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As políticas públicas para quem mora na rua, por Maria Hermínia Tavares

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Faltam eficiência e respeito à dignidade das pessoas nas ações do Estado Maria Hermínia Tavares, Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap. Folha de São Paulo, 11/04/2024 Dignidade foi uma das palavras mais ouvidas no recente seminário “População em situação de rua”, no auditório da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo). Entre diagnósticos, denúncias e propostas de políticas, o que uniu os participantes foi a constatação de que eficiência e respeito à dignidade das pessoas têm sido o bem mais escasso nas sucessivas tentativas de lidar com um problema tão descurado pelos governos municipais e estaduais. Uns e outros, com frequência, os reduzem a uma questão de polícia —o controle do tráfico e do consumo de substâncias ilícitas— ou de zeladoria urbana —a limpeza matinal de praças e ruas que servem de desabrigo aos sem-teto. Este o primeiro erro: simplificar o que é complexo por qualquer lado que se o focalize. Para a rua convergem pessoas levadas por amplo rol de tragédias, agravadas pela proximidade da pobreza extrema: perda de emprego ou trabalho ultraprecário, ruptura de laços familiares, uso de drogas, doenças, problemas psicológicos graves ou distúrbios mentais. Para a simplificação contribui a inexistência de um censo dessa população que a descreva em detalhe. A lacuna permite que se substitua conhecimento por estereótipos assentados em preconceitos. O segundo erro decorre do primeiro. Não existe bala de prata para lidar com problemas complexos. Há muitas dimensões a considerar —e a assistência social, embora insubstituível, está longe de ser a única. São igualmente importantes programas de moradia, saúde, educação, trabalho e renda, destinados a segmentos específicos desse contingente. A multiplicidade de instrumentos requer dos governos municipais e estaduais capacidade de coordenação, atributo raramente encontrado no setor público. O terceiro equívoco são as mudanças abruptas de orientação a cada troca de governo: produzem instabilidade institucional, descontinuidades de todo tipo, dificuldade de acumular experiências e aprender com elas, ruptura de vínculos de confiança particularmente importantes quando os beneficiários são pessoas que perderam ou estão por perder suas raízes. Difícil acreditar que iniciativas para população de rua possam se firmar se não virarem políticas de Estado, capazes de sobreviver a mudanças das coalizões governantes, a exemplo de Bolsa Familia, SUS ou Fundef. Essa transformação sempre requer programas bem concebidos e comunidades de especialistas que os defendam e logrem dar-lhes legitimidade social. Em suma, que sejam capazes de mostrar que a indignidade a que está condenada nossa população de rua torna menos dignos os que com ela convivemos.

Macroeconomia da estagnação

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Depois de um forte crescimento econômico nas décadas posteriores a segunda guerra mundial até os anos 1980, com rápido crescimento econômico, com incremento da urbanização, industrialização e melhora nos termos de troca, a partir dos anos 1990, a economia brasileira perdeu seu dinamismo econômico, convivendo com estagnação produtiva, com forte desindustrialização, com precarização do trabalho, com achatamento salarial, com aumento substancial da violência urbana e incremento da desigualdade social, culminando em uma sociedade paradoxal e fortemente polarizada, de um lado somos um dos maiores produtores agrícolas, vegetação diversificada, solo fértil, climas propício e agradável, convivendo, lado a lado, com grandes contingentes de indivíduos empobrecidos, esfomeados, sem perspectivas e sem dignidade. Desde os anos 1990, percebemos uma estagnação econômica e produtiva, taxas de juros escorchantes, câmbio valorizado, inflação em ascensão, diminuição dos investimentos produtivos, abertura econômica atabalhoada, privatização sem planejamento e marcado por crescimento da corrupção, fragilização dos órgãos de controles institucionais, culminando num processo amplo de desindustrialização e empobrecimento nacional, marcados por uma macroeconomia da estagnação. Qual nação conseguiu se desenvolver num cenário como este? Depois de décadas de crescimento econômico e produtivo vigorosos, a sociedade brasileira caiu no canto da sereia, aceitando uma agenda vinda de fora, se rendendo aos interesses do grande capital financeiro internacional, abraçando o Consenso de Washington, abrindo mão da soberania nacional em prol de grandes grupos econômicos internacionais, desta forma, perdemos autonomia política e aumentamos a dependência da economia mundial, somos atualmente exportadores de produtos primários de baixo valor agregado e somos importadores de produtos industrializados, dependentes de tecnologias externas e abdicamos da construção da tecnologia nacional, exportamos cérebros e importamos todos os tipos de produtos industrializados. Se construímos empresas de telecomunicação precisamos vender esse ativo para conglomerados internacionais e desta forma, passamos a absorver tecnologias de grandes grupos internacionais, aumentando a dependência externa. Se construímos aviões comerciais com grande complexidade e eficiência, somos obrigados a vender esse ativo estratégico para grupos globais maiores para aliviar os rombos fiscais e monetários. Se construímos chips e tecnologias complexas, setor responsável por grandes conflitos comerciais entre as nações internacionais, somos tentados a vender ou a fechar este ativo estratégico e nos tornando importadores dos grandes atores da tecnologia global, aumentando nossa dependência externa. Embora as nações desenvolvidas estejam reconstruindo os consensos econômicos, relendo os manuais de teoria econômica, retomando privatizações equivocadas, aumentando a intervenção do Estado na economia e reconstruindo subsídios para fortalecer empresas nacionais, além de defender os produtores locais, com pomposas isenções fiscais e financeiras, países como o Brasil, insistem na macroeconomia da estagnação, limitando o potencial da sociedade, aumentando a dependência externa, como vimos no período da pandemia com a criação de um rastro de destruição e desagregação social. Numa sociedade marcada pelo desenvolvimento tecnológico, pelo aumento da concorrência e pela instabilidade crescente, as nações que se sobressaem no cenário internacional são aquelas que investem fortemente em capital humano, com recursos garantidos em pesquisa científica, preservando sua autonomia econômica e sua soberania política, além de fortalecer seu projeto de nação e, principalmente, se afastando do complexo de vira lata, tão bem retratado por Nelson Rodrigues para analisar a elite nacional. Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Assim o neoliberalismo capturou a família, entrevista com Melinda Cooper

