: para eles as diferenças entre raças e entre sexos (eles recusam a própria concepção de gênero) estão inscritas na própria natureza humana, e não podem e nem devem ser mitigadas.

Já os paleoconservadores, por sua vez, são tradicionalistas que se opõem ao intervencionismo militar (seus protagonistas são Pat Buchanan, Thomas Fleming e Paul Gottfried). Eles defendem um isolacionismo nacionalista. Eles também são resultado de uma cisão tardia no movimento conservador americano, uma contraposição ao neoconservadorismo e sua promoção militarista da democracia mundo afora, assim como uma reação contra a adoção, por parte dos neocons, de políticas com intenções de promoção da igualdade racial.

Contra isso, os paleoconservadores querem resgatar um velho conservadorismo, cético em relação às intervenções externas, simpático a tarifas e outras formas de protecionismo econômico e radicalmente contrário a todas as políticas mitigatórias ou redistributivas, pouco importa se elas busquem reduzir disparidades de classe, raça ou sexo.

O argumento dos três “hards”

Pois bem, o cerne dessa nova fusão é o argumento dos três hards: a defesa de uma natureza humana rígida [hard nature], baseada na tese de que as diferenças humanas são biológicas e imutáveis; de fronteiras rígidas [hard borders], a apregoar livre circulação de capital, mas forte restrição à imigração, sobretudo de seres humanos “inferiores”, com baixo capital humano; e de moeda rígida[hard money], de preferência com um retorno ao padrão-ouro ou diretamente ao uso do próprio metal como moeda, e logo, também, com o fim da mera possibilidade de qualquer flexibilização monetária.

Natureza humana rígida

Esse argumento tem sua gênese em uma guinada biologicista e racializante ocorrida no começo dos anos 1990 no interior do movimento neoliberal, sobretudo por parte de sua vertente mais radical, os agora intitulados paleolibertários. Eles passam a argumentar que políticas redistributivas ou de reparação histórica são contraproducentes e ineficientes pois as desigualdades estão bem assentadas em diferenças inatas e imutáveis entre seres humanos. Nas palavras de Murray Rothbard: “a biologia permanece como uma rocha diante das fantasias igualitárias” [“Biology stands like a rock in the face of egalitarian fantasies”].

Essa tese ecoa em um livro de grande sucesso nessa década, A curva do sino. Inteligência e estrutura de classes na vida americana (1994) [The Bell Curve], de Richard Herrnstein e Charles Murray. Para Herrnstein e Murray, a estratificação social estadunidense é cada vez mais uma estratificação cognitiva, de modo que as pessoas com maior Quociente de Inteligência (QI) desempenham profissões mais valorizadas e consequentemente auferem uma renda maior. A elite se torna assim uma “neurocasta”.

Embora o QI, de acordo com os dois autores de A curva do sino, tenha tanto fatores genéticos inatos quanto aspectos ambientais, o século vinte teria equalizado em boa medida os aspectos ambientais (ao universalizar o acesso às escolas, por exemplo), desse modo, as diferenças preponderantes indicadas na estratificação cognitiva seriam agora genéticas e inatas.

Ainda que Herrnstein e Murray evitem entrar em querelas raciais explícitas, Richard Lynn, em A curva do sino global (2008), extrapola os limites nacionais estadunidenses e aplica a mesma metodologia para discriminar a inteligência entre diferentes países e raças.

Fronteiras rígidas

Isso coaduna com a proposta de fronteiras rígidas, outro dos tópicos da aliança entre os paleos. O livro Nação Estrangeira. Uma Visão de Senso Comum sobre o Desastre da Imigração nos EUA (1995) [Alien Nation], de Peter Brimelow, é a principal referência aqui. Trata-se da ideia de uma etnoeconomia, uma mistura perversa de nativismo racial com racionalidade econômica neoliberal.

Peter Brimelow praticamente já antecipa a tese conspiracionista da “grande substituição” (a saber: estaria em curso uma substituição das populações autóctones por imigrantes e seus descendentes, causada tanto pelos incentivos à imigração quanto pelas maiores taxas de fecundidade dos imigrantes em relação a dos nativos).

De acordo com Peter Brimelow, isso ocorreria tanto por um masoquismo branco (uma espécie de impulso irracional por parte dos brancos, algo como um desejo de se submeter aos grupos que eles antes oprimiram), quanto por um interesse de uma nova classe formada por burocratas, intelectuais, e pelas elites empresariais e das mídias, pois essa nova classe prefere um Estado multinacional fragmentado, carente de patriotismo e prestígio.

