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Da China, com inveja, por Paulo Nogueira Batista Júnior

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Paulo Nogueira Batista Júnior – A Terra é Redonda – 14//11/2025. O despertar chinês ensina que a verdadeira soberania nasce de um projeto próprio: rejeitar receitas alheias para construir, com pragmatismo e orgulho civilizatório, um palco onde o Estado conduz e os agentes atuam Uma frase atribuída a Napoleão Bonaparte correu o mundo: “Quando a China despertar, o mundo estremecerá”. Bem, a China está totalmente acordada e os demais países, especialmente o Ocidente, e dentro do Ocidente especialmente os Estados Unidos, não sabem como lidar com o desafio que ela representa. No Ocidente, a China e, em menor medida, a Rússia são vistas com grande preocupação, como rivais poderosos, pelo eixo Atlântico Norte. Há dois tipos de inveja, leitor ou leitora. A maligna, que é a dos EUA e da Europa, leva-os a tentar barrar o progresso da China o tempo todo. A benigna admira esse progresso e quer, dentro do possível, e mutatis mutandi, aprender com os chineses e incorporar elementos do processo que eles vêm seguindo. Estou aproveitando uma viagem pela China, de onde escrevo, para conhecer um pouco mais este grande país. Otto von Bismarck dizia: “Não aprendo com a experiência – apenas com a dos outros”. Os chineses são fiéis seguidores dessa máxima, ainda que talvez não tenham ouvido falar dela. Os chineses aprenderam, por exemplo, com a experiência latino-americana, infelizmente de forma negativa. Ou seja, observando nossos erros estratégicos, viram o que não fazer. Se pudesse resumir a questão em uma frase, diria: a China, ao contrário da América Latina, ignorou solenemente as recomendações do assim-chamado Consenso de Washington. Pensou por conta própria e construiu com grande sucesso as suas próprias soluções, adaptadas às circunstâncias nacionais. Copiou quando conveniente, inovou sempre que necessário. Antes de prosseguir no comentário sobre o bem-sucedido modelo chinês, duas rápidas ressalvas. Primeira: não tenho a pretensão de conhecer em profundidade um país tão complexo e tão diferente do nosso, em uma viagem de algumas semanas. É verdade que vivi por mais de dois anos em Xangai, quando fui vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (mais conhecido como Banco dos BRICS), hoje comandado pela ex-presidente Dilma Roussef. Mas já se vão oito anos desde que deixei o banco e a China mudou muito desde então. Além disso, na época em que morei aqui, estava tão envolvido na criação do novo banco multilateral, um projeto ambicioso dos BRICS, que tive menos tempo do que queria para me familiarizar com as singularidades de um país que, como escreveu Henry Kissinger, não é uma nação, mas uma civilização em si mesma. Segunda ressalva: a admiração pela performance da China não deve nos impedir de ver as dificuldades que o país enfrenta. Destaco rapidamente alguns dos principais desafios macroeconômicos e políticos, sem pretender, claro, exaurir a questão. Um deles é a desaceleração do crescimento da economia, decorrente de certa perda de dinamismo das exportações e do investimento. O protecionismo contra a China cresceu, estreitando ou mesmo fechando mercados importantes, nos Estados Unidos e na Europa principalmente, e ameaçando estreitar outros. Em alguns setores da economia chinesa, houve investimentos em excesso, resultando em capacidade ociosa, que a China não consegue mais direcionar para mercados estrangeiros com a facilidade de antes. Essa desaceleração da economia cobra o seu preço em termos de mercado de trabalho. A alta taxa de desemprego entre os jovens, por exemplo, constitui um problema social e político de primeira ordem. Além disso, o consumo agregado ainda é muito baixo, o que reflete várias dificuldades que a população vivencia e que, se não forem enfrentados, podem corroer o apoio ao governo. Entre as razões que limitam o consumo privado estão as insuficiências do sistema de aposentadoria e dos serviços de saúde. O governo chinês está plenamente consciente do problema e procura melhorar os sistemas nacionais de previdência e saúde. Com o envelhecimento da população, entretanto, o problema se torna mais grave, pois aumenta a demanda por aposentadorias, pensões, serviços médicos e remédios. Por isso, as pessoas continuam poupando muito para tentar garantir o padrão de vida na idade avançada. Assim, não é fácil alcançar o objetivo do governo, já antigo, de aumentar o mercado de consumo e tornar a economia chinesa menos dependente do dinamismo das exportações. O sucesso extraordinário da China nos últimos 40 anos Essas ressalvas parecem verdadeiras, mas não obscurecem o fato básico – a China despertou no final do século XX e não voltará mais ao sono profundo de outras épocas históricas. O modelo econômico chinês tem sido extraordinariamente bem-sucedido e não é bem compreendido no resto do mundo. Como caracterizá-lo de forma sintética? Talvez começando pelo que ele não é. Não se trata de uma economia de mercado pura e simples, ou seja, não é um sistema capitalista clássico ou tradicional. Não cabe nem mesmo designá-lo como “capitalismo de Estado”, como se faz com frequência nos meios ocidentais, tanto acadêmicos como jornalísticos. O Estado tem presença tão avassaladora na economia e na sociedade que essa expressão se revela enganosa. Note-se que, ao adotá-la, credita-se indevidamente ao capitalismo, ainda que “de Estado”, mérito que ele não teve e não tem pelo sucesso da China. Também está claro que o modelo chinês iniciado por Deng Xiao Ping em 1979 é bem diferente dos modelos soviéticos e chineses do tempo da economia centralmente planificada. O que se buscou na China foi reestruturar a economia, abrindo espaço para o mercado e o setor privado, sem repetir, porém, os erros cometidos por Mikhail Gorbachev, nos anos 1980, com a Perestroika (reestruturação econômica) e a Glasnost (liberalização política). O que fez (e não fez) a China, com base em uma avaliação cuidadosa da trajetória da União Soviética na sua década final e da Rússia nos anos 1990? Duas coisas, basicamente. Primeira: a Perestroika chinesa foi muito mais cautelosa e gradual. Não houve, como na Rússia, tratamento de choque na economia, privatizações em massa e liberalização abrupta. A abertura econômica foi feita passo-a-passo, sem desmontar as estruturas estatais e mantendo o controle sobre os setores estratégicos da economia. Segunda coisa: não houve Glasnost na China. O Partido Comunista Chinês permanece como partido único, todo-poderoso, com grande influência na sociedade e na economia. Existem bilionários e empresários privados poderosos, mas na China eles não se criam. Eles não têm papel político e não se lhes permite dominar as políticas públicas. Um cenário totalmente diferente do que se vê, por exemplo, nos Estados Unidos, onde os donos do dinheiro são donos do poder, convertendo a chamada democracia em uma plutocracia (o governo dos endinheirados). Outro dado importante: o combate à corrupção assume proporções ferozes na China e atinge quando necessário figuras proeminentes e poderosas. Diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos e em muitos outros países, os bilionários chineses têm muita dificuldade de comprar políticos e funcionários. Não se estabelece, portanto, uma cleptocracia (o governo dos ladrões). Também não se estabelece a kakistocracia (o governo dos piores), típica dos Estados Unidos e da Europa. No Ocidente, o sistema político obedece em geral a uma lógica de seleção adversa que premia os mais medíocres e os menos comprometidos com o interesse público. Quem tiver dúvida sobre isso, que passe em revista os líderes políticos atuais e recentes nos Estados Unidos e na Europa. Ou que considere, outro exemplo, a classe política brasileira. Na China, impera um sistema fechado em que as lideranças são selecionadas com base no mérito. Uma meritocracia, portanto. Imperfeita, como se pode imaginar, mas suficiente para afastar o risco de que se forme uma kakistocracia. Os chineses são seres humanos, claro, e enfrentam também a necessidade de lutar contra a dominação dos super-ricos, a corrupção e a mediocridade. Mas eles têm sido mais bem-sucedidos do que o resto do mundo em enfrentar esses desafios “humanos, humanos demais”, como diria Friedrich Nietzsche. O modelo chinês O que é então o modelo chinês? Vamos dar voz aos próprios chineses. Eles caracterizam o seu modelo como “socialismo com características chinesas”. Usam sintomaticamente o termo “socialismo” no lugar do “comunismo” soviético ou maoísta. E porque dizem “com características chinesas”? É que aqui as forças de mercado têm grande peso, mas operam dentro um quadro estritamente controlado pelo Estado e pelas agências e instituições estatais. Uma máxima popular na China, citada pelo professor Wen Yi em debate do qual participei aqui em Xangai, reflete bem isso: “o Estado arma o palco e os agentes econômicos atuam”. Dois exemplos, explicados em “apertada síntese”, como dizem os advogados. O sistema bancário da China é quase totalmente dominado por bancos estatais. Aqui não existem Bradescos, Itaús ou Santanders. Os chineses não conhecem e nem querem conhecer esse tipo de instituição. O setor bancário é estratégico do ponto de vista macroeconômico e sempre ficou sob domínio de bancos públicos. Por outro lado, um aspecto importante é que, dentro das regras estabelecidas pelo governo e pelo banco central, esses bancos estatais competem entre si, o que favorece maior eficiência. Outro exemplo crucial. A estabilidade da economia chinesa repousa sobre uma conta de capitais fechada, vale dizer pela aplicação rigorosa de controles sobre a entrada e saída de capitais. Houve certo afrouxamento dos controles no passado mais recente, mas a China continua relutante em expor a sua economia aos surtos de entrada e saída de capitais que tanto mal fazem na América Latina. Esse foi um dos muitos pontos em que a China fez ouvidos de mercador às recomendações do Consenso de Washington. Aprenderam com nossa experiência infeliz, dentro do espírito de Bismarck. Se tivessem se pautado pelos conselhos ocidentais, não teriam chegado aonde chegaram. A continuidade na civilização milenar da China Para terminar, algumas observações sobre uma singularidade da China que é crucial, mas infelizmente inimitável. Raramente se leva na devida conta, que a história milenar da China é marcada por uma extraordinária continuidade. A maior parte das outras civilizações antigas dos vários continentes não tiveram a longa e ininterrupta duração, de quatro ou cinco milênios, que caracteriza a civilização chinesa. Os egípcios têm uma relação remota, para não dizer fictícia, com o Egito dos faraós e suas pirâmides. Os gregos atuais pouco têm a ver com a Grécia antiga. Os italianos de hoje pouco têm a ver com o Império Romano. Os astecas e incas foram totalmente obliterados pela Espanha. A Rússia também tem uma civilização contínua, mas da ordem de 1000 anos. A China é um caso muito especial. Sofreu, ao longo de milênios, diversas turbulências, invasões, guerras externas, guerras civis, mas conseguiu, apesar disso, preservar um fio cultural condutor. Isso se reflete em alguns aspectos da trajetória chinesa que são, a meu ver, centrais para entender o sucesso do país. Um deles é o respeito, mais do que isso veneração pelos antepassados e pelas tradições históricas. Esse respeito à tradição não bloqueia, entretanto, a inovação e a criatividade das novas gerações. A busca do novo, ao contrário, é omnipresente, mas não implica descartar o passado. Mesmo um revolucionário marxista radical, como Mao Zedong, citava com frequência os pensadores clássicos da China como Lao Tse e Sun Tzu. Considerava a obra principal deste último, A Arte da Guerra, quase como um segundo manifesto comunista. Por seu turno, quando o maoísmo foi superado por Deng Xiao Ping e seus sucessores até o atual líder, Xi Jinping, não houve rejeição total da figura de Mao. Ela aparece até hoje em todas as notas de dinheiro. Suas obras são lidas e circulam amplamente. Compare-se com o Brasil. Nós não respeitamos e, muitas vezes, sequer conhecemos nosso passado. Essa ignorância alimenta a tendência a depreciar sistematicamente a nossa história. E esse é um entre muitos fatores a derrubar a nossa autoestima. Oscar Wilde dizia: “Self-love is the beginning of a long life romance” (o amor próprio é o começo de um romance para toda a vida). Esse amor-próprio é central para o sucesso individual e nacional. Os chineses têm isso em abundância. Mas, veja bem, leitor ou leitora: amor-próprio, e não desprezo pelos outros; orgulho, não vaidade ou arrogância; respeito por si mesmo e sua família imediata, sim, mas sem cair no individualismo egoísta tão típico das sociedades ocidentais. Por esses e outros motivos, precisamos estudar mais a China e aumentar nossas interações com os chineses. Vale o esforço de superar as barreiras linguísticas, culturais e geográficas. Sem cair na imitação servil, levando sempre em conta as nossas condições históricas e políticas, podemos aprender muito com eles. Paulo Nogueira Batista Jr. é economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS. Autor, entre outros livros, de Estilhaços (Contracorrente).