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Nos anos 60, o sistema saiu em defesa desta instituição: desmontar o Estado, exigia que ela assumisse o ônus do bem-estar social e de dívidas individuais, transmitidas entre gerações. Movimentos, hoje, a contestam: seria frente de luta anticapitalista? Melinda Cooper – OUTRAS PALAVRAS – 05/04/2024 Os valores da família: entre o neoliberalismo e o novo social-conservadorismo de Melinda Cooper, (Sydney, 52 anos), é uma obra fundamental para entender por que o neoliberalismo defende a instituição familiar. Cooper é professora de sociologia na Universidade Nacional Australiana em Camberra e, atualmente, pesquisa políticas neoliberais e finanças públicas. Esta entrevista é um resumo da recente apresentação de seu livro em Madrid. Você poderia explicar as teses do livro e por que é importante levá-las em consideração hoje para compreender o funcionamento tanto do neoliberalismo quanto do conservadorismo que ressurge em todo o mundo? Na esquerda tornou-se comum dizer que o feminismo e outros movimentos da New Left colaboraram com o neoliberalismo. A filósofa feminista Nancy Fraser disse, por exemplo, que havia uma afinidade subterrânea entre o feminismo de segunda onda e o neoliberalismo, uma vez que ambos minaram as formas de segurança social – íntimas e econômicas – que tinham sido construídas na ordem social keynesiana: o salário familiar [o homem ganhava o suficiente para sustentar toda a família e as mulheres da classe média não trabalhavam]. Mas se esta premissa for aceita, a conclusão lógica é extremamente perigosa: que para resistir ao capitalismo neoliberal é necessário restaurar as fronteiras sociais ou de gênero – ou mesmo raciais ou nacionais. Então pensei que era importante ver o que aconteceu naquele momento decisivo entre as décadas de 1960 e 1970. Concentrei-me em investigar um movimento que talvez não seja tão espetacular quanto outros mais conhecidos: o que defendia os direitos do Estado social e também questionava os efeitos do Estado social keynesiano; atacava a ordem de gênero que o keynesianismo deu origem e as suas hierarquias internas como, por exemplo, o salário familiar. E, ao mesmo tempo, não abandonava a ambição de uma redistribuição mais justa da riqueza social. A proposta era radicalizar a distribuição da riqueza para além dos limites toleráveis pelo Estado capitalista. Este movimento pela expansão dos direitos do Estado de bem-estar social fez parte da ascensão dos movimentos radicais de esquerda, o que incluiu a esquerda do movimento sindical. Eles pressionaram abertamente por aumentos salariais para além da sua associação com o crescimento. Tentavam recuperar para os trabalhadores uma parcela maior dos benefícios da renda nacional. Foi radical no nível salarial, mas também para quem se incluia nesta luta: trabalhadores migrantes, negros, jovens, mulheres e trabalhadores do setor público. Este foi um momento perigoso do ponto de vista dos capitalistas, que até então eram a favor do consenso keynesiano. Economistas como Milton Friedman, que tinha feito parte do consenso do New Deal face a esta militância da década de 1960, decidiram que este pacto tinha que acabar. Acho que é muito importante não perder o que realmente eram o feminismo e os movimentos antirracistas e trabalhistas daquele momento. Então, entram em cena os economistas neoliberais que queriam desmantelar todo o aparelho de bem-estar social: “Se o Estado de bem-estar social faz as pessoas se sentirem tão empoderadas ou legitimadas para lutar e, além disso, está aumentando os seus desejos revolucionários, então é hora de pôr fim a isto.” Por outro lado, havia os neoconservadores que veem a ruptura da família não apenas como o sintoma, mas como o catalisador da crise capitalista de 1970. O interessante é que os neoliberais da época disseram algo muito semelhante: o ataque na estrutura econômica da família keynesiana representava uma ameaça real ao capitalismo estadunidense. Por que eles se preocupavam com a família? Eles compreenderam que a família tinha uma função econômica e pensaram que poderiam restaurar a ordem capitalista se desmantelassem o estado de bem-estar social, por isso pressionaram para que as pessoas regressassem a algumas formas de parentesco – voluntário, forçado, normativo, não normativo… – porque isso funcionaria como um substituto do bem-estar social. Portanto, neste momento, os neoliberais e os novos conservadores encontram este estranho ponto de convergência onde veem a crise econômica em relação à desagregação da família e da ordem de gênero, e concordam que esta deveria ser restaurada. Não vamos voltar ao chefe de família masculino de meados do século XX, mas vamos voltar a uma ideia de responsabilidade familiar privada pelos seus membros. Entendo que as críticas de Nancy Fraser querem influenciar a forma como se criou uma hegemonia dentro do Partido Democrata em que se assume o reconhecimento das minorias e certas reivindicações, mas não estão associadas à redistribuição da riqueza como os movimentos pela expansão do bem-estar social do que você diz. Há uma parte do argumento de Fraser contra o neoliberalismo progressista com a qual concordo, mas não como ela o define. Significa que parte da esquerda foi absorvida pelas exigências neoliberais de reconhecimento de identidade e de inclusão legal ou de expansão de certos direitos, desvinculando-os de uma questão mais ampla de redistribuição econômica. É evidente que há um progresso real no reconhecimento de relações não normativas, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas poderíamos ver isso como um exemplo de neoliberalismo progressista. O que está acontecendo é que o impulso radical dos movimentos da década de 1970 foi canalizado de volta para o parentesco, na forma de casamento e família. Existe uma razão econômica que é totalmente compatível com as ideias neoliberais sobre o papel da família no bem-estar. Quando examinamos a jurisprudência em torno do casamento entre pessoas do mesmo sexo, vemos que o argumento era permitir que os gays se casassem porque a unidade conjugal serviria como um substituto para a assistência social e não seria um fardo para o Estado. Este argumento foi forjado em plena crise da aids, quando as autoridades públicas não quiseram arcar com os custos hospitalares decorrentes desta enfermidade. O economista neoliberal Richard Posner foi o primeiro a recomendar o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo. Ele não tinha nenhum tipo de oposição moral à sexualidade não normativa, mas ao mesmo tempo pensava que os direitos à sexualidade não normativa deveriam ser reconhecidos desde que as pessoas estabelecessem algum tipo de relação familiar com reconhecimento legal. Algo semelhante aconteceu com a reforma da assistência social que ocorreu sob a administração Clinton, uma espécie de apogeu do neoliberalismo progressista. Esta reforma reviveu a forma mais atávica e punitiva do welfare, porque implicava que uma mulher tinha que depender do cônjuge no casamento em vez do Estado. O que esta reforma fez foi investir o dinheiro da assistência social na localização dos pais genéticos dos filhos de mães solteiras para que pudessem cuidar da família. Nancy Fraser não aproveita esta reforma política histórica do neoliberalismo progressista para perguntar: o que isto nos diz sobre o neoliberalismo? Está claro que quando se trata de cuidados e dependência, o neoliberalismo não se contenta apenas com o reconhecimento da família, mas inventa ativamente relações familiares que não são emocionalmente reais ou consensuais e força as pessoas nestas relações a subsidiarem-se mutuamente para substituir o Estado. Assim, a responsabilidade familiar é um pilar absoluto da ideia neoliberal progressista. Resumindo: concordo que grande parte da esquerda está próxima do pensamento neoliberal, mas não acredito que o pensamento neoliberal seja de forma alguma anti-família ou anti-hierarquia de género. Este é o paradoxo do nosso tempo: assistimos a uma expansão das formas de expressão sexual e de parentesco permitidas, mas isso não significa que o próprio parentesco tenha deixado de ser central para o estado de bem-estar social neoliberal, de modo que mesmo ele seja ativamente imposto por o Estado como uma obrigação. Em geral, a esquerda também reivindica a instituição familiar, diz-se mesmo que é um baluarte da resistência ao neoliberalismo ou ao capitalismo. Porque isto ocorreu e porque é necessário questionar ou desafiar esta instituição? Penso que é uma mitologia tanto da esquerda como dos liberais econômicos. Se olharmos para a história do liberalismo econômico, os liberais sempre tiveram problemas em encaixar o papel da família na sua visão da dinâmica econômica porque são a favor da responsabilidade individual e pessoal e a contradição mais óbvia aqui é a questão da herança. O liberalismo econômico lutou contra isso desde a Revolução Francesa porque a herança ou certas formas de herança – como a primogenitura – aparecem como o último baluarte da ordem aristocrática feudal. Contudo, os economistas liberais não pedem o fim da herança, eles precisam dela, mas veem a contradição porque falam de meritocracia e presumem igualitarismo formal no contrato econômico. Mas enquanto existe herança, é preciso admitir que os indivíduos não celebram o contrato como iguais. Então a família apresenta sempre este inconveniente, mas é absolutamente fundamental, porque para proteger a riqueza privada é necessário proteger a transmissão da riqueza dentro da família. Portanto, a família nunca foi uma forma de resistência ao capitalismo. É a forma como a riqueza privada é reproduzida ao longo do tempo. Isto não significa que a forma da família permaneça estática, ela muda radicalmente em diferentes épocas e não tem a mesma função para diferentes classes, mas ela é absolutamente essencial. Portanto, a resistência à família é fundamental para o anticapitalismo. Não se pode criticar ou confrontar o capitalismo sem abordar a instituição da herança. Você costuma dizer que não existe uma “família tradicional”, mas que esta figura é uma produção histórica. A que se refere? Algo que me incomodou nas resenhas de Os valores familiares é que mesmo pessoas que simpatizaram com sua tese disseram que o livro era uma crítica à família nuclear patriarcal normativa. É isso, claro, mas é também uma crítica à família não normativa ou à família alargada. As pessoas acreditam que se as famílias fossem ampliadas seriam muito melhores. Se olharmos para a formação familiar no século XX, a família nuclear foi um produto da família fordista e do salário familiar: a capacidade de uma unidade familiar viver junta numa casa sem família alargada e sem ajuda doméstica – a classe média Para substituir o serviço doméstico, o trabalho doméstico não remunerado das mulheres foi parcialmente subsidiado pelo Estado. Todos estes tipos de ajuda social criaram e apoiaram a individualização da família. Hoje, penso que em muitos países estamos voltando a uma forma de família alargada. O exemplo da Austrália é muito claro porque não existe um sistema em que o trabalho migrante substitua o trabalho doméstico. O que acontece é que as mulheres casadas ou com filhos continuam trabalhando, mas é a família alargada que cuida dos filhos. O aumento dos preços da habitação faz com que as pessoas vivam cada vez mais juntas em lares multigeracionais. As crianças vivem na casa da família até aos vinte ou trinta anos, e mesmo mais, e os avós muitas vezes vivem com elas. No melhor dos casos, isto implica uma distribuição da riqueza familiar; no pior, uma distribuição da dívida. Quando eu era jovem, as pessoas saíam de casa aos dezesseis anos e viviam de forma independente. Isto mudou e acredito que a tendência neoliberal é no sentido da família alargada. É aqui que não guardo romantismo para as famílias tradicionais. E acho que temos que ser muito céticos quando as pessoas evocam essas ideias ou as romantizam. Em The asset economy – juntamente com Lisa Adkins e Martijn Konings – vocês explicam como desde a década de 1980 temos entrado numa fase de “bem-estar baseado em ativos”. A financeirização (especialmente a da habitação) substituiu o Estado de bem- estar. Que consequências isso tem para a configuração das classes sociais? Isto é algo que os neoliberais progressistas da terceira via apostaram. Eles pensaram: “Se conseguirmos empurrar o maior número possível de pessoas para a aquisição de casa própria e apoiarmos o aumento dos valores das casas, atrairemos esses eleitores para a economia da transmissão da riqueza familiar”. Por vezes, o argumento era “vamos criar uma geração de pequenos conservadores: pessoas que querem proteger a sua propriedade e a riqueza familiar”. Penso que, em muitos aspectos, foi uma proposta muito exitosa. As casas tornaram-se os ativos financeiros da classe média. O problema aqui é que chega um momento em que já não é possível incorporar as pessoas nesta economia porque os preços da habitação e os níveis de dívida disparam. Há muito tempo ultrapassamos aquele momento em que existia uma espécie de neoliberalismo aspiracional e estamos começando a ver novamente as linhas divisórias. Há uma fratura entre as pessoas que possuem propriedades ou cujos pais têm propriedades que irão herdar – mesmo mais tarde na vida – e aquelas que nunca herdarão e que estão presas no aluguel e em trabalhos precários. Isso transforma a forma como as classes são organizadas. Podem ser duas pessoas, ambas com empregos profissionais relativamente bem remunerados, mas numa cidade com preços imobiliários muito elevados, elas estão, na verdade, em posições de classe completamente diferentes. Não é necessário preocupar-se com os custos da habitação ou com o crédito ao consumo porque a habitação pode respaldar esses créditos. Assim, no livro tentamos estabelecer uma tipologia alternativa de classe que levasse em conta as posições das pessoas em relação aos ativos financeiros, incluindo a habitação. No topo estão as pessoas que possuem e comercializam ativos financeiros não residenciais – capital de investimento, propriedade intelectual… –, e depois uma classe média alta cujo principal ativo é a habitação. Aqueles que têm propriedades de investimento e aqueles que possuem apenas uma residência já estão numa posição de classe diferente, mas depois há todo um grupo de pessoas que têm hipotecas e que são, na verdade, proprietários de uma forma diferida, aspiracional, estão simplesmente endividados, o que é uma situação perigosa, tendo em conta a precariedade geral do trabalho. Portanto, também matizamos nossa análise de turma em termos de trabalho inseguro. Mas ter um emprego inseguro e uma casa como garantia por trás de você é muito diferente de estar na mesma situação, mas sem ativos. O que isto significa em termos de família é que regressamos a uma espécie de economia dinástica. As oportunidades sociais são determinadas pelos seus pais e pelo bem-estar dos pais. E o outro lado disto são as economias do trabalho forçado por dívida, que envolvem gerações inteiras. Um exemplo muito claro disso é a economia dos empréstimos estudantis nos Estados Unidos. Muitas vezes, são os avós e os pais que se endividam para permitir que um filho faça faculdade, na esperança de que esse filho consiga um emprego bem remunerado o suficiente para saldar uma dívida que envolve várias gerações da família. Esta é uma forma de trabalho forçado por dívida. Não se trata de dívida pessoal, mas de formas de dívida familiar intergeracional. Assistimos também ao ressurgimento de formas familiares de empresas capitalistas em todo o mundo. É óbvio quando você olha para pessoas como Donald Trump, Coke Industries… Essas empresas familiares privadas sempre existiram, mas assumiram uma nova proeminência e centralidade no capitalismo estadunidense que não tinham na década de 1970. Então eu acredito que este regresso da família como vetor de transmissão de riqueza está ocorrendo em vários níveis diferentes simultaneamente.