As políticas de reconhecimento, notadamente as ações afirmativas, seriam responsáveis pelo surgimento de um “socialismo de pigmentação”, o qual serviria tão somente para a perpetuação do poder das elites. Contra a ideia da imigração como um direito humano (para não falar da muito mais idílica noção de um mundo sem fronteiras), os neoliberais passam assim a defender uma política de imigração como importação de capital humano, vantajosa tão somente, portanto, quando consegue atrair capitais de alta qualidade.

Dinheiro rígido

Por fim, com a proposta do dinheiro rígido os paleos se afastam da ortodoxia neoliberal, oriunda do monetarismo de Milton Friedman, ao defenderem um retorno ao padrão ouro. De acordo com eles, há uma ladeira escorregadia a conduzir do fim do padrão ouro, em 1971, quando o dólar americano deixou de ser conversível no metal, para a completa e absoluta degradação moral. Desde então a ganância estatal não teria mais limites, aumentando os programas sociais, mas também a inflação.

Os goldbugs, entusiastas do ouro, preveem um colapso monetário num futuro próximo, causa de hiperinflação e crise financeira. Esse colapso, no entanto, é também uma oportunidade, pois os “libertários do desastre” disseminam sua ideologia por meio de newsletters de conselhos financeiros (o mais conhecido é o Ron Paul Survival Report), nas quais indicam a compra de ouro como único meio de garantir a segurança patrimonial (mas também toda uma estratégia sobrevivencialista, com o armazenamento de armas, alimentos e com a obtenção de cidadanias alternativas).

Em sua conclusão, Quinn Slobodian comenta como essa nova fusão foi capaz de combinar cultura, economia e política para justificar as hierarquias sociais e se contrapor a qualquer projeto de transformação ou questionamento delas. Por meio de uma mescla entre sociobiologia, psicologia evolutiva e genética eles promoveram uma ideologia baseada num vínculo entre livre-mercado, nacionalismo étnico e determinismo biológico. Essa ideologia foi propagada com sucesso por meio de empreendedores ideológicos interessados em fazer fortuna por meio da venda de pacotes de alarmismo grosseiro com soluções simplistas para tempos incertos.

Uma fuga para a segurança por meio da oferta de estabilidade simbólica e material diante do caos. O presidente argentino Javier Milei é o exemplo emblemático dessa ideologia, e não à toa batiza seus cães mastins com nomes de economistas dessa tradição: Milton [Friedman], Murray [Rothbard], Robert e Lucas [em homenagem a Robert Lucas Jr.].

Mas, afinal, qual a relação entre os neoliberais e os paleos?

O livro de Quinn Slobodian é bem-sucedido em iluminar aspectos teóricos muitas vezes negligenciados da extrema direita contemporânea, em especial ao jogar luz sobre essa aliança entre paleolibertários e paleoconservadores e ao mostrar como ali é gestado parte do terror que nos assalta. Mas deixa a desejar justamente em seu objetivo maior, isto é, especificar qual exatamente é o laço a vincular os neoliberais clássicos aos seus “filhos bastardos”.

Quinn Slobodian oscila entre duas explicações. A primeira, proeminente, busca mostrar como há uma continuidade teórica entre os pensamentos de Mises, Hayek e James Buchanan e as ideias de Rothbard, Murray e Brimelow. É como se os neoliberais clássicos já fossem criptorracistas, entusiastas comedidos de uma volta ao ouro ou defensores envergonhados de uma concepção robusta de natureza humana.

Os filhos bastardos, aqui, apenas revelariam de forma mais explícita traços já presentes, mas ao mesmo tempo ocultos, em seus genitores. Mas isso é, no melhor dos casos, algo bastante forçado. É difícil encontrar algo de bom nas teorias de Mises, Hayek ou James Buchanan, mas nem tudo o que há de mal está lá.

Notem bem: o argumento neoliberal de atrair imigrantes com alto capital humano, ao mesmo tempo em que se repele a migração de trabalhadores pouco qualificados é sem dúvida repugnante, mas é muito diferente da defesa paleolibertária da criação de enclaves brancos ou da tentativa, algo desesperada e com um leve atraso de três ou quatro séculos, de tornar os EUA um território etnicamente homogêneo.

A segunda estratégia, mais interessante, consiste em identificar vínculos institucionais: indicar a participação desses autores na Sociedade Mont Pèlerin (é o caso dos três: Rothbard, Brimelow e Murray), mostrar a reunião dos paleolibertários no Instituto Mises, chamar a atenção para o fato de líderes da extrema direita europeia, sobretudo da maldita AfD, baterem ponto na Hayek Society.