Uma alternativa ao neoliberalismo, por Emir Sader

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Emir Sader – A Terra é Redonda – 12/11/2025 O fracasso comprovado do modelo neoliberal na América Latina projeta a região como o epicentro da disputa hegemônica do século XXI, redefinindo os parâmetros políticos e ideológicos globais 1. O modelo neoliberal fracassou na América Latina. O único país que o mantem, ainda assim promovendo uma crise social nunca vista no pais, com concentração de renda e exclusão social enormes, é a Argentina de Javier Milei. Nos outros países a recessão que provocou favoreceu a eleição de governos anti-neoliberais em grande parte dos outros países do continente, entre eles o Brasil, o México, a Colômbia, a Venezuela, o Uruguai, Honduras. No entanto, o neoliberalismo continua sendo predominante no mundo, marcando o período histórico atual. Mesmo em países com governos anti-neoliberais, a presença do capital financeiro, sob sua modalidade especulativa, continua predominante. A América Latina á a única região do mundo com governos anti-neoliberais, tornando-se assim o epicentro das principais lutas no mundo contemporâneo. Não por acaso então é o continente que projetou os mais importantes lideres políticos do século XXI, entre eles Lula, Hugo Chavez, Rafael Correa, Nestor e Cristina Kirchner, Lopes Obrador e Claudia Sheinbaum, Evo Morales, Pepe Mujica entre outros. Assim, a disputa hegemônica no século XXI se dá entre o neoliberalismo e o antineoliberalismo. O neoliberalismo continua dando os parâmetros gerais políticos e ideológicos no novo século. Depois da ultima década do século XX, eminentemente neoliberal, o novo século trouxe o protagonismo das forças anti-neoliberais. Na segunda década do século XXI, o Brasil e o México aparecem como os governos mais consolidados na nova perspectiva, enquanto a Argentina, isolada, busca resgatar politicas neoliberais. Uma disputa que marca toda a primeira metade do século XXI, de cujo desenlace dependerá o futuro da América Latina, o epicentro das lutas antineoliberais. É também por essa razão que um líder brasileiro como Lula pode se projetar como o principal personagem político da esquerda em escala mundial. Porque ele pode apresentar uma alternativa concreta e vitoriosa frente ao neoliberalismo. 2. Enquanto a outra característica marcante deste século é o declínio da hegemonia norte-americana, depois de ter reinado, de forma soberana, no século XX. Uma decadência que se estende para a Europa, aliada estratégica dos Estados Unidos. Um continente que, depois de dar os contornos ideológicos para grande parte do mundo, ficou prisioneira do seu eurocentrismo, no momento em que a Ásia, especialmente a China, reapareciam com força. Por essa razão também que eu considero Peter Frankopan, inglês, como o primeiro grande historiador do século XXI. Sua obra se inicia justamente com a crítica do eurocentrismo, reivindicando o papel especial da China, que havia sido a potência mais importante do mundo, até que a Inglaterra introduziu o consumo do ópio naquele pais, levando-o à decadência. Um processo do qual a China renasce, de novo, como a maior potência econômica do mundo no século XXI. E protagoniza, junto ao poderio militar da Rússia e a presença de outros países emergentes, como o Brasil, a África do Sul, a Indonésia, entre tantos outros hoje, os Brics, que se tornou o fenômeno político mais importante do século XXI. A disputa hegemônica no plano político se dá então, neste século, entre a hegemonia declinante do bloco liderado pelos Estados Unidos, e a aliança entre a China, a Rússia, o Brasil e outros aliados. Dessa disputa e de seu desfecho depende o futuro da humanidade ao longo de todo o século XXI. Emir Sader é professor aposentado do departamento de sociologia da USP. Autor, entre outros livros, de A nova toupeira: os caminhos da esquerda latino-americana (Boitempo).

Inovação e desenvolvimento

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Numa sociedade marcada por grandes competições entre os agentes econômicos e produtivos, onde os atores buscam manter seus espaços e consolidar novos ganhos monetários e financeiros, a chave do sucesso se concentra na chamada inovação, instrumento central para alcançar o desenvolvimento econômico e melhorar as condições sociais e políticas. Numa rápida retrospectiva do desenvolvimento econômico, todas as nações que conseguiram construir uma sociedade mais igualitária, marcadas pelas instituições políticas sólidas e consistentes, tiveram, em sua trajetória política marcada pelo fomento da inovação e o fortalecimento do empreendedorismo, angariando nossos espaços produtivos, com melhoras nos setores produtivos, enriquecimento da população, transparência crescente e maior respeitabilidade no cenário internacional. As nações desenvolvidas construíram uma sociedade marcada pela inovação, conseguindo construir um ambiente ousado e cheio de novidades, criando políticas ativas e fomentando os setores educacionais, garantindo recursos monetários para melhorar o ambiente escolar, fortes investimentos em capital humano, capacitações constantes dos trabalhadores, taxas de juros reduzidas, estímulos crescentes em ciências, pesquisas e tecnologias e, principalmente, uma política que fortalecesse o pensamento científico, instrumento central para a construção de espaços de inovação e de empreendedorismo. Um dos economistas mais importantes para compreendermos a importância da inovação, foi o austríaco Joseph Schumpeter, responsável pela publicação do livro “Capitalismo, socialismo e Democracia” onde destacou a chamada destruição criativa, responsável pelas grandes transformações tecnológicas da sociedade global, uma verdadeira revolução que destroem os modelos econômicos e produtivos existentes e constroem novos modelos de negócios, revolucionando as sociedades, criando novas oportunidades e, ao mesmo tempo, criem novos desafios e incertezas. O economista austríaco Joseph Schumpeter nos mostra a importância da inovação, que contribui para a criação de novos produtos, bens ou mercadorias, gerando novos espaços de investimentos produtivos, que serve para movimentar todo o sistema econômico, gerando novos empregos, aumentando a renda agregada e garantindo novas oportunidades, novas perspectivas e mudando realidades. As nações que conseguiram construir novos espaços de inovação e de empreendedorismo fizeram grandes investimentos em capital humano, um forte aporte na construção de um ambiente de inovação constante, reflexões críticas, questionamentos variados, inquietações crescentes e estímulos diversos para atrair pessoas e organizações empreendedoras. A educação é fundamental para a criação deste cenário de inovação, a construção de um projeto educacional consistente que dialoga francamente com a comunidade, com os setores produtivos e a sociedade civil, garantindo para que todos os setores chancelem o projeto e participem ativamente na estratégia de desenvolvimento. Inúmeros países conseguiram consolidar espaços de crescimento econômico e produtivo através de fortes investimentos em inovação, melhorando as condições de vida da população, tais como o Japão, a Coréia do Sul, a China, dentre outros. Todas estas nações tiveram em comum, a capacidade de eleger a educação como o instrumento central para o desenvolvimento econômico, para isso, foi necessário a construção de um consenso interno, garantindo fontes sólidas de investimentos, uma valorização dos profissionais da educação, criando estímulos crescentes para atrair para a docência os melhores quadros da sociedade. O caminho do desenvolvimento econômico é espinhoso, cheio de desafios e turbulências, muitas nações menores que o Brasil conseguiram alcançar seu desenvolvimento e se transformaram em grandes potências tecnológicas, chegou a hora de seguirmos os bons exemplos de desenvolvimento econômico e deixarmos de lado ideologias ultrapassadas e reacionárias que servem para aprofundar nosso subdesenvolvimento. Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Dívida e juros: Quatro décadas de um beco sem saída, por José Álvaro de Lima Cardoso