Novos ditadores evitam violência para fingir que são democráticos, aponta livro

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‘Democracia Fake’ discute como governantes abandonam tática do medo por manipulação mais sutil Ana Luiza Albuquerque, Repórter de Política, é mestre em Jornalismo Político pela universidade Columbia (EUA) e autora do podcast Autoritários. Folha de São Paulo, 07/04/2024 [RESUMO] Livro “Democracia Fake”, publicado recentemente no Brasil, alerta para nova estratégia de ditadores contemporâneos, Buscando forjar um verniz democrático que possibilite o estabelecimento de relações com países liberais, esses líderes abandonam a repressão violenta e se voltam para táticas de manipulação menos escancaradas. Uma multidão se aglomerava na praça principal da capital do Congo. Era 2 de junho de 1966 e o ditador Mobutu havia declarado feriado naquele dia. Ele queria que todos acompanhassem o que aconteceria ali. Sob um sol escaldante, desceram de um jipe militar quatro homens que usavam capuzes pretos, como descreve reportagem publicada no dia seguinte pelo jornal americano The New York Times. Eles caminharam até o centro da praça e, um a um, subiram os degraus de um andaime improvisado, onde havia uma grossa corda pendurada. Na frente de todos, foram enforcados. Os quatro eram inimigos políticos de Mobutu, que ordenou a execução sob o argumento de que o grupo tentaria matá-lo para dar um golpe. Sessenta anos depois, demonstrações ostensivas de violência como essa são mais raras, mesmo entre ditadores —no século 21, eles perceberam os benefícios de posar como democratas. É essa a tese proposta no livro “Democracia fake” (Vestígio), de Sergei Guriev e Daniel Treisman. A obra opõe dois tipos de ditadores. O primeiro, mais comum no século 20, governa pelo medo. Tem como marcas a repressão violenta (como torturas, prisões e assassinatos), a censura generalizada e escancarada, a imposição da ideologia oficial do regime e o culto à personalidade. O outro tipo, mais contemporâneo, é chamado pelos autores de “ditadores do spin” — não existe uma tradução literal para o termo, mas o sentido é semelhante a ditadores da manipulação. Esses governantes escondem a violência estatal, disfarçam a censura, cooptam empresas de mídia privada e mantém uma fachada democrática. Os dois representam um tipo distinto de perigo, diz Guriev em entrevista por videochamada à Folha. “Os ditadores do spin são menos perigosos por serem menos violentos. Há menos pessoas morrendo e sendo torturadas nas prisões”, afirma. “Por outro lado, são mais perigosos porque fingem ser democratas e às vezes são bem-sucedidos em enganar o Ocidente. Esse é o propósito do livro: alertar o mundo democrático que eles, ainda assim, são ditadores.” O modus operandi de líderes como Lee Kuan Yew, ex-primeiro-ministro de Singapura apontado no livro como precursor do modelo, envolve manipular a opinião pública para ganhar popularidade. “Os ditadores do spin sobrevivem não por destruir a rebelião, mas por remover o próprio desejo de rebelião”, escrevem os autores. O primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán é citado por Guriev e Treisman como um exemplo desse tipo de ditador. Ele não adotou a censura declarada, mas, segundo organizações que defendem a liberdade de imprensa, tomou controle do mercado da mídia por meio de oligarcas aliados, que teriam comprado empresas do setor. A ONG Repórteres sem Fronteiras afirma que 80% dos veículos de comunicação húngaros estão, na prática, nas mãos do partido de Orbán. O primeiro-ministro também disfarçou o autoritarismo no método que utilizou para expulsar do país a Universidade Centro-Europeia, fundada pelo magnata George Soros, alvo frequente de sua retórica populista. Para viabilizar a expulsão, o Parlamento governista aprovou uma lei que criava um motivo burocrático que impossibilitaria a continuidade do funcionamento da universidade na Hungria. Orbán minou o sistema de freios e contrapesos, mas não derramou sangue para isso —em primeiro lugar, porque não precisou. Para líderes como ele, a violência é o último recurso. Não necessariamente por uma questão moral, mas estratégica. “A globalização hoje oferece muitos incentivos para um país abrir as fronteiras e atrair investimentos estrangeiros, porque isso cria empregos e crescimento econômico. Para conseguir isso, eles têm que fingir ser democratas”, diz Guriev. “Para viajar para Davos [onde acontece o Fórum Econômico Mundial], eles precisam usar um terno, não um uniforme militar. As pessoas não vão apertar a mão deles se eles tiverem torturado milhares.” A globalização é um dos componentes do que os autores chamam de “coquetel da modernização”, uma junção de forças que empurraria algumas ditaduras rumo à democracia. A ditadura do spin seria uma forma de adaptação e sobrevivência em meio a esse novo cenário. “Se você quer transformar uma economia de renda média em um lugar próspero, você vai precisar de crescimento econômico baseado em inovação e conhecimento. Para isso, você precisa de pessoas com ensino superior”, afirma Guriev. “Essas pessoas não querem trabalhar em uma ditadura do medo. Então, você precisa ser mais aberto, fingir que é um democrata.” Guriev e Treisman criaram uma base de dados utilizando uma série de critérios para distinguir os ditadores do medo e os do spin. Os números corroboraram a tese deles: o segundo tipo é o mais frequente entre as novas ditaduras. Nos anos 1970, 60% dos ditadores que assumiram um governo se utilizaram do medo. Nos anos 2000, essa porcentagem caiu para menos de 10%. No mesmo período, o percentual que governa pelo spin subiu de 13% para 53%. Os demais são de um tipo híbrido. Guriev fala em duas maneiras comuns para a ascensão de um ditador do spin. A primeira acontece após o declínio de uma ditadura do medo. Por exemplo, um líder dessa linha morre e o seu sucessor conclui que, no mundo contemporâneo, é mais estratégico ser um ditador do novo tipo. A outra, explica ele, ocorre quando um governante, frequentemente populista, chega ao poder por eleições regulares e então subverte as instituições democráticas. Os autores afirmam que o ex-presidente Donald Trump tentou fazer isso nos Estados Unidos. Treisman diz que, se Trump foi eleito novamente neste ano, o cenário se repetirá. “Ele vai tentar minar o sistema de freios e contrapesos, vai tentar colocar ainda mais comparsas leais nas cortes, vai tentar reduzir o acesso à mídia. Ele vai politizar o serviço civil, a burocracia [do Estado]”, afirma. “A equipe dele já anunciou que tem planos de, no primeiro dia, demitir um grande número de funcionários federais e introduzir novas pessoas leais a ele.” Isso não significa que, caso eleito, Trump será bem-sucedido em sua tentativa. Os autores escrevem que a maior resistência contra líderes como ele está no grupo que chamam de “bem-informados”, subconjunto da população com “educação superior, habilidades de comunicação e conexões internacionais”, que documentam e denunciam os abusos do governante. “Não apostaria contra a sociedade americana, que é muito resiliente e está mobilizada. Existem advogados, jornalistas, juízes, funcionários do governo e ONGs que estão determinados a impedir a erosão da democracia”, diz Treisman. “Mas vai ser perigoso e destrutivo se ele tentar. Uma vitória de Trump seria ruim para o mundo todo. Encorajaria os ditadores de todos os tipos a aumentar a pressão. A gente viu evidências de que o envolvimento americano ajudou a impedir a tentativa de golpe de Bolsonaro.” Em alguns casos, um ditador do spin pode recorrer ao medo —um caminho sem volta. Os autores afirmam que isso aconteceu na Venezuela. Hugo Chávez, um ditador do spin, foi substituído por Nicolas Maduro, que, pressionado por uma grave crise econômica, aumentou a repressão. O russo Vladimir Putin seguiu o mesmo caminho após iniciar a Guerra da Ucrânia, diz Guriev. Putin teve grandes ganhos de popularidade com a anexação da Crimeia em 2014. Em um cenário de estagnação econômica, o russo pode ter calculado que uma nova guerra voltaria a unir a população em torno de uma causa em comum, fortalecendo seu governo. “Ele viu que não estava funcionando, que as pessoas estavam protestando e que a mídia independente estava ganhando influência”, afirma Guriev. “Na primeira semana, ele fechou a mídia e bloqueou o Facebook e o Instagram, e o Parlamento aprovou uma lei que determina que, quando alguém critica a guerra ou usa essa palavra, pode ir para a cadeia por até oito anos. Isso é censura declarada, algo que nunca tinha sido usado.” Putin foi, inclusive, o motivo pelo qual os autores começaram a escrever o livro. Guriev é um economista russo, hoje diretor de estudos de pós-graduação em economia na Sciences Po, em Paris. Crítico do governo, ele foi aconselhado a sair da Rússia em 2013. À época, um amigo afirmou ao New York Times que o economista tinha motivos para acreditar que seria preso. Já Treisman é professor de ciência política na Universidade da Califórnia e especialista em Rússia. Os dois começaram a observar que as táticas de manipulação de Putin —antes da guerra, considerado por eles um ditador do spin, não do medo— eram semelhantes àquelas usadas por outros líderes, como Orbán e Chávez. Então decidiram juntar forças para montar um modelo que explicasse esse processo e testasse as comparações entre os governos. Depois de publicar uma série de trabalhos acadêmicos, Guriev e Treisman decidiram que o livro seria uma forma de chegar a um público mais amplo. Expor as táticas dos ditadores recentes é justamente uma das soluções para lidar com eles. Outra, segundo os autores, é limitar as sanções econômicas apenas contra indivíduos e empresas. Os autores lembram que o crescimento econômico é a melhor esperança para transformar as autocracias em regimes menos violentos e, finalmente, em democracias. Os dois também advogam pela reparação das instituições nos países democráticos, restaurando a confiança da população nelas; que advogados, banqueiros, lobistas e outros integrantes da elite ocidental parem de capacitar ditadores; e que empresas ocidentais deixem de vender a eles tecnologias utilizadas para espionagem doméstica. Apesar dos alertas, o livro tem uma nota otimista: a ditadura do spin é tratada quase como um modelo de passagem em direção à democracia. “A gente especula que [esse tipo de ditadura] não é sustentável, mas não temos dados, uma prova empírica”, diz Guriev. Os autores afirmam que não existe nenhum antídoto conhecido para o “coquetel de modernização” que empurra as nações em direção à democracia. Isso porque, ao mesmo tempo que o desenvolvimento econômico ameaça os ditadores, já que os cidadãos têm mais acesso à educação e à informação, ele também é necessário para que esses líderes se mantenham no poder, já que crises econômicas ameaçam a popularidade do governo. Ou seja, ditadores até poderiam atravancar o crescimento para frear a democratização do país, mas isso também os prejudicaria. Em um momento de descontentamento, os ditadores precisam de mais repressão para se manter no cargo —só que foi justamente a inadequação da violência na sociedade globalizada o que os levou a abandonar o medo e a escolher a manipulação. Resta saber se esse dilema não resolvido de fato levará o mundo a um cenário mais democrático.

