A desigualdade subsidia as elites? por Michael França

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História do Brasil é a de um presente aprisionado no passado

Michael França. Ciclista, vencedor do Prêmio Jabuti Acadêmico, economista pela USP e pesquisador do Insper. Foi visiting scholar nas universidades de Columbia e Stanford.

Folha de São Paulo, 26/05/2025.

O problema não está apenas na desigualdade de renda, mas também na de influência. A elite econômica não concentra só patrimônio, mas também determina prioridades políticas e financia as campanhas que desenham o Estado. Um Estado que supostamente deveria garantir equidade, mas que frequentemente se dobra aos interesses de quem pode pagar mais por sua atenção.

É assim que os vencedores do passado legam aos seus descendentes não apenas riqueza, mas também os meios para seguir vencendo, com o poder da influência, redes de proteção mútuas e um Estado moldado para manter quase tudo como está. Essa engrenagem se mostra com nitidez quando olhamos como a desigualdade do presente foi moldada pelo passado, em um arranjo que se apoia, por exemplo, em uma ampla base de trabalho pouco valorizado, que sustenta, com esforço diário, o conforto daqueles que possuem maior renda.

A ampla oferta de mão de obra pouco qualificada e mal remunerada garante à elite acesso a serviços baratos. Domésticas disponíveis sete dias por semana, entregadores pedalando sem proteção social, motoqueiros se acidentando pelas ruas da cidade, babás que gastam mais tempo com os filhos dos outros do que com os próprios filhos e cuidadoras que dedicam a vida ao cuidado dos idosos, enquanto seguem sem saber se, um dia, alguém cuidará delas com a mesma devoção.

Tudo isso reduz o custo de vida dos mais ricos. Em países desenvolvidos, um estilo de vida confortável como esse costuma exigir arcar com um custo maior pelo tempo do trabalho dos outros. Neles, o Estado tem um papel redistributivo importante e há uma sociedade que, ainda que com falhas, costuma reconhecer o valor de quem serve. No Brasil, a desigualdade subsidia o privilégio e as elites dificilmente pagam um valor justo por aquilo que consomem.

Mas, veja… Não foi por acaso que temos uma grande massa de trabalhadores pouco qualificados. Ao contrário de outras nações que enxergaram na educação um caminho para formar cidadãos e fortalecer instituições, o Brasil preferiu manter a escola longe dos mais desfavorecidos.

Desde o Império até o século 21, a história educacional do país é menos uma marcha rumo ao progresso e mais uma crônica da contenção. A contenção de uma elite que jamais considerou prioridade formar o povo.

Até durante a ditadura militar o discurso da integração pelo desenvolvimento não passou de retórica. O ensino foi massificado, mas também esvaziado. Gerou uma educação voltada para bater continência à hierarquia social. Professores desvalorizados, escolas sem infraestrutura adequada e currículos que reforçam um modelo de sociedade baseado na obediência à desigualdade ainda dão a tônica de nosso sistema educacional.

Hoje, mesmo com avanços pontuais, o Brasil ainda é prisioneiro desse passado que faz com que a elite viva de um país que trabalha para ela. Sua riqueza não é um acidente. Em muitos casos, pouco tem a ver com o esforço. Ela é o resultado de uma estrutura social construída para sugar energia de baixo e concentrar dividendos no topo.

 

 

Curso de Gestão Hospitalar – Fatec Barretos, 2025

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A revolução do óbvio, Túlio Augustus Silva e Souza.

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É difícil desconstruir o imaginário de que o bem-sucedido financeiramente é um ente divinal; deslumbramento com bilionários é chaga nacional

Túlio Augustus Silva e Souza, Professor e doutor em sociologia (USP)

Folha de São Paulo, 26/05/2025

Um confiável termômetro sobre o desatino de uma época é a capacidade de seus contemporâneos de se entorpecerem diante de uma simples obviedade. Se, como reza o ditado, em terra de cego quem tem olho é rei, vale acrescentar que, em palco de maluco, quem junta lé com cré vira gênio. Em tempos normais, o óbvio só consegue ser banal. Mas, na era do descalabro, o truísmo pode adquirir status de verdade revelada.

Nessa segunda categoria se insere a pregação de Abigail Disney, herdeira de fortuna e sobrenome que dispensam apresentações. Em entrevista à Folha (“Precisamos parar de idolatrar os ricos, diz herdeira da Disney “, 5/5), a cineasta filantropa, que visitou o Brasil recentemente, disse algo que vem a calhar nestes tempos aziagos. Segundo ela, o mundo precisa parar de idolatrar os ricos, achando que eles sabem mais. Atentemo-nos: cifras demais não necessariamente são neurônios a mais.

Com a autoridade de quem já doou US$ 70 milhões de sua fortuna e diz ter encontrado na filantropia uma felicidade que seu dinheiro antes não comprara, Abigail lidera uma organização de ricaços a favor de uma maior taxação de fortunas. E emenda: “Todo bilionário que não consegue viver com US$ 999 milhões é uma espécie de sociopata”. Lapidar.

Mais do que o passatempo preferido de alguns ricos, o de parecer bonzinho, a exortação da neta de Roy O. Disney (que fundou a The Walt Disney Company com o irmão, Walt) é pílula de sensatez em uma época que tem naturalizado a idolatria a Bilionários, por mais que suas opiniões políticas fascistoides favoreçam tudo, menos um mundo de mais justiça e equidade.

Quando se lembra, conforme pesquisas, que na Faria Lima os nomes de “Marçais e Gusttavos Limas” despontam como líderes desejáveis, a fala de Abigail adquire o peso de uma verdade incômoda.