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Da hiperinflação nos anos 1990 às crises internacionais do fim do século e de 2008, passando pelo golpe e até os dias de hoje, a economia brasileira ostenta juros absurdos. País alimenta ciclo perverso, engorda rentismo e se mantém eternamente vulnerável. José Álvaro de Lima Cardoso – OUTRAS PALAVRAS – 12/11/2025 Os anos 1980 e meados dos 1990 marcam um período em que a dívida pública se tornou uma espécie de refém da hiperinflação. O Brasil enfrentava inflação acelerada — especialmente após os choques de preço do petróleo na década de 1970 — e a dívida pública era financiada através de instrumentos de curtíssimo prazo, com forte indexação à taxa básica de juros e, frequentemente, às variações do câmbio. Esta combinação era guiada por uma lógica perversa: quando a inflação disparava, os juros subiam para contê-la, o que automaticamente aumentava o custo de rolagem da dívida. Diferentemente dos dias atuais, a inflação realmente era muito alta: no ano de 1993, por exemplo, que precedeu o ano de implementação do Plano Real, a inflação chegou a 2.477,15%, medida pelo IPCA-IBGE. Com o processo de indexação, a dívida pública tornou-se um mecanismo de transmissão de instabilidade para toda a economia. A inflação galopante inviabilizava fazer planejamento de médio e longo prazos. Com inflação que, em alguns períodos, chegou a 1,5% ao dia, as empresas se limitavam a tentar proteger o valor do seu capital. Havia um tipo de aplicação financeira, por exemplo, chamada de overnight (da noite para o dia), com prazo de apenas um dia útil, com rentabilidade equivalente as taxas de juros diárias, extremamente altas para acompanhar a inflação. Nesse contexto, as empresas maiores, os ricos, e a classe média, conseguiam preservar seu capital de forma relativamente segura, mas o grosso da população ficava à mercê da queda contínua e rápida do seu poder aquisitivo. A superinflação funcionava como uma espécie de mecanismo extra de exploração dos trabalhadores. Nesse ambiente, a dívida pública consumia recursos que tirava do sistema a capacidade de investir na produção e no aumento da produtividade. A dívida tinha que ser constantemente refinanciada a taxas crescentes, consumindo recursos públicos através dos juros elevados e protegendo os detentores dos títulos públicos. Com a chegada do Plano Real, em 1994, que fixou a taxa de câmbio (política que foi mantida até 1999), a dívida continuou indexada ao dólar. Para estabilizar a inflação através de uma âncora cambial, foi necessário aceitar uma dívida mais cara. Entre 1995 e 1998, a taxa média de juros real (Selic menos a inflação) foi de aproximadamente 22% ao ano. No período de 1995 e 1998 a taxa chegou a aproximadamente 30% ao ano. Nesse período a taxa de juros real brasileira era a mais alta do mundo em termos reais. Em 1999, a taxa de juros chegou a 45% ao ano em termos nominais, para uma IPCA-IBGE de 8,94%. Ou seja, o país tinha uma taxa de juros reais de 36%., o que tornava quase impossível o investimento produtivo. Na realidade, era uma combinação de política macroeconômica para matar qualquer ambição de crescimento econômico. Em 18 de janeiro de 1999 o governo anunciou a adoção do câmbio flutuante. Até então, o Brasil operava com uma âncora cambial, ou seja, o regime de câmbio fixo. Em função dessa mudança, o preço do dólar disparou. No início de janeiro a moeda estava cotada em torno de R$ 1,20 e, ao final do mês, tinha chegado a R$ 2,10, uma desvalorização do real de cerca de 75% em poucos dias. No início de março de 1999, a cotação chegou a R$ 2,20, representando uma desvalorização acumulada de mais de 83%. Esse período ficou conhecido como a “maxidesvalorização de 1999” e teve reflexos muito significativos na inflação e na economia geral do país. A transição para o câmbio flutuante no Brasil em janeiro de 1999 foi decorrência de uma crise econômica brutal ao nível internacional – que arrastou as economias mais frágeis – assim como dos problemas estruturais da economia brasileira. O país estava enfrentando grande fuga de capitais, decorrentes da Crise Russa de 1998, que gerou pânico nos mercados globais. Investidores internacionais retiraram recursos de economias atrasadas, com medo de um efeito dominó e o Brasil era uma das economias mais expostas ao contágio. Um sintoma da doença foi o comportamento das reservas internacionais brasileiras, que despencaram de US$ 74 bilhões em julho de 1998 para US$ 42 bilhões em janeiro de 1999 (7,6% do PIB). Nesse período a capacidade do Brasil em termos de reservas era muito pequena. Para efeitos comparativos, atualmente o país possui US$ 346,4 bilhões de reservas, cerca de 15% do PIB O regime de câmbio fixo (ou âncora cambial) do Plano Real, que mantinha o dólar artificialmente controlado, tornou-se insustentável porque o país tinha um grande déficit nas transações externas e a dívida externa crescia continuamente, porque o país precisava tomar dólares emprestados para manter a cotação fixa. Como os especuladores apostavam que o real seria inevitavelmente desvalorizado a qualquer momento, havia uma fuga de capitais, que aumentou a pressão sobre as reservas. O Banco Central tinha que injetar dólares o tempo todo na economia para defender a paridade, sustentáculo do Plano Real. A adoção do câmbio flutuante em janeiro de 1999 aumentou o peso da dívida externa em reais, decorrente da apreciação do dólar. A dívida interna, por sua vez, cresceu expressivamente em função de juros reais extorsivos, que ultrapassavam 30%, visando financiar o déficit fiscal e manter a estabilidade da moeda, a qualquer custo. Esses juros reais visavam manter o controle da inflação e a confiança na moeda, ingrediente fundamental do regime cambial, baseado, até janeiro de 1999, na paridade com o dólar. Um dos efeitos desses juros foi o crescimento da dívida pública em relação ao PIB, que passou de 17,6% em 1994, para 31,7% em 1998, praticamente dobrando em 4 anos. No período 2003 a 2013, a dívida pública entrou em fase de alívio relativo. Este período reuniu três fatores, de rara convergência, que aliviaram o peso da dívida pública: 1. Crescimento econômico razoável (média pouco acima de 3% ao ano) 2. Termos de troca favoráveis (preços de commodities em alta, em função da demanda chinesa) 3. Superávits primários robustos Apesar da reunião destes fatores a dívida pública fechou o período apontado um pouco acima do que iniciou, em relação ao PIB, chegando a 63,2% em 2013. Este alívio momentâneo com os gastos com a dívida, deve ser bastante relativizado. Mesmo com toda a confluência positiva de fatores apontada acima, os gastos com serviço da pública em 2013 correspondeu a 8,3% do PIB, ou seja, o sistema da dívida permaneceu intacto. Para efeitos comparativos o Brasil gastou no mesmo ano 7,5% do PIB com a previdência. Neste mesmo ano, cerca de 42% do orçamento federal foi destinado ao pagamento dos serviços da dívida pública. O fato é que, por condições econômicas muito excepcionais, foi possível compatibilizar durante um curto período, os gastos com a dívida pública, com um modesto ciclo de crescimento. Obviamente este alívio era estruturalmente muito frágil. Dependia de preços de commodities que o Brasil não controlava e de crescimento econômico que não era robusto o suficiente. O peso da dívida caiu um pouco por conta de fatores externos, que de certa forma encobriam problemas estruturais, como baixa taxa de investimentos, pobreza, desemprego e os próprios gastos com a dívida. Quando as condições externas mudaram, especialmente a partir da crise de 2008, a dívida voltaria a subir rapidamente: a razão entre dívida e PIB, que em 2008 chegou a 47,7%, em 2013 já estava em 63,2%. A partir de 2014, já em um cenário de franca operação do golpe de 2016, os indicadores desabam. Os preços das commodities em 2013 dão os primeiros sinais de desaceleração. O ano de 2014 pode ser considerado um ano de virada: cai abruptamente preços de minério de ferro, petróleo, soja e outras commodities exportadas pelo Brasil, com efeitos em cascata na economia brasileira. Há uma queda das receitas públicas: redução de arrecadação de impostos sobre exportações; diminuição de royalties e participações especiais do pré-sal. A taxa de desemprego saltou de cerca de 5% em 2014 para 11% em 2016. Neste quadro há a deterioração da dívida pública: com a desaceleração do crescimento aumenta a razão dívida/PIB, chegando em 2015 a 74%. A crise é amplificada, em função do peso da dívida pública. Cai a receita pública, o PIB recua, juros aumentam em função do aumento do risco-país; juros mais altos exigem mais superávits primários para pagar os serviços da dívida, são feitos cortes em investimentos públicos e sociais, o que aumenta a recessão. É um ciclo perverso que se retroalimenta: recessão → elevação da dívida → cortes de gastos → recessão mais profunda. E assim por diante. As crescentes obrigações com a dívida, cada vez mais dão a tônica nas decisões de política pública. Os juros reais elevados durante este período, em torno de 5%, quase sempre o mais alto do mundo no período, representavam menos recursos para saúde, educação e desenvolvimento. Os países imperialistas em geral, operavam com taxas de juros reais próximas de zero ou negativas nesse período, o que destacava ainda mais a posição do Brasil como líder em juros reais mundiais. Em 2023, o novo arcabouço fiscal substitui o teto de gastos, implantado pelo governo golpista de Michel Temer, que vigorava desde 1º de janeiro de 2017. Como sempre, o novo arcabouço manteve a lógica de todos os planos fiscais das últimas décadas. Criou uma fórmula de controle dos gastos primários, procurando manter o superávit nesses gastos, mas sem nenhuma medida voltada para o fulcro do problema, que são os gastos com a dívida. A partir de 2023, a dívida volta a subir, ainda que moderadamente, em função dos juros reais extremamente elevados e baixo crescimento da economia. A economia brasileira nesse período, como até agora, é prisioneira da política de manter juros lá em cima, supostamente para controlar a inflação. Essa política impede investimentos e reduzem o crescimento. Essa combinação de política macroeconômica, que é a mesma, com nuances, independentemente do governo nas últimas décadas, conduz o país a um beco sem saída: os juros são aumentados para manter inflação sob controle, mas juros altos impedem investimento, reduzem crescimento, e com isso, impedem que a dívida caia em relação ao PIB. É um beco sem saída para o país como um todo, mas uma situação maravilhosa para quem ganha muito dinheiro com o ciclo especulativo que se forma a partir dele. A observação da trajetória completa da dívida nas últimas décadas, revela um padrão, que é comum a todos os períodos, independentemente do ciclo econômico que esteja vigorando: sempre que há choques econômicos de todo tipo (inflação, câmbio, crise financeiras globais), há uma deterioração no quadro da dívida pública, e a resposta é sempre direcionada para os gastos primários que, em princípio, nada têm a ver com a dívida. Não são os gastos primários que deterioram a relação dívida/PIB, e sim a própria elevação dos juros, ou o baixo crescimento da economia. As ações de combate aos gastos primários, cortes de gastos sociais, redução do investimento público não só não resolvem o problema, como deterioram ainda mais a situação e tornam a economia ainda mais vulnerável aos choques futuros. Longe de ser uma variável econômica dependente, os gastos com a dívida pública no Brasil, e o conjunto de medidas que são tomadas para garantir a normalidade do fluxo desses gastos, impedem o enfrentamento de problemas centrais da economia brasileira: vulnerabilidade a choques externos, fragilidade da base produtiva e desindustrialização e baixa taxa de investimentos. O mais impressionante nesse processo é que, independentemente da posição política dos governos, todos atacaram o problema fiscal exclusivamente sob a ótica dos gastos primários, mantendo intocado os lucros de banqueiros e especuladores.