Heranças acumuladas

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Numa sociedade que passa por grandes transformações cotidianas, marcadas pelo desenvolvimento da tecnologia, do aumento da concorrência e de movimentações estruturais no mundo do trabalho, as nações precisam refletir sobre todos os desafios que limitam seu desenvolvimento, analisando as heranças acumuladas, as desigualdades crescentes para superarmos esta condição de subdesenvolvimento, sem essa superação as nações nunca conseguirão alcançar o sonhado desenvolvimento econômico e a melhora do bem estar social da comunidade. Ao analisarmos o caso brasileiro, percebemos que estamos acumulando problemas estruturais que se perpetuam à séculos sem perspectivas de melhoras palpáveis, cultivando subdesenvolvimentos, incrementando pobrezas e indignidades, alimentando espaços de corrupção, fortalecendo corporativismos degradantes, precarizando trabalho e educação, negligenciando a ciência, cultivando negacionismos, fazendo subinvestimentos em capital humano, pagando juros elevados que degradam as contas públicas, preservando privilégios escorchantes para poucos e, diante disso, estamos perpetuando em escalas crescentes de degradação, garantindo condições dignas para uma parte da população em detrimento de uma grande massa de excluídos e degradados. Aquela nação vista como o país do futuro vem perdendo espaço na economia internacional, somos um grande produtor de produtos de baixo valor agregado, estimulamos uma desindustrialização crescente, estamos nos entregando para uma especulação financeira, degradando as condições de vida dos trabalhadores como forma de aumentar as condições de competição internacional, fragilizando os sindicatos para garantir uma ilusória concorrência mundial mas, o que estamos vendo é o contrário, uma degradação das condições de vida dos trabalhadores, famílias dilaceradas, salários arrochados e grandes conglomerados enriquecidos, investindo seus recursos em Bolsas internacionais ou em paraísos fiscais e se alegrando com as isenções tributárias que garantem ganhos pomposos em detrimento de uma classe média degradada, mal remunerada, dando vazão a visões de vida reacionária e fascista, um verdadeiro caos. Numa sociedade internacional marcada pelo desenvolvimento tecnológico e pela forte competição econômica, as nações devem encarar de frente suas fragilidades. O Brasil precisa rever suas estruturas políticas e econômicas ultrapassadas e excludentes, para evitar uma perpetuação das desigualdades que crescem rapidamente, lembremos que, desde os anos 1980, nossa economia estagnou, nossas condições sociais se precarizaram, no campo político estamos cultivando uma polarização degradante e as perspectivas de uma economia global fortemente dominada pela tecnologia e pela competição econômica, diminuindo os horizontes nacionais, ficando cada vez mais empobrecidos e relegados ao esquecimento da comunidade internacional. Dentre os grandes teóricos da realidade brasileira, destacamos o economista Celso Furtado, responsável por escritos fundamentais para a compreensão dos desafios da sociedade brasileira, que ao analisar os horizontes nacionais destacou os grandes problemas do Brasil, destacando que estes não estavam no campo da economia, os verdadeiros problemas nacionais estão ligados ao campo político, uma elite imediatista e altamente dependente dos favores dos governos nacionais, que falam do empreendedorismo e da inovação como forma de superar nosso subdesenvolvimento mas, na realidade, encontramos vários grupos de parasitas que crescem e enriquecem degradando a nação e se alegrando com degradações e indignidades. Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Sociologia do Trabalho e Exclusão Social, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Maior parte da imprensa brasileira apoiou golpe de 1964, por Oscar Pilagallo

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Jornais defenderam deposição de João Goulart, presidente democraticamente eleito Oscar Pilagallo, Jornalista, é autor de “História da Imprensa Paulista” (Três Estrelas) e “O Girassol que nos Tinge: uma História das Diretas Já, o Maior Movimento Popular do Brasil” (Fósforo) Folha de São Paulo, 02/04/2024 A imprensa brasileira, esta Folha inclusive, desempenhou papel relevante na conspiração contra o presidente João Goulart e, em 31 de março de 1964, apoiou com entusiasmo a deflagração do golpe militar, antes mesmo que ele fosse consumado. Com exceção do “Última Hora” –que nascera em 1951 para apoiar o projeto trabalhista de Getúlio Vargas e, depois, de seus herdeiros políticos–, os jornais fustigaram com intensidade crescente um governo democraticamente eleito, preparando a opinião pública, durante meses, para a intervenção que rasgava a Constituição do país. No Rio de Janeiro, os principais concorrentes locais deixaram de lado as disputas comerciais para se unir num projeto comum. Em fins de outubro de 1963, cinco meses antes do golpe, entrou no ar a Rede da Democracia, um programa em que as rádios Jornal do Brasil, Globo e Tupi, dos Diários Associados, juntaram esforços para combater o que identificavam como ameaça comunista. O acordo foi costurado pelos próprios donos dos veículos: Nascimento Brito, Roberto Marinho e um representante de Assis Chateaubriand respectivamente. A repercussão ultrapassava largamente o alcance das frequências das três rádios fluminenses. O programa era retransmitido em centenas de emissoras espalhadas pelo país e, mais tarde, transcrito nos grandes jornais. Embora tivessem o mesmo objetivo –derrubar Jango–, os veículos do Rio se diferenciavam pelo alvo da artilharia. Marinho, tendo em vista uma demanda por um canal de TV, evitava a crítica direta ao presidente, com quem mantinha aberto um canal de comunicação. O Globo focava o governo, não o governante, ao contrário dos outros, que personalizavam os ataques na figura de Goulart. Não por acaso, fuzileiros navais obedientes a um militar fiel a Leonel Brizola –cunhado e apoiador de Jango– invadiram as sedes do JB, Globo e um jornal dos Diários Associados, além da Tribuna da Imprensa, nas primeiras horas do golpe. Os editoriais resumem a participação dos jornais no golpe. O tradicional Correio da Manhã entrou para a história com os títulos “Basta!” e “Fora!”, publicados em 31 de março e 1º de abril. O prestigioso JB celebrou “a vitória da democracia” contra “a implantação de um regime comunista”. E o Globo, um vespertino com penetração limitada, festejou na capa no dia 2: “Vive a nação dias gloriosos”, escreveu, atribuindo o desfecho da ação militar à “Providência Divina”. O início do golpe, no entanto, foi uma surpresa para a imprensa, assim como para os principais articuladores da ruptura na caserna, como o general Castello Branco. A ação foi precipitada por Olympio Mourão Filho, general que comandava as tropas de Juiz de Fora e não estava entre os protagonistas dos planos para derrubar Jango. Ele deu início às mobilizações na madrugada de 31 de março. Em São Paulo, o sinal mais nítido de que a imprensa passou a agir conjuntamente para afastar Jango foi a aproximação, às vésperas do golpe, dos arqui-inimigos Assis Chateaubriand e Júlio de Mesquita Filho, dono do jornal O Estado de S. Paulo. A diferença na atitude dos principais veículos limitou-se ao nível de engajamento de seus proprietários. Se quase todos franquearam as páginas dos jornais aos propósitos golpistas, houve quem fosse além, abrindo as portas de seus gabinetes aos conspiradores. Mesquita foi além do apoio editorial do Estadão, então o principal jornal de São Paulo. Em janeiro de 1962, mais de dois anos antes do golpe, recebeu na sede do matutino um general –Orlando Geisel, irmão do futuro presidente Ernesto Geisel – que o sondou sobre a ideia de instaurar uma ditadura. A resposta é uma carta intitulada “Roteiro da revolução”, que exorta os militares a intervir. Mais tarde, sairia da sala de Mesquita um documento em tudo semelhante a um ato institucional, prevendo até a suspensão temporária de garantias constitucionais. Quanto à Folha, teve influência relativamente menor –do tamanho de sua importância na época. A empresa que edita o jornal havia sido comprada em 1962 por Octavio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho, e os empresários trabalhavam para saná-la financeiramente antes de investir no setor editorial. No discurso, porém a Folha não se distinguia da concorrência. Contribuía para a difusão de teses antipopulistas e conclamava as elites à ação coordenada, com um tom cada vez mais alto. O jornal trabalhava com a hipótese de que Jango pretendia dar um golpe ou realizar uma manobra continuísta. A deposição do presidente contou até com a criação de um jornal popular para fazer contraponto ao Última Hora. Foi o Notícias Populares, que nasceu em outubro de 1963 financiado por Herbert Levy, um político da UDN (União Democrática Nacional), o principal partido de oposição a Goulart. Anos depois, já sem essa função, o NP seria incorporado ao Grupo Folha. Ao longo das duas décadas de ditadura militar, os veículos sofreram censura, passaram a criticar o governo e, sobretudo após a redemocratização, se penitenciaram por terem apoiado o golpe.

Laval: Uma nova guerra civil mundial?