O deslumbramento com os Tios Patinhas da vida real virou uma chaga que a sociedade brasileira exibe orgulhosa. No Congresso Nacional, de 2025, por exemplo, é mais difícil encontrar um oposicionista defendendo a justa redução dos impostos da cesta básica, conforme preconizado pelo governo, do que um representante do povo afoito para vociferar contra a taxação de fortunas, medida adotada em todo o mundo desenvolvido. A declaração do presidente do PP, Ciro Nogueira, confessando pretender aliviar qualquer aumento de impostos para o 0,006% mais rico é uma evidência da plutofilia da elite nacional.

Noves fora a interrupção de uma sessão congressual que discute um problema coletivo para tirar selfie com a influencer Virgínia Fonseca.

Uma das tarefas mais bem-sucedidas do neoliberalismo a granel nas consciências contemporâneas é exatamente a leitura de que qualquer indivíduo que porventura tenha alcançado a riqueza o fez apenas por méritos próprios, sem qualquer vínculo ou relação com o meio, as circunstâncias ou a sociedade que o cerca. Diante desse imaginário, fica mais fácil heroicizar todo e qualquer milionário.

Acrescente-se ainda uma mentalidade difundida Brasil afora com as novas versões da Teologia da Prosperidade, segundo a qual o sucesso é sempre uma recompensa ao esforço individual. Nesse caldo cultural, portanto, constrói-se a versão idealizada de que o rico, seja ele herdeiro ou “self-made man”, é sempre um incontestável merecedor da riqueza que o precede. Na gramática moral contemporânea, enriquecer via “jogo do tigrinho” é tão louvável quanto ganhar o Prêmio Nobel.

Desconstruir o imaginário de que o bem-sucedido financeiramente é um ente divinal entre os mortais não é tarefa fácil. Corre-se sempre o risco de se resvalar para uma aversão tola à prosperidade, que é sim bem-vinda, obrigado. Mas o apontamento da herdeira de Mickey Mouse faz todo sentido. Estimular que os ricaços doem quantias vultosas a projetos promovedores de equidade é um ato civilizatório. Todos ganham em uma sociedade com menos desigualdade. E que os ricos comecem a se dar conta disso é uma obviedade que pode nos salvar.

Como funciona o partido digital bolsonarista, por Camila Rocha.

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A forma de organização é uma inovação política alinhada ao espírito algorítmico de nossos tempos

Camila Rocha, Doutora em ciência política pela USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.

Folha de São Paulo, 26/05/2025

O PL (Partido Liberal), legenda que abriga Jair Bolsonaro desde 2021, é apenas um hospedeiro institucional do bolsonarismo. Sua verdadeira organização política é uma máquina digital de poder descentralizada, com base digital e estratégias próprias, que opera à margem das regras formais da política.

Tal forma de organização é uma inovação política que nasceu alinhada ao novo espírito algorítmico de nossos tempos. Daí o nome: “partido digital”.

É o que argumentam pesquisadores do Centro para Imaginação Crítica do Cebrap (CCI/Cebrap) que, em parceria com o Instituto Democracia em Xeque e o Projeto Brief, realizaram uma série de levantamentos de dados para demonstrar por que faz sentido falar em partidos digitais.

“O bolsonarismo não é apenas um grupo de apoio a um líder, mas uma forma organizativa nascida no ambiente digital, que hackeia o sistema partidário tradicional para a disputa política eleitoral”, explica Ana Cláudia Chaves Teixeira, pesquisadora do CCI/Cebrap e professora de ciência política da Unicamp. “Ao operar em paralelo, o partido digital contorna as legislações eleitorais, modos de financiamento, bem como consegue operar de maneira nova a mobilização de sua base.”

É justamente tal modo de organização política que teria permitido a hegemonia política de Bolsonaro no campo das direitas sem a necessidade de um partido próprio ou de vínculos estreitos com lideranças políticas tradicionais. E, mais importante, mantendo um discurso antissistema radical.

Desde o início de sua vida política, Bolsonaro já passou por oito partidos. A agremiação em que permaneceu mais tempo foi o PP, fundado a partir de setores da Arena (Aliança Renovadora Nacional), partido de sustentação da ditadura militar.

Quando se tornou a principal liderança política da extrema direita brasileira, Bolsonaro estava abrigado no PSC (Partido Social Cristão). Na época, de 2016 a 2018, o partido havia começado a receber um grande influxo de jovens querendo se filiar, algo até então inédito para siglas fisiológicas de direita. A maioria se declarava fã de Bolsonaro e Olavo de Carvalho.

Para viabilizar sua candidatura à Presidência, o partido pagou um curso de media training para Bolsonaro para amenizar seu estilo agressivo. Além disso, para aproximá-lo do eleitorado evangélico, o então líder do partido, Pastor Everaldo, da Assembleia de Deus, batizou Bolsonaro, que é católico, no Rio Jordão, em Israel.

Porém a radicalidade de Bolsonaro impediu sua permanência na sigla. A gota d’água foi uma aliança com o PC do B que possibilitou a eleição de um evangélico e de três vereadores comunistas. Depois disso, o bolsonarismo tentou se organizar em um partido único por duas vezes com duas siglas: Patriota e Aliança Brasil. Foi um fracasso retumbante.

De fato, os políticos bolsonaristas dificilmente conseguem se sentir representados por qualquer uma das siglas de direita brasileiras. Afinal, ao contrário da maioria dos políticos brasileiros, os bolsonaristas mais aguerridos querem fazer a grande política. E, para disputar corações e mentes hoje, as redes são imprescindíveis, os partidos tradicionais, não.

 

As elites querem o fim da universidade pública, por João Carlos Salles

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Folha, outra vez, encampa o obscurantismo: acusa Ensino Superior de projeto fracassado, caro e cabide de empregos. Lula acena com a suspensão do contingenciamento de verbas. Mas a mobilização não pode parar em gabinetes. Exige outra definição das prioridades nacionais

João Carlos Salles – OUTRAS PALAVRAS – 23/05/2025

  1. É claro o projeto das elites conservadoras para a universidade. Com rara felicidade, a Folha de S. Pauloo sintetizou no Editorial “Não haverá dinheiro que baste para universidade públicas”, de 23 de maio de 2025, reagindo ao manifesto conjunto da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e da Sociedade Brasileira para o Progresso das Ciências (SBPC) — que, com plena razão, mostraram que o contingenciamento ora definido pelo governo federal favorece o desmonte da universidade pública em nosso país.