Sofrimento individual tomou lugar do conflito de classe, diz sociólogo francês

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Folha de São Paulo, 09/11/2025 Ricardo Henriques, Economista, superintendente executivo do Instituto Unibanco, professor associado da Fundação Dom Cabral e presidente do Conselho da Anistia Internacional Brasil [RESUMO] Em diálogo com o economista Ricardo Henriques, o sociólogo francês François Dubet analisa o papel do ressentimento e das múltiplas desigualdades que sustentam uma nova economia moral, o que levou à ascensão da extrema direita em diversos países, tema de seu livro “O Tempo das Paixões Tristes”. Embora hoje sobrem motivos para pessimismo, ainda há espaço para esperança em redes de solidariedade locais. Nascido na sociedade industrial, mas atento às transformações do presente, o sociólogo francês François Dubet tem se dedicado a entender como as desigualdades sociais fragmentam identidades coletivas e transformam injustiças em sofrimentos individuais. Essa nova economia moral enfraquece as lutas comuns e alimenta o populismo e o iliberalismo. No livro “O tempo das Paixões Tristes” (2019, editora Vestígio), Dubet analisa de que maneiras esse cenário impulsionou o ressentimento e a ascensão da extrema direita. Seis anos depois, diante da escalada de violência e negacionismo nos EUA, ele reafirma a importância da convivência, das experiências locais e da construção de um novo pacto civilizatório. Nesta entrevista para a Folha, Dubet alerta: “Eu detesto as ideias radicais, elas têm consequências radicais e não correspondem à experiência das pessoas”. Ao revisitar sua formação, Dubet reconhece que aprendeu sociologia em um tempo marcado pelos conflitos de classe. É nesse contexto que evoca a coruja de Minerva, símbolo da sabedoria que só alça voo ao entardecer, quando os acontecimentos já podem ser compreendidos com alguma distância. Em “O Tempo das Paixões Tristes”, a expressão “paixão triste” é inspirada em Spinoza, e você descreve os climas emocionais das sociedades contemporâneas. Quais as características de nossa época você mais valoriza neste livro e como pensa as paixões tristes da sociedade contemporânea? Preciso começar com uma confissão: nasci na sociedade industrial. Era leitor de Marx, Durkheim e Weber. Escrevi alguns livros com Alain Touraine. Vivi em uma sociedade na qual os problemas eram percebidos em termos de conflitos de classe, que organizavam a esquerda e a direita com representações do futuro. Na França, pensamos nessas categorias por muito tempo, até os anos 1980. Aliás, como sempre, é quando a esquerda chega ao poder que seu mundo começa a desmoronar. É a coruja de Minerva. Aprendi sociologia assim e por muito tempo pensei nessas categorias. O que aconteceu? As desigualdades de classe permaneceram, claro. Mas não são mais, do meu ponto de vista, estruturadas em volta das classes sociais. Ou seja, as pessoas não dizem mais: “nós, os trabalhadores”, “eles, os patrões”. Elas dizem “eu”. “Eu” sou desigual em função do meu diploma, das minhas origens, do meu gênero, da minha sexualidade, do lugar onde moro. Há uma espécie de individualização das desigualdades. O que, aliás, faz com que a consciência de classe não resista mais ao desprezo de classe. Então esta é a primeira transformação: o capitalismo desigual, brutal, que de certa forma destrói as classes sociais —não a classe dirigente, obviamente—, atomizou as classes sociais. A segunda evolução é que, até os anos 1980, quando você falava de desigualdades aos atores sociais, eles respondiam e pensavam imediatamente nas grandes desigualdades, isto é, as desigualdades no trabalho, na renda, nas condições de vida. A justiça social é a redução das desigualdades de condições. É fazer com que os trabalhadores sejam menos pobres, e os ricos, menos ricos. Atualmente, se eu perguntar o que é justiça social na França, e mais ainda nos Estados Unidos, as pessoas dizem que é a luta contra as discriminações: se você é homem, mulher, homossexual, branco, negro, uma pessoa da cidade ou do campo etc. A desigualdade de chances de acesso aos recursos é percebida como a desigualdade principal. E isso tem consequências. Quando você pensa em termos de desigualdades sociais, pode pronunciar a famosa frase “Proletários de todos os países, uni-vos”, temos todos os interesses em comum. Mas ao pensar em termos de discriminação, todos temos interesses contraditórios. Temos uma cena de conflitos que se reunia em torno de uma consciência coletiva e que hoje explodiu, gerando ressentimentos. O conflito social à la Marx ou Weber é substituído pela ideia de que somos vítimas dos outros. Há esse efeito sobre a subjetividade dos indivíduos de regimes de desigualdades múltiplas, como você chama. Se essa especificidade do mundo contemporâneo foi muito bem para o velho mundo civilizado, como isso repercute na construção da fraternidade e da solidariedade? Você tem uma reflexão sobre a gramática política da ação coletiva. Como pensa essa construção dos vínculos de solidariedade, de ação coletiva? É muito complexo. Se eu raciocinar no quadro europeu, a fraternidade era a nação, com seu aspecto positivo (“eu gosto das pessoas que são como eu, que falam a mesma língua e que têm a mesma cultura, a mesma história’) e negativo, que é o nacionalismo (“eu detesto aqueles que não são como eu”). Acreditava-se que a França, por exemplo, era um Estado nacional, uma burguesia nacional e uma cultura nacional. Não era verdade. Hoje todo mundo sabe muito bem que a burguesia francesa não é nacional. Que o Estado é extremamente fraco. E que a cultura está invadida pela cultura de massa, pelo mercado e pela guerra das identidades. Nos anos 1970 e 1980, na França, diziam que um imigrante italiano ou português seria um futuro trabalhador francês. Hoje, os filhos dos imigrantes votam na extrema direita porque detestam os novos imigrantes que vêm de ainda mais longe. Considero como um dos grandes problemas o fato de questões como fraternidade e identidade terem sido abandonados por intelectuais de esquerda para serem apropriados pela direita e extrema direita. Quando há sucesso dos partidos de extrema direita na França, a esquerda diz que são racistas e fascistas. Evidentemente, são racistas e fascistas. Mas eles levantam uma questão: o que temos em comum? Ora, as únicas forças políticas que respondem a isso hoje são a direita e a extrema direita. Quando escrevi sobre isso em 2019, não estava muito seguro de mim. Mas agora, com Trump, estou totalmente seguro. Porque é pior do que aquilo que havíamos imaginado. A questão que nos é colocada para a esquerda mundial é: somos capazes de dizer o que temos em comum? O que temos em comum para que uns aceitem sacrifícios pelos outros? O que temos em comum para reconhecer a identidade dos outros sem sermos ameaçados? Se não tivermos a sensação de algo em comum, as diferenças culturais tornam-se ameaças. É nesse quadro que é possível identificar a intencionalidade de desconstrução do sentido de comum à sociedade e a imposição de visões que, por vezes, negam o próprio valor da ciência. Os métodos de Trump diante dos ataques às universidades, aos museus, ao Departamento de Educação, e sua ação neste domínio de violência contra as pessoas, sobretudo os progressistas, procuram simultaneamente negar o que lhe incomoda no campo dos valores e da ciência e impor uma visão particular (e diria excêntrica) do mundo que deveria ser compartilhada como o comum. Há um ano eu jamais teria imaginado isso. Um presidente dos Estados Unidos que busca liquidar universidades, que tem comportamentos xenofóbicos e racistas… enfim, nunca teria imaginado. E o problema é que Trump não é um conservador autoritário, ele é ultraliberal. É em nome do declínio da autoridade que temos essa violência. Ele diz: “vocês não vão se submeter à autoridade dos sábios, vocês não vão se submeter à autoridade dos especialistas”. É uma escala de decadência contínua: não nos libertamos do desprezo senão desprezando os outros, ao dizer que não sou eu quem merece ser desprezado, são os outros. Qual o caminho para produzirmos uma certa esperança? Penso que a esperança é um dever. Acho que ainda existem coisas que funcionam. Por exemplo, redes de solidariedade: há uma vida associativa muito intensa e, pelo menos no caso francês, a vida social local é muito mais positiva do que a imagem nacional. As pessoas organizam festas, se ajudam. Então, não é verdade que todo mundo é dominado pelo ressentimento. A segunda coisa, acho que seria preciso dar toda a importância ao trabalho. O que a força do movimento operário fez, de fato, foi dar dignidade aos trabalhadores. Hoje existe na França um sindicato que tenta fazer isso, mas que ainda assim busca reconstruir uma dignidade a partir da qualidade do trabalho, do sentido de utilidade do trabalho. Quando houve a pandemia da Covid e o confinamento, todo mundo descobriu que os motoristas de caminhão, as pessoas que recolhem o lixo e as caixas de supermercado eram pessoas formidáveis e indispensáveis. Bem, desde então já esquecemos disso. Isso aconteceu da mesma forma aqui. Sim. Parece-me que a ideia é a necessidade de redefinir o que é comum, tentar redefini-lo fora das categorias nacionalistas. Acredito que é preciso revalorizar o trabalho, repensar a educação. Mas a experiência histórica mostra que isso não acontecerá em três semanas. E é verdade que é muito difícil resistir a uma espécie de pessimismo. Mas com certeza, entre nós, neste momento, deixamos o pessimismo de lado. Os jovens também sonham com um futuro, não? Como você pensa em projetar uma visão para que os adultos, que viveram em outros momentos, possam construir isso? Não está relacionado ao teletrabalho fútil, mas ao futuro. Como garantir esse pertencimento? Como projetar futuros possíveis e desejáveis? Existe o risco de um pessimismo, de surgir um niilismo enorme, não? A gente ficaria paralisado aqui se não pudéssemos projetar um futuro. Você me diz que, por ora, é muito difícil não ser pessimista. Mas, para mim, é quase uma visão moral. Eu observo que muitas pessoas não se deixam levar: na França, há uma crise da educação, mas há muitos professores que fazem um trabalho formidável. Constato que o hospital não funciona muito bem, mas o pessoal é incrível. Constato que a vida política, em geral, é um tanto catastrófica, mas a maioria dos franceses acha que o prefeito de sua cidade faz um trabalho formidável, seja de direita ou de esquerda; aliás, isso não é muito importante. Na prática, o que se desfaz não é tanto a realidade da vida social. O que se desfaz são as representações da vida social. Eu acredito que as razões para ter esperança hoje são os que dizem “eu atuo onde estou, localmente, na minha instituição de ensino, com meus alunos, no meu hospital, no meu município, com meu pequeno clube de futebol”. Enfim, em tudo que cria uma sociedade. Do local para o global. Na França, os políticos de esquerda ou passam para o populismo de esquerda, ou nada dizem, ou dizem “não podemos dizer nada”. Então, acrescenta-se a esse sentimento de crise o fato de termos um Estado-providência extremamente complexo, relativamente eficiente, porém é um Estado ilegível, incompreensível, o que faz com que todos tenham a sensação de estarem sendo roubados pelo sistema. Devemos tornar o Estado-providência legível, para que cada um entenda o que paga e o que recebe. Você sustenta que a Justiça deve estar atenta às condições reais de vida. Como pensa que podemos inspirar não apenas a educação, mas políticas públicas mais inclusivas? Eu sou favorável a compromissos de justiça. Quero dizer com isso que uma sociedade de pura liberdade é a sociedade libertária, é um mundo selvagem absoluto. Uma sociedade de pura igualdade, já conhecemos isso, é o stalinismo, é a China de Mao Tsé-tung; se não houver liberdade, não há igualdade. Uma sociedade puramente meritocrática é uma sociedade darwiniana. Ou seja, os melhores vencem, e os outros perdem. A boa sociedade é aquela que combina, que faz com que a liberdade, a igualdade e o mérito se combinem de maneira moderada. É por isso que detesto as ideias radicais, elas têm consequências radicais e não correspondem à experiência das pessoas. Minha hipótese é que nos Estados Unidos, na Alemanha, na Grã-Bretanha, na França, na Itália, o voto da extrema direita é o voto das pessoas que falharam na escola. É o voto antielite, de ressentimento, é o voto contra os mais pobres. Portanto, se você considera que a igualdade de chances meritocrática é um sistema um pouco darwiniano, os vencidos se vingam. E, mesmo assim, é terrível. Não consigo me livrar da imagem da entronização de Trump, que para mim foi o choque. Trump está cercado por todos os bilionários do planeta e fala em nome dos pobres. Os pobres encontraram nesse homem a expressão de seu ressentimento contra os formados, as elites. É realmente inacreditável. A nuance que você propõe, equilibrar o mérito entre os plurais, é central para uma estratégia que reconheça as desigualdades, mas também promova equidade, equilibrando mérito, liberdade e igualdade. Talvez estejamos falando de caminhos para a esperança. Na Assembleia Mundial da Anistia Internacional deste ano, Ammar Dweik, diretor-geral da Comissão Independente de Direitos Humanos da Palestina, fez uma conferência contundente sobre a situação de Gaza. Falou com lucidez impressionante em meio às dores na região. Terminou dizendo que, apesar da fome e do horror, os palestinos continuarão ensinando amor aos filhos, plantando oliveiras e escrevendo poemas. Foi um testemunho de resistência e esperança de quem decidiu não morrer. Nem todos sobreviveram, mas aqueles que sobreviveram decidiram que não morreriam. Penso muitas vezes em São Tomás, que diz que a virtude essencial é a esperança. E nestes tempos é preciso ter esperança. É exatamente o que diz seu amigo palestino, seja o que for que aconteça, é preciso ter esperança, não se deve mais esperar pelo fim.

