Guerras Comerciais

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O comércio internacional passou por grandes transformações nas últimas décadas, inúmeras nações atrasadas, produtoras de produtos primários de baixo valor agregado, ganharam relevância no cenário global e se transformaram em grandes atores produtivos, ganhando escala e produtividade no mercado mundial, melhorando suas estruturas econômicas, diversificando a produção, consolidando suas instituições, ganhando espaço geopolítico, levando ao enriquecimento e melhorando as condições de vida da população, um verdadeiro milagre impulsionado pelo comércio.

As trocas comerciais entre as nações impulsionam o crescimento das economias, aumentando a geração de renda, melhorando o salário da população, fortalecendo o consumo interno, aumentando as receitas tributárias dos governos nacionais e contribuindo diretamente para a melhora das condições de vida da população, levando a sociedade a investimentos em infraestrutura, levantando escolas, universidades, centros de pesquisas, hospitais e consolidando o capital humano, dando um impulso para o desenvolvimento econômico.

No século XX, os Estados Unidos foi o grande pioneiro do desenvolvimento econômico, comercializando com todas as regiões do globo, diversificando sua estrutura produtiva, incrementando a produtividade, investindo fortemente em pesquisa científica e tecnológica, expandindo seus domínios econômicos para o espaço e se destacando nas mais variadas áreas do conhecimento, se transformando na nação hegemônica, dotada de grandes oportunidades e a mais admirada, ao mesmo tempo, a mais temida do cenário internacional.

Depois dos anos 1990 as nações asiáticas passaram a ganhar espaço dos Estados Unidos no cenário global, incrementando um embate que perdura há muitas décadas, inicialmente o confronto foi com o Japão e, posteriormente, foram os chineses, de longe o maior desafio para a sociedade norte-americana. A ascensão da China representa um concorrente jamais visto, afinal, estamos falando da maior estrutura comercial do mundo, responsável por um setor industrial que produz mais de US$ 4 trilhões e detém um superávit comercial de mais US$ 1 trilhão, um valor inimaginável.

Percebendo a ameaça chinesa, a “nova” administração dos Estados Unidos vem incrementando políticas para diminuir a dependência do concorrente asiático, espalhando tarifas comerciais, impondo proteção a empresas nacionais, ameaças generalizadas e represálias agressivas a empresas chinesas. Neste pacote de variadas políticas protecionistas, muitos aliados estão sendo taxados, gerando graves constrangimentos diplomáticos, tais como vizinhos tradicionais, como o México, Panamá e Canadá.

Neste embate para retomar a liderança global, os Estados Unidos da América vêm perdendo espaço na sociedade global, antes era visto como o líder inconteste da sociedade global, hoje sua atuação está sempre gerando conflitos e constrangimentos, estimulando guerras e destruições, difundindo agressões, rancores e ressentimentos, além de uma atuação titubeante, imatura e sempre visando seus interesses particulares, deixando de ser um farol da civilização e se transformando num espaço de degradação moral.

Num ambiente de grandes desafios climáticos, preocupações com problemas energéticos e do aquecimento global, além de grandes conflitos militares que crescem em todas as regiões do globo, precisamos repensar a governança global e fortalecer os laços políticos e sociais entre as nações, criando instrumentos de integração e interdependência, rechaçando todas as medidas unilaterais e individualistas adotadas pelo “novo” governo norte-americano, afinal, a história recente nos mostra que esse unilateralismo nos leva a grandes destruições, agressividades e devastações civilizacionais.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

 

 

 

 

Todos perdem com guerra comercial de Trump, por FSP

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Medida que aumenta tarifas sobre importações de Canadá, México e China pode impactar mercado de trabalho e inflação

Folha de São Paulo, 02/02/2025

Com sua retórica beligerante costumeira, Donald Trump instituiu a primeira medida que pode gerar uma guerra comercial com grande impacto para a economia mundial.

Sem distinguir entre aliados e adversários, o presidente dos Estados Unidos decidiu impor tarifas de 25% sobre as importações do México e do Canadá —com exceção de energia, que será taxada em 10%.

Também haverá tarifas de 10% para importações da China, em adição às cobranças já vigentes, que abrangem certas categorias de produtos.

Juntos, os três perfazem 43% das importações americanas, o equivalente a US$ 1,3 trilhão (em torno de 4,8% do PIB).

A alta das taxas com essa abrangência fará com que a cobrança média sobre todas as importações passe de cerca de 3% para quase 11%, acima da tarifa linear de 10% proposta por Trump durante sua campanha eleitoral.

As justificativas alegadas não são apenas econômicas. Ao invocar poderes emergenciais, Trump mencionou o fluxo ilegal de imigrantes e drogas, em especial os opioides traficados por cartéis mexicanos com componentes obtidos na China. No caso do Canada, haveria evidência de aumento do tráfico pela maior fronteira não vigiada do mundo.

Trump faz valer, assim, sua obsessão com tarifas, que prometeu usar mais amplamente como arma, e não somente para conter o déficit comercial do país, de quase US$ 1 trilhão anual. Na melhor das hipóteses, as medidas podem ser revertidas após negociações, mas os riscos são grandes.

No caso dos vizinhos, há gigantesca assimetria. Ambos destinam quase 80% de suas exportações aos EUA, o que representa 22% do PIB do Canadá e 35% do PIB do México. Já as compras feitas pelos EUA dos dois países somam 4% do PIB americano.

Mesmo assim, o Canadá já anunciou a mesma cobrança sobre cerca de US$ 106 bilhões em bens que importa dos EUA. A China foi mais contida, prometendo levar o caso à Organização Mundial do Comércio, mas não se descarta uma reação mais dura. O México tem a posição mais frágil.

De todo modo, também haverá custos para os EUA. Mesmo com diminuta representação no PIB, as compras americanas são grandes em setores considerados críticos, como o automotivo.

A inviabilização de um pedaço da cadeia produtiva é capaz de produzir reação cumulativa que custará empregos para a população americana. Não se devem descartar efeitos recessivos.

Projeta-se ainda um impacto inflacionário, algo que pode ser contraproducente para Trump. A alta nos preços de alimentos e gasolina, afinal, foi uma das explicações para a derrota eleitoral do Partido Democrata.

Por ora, o republicano não parece se importar e acredita que seu método agressivo pode trazer vitórias imediatas. Mas o uso repetido de tarifas e da coerção pode afastar aliados e, ao longo do tempo, enfraquecer a liderança global já combalida dos EUA.

 

Classe média foi esmagada pela política? por Michael França

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Enquanto arca com impostos, ela sente que recebe pouco em troca

Michael França, Ciclista, vencedor do Prêmio Jabuti Acadêmico, economista pela USP e pesquisador do Insper. Foi visiting scholar nas universidades de Columbia e Stanford.

Folha de São Paulo, 04/02/2025.

O que são políticas públicas? Elas são instrumentos para corrigir as disparidades nos pontos de partida ou devem ser utilizadas para reforçar as vantagens daqueles que já largaram à frente? No cerne da discussão está o dilema sobre se elas devem funcionar como um vetor de mudanças ou apenas manter a ordem vigente. No final, elas são reflexos de escolhas. Escolhas tanto políticas quanto ideológicas. Escolhas que determinam quem deve ganhar e quem deve perder.