Os redatores da Folha são competentes. Eles são capazes de enunciar, em poucas linhas, toda a pauta reacionária, que não associa a universidade a um projeto de nação verdadeiramente democrática. Sem dúvida, com seu modo característico de simular a apresentação de argumentos em texto tão somente eivado de preconceitos, a Folha de S. Paulo mostra que tem lado. É verdade que ainda o faz sem as surpreendentes bravatas de um Trump, mas ela não está mais muito distante da retórica dos governos anteriores. Assim, ao condenar o “tom catastrofista” do manifesto da ABC e da SBPC, assume ela própria um requentado tom catastrofista, bastante digno de Bolsonaro.

No Editorial, as universidades aparecem como um projeto fracassado e caro, um inútil poço sem fundo, no qual, ademais, servidores docentes e técnicos atrevem-se a fazer greves, tendo o condenável benefício da estabilidade. Para começo de conversa, a Folha considera a universidade uma repartição pública qualquer, que não teria dignidade própria nem mereceria ser protegida das intempéries da economia. As universidades, afirma o Editorial, são meros “exemplos de distorções e vícios da gestão pública”. Já vai longe aqui o momento em que até a Folha reconhecia o valor das universidades, por exemplo, no combate à pandemia.

As bandeiras reacionárias parecem brotar como se fossem óbvias, expressando preconceitos ignorantes em letra de forma: fim da estabilidade dos professores, da gratuidade do ensino e, sobretudo, da garantia do financiamento público da educação superior — medidas que sabemos inconsistentes, mas podem ter grande apelo retórico. Em suma, para a Folha et caterva, a universidade parece mais abjeta que o próprio obscurantismo. Com efeito, a próxima campanha eleitoral começa, e o lugar de produção da pesquisa e do conhecimento no Brasil deve tornar-se um alvo a ser desmontado: “Trata-se de um modelo custoso, iníquo e de baixo incentivo à eficiência, defendido à base de discurso ideológico e prática corporativista”.

  1. Temos indícios positivos de que a reação do presidente Lula vai em outra direção. A nota da ABC e da SBPC, em vez de lhe provocar engulhos como à Folha, parece suscitar o aceno de que Lula receberá os reitores e que, então, poderá até anunciar a suspensão do contingenciamento para as universidades federais.

Não poderíamos esperar outra atitude. Nesse caso, se confirmado, fica a lição para aqueles que pensam ajudar o atual governo evitando qualquer crítica. A mobilização decidida e a crítica necessária ajudam nossos governantes a não serem tragados pelas pautas reacionárias. Com isso, nossos louvores à ABC e à SBPC, bem como a quantos vocalizam a luta, tanto urgente quanto de longa duração, em defesa da universidade pública, gratuita e de qualidade.

Com justa alegria, reitores já comemoram nos bastidores. Não obstante o possível alívio, parece que essa boa e justa acolhida está longe de significar uma autêntica guinada nos rumos das prioridades nacionais. Que o governo Lula não sacrifique as universidades é algo que está à altura de sua história, de seu melhor legado, pois sua política fez expandir a rede de universidades por todo país e permitiu o acesso ao ensino superior de muitos outrora sistematicamente excluídos. Faz, então, muito bem o líder que acolhe, mas não para refrear uma luta ainda mais ampla e franca pelos valores mais elevados que, aliás, no momento, somente ele pode representar.

Que os atores da cena universitária leiam os sinais. As águas se dividem, os campos se desenham. Nesse cenário de grande confronto entre projetos opostos de nação, não há de bastar o mero alívio das dores agudas das nossas instituições. Reitores não podem contentar-se com sobreviverem a seus próprios mandatos, mesmo com eventuais conquistas e algumas inaugurações. Afinal de contas, está em jogo o destino da universidade. Assim, não basta remediar, é preciso curar um mal e combater uma narrativa, cabendo à ANDIFES uma resposta firme ao Editorial da Folha.

É preciso, pois, deslocar a educação pública para o lugar de prioridade nacional, de sorte que ela contribua, inclusive, por seus essenciais serviços à nossa nação, para afastar de forma duradoura os insistentes fantasmas do obscurantismo.

Lula deve agir nesse momento de urgência, e os reitores devem, sim, celebrar sua atitude. Mas é preciso mais. A mobilização não pode parar nos gabinetes, uma vez que o governo Lula e as universidades não podem fechar os olhos para a dimensão do ataque, nem recusar esta oportunidade para afirmar, perante a sociedade, a bandeira da educação. Se as soluções não forem de grande monta, se não implicarem uma autêntica redefinição das prioridades nacionais, estaremos oferecendo para uma luta ideológica de largo espectro apenas uma saída passageira e insuficiente, porquanto marcada por sua imediatez e tibieza

Saúde mental e trabalho, por Rodolfo Furlan Damiano

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Rodolfo Furlan Damiano – A Terra é Redonda – 09/05/2025

Estamos presenciando uma revolução silenciosa na forma como a sociedade brasileira enxerga a saúde mental

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Em 2024, o Brasil registrou um número alarmante de 472.328 afastamentos por transtornos mentais relacionados ao trabalho, representando um aumento expressivo de 68% em relação ao ano anterior. Este dado não é apenas uma estatística fria, mas o reflexo de uma crise real enfrentada diariamente por milhares de trabalhadores brasileiros.