Os dois lados da dívida pública, por Samuel Pessoa

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Samuel Pessoa, Pesquisador do BTG Pactual e do FGV IBRE e doutor em economia. Folha de São Paulo, 09/11/2025. No caderno de fim de semana do jornal Valor Econômico da semana passada, o economista André Lara Resende (ALR) nos lembrou que a dívida pública tem dois lados. É um passivo do setor público, mas é riqueza, ativo, para o setor privado. Qualquer plano de consolidação fiscal que pretenda reduzir o endividamento público precisa se lembrar dessa dualidade. Se o setor público pretende promover uma consolidação fiscal que irá reduzir o endividamento de um país, cabe a questão: essa ação será um equilíbrio do ponto de vista dos detentores da dívida pública? Há o desejo, por parte do setor privado, de reduzir seu carregamento de dívida pública? Há sociedades que são muito poupadoras. O excesso de poupança estrutural do setor privado faz com que essas sociedades experimentem permanentemente uma situação de excesso de oferta sobre a demanda. Há uma pressão deflacionária permanente. Nesse caso, o setor público precisa incorrer em déficits permanentes para ocupar o espaço de demanda que o setor privado não ocupa. O aumento do endividamento financia a demanda pública necessária para manter e economia a pleno emprego e compensar a carência de demanda do setor privado. Tecnicamente, diz-se que o setor público tem a função de demandante residual no mercado de bens e serviços. Na coluna de 18 de maio do ano passado, mostrei que a dívida pública do Japão era de 252% do PIB em 2023. Os juros reais para o período dos 23 anos anteriores foram negativos em 0,3%, e a inflação, positiva em 0,4%, ambas as taxas anualizadas. A taxa de poupança do Japão nos mesmos 23 anos foi de incríveis 28% do PIB, apesar do envelhecimento da população. De sorte que o setor privado carrega nos seus portfólios os 252% do PIB de dívida pública e ainda sobram 80% do PIB para acumular no exterior: o setor privado japonês tem 80% do PIB de ativos contra não residentes. De fato, nesses 23 anos o Japão apresentou superávit de transações correntes de 2,9% do PIB! Ou seja, o Japão é um caso que descreve bem o fenômeno descrito por ALR em sua coluna. Se o governo japonês quiser proceder a uma forte consolidação fiscal, gerará uma recessão. Haverá carência de demanda agregada, os juros nominais serão zero, e a economia entrará em uma espiral deflacionária. A taxa de desemprego elevar-se-á. Certamente essa não é a situação da economia brasileira. Nos 23 anos terminados em 2023, a taxa real de juros foi de 5,1%, e a inflação, de 6,5%, já considerando a taxa anualizada. A taxa média de poupança no período foi de ridículos 16,2% do PIB, e houve déficit nas contas externas de 2,1% do PIB. A consequência é que, em vez de termos ativos no exterior, temos passivos no valor de 39% do PIB. A expressão de que no Brasil o setor privado não está muito disposto a carregar quantidades expressivas de dívida pública é dada, olhando a dinâmica das quantidades, pelo fato de termos acumulado um passivo contra o resto do mundo —se houvesse uma situação de forte demanda por ativos, acumularíamos no exterior—, e, olhando a dinâmica dos preços, pelo fato de a taxa de juros reais ser muito elevada. Assim, para o Brasil, se houvesse uma fada que reduzisse fortemente o endividamento público, haveria uma força na direção de redução das taxas de juros domésticas.