Essas escolhas se materializam em decisões. Cada orçamento que aprovamos carrega consigo uma mensagem. Se priorizamos o investimento em segurança para proteger propriedades privadas mas negligenciamos escolas públicas, estamos dizendo que proteger coisas é mais importante do que investir no potencial humano. Quando optamos por subsidiar grandes corporações em vez de garantir saúde de qualidade, estamos declarando que o lucro é mais valioso do que a vida.

Tal hierarquia de prioridades reflete mais do que simples decisões administrativas, pois expõe a essência de nossos valores e nossas omissões. No Brasil, muitas políticas surgem para atender às mais variadas demandas, mas frequentemente ignoram os problemas centrais. A proliferação de programas desarticulados e sem avaliação levanta a questão: estamos realmente avançando no combate à pobreza e à desigualdade?

Bem, não podemos ser fatalistas. O país conquistou avanços desde a redemocratização. Programas como o Bolsa Família, a ampliação do acesso à educação básica e as políticas de saúde pública, como o SUS, trouxeram benefícios. Reduzimos a pobreza extrema e conseguimos, em alguns momentos, diminuir as desigualdades. No entanto, poderíamos ter avançado muito mais rapidamente se houvesse um projeto de desenvolvimento consistente.

O desafio não está apenas em combater a pobreza, mas em reformular as estruturas que a sustentam. Em vez de implementar políticas públicas integradas para limitar fatores externos que impedem o desenvolvimento dos indivíduos, a classe política frequentemente opta pela fragmentação e ineficiência, reforçando ciclos de privação. A incapacidade de integrar soluções sistêmicas perpetua a pobreza, tornando a mobilidade social uma exceção, não a regra.

Por outro lado, continuamos alimentando a concentração de riqueza com políticas que beneficiam desproporcionalmente os mais ricos, seja por meio de subsídios fiscais e benefícios tributários seletivos, seja com gastos públicos que privilegiam o topo da pirâmide.

Nesse cenário, a classe média sente o peso da omissão. Sem o amparo de benefícios sociais voltados às camadas mais pobres e distante dos privilégios fiscais e políticos das elites, ela sente o peso de um Estado que parece exigir muito, mas entregar pouco. Essa desconexão gera uma insatisfação difusa, mas crescente. O descontentamento se traduz em desaprovação política, além de alimentar a corrosão do atual pacto social, abrindo ainda mais espaço para soluções populistas que apenas aprofundam o problema.

 

Cenário turbulento

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O retorno de Donald Trump para a Presidência dos Estados Unidos da América gerou graves acanhamentos para a sociedade internacional, com a adoção de medidas unilaterais, ameaças generalizadas, taxações crescentes, chantagens variadas, saída de organismos multilaterais, conflitos com aliados históricos e deportações em massa de imigrantes ilegais, todas estas medidas criaram graves constrangimentos para a sociedade mundial, podendo levar a um isolacionismo norte-americano que impacta negativamente sobre o comércio global, ainda mais, quando percebemos que a economia mundial, desde o incremento da globalização, se integrou em cadeias produtivas, onde a produção de mercadorias, bens e serviços estão divididas em variados países e regiões, uma nova forma de divisão internacional do trabalho.

O furacão Donald Trump pode gerar conflitos generalizados em todas as regiões do globo, afinal os Estados Unidos comercializam com todas as regiões do mundo, importando e exportando bens e serviços para muitas nações. Se as políticas adotadas pelo “novo” governo dos Estados Unidos prejudicarem de forma variada outros países, estas nações, com certeza, retaliarão as políticas norte-americanas, gerando maiores incertezas no comércio global, aumentando os preços internos, incrementando a inflação e levando a Autoridade Monetária a aumentarem as taxas de juros como forma de controlar os preços e evitar um processo inflacionário que poderia desequilibrar o sistema econômico e produtivo.

No caso brasileiro o impacto é imediato e preocupante, a elevação dos Juros nos Estados Unidos absorve grandes estoques de dólares na economia mundial, desvalorizando as moedas nacionais e imediatamente os Bancos Centrais, como o brasileiro, aumentará seus juros internos para evitar uma fuga de dólares, com o incremento dos juros internos a economia tende a atrair recursos especulativos, estimulando os ganhos fáceis de poucos agentes econômicos, fortalecendo o rentismo, aumentando o endividamento dos Estados e aumentando a cobrança dos financistas que exigem uma redução dos dispêndios sociais, vislumbrando o pagamento de juros estratosféricos arbitrados pela Autoridade Monetária.

Com menos de dez dias na presidência dos Estados Unidos, Donald Trump gerou preocupações com todos os imigrantes ilegais, deportando de forma violenta cidadãos de outras nações, gerando constrangimentos diplomáticos com países menores e mais frágeis politicamente, gerando revolta, ressentimentos e insatisfação com essa política de deportação agressiva. Essas medidas unilaterais podem levar muitas nações a bandearem para o lado dos chineses, aprofundando as relações comerciais e geopolítica com o maior concorrente dos Estados Unidos, levando os norte-americanos a um possível isolacionismo político e comercial que podem fragilizar os fluxos de comércio entre as nações, estimulando o crescimento do protecionismo, além de aumentar as taxações de produtos externos, gerando um verdadeiro caos econômico e produtivo, afinal a economia global se estrutura na interdependência e na integração entre as nações.

Além das posturas beligerantes nas questões de deportação em massa de imigrantes ilegais, as ameaças ao vizinho México, a anexação da Groenlândia e do Canadá geraram incertezas e preocupações, para piorar o cenário, o “novo” governo norte-americano abandonou organismos tradicionais, como Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Acordo de Paris, enfatizando um unilateralismo e uma imaturidade que nada auxilia na resolução dos grandes desafios da sociedade mundial, na verdade aprofunda um caos que serve para interesse de poucos em detrimento da maioria.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Comoção seletiva, por Salem Nasser

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Salem Nasser – A Terra é Redonda – 18;01;2025

O que é preciso para que alguém veja, enxergue, um genocídio em curso?

À clássica pergunta, sobre se faz barulho a árvore que cai sem que haja ali alguém por testemunha, eu sempre respondi com a afirmativa, não sem um traço de irritação. Incomodava-me a presunção de que o som só se produzisse para ouvidos humanos; era, para mim, uma manifestação do nosso antropocentrismo soberbo.

Se alguém estiver por perto enquanto cai a árvore, os seus sentidos serão tocados pelo maior ou menor espetáculo, pelo som estrondoso ou delicado, pela visão da queda que começa lenta e logo acelera, pelo tremor do chão… E logo talvez emerja alguma emoção, diante da experiência de assistir, por exemplo, ao fim de um ser vivo… E, finalmente, talvez nos ocorra refletir, sobre a inevitabilidade da morte, ou sobre desertificação e mudanças climáticas… Talvez decidamos, inclusive, fazer algo a respeito.

Se, no entanto, diante da queda, concomitante ou não, de duas árvores diferentes, um mesmo observador só ouvir o ruído de uma delas, só enxergar a queda de uma delas, e só se deixar emocionar e logo refletir diante de um dos dois fenômenos, a explicação para essa “cegueira relativa” precisa ser buscada no ser humano que é esse observador, e no meio social em que ele está inserido.

Voltemos agora: o que é preciso para que alguém enxergue um genocídio em curso ou, inversamente, para que alguém deixe de enxergar um genocídio em curso?

