O Brasil e a guerra na Ucrânia, por Paulo Batista Júnior

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Por PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.*

A Terra é Redonda – 07/03/2022

Não cabe ao Brasil tomar partido nesse complicado conflito. E não é o que tem feito
Qual deve ser a posição brasileira diante da guerra na Ucrânia? Em sua maior parte, a mídia corporativa brasileira, seguindo caninamente a mídia ocidental, já escolheu um lado. Vem demonstrando uma parcialidade escancarada, comprometendo a sua obrigação de informar.

É um grave equívoco. Não cabe ao Brasil tomar partido nesse complicado conflito. E não é o que tem feito Brasília. Mesmo os adversários mais renhidos de Bolsonaro, entre os quais me incluo, precisam reconhecer que é correta a posição inicial do governo brasileiro, em especial do Itamaraty. Bolsonaro, como sempre, dá suas derrapadas. Resiste, porém, à pressão dos EUA e da mídia tradicional brasileira para que se alinhe ao lado ocidental.

Para entender o que está em jogo, é fundamental se dar conta de que o que estamos vendo não é primordialmente uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia, mas sim uma guerra entre a Rússia e os países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), aliança militar comandada pelos Estados Unidos. A Ucrânia, coitada, entrou de gaiato no navio. Está lutando por procuração. Foi levada por lideranças nacionais levianas e incompetentes a uma confrontação com a segunda maior potência militar do planeta.

O Brasil não pode, evidentemente, apoiar a invasão de um país por outro. Precisamos nos ater à nossa posição tradicional de defender a busca de solução diplomática e pacífica para as desavenças entre países. Mas precisamos, também, entender o lado da Rússia. Como este tem recebido pouca atenção na mídia brasileira, vou tentar explicá-lo brevemente, sem a pretensão de cobrir todos os aspectos de uma questão que é, insisto, de extraordinária complexidade.

Toda a confusão começa com a ampliação da OTAN para o Leste da Europa desde os anos 1990, como vem sendo crescentemente reconhecido no Brasil. Em etapas, aproveitando a fraqueza da Rússia na época, a aliança militar ocidental foi incorporando países antes pertencentes ao bloco soviético (Polônia, República Checa, Eslováquia, Hungria, Romênia e Bulgária) e até mesmo países que resultaram da dissolução da União Soviética (Lituânia, Letônia e Estônia). Olhem o mapa da Europa e coloquem-se no lugar dos russos.

A crise se aguçou em 2014, quando o governo ucraniano de Viktor Yanukovich, próximo a Moscou, foi derrubado por um golpe de Estado, umas daquelas revoluções coloridas, semelhante à que se organizaria no Brasil e levaria à derrubada de Dilma Rousseff. Muito mais violenta, mas parecida. Não se engane, leitor, sobre o seguinte ponto:

houve ativa participação dos EUA (governo Obama) na derrubada de Yanukovich.

A pretensão americana de incorporar a Ucrânia à OTAN foi o passo fatal. Perseguida por Kiev depois do golpe de 2014, essa pretensão não poderia ser aceita por Moscou sem colocar em risco a segurança nacional da Rússia. Olhem de novo o mapa e vejam a distância que separa a fronteira com a Ucrânia da capital russa. Como se não bastasse a Estônia estar praticamente na esquina de São Petersburgo, a segunda maior cidade russa!

Mesmo assim, volto a dizer, o recurso da Rússia à violência e à invasão da Ucrânia é deplorável. Não pode ser coonestado pelo Brasil. Temos que ser solidários ao povo da Ucrânia, que passa por uma experiência terrível.

Pode-se perguntar: o fato de o Brasil não poder apoiar a Rússia e condenar a invasão prejudica os BRICS? Alguns apressados, já decretaram o fim do agrupamento. Isso não tem o menor cabimento. Posso dar o testemunho de alguém que participou do processo de formação dos BRICS desde o início, em 2008: os BRICS nunca foram, nem pretenderam ser, uma aliança política – ponto que explico detidamente no meu livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém, especialmente na segunda edição.

Os BRICS são um clube ou mecanismo de cooperação com propósitos muito importantes, mas limitados. O grupo avançou mais do que outros grupos semelhantes, tendo chegado a criar o seu próprio banco de desenvolvimento e o seu próprio fundo monetário. Mas é um mecanismo circunscrito primordialmente à área econômico-financeira. A Rússia sabe perfeitamente disso e não espera uma adesão do Brasil a suas posições políticas.

A posição inicial do governo Bolsonaro após a eclosão da guerra tem sido basicamente correta, como disse, mas não se deve esquecer que este governo deu um tremendo passo em falso num tema correlato, passo em falso que não tem sido muito lembrado agora. Refiro-me ao fato de que, em 2019, quando Donald Trump ainda era presidente dos EUA, Jair Bolsonaro celebrou a designação do Brasil como “aliado extra-Otan”. Isso não fazia sentido nenhum na época, e faz menos ainda hoje em face da confrontação Rússia-OTAN.

O Brasil deve ser um país não-alinhado. O que isso significa? Várias coisas. Precisamos, por exemplo, voltar a ser participante ativo dos BRICS, algo que se perdeu nos governos Temer e Bolsonaro. Temos que retomar e fortalecer as nossas relações com a América Latina e África, sem parti-pris ideológico, isto é, sem se preocupar se os governos dos outros países são de esquerda, direita ou centro. No entanto, essa abertura para o chamado Sul político não implica relações hostis com os Estados Unidos, a Europa ou o Japão. Ao contrário, o Brasil deve buscar relações, não digo de amizade, uma vez que, como dizia Charles de Gaulle, as nações têm interesses e não amigos, mas relações positivas e construtivas com todas as nações.

Claro que pouco ou nada disso será possível no governo Bolsonaro, em que pese os esforços do Itamaraty, que melhorou a sua atuação depois da substituição de Ernesto Araújo por Carlos Alberto França. Porém, sob novo comando a partir de janeiro de 2023, o Brasil poderá fazer tudo isso e muito mais. Poderá até desempenhar, se houver interesse das partes, um papel de pacificação do conflito no Leste da Europa, conflito que, infelizmente, não será resolvido tão cedo.