Quais as causas da riqueza das nações? por Marcos Lisboa

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Marcos Lisboa, Economista, ex-presidente do Insper e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005, governo Lula). Folha de São Paulo, 09/11/2025 Nos últimos 250 anos, houve uma revolução na vida cotidiana. Até o fim do século 19, a expectativa de vida nos países mais ricos era perto de 40 anos. A cesta de consumo de uma pessoa de renda média nesses países custaria cerca de R$ 10 por dia em valores atuais. Pouco mais de dois séculos depois, a expectativa de vida dobrou nas principais economias e a renda por habitante multiplicou cerca de 50 vezes, em alguns casos ainda mais. Estudar as causas desse fenômeno foi um dos temas fundadores da economia. Nos últimos 30 anos, houve avanços nessa agenda de pesquisa, que resultaram em vários Prêmios Nobel de Economia, inclusive o deste ano, conferida a Joel Mokyr, Philippe Aghion e Peter Howitt. O desenvolvimento ocorreu nos diversos países, mas de forma desigual. Ele se inicia na Inglaterra e na Holanda no fim do século 18, se espalha pelos Estados Unidos, depois na Europa ocidental do Norte e, mais tarde, na América Latina. O restante da Europa e o sudoeste da Ásia tiveram desempenho impressionante desde 1990. Robert Fogel, Nobel de 1993, e Angus Deaton, Nobel de 2015, mostram como os avanços são impressionantes, porém esse processo não é homogêneo, nem linear. No começo do século 19, por exemplo, parte da população urbana da Inglaterra apresentou indícios de perda da qualidade de vida, com redução da altura média e aumento dos índices de mortalidade. A imensa migração dos campos para as cidades e a falta de políticas públicas resultaram nessa piora temporária. Em algumas décadas, o quadro se reverteu. Os salários começaram a aumentar com a produtividade e se iniciou um aumento da expectativa de vida, de perto de 50 anos em 1900 para mais de 60 anos em 1930. Avanços desmedidos, mas com alguns retrocessos localizados, continuaram no último século. Esse processo foi reforçado por reformas na política pública. O fim do século 19 inicia uma agenda de seguridade social, de políticas de segurança e de meio ambiente, entre outras. O desenvolvimento das técnicas de estimação de impacto e a construção de grandes bases de dados nos últimos 30 anos têm permitido avanços na pesquisa em economia sobre temas como educação, discriminação e crescimento, entre outros. Amory Gethin, com uma imensa base de dados global e metodologia inovadora, identificou que, de 1980 a 2019, a educação contribuiu com cerca de 50% do crescimento, 70% do aumento de renda dos 20% mais pobres e 40% da queda da extrema pobreza. O desenho das regras da política pública e do funcionamento dos mercados é igualmente fundamental para explicar o crescimento. Instituições importam, como sistematizam Daron Acemoglu, Simon Johnson e James Robinson, vencedores do Nobel do ano passado. As sutilezas de como o sistema Judiciário é desenhado, as normas dos mercados de crédito, as regras de comércio exterior e a regulação dos setores de infraestrutura, por exemplo, estão associadas ao desempenho relativo dos países. Nos anos 1980, Paul Romer, Nobel de 2018, desenvolveu modelos que contribuíram para analisar o problema. Parte essencial do desenvolvimento econômico decorre de inovações que resultam em aumentos de produtividade. Ideias bem-sucedidas geram ganhos persistentes porque são não rivais. A mesma descoberta pode ser utilizada simultaneamente por muitos agentes e gerar retornos crescentes de escala: pode-se produzir mais com a mesma quantidade de insumos. No começo dos anos 1990, Aghion e Howitt desenvolveram um modelo sofisticado para analisar a interação entre concorrência, inovação e crescimento. O eixo é simples: mercados e concorrência, conhecido desde Karl Marx. As inovações bem-sucedidas de gestão, de tecnologia e de produtos permitem ganhos extraordinários para os seus responsáveis, o que incentiva a criatividade e o empreendedorismo. O resultado são as transformações frequentes a que assistimos no cotidiano. Os detalhes dessa história, contudo, são sutis. Firmas bem-sucedidas por vezes tentam bloquear o surgimento de competidores, o que restringe a inovação. As regras para garantir o funcionamento adequado de diversos setores são complexas. Para agravar, as formas de intervenção da política pública dependem das circunstâncias, como as características da tecnologia ou do acesso à informação. Em “The Power of Creative Destruction” (O Poder da Destruição Criativa)”, Aghion e coautores sistematizam os imensos benefícios da concorrência e da inovação para os ganhos de produtividade e os desafios da política pública para garantir um processo saudável de concorrência e de inovação. Mokyr foi o Prêmio Nobel mais inesperado e merecido. Seu monumental trabalho em história econômica documenta o papel das ideias nos mercados e na política. Uma concorrência permanente de interesses diversos, abordagens alternativas. Ao contrário do maniqueísmo usual, nem sempre as ideias refletem interesses, nem sempre os grupos mais fortes acabam por dominar o debate. No enfrentamento de ideias, as negociações na política resultam em escolhas das regras, por vezes bem-sucedidas, outras não. O mesmo ocorre com as inovações nos mercados. Ao contrário da visão usual, por exemplo, de uma Revolução Industrial, houve um processo com muitas inovações, com, por exemplo, centenas de patentes apenas para a máquina a vapor ao longo de décadas. As primeiras máquinas não eram muito melhores do que os processos tradicionais. Seguidas inovações foram aperfeiçoando-as e as gerações sucessivas foram, lentamente, aprendendo a utilizar a nova tecnologia, que se transformava continuamente. O mesmo processo ocorreu na agricultura inglesa nos séculos 16 e 17, com aumento da produção de trigo por hectare. Ele continua a ocorrer nas mais diversas atividades produtivas, como os ganhos de produtividade do nosso agronegócio ou nas inovações em medicamentos no resto do mundo. A interação entre concorrência, adequadas políticas públicas e ciência transforma nosso cotidiano. Em “The Enlightened Economy”, Mokyr conta com detalhes a longa e profunda transformação que começou na Inglaterra, nas ideias, nas instituições e na economia que terminaram por transformar o mundo.

‘Terrorismo’ também implode o Estado de Direito, por Frei Betto.

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Frei Betto, Escritor, e autor de ‘Diário de Fernando – Nos Cárceres da Ditadura Militar Brasileira” (ed. Rocco), entre outros livros Folha de São Paulo, 09/11/2025 Nas últimas décadas, o conceito de terrorismo tornou-se um dos mais poderosos instrumentos políticos e jurídicos para subverter os princípios do direito. Criado para descrever ações violentas com motivações ideológicas ou políticas, o termo se transformou em categoria jurídica e moral capaz de justificar exceções à lei e à própria ideia de justiça. O que começou como resposta legítima a ameaças reais, acabou se tornando uma ferramenta perigosa em mãos de Estados e governos que, em nome da segurança, subverteram princípios do direito internacional e das liberdades individuais. O ponto de inflexão ocorreu após 2001, com a derrubada das Torres Gêmeas. Diante do trauma coletivo, os EUA e seus aliados declararam a chamada “guerra ao terror”. Sob essa bandeira, práticas antes consideradas ilegais, como detenções sem mandado, tortura, sequestros internacionais e prisões secretas, foram normalizadas. O centro de detenção de Guantánamo, em território cubano, simboliza esse novo paradigma. Ali, centenas de pessoas são mantidas presas e submetidas a torturas por tempo indeterminado, sem acusação formal ou julgamento, sob a justificativa de que a luta contra o terrorismo exige “novas regras”. Essa “exceção permanente”, segundo o filósofo italiano Giorgio Agamben, abriu um precedente devastador. Em nome da segurança nacional, diversos países passaram a operar fora dos limites legais e éticos, e tratam o suspeito de terrorismo não como cidadão com direitos, mas como inimigo absoluto, alguém que pode ser neutralizado antes mesmo de se provar sua culpa. O direito à defesa, ao julgamento justo e à presunção de inocência foi substituído pela lógica de antecipação e punição preventiva. O preocupante é que essa erosão da legalidade não se restringiu ao combate ao terrorismo internacional. A mentalidade de “guerra permanente” contaminou outras áreas da segurança pública. Nos últimos anos, diversos governos, inclusive democráticos, passaram a aplicar a mesma lógica de exceção contra facções criminosas e organizações de narcotráfico. Operações policiais e militares têm adotado o discurso de que certos grupos representam uma ameaça tão grave à ordem pública que o Estado pode agir sem os freios da lei. Sob o pretexto de combater o crime organizado, como ocorreuagora no Rio de Janeiro, multiplicam-se execuções extrajudiciais, desaparecimentos e intervenções letais em comunidades pobres. O inimigo agora não é o “terrorista estrangeiro”, mas o “traficante”, o “miliciano” ou o “membro de facção” —rótulos amplos e fluidos que permitem justificar ações fora do devido processo legal. Em muitos casos, a sociedade, movida pelo medo e pela descrença nas instituições, aplaude essa postura, sem perceber que mina as bases da própria democracia. Ao transformar o combate ao crime em guerra, o Estado abre mão do papel de garantidor da lei para se tornar juiz e carrasco. A fronteira entre justiça e vingança se apaga. A morte passa a substituir o julgamento; a suspeita, a prova; e o inimigo, o cidadão. Esse processo corrói os princípios que sustentam o Estado de Direito, como a universalidade da lei, a proporcionalidade da punição e a dignidade da pessoa humana. A força da lei não está em seu predicado de punir, mas em sua capacidade de limitar o poder. Quando o Estado reivindica o direito de matar sem julgar, ele nega a essência do contrato social. Ao admitir que alguns indivíduos ou grupos podem ser eliminados sem defesa, a sociedade regride à barbárie, em que o mais forte impõe sua vontade sobre o mais fraco. O desafio agora é resgatar a primazia da legalidade em um mundo que se acostumou à exceção. O combate ao terrorismo e ao crime organizado é legítimo e necessário, mas precisa submeter-se ao controle jurídico e ao respeito aos direitos humanos. Não há segurança duradoura quando o medo se torna justificativa para a suspensão da justiça. Se o século 21 começou com a promessa de um mundo interconectado, rapidamente revelou o perigo de uma liberdade condicionada pelo terror. Hoje vivemos as consequências de um paradigma que transformou o inimigo em categoria política e o direito em instrumento de exceção. A luta contra o “narcoterrorismo” deve ser travada dentro da lei, nunca acima dela. Do contrário, o Estado, ao tentar nos proteger, acabará por destruir aquilo que mais deveria preservar: a própria ideia de justiça.

O neoliberalismo produz sujeitos para o autoritarismo, por Michel Aires de Souza Dias