Sei que o exemplo do genocídio é extremo e que haveria muitas coisas entre isso e a queda de uma árvore que poderiam servir à reflexão sobre a cegueira e sobre a seletividade de nossos sentidos e de nossas emoções. Ocorre, no entanto, que, no momento em que escrevo, há de fato um genocídio em curso e pouca gente parece disposta a ver! E mais, se eu puder sustentar meu argumento para o genocídio, esse fenômeno que, em princípio, deveria se impor aos sentidos e às emoções de todos, assim como a todas as consciências vivas, então sua relevância estará provada para todas as demais coisas.

É difícil conceber um observador que seja ou tenha sido testemunha direta de dois processos de sistemática destruição de povos, ainda que eles possam existir, como sendo o nosso observador típico. Para entendermos o fenômeno para o qual quero apontar, é preciso ter em mente o observador a quem chegam as notícias dos eventos, as narrativas, as imagens, os textos, os filmes, as análises.

É óbvio, por isso, que, se quisermos entender a relatividade ou a seletividade das percepções e dos julgamentos, precisamos combinar aquilo que está no próprio ser humano socialmente localizado com o que está, ou deixa de estar, nas narrativas que chegam até ele.

As narrativas podem ser diversas e podem estar em competição, mas nem a multiplicidade nem o conflito são imediatamente perceptíveis como tal para o observador médio. De algum modo, parece haver uma tendência a que algumas narrativas ganhem curso livre e sejam vistas como sendo as “naturalmente verdadeiras”, ao mesmo tempo em que as alternativas sejam percebidas como marginais, divergentes, merecedoras de menor crédito.

Em minha experiência pessoal, a existência de narrativas em competição pela prerrogativa de representar o que seria a verdade se fez constatar muito cedo e se tornou uma preocupação central e permanente. Diante de grandes acontecimentos da vida internacional, revoluções, guerras, intervenções, eu invariavelmente encontrava duas narrativas opostas que se pretendiam exclusivamente verdadeiras: uma circulava nos jornais e nos noticiários televisivos – e logo entre professores e colegas de escola, além dos clientes da loja e os transeuntes – e outra dominava o ambiente familiar e comunitário. Por vezes, não bastavam duas narrativas, já que nada impedia o vizinho e o seu grupo de terem a sua própria verdade.

Muito cedo eu percebi que era possível transformar o herói em vilão, o algoz em vítima, e vice-versa, que era possível arbitrar o começo e o fim das histórias, que se podia inverter razões e consequências. Isso tudo era problemático para quem ainda tinha alguma ilusão sobre a existência de verdades objetivas.

Mas era mais problemático ainda o efeito que têm as narrativas divergentes sobre a localização da justiça.

É assim que, gradualmente, os temas correlatos, das narrativas em competição, e daquelas naturalizadas, da cegueira seletiva e da comoção seletiva foram se tornando naquilo que eu poderia chamar de “minha grande questão”.

Alguns acidentes foram contribuindo para que as expressões se consolidassem em meu espírito e se relacionassem entre si. Primeiro, quando dos ataques ao jornal satírico francês Charlie Hebdo eu quis reagir em texto e resolvi que o título deveria ser “Comoção Seletiva”. Muitas coisas trágicas aconteciam naqueles dias, uma guerra absurda na Síria, atentados no Egito, na Tunísia, no Niger, refugiados naufragando e aparecendo mortos nas praias. Nada, no entanto, podia competir, em comoção sentida e expressada, com os ataques ao Charlie Hebdo.

Um belo dia, resolvi recolher textos escritos por mim e publicados ao longo de dois ou três anos, e resolvi que o melhor nome para a coletânea seria “Comoção Seletiva”. Entre os artigos, mais de um faziam referência a Edward Said, à sua preocupação com as narrativas e as representações do outro, um outro a quem não se permite o privilégio de contar a si mesmo, e também à sua referência à cegueira específica de grandes intelectuais e de grandes humanistas, que viam tudo, ou quase tudo, mas eram incapazes de enxergar os palestinos como um povo e a sua tragédia como uma grande injustiça histórica.

Um bom amigo, editor, leu com grande generosidade os textos e me disse que o conjunto podia muito bem se chamar “Cegueira Seletiva” e que isto seria talvez mais apropriado.

Sou, portanto, devedor, em relação aos amigos, aos acidentes e às trocas que vão sedimentando em nós as ideias que pensamos ter.

E não há dúvidas quanto à inspiração “Saidiana” das minhas reflexões. A ideia de um Ocidente que guarda para si a prerrogativa de representar o outro, o oriental ou, de modo geral, o não-ocidental, é um achado de extrema potência. Ela carrega em si a imagem das narrativas em competição, das narrativas naturalizadas, das narrativas impossíveis.

Um pequeno desvio, para referir a impossibilidade de contar, de fazer ouvir a própria voz: se eu soubesse desenhar, eu produziria um palestino que conta a sua história contra uma forte ventania; o vento empurraria as suas palavras para trás do orador e ninguém o poderia ouvir a imagem do cego que tudo vê menos a questão Palestina, apesar de parecer mais banal, emerge para mim como especialmente assustadora, por ser um caso muito particular e específico de seletividade e por acometer pensadores críticos que, em princípio, têm preocupação genuína com os temas da justiça, do poder… Basta dizer que entre os exemplos listados por Edward Said estão nomes como os de Isaiah Berlin e Michel Foucault.

Sei, é claro, que o adjetivo “seletiva” que faço acompanhar a cegueira e a comoção pode carregar o sentido de uma seletividade voluntária, proposital, consciente. Interessa mais, no entanto, a ocorrência dos pontos cegos e dos vieses, da visão e dos sentimentos, enquanto fenômeno involuntário, enquanto movimento natural, por assim dizer.

É claro que, enquanto buscamos as razões paro que vemos e para o que não vemos, e enquanto buscamos entender o processo de naturalização de narrativas dominantes, e olhamos para o observador, para a sociedade em que está inserido e para o modo como chegam até ele as narrativas, não podemos descartar a possibilidade de que os resultados, a cegueira e a naturalização, decorram de uma intenção que não está no observador. Não se pode descartar a possibilidade de um processo controlado.

Noam Chomsky, um interlocutor longevo de Edward Said, é um dos principais pensadores a tentar revelar o processo através do qual detentores de poder produzem consenso e o papel que a mídia desempenha nessa construção.

E foi justamente em Noam Chomsky que encontrei um conceito aparentado com minhas preocupações em torno da seletividade das nossas percepções e sobre o caráter dominante de alguns mecanismos produtores de narrativas. Em certa ocasião, ouvi Noam Chomsky dizer que a ideia de que havia liberdade no campo do debate político nos Estados Unidos era uma ilusão. Apesar da aparência de total liberdade, quem observasse com cuidado veria que as margens dentro das quais era possível discordar estavam claramente desenhadas. Quem quisesse desafiar essas margens não seria necessariamente calado, mas estaria condenado a falar para os muito poucos, os marginalizados, os excluídos do mercado principal de ideias.

O conceito que encontrei, relacionado a esse universo de argumentos, é o da “Janela de Overton”. Concebida por um cientista político, a janela em questão expressa a ideia de que, contrariamente ao que se poderia esperar, os atores políticos não agem como portadores de opiniões políticas próprias que submetem à consideração do eleitorado; eles, na verdade, ajustam o seu discurso ao espaço político que percebem presente no lugar e no tempo. A janela e os bordes do discurso e do debate possíveis estão dados.

A pergunta inescapável, para a qual só se pode ter respostas tentativas, é esta: em que medida é natural, espontâneo, o processo pelo qual se desenham as fronteiras e os limites, e em que medida é possível que alguém determine as margens e as ideias que podem circular entre elas?