*Paulo Nogueira Batista Jr. é titular da cátedra Celso Furtado do Colégio de Altos Estudos da UFRJ. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai. Autor, entre outros livros, de O Brasil não cabe no quintal de ninguém (LeYa).

Versão ampliada de artigo publicado na revista Carta capital, em 4 de março de 2022.

A nova etapa da gestão da barbárie brasileira, por Márcio Pochmann.

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Nas últimas décadas, proteção social foi deslocada do Estado para igrejas, ONGs e emendas parlamentares. Hoje, sem políticas públicas robustas, uma multidão de vulneráveis está sob o controle dos fuzis de grupos criminosos e milícias

OUTRAS PALAVRAS – 07/03/2022

A derrota imposta ao movimento das Diretas Já em 1984 circunscreveu a transição política para a democracia nos limites do colégio eleitoral definido pela ditadura civil-militar. Com isso, a agenda de reformas, conforme antecipadas pelo documento “Esperança e Mudança” de 1982 foi abandonada.

Tanto assim que as eleições de 1986 não foram chamadas para a elaboração exclusiva da nova Constituição. Embora cidadã, conforme muito bem definida por Ulysses Guimarães, a Constituição de 1988 foi dirigente, mas dependeu de sua regulamentação a ser realizada posteriormente, sem garantias de sua efetiva implementação, a depender das vontades do Centrão.

Ao mesmo tempo, a combinação imposta pela reestruturação no centro do capitalismo mundial, especialmente a partir dos EUA ao longo da década de 1980 com o fim da Guerra Fria (1947-1991), terminou por esvaziar as possibilidades de continuidade do desenvolvimento na periferia capitalista. Se adicionar ainda a forma mal feita com que o Brasil aderiu à globalização neoliberal desde 1990, chega-se às razões que levaram à ruína da sociedade industrial no país.

Naquele cenário, o papel do ciclo político da Nova República (1985-2016) se moveu em direção a diferentes fases de gestão da barbárie que resultaria da decadência da estrutura produtiva e, por consequência, do desemprego, das subocupações e imobilidade social que se seguiram à desestruturação da incompleta sociedade industrial. A primeira fase decorreu do acordo político de 1988 que viabilizou a Constituição cidadã, colocando para o Estado a centralidade das ações de promoção e proteção social (seguro-desemprego, universalização da previdência social, transferência direta de renda, entre outras).

A segunda fase transcorreu a partir dos anos 1990, com a regulamentação neoliberal da Constituição de 1988. Para tanto, o Estado foi submetido ao modelo gerencialista, que transferiu para o setor privado através de terceirização, privatização e organismos não governamentais, o compartilhamento da gestão da barbárie na forma de novos negócios.

Uma espécie de governo dentro do governo passou a operar no Brasil, dirigindo parte do gasto público e suprimindo, por consequência, a soberania popular sobre políticas públicas através de OSCIPs, ONGs, igrejas e até do crime organizado e das milícias. Além disso, o poder econômico privado foi se travestindo cada vez mais em poder político, cujos interesses diretos assumiram maior peso eleitoral e domínio sobre o legislativo.

A terceira fase emergiu das inéditas atividades do parlamento brasileiro, que passou a assumir as funções de gestor e fiscalizador do gasto público. Isso porque o avanço nas várias formas de emendas parlamentares, inclusive do chamado orçamento secreto, concedeu aos parlamentares a função de gestores de parcela crescente do orçamento público.

Em associação com instituições públicas e, sobretudo, privadas, grande parte dos representantes do poder legislativo nos três níveis (federal, estadual e municipal) passaram a manter relações diretas e crescentes do gasto público com os votos necessários para manter a reprodução dos seus próprios mandatos. Com isso, deu-se a rápida transformação do parlamento em câmara federal de vereadores, concentrada nos problemas locais, de suas bases políticas, cada vez mais deslocada das questões nacionais.

A quarta fase da gestão da barbárie gerada pela ruína da sociedade industrial provém da ação armada dos interesses dos negócios dominados pelo crime organizado e pelas milícias. Dado o controle que passaram a deter das populações vulneráveis, a gestão da barbárie parece seguir a força da violência patrocinada pelo fuzil.

A recente ampliação das regras para aquisição de armas e munições parece confirmar o quanto a dramaticidade da barbárie brasileira deslocou a gestão delas do Estado e do setor privado tradicional. Em alta, o poder do novo sistema jagunço se impõe no meio urbano, comandado pela convergência do banditismo social com o fanatismo religioso. Até quando?

Márcio Pochmann, Economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007 e 2012, e secretário municipal de São Paulo de 2001 a 2004. Concorreu duas vezes a prefeitura de Campinas-SP (2012 e 2016). Publicou dezenas de livros sobre Economia, sendo agraciado três vezes com o Prêmio Jabuti.

Recessão Global

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A economia internacional passa por grandes instabilidades e incertezas que tendem a gerar uma recessão com impactos desconhecidos, além da pandemia que degradou as cadeias globais de produção, aumentou os preços relativos e espalhou a inflação para todas as nações, degradando a renda e o salário dos trabalhadores, além disso, a guerra na Ucrânia está acelerando a degradação da economia global, aumentando as incertezas que podem culminar em um caos financeiro, desemprego em ascensão, destruição de empresas e de grandes conglomerados financeiros .

Neste ambiente, precisamos repensar políticas inócuas, fortalecendo as cadeias produtivas locais, integrando os setores estratégicos, renovando políticas energéticas limpas, recuperando o meio ambiente e construindo novos conceitos de sustentabilidade, combatendo setores econômicos degradantes, consolidando os investimentos produtivos e reconstruindo a noção de planejamento econômico. Momentos como este percebemos a importância da elite pensante que gerencia a nação, estes setores são fundamentais para repensarmos o crescimento econômico, abandonando discussões desnecessárias e vislumbrando um país melhor, mais sustentável e dotado de perspectivas melhores.