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Casamento entre mercado e democracia fracassou. O que chamamos de neofascismo pode ser apenas o velho neoliberalismo, que mostra enfim seus dentes e seu projeto: impor, contra a ética do coletivo, a dominação ilimitada das oligarquias Christian Laval – OUTRAS MÍDIAS – 25/03/2022 “O novo é a manifestação cada vez mais aberta e assumida do caráter violento e autoritário do neoliberalismo, em qualquer uma de suas variantes históricas e nacionais. O que vemos agora, em plena luz, é uma nova guerra civil mundial”, escreve Christian Laval, professor emérito de Sociologia na Université Paris Nanterre. “Em vez de relegitimar e restaurar as formas da democracia clássica, o que significaria ao menos moderar as lógicas neoliberais e começar a reduzir as desigualdades atacando as grandes fortunas e as poderosas multinacionais, os governos preferem empregar métodos autoritários e violentos que permitem não fazer concessões que sejam muito caras aos mais ricos, mesmo que exacerbem a crise da democracia liberal”, avalia. Laval expõe alguns dos argumentos desenvolvidos no livro coletivo (escrito junto com Pierre Dardot, Haud Guéguen e Pierre Sauvêtre) Le choix de la guerre civile: Une autre histoire du néolibéralisme, Lux Editions, Montreal, 2021, apresentado no curso Direitas radicais e neoliberalismo autoritário, organizado pela Universidade do País Basco, com as Fundações Betiko e Viento Sur e o Centro de Pesquisa em Multilinguismo, discurso e comunicação (MIRCo). Eis o artigo. A situação mundial se caracteriza por uma grande crise das formas da democracia liberal clássica. Esta crise se manifestou, primeiro, por poderosos movimentos que reivindicaram uma verdadeira democracia entre 2010 e 2016. Depois, manifestou-se em um sentido completamente diferente, com a ascensão reativa de forças da extrema direita e o surgimento de governos com aspectos abertamente ditatoriais, nacionalistas, violentos, racistas, sexistas e, em alguns casos, fascistizantes. Trump, Salvini, Bolsonaro, Orbán e Erdogan são algumas das figuras emblemáticas que se somam na longa lista de déspotas e tiranos que fazem estragos em todos os continentes. Ao desestimular as reivindicações democráticas, sociais e ecológicas que entram em contradição com o projeto neoliberal, estes dirigentes só conseguiram encontrar base eleitoral enaltecendo os valores morais e religiosos tradicionais e o nacionalismo dos grupos sociais mais conservadores. Estes governos não estão aí para administrar uma situação, acomodar interesses diferentes, representar a população. Realizam uma guerra contra inimigos. Esta postura guerreira parece nova, ao menos para aqueles que tinham fé nas democracias de tipo clássica. Os liberais norte-americanos ainda permanecem sob o choque da invasão do Capitólio pelos fanatizados partidários de Trump, no dia 6 de janeiro de 2021. Como foi possível semelhante violação da democracia?, perguntam-se. Para compreender o fato é preciso adotar um ponto de vista estratégico, o de governos que estão comprometidos em uma guerra total: social, é claro, porque se busca enfraquecer os direitos sociais da população; étnica, porque pretende excluir os estrangeiros de qualquer possibilidade de acolhida e de coexistência; política e jurídica, utilizando novos meios de repressão e de criminalização da esquerda e dos movimentos sociais; cultural e moral, ao atacar os direitos individuais e as evoluções culturais das sociedades. Esta sequência histórica, cujo apogeu foi, de momento, o dia 6 de janeiro, não cai do céu. Há várias décadas, diversos sinais permitiam pressentir tal momento político, efeito de uma combinação de diferentes fatores, embora todos ligados ao colapso da crença na representação e legitimidade das elites e da classe política. Para prevê-lo, bastava estar atento ao sentimento de exclusão e de marginalização de uma grande parte da população, a ascensão de uma cólera antissistema, e o ódio crescente às minorias, estrangeiros e inimigos internos. Os comentaristas se contentam em estigmatizar esta reação complexa e contraditória, classificando-a como populista. Com isso, não explicam nada, embora considerem necessário preconizar a continuidade da abertura, da modernidade, do multilateralismo e, na Europa, a continuação da construção da União Europeia. Este momento de crise não tem uma causa única. No entanto, parece que é preciso levar a sério uma delas: a implementação, há várias décadas, de um determinado tipo de governo que consegue se afastar do controle dos cidadãos para impor pela força transformações profundas das sociedades, das instituições e das subjetividades. Como não ver uma relação entre esta chamada reação populista e o neoliberalismo, que fez nascer uma nova sociedade organizada como um mercado? Na verdade, esta reação, longe de colocar fim ao período neoliberal, constitui uma nova fase e uma nova forma do mesmo. O que estamos vendo hoje é um neoliberalismo cada vez mais violento, que se apoia nas cóleras e frustrações populares para reforçar ainda mais o império do poder sobre a população e fazê-la aceitar retrocessos sociais impossíveis de contemplar sem que ao menos uma parte consinta. É um novo neoliberalismo? Não exatamente. Trata-se muito mais, como acaba de ser dito, de uma fase histórica em que, diante de múltiplas contestações e temíveis prazos impostos pela crise climática, para garantir a continuidade de seu projeto neoliberal, os governos só se fortalecem com as paixões populares dirigidas contra minorias, estrangeiros, intelectuais. Com isso, obtêm certo apoio popular, deslocando os desafios políticos do campo da injustiça social para o campo dos valores da nação e a religião, desviando os medos sociais e as indignações morais para um conjunto de objetivos considerados como tantos outros desvios e ameaças: imigrantes, negros, mulheres, homossexuais, sindicalistas, militantes, intelectuais, e contra todas as forças sociais, corpos profissionais e instituições democráticas que se opõem a esta domesticação da sociedade. O caso do Brasil é muito instrutivo deste ponto de vista. Naquele país, não existe nenhuma esfera da vida cotidiana e nenhuma instituição que não tenham sido afetadas por um retrocesso dos direitos humanos, liberdade de pensamento e igualdade. É o que demonstram os repetidos ataques contra o meio ambiente, o mercado de trabalho, o sistema de aposentadorias, a universalidade da escola pública, os direitos dos povos autóctones. E não se deve esquecer que para esses neoliberais abertamente autoritários, como o bolsonarismo, o inimigo é acima de tudo a esquerda e o socialismo. Inclusive, é possível dizer que se trata de uma guerra civil contínua contra a igualdade em nome da liberdade. É uma das principais faces do neoliberalismo atual, visto pelo ângulo da estratégia. Um novo fascismo? Costuma-se falar de um novo fascismo. Embora seja verdade que o ódio e a pulsão criminosa estão no centro da expansão das formas ditatoriais de poder, como demonstra mais uma vez o caso atual do Brasil, e também a prática e a retórica de Trump, existem importantes diferenças em relação ao fascismo clássico. Ignorá-las levaria ao erro de diagnóstico. Diferente dos anos 1930, que viram a emergência dos fascismos europeus como reação diante do deixar fazer do liberalismo econômico e suas consequências, os neoliberalismos nacionalistas, autoritários e xenófobos de hoje em dia não pretendem reenquadrar o mercado no Estado total, nem mesmo, mais simplesmente, enquadrar os mercados, mas pretendem, ao contrário, acelerar a extensão da racionalidade capitalista à custa de aumentar ainda mais as desigualdades econômicas, consequência inevitável do livre jogo da concorrência e das privatizações. Nesse sentido, estes governos não viram as costas para o neoliberalismo, como alguns afirmam de forma imprudente, mas desnudam a lógica intrinsecamente autoritária e violenta do próprio neoliberalismo. Embora o Brasil seja o espelho crescente de uma guerra total contra as instituições da sociedade que não se dobram ao modelo neoliberal, seria errôneo pensar que esta violência estatal se circunscreve aos chamados países periféricos. Também no próprio centro dos países capitalistas mais desenvolvidos se exerce esta violência, ainda que sob formas diferentes. As violências policiais com as quais o governo liberal de Macron queria impor medidas impopulares, em 2018, ou o envio de tropas federais por Trump contra os manifestantes de Portland e de Chicago e a forma posterior de acender o fogo questionando o resultado das eleições presidenciais que eram desfavoráveis a ele, são exemplos recentes. Evidentemente, essas formas de violência saem do marco político liberal clássico, baseado desde o Iluminismo nas liberdades individuais e coletivas, no respeito ao sufrágio universal, na pluralidade de opiniões, na defesa do conhecimento racional e no respeito à verdade. Contudo, não nos deixemos confundir pela idealização do modelo político clássico nas democracias ocidentais. Se o neoliberalismo pôde se impor nos Estados Unidos e na Europa por governos legalmente eleitos (Giscard, Mitterrand, Thatcher, Blair, Reagan, Clinton, Schmidt, Kohl), não se privou, e há muito tempo, do uso da força legal, sobretudo policial e judicial, e de todos os tipos de medidas de coação regulatórias, administrativas e disciplinares à disposição dos Estados. Se estes vêm reforçando há muito tempo a vigilância dos indivíduos em nome da luta antiterrorista, as potências capitalistas privadas não ficam para trás, impondo, sobretudo aos assalariados, uma gestão baseada no controle individual que em parte destruiu a capacidade de defesa coletiva na esfera do trabalho. Mas, então, por que é possível falar em uma nova fase do neoliberalismo? A confissão da violência O novo é a manifestação cada vez mais aberta e assumida do caráter violento e autoritário do neoliberalismo, em qualquer uma de suas variantes históricas e nacionais. O que vemos agora, em plena luz, é uma nova guerra civil mundial. A expressão guerra civil mundial foi utilizada, desde a sua invenção por Carl Schmitt, em vários sentidos diferentes. Para ele, desde meados dos anos 1940, a Weltbürgerkrieg se refere ao final das guerras interestatais próprias do mundo westfaliano e ao nascimento de guerras assimétricas, realizadas em nome de um ideal de justiça que permite às superpotências exercer um poder de polícia no marco de um direito internacional renovado e exercido com uma vontade missionária. Para Arendt, a expressão se refere muito mais à guerra travada pelos regimes totalitários – nazismo e stalinismo – que, apesar de importantes semelhanças, não puderam evitar o enfrentamento direto por causa de sua vontade expansionista. Essa forma de análise foi retomada por Ernst Nolte, em sua obra La guerra civil europea, 1917-1945. Outros autores assumiram esta expressão para falar do confronto internacional entre as forças do progresso, surgidas do Iluminismo, e o fascismo. Foi o caso de Eric Hobsbawm, em A era dos extremos: o breve século XX. Evidentemente, utilizamos a expressão em um sentido muito diferente, por isso a importância do adjetivo nova. A nova guerra civil mundial não opõe diretamente uma ordem global de tipo imperial, mesmo que seja dirigida por uma potência hegemônica, à população, como também não opõe dois regimes políticos ou dois sistemas hegemônicos entre si. Opõe Estados, cujos meios de comunicação estão monopolizados por oligarquias agrupadas, a amplos setores de suas próprias populações. Mas qual é o objeto desta guerra? Oficialmente, trata-se de se opor a qualquer forma de intrusão de um inimigo exterior e de combater todos os seus aliados que, no interior, minam a unidade nacional, a homogeneidade do povo, a grandeza e a identidade da nação. Pode-se dizer que, para os defensores de um capitalismo sem fronteiras, é paradoxal inflamar as paixões com um nacionalismo exacerbado e com um racismo pouco velado, mas, na última década, já se provou que a divisão do povo e a inflexão de setores inteiros da população contra seus próprios interesses significaram enormes êxitos políticos. Nesse sentido, o Brexit é uma obra-prima do gênero. A França oferece um exemplo muito interessante de uma manobra política bastante surpreendente. Desde o outono de 2020, enquanto se esforça para conter a epidemia e multiplica seus erros de gestão, o governo se lançou em uma ampla campanha de caluniosos ataques contra as universidades, em especial contra as ciências sociais, acusadas de estar “pervertida pelo islamo-esquerdismo”. A palavra se refere a um puro fantasma, construído seguindo o modelo do judaico-bolchevismo dos fascistas e os nazistas de antes da guerra. O ministro da Educação nacional, assim como o do Ensino Superior e o do Interior (que dirige a polícia), durante meses, foram se revezando para fazer a opinião pública acreditar que o terrorismo encontrava apoio no meio universitário, que estaria contaminado pelos estudos pós-coloniais, decoloniais e outras teorias do gênero. É assombroso que tal quantidade de ignorâncias e de calúnias tenham sido emitidas pelos representantes de um governo que se diz liberal. Em algum momento, Macron não se apresentou como o anti-Orbán na Europa? Deve-se concluir: esse discurso de ódio de tipo fascistoide nada mais é do que uma versão local de uma lógica guerreira mais geral que consiste em designar, neste caso, no corpo de universitários e pesquisadores, o inimigo a ser esmagado, e que pode encontrar outros alvos em outros lugares ou mais tarde. A palavra guerra não pode ser tomada, aqui, como uma simples metáfora. A luta estratégica pela dominação à qual se dedicam os agentes políticos, econômicos e intelectuais do neoliberalismo, às vezes com o pretexto de lutar contra o terrorismo ou o islamismo radical, pretende consolidar o poder das oligarquias dominantes por outros meios distintos ao da confrontação pacífica de opiniões. Para dizer de outra maneira, em vez de relegitimar e restaurar as formas da democracia clássica, o que significaria ao menos moderar as lógicas neoliberais e começar a reduzir as desigualdades atacando as grandes fortunas e as poderosas multinacionais, os governos preferem empregar métodos autoritários e violentos que permitem não fazer concessões que sejam muito caras aos mais ricos, mesmo que exacerbem a crise da democracia liberal. Ellen M. Wood chama isso de guerra sem fim (infinite war): a guerra neoliberal não tem objetivos limitados, como seria a destruição de um exército inimigo ou a conquista de um território, mas é marcada pelo objetivo ilimitado da dominação do Estado sobre a