Ao pensar nisso, sempre tive tendência a visualizar, como exemplo definitivo da verdade da tese, o fato de que é praticamente impossível defender o comunismo e ser ouvido nos Estados Unidos, quanto mais participar da vida política do país. Hoje um exemplo mais atual seria o da impossibilidade de ser uma voz dissonante em relação à defesa de Israel.

Isso tudo nos coloca diante de um conjunto de questões existenciais de difícil resposta: quanto apreendemos da realidade que nos circunda, e quanto do que percebemos é de fato realidade? É possível falar em verdade, e é possível conhecer alguma verdade?

Sei que deve haver limites para as referências que se faz à cultura popular se fizermos questão de preservar alguma respeitabilidade, mas assumo aqui um risco calculado. Tenho em mente o dilema que domina o filme Matrix: em que medida vivemos uma ilusão, ou uma mentira, construída por um arquiteto que nos é desconhecido, e que só pode ser enfrentada mediante o custo de uma vida clandestina nos subsolos sombrios, de trapos por roupas e mingau insosso por única comida?

Não se trata de uma falsa pergunta. Nesta nossa vida concreta, quais são as reais possibilidades de desafiarmos as narrativas dominantes? Com que chances de sucesso? Mediante que preço?

Ocorreu-me recentemente que, assim como não posso acreditar no que dizem ver aqueles grandes espíritos que apenas não veem a tragédia palestina, me vejo forçado a colocar em questão a história oficial dos grandes eventos do passado já que, diante dos grandes eventos da história presente, eu vejo que se está construindo hoje, sob meu olhar, as narrativas ficcionais que servirão de história oficial no futuro.

Tenho em mente, quando digo isso, dois grandes processos que ao mesmo tempo ilustram os fenômenos das narrativas naturalizadas, da cegueira seletiva e da comoção seletiva, e revelam a face verdadeira de um Ocidente que ainda pretende reservar para si o privilégio exclusivo de representar o outro e o mundo, para si e para o mundo.

Refiro-me à guerra na Ucrânia e à guerra na Palestina (este segundo é um nome genérico que engloba o genocídio em curso que vitima a população de gaza, mas também compreende as ações armadas que se estendem para além da Palestina e envolvem outros atores). A concomitância dos dois eventos é especialmente relevante porque permitiu a descoberta dos diferentes pesos e medidas mobilizados na construção das narrativas e presentes na comoção pretensamente sentida.

Assim como podemos questionar os processos de apreensão da realidade e duvidar das possibilidades de alguma verdade, cabe apontar para a seletividade da nossa comoção, do nosso ultraje, da nossa revolta, diante do que percebemos como injusto ou como desumano.

No limite, assim como nos perguntamos se estamos inseridos em toda uma vida ficcional, podemos também nos perguntar se sentimos de verdade. Se cada um de nós, enquanto indivíduo, consegue identificar as instâncias em que, por exemplo, nossas emoções e nossas capacidades empáticas são mobilizadas diante do sofrimento de uma criança, e as instâncias em que o sofrimento de uma outra criança nos deixa indiferentes.

A nossa comoção, quando acontece, é genuína, ou pelo menos pode ser – não tenho em mente os que fingem e mentem. Na medida em que se manifesta seletivamente, no entanto, podemos duvidar do que deveria ser a sua conexão com a injustiça, com o sofrimento, com um senso de humanidade. Isso tudo se impõe a nós quando nos referimos à comoção que se manifesta no indivíduo.

É importante notar, no entanto, que muitas vezes falamos de comoção seletiva ou de conceitos equivalentes, atribuindo essa seletividade de pesos e medidas, e de sentimentos, a instituições, a Estados, a organizações internacionais, a tribunais… Isso é especialmente verdadeiro em circunstâncias como as que referi acima, guerras, genocídios, crimes de guerra e contra a humanidade…

Dizemos, então, que Estados Unidos, França, este ou aquele outro Estado, a ONU, o Tribunal Penal Internacional, fazem prova de comoção seletiva. Sabemos, é claro, que esses entes são desprovidos de sentimentos, e que, em princípio, ao menos, as pessoas que falam e agem em nome dessas instituições são sim capazes de sentir. A confusão, e a imprecisão com que nos referimos ao comportamento dos Estados e de outros entes, decorrem, ao menos em parte, do fato de que quem se manifesta em nome deles, apesar de ter em mente razões exclusivamente políticas, se coloca enfatizando argumentos de natureza moral, afirmando o amor à justiça e à humanidade.

Para um observador mais atento, fica evidente a inconstância dos valores afirmados, a sua contradição com os comportamentos, a seletividade com que são aplicados. Para todos os demais, mais uma vez, o apagamento das contradições e da seletividade fica por conta de narrativas bem construídas e naturalizadas, narrativas que não revelem os seus próprios furos de enredo e que não permitam qualquer memória de mais longa duração.

Como sugeria acima, a coincidência no tempo das guerras na Ucrânia e na Palestina nos fornece uma oportunidade única na revelação da verdadeira natureza do jogo. E isso porque a parte do mundo que alguns hoje chamam de Ocidente Coletivo ou Norte Global – ou seja, Estados Unidos e seus aliados – se sentiu forçada a caminhar concomitantemente em duas direções contrárias, e mais, a ir ao extremo nas duas direções: ao mesmo tempo demonizar a Rússia e justificar as ações criminosas de Israel.

É nesse sentido que se pode dizer que neste momento histórico caíram as máscaras. E não se pode subestimar a potência desse fato. Enquanto caem as máscaras do Ocidente, não são apenas os rostos dos atores individuais que se revelam; este é antes o anúncio do possível desfazimento do sistema internacional, criado por esse Ocidente à sua imagem e semelhança, e das suas instituições.

O sistema tinha, segundo nos é dito, pretensões de universalidade, mas as várias seletividades para as quais eu vim apontando negam qualquer verdade dessa pretensão. Perceba-se, olhando para os eventos recentes no seio da ONU e de outras organizações internacionais, assim como nos tribunais internacionais, como as estruturas institucionais ameaçam ruir diante da tensão entre sua orientação principiológica pelo universalismo e a dificuldade de agir contrariamente aos interesses de seus criadores.

O caso da Palestina talvez sirva como nenhum outro a ilustrar os temas da cegueira seletiva, da comoção seletiva, das narrativas dominantes e naturalizadas e da crise do sistema internacional montado sobre um conjunto de narrativas avançadas pelo Ocidente.

Antes de ser uma instância de uma narrativa dominante, a Palestina é um lugar, geográfico, mental e simbólico de muitas e diversas narrativas, a bíblica, enquanto coração dos monoteísmos, a histórica e geográfica, enquanto parte do coração do mundo e do berço das civilizações, a bíblica ressuscitada na Europa protestante e no sionismo europeu, a colonial dos grandes impérios que dividiam entre si o mundo…

Depois de mais de cem anos de uma Questão Palestina que poderia ser narrada enquanto uma luta de resistência de um povo que quer preservar o seu território e a sua identidade, a narrativa que impera soberana é outra: havia antissemitismo na Europa e havia pogroms violentos que vitimavam os judeus europeus; isso se combinava com uma longa história de perseguições contra o grupo; por conta disso, chegou-se à conclusão de que o grupo só estaria seguro se tivesse um Estado para si; levando em conta o relato bíblico, o estabelecimento desse Estado na Palestina histórica seria como uma volta para a casa prometida por Deus; o genocídio dos judeus europeus durante a segunda guerra mundial só confirmava a tese; o território da Palestina não teria um povo e os palestinos não seriam um povo; antes de Israel, tudo era atraso, e depois, tudo progresso; todas as guerras foram culpa dos árabes e estes só perderam territórios porque não aceitaram os acordos; que hoje o justo seria uma solução de dois Estados em que a Palestina seria algo menos do que soberana…

O que não aparecia, antes desta guerra em que, como se disse, muitas máscaras caíram, na narrativa, era a realidade da ocupação do território destinado a ser a Palestina, em princípio, de acordo com o pretenso consenso, era a realidade do sistema de segregação e de apartheid, era a realidade da limpeza étnica.