Como psiquiatra, observo cotidianamente em meus atendimentos o impacto profundo que o ambiente laboral exerce sobre a saúde mental das pessoas. Entretanto, esse aumento nos afastamentos possui uma dupla leitura: por um lado, indica o agravamento das condições de trabalho; por outro, revela um avanço importante na conscientização social sobre a importância da saúde mental, com pessoas mais dispostas a reconhecer seus limites e buscar ajuda profissional.

O crescimento dos afastamentos por razões psicológicas não se restringe ao Brasil. Os afastamentos por transtornos mentais aumentaram 134% nos últimos dois anos, passando de 201 mil casos em 2022 para 472 mil em 2024. Entre os casos relacionados à saúde mental, destacam-se afastamentos por reações ao estresse (28,6%), ansiedade (27,4%), episódios depressivos (25,1%) e depressão recorrente (8,46%).

Na América Latina, a situação é igualmente preocupante, com países como Argentina e Chile registrando aumentos significativos nos casos de afastamento por transtornos mentais nos últimos três anos. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), estima-se que 12 bilhões de dias de trabalho são perdidos anualmente devido à depressão e à ansiedade, custando à economia global quase um trilhão de dólares.

Este aumento expressivo pode ser compreendido a partir de duas perspectivas complementares. A primeira refere-se ao agravamento real das condições laborais, especialmente após a pandemia de Covid-19. Muitos trabalhadores passaram a enfrentar insegurança financeira, medo do desemprego e sobrecarga devido à adaptação forçada ao trabalho remoto sem o suporte adequado. A fronteira entre vida profissional e pessoal tornou-se cada vez mais tênue, levando ao que especialistas chamam de “disponibilidade permanente” – a sensação de estar sempre de plantão, sempre conectado.

Vivemos hoje em um mundo hiperconectado, onde as tecnologias digitais que deveriam facilitar nossas vidas acabaram criando uma extensão infinita do ambiente de trabalho. Mensagens de whatsapp de chefes e colegas chegam a qualquer hora do dia e da noite, e-mails são checados durante fins de semana e férias, transformando nossos lares em verdadeiros escritórios sem horário de fechamento. Essa conectividade permanente criou a expectativa implícita de disponibilidade constante, eliminando os espaços de descanso e recuperação tão essenciais para nossa saúde mental.

Essa realidade afetou particularmente as mulheres, que frequentemente acumulam responsabilidades profissionais e domésticas. Não por acaso, elas representam 64% dos casos de afastamento por transtornos mentais no Brasil. O perfil médio dos trabalhadores afastados é de 41 anos, justamente o período em que as demandas familiares e profissionais tendem a ser mais intensas.

2.

A segunda perspectiva aponta para uma mudança cultural positiva: estamos presenciando uma revolução silenciosa na forma como a sociedade brasileira enxerga a saúde mental. O que antes era tabu, hoje é tema de conversas abertas. Condições como ansiedade, depressão e burnout saíram das sombras, permitindo que as pessoas reconheçam seus sintomas e busquem ajuda sem o estigma que antes acompanhava esses diagnósticos.

Do ponto de vista médico, o estresse crônico no trabalho vai muito além do simples cansaço ou irritabilidade. Estudos realizados pelo Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos demonstram que a exposição prolongada a ambientes laborais estressantes altera literalmente a bioquímica cerebral, afetando áreas responsáveis pela regulação emocional e tomada de decisões.

Quando uma pessoa está constantemente sob pressão, seu organismo mantém níveis elevados de cortisol, o chamado “hormônio do estresse”, que em excesso pode danificar estruturas cerebrais como o hipocampo e o córtex pré-frontal. Essa alteração biológica diminui nossa resiliência emocional e capacidade de enfrentar novos desafios, criando um ciclo vicioso prejudicial.

Tenho observado em minha prática clínica um fenômeno particularmente preocupante entre os profissionais mais jovens. As novas gerações que ingressam agora no mercado de trabalho parecem apresentar limiares mais baixos de tolerância ao estresse laboral, adoecendo mais rapidamente quando expostas a pressões que gerações anteriores suportavam por períodos mais longos. Isso não significa, como alguns erroneamente apontam, que sejam “mais frágeis” ou “menos comprometidas” – trata-se de uma geração que cresceu em contextos sociais e educacionais distintos, com menos exposição a frustrações e mais consciente de seus direitos e limites pessoais.

O Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho, vinculado ao Ministério do Trabalho, identificou que profissionais de saúde, educação e segurança pública apresentam os maiores índices de afastamento por transtornos mentais no Brasil. Em particular, enfermeiros e técnicos de enfermagem lideram o ranking, seguidos por professores da educação básica e atendentes de call center.

As características desses ambientes incluem alta demanda emocional, baixa autonomia e frequentemente recursos insuficientes para a realização adequada do trabalho. Como observado por profissionais da área, “os advogados são treinados para ‘pensar’ como advogados e não a ‘sentir’. Isso propicia um distanciamento das suas próprias emoções e valores, gerando quadros de ansiedade, insatisfação e desequilíbrio emocional”. São ambientes propícios ao desenvolvimento de quadros como a Síndrome de Burnout – o esgotamento profissional caracterizado por exaustão, cinismo e redução da eficácia.

3.

Na minha prática clínica, percebo que o tratamento eficaz dos transtornos mentais relacionados ao trabalho requer uma abordagem multidisciplinar. O primeiro e mais importante passo é a avaliação especializada, realizada por profissionais de saúde mental qualificados, como psicólogos e/ou psiquiatras. Somente um diagnóstico preciso pode orientar corretamente o plano terapêutico, determinando a necessidade ou não de medicação, psicoterapia e até mesmo o afastamento temporário do ambiente laboral.

Quando identificado um transtorno mental, é fundamental instituir um tratamento individualizado. A medicação psiquiátrica pode ser necessária nos casos moderados a graves, mas raramente deve ser a única intervenção. A psicoterapia, em especial a terapia cognitivo-comportamental, tem demonstrado excelentes resultados no manejo dos sintomas relacionados ao estresse laboral, auxiliando os pacientes a modificarem padrões de pensamento disfuncionais e a desenvolverem estratégias mais eficazes de enfrentamento.