Aqui, na periferia sul do mundo (“como se chegando atrasado, andasse mais adiante”) isso tudo é evidente: afinal um Chicagoboy foi ministro da economia do governo da versão canarinho da alt-right e algo como um sósia disso é agora presidente dos nossos pobres y combalidos hermanos. Enfim, é óbvio que há conexões entre os neoliberais e a extrema direita contemporânea, mas ainda é preciso elaborar teoricamente e interpretar essas conexões.

Amaro Fleck é professor do Departamento de Filosofia da UFMG.

 

Por que o Congresso não gosta de pobres? por Thiago Amparo

0

Porque eles próprios não são pobres e medidas antirricos os afetam pessoalmente

Thiago Amparo, Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

Folha de São Paulo, 25/06/2025

Deveria chocar toda a população, porque obscena, a ofensiva do Congresso contra qualquer discussão séria sobre tributar os mais ricos, ao mesmo tempo em que se lambuza com a liberação das emendas, que dobrou em apenas um dia  —chegou a R$ 1,72 bilhão na terça-feira (24).

Faz sentido olhar como parlamentares antipobres têm buscado reverter a narrativa: fala-se em aumento da tributação, apelando para o senso comum de que se tributa muito no país.

Na prática, a teoria é outra: tributa-se muito os mais pobres, pelo consumo, e a classe média, pelo Imposto de Renda, mas quase nada se tributa dos mais ricos. Ao propor elevar o IOF e tributar investimentos imobiliários e de agronegócio, hoje isentos, o que o governo quer é tributar quem hoje não paga, mas deveria. Isso vale para discutir supersalários da elite do funcionalismo, inclusive do Judiciário, bem como rediscutir renúncias fiscais, temas tabu no Parlamento.

Faria bem ao Congresso, que deveria representar a população, que paga seus salários, e não os lobbies, que o controla, escutar o que pensam os brasileiros.

Pesquisa do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) revela que o eleitorado brasileiro é a favor de tributar mais os ricos e menos os pobres, na contramão do que o Congresso tem feito, inclusive ao pautar de surpresa o PDL sobre o IOF nesta quarta (25). O debate não é sobre diminuir impostos, mas sim diminuir impostos para quem?

O Congresso no Brasil —e em outras democracias desiguais— tende a proteger os mais ricos porque eles próprios e seus amigos não são pobres, porque medidas antirricos os afetam pessoalmente ou por conta de suas redes de influência. São justamente essas hipóteses que um consórcio internacional, do qual a FGV faz parte, tenta verificar empiricamente desde 2024, num projeto sobre reprodução política da riqueza.

Seja qual for a resposta, já sabemos qual pergunta deveria ser feita: por que o Congresso está mantendo os seus amigos na elite brasileira livres de pagar o que os mais pobres já pagam e chamam isso de justiça?

 

A guerra Irã-Israel mostra que o rei (das moedas) está nu, por Marcos de Vasconcellos

0

Ouro, franco suíço e até mesmo a Bolsa brasileira tiveram um desempenho melhor do que o dólar no primeiro choque do conflito, entre os dias 12 e 16 deste mês

Marcos de Vasconcellos, Jornalista, assessor de investimentos e fundador do Monitor do Mercado.

Folha de São Paulo, 23/06/2025

Além de evidenciarem a perda da humanidade em inúmeros aspectos, os recentes ataques entre Israel e Irã evidenciaram que o rei (das moedas) está nu.

O dólar serviu como porto-seguro nas escaladas de conflitos geopolíticos pelo menos desde o acordo de Bretton Woods, que estabeleceu a moeda em referência global, em 1944, justamente logo após o pico de conflitos da Segunda Guerra Mundial, que viria a acabar quase um ano depois do acordo.

Agora, sob Donald Trump, as perspectivas para a estabilidade e o crescimento dos Estados Unidos são tão incertas que, quando os mísseis cruzaram os céus no Oriente Médio, os grandes investidores preferiram espalhar suas economias em vez de recorrer à estratégia clássica de comprar dólares e concentrar-se nos EUA.

Até então, enviar grana para os EUA era o chamado de “flight to quality” (voo para ativos de qualidade), onde a segurança e a liquidez eram claras. Não mais. Ouro, francos suíços e até mesmo a Bolsa brasileira tiveram um desempenho melhor do que o dólar no primeiro choque, entre os dias 12 e 16 deste mês.

Não é que o mundo tenha encontrado um novo porto seguro. Simplesmente perdeu a fé no que usava até então. Como me disse outro dia o Felipe Miranda, da Empiricus, o substituto para o dólar, até agora, tem sido “tudo que não é dólar”.