Neste momento percebemos que somos imensamente dependentes de setores internacionais, somos grandes produtores de produtos agrícolas, não definimos os preços das mercadorias que vendemos e somos vistos como um dos celeiros do mundo e, ao mesmo tempo, deixamos de produzir produtos fundamentais para angariar forças produtivas e diminuir nossa dependência externa. Precisamos de fertilizantes, máquinas, equipamentos e adubos que adquirimos externamente, dependemos de chips produzidos nos ambientes externos, dependemos de tecnologias que adquirimos globalmente e somos dependentes dos grandes produtores globais e pior, acreditamos que estamos no caminho certo.

Ganhamos grandes somas de recursos para adquirir produtos de luxo, mercadorias caríssimas para ostentar suas riquezas e, penalizamos o mercado interno com lucros elevados para os acionistas externos em detrimento da população, que empobrece a olhos vistos e se distancia do tão sonhado desenvolvimento econômico, aquele desenvolvimento que se caracteriza pela melhora das condições de vida da população, será que estamos na hora de repensarmos nosso futuro?

As crises são momentos de repensarmos as escolhas, neste momento devemos construir uma estratégia de desenvolvimento econômico, investindo nas capacidades construídas anteriormente, aproximando as universidades dos centros de pesquisa e dos setores produtivos, estimulando a reconstrução do complexo da saúde integrado as demandas do Sistema Único da Saúde. Além de valorizar órgãos públicos e privados que contribuem para o crescimento da economia, deixando de lado setores que falam constantemente das ineficiências estatais e são verdadeiros chupins que sobrevivem de incentivos e subsídios que garantem mais de 350 bilhões de reais anualmente, sem critérios, sem transparência e sem contribuir para o desenvolvimento da sociedade.

O mundo globalizado é marcado por grande concorrência, a competição é global e prescinde de estratégias claras de sobrevivência, a guerra em curso mostra a importância de repensarmos o modelo de inserção na economia global. Precisamos reconstruir estruturas produtivas sólidas e consistentes, necessitamos aproveitar o capital humano desenvolvido no decorrer dos anos, garantindo empregos de qualidade, salários dignos e decentes, garantindo condições decentes de sobrevivência, sem estas transformações estruturais o sonho do desenvolvimento estará cada vez mais distante e a indignidade da população estará mais presente no cotidiano da população nacional.

A crise gerada pela guerra demonstra os valores construídos pela comunidade internacional, nestes valores valorizamos o imediatismo dos ganhos materiais, da aparência física, da ostentação, do hedonismo e dos lucros crescentes da especulação financeira. Rememorando Adam Smith, o pai da Economia Política: “A ambição universal dos homens é viver colhendo o que nunca plantaram“.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 09/03/2022.

Produção Global

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O ambiente global está cada vez mais agitado e agressivo, de um lado percebemos o aumento das medidas protecionistas, novos subsídios de governos nacionais, a construção de instrumentos de planejamento e de intervenções crescentes nas estruturas econômicas e, ao mesmo tempo, percebemos o aumento dos preços relativos, com impactos inflacionários em todas as regiões, conflitos militares e desestabilizações geopolíticas, impactando toda a comunidade internacional.

Vivemos num momento de grandes instabilidades, medos e ressentimentos crescentes e a ausência de lideranças sensatas e com visão de longo prazo, ao contrário percebemos um excesso de voluntarismos, populismos fiscais e a incapacidade de compreender as dificuldades da sociedade global.

O mundo globalizado construiu uma nova realidade, os avanços científicos e tecnológicos estão moldando uma nova sociedade, a produção não é mais local, mas global. As economias estão todas interconectadas, a produção local viaja para todas as regiões do mundo, suprindo necessidades locais e, neste ambiente, as exigências são variadas e crescentes, exigindo alterações rápidas e imediatas, flexibilidades e agilidades constantes para acompanhar as transformações destas novas tecnologias.

As transformações em curso na sociedade global levaram os países asiáticos ao topo do cenário industrial, levando muitas nações industrializadas a perderem espaço neste cenário de grande competição e concorrência crescentes, criando caos em muitas nações, levando a desindustrialização em muitos países, gerando graves constrangimentos e desestruturação no mercado interno, alastrando o desemprego, aumentando o subemprego e a informalidade das condições de trabalho. A desestruturação produtiva está abrindo espaço para o desenvolvimento da uberização das relações de trabalho, sem direitos, sem perspectivas dignas, com rendimentos aviltantes e marcados pela precarização e pela degradação das condições de vida dos trabalhadores. Neste ambiente, percebemos o incremento de desequilíbrios emocionais, desajustes afetivos, transtornos psicológicos, além do aumento da depressão e do suicídio que crescem vertiginosamente.

A produção globalizada é feita em vários locais, cada região fica responsável por parte da produção, os insumos são importados e montados em algum país que tenha mão de obra barata e abundante, destacamos ainda, que o centro tecnológico dos produtos está concentrado nos países centrais, garantindo lucros elevados, maiores autonomia e soberania num mundo centrado na concorrência e na busca crescente por lucros estratosféricos.

A pandemia e as instabilidades políticas estão gerando grandes incertezas na economia internacional, reduzindo os investimentos produtivos, aumentando os desequilíbrios geopolíticos que culminaram em conflitos militares, com isso, percebemos o incremento dos preços globais, gerando maiores custos produtivos nos setores alimentícios, combustíveis, fertilizantes e energia, levando as nações a repensarem as novas estratégias de inserção da economia mundial. Estamos num momento de grandes incertezas, os desafios são elevados e exigem lideranças altamente capacitadas para compreendermos a situação inédita que a economia internacional está atrasando.

Os exemplos são claros e evidentes, neste momento de caos nas cadeias produtivas, os países estão reconstruindo laços de industrialização, canalizando recursos para aumentar os investimentos produtivos, adotando políticas protecionistas, deslocando trilhões de dólares para garantir a autonomia de suas economias e retomando a sua soberania e o controle sobre seus setores produtivos.