Paralelamente, as intervenções psicossociais desempenham papel crucial na recuperação e prevenção. A implementação de mudanças nos hábitos de vida – como a prática regular de atividade física, alimentação equilibrada, higiene do sono e técnicas de relaxamento – contribui significativamente para a melhora do quadro. Técnicas de mindfulness e meditação têm se mostrado ferramentas valiosas, ajudando os pacientes a desenvolver maior resiliência emocional e capacidade de autorregulação.

É essencial também promover mudanças no próprio ambiente de trabalho, com a adoção de práticas organizacionais mais saudáveis: pausas regulares, definição clara de prioridades, estabelecimento de limites para a jornada de trabalho e para a disponibilidade fora do expediente. A exposição gradual a estressores laborais, sob orientação profissional, permite a ressensibilização controlada e o desenvolvimento de recursos adaptativos.

O retorno ao trabalho após um afastamento representa outro momento crítico que demanda atenção especializada. Este processo deve ser gradual e cuidadosamente monitorado, idealmente com adaptações no ambiente laboral para evitar recaídas. Aqui, a parceria entre o profissional de saúde mental, o médico do trabalho e os gestores da empresa é fundamental para garantir uma reintegração bem-sucedida. Infelizmente, muitas organizações ainda carecem de protocolos adequados para este momento delicado, o que frequentemente resulta em novos afastamentos e cronificação dos quadros.

Por fim, não podemos esquecer o papel da prevenção primária. Programas de educação em saúde mental no ambiente corporativo, identificação precoce de fatores de risco, suporte psicológico preventivo e desenvolvimento de competências em gestão do estresse são iniciativas essenciais para reduzir a incidência desses transtornos e promover ambientes de trabalho mais saudáveis e produtivos.

O enfrentamento desse problema exige uma resposta articulada entre diversos setores da sociedade. As empresas precisam ir além dos discursos sobre bem-estar e implementar mudanças concretas em suas culturas organizacionais, como o estabelecimento de limites claros para o trabalho fora do expediente, capacitação de líderes para identificar sinais precoces de sofrimento psíquico e a criação de canais seguros para que funcionários possam expressar suas dificuldades sem medo de retaliação.

O poder público também tem papel fundamental, fortalecendo a fiscalização das condições de trabalho e ampliando o acesso a serviços de saúde mental no Sistema Único de Saúde. Uma nova regra que entrará em vigor em 2025, através da atualização da Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1) promovida pelo Ministério do Trabalho e Emprego, exigirá que empresas avaliem riscos à saúde mental dos seus colaboradores. Esta normativa prevê a inclusão da avaliação de riscos psicossociais no processo de gestão de Segurança e Saúde no Trabalho, representando um avanço importante no reconhecimento do nexo causal entre determinadas condições de trabalho e o adoecimento mental.

*Rodolfo Furlan Damiano é médico, pós-doutorando em psiquiatria pela USP.

Autor, entre outros livros, de Compreendendoo suicídio (Editora Manole).

Referências

Agência Brasil. Saúde mental: afastamentos dobram em dez anos e chegam a 440 mil. março de 2025.

Brasil 61. Afastamento do trabalho por transtornos mentais ultrapassaram 400 mil em 2024. Fevereiro de 2025.

International Labour Organization. Série SmartLab de Trabalho Decente 2025: apenas 46% dos municípios brasileiros possuem políticas ou programas de atendimento a pessoas com transtornos mentais. 2025.

Ministério do Trabalho e Emprego. Saúde mental do trabalhador é o foco da Canpat 2023. Maio de 2023.

Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho. Estatísticas sobre afastamentos laborais no Brasil. 2024.

Portal CNJ. Dados do Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho preocupam. Maio de 2023.

Terra. Saúde mental no trabalho piora em 2023: afastamentos aumentaram quase 40%. Janeiro de 2024.

Tribunal Regional do Trabalho 13ª Região – Paraíba. Transtornos mentais são a terceira maior causa de afastamento do trabalho no Brasil. Janeiro de 2023

Construindo o desenvolvimento

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Neste ambiente de constantes instabilidades econômicas, sociais e políticas, as nações precisam construir modelos de desenvolvimento, agregando variados setores, atraindo todos os grupos sociais e compreendendo que todas os países que conseguiram alcançar o sonho do desenvolvimento econômico, antes de mais nada, conseguiram construir, internamente, um consenso social e um pacto entre todos os grupos, agregando todas as forças políticas em prol da melhora sistemática da população, aumentando as oportunidades internas, sem estes consensos, o desenvolvimento econômico, se torna, cada vez mais, um ideal impossível de ser alcançado.

Todos os exemplos de países que conseguiram alçar o verdadeiro desenvolvimento econômico e produtivo garantiram fortes recursos educacionais para todos os cidadãos, grandes investimentos em formação de capital humano, foco constante em pesquisa científica e tecnológica, grandes atrativos para atrair as melhores cabeças em todas as áreas do conhecimento humano, variadas oportunidades de crescimento profissional e novos horizontes de ascensão social para todos os indivíduos. Precisamos compreender, urgentemente, que educação não é gasto, muito pelo contrário, educação é formação dos cidadãos, conscientização política, educação é investimento produtivo que traz ganhos substanciais para todos na sociedade.

Para desenvolver a sociedade brasileira precisamos compreender que somos detentores de vantagens comparativas que poucas nações possuem, somos detentores de grandes espaços geográficos, vegetações abundantes e variadas, clima propício, energias renováveis e somos detentores de uma infinidade de recursos naturais e  minerais que enchem os olhos das nações do mundo, estimulando a cobiça e o interesse mesquinho de muitos países, notadamente aqueles que trazem uma forte trajetória de imperialismo, expoliação e dominação econômica.