Esses aspectos da realidade eram, para quem quisesse olhar, indiscutíveis. E, no entanto, ninguém queria ver; ninguém queria pagar o preço de sustentar narrativas que revelassem essa verdade; e parecia que ninguém estava disposto a se deixar comover.

Que mistério será esse? Eu proponho a seguinte chave, se não para desvendar definitivamente o enigma, pelo menos para iluminar um pouco o nosso caminho. Sinto que, na verdade, apesar da profusão de narrativas que tentam provar o contrário, não nos afastamos tanto assim do Século XIX.

Essencialmente, a Questão da Palestina pertence ao tempo em que o Ocidente dito civilizado se permitia a dominação e a exploração dos não-ocidentais, bárbaros. É um caso típico de colonização por assentamentos e por substituição de população. Em parte, então, é porque as vidas dos bárbaros não valem o mesmo que as dos civilizados que não são ou não precisam ser vistas, não merecem uma narrativa que as conte e que as valorize, não nos fazem sentir e muito menos agir. Mas essa é parte da razão, não é toda ela. Há certamente mais. Quem ousa contar o resto?

Salem Nasser é professor da Faculdade de Direito da FGV-SP. Autor de, entre outros livros, de Direito global: normas e suas relações (Alamedina).

 

Onde erramos?

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As mudanças na sociedade contemporânea criam sentimentos variados, de um lado, encontramos grupos eufóricos com o desenvolvimento da tecnologia, novos modelos de negócios e grandes descobertas científicas, com ganhos para os seres humanos. De outro lado, percebemos uma desesperança que nos geram grandes preocupações pelo crescimento assustador da pobreza, ascensão da desigualdade, incremento dos conflitos militares e o aumento da exclusão, afinal mais da metade da população global vive em condições indignas, sem perspectivas, sem oportunidades, sendo obrigados a se entregarem a ocupações precárias e insalubres, com isso, percebemos uma perpetuação da indignidade dos indivíduos. Neste cenário, poderíamos destacar uma questão que nos aflige: onde erramos como seres humanos?

Ao analisarmos as visões destes dois grupos, percebemos que ambos estão corretos em suas análises, vivemos num momento de grande desenvolvimento das tecnologias, com potencial para melhorarmos as condições de vida dos seres humanos, mas para que isso aconteça, a contento, precisamos encontrar um ponto de equilíbrio nestas percepções. Os avanços do conhecimento científico é um ativo fundamental da civilização e deve melhorar as condições de vida das pessoas e das comunidades, não apenas para uma pequena parte dos indivíduos, afinal, estamos vislumbrando uma situação marcada por um grande distanciamento dos grupos sociais, uns muito ricos e poderosos, dotados de grande poder material e, ao mesmo tempo, uma legião de miseráveis degradados e sem perspectivas palpáveis de melhoras, culminando, certamente, em uma verdadeira guerra civil.

Estamos caminhando a passos largos para a metade do século XXI e as discussões são primitivas, estamos questionando valores que nos definem como civilização, estamos deixando de lado o combate aos preconceitos, deixando de defender o clima, promover a inclusão social e a diversidade, assuntos prioritários estão sendo colocados em segundo plano. No lugar, estamos nos concentrando em assuntos desnecessários e desconexos, defendendo privilégios de terceiros que pouco trazem de positivo para a sociedade, estamos perdendo tempo visualizando fake News e as divulgando para acreditar que somos conscientes politicamente, defendendo brutalidades e acreditando que isso resolve o problema da segurança pública, além de defender uma falsa liberdade de expressão que serve apenas para gerar uma sociedade alienada, ignorante e facilmente dominada.

Precisamos estimular discussões mais sólidas e maduras, afinal, num mundo de constantes transformações estamos ficando, cada vez mais atrasados, sem espaços e sempre dependentes tecnologicamente, constantemente escravos das novas tecnologias, máquinas e equipamentos que compramos a preço de ouro e nos descrevemos como empreendedores e inovadores, será mesmo?

Precisamos repensar os pactos de mediocridades que cultivamos todos os anos, precisamos compreender que para nos transformarmos numa nação civilizada necessitamos incluir a nossa população, dando oportunidade e chance de ascensão social, investindo fortemente em capital humano, diversificando nossa pauta produtiva e deixando de fomentar o rentismo que perdura nos primórdios da sociedade.

Para respondermos à pergunta inicial precisamos saber o que queremos no futuro: será que queremos cultivar a desigualdade e a exclusão que caracterizam a sociedade brasileira? Muitos querem, estão satisfeitos com a situação que vivenciamos, agora, para aqueles que estão preocupados, precisamos rever as discussões desnecessárias e equivocadas que dominam a sociedade, precisamos rever prioridades, garantir direitos básicos, como água potável, saúde, educação e alimentação. Em suma, o direito a uma vida digna.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

 

 

Por que não superamos o trabalho escravo? por Raíssa Araújo Pacheco

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Raíssa Araújo Pacheco – Blog da Redação – 22/11/2024

Livro da Editora Unesp analisa como a exploração forçada e trabalhos análogos à escravidão são pilares do capitalismo brasileiro. Para o autor José de Souza Martins, tal forma é parte essencial da reprodução desse sistema econômico.

Desde o fim do século XIX, o Brasil se orgulha de ter abolido a escravidão, com a promulgação da Lei Áurea, em 1888. No entanto, já não é novidade que a abolição não significou exatamente liberdade e boas condições de vida para os ex escravizados, formas disfarçadas de escravização continuam a existir, revelando a complexidade e a persistência dessa questão histórica.

Frequentemente nos deparamos com notícias denunciando trabalhadores em situações precárias e desumanas. Em setembro de 2022, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estimou que mais de 27 milhões de pessoas no mundo ainda viviam em condições análogas à escravidão, sendo 4 milhões delas localizadas nas Américas.

O sociólogo José de Souza Martins, em sua obra Capitalismo e Escrevidão na Sociedade Pós-escravista, lançada pela Editora Unesp, examina a escravidão contemporânea não como um resquício do passado, mas como um componente estrutural do capitalismo brasileiro, cujas raízes atravessam séculos de desigualdade e exploração.

“Ao se falar em escravidão atual está se falando, necessariamente, numa anomalia resultante das contradições sociais de um modelo de sociedade que tem nome: a sociedade capitalista mutilada e insuficientemente realizada, como a brasileira, atravessada pelo primado de interesses econômicos e consequentes irracionalidades que negam o capitalismo e crucificam a sociedade.”

– trecho retirado da introdução de Capitalismo e Escravidão na Sociedade Pós-escravista.

No livro estão reunidos uma série de artigos independentes, mas conectados por uma observação sociológica e interpretativa em comum.