A pandemia colocou em xeque o modelo produtivo global, aumentando a terceirização das atividades produtivas e aumentando a dependência de outras nações, fragilizando os Estados Nacionais e os trabalhadores, contraindo os salários, reduzindo as classes médias e empobrecendo as comunidades locais e contribuindo para o incremento das desigualdades que se caracterizam por todas as nações, gerando instabilidades e incertezas que alimentam as degradações econômicas, passou da hora de repensarmos os modelos econômicos dominantes.

Ary Ramos da Silva Júnior, formado em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 02/03/2022.

A posição chinesa, por Elias Jabbour

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A Terra é Redonda – 26/02/2022

A posição chinesa à crise na Ucrânia, longe de ser de uma “neutralidade estratégica”, é um aviso

Compreender a posição chinesa no recente conflito ucraniano passa por perceber ao menos dois fatos que marcam nossa época. O primeiro, relacionada à meteórica ascensão chinesa e o surgimento do que chamamos de uma “nova formação econômico-social”, centrada em uma imensa base produtiva e financeira públicas cujas lógicas de funcionamento escapam a qualquer teoria do desenvolvimento. O segundo acaba de ocorrer, mas que vem sendo desenhado desde o fim de 2021, quando a Rússia decidiu colocar seus próprios termos à mesa em relação ao destino da Ucrânia como última fronteira de expansão da OTAN.

A combinação entre os dois fatos/fenômenos nos apresenta uma dupla desmoralização do Ocidente: a Covid-19 expôs os limites do capitalismo financeirizado frente à força do socialismo chinês; e a atual cartada russa marca a desmoralização política e militar dos EUA e, consequentemente da OTAN. Estaríamos, assim, diante de condições objetivas ao surgimento de um nova Paz Vestfália – inclusive já proposta pelas chancelarias russa e chinesa. No documento apresentado pelos dois países, fica evidente uma proposta à opinião pública de “refundação” do sistema internacional criado pelos europeus há quatro séculos.

É no contexto desta carta que os chineses – pedindo cautela aos envolvidos e sugerindo distância aos EUA – se posicionam. Sem alardes, sem palavras de ordem. Apenas levando à reflexão do quão é inaceitável e sem lógica racional as ondas de expansão da Otan. Qual seria a reação da opinião pública internacional caso Rússia posicionasse mísseis e armas nucleares em direção à Washington, utilizando-se das fronteiras dos EUA com o México, Canadá ou reabrindo uma base militar em Cuba?

E a ação militar russa. Ficamos entre a estática e a dinâmica. A estática é a preferência dos analistas e jornalistas ocidentais. Em dinâmica, a posição chinesa é no mínimo certeira. “Acredito que a operação militar da Rússia é uma reação de Moscou à pressão dos países ocidentais sobre a Rússia por um longo tempo”, disse Yang Jin, pesquisador associado do Instituto de Rússia, Europa Oriental, e Estudos da Ásia Central sob a Academia Chinesa de Ciências Sociais, ao jornal chinês Global Times.

A chancelaria chinesa é ainda mais objetiva. Segundo sua porta-voz, “as preocupações legítimas de segurança da Rússia devem ser levadas a sério e tratadas”. Há relatos de que Putin considera que a melhor solução é que a Ucrânia se recuse a aderir à OTAN e permaneça neutra. A opinião convergente não diz respeito somente ao caso ucraniano, mas também às constantes ameaças à soberania nacional chinesa impostas pela presença militar ocidental.

A China de hoje não é mais aquele país que recebia capital estrangeiro e fazia engenharia reversa. Acabou o tempo do low profile. Na mesma proporção, os legítimos interesses chineses em matéria de segurança nacional têm sido violados pelos EUA. Taiwan continua se armando e sendo atiçada a declarar sua independência. Uma aliança militar foi formada por EUA, Austrália e Reino Unido para conter (sic) um tal de “expansionismo chinês”. Novamente a broma.

É como se porta-aviões chineses estivessem passeando impunemente pelo golfo do México, mas ocorre o oposto. A China é constantemente provocada no estreito de Taiwan e no mar do sul da China.

Após a completa derrota e desmoralização dos EUA no Oriente Médio, e com a China ocupando rapidamente o espaço econômico aberto pelo lastro de destruição deixado pelo “ocidente”, restou ao atlantismo uma jogada arriscada e nada inteligente: unir a China e a Rússia em um jogo que nada tinha a ver com a conveniência ideológica pós-1949, cujas fissuras foram muito bem contra a URSS. O movimento hoje é oposto. Uma união eurásica está sendo imposta de fora para dentro dos territórios russo e chinês.

A posição chinesa, longe de ser de uma “neutralidade estratégica”, é um aviso. Se a ascensão chinesa em si já era o grande fato de nosso tempo, junta-se a ela o xeque-mate de Putin sobre os EUA e a OTAN. Uma nova história começa no mundo. Talvez uma nova Vestfália.

*Elias Jabbour é professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, junto com Alberto Gabriele, de China: o socialismo do século XXI (Boitempo)

Globalistas, por Tatiana Roque

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A Terra é Redonda – 28/02/2022

Prefácio do livro recém-editado de Quinn Slobodian

O que é neoliberalismo? Faz sentido usar esse termo para denominar as transformações sofridas pelo capitalismo?

Desde quando? Em que consistem? Este livro é a mais valiosa contribuição para responder a essas e outras questões do mesmo tipo. Com rigor histórico inédito para uma obra de síntese, o neoliberalismo é apresentado como um movimento de renovação do liberalismo, protagonizado por atores com nome e sobrenome, os chamados “globalistas”. As ideias que motivaram tal projeto serão conhecidas a fundo neste livro.

Desde os anos 1990, quando se tornou evidente o impacto negativo das políticas de diminuição de gastos e de desmantelamento dos serviços públicos, a noção de neoliberalismo tem sido empregada, sobretudo, por seus críticos.