Nessa brecha, o Brasil apareceu como um destino para o dinheiro global. O Ibovespa, principal indicador da Bolsa, manteve-se acima dos 135 mil pontos. Não por mérito, mas por conveniência. Com uma Selic agora em 15% ao ano, o país entrou no radar de quem quer retorno. O real se valorizou, os fluxos estrangeiros aumentaram.

Mas é bom manter os pés no chão. O dinheiro que vem por especulação pode sair em um clique.

O risco do apagão da máquina pública segue, como falei no último texto aqui publicado na coluna. O jornalista Fernando Canzian trouxe um novo dado para a discussão: os gastos aumentaram em ritmo que é o dobro da arrecadação desde o início do governo Lula 3. E a Anatel já foi a público dizer que a pane seca começou, avisando que não tem dinheiro para cortar os sites de bets (casa de aposta) ilegais.

Operando na dobradinha emergência e improviso, o governo Lula liberou mais de R$ 600 milhões em emendas parlamentares em uma semana, tentando ganhar fôlego político para aprovar suas novas taxações no Congresso.

É o retrato de um Estado que gasta o que não tem para manter alianças, mas não arranjou uma equação para ajustar as contas e atrair o dinheiro a longo prazo. Para o investidor, vale aproveitar o momento, sem baixar a guarda.

O real valorizado, infelizmente, ainda não é sinal de robustez, é reflexo de um fluxo volátil que pode se inverter a qualquer sinal de queda dos juros nos EUA. É um movimento tático, não estrutural.

Diversificar seus investimentos também de maneira geográfica, apostando em ativos internacionais, segue uma boa ideia, ainda que o dólar tenha caído nos últimos meses. A pior armadilha nesse cenário é acreditar que o Brasil mudou porque o dólar fraquejou.

O Brasil não virou destino —virou escala. A guerra no Oriente Médio mostrou que o dólar perdeu o monopólio do medo, mas o real não é seu herdeiro.

 

O mapa religioso do Brasil e o avanço do fanatismo por Dora Incontri

0

Dora Incontri – GGN – 18/06/2025

Corre nas redes um vídeo assustador. 1.500 jovens na Universidade Federal de Minas Gerais, uma das melhores do país, reunidos num culto evangélico, dentro do espaço universitário. Hinos, batismos, conversões, “milagres”, centenas de alunos de joelhos, “pedindo perdão pelos pecados da universidade brasileira”. A cena me lembrou um livro que uso em minhas aulas sobre a história do cristianismo: Cristianismo e paganismo, 350-750 – A conversão da Europa ocidental.  Ou ainda o filme Alexandria (2009), dirigido por Alejandro Amenábar, que conta a história da filósofa e astrônoma Hipátia, que costumo passar ou indicar para meus alunos. As duas fontes mostram como o cristianismo – leia-se o catolicismo – foi imposto a ferro e fogo, muitas vezes numa histeria coletiva, depois que o Imperador romano Constantino o adotou como religião (e mais especificamente o catolicismo, porque havia inúmeras denominações cristãs na época, por exemplo o arianismo, o pelagianismo, o montanismo, o marcionismo e dezenas de outras, todas declaradas heréticas pela Igreja Romana e que passaram a ser perseguidas, tanto quanto os cultos do paganismo).

Desde então, o cristianismo, na versão católica, foi avançando mundo afora. O livro conta como multidões se entregavam ao batismo coletivo, penitentes dos pecados pagãos, e como templos, bibliotecas, lugares de ensino do mundo greco-romano foram sendo literalmente destruídos. Só para citar dois exemplos, a biblioteca de Alexandria foi em parte destruída por fanáticos cristãos (na mesma época em que martirizaram Hipátia) e a conversão da Alemanha ao cristianismo foi arrematada com a queda a machadas de um templo de Tor, liderada por São Bonifácio, por volta do ano 800.

Então… sabemos para onde nos levou esse movimento de tomada de poder pela igreja, com um cristianismo que pouco tinha a ver com o mestre Nazareno, exemplo de fraternidade, serviço ao próximo e compaixão.

É a ameaça que sofremos atualmente, da civilização ocidental ser assaltada por uma histeria cristã fundamentalista, coletiva, fanática, que destrói outras religiões, que submete a massa a uma manipulação de sujeição e que arrasa com a arte, com a ciência, com a liberdade de pensamento e com a nossa esperança de um mundo igualitário, fraterno e fundante do Reino que Jesus queria implantar. Ou, dito de outra forma, de uma sociedade socialista, como tantos sonharam e pela qual lutaram até hoje. Eu prefiro refinar ainda o conceito e falar em uma sociedade anarco-socialista.