população. A guerra em questão requer todos os meios pelos quais o Estado afirma seu domínio sobre a população, começando, para além do Exército, pela Polícia e a Justiça e, claro, pelos meios de comunicação de massas e as tecnologias de vigilância, o que supõe a estreita subordinação, ou ao menos a neutralização dos agentes do Estado para que cumpram da melhor forma possível sua função de dominação. A situação presente nos confirma o que dizia Foucault quando, ao contrário de Clausewitz, afirmava em seu curso, A sociedade punitiva, que “a política é a continuação da guerra por outros meios” (Foucault, 2013: 29). Maximizar a divisão das forças populares por meio da inflamação nacionalista e racista, mobilizar uma parte da população contra os intelectuais irresponsáveis e perigosos e, por fim, encontrar um inimigo a combater não é um fim em si. Não há nada de gratuito em designar um inimigo, se a política tem alguma racionalidade. Mas qual é o inimigo último? Tem como nome genérico a igualdade e aqueles que a almejam. O neoliberalismo como estratégia política contra a igualdade É claro, não existe uma única forma de neoliberalismo que seria idêntico em todas as partes. A ordem econômica mundial é construída se apoiando em estratégias nacionais diferenciadas e singulares em cada ocasião. Esta plasticidade e este caráter proteiforme do neoliberalismo devem nos prevenir contra qualquer tentação essencialista, embora não por causa disso devemos deixar de destacar a lógica antidemocrática inerente ao neoliberalismo desde a sua formação. O neoliberalismo autoritário não se opõe a um neoliberalismo que antes não fosse. O neoliberalismo assume uma lógica de enfrentamento violento com todas as forças e as formas de vida que não cabem no marco de um mundo hierárquico e desigual baseado na concorrência. E, para se realizar, este projeto neoliberal que pretende a construção de uma sociedade de mercado pura requer a violência do Estado. Falar em nova guerra civil mundial é, portanto, reinterpretar o neoliberalismo pelo ângulo de sua violência intrínseca e, sobretudo, questionar a maneira acadêmica de compreendê-lo como conjunto de doutrinas ou como posições puramente ideológicas. É aceitar o campo em que se desenvolve, o da luta política pela dominação, e entendê-la como uma estratégia política de transformação das sociedades em ordens concorrenciais que supõem o enfraquecimento ou a eliminação das forças de oposição. O termo neoliberalismo é objeto de um uso inflacionista que, hoje em dia, provoca certa confusão. O viés universitário, que Bourdieu chamaria de escolástico, consiste em não ver no neoliberalismo mais do que uma corrente intelectual com fronteiras também problemáticas, em que o estudioso se dedica a discutir sua unidade e a destacar sua diversidade, às vezes até negando sua existência em nome do número e diferença dessas variantes. É muito fácil constatar, e isso não deixou de ser feito doutamente, que desde os anos 1920 e 1930 existem divergências epistemológicas e ontológicas entre as diferentes correntes que hoje são chamadas, retroativamente, de neoliberais. Embora o conhecimento direto dos autores seja indispensável, limitar-se à história das ideias é ignorar que o neoliberalismo, na história política efetiva, não é apenas um conjunto de teorias, uma coletânea de obras, uma série de autores, mas um projeto político anticoletivista efetivado por teóricos e ensaístas que também são empreendedores políticos. Durante décadas, não pararam de buscar apoios e aliados entre as elites políticas e econômicas, construíram redes, criaram associações e think tanks para ganhar influência, desenvolveram uma verdadeira visão do mundo e até mesmo uma utopia radical, que permitiram o triunfo da governamentabilidade neoliberal, em quarenta anos de incansáveis esforços. O neoliberalismo, portanto, não é só Hayek, ou Röpke, ou Lippmann, é uma vontade política comum de instaurar uma sociedade livre, baseada principalmente na concorrência, em um marco determinado de leis e princípios explícitos, protegido pelos Estados soberanos, encontrando na moral, na tradição e na religião ancoragens para uma estratégia de mudança radical da sociedade. Em outras palavras, o neoliberalismo, como o socialismo, como o fascismo, deve ser compreendido como uma luta estratégica dirigida contra outros projetos políticos qualificados pelos neoliberais, globalmente e sem muitas nuances, como coletivistas, como o objetivo de impor às sociedades certas normas de funcionamento de conjunto, sendo a concorrência a principal delas para todos os neoliberais, já que é a única que assegura a soberania do indivíduo-consumidor. Somente esta dimensão estratégica e conflituosa permite compreender tanto as condições de surgimento como a sua continuidade no tempo e as consequências para o conjunto da sociedade. Sem esta definição política do neoliberalismo, nos perdemos no imbróglio das posições doutrinais e na busca de pequenas diferenças individuais, esquecendo o principal: o projeto unificador de uma empresa política, ao mesmo tempo militante e governamental. Quando nos deslocamos do campo puramente teórico ao dos preceitos práticos e as razões para atuar, descobrimos uma grande confluência de todas estas diferentes correntes no objetivo político perseguido, o que permite falar justamente de uma racionalidade política do neoliberalismo perfeitamente identificável. Este foi o enfoque de Foucault, às vezes mal compreendido por aqueles que o censuram por ter ignorado a heterogeneidade das escolas teóricas do neoliberalismo. O que o unifica relativamente é o objetivo político de instauração ou de restabelecimento de uma ordem de mercado ou de uma ordem de concorrência, considerada não só como a fonte de toda prosperidade, mas como o fundamento da liberdade individual. Essa ordem pode ser concebida de forma diferente, seja como uma ordem espontânea que reivindica ser confirmada e apoiada pelo marco jurídico (o neoliberalismo austro-americano de Hayek), bem como uma ordem social construída por uma vontade normativa do legislador (o ordoliberalismo alemão). Mas todo o cosmos neoliberal está convencido, antes de tudo, que é necessária uma ação política para realizar e defender tal ordem social. Esta também foi a base do acordo formulado, pela primeira vez, durante o Colóquio Lippmann, de 1938, e em uma segunda com a fundação da Sociedade de Mont Pèlerin, em 1947. Todos os grandes combates posteriores do neoliberalismo político confirmam este acordo, e nenhum neoliberal deixará de denunciar o Estado de bem-estar e de lutar contra o comunismo [1]. Mas não é preciso muita exegese para compreender como todos esses empreendedores políticos interpretam o sentido de sua própria ação. O dizem e o escrevem com todas as letras. Assim, Röpke: “A humanidade se deixará levar pelo coletivismo, enquanto não tiver em vista outro objetivo palpável, dito de outra maneira, enquanto não tiver frente ao coletivismo um contraprograma que possa entusiasmá-la” [2]. E se equivoca quem pense que existam ordoliberais mais sociais, mais moderados e mais razoáveis, que esperam do Estado serviços indispensáveis, e neoliberais mais radicais, os austro-americanos, que querem eliminar completamente o Estado [3]. Exceto alguns anarco-libertários que mantêm a chama do foco utópico na versão radical de um Von Mises, a imensa maioria dos teóricos do neoliberalismo que querem desempenhar um papel político eficaz tem uma concepção positiva do Estado, ainda que muito diferente dos promotores do Estado social. Quer se chamem Rougier, Lippmann, Eucken, Hayek ou Röpke, todos concordam em fazer do Estado o guardião supremo das leis fundamentais do mercado, papel eminente que deve obrigá-lo a se aliviar das responsabilidades sociais que os coletivistas o fizeram suportar indevidamente desde o final do século XIX. O mercado acima de tudo Os neoliberais têm a convicção de que o que está em jogo com a ordem de mercado é muito mais do que uma decisão de política econômica, é uma civilização inteira, baseada na liberdade e na responsabilidade individual do cidadão-consumidor. E como a sociedade livre se baseia em seu fundamento, o Estado, com todas as suas prerrogativas soberanas, conserva um eminente papel a desempenhar, e faz disso o dever de utilizar os meios mais violentos e mais contrários aos direitos humanos, caso a situação o exigir. O mercado competitivo é uma espécie de imperativo categórico que permite legitimar as medidas mais extremas, inclusive o recurso à ditadura militar se necessário, como ocorreu com o golpe de Estado no Chile, aplaudido pelas cúpulas intelectuais do neoliberalismo mundial. Para dizer em uma linguagem um pouco envelhecida, mas que expressa claramente as coisas: o mercado é a nova grande razão do Estado neoliberal. Este ponto fixo explica a plasticidade política do neoliberalismo. Em algumas ocasiões históricas, o neoliberalismo parece se confundir com o advento ou o restabelecimento da democracia liberal, em outras circunstâncias, quando a ordem de mercado parece ameaçada, conjuga-se com as formas políticas mais autoritárias, chegando até a violação dos direitos mais elementares dos indivíduos. E em muitos outros casos, a democracia parlamentar se vê pouco a pouco esvaziada de sua substância por um Estado policial que exerce vigilância e malevolência, diante de tudo o que possa ameaçar a sacralizada ordem da concorrência. Assim é possível considerar as circunstâncias tão distintas que atravessou o neoliberalismo, dos anos 1930 até hoje. A refundação teórica do liberalismo nos anos 1930 pretendia ser uma reação às formas ditatoriais do comunismo russo, do fascismo italiano e do nazismo alemão, todas entendidas como a consequência lógica do dirigismo e do nacionalismo econômico. O ordoliberalismo alemão, de finais dos anos 1940, foi a principal fonte da refundação de uma Alemanha ocidental desnazificada e democratizada e, mais tarde, nos anos 1950 e 1960, o principal fundamento doutrinal de um mercado comum europeu, contemplado como a base das instituições democráticas e da paz. Mais adiante ainda, entre os anos 1970 e inícios dos anos 1990, a lógica neoliberal avançou à medida que ocorreu o enfraquecimento e a posterior queda dos regimes comunistas, e acompanhou o progressivo desaparecimento das ditaduras militares anticomunistas, tanto na Europa como na América Latina. Graças ao mercado universal que estava sendo construído, podia parecer que o Estado jamais poderia esmagar a sociedade, oprimir os indivíduos, bloquear a informação. A abertura do mundo exigia um Estado apaziguado, respeitoso com os cidadãos, não desejar mais controlar e reprimir a população. Inclusive, a globalização foi entendida por certo número de ensaístas e jornalistas como o meio mais radical e mais eficaz de estender as liberdades políticas à China! As próprias guerras mudavam de sentido: não derivavam mais de nações inimigas, não pretendiam conquistar, opunham a civilização do Bem às forças obscuras do Mal. A grande ilusão, que favoreceu justamente o desenvolvimento do neoliberalismo, foi ter acreditado no casamento feliz entre o mercado e a democracia. Essa época acabou. É o momento do enfrentamento brutal contra os revoltosos e descontentes, da instrumentalização da justiça e o exercício da força desencadeada pelos policiais. Mas o mais novo e desconcertante, na atualidade mais recente, é sem dúvida a nova conjugação entre o neoliberalismo e o populismo nacionalista mais autoritário, como se, na gama de técnicas para impor a liberdade dos mercados contra todas as reivindicações de igualdade, novos poderes tivessem conseguido a façanha de desviar a cólera das massas e de a fazer servir, por incrível que possa parecer, para promover o neoliberalismo mais radical. Um erro constante na ciência política consiste em simplesmente opor progressistas da globalização a populistas nacionalistas. A situação contemporânea exige mais sutileza na análise. O neoliberalismo de hoje não é mais o de ontem, está dividido entre versões aparentemente muito diferentes, o que pode ser a melhor garantia para a sua sobrevivência e reforço. Assim como a crise econômica e financeira de 2008 foi uma bela oportunidade para se ir mais longe ainda na via neoliberal, a atual crise da representação, no centro da democracia liberal, oferece às forças conservadoras a oportunidade para mobilizar as massas mais desfavorecidas e mais desesperadas para colocá-las a serviço de uma forma de neoliberalismo tão turvador que é difícil identificá-lo como tal, já que é ao mesmo tempo nacionalista, reacionário e racista. E enquanto outrora o neoliberalismo se baseava no medo fóbico das massas, fonte de todas as derivas coletivistas, agora parece se transformar em uma espécie de fundamentalismo da nação e do povo. O aspecto já habitual de usar a violência neoliberal contra as instituições e as pessoas força a interrogar de uma forma nova a história do neoliberalismo em suas relações com a violência e o Estado. A questão política e teórica em questão é se as aparências liberais, pluralistas, abertas, modernistas do neoliberalismo, que serviram para seduzir a novas gerações urbanas, culturalmente avançadas e em sua época tecnologicamente de ponta, não foram iscas que dissimularam, durante um período que já ficou para atrás, o caráter profundamente agressivo e regressivo de uma estratégia que hoje se avalia melhor, pelos obstáculos e contestações que encontra e que precisa superar por todos os meios. Referência Foucault, Michel (1992). Genealogía del racismo. Madrid: Ed. de La Piqueta. Notas [01] Quando em 1948 os ordoliberais alemães passaram à ação para convencer os dirigentes alemães da dupla zona anglo-americana de liberar os preços e reformar a moeda, o primeiro número de seu órgão de combate, o Ordojahrbuch, que se apresentava como o manifesto do ordoliberalismo, colocou como introdução um grande texto de filosofia social de Hayek. “O verdadeiro e o falso individualismo”, F. Hayek, “Der Wahre und falsche Individualismus”, Ordojahrbuch, nº 1, 1948. Cf. Patricia Commun, Les ordolibéraux, Histoire d’un libéralisme à l’allemande, Les Belles Lettres, 2016. [02] Citado por Jean Solchany, Wilhelm Röpke, l’autre Hayek, Aux origines du néolibéralisme, París, Publications de la Sorbonne, 2015, p. 85. [03] A biografia de Röpke, de Jean Solchany, oferece uma negação definitiva das interpretações que veem no sociólogo liberal um contrapeso moderado ao ultraliberalismo de Hayek. Demonstra que Röpke é muito mais radical na crítica da modernidade democrática do que Hayek, até o ponto de condenar a descolonização e aprovar o apartheid sul-africano.