A frequência e o ímpeto das denúncias são tais que se presume ter sido o termo uma invenção dos movimentos contrários. Quinn Slobodian produz uma reviravolta neste senso comum, ao mostrar que neoliberalismo foi um projeto coerente e assim batizado por seus defensores.

Privatizações, redução dos direitos trabalhistas e destruição do Estado de bem-estar social, em sentido amplo, foram medidas implementadas por diferentes governos a partir dos anos 1970 – com início no Chile comandado pelo general Augusto Pinochet e reforço de Ronald Reagan e Margareth Thatcher. Porém, muito antes disso, teóricos europeus já se reuniam para conceber um edifício institucional capaz de proteger o mercado global das políticas nacionais. A tarefa havia se tornado urgente desde o fim dos impérios (como o russo e o austro-húngaro) e com a percepção dos impactos da crise de 1929.

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, a independência de antigas colônias (como Índia e China) só aumentou a preocupação do grupo com uma ordem mundial ditada por Estados nacionais fortes. Pressões por autodeterminação em países da América Latina jogavam mais lenha na fogueira. Os anos 1960 e 1970 reforçaram ares de mudança na correlação de forças internacional. Os globalistas agiram neste contexto, movidos pela intenção de provocar uma grande renovação do liberalismo, a fim de conter uma tendência que viam como ameaça aos mercados globais.

O título deste livro se refere a este grupo, que reuniu pensadores de diversas formações, alguns hoje populares entre a nova direita liberal, como Ludwig von Mises e Friedrich Hayek. Hoje, chega a ser anedótico que conservadores xinguem de “globalistas” os que estariam por trás de um suposto complô mundial – encampado pelas organizações multilaterais – cujo objetivo seria enfraquecer o cristianismo e o nacionalismo. Não são esses os globalistas estudados neste livro, pois, com tal definição conspiratória, eles sequer existem. Mas não deixa de ser irônico que esses mesmos conservadores, como é o caso de bolsonaristas no Brasil, tenham se aliado aos herdeiros dos verdadeiros globalistas – aqueles que se reivindicam como seguidores da tradição de Mises e, principalmente, de Hayek.

Voltando ao livro que vocês têm em mãos, uma tensão disciplinar é sentida desde as primeiras páginas. A história e as ciências sociais enxergaram a transição neoliberal de maneiras distintas. Do ponto de vista histórico, foram vários trabalhos a analisar o movimento intelectual que se formou durante o colóquio Walter Lippmann, realizado em Paris em 1938, ou na Sociedade Mont Pèlerin, fundada em 1947.

Esses são os contextos em que o movimento neoliberal apareceu. Nomes como os de Philip Mirowski, Serge Audier e outros são lembrados, com a ressalva de que esses trabalhos focaram, sobretudo, as políticas monetárias e a teoria econômica defendidas pelos intelectuais estudados. A questão da governança global foi deixada em segundo plano. A ciência social, por sua vez, enxergou no projeto neoliberal o ensejo de instaurar uma nova ordem global. O papel de instituições como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial ou a Organização Mundial do Comércio foi corretamente percebido, bem como seu objetivo de “insular os mercados”, ou seja, de protegê-los das decisões políticas nacionais. Stephen Gill e Sarah Babb são dois nomes mencionados como exemplo dessa linha de análise, entre outros.

Contudo, segundo Slobodian, faltou rigor histórico aos cientistas sociais para descrever como a influência de certos ícones, como Hayek ou Milton Friedman, teria se propagado. Ideias não convencem por si mesmas e um fator essencial para explicar a força do movimento neoliberal foi sua capacidade de ação política, cujo sucesso decorreu do esforço de criação conceitual, da capacidade de articulação entre atores diversos e da disposição de empresários endinheirados para apoiá-los. O grande mérito do livro de Slobodian é apresentar uma análise histórica precisa desse movimento, levando em conta as estratégias usadas para aumentar seu raio de influência, ao mesmo tempo em que mantém o enfoque na globalização.

Ainda que declare a intenção de equilibrar as duas tendências de análise do neoliberalismo, Slobodian é historiador. Segundo ele, um dos maiores obstáculos para que os críticos do projeto neoliberal tenham entendido o movimento em seus próprios termos foi a influência do livro de Karl Polanyi, A grande transformação. Citado por nove em cada dez cientistas sociais, o capitalismo é caracterizado a partir da desincrustação do mercado em relação à sociedade.

Uma visão análoga teria sido aplicada, retrospectivamente, para caracterizar o neoliberalismo como “fundamentalismo de mercado”, o que acabou dando uma importância excessiva – e equivocada – à ideia de autorregulação. Não esqueçamos que o livro de Polanyi foi publicado em 1944 e trata do século 19. Logo, sua pertinência para caracterizar o neoliberalismo é de fato pequena. Trata-se precisamente do oposto, polemiza Slobodian.

Ao contrário da intenção de desincrustar o mercado, a fim de torná-lo “livre”, a preocupação dos globalistas foi criar leis e instituições para proteger os mercados globais. E por que eles precisavam de proteção? Desde o pós-guerra, a democracia de massas ameaçava cada vez mais o funcionamento do mercado mundial (na perspectiva dos neoliberais). Uma consequência – talvez a mais importante – da análise histórica deste livro é mostrar que neoliberalismo está longe de se identificar à defesa de um Estado mínimo, pois o objetivo do movimento que o criou sempre foi mais político do que econômico.

Enxergar o papel do Estado privilegiando seu tamanho (ou seja, um aspecto quantitativo), ao invés de olhar para sua natureza, costuma acompanhar as críticas economicistas ao neoliberalismo. Slobodian vai muito além de uma tal caracterização. O projeto neoliberal foi – e segue sendo – um empreendimento inteiramente político, cujas armas chave são a arquitetura legal do direito e a criação institucional. Esse deslocamento é vital para explicar a sobrevida do neoliberalismo, mesmo diante do fracasso dos resultados outrora prometidos.