Todas as nações que conseguiram seu desenvolvimento econômico se utilizaram de políticas industriais efetivas, protegendo seus setores estratégicos, exigindo transferências de tecnologias de empresas estrangeiras, fortes investimentos em educação, pesquisa e tecnologia, desta forma, capacitando os trabalhadores para concorrerem numa economia internacional marcada pela volatilidade crescente.

s nações que conseguiram garantir seu desenvolvimento econômico e produtivo construíram um setor exportador dinâmico e altamente diversificado, adotando câmbio desvalorizado, taxas de juros civilizadas para angariar novos mercados consumidores e investindo em setores dotados de ciência e tecnologia, exportando produtos de alto valor agregado e garantindo retornos financeiros como forma de estimular o crescimento econômico e, posteriormente, melhorar as condições de vida da população, vide o caso de países asiáticos, como Japão, Coréia de Sul e China, dentre outros.

Embora encontremos na literatura econômica internacional, inúmeros intelectuais, economistas e cientistas sociais que se debruçaram no tema do desenvolvimento econômico, variadas nações conseguiram o intento de se desenvolverem, percebemos que, cada país precisa encontrar seu caminho de desenvolvimento, cada nação tem sua trajetória, precisamos enfrentar limitações políticas e costurar novos consensos políticos para evitar a perpetuação do subdesenvolvimento, fugindo de receitas estrangeiras de nações que pregam máximas que nunca fizeram, países que demonizam o Estado Nacional e que sobrevivem as custas da exploração dos governos de plantão.

O desenvolvimento econômico é o sonho para muitas nações, para isso precisamos construir as condições internas, abrir mão dos supérfluos, investir em educação, fomentar ciências e tecnologias, diversificar os setores produtivos, construir uma visão sistêmica dos desafios contemporâneos e fortalecer as instituições nacionais, sem estes pré-requisitos seremos sempre vistos como o país do futuro.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

O plano do “mercado” para abocanhar os Correios, por Paulo Kliass

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Jornalões alardeiam o resultado deficitário da estatal em 2024. Mas não contam sobre os R$2,8 bi de saldo positivo nos últimos 15 anos. Mercado mudou e concorrência aumentou, mas saída não é privatizar uma conquista com longa história do país

Paulo Kliass – Outras Palavras – 20/05/2025

A sanha acumuladora do grande capital privado nunca teve limites. No caso brasileiro, as classes dominantes aproveitaram a onda liberalóide que se seguiu à implementação do Consenso de Washington, a partir dos anos 1980, para avançar na pauta da privatização. A estratégia pressupunha associar a presença do Estado na economia a um quadro ditatorial na esfera da política, donde se concluía que a transição democrática no Brasil deveria incorporar a venda das empresas estatais de forma ampla, geral e irrestrita.

Assim, a partir da posse de Fernando Collor de Mello na Presidência da República em 1990, tem início um longo processo de transferência de ramos inteiros de nossa economia do setor público para o setor privado. Mesmo depois do impeachment do caçador de marajás, o governo de Fernando Henrique Cardoso deu continuidade à política de entrega generosa do patrimônio estatal. Assim foi feito com o sistema bancário ligado aos governos estaduais, com o parque da siderurgia, com a petroquímica e os fertilizantes, com as telecomunicações, com boa parte do setor de energia elétrica e com a simbólica Vale do Rio Doce.

Apesar de seu desejo manifesto de promover a desestatização completa da economia, as elites destas terras não conseguiram completar integralmente tal missão. Houve resistência de vários tipos e algumas empresas estatais ainda permanecem no âmbito da União. Esse é o caso dos bancos federais (BB, CEF, BASA, BNB e BNDES), da Petrobrás (apesar do fatiamento e privatização de subsidiárias do grupo), de parte do sistema de energia elétrica, da Embrapa e dos Correios. A mais recente tentativa declarada de eliminar a presença do Estado na economia ocorreu durante o governo de Jair Bolsonaro, quando seu superministro da economia, Paulo Guedes, prometia privatizar 100% das estatais.

Correios têm muita História!

Uma das iniciativas dessa bravata fracassada do aprendiz de banqueiro foi o processo de privatização da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, a ECT. À época, o governo chegou a encaminhar um Projeto de Lei (PL 591/21) ao legislativo tratando do tema. A Câmara dos Deputados aprovou a matéria, mas felizmente o Senado Federal impediu a continuidade de mais este crime contra o país. No entanto, a campanha fomentada pelo financismo em favor da venda da empresa ao capital privado não cessou.

Os Correios têm uma longa história de presença na sociedade brasileira. Desde as primeiras formas de organização do sistema de entrega de correspondência no século XVII, passando por mudanças ainda no tempo do Império com a criação da Diretoria Geral dos Correios em 1829, o sistema foi sendo ampliado e aperfeiçoado. Em 1931 Getúlio Vargas cria o Departamento de Correios e Telégrafos (DCT) e posteriormente, em 1969, o então DCT é transformado com a constituição da atual empresa pública para assegurar esses serviços sob uma forma mais moderna e eficiente. O modelo pressupunha o monopólio estatal para o setor, por meio da exclusividade da União como agente para a maior parte das operações. Esse foi o modelo formalizado pela Lei n• 6.538/78. Apesar de tal peça legal ter sido recepcionada pela Constituição em 1988, o fato é que ao longo deste meio século de vigência das normas houve um significativo desenvolvimento tecnológico no setor. Assim, os termos “carta”, “telegrama” e “selo” presentes no texto legal foram substituídos por outros modelos de correspondência e comunicação.

A generalização da concorrência de facto ao modelo de atuação dos Correios provocou mudanças também na estrutura das receitas da empresa. Esse processo permitiu o estrangulamento da ECT e facilitou a narrativa daqueles que permanecem pretendendo assumir suas funções de formas plena e absoluta. Os momentos de divulgação dos resultados operacionais e financeiras da empresa são geralmente utilizados para amplificar a campanha privatizante.