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Michel Aires de Souza Dias – A Terra é Redonda – 05/11/2025 Mais que um modelo econômico, o neoliberalismo é uma engenharia social que, ao produzir indivíduos isolados e psicologicamente fragilizados, cria o terreno fértil para o florescimento de tendências autoritárias e fascistas Hoje, o neoliberalismo é mais do que uma racionalidade política e econômica. É uma forma de engenharia social que molda as relações sociais, determina os modos de viver, as formas de comportamento e produz novas formas de subjetividade. Sob seu domínio, os indivíduos se transformam em seres genéricos, em átomos sociais isolados, sem autonomia crítica, incapazes de compreender a totalidade reificada que os subjuga. Nesse contexto, a racionalidade neoliberal enfraquece os indivíduos formando o caráter autoritário. Assim, mobiliza processos psicológicos e afetivos, orientando-os para fins políticos e econômicos. Com o avanço do neoliberalismo no final dos anos 1980 na Europa e Estados Unidos (e no Brasil, nos anos 1990), ocorreram privatizações, desregulamentação da economia, cortes de gastos públicos e o enfraquecimento dos sindicatos, reduzindo a proteção social. As pessoas passaram a enfrentar sozinhas o desemprego, a precarização do trabalho e a crescente desigualdade. O resultado disso foi um maior enfraquecimento dos indivíduos, que diante das forças opressivas da realidade sentiram-se impotentes e frustrados. A partir disso, pode se observar a retomada das tendências fascistas na sociedade. Como avaliou Bresser-Pereira (2020), quando há uma crise da democracia, ela se torna alvo de grupos minoritários neofascistas. Desse modo, a crise atual da democracia não se reduz a uma crise política, mas envolve dimensões econômicas e sociais profundas. A crise ocorre não porque as instituições democráticas falharam, mas sim porque o modelo econômico fracassou, produzindo consequências no plano social e político. Foi o fracasso das políticas neoliberais que fomentou essa onda de governos neofascistas pelo mundo. Os regimes autoritários surgem no seio da democracia por causa da emergência de uma forma histórica de capitalismo extremamente “agressiva, desestabilizadora e desestruturante” (BRESSER-PEREIRA, 2020, p. 52). Hoje, a sociedade neoliberal tornou-se uma sociedade cada vez mais administrada, que enclausura os indivíduos determinando os padrões de pensamento e comportamento socialmente estabelecidos. Nesse sentido, o neoliberalismo se define pela união entre o capital e as instituições democráticas, buscando uma maior racionalidade e eficiência técnica e administrativa, a fim de se obter melhor organização, controle e planejamento dos indivíduos. Desse modo, a organização social continua sendo heterônoma, isto é, nenhuma pessoa pode existir na sociedade capitalista realmente conforme suas próprias determinações. O ego ajustado à realidade aprendeu a ordem e a subordinação por meio do aparato econômico que a tudo engloba (ADORNO, 1985). Os defensores do neoliberalismo sempre se orgulharam de serem os porta-vozes da liberdade, sempre pregaram a ideia de uma economia livre e de um Estado que garanta as liberdades individuais. Contudo, essa liberdade é somente aparente. Apesar de não intervir na coordenação da atividade econômica, o Estado continua intervindo na esfera privada e dos conflitos sociais. Segundo Safatle (2020, p. 21-2): “[…] o que o neoliberalismo pregava eram intervenções diretas na configuração dos conflitos sociais e na estrutura psíquica dos indivíduos. Mais do que um modelo econômico, o neoliberalismo era uma engenharia social”. A partir desse modus operandi, o objetivo do neoliberalismo era eliminar toda forma de discurso crítico de entidades, sindicatos, organizações e associações da sociedade civil, que buscam questionar a liberdade neoliberal. O pensador francês Michel Foucault (2008) compreendeu o neoliberalismo não apenas como uma política econômica, mas como uma forma de racionalidade que se escreve no âmbito das práticas de governar. Governar no sentido de racionalmente coordenar e organizar a existência humana, controlando e dirigindo as condutas dos indivíduos, assim como constrangendo suas ações e reações. Desse modo, o neoliberalismo é uma forma de governamentalidade que impõe um sistema normativo e uma racionalidade que se estende a todas as esferas da vida social. O corpo humano e os processos biológicos tornam-se o centro de estratégias de poder. Há um gerenciamento da vida das populações que passam a ser administradas pelo Estado, como os índices de natalidade, as pandemias, a sexualidade, a higiene e as doenças. O objetivo é tornar o corpo do indivíduo útil à produtividade. Em seu livro, La Nouvelle Raison du Monde (2009), Dardot e Laval procuraram mostrar, a partir do conceito de governamentalidade em Foucault, que o neoliberalismo é uma forma de racionalidade que molda as formas de comportamento, as relações sociais e as instituições políticas nas democracias ocidentais. Essa racionalidade normativa transforma as relações humanas, determinando os modos de viver e produzindo novas formas de subjetividade. Nesse sentido, o neoliberalismo deve ser compreendido como um sistema coordenado e organizado de normas e práticas, que impõe a concorrência entre os indivíduos como o fundamento da sociedade. Esse modelo concorrencial não seria apenas uma característica do mercado ou do Estado, mas transforma os indivíduos em empresários de si mesmos, incentivando a autoexploração, a competição e os conflitos de classe. A partir dessa mesma linha de raciocínio, em seu livro A Sociedade do Cansaço, o sul-coreano Byulg-Chul Han procurou argumentar que vivemos hoje numa sociedade do desempenho, da autoexploração e do excesso de trabalho. Não se trata mais de uma sociedade disciplinar, que desde o século XIX usou técnicas e práticas para coordenar e organizar a vida dos indivíduos: “A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho” (HAN, 2015, p. 14). Cada indivíduo torna-se responsável por si mesmo, por seu sucesso ou fracasso. Há uma obrigação constante de produtividade e de autossuperação. Nessa forma de sociedade, o indivíduo se explora voluntariamente. A ilusão está no falso sentimento de liberdade que a pessoa sente ao ser cada vez melhor, cada vez mais produtiva. Ao acreditar que está se autorrealizado, ela está na verdade se explorando até a exaustão. O resultado disso são as doenças mentais, como a depressão, os déficits de atenção, a síndrome de burnout e as crises de ansiedade. O que experimentamos hoje é o enfraquecimento psicológico dos indivíduos, que se tornam impotentes diante do aparato tecnológico do mundo industrial capitalista. Esse enfraquecimento fomentou as tendências fascistas na sociedade que temos visto em pleno século XXI. Para Gurski e Perrone (2021), esse novo fascismo seria um fenômeno globalizado que não possui características homogêneas. Ele possui múltiplas características, uma vez que se constitui como uma mistura de nacionalismo, xenofobia, racismo, lideranças carismáticas, identitarismo reacionário e políticas antiglobalização regressivas, que podem assumir diferentes matizes e que afrouxam naturalmente os vínculos de solidariedade da vida social. Por isso, no século XXI, a luta de classes se baseia na mobilização psicológica das massas – ou seja, em recursos internos, como as emoções e afetos. Daí o ressurgimento do fascismo em suas novas vestes e simbologias, tomando força no cotidiano das massas pela formação da subjetividade. Modificando os valores, transformando os conceitos e mistificando a realidade. Esse novo fascismo se consolida como uma ideologia que forma a subjetividade, por meio de uma visão de mundo utilitarista e fragmentada, que sustenta uma política econômica neoliberal perversa, de acordo com a nova fase de financeirização do capital (SCHLESENER, 2021). Para o sociólogo brasileiro Octavio Ianni, o neoliberalismo não é apenas uma doutrina socioeconômica que preconiza os antigos valores do liberalismo clássico, mas ele representa, antes de tudo, formas de socialização que “implica a crescente administração das atividades e ideias de indivíduos e coletividades” (IANNI, 1998, p. 112). Nesse sentido, a racionalidade neoliberal generaliza tensões, contradições e lutas sociais, com o objetivo de condicionar a dinâmica da economia e da reprodução ampliada do capital. Como os governos neoliberais não conseguem convencer os indivíduos com argumentos, uma vez que sua política econômica suprime direitos sociais, precariza o trabalho e acentua as desigualdades, então sua ação se volta à manipulação psicológica, mobilizando processos inconscientes, irracionais e afetivos. O objetivo é canalizar as frustrações dos indivíduos para um determinado fim: “Daí as reivindicações, os protestos e as lutas sociais, com frequência mesclados de etnicismo, xenofobias, racismo, sexismo, fundamentalismo e outras expressões das desigualdades sociais multiplicadas pelo mundo afora” (IANNI, 1998, p. 113). Apesar do discurso neoliberal sempre reafirmar o seu compromisso com a democracia, com as liberdades individuais, com o livre comércio e com o livre mercado, “a verdade é que sua ‘religião’ é o nazifascismo” (IANNI, 1998, p. 114). Para Ianni (1998), o nazifascismo deve ser compreendido como um produto extremo e exacerbado das mesmas forças sociais predominantes na sociedade administrada global em moldes neoliberais. É uma forma de racionalidade que produz as desigualdades, as tensões e as contradições que atravessam todo o corpo social. O que podemos observar no mundo globalizado é que o neoliberalismo tanto produz quanto se aproveita da fraqueza interior dos indivíduos, criando uma atmosfera de agressividade irracional, ao mobilizar processos psicológicos e afetivos, guiando os indivíduos para seus fins políticos e econômicos. Com isso, colabora para formar o caráter autoritário, por diversos canais, como a indústria cultural, as instituições do Estado, a família, a igreja, a internet e as redes sociais, fomentando nos indivíduos sentimentos e emoções, desenvolvendo tensões, ressentimentos, preconceitos, ódio e valores individualistas. Como observou Adorno (2015a, p. 184): “Pode muito bem ser o segredo da propaganda fascista que ela simplesmente tome os homens pelo que eles são: verdadeiros filhos da cultura de massa padronizada de hoje, em grande parte subtraído de sua autonomia e espontaneidade” (ADORNO, 2015a, p. 184). O estímulo da personalidade fascista pelo neoliberalismo tem a indústria cultural como seu principal meio de disseminação. É notório que os conteúdos e as imagens da semicultura são manipuladas pela indústria cultural, que dá grande ênfase à violência. Ela retrata apenas o que é de interesse para o capital, enfatizando apenas uma dimensão dos fatos, em especial, aquele que é espetacular: “O apelo a cenas surpreendentes e impactantes logo traz consigo cenas chocantes ou brutais. Ocorre uma estetização da violência” (IANNI 1998, p. 116). Com o avanço do neoliberalismo em escala global, preconceitos como o racismo, a xenofobia e o antissemitismo, que haviam diminuídos, ressurgem como fantasmas de um passado a assombrar o presente e a ameaçar as conquistas civilizatórias. Com isso, a indústria cultural alimenta a subjetividade de seus telespectadores e leitores, canalizando seus impulsos agressivos contra os excluídos socialmente. Ela criminaliza certas camadas ou grupos sociais, tornando-os culpados pelos problemas sociais. Por exemplo, se constrói a imagem do árabe como terrorista a pretexto de combater o fundamentalismo. O homossexual torna-se pervertido e destruidor dos valores cristãos e da família. O pobre é visto como preguiçoso e indolente, sendo acusado de viver de políticas sociais. Os miseráveis, pobres e excluídos da sociedade se tornam bodes expiatórios das mazelas do mundo e não suas vítimas. Assim, condenam-se indivíduos, coletividades, povos, nações e nacionalidades (IANNI, 1998). É possível notar que as tendências fascistas são estimuladas em filmes, novelas, programas de auditório e no jornalismo televisivo: violência e agressividade; exaltação da autoridade e das forças policiais; apelo às convenções; estímulo ao conformismo; pensamento estereotipado; ódio ao que é diferente, pensamento supersticioso, realismo exagerado etc. Todas essas características conservadoras são estimuladas pela indústria cultural. O objetivo é ativar as forças emocionais para direcionar a vontade dos indivíduos para interesses políticos e econômicos. Como afirma Kehl (2000, p. 149): “Uma sociedade em que o imaginário prevalece, em que as formações imaginárias é que elaboram o real – esse real ao qual não temos acesso – é uma sociedade de certa forma totalitária, independentemente de qual seja a situação do governo, do Estado, da polícia”. Outro instrumento empregado pelo neoliberalismo para coordenar e controlar as massas é a disseminação do medo. Hoje, os homens não precisam mais temer as forças míticas da natureza ou os animais selvagens, mas devem temer as forças aniquiladoras da sociedade. O medo da fome, da miséria, da criminalidade, da violência e da exclusão social substituiu o medo do homem primitivo das forças da natureza: “Tal como o medo ancestral do herói grego de sucumbir à natureza, no indivíduo burguês esse temor é atualizado em sua relação com o mercado: a concorrência é sentida como uma ameaça, devendo-se vencê-la ou ser derrotada por ela” (BATISTA, 2008, p. 9). No capitalismo neoliberal, para sobreviver os indivíduos precisam se submeter aos imperativos de eficiência e da produtividade. Com o avanço técnico e científico, não seria mais necessária a luta dos indivíduos pela existência, uma vez que a humanidade criou todas as condições materiais e intelectuais para acabar com a fome, a miséria e a luta pela vida. Contudo, para manter seu poder e a hegemonia, o capitalismo fixou os instintos numa época anterior da evolução humana e manteve a luta pela existência. Os homens são obrigados a regredirem seus instintos a estágios antropologicamente mais primitivos. Essa condição regressiva caracteriza as sociedades modernas reificadas. É fundamental para a manutenção do modo de produção capitalista. Como avalia Adorno (2015b, p. 77): “O medo de ser excluído [Angst], a sanção social do comportamento econômico, internalizou-se há muito através de outros tabus, sedimentando-se no indivíduo. Tal medo transformou-se historicamente em segunda natureza.” Se no homem primitivo o Ego se forma por causa do medo da morte, diante das forças destrutivas da natureza; no homem moderno o Ego se forma por causa do medo das forças aniquiladoras da sociedade. É pelo mesmo instinto de autoconservação que o Ego se desenvolve. Tal como o homem primitivo mimetizava as forças míticas da natureza para preservar sua vida, o homem moderno mimetiza as forças opressoras da sociedade para sobreviver. O indivíduo imita os padrões de comportamento, pensamento e conduta socialmente necessários para a preservação de sua existência. Ele identifica-se com a realidade. Como ser extremamente integrado e atomizado, ele racionaliza sua ação e seu comportamento com o único objetivo de ganhar a vida. Como afirma Horkheimer (2002, p. 46): “Através da repetição e imitação das circunstâncias que o rodeiam, da adaptação a todos os grupos poderosos a que eventualmente pertença, da transformação de si mesmo de um ser humano em um membro da organização, do sacrifício de suas potencialidades em proveito da capacidade de adaptar-se e conquistar influência em tais organizações, ele consegue sobreviver. A sua sobrevivência se cumpre pelo mais antigo dos meios biológicos de sobrevivência, isto é, o mimetismo”. A disseminação do medo como forma de controle e coordenação dos indivíduos é típico da racionalidade neoliberal. Segundo Schlesener (2021), o medo de perder o emprego, de passar fome, de não ter como morar, nem como proteger os filhos, paralisa os trabalhadores e os faz aceitar qualquer oferta de trabalho ou desistir de procurar trabalho, tentando sobreviver com alternativas humilhantes. Mais do que a violência física, a violência psicológica vivida cotidianamente por grande parcela da população dificulta qualquer forma de resistência. Se os indivíduos buscam viver em sociedade, não há outra saída senão se adaptar as condições de existência, precisam se conformar e desistir de sua subjetividade autônoma, que remete a ideia de democracia (ADORNO, 1995). Em uma passagem de Mínima Moralia, “Devagar e Sempre”, Adorno (2008) compara a pressa dos indivíduos nos grandes centros urbanos ao medo do homem primitivo ao correr de um animal na selva. O homem contemporâneo carrega traços mnemônicos de épocas passadas. Hoje, mesmo que os indivíduos se beneficiem dos confortos propiciados pelo progresso técnico e científico, não temendo os animais selvagens, eles ainda temem as forças aniquiladoras da sociedade, que se tornam uma segunda natureza. Por este motivo, eles estão sempre com pressa para cumprir seus compromissos: “Houve tempo em que se corria de perigos que não admitiam descanso, e inadvertidamente ainda o demonstra quem corre atrás do ônibus. A ordenação do tráfego não mais precisa preocupar-se com animais selvagens, mas não chegou a pacificar a corrida, estranha ao caminhar burguês. Torna-se visível a verdade de que não se está seguro da segurança, que estamos condenados a fugir das potências desenfreadas da vida, mesmo quando meros veículos” (ADORNO, 2008, p. 158). Ao produzir o medo nas pessoas, o objetivo do neoliberalismo é tornar os indivíduos cada vez mais dóceis e adaptados. A luta pela sobrevivência deve se transformar em eficiência padronizada. Em uma sociedade em que o indivíduo deve se transformar em empresário de si mesmo, ele tem que se tornar uma mercadoria desejável. Ele deve buscar no mercado as competências, as habilidades e os conhecimentos para que se torne cada vez melhor como uma mercadoria. Seu crescimento individual depende cada vez mais de sua capacidade de adaptação, de submissão aos imperativos da realidade. Desse modo, “o desempenho individual é motivado, guiado e medido por padrões externos ao indivíduo, padrões que dizem respeito a tarefas e funções predeterminadas” (MARCUSE, 1999, p. 78). Michel Aires de Souza Dias é doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP). Este texto é parte do artigo “Neoliberalismo e a produção da subjetividade fascista”, publicado em Aurora: revista de arte, mídia e política, São Paulo, v.17, n.51, p. 63-81, janeiro-abril 2025 Referências ADORNO, Theodor W. 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O que explica o fenômeno “pobre de direita”? por Falcão Filho.