Uma das frases mais eloquentes de Slobodian aparece na primeira página do livro: “a política mudou para a voz passiva”. Essa foi uma conquista da ação coordenada dos neoliberais. A globalização buscou restringir o raio de influência da política, criando instituições globais para que “as forças do mercado” ficassem protegidas de governos nacionais e processos democráticos. Essa arquitetura foi sendo construída por uma restrição meticulosa da interferência dos Estados nacionais no governo dos mercados globais.

Ou seja, não se trata de diminuir o tamanho dos Estados, e sim de proteger – pela via legal e institucional – os mercados mundiais, diminuindo o raio de influência das políticas nacionais, sujeitas a pressões populares por mais democracia – algo visto como indesejável e arriscado pela vanguarda neoliberal. Um termo chave do livro é de difícil tradução: “to encase”, usado para designar o encapsulamento dos mercados, mas que também remete à ideia de revestir um fio elétrico, a fim de evitar choques. A missão dos globalistas foi encapsular os mercados globais contra a energia política manifestada em alguns momentos históricos.

Desde o fim dos impérios, no período entre guerras, passando pelo fortalecimento da democracia de massas, no pós-guerra, grandes ameaças se anunciavam. Os mercados precisavam ser protegidos – revestidos ou encapsulados – contra isso, pensavam os neoliberais. Uma saída, portanto, foi criar instituições globais. Sem uma tal intervenção, de ordem política e legal, não haveria fundamentalismo de mercado que sobrevivesse à soberania das nações e às revoltas de seus povos. A Escola de Genebra merece atenção especial, no livro, justamente porque está na origem das teorias que embasaram instituições chave dos globalistas, como a Organização Mundial do Comércio (OMC). Mesmo tendo sido criada apelas nos 1990, segue uma rede de influências e de outras instituições internacionais que caracterizam a escola de pensamento. Os detalhes são descritos no livro e esta é sua grande contribuição historiográfica.

Antes de finalizar este prefácio, gostaria de fazer uma reflexão sobre o momento atual. Como é possível, diante de tanto estrago, que os neoliberais sigam tendo força política? Eles devem sua sobrevida à extrema-direita, como é evidente no Brasil de Jair Bolsonaro. Depois da crise econômica de 2008, a tendência conservadora se fortaleceu, mas vem perdendo força em alguns países, como nos Estados Unidos de Joe Biden. É cedo para dizer que o neoliberalismo está fraco e a leitura deste livro ajuda a escolher critérios para avaliar as chances da globalização pós-pandemia. Nunca subestimar o poder dos inimigos é um adágio da batalha.

Nas páginas seguintes, fica nítido que um ponto forte dos globalistas foi a militância intelectual implicada na realidade. É preciso que tenhamos a mesma disposição para enfrentar a batalha das ideias – nem só produção acadêmica, nem só fazer político. Há uma camada entre esses dois âmbitos que tem sido deixada em segundo plano pela esquerda. Além disso, perceber que o maior objetivo dos neoliberais foi enfraquecer a democracia de massas – pois viam o socialismo, mas também a socialdemocracia como ameaça – pode nos alertar para o valor histórico dessas experiências.

Mesmo que sonhemos com formas mais radicais de democracia, conquistas do pós-guerra e dos anos 1960-70 aterrorizavam os neoliberais, como fica óbvio em vários trechos citados a seguir. Alguma coisa de bom deveriam ter, portanto.

*Tatiana Roque é professora titular de matemática na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

E a guerra Brasil? por Preto Zezé

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As favelas brasileiras são a nossa Ucrânia, bombardeada de exclusão, ausência social do poder público e regulada pela força das armas

Preto Zezé, Presidente nacional da Cufa, fundador do Laboratório de Inovação Social e membro da Frente Nacional Antirracista

Folha de São Paulo, 01/03/2022

Os olhos do mundo estão voltados para o conflito Rússia e Ucrânia, as avaliações são as mais diversas sobre os impactos dessa crise, as opiniões se dividem e sobra responsa para tudo que é lado. E, como toda guerra, o povo é que sofre. Os senhores da guerra, não!

O que me chamou a atenção, foi que, por um momento, parece que os problemas da guerra brasileira desapareceram diante de tanta informação e desinformação sobre o tema, gente que nem sabe para que lado fica a Rússia dando todo tipo de palpite.

E a “guerra” chamada Brasil?

20 milhões de pessoas ainda passam fome e uma grande parte come mal, bem mal. O desemprego ainda está altíssimo, na base da pirâmide o trabalho informal tem sido a única saída, e, mesmo assim, com todas as dificuldades que a situação impõe, sem crédito, muitos com nome negativados têm dificuldades de reativar seus negócios ou retomar suas atividades.

Em muitos territórios a presença das políticas públicas é cada vez menor, no entanto, está cada maior a regulação da vida social por grupos armados de toda a origem e interesses de dentro e de fora das favelas e periferias do Brasil.

A violência em todas as esferas explodindo, e produzindo medo, e o medo produz mais sentimento de justiça com as próprias mãos e, nesse sentido, habitam os falsos heróis de plantão e os mágicos de saídas fáceis que falam o que o desespero popular quer ouvir.

Pelas ruas do país são milhares de pessoas em situação de rua, e não somente nas datas de Natal e Dia da Criança, mas todos os dias, são exiladas de direitos básicos dentro da sua própria pátria. São migrantes de vários lugares que vagam sem rumo em busca de vida digna.

As cidades que foram e ainda estão sendo atingidas pelas fortes chuvas, resultado das mudanças climáticas, saíram da mídia, mas continuam milhares de homens e mulheres sem casa, sem sonho, sem perspectiva, pois a luta de uma vida inteira foi literalmente por água abaixo.

As pessoas que estão com sequelas da Covid estão sem amparo específico, não conseguem emprego nem atendimento especializado, provando que a vida sempre tem que ser a prioridade, pois pessoas doentes e frágeis não geram economia.

Toda a solidariedade ao povo que vive o terror das guerras, resultado de interesses das grandes potências mundiais, que estão preocupadas em poder e números na nova geopolítica mundial.