Com base em uma rigorosa análise sociológica, Martins reflete sobre a relação entre o capitalismo subdesenvolvido e a continuidade da escravidão. Para ele, o trabalho forçado não é um anacronismo, mas sim uma peça fundamental para a reprodução do sistema capitalista.

Ao explorar as contradições dessa estrutura econômica, o autor revela como o trabalho escravo se perpetua, sendo peça chave para maximização dos lucros, especialmente em áreas onde o Estado é ausente ou ineficaz.

Ademais, na visão de Martins, a questão fundiária é essencial para compreender a realidade brasileira. “O capitalismo brasileiro levou mais de um século para se tornar um capitalismo de capital subsumido pela renda fundiária e subsidiado pelo Estado. E constitutivamente subsidiado por formas não capitalistas de relações de trabalho, como a da ‘escravidão contemporânea’”, aponta o professor.

A obra de Martins vai além das explicações superficiais sobre o tema, oferecendo uma leitura crítica, aprofundada e embasada sobre o funcionamento das relações de trabalho no Brasil e no mundo.

Sua tese, de que a escravidão moderna é uma prática necessária ao capitalismo, desafia noções simplistas e joga luz nas condições socioeconômicas que mantêm essa tragédia viva até os dias de hoje, ressaltando a necessidade de repensarmos as estruturas que sustentam a exploração do trabalho e a distribuição de riquezas.

Raíssa Araújo Pacheco, Redatora do Outros Quinhentos, Formada em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Assessorou movimentos sociais e entidades envolvidas na pauta de moradia e direito à cidade.

 

 

Juventude agredida, por Carlos Alberto Di Franco

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A iniciação sexual precoce, o abuso sexual e a prostituição infantil são resultadas da cultura da promiscuidade que está aí

Carlos Alberto Di Franco – O Estado de São Paulo, 20/01/2025

O leitor é o melhor termômetro para medir a temperatura do cidadão comum. Tomar o seu pulso equivale a uma pesquisa qualitativa informal. Aos que há anos me honram com sua leitura neste espaço opinativo, transmito uma experiência recorrente: família, ética e valores aumentam o índice de leitura.

Sempre que tratei de temas relacionados à família, recebi muitos e-mails e mensagens. Sem dúvida uma sugestiva amostragem de opinião pública, sobretudo considerando o rico mosaico etário, profissional e social dos remetentes.

Neste Brasil sacudido por uma brutal crise ética, alimentada pelo cinismo dos homens públicos e pela mentira dos que deveriam dar exemplo de integridade, há, felizmente, uma ampla classe média sintonizada com valores e princípios que podem fazer a diferença. E nós, jornalistas, devemos escrever para a classe média. Nela reside o alicerce da estabilidade democrática. Escreva algo, sublinhavam alguns dos e-mails que recebi, a respeito da desorientação da juventude. Meu artigo de hoje, caro leitor, foi pautado por você. Tomarei como gancho um dado objetivo e preocupante.

A gravidez precoce é hoje no Brasil uma das maiores causas de evasão escolar entre garotas de 15 a 17 anos. Dados da Unesco mostraram que, das jovens dessa faixa etária que abandonaram os estudos, 25% alegaram a gravidez como motivo. Outros estudos revelam que complicações decorrentes da gestação e do parto são a terceira causa de morte entre as adolescentes, atrás apenas de acidentes de trânsito e homicídios. A gravidez afeta até quem mal saiu da infância.

A gravidez precoce realmente está se tornando um grande problema na educação. Se 25% das meninas de 15 a 17 anos grávidas deixam a escola, isso significa dizer que mais de 200 mil param anualmente de estudar. Futuro triste. Cenário complicado. Mas dramaticamente coerente com um país em que o ministro mais importante não é o da Educação ou o da Saúde, mas o da Fazenda.

É um absurdo acreditar que uma criança vá ter maturidade para ter um filho com essa idade. Pregar a abstinência sexual de meninas de 11 a 14 anos não significa ser moralista ou careta, mas responsável. Não se trata de histeria conservadora, mas de bom senso.

A culpa não é só do entretenimento permissivo ou da TV, que, frequentemente, apresenta bons programas. É de todos nós – governantes, formadores de opinião e pais de família –, que, num exercício de anticidadania, aceitamos que o País fosse definido mundo afora como o paraíso do sexo fácil, barato, descartável. É triste, para não dizer trágico, ver o Brasil ser citado como um oásis excitante para os turistas que querem satisfazer suas taras e fantasias sexuais com crianças e adolescentes. Reportagens denunciando redes de prostituição infantil, algumas promovidas com o conhecimento ou até mesmo com a participação de autoridades públicas, crescem à sombra da impunidade.

O governo, assustado com o crescimento da gravidez precoce e com o crescente descaso dos usuários da camisinha, investe pesadamente nas campanhas em defesa do preservativo. A estratégia não funciona. Afinal, milhões de reais já foram gastos num inglório combate aos efeitos. A raiz do problema, independentemente da irritação que eu possa despertar em certas falanges politicamente corretas, está na onda de baixaria e vulgaridade que tomou conta do ambiente nacional. Hoje, diariamente, na televisão, nos outdoors, nas mensagens publicitárias, o sexo foi guindado à condição de produto de primeira necessidade.

Atualmente, graças ao impacto da TV e da internet, qualquer criança sabe mais sobre sexo, violência e aberrações do que qualquer adulto de um passado não tão remoto. Não é preciso ser psicólogo para que se possam prever as distorções afetivas, psíquicas e emocionais dessa perversa iniciação precoce. A inocência infantil está sendo impiedosamente banida. Por isso, a multiplicação de descobertas de redes de pedofilia não deve surpreender ninguém. Trata-se, na verdade, das consequências criminosas da escalada de erotização infantil promovida por alguns setores do negócio do entretenimento.

Se quisermos um entretenimento de qualidade precisamos separar o exercício da liberdade de expressão da prática do entretenimento mundo cão. Há uma liberdade de mercado que produz um mercado da liberdade. De resto, mesmo que exista uma demanda de vulgaridade e perversão, deve-se aceder a ela? Suponhamos que exista um público interessado em abuso sexual de crianças, assassinatos ao vivo, violência desse tipo. Nem por isso a TV deveria ter programas especializados em pedofilia e assassinatos. O mercado não é um juiz inapelável. Não se deve atuar à margem dele, mas não se pode sobrevalorizá-lo.

A iniciação sexual precoce, o abuso sexual e a prostituição infantil são, de fato, o resultado da cultura da promiscuidade que está aí. Sem nenhum moralismo, creio que chegou a hora de dar nome aos bois, de repensar o setor de entretenimento, e de investir em programação de qualidade.

A juventude merece atenção e prioridade nas nossas coberturas.

Carlos Alberto Di Franco, Jornalista.

 

Os migrantes do clima estão entre nós, por Giovanna Madalosso

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Conheci gente que migrou para Curitiba em busca de uns graus Celsius a menos

Giovanna Madalosso, Escritora, roteirista e uma das idealizadoras do movimento Um Grande Dia para as Escritoras.

Folha de São Paulo, 20/01/2025

Como muitos leitores sabem, tenho vivido entre São Paulo e Curitiba. E, nesta segunda cidade, venho assistindo a uma onda migratória peculiar, diferente de qualquer outra que acompanhei até então.