Privatização não é solução!

A grande imprensa aproveitou, mais uma vez, a recente publicação dos resultados do ano passado para dar vozes aos que ainda clamam pela entrega da empresa ao capital privado. É verdade que o prejuízo anunciado de R$ 2,6 bilhões relativo ao exercício de 2024 não pode e nem deve ser ignorado. Na verdade, ao longo do último triênio os números não foram nada animadores, uma vez que também em 2022 e 2023 o resultado foi igualmente negativo, com números de R$ 770 e R$ 600 milhões, respectivamente.

A realidade objetiva é que a ECT vem apresentando resultados deficitários, mas isso não significa que a solução seja a privatização. Caso coloquemos a análise em uma perspectiva um pouco mais longa, o cenário revela-se um pouco distinto.

Entre 2010 e 2024, a ECT apresentou prejuízo em 5 destes 15 anos. Ou seja, no biênio 2015/2016 e agora nos últimos 3 anos. Isso significa um total de perdas acumuladas equivalente a R$ 9,8 bilhões a valores corrigidos. No entanto, nos outros 10 exercícios do mesmo período, a empresa apresentou lucros. Caso estes resultados positivos sejam somados e trazidos a valor presente, eles representam R$ 12,6 bi. Assim, para o conjunto do período analisado, o resultado líquido dos Correios é de um saldo positivo de R$ 2,8 bi.

Evidentemente que há muitas mudanças a serem promovidas na ECT em sua estratégia de atuação empresarial. Afinal, houve uma série de alterações significativas no mercado de correspondências e entregas, com o aumento da concorrência e novas modalidades não operadas até pelos Correios. Além disso, a empresa deve aportar recursos para o fundo de pensão de seus empregados, o Postalis, que apresenta um quadro de dificuldades financeiras bastante acentuado. Porém, isto não significa que o caminho da privatização deva ser adotado como uma panaceia para tais problemas de natureza conjuntural e estrutural.

Afinal, todos sabemos que uma vez transferido o patrimônio dos Correios para o capital privado, o único objetivo será a obtenção da maior lucratividade ao menor custo e no menor prazo possível. Assim, a tendência seria a obtenção da propriedade a preço de banana e a liquidação de todos os direitos dos trabalhadores e aposentados do grupo. Como sempre, os maiores prejudicados seriam os usuários do sistema pela elevação dos preços e tarifas.

Conhecemos muito bem o final desta estória, com enredo favorável aos futuros acionistas. Por isso, as forças democráticas e progressistas só têm uma bandeira a defender no momento: Tirem as mãos dos Correios!

A estrada construída, por Candido Bracher

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Brasil precisa decidir entre a liderança ambiental e a inércia

Candido Bracher, Administrador de Empresas formado pela FGV. Foi executivo do setor financeiro por 40 anos.

Folha de São Paulo, 18/05/2025

“Recontarei isso com um suspiro,

Em algum lugar, muito tempo atrás,

Havia uma bifurcação no caminho

E eu… eu tomei a estrada menos batida

E isso fez toda a diferença.”

Essa é a estrofe final do poema “A estrada não trilhada” (The road not taken), de Robert Frost.

Desde jovem me encanto com o sentido, a beleza e a concisão do poema. Voltei a lembrá-lo hoje, ao pensar na situação do Brasil diante do desafio do aquecimento global. Também diante de nós se abriu uma bifurcação —e o caminho que escolhermos poderá fazer toda a diferença.

No mundo real, as opções raramente se apresentam prontas e acabadas, bastando-nos simplesmente eleger a preferida. Melhor dizendo, creio haver ao menos uma alternativa que está sempre disponível: o caminho da acomodação e da inércia.

Os demais caminhos necessitam ser construídos. Envolvem esforço, reveses, riscos e conquistas. O caminho que o Brasil pode construir, nesse contexto, é aquele em que empenhamos todos os nossos recursos para promover uma coordenação global que leve à redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE), como prevê o Acordo de Paris.

Para termos alguma chance de êxito nesse desafio, necessitamos alinhar nossas ações ao nosso discurso —”walk the talk”, na feliz expressão em inglês. No caso, isso implica primordialmente reduzir a zero o desmatamento na amazônia e renunciar a projetos incompatíveis com o combate ao aquecimento, como a exploração de petróleo na região.

Uma medida que pode ter grande efeito na redução do desmatamento seria a destinação integral dos 56 milhões de hectares de florestas públicas não destinadas. Essas terras pertencentes aos governos federal e estaduais da amazônia têm sido o principal foco de grilagem, que traz consigo o desmatamento ilegal e facilita o crime organizado, impedindo na prática o desenvolvimento econômico saudável da região.

O anúncio de sua destinação para atividades que preservem a natureza, como unidades de conservação e outras áreas protegidas —através de uma ação combinada do governo federal e estados ainda neste ano—, seria uma poderosa demonstração de compromisso com o combate ao desmatamento e contribuiria decisivamente para o êxito da COP 30.

Iniciativas como essa, por necessárias que sejam, estão longe de ser suficientes para alcançar o entendimento global. Restará ainda a difícil tarefa de —combinando forças com os agentes mais progressistas, como a União Europeia— atrair para o acordo as nações mais recalcitrantes, como os EUA e a Rússia.

Sempre haverá vozes defendendo a passividade, voltadas para os benefícios de curto prazo e dispostas a “pegar carona” no esforço de terceiros, caso estes sejam bem-sucedidos. Os partidários dessa estratégia poderão até socorrer-se de citações eruditas, como a de Sêneca —”O destino conduz aos que o aceitam e arrasta os que a ele resistem”—, ou a máximas da sabedoria popular, como a de origem judaica —”O homem planeja e Deus ri”—, para desencorajar a luta contra as forças estabelecidas.