Podemos agora comentar sobre o censo do IBGE, que trouxe algumas pequenas novidades em relação ao mapa das religiões no Brasil. Não poderia deixar de fazer algumas leituras a respeito, já que essa coluna trata de espiritualidade, como um dos seus eixos temáticos.

A primeira constatação que já vem há pelo menos 5 décadas é o recuo dos católicos e o aumento dos evangélicos. E essa cena na Universidade Federal de Minas Gerais é o efeito concreto desse avanço. Diga-se, entre parênteses, que essa progressão não é majoritariamente dos setores mais tradicionais do protestantismo, mas sim dos pentecostais e neopentecostais. A novidade é que nesse censo publicado agora em 2025 e que traz os dados de 2022, os evangélicos (26,9%) cresceram com menos velocidade. Católicos (56,7%) continuam caindo, espíritas (1,8%) (sempre colocados em terceiro lugar entre as religiões no Brasil), decaíram ligeiramente. Digno de nota é o aumento percentual de adeptos de religiões afro-brasileiras (1%) e de pessoas sem religião (9,3%) (que engloba ateus, agnósticos, mas cuja predominância parece ser de pessoas – jovens – com uma espiritualidade livre, difusa, não aderente a uma religião em particular).

Algumas considerações: sabemos que há um projeto, ligado a uma “teologia de domínio”, importada dos EUA, que está em pleno vigor no governo atual do império do norte, mas que já vem sendo amarrada há décadas. É um avanço agressivo de setores hiper conservadores de evangélicos e católicos (por exemplo, o vice de Trump, J.D. Vance, é um desses católicos radicais) que pretendem resgatar valores tradicionais cristãos, como agendas patriarcais, antifeministas, contra direitos humanos, contra pautas LGBTQI+, contra lutas antirracistas e sobretudo contra tudo que é de esquerda, em completo alinhamento com um projeto neoliberal e de extrema direita.

Assim, o desaceleramento do crescimento evangélico entre nós é uma meia boa notícia, pois seus adeptos continuam crescendo de qualquer forma, mas o pior é que estão avançando os sinais para minar completamente o Estado laico, a escola pública laica e agora até as universidades públicas, onde não deveria haver qualquer movimento religioso, muito menos dessa forma invasiva e fanática.

Por outro lado – não encontrei informações estatísticas sobre isso – dentro do catolicismo (ainda em declínio), há hoje um reavivamento de setores também radicais, que oraram pela morte do Papa Francisco e fazem pregações misóginas e contra todas as pautas progressistas, marcando um território em comum com os evangélicos conservadores.

Duas boas novidades, que aponto neste novo censo: o avanço dos afro-brasileiros e os dos sem religião. O primeiro caso, me parece, se deve a um processo recente de identificação cultural e ancestral com as raízes afro, coisa que era muito reprimida anteriormente. Embora, ainda muitos adeptos dessas religiões sejam brancos e a maior contingência de negros se encontre entre os evangélicos. O segundo caso indica um desejo de espiritualidade mais livre, menos institucional por parte das novas gerações, fato que já analisei aqui em outro artigo.

Entretanto, do que tenho sido cobrada, desde que saiu o resultado do censo em relação às religiões, é que me pronuncie sobre o leve declínio dos espíritas. Tenho algumas hipóteses explicativas para esse dado. 1) a migração de espíritas para religiões afro (conheço pessoalmente vários), sobretudo para a Umbanda, por conta da maior liberdade de participação no fenômeno mediúnico (usando um termo kardecista). 2) o enrijecimento institucionalista e dogmático do movimento espírita hegemônico, liderado pela Federação Espírita Brasileira e seus seguidores, afastando jovens e pessoas de senso crítico. 3) a adoção de grande parte do movimento (esse mesmo hegemônico) a pautas de direita e extrema direita. Muita gente foi expulsa ou saiu espontaneamente dos centros espíritas, que apoiaram de maneira explícita a barbárie bolsonarista. 4) o abafamento da mediunidade, que constitui o cerne do espiritismo de Kardec, com imposições que acabam por tornar a prática espírita uma coisa sem experiências espirituais vivas, que são fonte de convicção.

Há um movimento espírita progressista, que tem avançado nos últimos anos, tecendo reflexões e lançado iniciativas para retomar o que, a nosso ver, pode ser uma revivescência do espiritismo genuíno, dinâmico e crítico como proposto por Kardec. E esse movimento, de qualquer maneira, está mais perto desses que querem uma espiritualidade livre (mas também crítica) do que os que seguem setores radicais e dogmáticos das religiões tradicionais.

Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.