A primeira vez que vislumbrei a onda foi num jantar. Curitiba não é como São Paulo ou Rio, em que as mesas reúnem comensais egressos dos quatro cantos. É raro se ouvir um sotaque diferente entre as araucárias e, de repente, o de um casal chamou a minha atenção. Eram dois artistas manauaras que tinham acabado de se mudar para a capital paranaense. Perguntei por que tinham feito isso. Para fugir do calor, o manauara respondeu, argumentando que a capital do Amazonas nunca esteve tão quente.

Nos meses seguintes, descobri que aquele não era um caso único. Ao lado de imigrantes venezuelanos, cubanos e haitianos, que costumam optar por Curitiba por motivos de natureza política ou econômica, os brasileiros chegam buscando mais qualidade de vida e —aí vem a novidade— às vezes uns graus Celsius a menos, como outra família que conheci, vinda do Espírito Santo.

Isso sem falar nos gaúchos que, traumatizados com a catástrofe climática que destruiu Porto Alegre e com a inépcia do governo em preparar a cidade para um possível novo episódio, escolheram mudar de vez para esta outra capital do sul.

Faço ioga com uma paulistana recém-chegada que não mencionou a crise climática como motivo para ter saído de São Paulo. No entanto, entre um movimento de braço e outro, ela disse que migrou por conta do caos, dando como exemplo a fumaça das queimadas que rebaixaram o ar da pauliceia ao pior do mundo (olha a crise climática aí) e as quedas prolongadas de luz que lhe fizeram perder trabalho e dinheiro (olha a crise climática aí de novo, somada à inépcia de Enel).

E o que dizer de Santa Catarina aos últimos dias? E de Los Angeles? Quantas pessoas, neste exato momento, não cogitam deixar suas cidades? Os habitantes das ilhas Tuvalu não podem nem se dar ao luxo de cogitar. A chance de as ilhas desaparecerem é tão concreta que a Austrália já estuda um acordo para receber esses imigrantes.

Tirando casos agudos, a escolha de migrar ou não migrar acaba por ser um privilégio de classe. Nos próximos anos, assistiremos ao triste espetáculo dos ricos migrando para áreas mais seguras e amenas. Ou instagramando fotos de seus bunkers.

Para a maioria dos cidadãos, e logo mais para todos, restará a aventura de viver em um planeta colapsado pela emissão de carbono, onde não existe mais lugar seguro e, em breve, não haverá mais tantos lugares segurados —algumas empresas já cancelaram apólices em áreas passíveis de incêndios e outros desastres climáticos.

O que fazer com a nossa trouxinha de roupa? Se possível, manter onde está e lutar para que o município que habitamos, onde estão as pessoas que amamos, seja preparado para as condições extremas.

É muito mais caro criar novos povoamentos do que preparar as cidades que já existem para o enfrentamento climático. Mas é preciso cobrar os prefeitos, que, em sua grande maioria, seguem cimentando as cidades sem nenhum critério ambiental, enquanto o Brasil e outros países abrem novos poços de petróleo, garantia de que dias piores, infelizmente, virão.

 

Trump atraiu eleitores frustrados imitando táticas da esquerda, diz Naomi Klein

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Pesquisadora argumenta que a ascensão de extremistas criou ‘mundo invertido’ sinistro nas lacunas do progressismo

Folha de São Paulo, 20/01/2025

Naomi Klein começou a ser sugada por uma crise de identidade. De início parecia só um incômodo chato, mas de repente ela se sentia sumindo no meio de um redemoinho, sem saber onde se segurar. Não se engane, estamos falando mais de política que de psicanálise.

Uma das intelectuais mais celebradas da América do Norte, a canadense era às vezes confundida com outra escritora de sucesso, Naomi Wolf. Até aí, nada anormal —as duas eram quase contemporâneas, tinham alguma semelhança física e defendiam ideias de esquerda.

Klein ficou conhecida por críticas sistêmicas ao neoliberalismo em obras como “Sem Logo” e “A Doutrina do Choque”. Wolf se celebrizou por “O Mito da Beleza”, um protesto contundente contra as imposições sociais ao corpo feminino.

Tudo passou a ficar bem mais estranho quando Wolf, a “outra Naomi”, começou a ser rejeitada pelo campo progressista ao embasar cada vez menos suas ideias em fatos históricos e científicos, entrando numa espiral de teorias conspiratórias.

Ao ser cobrada nas redes sociais como se fosse sua homônima, Klein testemunhou de perto a metamorfose de Wolf em um estandarte do negacionismo do clima e da pandemia. Sua contraparte virou convidada de honra no podcast “The War Room”, de Steve Bannon, o estrategista-mor de Donald Trump.

Às vésperas da posse do republicano para um segundo mandato, o livro que Klein escreveu sobre sua experiência, “Doppelgänger”, ilumina os métodos pelos quais o trumpismo atraiu eleitores imitando táticas da esquerda, criando um submundo de “fatos alternativos”, se apresentando como mais tolerante a erros e estendendo tapete vermelho a ex-progressistas frustrados.

A autora entendeu que seu mergulho no “mundo invertido” da outra Naomi ensinava algo sobre as mudanças por que passam tantas democracias hoje, na “parte mais assustadora” de sua “jornada doppelganger” —expressão alemã que define duas pessoas que se parecem muito.

“Não é apenas um indivíduo que pode ter um duplo sinistro; nações e culturas também os têm.” O Estado incorporado pela extrema direita, segundo ela, é o “irmão gêmeo ubíquo das democracias liberais ocidentais”, “versões sombrias de nosso eu coletivo”.

O livro lançado há pouco no Brasil fala da sensação geral de não saber mais discernir o que é real do que não é —um sentimento difuso de desorientação, de “jet lag coletivo”. Foi buscando retomar o esteio que Klein elaborou seu longo ensaio e deu essa entrevista à Folha por videoconferência.

Seu livro antecipou falhas do campo progressista que ficaram mais visíveis após a eleição de Trump. A sra. retrata a postura de Bannon e outros líderes da direita como mais acolhedoras a novos eleitores que estavam distantes do seu campo político. Por que a direita foi eficiente em fazer isso e a esquerda não?

A direita que surgiu das cinzas do neoliberalismo não tem um projeto econômico transparente. É um discurso muito incoerente —não em termos do que faz quando chega ao poder, mas do que diz para chegar lá.

Há muita contradição, por exemplo, entre a fala sobre enfrentar as elites e a defesa de cortar impostos para as elites. É um discurso familiar à esquerda na crítica aos grandes poderes corporativos, mas sua política é neoliberalismo com esteroides. O que Elon Musk vai fazer no governo é superausteridade  —por isso ele tem tanto interesse em Javier Milei, da Argentina.

E é precisamente por causa dessa incoerência que eles conseguem montar uma coalizão a partir das falhas e dos abandonos da esquerda. Bannon estuda a esquerda bem de perto, fala abertamente que lê Joam Chomsky e Lênin. Ele presta atenção aos assuntos e às pessoas que a esquerda está deixando de lado.

Nós, da esquerda, temos um discurso de inclusão, de diversidade, mas na prática essa cultura é, com frequência, intolerante e doutrinária. Você sente às vezes que precisa fazer um teste para entrar na esquerda e depois continuar fazendo testes para ficar lá [risos]. É o oposto da tenda ampla e acolhedora necessária para uma coalizão vencer.

E não acho que a direita seja tão acolhedora quanto parece —são bem menos ao falar de deportações em massa e fronteiras militarizadas. Mas isso não significa que não podem se apresentar como uma cultura que deixa as pessoas à vontade para cometer erros e discordar.