Vidas são apenas detalhes. E a nossa “guerra” diária desse front chamado Brasil precisa ser enfrentada.
As favelas brasileiras são a nossa Ucrânia, bombardeada de exclusão, ausência social do poder público e regulada pela força das armas.

Quem provocou o conflito? por Breno Altman.

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Casa Branca e Europa foram decisivas no fechamento das portas diplomáticas

Breno Altman, Jornalista e fundador do site Opera Mundi

Folha de São Paulo, 01/03/2022

Apesar da narrativa dominante na imprensa ocidental vender que Moscou seria responsável pelo conflito ucraniano, os fatos demonstram um outro fluxo geopolítico. A Casa Branca, apoiada por vassalos europeus, se moveu incisivamente para empurrar Vladimir Putin ao caminho das armas, fechando as portas diplomáticas.

A atual crise militar, certamente a mais relevante desde a 2ª Guerra Mundial, teve início em 2014, quando um golpe de Estado derrubou o presidente Viktor Yanukovich, aliado russo. Essa insurgência, apoiada pelos EUA e pela União Europeia, teve como principal bandeira a incorporação de Kiev ao bloco atlântico. Sob essa plataforma, unificaram-se de sociais-democratas a neonazistas.

A reação de Moscou foi a ocupação da Criméia, área estratégica por seu acesso ao Mar Negro, que havia sido cedida à Ucrânia em 1954. Um referendo popular consagrou a reintegração desse distrito à Rússia, embora o resultado tenha sofrido questionamentos externos. No leste do país, na região do Donbass (de maioria russa), a resistência ao golpe levou ao surgimento das repúblicas separatistas de Lugansk e Donetsk, imediatamente atacadas pelas Forças Armadas de Kiev.

O cenário se desdobrou em uma guerra civil de cinco meses, suspensa pelos chamados Acordos de Minsk, que previam a realização de plebiscitos sobre o futuro das áreas sublevadas. Esses pactos, até o início de 2021, garantiram uma paz relativa, sob fortes tensões e ameaças. A partir de então, ao mesmo tempo em que a Ucrânia reiniciava sua ofensiva contra os rebeldes, o presidente Volodimir Zelenski, eleito em 2019, reabriu portas para o expansionismo ocidental e defendeu a incorporação de seu país à Otan.

Moscou apresentou, em contraposição à política ucraniana, reivindicações simples e defensivas: além do respeito aos Acordos de Minsk, o compromisso de que a Ucrânia não ingressaria na coalizão militar liderada pelos EUA e tampouco seria destinatária de armas estratégicas. Do outro lado da mesa, o Kremlin somente encontrou inflexibilidade.

A Casa Branca parece voltada para o calendário eleitoral norte-americano, buscando no embate com Putin um ativo na disputa parlamentar contra os republicanos, marcada para novembro. Acima de tudo, sinaliza uma estratégia de asfixia do principal aliado da China provocar a guerra para justificar sanções econômicas draconianas que quebrem a Rússia e, de preferência, afetem as finanças de Pequim.

Com o descumprimento da promessa feita pelos EUA, em 1989, de conter a Otan nas suas fronteiras originais, o que provocou o desmantelamento do sistema de segurança coletiva montado após a derrota do nazismo, o presidente russo ficou entre se render à escalada ocidental, que tem na Ucrânia fronteira decisiva, ou adotar resposta militar que aumentasse a pressão sobre Kiev.

Putin optou por ataques que destruíssem o aparato armado do vizinho e estrangulassem Kiev, o elo mais fraco da corrente, derrubando Zelenski ou obrigando-o a desistir de seus planos de filiação à Otan.

De toda maneira, a crise ucraniana conclui um período histórico no qual a hegemonia norte-americana era tida como incontestável. Depois de 30 anos, a ordem unipolar agoniza sob os pés de uma Rússia reerguida.

Invasão russa faz preço de grãos disparar e terá consequências sobre a inflação, por Mauro Zafalon.

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Alta das commodities supera 5% na abertura de mercado da Bolsa de Chicago desta quinta-feira (24)

Mauro Zafalon, Responsável pela coluna Vaivém das Commodities, é formado em jornalismo e em ciências sociais.

Folha de São Paulo.24/02/2022

A concretização da guerra entre Rússia e Ucrânia desestabilizou os mercados agrícolas, o que terá grandes consequências para a inflação no mundo e no Brasil.

O trigo, um dos produtos mais sensíveis nesse conflito, devido à importância desses dois países do Leste Europeu no mercado internacional, atingiu US$ 9,26 por bushel (27,2 kg) na abertura desta quinta-feira (24) na Bolsa de Chicago, 5,7% acima do fechamento do dia anterior.

Desde quinta-feira (17), quando as tensões aumentaram, o cereal já acumula alta de 17,4%. Isso vai custar caro para o Brasil, que importará 6,5 milhões de toneladas do cereal neste ano. O país é um dos maiores importadores de trigo do mundo.

O milho subiu para US$ 7,19 por bushel (25,4 kg), com alta de 5,1%, em relação a quarta-feira (23). As consequências dessa alta também afetam muito o Brasil, tanto na área de alimentação como na de combustível.

O pais ganha nas exportações, mas a quebra da primeira safra, devido à seca, mantém os preços do milho elevados internamente. Esse novo patamar de preços aumenta o custo da produção de proteínas, pressão que chegará ao bolso do consumidor.

O milho está ganhando importância também na produção de combustíveis. Com o petróleo atingindo US$ 105 por barril, o cereal pode ganhar preferência na composição da matriz energética. No Brasil, o cereal já é responsável por 10% da produção de etanol.

Esse imbróglio não é apenas do Brasil. Os Estados Unidos destinam um terço da produção de milho para a produção de etanol, enquanto Índia e China estão elevando a participação dos combustíveis renováveis na matriz energética.