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O livro “Pobre de direita – a vingança dos bastardos”, do sociólogo Jesse Souza, caiu no gosto popular após as eleições municipais Aluizio Falcão Filho – Veja – 05/11/2024 O livro “Pobre de direita – a vingança dos bastardos”, do sociólogo Jesse Souza, está no topo dos best-sellers de não-ficção da revista Veja pela segunda semana consecutiva. O texto caiu no gosto popular logo após as eleições municipais, que apontaram uma derrota fragorosa da esquerda, que perdeu quase metade de suas prefeituras. O título, assim, traria uma explicação para a votação significativa do conservadorismo no último pleito, que não seria obtida sem a adesão das camadas sociais de baixo poder aquisitivo. Não se trata, porém, de uma publicação que exalta conservadores. Pelo contrário. A narrativa traz críticas (veladas ou não) aos direitistas e às diferenças sociais do capitalismo. Além disso, boa parte de seu conteúdo é dedicado a discutir o racismo no Brasil. Há três pontos, no entanto, que merecem destaque. O primeiro é que Jessé Souza busca entender o fenômeno sem desmerecer o eleitor de classe baixa que decidiu votar em candidatos direitistas. “Dizer que o pobre de direita é burro, ‘bolsominion’, ou que a raiz do problema é a filiação religiosa ou o caráter intrinsecamente conservador da pessoa, como muitos fazem, não ajuda muito. Afinal, como já foi dito, o que importa é saber o que motivou a escolha por determinada filiação religiosa e aprofundar ‘o que’ a inclinação ‘conservadora’ lhe proporciona”, escreve o autor. A tese de Souza é a de que a religião tem papel importante na aproximação dos pobres com a direita – mas há outros fatores que explicam esse fenômeno. “Foi o decidido apoio do mundo evangélico que funcionalizou o voto do negro a favor de [Jair] Bolsonaro. Mas o decisivo aqui é que o negro não se identifica integralmente com Bolsonaro, enquanto o branco pobre, sim. O que está por trás da relação tão especial de Bolsonaro com os brancos pobres? A identificação afetiva e irracional é o mecanismo decisivo, e é o que explica o irracionalismo das massas”, interpreta o sociólogo. Por fim, o autor aponta como “razão maior” o “ressentimento e a raiva juntos, na medida em que “o acesso a boas escolas e boas universidades é restrito para a classe média branca e ‘real’ e o branco pobre foi injustamente excluído dessas chances pelo nascimento em uma família pobre”. Souza vai adiante: “Se ele fosse consciente de sua opressão, então poderia transformar a raiva e o ressentimento em indignação – o que o levaria para a luta política junto com os demais oprimidos. Mas não é isso o que acontece. Ninguém explica, muito menos nossa imprensa venal, quem causa seu sofrimento. Como a relação com a classe média ‘real’ e a elite é ambivalente, misturando inveja e admiração, então ele se torna presa de seu próprio desconhecimento. Como se vê, é a visão de um sociólogo de esquerda tentando encontrar as razões de um fenômeno que vem drenando eleitores do PT, PSOL e congêneres. Além disso, trata-se de um livro escrito antes das eleições municipais – daí as menções constantes ao ex-presidente Bolsonaro. Mas pelo menos duas razões listadas por Souza – a interferência da religião e o ressentimento reinante em boa parte da sociedade – devem ser analisadas com maior profundidade. O livro se baseia fortemente no teor de entrevistas feitas com eleitores que se encaixam no perfil abordado pelo autor – e frequentemente mistura direita e extrema-direita, como se fossem uma coisa só. Mas é uma leitura que deve ser feita, mesmo com o risco de desagradar muitos leitores. Os de esquerda podem se sentir desconfortáveis com o cenário descrito por Souza, que lhes é desfavorável – e os de direita seguramente não vão gostar de certas opiniões, francamente alinhadas com a chamada pauta progressista. Para aproveitar o que o texto tem a oferecer, portanto, é preciso se livrar de boa parte dos preconceitos políticos que a maioria de nós carrega. E usar o livro como ponto de partida para suas próprias reflexões.