Diria então que os partidos de esquerda julgam mais seus eleitores, enquanto a direita não demanda nada deles?

É complicado, primeiro porque o Partido Democrata não é a esquerda. É um partido comandado por uma elite de alto nível educacional, muito interconectada —são pessoas aterrorizadas pelo populismo de esquerda, como de Bernie Sanders [em cuja campanha Klein trabalhou], porque o status quo funciona bem para elas.

E eu tenho menos interesse no Partido Democrata que na esquerda, porque esta é a força que pode enfrentar o fascismo. Ele [o fascismo] surge em momentos de falha sistêmica, quando o centro se despedaça, então é necessária uma esquerda robusta para diagnosticar essas falhas pelo seu lado.

Se não houver ninguém nesse campo para entender que formas de organização e solidariedade podem ser criadas em contraposição à extrema direita, então a raiva justificada que as pessoas sentem por não conseguir pagar por comida e aluguel será direcionada a algum tipo de conspiração.

Por isso digo que a nova direita é uma “doppelgänger” da esquerda. O fascismo sempre tem uma estranha similaridade com a esquerda real, é um pseudo-nacional-socialismo, o que não quer dizer que são a mesma coisa. Não são.

É por isso que importa se a esquerda for hipócrita, se trair seus princípios e não conseguir criar uma cultura da qual uma pessoa normal gostaria de participar.

Como a esquerda pode atrair eleitores de direita sem ceder demais em sua agenda em temas essenciais, como a crise climática?

Não devemos pensar nessas pessoas como eleitores de direita, mas como pessoas que votaram à direita nessa eleição e podem ter votado na esquerda em outras. Estamos em um momento de muito fluxo, nada estático.

De uma maneira esquisita, estamos meio entorpecidos por uma sequência de choques, porque eles têm vindo em “stacatto”. São crises econômicas, climáticas, pandemias, revoltas políticas. Isso virou nossa realidade, e é perigoso se acostumar com políticas de abandono em massa da vida humana.

Então a política tem, mesmo, que voltar para o básico. As perguntas são: nós valorizamos a vida? Acreditamos que todas as pessoas têm o mesmo valor no mundo?

Há uma crise espiritual, eu diria. Às vezes penso que o papa [Francisco] é o único que consegue falar nessa língua hoje. Precisamos de líderes que sejam vozes algo proféticas no meio dessa intersecção de crises, de mortes tão massificadas, que na academia chamamos de “necropolítica”. Também acho que devemos parar de usar palavras como “necropolítica” [risos]. Mantenha as coisas simples.

Mas você falou de clima. Políticas para o clima hoje são associadas, na mente dos eleitores, com a classe média e a elite intelectual, como preocupações de luxo, que vão deixar sua vida mais cara.

O ecopopulismo conecta o debate sobre o clima a questões como mobilidade, moradia, alimentação. O movimento pelo clima deve encontrar os eleitores aí no meio, não forçar uma falsa escolha entre suas preocupações climáticas e suas necessidades imediatas.

Ao final do livro, a sra. urge as pessoas a serem menos individualistas e defende que a “destruição do eu” pela qual passou foi, na verdade, positiva. Isso envolve a redução do tempo nas redes sociais?

Sim, essa é fácil. Eu sou grata a Elon Musk por arruinar o Twitter. As melhores alternativas de mídia social, agora, vão ser as que engajam menos. Eu entrei no Bluesky, e não é um ambiente tão dramático e furioso. É até meio tedioso, e tudo bem!

Não é que precisamos aniquilar o ego, mas nós nos tornamos grandes demais para o nosso próprio bem. Ficamos obcecados com a otimização da nossa personalidade e da nossa marca particular. Não porque somos todos narcisistas, mas porque temos medo.

Não estamos vendo qualquer segurança econômica para além de nós mesmos e viramos nossa única boia de salvação. Quando nos juntamos em organizações, sejam sindicatos, coalizões políticas ou grupos de arte, dá uma sensação real de reforço de poder, de possibilidades.

Devemos voltar a pensar nas redes como ferramentas para levar pessoas a ambientes offline —como um grande quadro de avisos, não como uma rede de sociabilidade.

Em ‘Doppelgänger’, a sra. divide a sociedade entre um ‘mundo real’ e um ‘mundo espelho’. Quanto esse conceito de polarização ajuda a entender a política de hoje e quanto ele mascara as diferenças que existem dentro desses grupos?

Ou as similaridades entre os dois grupos, não? Sim, mascara muito. Por isso eu concluo no livro que estamos todos em um “mundo espelho”, cada grupo de um lado do vidro. A ideia de que nós, pessoas de esquerda virtuosas que se baseiam na ciência, somos a realidade verdadeira —isso é um tipo de fantasia.

A separação mais importante é entre o mundo em que todos vivemos e o que chamo de “terra das sombras”, aquilo para o que ninguém suporta olhar. Estamos entendendo melhor o quanto nós nos amarramos a sistemas de aniquilação e morte, algo que nunca enfrentamos.

Eu me refiro, por exemplo, ao tamanho da crise climática, ou o que significa investir mais e mais na inteligência artificial, que cria “doppelgängers” virtuais de todo mundo enquanto suga toda a energia do mundo material. É incrivelmente distópico e só piorou desde que escrevi.

São coisas quase impossíveis de encarar, então nos distraímos freneticamente acusando os outros e purificando a nós mesmos. E ninguém está acertando as contas consigo mesmo, seja na esquerda ou na direita.

A crise climática, por exemplo, nem estava nas cédulas de votação em 2024. Não conseguimos lidar com isso porque significa encarar os limites do que nós conseguimos fazer como indivíduos. As implicações são esmagadoras, porque o trabalho que precisa ser feito é profundamente coletivo.

Ao mergulhar no mundo da extrema direita como uma pesquisadora de esquerda, como a sra. se equilibrou entre a discordância profunda e a atenção honesta àquele discurso?

Você tem que levar a sério. Estamos num momento de crise narrativa na esquerda, então é importante entender por que essas histórias têm tanta ressonância.

Algo em que toquei apenas superficialmente no livro é o papel das narrativas judaico-cristãs apocalípticas, que apontam para o fim dos tempos. No Brasil, não dá para entender a ascensão da ultradireita sem as narrativas religiosas, e elas estão profundamente codificadas no nosso imaginário coletivo. Somos incrivelmente obtusos, no mundo secular, em entender o poder dessas narrativas.

Nós achamos que vamos conseguir martelar fatos na cabeça das pessoas, mas você está indo contra uma cosmologia transcendente, oposta ao mundo material —com qual história você se contrapõe a isso? É por isso que o papa me interessa tanto [risos].

Doppelgänger: Uma Viagem Através do Mundo-Espelho

Autoria Naomi Klein/ Editora Carambaia

 

RAIO-X | NAOMI KLEIN, 54

Canadense nascida em Montreal, ficou conhecida por livros como “Sem Logo” (2000, Record), uma crítica à cultura do consumismo massificado, e “A Doutrina do Choque” (2007, Nova Fronteira), que argumenta que governos e empresas exploram momentos de comoção para agir contra os interesses da população. Nos últimos anos, tem se dedicado à pauta do clima, por exemplo na obra “Como Mudar Tudo” (2021, Rocco). Hoje é codiretora do Centro de Justiça Climática da Universidade da Colúmbia Britânica, professora da Universidade Rutgers, nos Estados Unidos, e colunista do jornal britânico The Guardian.