Ditadura não é coisa do passado, Lula, basta olhar PMs, por Adilson Paes de Souza

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Ditadura não é coisa do passado, Lula, basta olhar PMs Presidente, expurgar o legado do golpe de 64 das polícias é indispensável para ‘tocar o Brasil para a frente’ Adilson Paes de Souza, Doutor em psicologia escolar e do desenvolvimento humano e pós-doutorando em psicologia social pela USP. Folha de São Paulo, 31/03/2024 [RESUMO] Políticas atuais de segurança pública, orientadas por lógica de guerra contra parte da população e aposta na letalidade policial como medida de proteção social, atualizam os métodos empregados pelo regime militar. Autor sustenta que a situação demanda enfrentar as heranças da ditadura em vez de tratar o golpe de 1964 como parte da história que não deve ser remoída, como Lula faz. Não tenho recordação da ditadura na minha infância, sensação que causa hoje em mim estranheza. Lembro, vagamente, as propagandas ufanistas sobre o país que deu certo, o milagre econômico, o progresso e o desenvolvimento de toda a nação. Presidente, eu nasci em julho de 1964, três meses depois do golpe de Estado e da instauração da ditadura no Brasil. Diferente do senhor, que tinha 19 anos de idade, não lembro, obviamente, o que aconteceu. Acho que o senhor se lembra, presidente, de um programa de TV chamado Amaral Netto, o Repórter, ocasião em que os supostos êxitos do governo militar eram apresentados e exibidos à exaustão: um Brasil que deu certo graças aos militares —aliás, fala constante de pessoas que fazem, hoje em dia, apologia do período ditatorial. Não era sobre um Brasil onde pessoas eram torturadas e desapareciam. Não era sobre um Brasil onde a miséria e a hiperinflação reinavam. Está vendo como é importante falar de um passado que insiste em ser negado, presidente? A vida seguiu adiante. Em 1985, se iniciou o processo de redemocratização do país. Em 5 de outubro de 1988, foi promulgada a Constituição Federal, a nossa Constituição Cidadã, marco do retorno da democracia ao país. É o que dizem. Não foi bem isso, contudo, o que aconteceu. Ingressei em 1982 no curso de formação de oficiais da Polícia Militar de São Paulo e o concluí em 1984, em plena ditadura. Durante o processo de redemocratização —vale dizer, a Assembleia Constituinte—, pude notar a presença marcante do lobby militar, com o objetivo de barrar mudanças na estrutura das Forças Armadas e das polícias militares no novo texto constitucional. Naquela ocasião, delegações de oficiais das polícias militares estavam em Brasília o tempo todo e atuavam conjuntamente com as Forças Armadas. O lobby deu certo: os papéis, tanto das Forças Armadas quanto das polícias militares, são os mesmos, na essência, dos que tinham na ditadura. Aliás, Lula, o senhor se tornou recentemente parte de um lobby poderosíssimo em defesa da aprovação da Lei Orgânica das PMs, lei pior que a do regime militar. Presidente, nada mudou da ditadura para cá em termos de segurança pública. Hoje, temos uma estrutura incompatível com os valores democráticos presentes na nova Constituição —basta olhar a vasta produção de dados estatísticos sobre a letalidade policial. O Estado brasileiro, por meio das polícias, se manifesta levando medo e desconfiança à sociedade, característica marcante da atuação estatal durante o regime militar. Desde 1988, houve inúmeras operações policiais, em vários estados, com cifras inaceitáveis de pessoas mortas. Essas operações têm em comum a falta de transparência e a morosidade nas apurações, o discurso de guerra contra inimigos e a aposta na letalidade policial como a única medida para alcançar a paz social. Via de regra, foram objeto de denúncias de graves violações de direitos humanos e de execuções sumárias, tiveram locais de crime violados e não contaram com perícia e relatos de testemunhas adequados. Isso não é nada diferente das operações realizadas contra os ditos subversivos nos anos de chumbo. Técnicas de tortura e de assassinato de pessoas vistas como inimigas da nação foram, mesmo após 1988, ensinadas para policiais empenhados no que acreditavam ser a defesa da sociedade contra quem queria destrui-la. Isso aconteceu durante o regime militar, sob a instrução de agentes estrangeiros —CIA e OPS (Gabinete de Segurança Pública dos EUA)— em ações contra elementos subversivos, sob a égide da Doutrina de Segurança Nacional. O emprego desses métodos, no entanto, persiste até hoje no dia a dia de aplicação de uma política de segurança pública militarizada, que se traduz em uma aludida guerra contra os inimigos da sociedade. O que mudou então, Lula? O senhor acredita, sinceramente, que o golpe é coisa do passado? Até hoje, presidente, policiais acreditam que o assassinato é uma medida eficaz de proteção da sociedade. A morte de pessoas identificadas como inimigos a serem combatidos, marginais, suspeitos etc. é tratada como sinônimo de eficiência estatal e de segurança pública, da mesma forma como ocorria durante o regime militar. Lula, lamento dizer, a ditadura não ficou para trás, ao contrário do que o senhor diz: ela repercute e produz consequências na atualidade. Exemplo nítido disso é a conduta de militares no governo Bolsonaro e o envolvimento deles na trama golpista agora investigada, em atuação semelhante à ocorrida às vésperas do golpe de 1964 —que, de acordo com suas declarações recentes, ficou para trás. Insisto, presidente, o passado está presente. Ao dizer que o golpe de 1964 “já faz parte da história”, o senhor ignora as centenas de assassinatos e desaparecimentos pelo regime militar (434 pessoas, segundo a Comissão Nacional da Verdade). O senhor ignora o sofrimento de seus parentes, familiares e amigos. Suas afirmações também minimizam o fato de milhares de pessoas serem executadas todos os anos pelas polícias, hoje ditas democráticas. Seu silêncio, presidente, em relação a determinadas operações policiais que resultam em mortes não deixa de ser estarrecedor. Por que silenciar em relação ao golpe de 1964 e a atuação das polícias hoje? Por que não recriar a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos? Por que vetar eventos oficiais sobre os 60 anos do golpe militar em vez de fomentar a memória a respeito da ditadura? Por que tentar apagar o passado? A razão é o medo? Algum tipo de acordo com quem se opõe à justiça de transição e à punição de responsáveis por crimes durante o regime militar? Na Argentina e no Chile, por exemplo, militares que torturaram e assassinaram foram punidos. Veja como o cenário institucional é bem diferente nesses países. Isso faz falta ao Brasil. Expurgar o legado da ditadura militar das Forças Armadas e das polícias militares é indispensável para “tocar este país para a frente” e garantir a preservação da nossa democracia.