A pressão virá também da soja, que abriu o mercado nesta quinta-feira (24) em US$ 17,65 por bushel (27,2 kg), com alta de 5,4%. O peso dessa alta virá não apenas sobre os alimentos, mas também sobre os combustíveis. O óleo de cozinha, uma das principais altas dos índices de inflação nos dois últimos anos, voltará a subir. O biodiesel, uma alternativa ao petróleo elevado, tem em sua composição 70% de óleo de soja.

O setor agrícola, que já estava afetado por crises climáticas na América do Sul e em países do Mediterrâneo, regiões produtoras de grãos, vai sentir agora os efeitos das dificuldades de transações comerciais, devido às sanções e barreiras entre os países.

Para o produtor brasileiro, essa guerra ocorre em um momento delicado. Após vários anos de boas margens de liquidez, os custos de produção aceleraram e estão entre os maiores em dez anos.

A pandemia desestruturou parte do parque industrial de químicos da China, grande fornecedora de agroquímicos utilizados nas lavouras brasileiras. Os preços subiram e há falta de alguns insumos no mercado.

Os fertilizantes também foram afetados pela pandemia e, mais recentemente, por sanções geopolíticas, colocadas por grandes potências a produtores importantes, como Belarus.

O conflito atual ocorre na principal região fornecedora de fertilizantes para o Brasil. Em 2021, os russos foram responsáveis por 22% dos 41,7 milhões de toneladas importados pelos brasileiros.

O Brasil buscou 9,3 milhões de toneladas desse insumo na Rússia, que se tornou a principal fornecedora. Além da dificuldade de abastecimento, devido às sanções a operações marítimas, o preço agora estará mais elevado.

O produtor brasileiro, que viveu o boom da alta do dólar —a moeda norte-americana eleva as receitas das exportações em reais—, agora vai pagar ainda mais caro pelo diesel, um dos grandes componentes de custos nas lavouras. O dólar que elevou as receitas agora eleva custos.

A alta da moeda norte-americana, que já atingia 2,7% na parte da manhã e estava cotada a R$ 5,14, colocará novas pressões nos preços dos alimentos, elevando a inflação.

Rússia e Ucrânia têm grande importância na produção de grãos. Os russos produzem 76 milhões de toneladas de trigo e exportam 33 milhões. Juntos, os dois países são responsáveis por 29% do comércio mundial de trigo.

A Ucrânia produz 42 milhões de toneladas de milho e exporta 36,5 milhões. Ucranianos e russos detêm 19,5% do milho comercializado no mundo.

A grande farsa, por Oscar Vilhena Vieira

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Apropriação da linguagem de direitos humanos e de liberalismo democrático se torna cada dia mais comum

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

Folha de São Paulo, 26/02/2022

A apropriação da linguagem dos direitos humanos e do liberalismo democrático por setores reacionários e autoritários, com o objetivo de defender posturas antiliberais e justificar comportamentos contrários aos direitos humanos, tem se tornado cada dia mais comum, não apenas no Brasil.

A imagem de Bolsonaro, com sua gravata adornada de fuzis, bradando a defesa da liberdade contra ministros do TSE –que têm se desdobrado na defesa da integridade do pleito eleitoral–, embora farsesca, é emblemática dessa estratégia de invocar os direitos e valores liberais com a finalidade de subvertê-los.

A defesa das armas, das milícias, da devastação ambiental, da primazia da religião, do discurso de ódio, assim como a insurgência contra a vacina, o distanciamento social ou a máscara, vêm sendo sistematicamente conjugadas a partir de uma distorcida gramática de direitos.

São tempos estranhos, depois de uma vida abjurando e hostilizando os direitos humanos, grupos radicais passaram a invocá-los na defesa de suas pautas autoritárias, discriminatórias e excludentes, colocando em risco não apenas um amplo rol de direitos dos demais membros da comunidade, como as próprias instituições de defesa desses direitos.

A lógica política por trás desse movimento de apropriação é conhecida. Valores como liberdade, justiça, democracia e direitos têm forte conotação moral. Daí serem disputados e reivindicados mesmo por aqueles que negam a sua essência, como uma espécie de manto legitimador. Quem se esquecerá da tortura e das mortes levadas a cabo no Estádio Nacional do Chile, de Pinochet, em nome no “liberalismo”; ou do fuzilamento daqueles que ousavam cruzar o Muro de Berlim, pelo Exército da autodenominada República Democrática da Alemanha?

Da perspectiva jurídica esses movimentos iliberais e reacionários têm assumido duas estratégias na maliciosa distorção da gramática dos direitos. A primeira é a seletividade. Tentam destacar, da ampla carta de direitos humanos concebida por meio de um longo processo de consenso internacional, apenas um pequeno grupo de direitos, que denominam “essenciais” ou “naturais”, voltados a assegurar suas aspirações egocêntricas, supremacistas e liberticidas, que não reconhecem no outro um sujeito pleno de direitos.

A segunda estratégia desses liberticidas é adotar uma noção tosca do que seja um direito subjetivo. Tomam esses direitos como reivindicações absolutas. Assim, reivindicam que o direito à vida significa que ninguém poder se opor ao direito de comprar armas, organizar milícias e se beneficiar de amplas excludentes de ilicitude; o direito à liberdade pessoal facultaria a cada um se insurgir contra a vacinação ou uso de máscaras; o direito à propriedade impediria que o Estado estabelecesse limitações de natureza ambiental ou mesmo pretensões tributárias, redistributivas.

Creio que essa onda de apropriação distorcida da gramática dos direitos ganhou densidade no Brasil por ocasião do referendo das armas de 2006, quando a direita brasileira, influenciada pelos extremistas norte-americanos, percebeu as vantagens de empregar uma matriz deturpada de direitos para concretizar seus objetivos. Minha colega Marta Machado alerta para o mesmo tipo de apropriação ocorrida no campo dos direitos reprodutivos.

É compreensível que muitos setores ressentidos com as mudanças trazidas pelo processo de universalização dos direitos humanos tenham embarcado nessa farsa promovida por populistas, reacionários e autoritários. Não se pode admitir, no entanto, que grupos mais bem informados, sinceramente compromissados com os valores da democracia, tenham se deixado enganar por essa trama perversa.