O caminho da inércia implica, para o Brasil, abster-se da responsabilidade de desempenhar um papel destacado na construção de uma ordem global que reduza a zero as emissões de GEE e limite o aquecimento a 1,5ºC ou 2ºC acima dos níveis pré-industriais.

O aumento das emissões, ano após ano, evidencia como o mundo tem falhado clamorosamente na busca desse objetivo. Os países localizados na região tropical, como o nosso, serão os mais atingidos pelas consequências desse fracasso. Tivemos em 2024 uma amostra “leve” do que esse caminho nos reserva: inundações, secas e incêndios.

Eventos como esses exigirão que concentremos investimentos em medidas de adaptação à nova realidade: obras contra enchentes, relocalização de populações ameaçadas, detecção e prevenção de incêndios, além de lidar com a queda de produtividade agrícola provocada por alterações no regime de chuvas.

Todos esses investimentos, embora indispensáveis, são apenas defensivos; destinados a prevenir perdas, mas incapazes de gerar riqueza.

Já o cenário em que logramos participar ativamente de um acordo global que valorize tecnologias limpas e crie mercados que recompensem processos de baixas emissões e de captura de carbono abre ao Brasil oportunidades extraordinárias, entre as quais:

  1. o aproveitamento da matriz energética limpa e do enorme potencial de energia solar e eólica, para atrair ao país indústrias intensivas em energia;
  2. a combinação da energia limpa com processos orgânicos, como a fermentação da cana-de-açúcar, para produzir combustíveis como o e-metanol, melhor alternativa limpa para a navegação comercial;
  3. os biocombustíveis, solução energética que compete com grande vantagem contra alternativas fósseis, em uma economia de baixo carbono;
  4. a diferenciação da agricultura tropical, através de medições que comprovem sua eficiência muito superior à das zonas temperadas, no que respeita às emissões, e;
  5. a captura de GEE através da preservação de florestas e da restauração de áreas degradadas.

Todas essas alternativas já estão disponíveis. O que falta é uma ordem global que imponha a redução de emissões e crie os mercados que as valorizem adequadamente.

O contraste entre o caminho da passividade e o de uma liderança ativa na construção de uma nova ordem mundial rumo ao “Net Zero” corresponde à diferença entre sofrer a própria sina e ser agente do seu destino.

A COP30, em Belém, oferece ao país uma grande oportunidade de mostrar ao mundo uma nova postura, que necessita estar apoiada em ações concretas. Busco em Gilberto Gil a frase que melhor expressa a atitude determinada que se espera do Brasil: “Meu caminho pelo mundo, eu mesmo traço”.

Estamos emburrecendo, por Suzana Herculano-Houzel

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Chegamos ao fim do Efeito Flynn

Suzana Herculano-Houzel, Bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).

Folha de São Paulo, 16/05/2025

Testes de inteligência, ou quociente de inteligência (QI), são o filho enjeitado da psicologia. Quando mostram o que a sociedade espera e aceita, esses testes são celebrados como indicadores de inteligência de fato. Em 1981, quando o psicólogo James Flynn constatou que o desempenho de jovens adultos nesses testes vinha aumentando progressivamente desde a origem dos testes, no começo daquele século, o laudo foi pronto: “estamos ficando mais inteligentes”. Viva!

Mas o chamado Efeito Flynn não só parece ter chegado ao seu fim como se reverteu em torno do começo do novo século.

Em 2018, um estudo constatou que na Noruega, onde o mesmo teste foi aplicado de 1962 a 1991 a rapazes de 18 a 19 anos como parte do alistamento militar, o QI médio subiu clara e progressivamente até os nascidos em 1975 –e dali em diante passou a cair. A diferença aparece até entre irmãos, que compartilham genética e ambiente familiar.

O mesmo foi constatado em 2021 na Alemanha, e com ponto de inflexão semelhante: em torno de 2010, o QI de jovens universitários, nascidos no final dos anos 1990, já havia estagnado, e dali em diante começou a cair.

Nos Estados Unidos, um estudo publicado em 2023 também confirmou: em todos os níveis de escolaridade, o QI de adultos da mesma idade caiu progressivamente entre 2006 e 2018.

Isso quer dizer que estamos emburrecendo, então? A resposta, naturalmente, deveria ser “sim” – mas a própria autora do estudo estadunidense logo pôs panos quentes dizendo a jornalistas que o resultado “é apenas uma diferença no desempenho nesses testes”. Irônico, quando seu estudo foi publicado em um periódico chamado, justamente, Inteligência.

Ora, sejamos consistentes, por favor.

Independentemente do uso que a sociedade faz de seus resultados, os testes de QI quantificam a habilidade de cada indivíduo de resolver problemas que exigem raciocínio lógico, espacial e abstrato. Se inteligência é flexibilidade mental, como eu proponho, então representar várias informações simultaneamente e manipulá-las mentalmente em prol de um objetivo, numa espécie de malabarismo cerebral, é por excelência o que a inteligência permite fazer. Logo, se os literalmente malditos testes de inteligência medem flexibilidade mental, então eles indicam, sim, a inteligência de um indivíduo.

E neste caso, da mesma forma que a humanidade se tornou mais inteligente ao longo do século 20, agora ela está emburrecendo. A pergunta importante é: por quê?

A resposta para esta pergunta ainda não existe. Como os resultados entre irmãos indicam, não é culpa de uma “maior fecundidade dos mais burros”, como alguns ricos supõem. Minha suspeita é que tanto o Efeito Flynn quanto sua reversão indicam que a inteligência que se mede em testes é uma habilidade resultante do uso que se faz das capacidades biológicas com que nascemos, sobretudo enquanto crianças e jovens. Ao longo do século 20, a infância foi se tornando cada vez mais livre, ativa e interessante – até começar a ser dominada por telas, que, seja na televisão, no iPad ou no telefone, convidam à passividade e acabam com a exploração.

Deu no que deu: emburrecemos.