A miséria da Economia, entre mitos e preguiça, por Jayan Ghosh

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Em meio a uma crise civilizatória aguda, uma disciplina crucial para buscar saídas rende-se a velhas fórmulas, à consagração de “saberes” fossilizados, aos encantos do poder e à arrogância diante de novas teorias. Haverá meios de salvá-la? Jayan Ghosh – OUTRAS PALAVRAS – 26/03/2024 A necessidade de mudança drástica na disciplina econômica nunca foi tão urgente. A humanidade enfrenta crises existenciais, com a saúde planetária e os desafios ambientais se tornando grandes preocupações. A economia global já estava mancando e frágil antes da pandemia. A recuperação subsequente expôs as desigualdades profundas e agravadas, não apenas em renda e riqueza, mas também no acesso às necessidades humanas básicas. As tensões sociopolíticas resultantes e conflitos geopolíticos estão criando sociedades que em breve podem ser disfuncionais a ponto de não serem mais vivíveis. Tudo isso requer estratégias econômicas transformadoras. No entanto, a corrente principal da disciplina persiste em fazer negócios, como de costume, como se mexer nas margens, com pequenas mudanças, pudesse ter algum impacto significativo. Há um problema de longa data. Muito do que é apresentado como sabedoria econômica sobre como as economias funcionam e as implicações das políticas é, na melhor das hipóteses, enganoso e, na pior hipótese, simplesmente errado. Por décadas, um lobby poderoso dentro da disciplina vendeu meias-verdades e até falsidades em muitas questões críticas. Por exemplo, como os mercados financeiros funcionam e se eles podem ser “eficientes” sem regulamentação; as implicações macroeconômicas e distributivas das políticas fiscais; o impacto do mercado de trabalho e a desregulamentação salarial no emprego e no desemprego; como os padrões de comércio e investimento internacionais afetam os meios de subsistência e a possibilidade de diversificação econômica; como o investimento privado responde a incentivos políticos, incentivos e subsídios fiscais e déficits fiscais; como o investimento multinacional e as cadeias de valor globais afetam produtores e consumidores; os danos ecológicos decorrentes de padrões de produção e consumo; se os direitos de propriedade intelectual mais rígidos são realmente necessários para promover a invenção e a inovação; e assim por diante. Por que isso acontece? O pecado original pode ser a exclusão do conceito de poder do discurso – o que efetivamente reforça as estruturas e desequilíbrios de poder existentes. As condições subjacentes são varridas ou encobertas. Entre elas, estão o maior poder de capital em comparação com os trabalhadores; a exploração insustentável da natureza; o tratamento diferencial dos trabalhadores por meio da segmentação do mercado de trabalho social; o abuso privado de poder de mercado e da busca de rendas; o uso do poder político para impulsionar os interesses econômicos privados no interior das nações e entre elas; e os impactos distributivos das políticas fiscais e monetárias. As preocupações profundas e contínuas com a insuficiência do PIB como uma medida de progresso são ignoradas. Mesmo com todas as suas muitas falhas conceituais e metodológicas, continua sendo usado como o indicador básico, apenas porque está lá. Verdades inconvenientes Existe uma tendência relacionada a subestimar o significado crucial das suposições na construção dos resultados analíticos e na apresentação desses resultados em discussões de políticas. A maioria dos economistas teóricos convencionais argumentará que se afastaram das suposições neoclássicas iniciais, como concorrência perfeita, retornos constantes à escala e emprego pleno, que não têm relação com o funcionamento econômico real em qualquer lugar. Mas essas suposições ainda persistem nos modelos que sustentam explícita ou implicitamente muitas prescrições de políticas (inclusive sobre políticas comerciais e industriais ou estratégias de “redução da pobreza”), particularmente para o mundo em desenvolvimento. As estruturas de poder dentro da profissão reforçam o mainstream de diferentes maneiras, inclusive através da tirania das chamadas “publicações principais” e do emprego acadêmico e profissional. Tais pressões e incentivos desviam muitas das mentes mais brilhantes, que deixam de se dedicar a um estudo genuíno da economia (para tentar entender seu funcionamento e as implicações para as pessoas) e dedicam-se ao que só pode ser chamado de “atividades triviais”. Muitas publicações acadêmicas destacadas publicam contribuições esotéricas que agregam valor apenas flexibilizando uma pequena suposição em um modelo, ou usando um teste econométrico ligeiramente diferente. Os elementos que são mais difíceis de modelar, ou que podem gerar verdades inconvenientes, são simplesmente excluídos, mesmo que contribuam para uma melhor compreensão da realidade econômica. Restrições ou resultados fundamentais são apresentados como “externalidades”, e não como condições a serem abordadas. Economistas que conversam principalmente um com o outro, depois simplesmente proselitizam suas descobertas aos formuladores de políticas, raramente são forçados a questionar essa abordagem. Como resultado as forças econômicas (que são necessariamente complexas – devido ao impacto de muitas variáveis diferentes – e refletem os efeitos da história, da sociedade e da política) não são estudadas à luz dessa complexidade. Em vez disso, são espremidas em modelos matematicamente tratáveis, mesmo que isso remova qualquer semelhança com a realidade econômica. Para ser justa, alguns economistas convencionais muito bem sucedidos criticaram essa tendência – mas com pouco efeito até agora nos guardiões da ortodoxia da profissão. Hierarquia e discriminação A aplicação de hierarquias estritas de poder dentro da disciplina suprimiu o surgimento e a disseminação de teorias, explicações e análises alternativas. Isso se combina com as outras formas de discriminação (por gênero, raça/etnia, localização) para excluir ou marginalizar perspectivas alternativas. O impacto da localização é enorme: a disciplina convencional é completamente dominada pelo Atlântico Norte – especificamente os EUA e a Europa – em termos de prestígio, influência e capacidade de determinar o conteúdo e a direção da disciplina. O enorme conhecimento, os insights e contribuições para a análise econômica feitos por economistas localizados nos países onde vive a maior parte da população do planeta são amplamente ignorados, devido à suposição implícita de que o conhecimento “real” se origina no Norte e é disseminado para fora. A arrogância em relação a outras disciplinas é uma grande desvantagem, expressa, por exemplo, pela falta de um forte senso de história, que deve permear todas as análises sociais e econômicas atuais. Recentemente, tornou -se elegante para os economistas se envolverem em psicologia, com o surgimento da economia comportamental e “cutucadas” para induzir certos comportamentos. Mas isso também é frequentemente apresentado sem reconhecer contextos sociais e políticos variados. Por exemplo, os testes randomizados de visão focada [worm’s eye tests], que se tornaram tão populares na economia do desenvolvimento estão associados a uma mudança que abandonou o estudo de processos evolutivos e tendências macroeconômicas, para se concentrar nas tendências microeconômicas que efetivamente apagam os contextos que moldam o comportamento e as respostas econômicas. A base subjacente e profundamente problemática do individualismo metodológico persiste, principalmente porque poucos economistas contemporâneos ousam fazer uma avaliação filosófica de sua própria abordagem e trabalho. Essas falhas empobreceram muito a economia e, sem surpresa, reduziram sua credibilidade e legitimidade entre o público em geral. A disciplina convencional precisa muito de maior humildade, um melhor senso de história e reconhecimento do poder desigual e incentivo ativo à diversidade. Claramente, muito precisa mudar para que a economia seja realmente relevante e útil o suficiente para enfrentar os principais desafios de nossos tempos.

O Brasil entre dois negacionismos, por Gilberto Maringoni

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Gilberto Maringoni – A Terra é Redonda -30/03/2024 A negação pública do golpe de 60 anos atrás enseja sua reafirmação e renovação constante. Implica sua defesa e o impedimento de que uma página anterior seja realmente virada O Brasil enfrentou quatro anos de negacionismo científico, a partir de 2018. O período mais grave se deu durante a pandemia (2020-2022), com a campanha antivacinal, promovida pelo ex-presidente. Foi algo abjeto, que resultou em número incalculável de perdas humanas. Para total surpresa de qualquer espírito democrático, voltamos a viver um tenebroso clima negacionista neste 2024. Dessa vez temos o negacionismo histórico, que ao ignorar um exame consistente sobre o passado, bloqueia a reflexão e construção de alternativas de futuro. Buscar apagar da memoria oficial o golpe de 1964 é iniciativa igualmente repugnante. Os dois negacionismos têm motivações distintas. Enquanto o primeiro procurava consolidar apoios em irracionalidades e dogmas religiosos para a construção de uma ideia força obscurantista, e, portanto autoritária, o novo negacionismo baseia-se no defensivismo, no recuo e na esdrúxula concepção de que a melhor maneira de pacificar um conflito é renunciar ao combate. Temos assim um estranho negacionismo lastreado na capitulação de na autodesmobilização. De onde vêm essas tentativas de negar a realidade? negacionismo é um neologismo relativamente recente na ciência política. O Dicionário de política, organizado, entre outros, por Norberto Bobbio (1983), não o menciona. A Academia Brasileira de Letras define o negacionismo como “atitude tendenciosa que consiste na recusa a aceitar a existência, a validade ou a verdade de algo, como eventos históricos ou fatos científicos, apesar das evidências ou argumentos que o comprovam”. O discurso e a ação do que se convencionou chamar de “negacionismo” é uma poderosa ferramenta de disputa política na sociedade. O negacionismo representa a substantivação da negação, conformando o que seria uma espécie de doutrina ou teoria. O termo adquiriu ares de conceito a partir da constituição de uma ideia-força disseminada por grupos de extrema direita em países do Ocidente, nas últimas décadas do século XX, cujo intento é construir uma particular leitura da História. Trata-se da afirmação de que o genocídio dos judeus pelos nazistas no contexto da Segunda Guerra Mundial não aconteceu ou não aconteceu da maneira ou nas proporções historicamente reconhecidas. Mais tarde, ganhou destaque nos debates sobre meio-ambiente a atuação dos chamados “negacionistas do clima”, definidos como aqueles que – em contrário a toda evidência científica – contestam a existência do aquecimento global de origem antrópica, ou seja, decorrente de atividades humanas. Também são considerados negacionistas os que rejeitam (em geral por motivos religiosos) a teoria da evolução das espécies, que se tornou, a partir das descobertas de Charles Darwin, um dos alicerces da biologia moderna. Sigmund Freud buscou classificar psicanaliticamente o fenômeno da negação – não o negacionismo –como uma forma de preservação do ego, num pequeno – cinco páginas – e complexo texto de 1925, intitulado justamente “A negação”. Escreveu ele: “A função do juízo tem essencialmente duas decisões a tomar: ela deve conferir ou recusar a uma coisa ou determinada qualidade e deve admitir ou contestar se uma representação tem ou não existência na realidade. A qualidade a ser decidida poderia originariamente ter sido boa ou má, útil ou nociva”. A negação funcionaria como sublimação do real. Segue Freud: “negar algo no juízo no fundo significa: isto é uma coisa que eu preferiria reprimir. (…) Por meio do símbolo da negação, o pensamento se liberta das limitações da repressão e se enriquece”. Negar – ou negar a partir de um julgamento –, de acordo com Freud, “é a ação intelectual que decide a escolha da ação motora, [que] põe fim ao adiamento pelo pensamento e faz a passagem do pensar para o agir”. É a partir daí que “a criação do símbolo da negação permite ao pensamento um primeiro grau de independência das consequências da repressão”. A negação faz parte das defesas cotidianas para evitar frustrações ou fracassos. Pode-se dizer que a negação, no plano do indivíduo, tem uma função de defesa diante de incertezas e instabilidades. Através dela, evitam-se partes da realidade que causam medo ou insegurança. No plano político, a negação busca também evitar inseguranças, mas pode, em determinadas situações, ser um dispositivo opressivo. A negação deixa de ser recurso defensivo, e torna-se ferramenta para a imposição de determinado juízo de valor de uma parte da sociedade sobre outra. Ou o diktat do que seria uma verdade sobre outra. Não importa que essa verdade, objetivamente, seja uma mentira. Sua imposição visa criar um novo cenário no qual se darão as disputas sociais. A negação nesses termos – no âmbito político – é parte da disputa de hegemonia. Os dois casos relatados no início – a negação da ciência e a negação da história – fazem parte de uma imposição autoritária, que visa bloquear ações políticas contrárias. A negação de examinar e criticar o golpe de 1964 não se resume a tirar de cena uma ordem ditatorial de classe construída a partir daquele marco fundador de 21 anos de autoritarismo, com ramificações que alcançam a atualidade. Implicitamente, a negação é também a afirmação de seu contrário. Assim, a negação pública do golpe de 60 anos atrás enseja sua reafirmação e renovação constante. Implica sua defesa e o impedimento de que uma página anterior seja realmente virada. Implica, enfim a legitimação de uma ordem não democrática, envenenando o ambiente político atual. Gilberto Maringoni é jornalista e professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC).