Narcisistas por todo lado? por Anselm Jappe

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 Anselm Jappe – A Terra é Redonda – 05/01/2025

O narcisista é muito mais do que um tolo que sorri para si próprio no espelho: é uma figura central de nosso tempo

O presidente Emmanuel Macron, sempre preocupado com a competitividade da indústria francesa, certamente deu um impulso a uma produção muito específica: a da palavra “narcisista”. Do livro La pensée perverse au pouvoir de Marc Joly (Anamosa, 2024), que se baseia no conceito de “perversão narcísica” do psicanalista Paul-Claude Racamier, ao infatigável ensaísta Alain Minc, um macronista arrependido, para quem as ações do presidente agora simplesmente “refletem um narcisismo levado a um nível patológico, com o corolário de uma negação total da realidade” (Le Monde, 11. 12. 2024), a palavra “narcisista” nunca foi tão utilizada na política como nos últimos anos.

Na vida cotidiana, tanto em relação à esfera do trabalho quanto às relações sociais ou à vida conjugal, há décadas se fala do “pervertido narcisista” e de sua capacidade de manipular os que o cercam. A lista de publicações dedicadas a este tema, tanto profissionais como para o público em geral, continua aumentando.

O termo “narcisista”, introduzido em 1914 por Sigmund Freud em seu ensaio epônimo e durante muito tempo confinado à esfera psicanalítica e ao seu jargão, tornou-se de uso comum: isso significava então, grosso modo, “egoísta”, “egocêntrico”, “ganancioso”, “manipulador”, “sem empatia”, “sem consideração pelos outros”, mas também “excessivamente preocupado com a autoimagem e com a procura de reconhecimento”, ou simplesmente “apaixonado por seu corpo e desejoso de seduzir”.

O narcisismo evoluiu ao longo do século XX: tratado por Freud como uma patologia bastante marginal, em comparação com a importância das neuroses devidas à repressão dos desejos em seu tempo, o narcisismo “conquistou” pouco a pouco um papel cada vez mais importante, tanto no discurso psicanalítico como na consciência comum.

Parece bastante óbvio que esta evolução está ligada ao aprofundamento das relações capitalistas em todas as esferas da vida e, em particular, à fase neoliberal do capitalismo, a partir dos anos 1980: qualquer noção de solidariedade coletiva é explicitamente rejeitada, o Estado social e outras estruturas de ajuda mútua são desmanteladas e a lógica da empresa e da concorrência é estendida para toda a vida. Cada um é convidado a conquistar individualmente seu lugar na vida, utilizando todo os meios e sem se preocupar com as consequências para os outros ou para a sociedade como um todo.

O “individualismo possessivo”, pilar da teoria política liberal, pode ser resumido na frase de Margaret Thatcher: “A sociedade não existe”. Ele triunfa por todo lado: não apenas nas esferas de comando, onde sempre reinou, mas em todos os níveis da sociedade. A perversão narcísica seria, então, não mais do que o lado abertamente patológico desta mentalidade competitiva que o capitalismo contemporâneo encoraja permanentemente, e até a torna indispensável para nele sobreviver. Ela indica o ponto em que os comportamentos necessários ao funcionamento do sistema correm o risco de se tornarem não funcionais e de perturbarem o funcionamento da mega-máquina, pois resultam numa negação da realidade e destroem o mínimo de confiança entre os indivíduos, sem o qual nem mesmo o modo de vida capitalista poderia continuar.

No entanto, a ligação entre o aumento da “taxa de narcisismo” e o desenvolvimento do capitalismo no século XX existe também em outro nível. Freud fazia distinção entre um “narcisismo primário” e um “narcisismo secundário”. O narcisismo primário constitui uma etapa fundamental do desenvolvimento psíquico de cada indivíduo. A criança pequenina ainda não pode se confrontar com o mundo exterior e compensa sua impotência real com uma onipotência imaginária: ela nega sua separação da figura materna e sente-se unida ao mundo. Os objetos externos, especialmente as pessoas, são percebidos apenas como extensões de si mesmo, e as frustrações são negadas através de satisfações alucinatórias.

Segue-se a fase “edipiana”, em que a criança experimenta um mundo exterior que se opõe aos seus desejos ilimitados (a formulação inicial de Freud de um pai que impede o acesso do filho à mãe foi posteriormente reconhecida como sendo apenas um caso particular, e ligado ao contexto da época, de uma lógica psíquica bem mais vasta).

Esta renúncia à onipotência representa uma dura derrota para a criança, mas abre a ela também o caminho para o reconhecimento da realidade exterior – o “princípio de realidade” – e, assim, para a obtenção de satisfações limitadas, mas reais. No entanto, esta renúncia aos desejos infantis também pode ser sentida como insuportável – e, neste caso, o sujeito poderia limitar-se a um reconhecimento mais ou menos fingido da realidade, para continuar, sem se dar conta, a interpretar a realidade de acordo com sua anterior não-separação do mundo e sua anterior onipotência. Assim, ele vê as pessoas e os objetos como meras projeções de seu mundo interior. Em casos graves, esta atitude pode levar a sérias dificuldades – mas, muitas vezes, ela não é identificada e pode até trazer vantagens na vida social. Especialmente na vida contemporânea.

De fato, o “narcisismo secundário” – resultante da negação da situação edipiana – encontra-se “em fase” com o capitalismo pós-moderno, neoliberal, tal como a personalidade marcada pela neurose edipiana – objeto quase exclusivo da investigação freudiana – era o correspondente psíquico da fase “clássica” do capitalismo. A renúncia aos desejos ilimitados em troca da identificação com uma figura de proteção e de autoridade permite um conhecimento realista de si mesmo e de seus próprios limites, e, eventualmente, uma oposição ponderada ao mundo tal como ele é. Mas ela também pode resultar numa submissão cega às autoridades e ao ódio aos próprios desejos – e esta estrutura psíquica pode durar a vida toda.

O capitalismo clássico, que nasceu com a “ética protestante”, desenvolveu-se no século XIX e encontrou sua realização na fase chamada “fordista”, exigia que os indivíduos trabalhassem duro, poupassem, desfrutassem o menos possível e se submetessem durante toda a vida a figuras de autoridade: pai, professor, policial, padre, patrão, funcionário público, presidente ou rei. Esta injunção permanente criava com frequência escravos submissos ou mesmo entusiastas (por exemplo, no nacionalismo), mas também podia estimular a oposição e a revolta.

Mais ou menos a partir dos anos 1960, o capitalismo promoveu uma profunda transformação que se acelera permanentemente. As estruturas baseadas na submissão à autoridade, nas hierarquias piramidais, na repetição do mesmo e na repressão dos desejos não desapareceram completamente – e até regressaram recentemente – mas diminuem no “terceiro espírito do capitalismo” (Boltanski/Chiapello).

Em seu lugar, celebramos a flexibilidade, as redes, o consumo desenfreado (mesmo a crédito), a horizontalidade, a diferenciação dos estilos de vida, a criatividade, a autonomia, o individualismo. Mesmo que a realidade esteja muitas vezes longe destas promessas, é verdade que o indivíduo-tipo da sociedade contemporânea não é “rígido”, não submete seus desejos a um supereu que consiste em proibições interiorizadas, não “proíbe nada a si mesmo” e é constantemente encorajado a “acreditar na realidade de seus desejos”.

Muitas vezes, as identidades já não se definem pelo trabalho, que pode mudar facilmente, mas pelo consumo, seja ele material ou simbólico. Na “sociedade líquida” (Bauman), o “homem sem gravidade” (Melman) que efetua um “trabalho sem qualidade” (Sennett) flutua de acordo com os estímulos que lhe desfere a máquina de consumo.

Caráter assertivo, convicções inabaláveis, lealdade às origens, à família, ao trabalho, ao lugar, ao modo de vida, eram os traços que definiam uma pessoa “sólida”, “séria”, “confiável” na fase anterior do capitalismo. Hoje, são mais um obstáculo à “autorrealização” do indivíduo, impedindo-o de aproveitar todas as “oportunidades” que a vida parece oferecer. O narcisista enquadra-se perfeitamente a essa situação: sem personalidade profunda, sem apegos, apenas à procura de um prazer imediato e empenhado na construção e reconstrução permanente de sua “personalidade” de acordo com as exigências do momento, ele não ama realmente nada, porque as pessoas e os objetos são intercambiáveis a seus olhos.

É mérito do sociólogo estadunidense Christopher Lasch ter dado ao conceito de narcisismo uma dimensão social, e não apenas individual, em seus livros A cultura do narcisismo (1979) e Le moi assiégé. Essai sur l’érosion de la personnalité (1984). Ele constata uma regressão psíquica generalizada, em que o caráter “adulto”, nascido do conflito edipiano, com seus trunfos e defeitos, dá lugar a comportamentos marcados pelo desejo arcaico de negar magicamente a separação original. Ele encontra esta forma de narcisismo em fenômenos tão diferentes como a gestão completa da vida por organismos burocráticos e grandes corporações, o pseudomisticismo New Age, a arte minimalista, o uso massivo de psicoterapias, a onipresença das tecnologias na vida cotidiana e a clausura na esfera privada.

No entanto, embora Christopher Lasch tente compreender a relação entre a difusão do narcisismo e o capitalismo, não o consegue totalmente. Para isso, é preciso remeter à lógica do valor de mercado, do trabalho abstrato e do dinheiro, que está no cerne do capitalismo, ontem como hoje. Esta lógica apaga todas as diferenças, reduzindo cada mercadoria, independentemente de suas qualidades concretas, à porção do trabalho que foi necessária para sua criação e que está representada numa soma de dinheiro.

O mercado não vê qualquer diferença entre uma bomba e um brinquedo, nem entre os trabalhos necessários para produzi-los. Esta indiferença em relação a todos os conteúdos é uma diferença essencial entre o capitalismo e os sistemas precedentes de exploração e opressão. Por muito tempo, o capitalismo lutou para se libertar dos resquícios pré-capitalistas e atingir sua forma “pura”, onde os sujeitos flutuam livremente, tendo as mercadorias – materiais e imateriais – como único horizonte e guia. É aí que o narcisismo triunfa, oscilando entre a angústia da impotência e a embriaguez da onipotência.

A lógica narcísica, tal como a lógica da mercadoria, reduz tudo à mesma coisa e nega a autonomia dos objetos e das pessoas. Assim como as mercadorias são meros “suportes” intercambiáveis de uma quantidade de trabalho e dinheiro, para o sujeito narcísico, o mundo exterior a si próprio consiste apenas em projeções e extensões de seu mundo interior – e este mundo interior é pobre, pois não é enriquecido pelo contato com objetos e pessoas exteriores, reconhecidos como tal.

No entanto, o narcisista não pode escapar ao sentimento de vazio e às frustrações que o sonho impossível de onipotência lhe proporciona: é por isso que o ressentimento, resultado inevitável do narcisismo, domina hoje o panorama político sob a forma de racismo e populismo, nacionalismo e fundamentalismo religioso, e ainda de outras formas de descarregar seu ódio sobre os presumíveis responsáveis.

Assim, o narcisista é muito mais do que um tolo que sorri para si próprio no espelho: é uma figura central de nosso tempo. E seria muito fácil atribuir isso apenas aos ricos e poderosos, aos Macron e Musk: o desejo de nos libertarmos de todos os limites que nos são impostos pela nossa condição biológica, a ideia de termos de esgotar todas as “oportunidades” da vida, a utilização das tecnologias para resolver o menor problema da vida são todos formas de narcisismo. Há narcisistas por todo lado.

*Anselm Jappe é professor na Academia de Belas Artes de Roma, na Itália. Autor, entre outros livros, de Crédito à morte: A decomposição do capitalismo e suas críticas (Hedra).

Tradução: Fernando Lima das Neves.

 

As big techs e o fascismo, por Eugênio Bucci

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Eugênio Bucci – A Terra é Redonda – 09/01/2025

Zuckerberg subiu na carroceria do caminhão extremista do trumpismo, sem pejo, sem molejo e com sacolejo. A Meta saiu do seu armário de silício para entrar no fanatismo desvairado

Agora ficou escancarado. Depois do pronunciamento que Mark Zuckerberg divulgou na terça-feira, anunciando que cerrará fileiras com Donald Trump para combater os projetos de regulação das plataformas, projetos que ele qualifica de “censórios”, não dá mais para disfarçar. Seguindo o exemplo de Elon Musk, dono do “X”, antes conhecido como Twitter, Mark Zuckerberg subiu na carroceria do caminhão extremista do trumpismo, sem pejo, sem molejo e com sacolejo. A Meta saiu do seu armário de silício para entrar no fanatismo desvairado.

Eram favas contadas? Sim, eram. Mais cedo ou mais cedo ainda, a maquiagem escorreria. E escorreu. Está tudo na cara. Agora, ninguém mais pode alegar que a desinformação e os discursos de ódio propagados industrialmente pelo maquinário da Meta fossem acidentes de percurso. Não. Promover o trumpismo e todo o seu ideário – ou todo o seu bestiário – não foi um efeito colateral, mas a finalidade do conglomerado monopolista global comandado por Mark Zuckerbert. Detalhe: no seu vídeo, que foi manchete ontem em jornais do mundo inteiro, ele aparece de camisa preta. Ato falho? Ou intencional?

A Meta, detentora do WhatsApp, do Facebook e do Instagram, tem um poder de fogo – a metáfora belicista vai de brinde –considerável, um pouquinho maior do que o deste jornal, por exemplo, ou de todos os diários brasileiros somados, ou mesmo de todos os diários do planeta. Estamos falando de companhias cujo valor de mercado se conta na casa dos trilhões de dólares. São as famigeradas big techs. Uma a uma, elas deixam cair a máscara de isenção, de objetividade e de compromisso com os fatos e mostram sua natureza essencial: são usinas de propaganda e manipulação a serviço do autoritarismo. Não têm e nunca tiveram nada a ver com educação ou conhecimento.

Falando em big techs, as coisas não estão melhores nos domínios da Amazon, de Jeff Bezos. No sábado, a ilustradora Ann Telnaes, ganhadora do Prêmio Pulitzer, anunciou sua demissão do The Washington Post, hoje controlado por Jeff Bezos. Ann Telnaes acusou o jornal de censurar um cartum em que ela criticou a subserviência dos bilionários a Donald Trump. Na charge, é possível reconhecer, entre os magnatas que se dobram ao novo presidente dos Estados Unidos, a fisionomia assustadiça do dono da Amazon. O The Washington Post vetou. Foi outro sinal tenebrosamente ruim de que os bilionários da maior democracia do mundo deixam pra lá os compromissos com os fundamentos do liberalismo e se vergam à truculência.

Truculência é a palavra, embora gasta. Barbárie é a palavra, embora puída. Donald Trump não tem nada a ver com o tal “sonho americano” ou com os chamados “pais fundadores” da federação que, mais de dois séculos atrás, deu origem ao estado mais poderoso do nosso tempo. Donald Trump é um fascista extemporâneo, tardio e piorado.

O adjetivo “fascista”, que antes os estudiosos procuravam evitar para não incorrer em anacronismos e imprecisões conceituais, acabou se impondo. É preciso dar nome às coisas. Recentemente, o grande historiador americano Robert Paxton, um dos que resistiam a empregar a palavra, reviu sua posição e admitiu: o que está acontecendo nos Estados Unidos precisa, sim, ser qualificado como fascismo, ainda que com as cautelas metodológicas de praxe.

O que se passa por lá é mais, muito mais, que um soluço autoritário, e as big techs estão no cerne da inflexão. Mais do que correias de transmissão instrumentais, elas são o laboratório que sintetiza a mentalidade obscurantista, as pulsões violentas, os vetores do ódio, a intolerância, ou, sejamos precisos, o fascismo em suas roupagens pós-mussolínicas.

As ambições de expansionismo territorial em que Donald Trump tem insistido de forma escandalosa vêm confirmar essa caracterização. Lembram, de longe, ou nem tão de longe assim, a velhíssima categoria de “espaço vital”. A promessa de ocupar países vizinhos ou longínquos para ampliar o poder é marca registrada do bonapartismo do século XIX, do nazismo do século XX e, agora, do trumpismo do século XXI. Desta vez, as big techs são a alma e a arma do negócio: estão para Donald Trump assim como o cinema e o rádio estiveram para Adolf Hitler. Com uma distinção, apenas: elas são mais determinantes hoje do que o cinema e o rádio foram naquela época.

A partir de agora, o debate sobre “moderação de conteúdo”, “agências de checagem”, “educação midiática” e “combate às fake news” ficará em segundo plano. Ficou patente que as big techs não querem mais falar disso. Com ninguém. Elas querem substituir a era da informação pela era da desinformação, pois sabem que sua única chance de seguir no gigantismo depende da vigência de ordens autoritárias, com viés totalitário.

Assim como a imprensa só pode prosperar na democracia, as plataformas sociais só poderão crescer na tirania. É uma questão de vida ou morte. Para elas e para cada um de nós. O que elas precisam garantir para viver no luxo em que se arrancharam, sem prestar contas a ninguém que não seja Donald Trump, é o que nós, cidadãos (ao menos até aqui), precisamos combater para não morrer.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica).

 

Compromisso com a segurança, por Oscar Vilhena Vieira

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O país tem criado políticas ineficientes e muitas vezes contraproducentes, mas que têm mais apelo eleitoral

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023).

Folha de São Paulo, 11/01/2025

A negligência com a segurança pública levou à morte de cerca de 1 milhão de pessoas nas últimas duas décadas no Brasil. Essa é a face mais dramática de um fenômeno mais amplo, que dilacera famílias, esgarça o tecido social, compromete nosso desenvolvimento, além de brutalizar o cotidiano de milhões de pessoas, submetidas ao domínio arbitrário e violento do tráfico, de milícias e mesmo de agentes do Estado que, por definição, teriam a função de proteger os cidadãos.

A incapacidade do Estado brasileiro de assegurar o direito à segurança aos seus cidadãos gera ainda um outro efeito adverso que é ampliar a desconfiança da população nas suas instituições, abrindo espaço para discursos de lideranças populistas e descomprometidas com o Estado de direito.

Apesar de a criminalidade se encontrar entre as principais preocupações dos brasileiros, desde a década de 1990, as respostas oferecidas pelos sucessivos governos, sejam eles de direita, centro ou esquerda, tanto no âmbito dos estados, como no plano federal, não apenas se demonstraram insuficientes para conter o crescimento da criminalidade, em especial a criminalidade organizada, como em muitos aspectos têm contribuído para sua expansão.

Muito embora as últimas décadas tenham gerado um conjunto consistente de experiências bem-sucedidas de controle da criminalidade ao redor do mundo, o mercado político brasileiro tem premiado políticas ineficientes e muitas vezes contraproducentes, mas que têm mais apelo eleitoral.

Exemplo disso é a política prisional. O Brasil tem hoje a terceira maior população prisional do mundo. São mais de 800 mil presos, distribuídos em cerca de 1.500 estabelecimentos. Estima-se que 70% desses estabelecimentos estejam sob controle de facções criminosas. O resultado é que, para atender à demanda do populismo penal, o Estado brasileiro transformou-se no principal parceiro na arregimentação e no fortalecimento do crime organizado. Um desastre!

Múltiplas são as razões que têm dificultado reformas ou mesmo a adoção e consolidação de políticas públicas mais efetivas no campo da segurança pública. A primeira delas é que o debate sobre segurança tem se tornado cada vez mais polarizado, reduzindo a possibilidade da formação de consensos, com base em evidências e experiências bem-sucedidas. O caso das câmeras corporais é um bom exemplo.

Um segundo obstáculo são os interesses corporativos. Além das disputas entre as Polícias Militares e Polícias Civis, há também interesses do Ministério Público e da Justiça, que têm bloqueado a construção de soluções mais eficientes. Paralelamente, governadores com pretensões reformistas têm enormes dificuldades de se contrapor aos interesses dessas corporações.

Por fim, não se deve negligenciar a contaminação das instituições. O crime organizado é uma atividade altamente rentável e que depende de um sistema de segurança ineficiente e com baixa integridade para expandir suas atividades. Seus representantes, nas diversas esferas, estão, portanto, permanentemente mobilizados para assegurar a manutenção dessa baixa eficiência e falta de integridade.

Enfrentar essas resistências à modernização de nosso sistema de segurança é o principal desafio a lideranças efetivamente comprometidas com o bem-estar da população, assim como com a própria sobrevivência da democracia.

 

Inflação

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Inflação é o aumento generalizado de preços em uma economia, tudo isso, acaba criando variados impactos sobre a economia nacional, gerando incertezas e instabilidades, levando os agentes econômicos e produtivos a diminuírem seus investimentos na economia, reduzindo os empregos, diminuindo a renda e o salário nacional.

A economia brasileira conviveu com inflação durante muitas décadas, para muitos especialistas, o crescimento industrial e as transformações na estrutura produtiva foi financiado com a geração de inflação, levando o governo nacional a imprimir moedas e, consequentemente, incrementou os preços nacionais, levando o sistema a criar instrumentos de defesa, nascia a tão famosa indexação dos preços internos.

Depois de décadas convivendo com a inflação desenfreada, os governos democráticos, pós 1985, transformaram o combate a inflação um mantra emergencial, afinal, aumento generalizado de preços na economia geravam graves distorções na economia nacional.

Neste embate contra os preços, os governos nacionais utilizaram um variado repertório para reduzir a inflação, tais como o congelamento de preços, tablitas, controles constantes de preços, troca de moedas, dentre outros, mas todas estas medidas não foram suficientes para controlar os preços relativos e melhorar o ambiente econômico e produtivo.

Em 1994, o governo federal lançou o Plano Real, cujo êxito sobre o controle dos preços levou a uma reviravolta na sociedade, a inflação perdeu força e o país passou a ganhar novos espaços na economia mundial, aumentando a abertura da economia, com a redução do Estado, incremento das privatizações, aumento das concessões públicas, fortalecimento das parcerias públicas e privadas, desregulamentação… que culminaram num abraço caloroso com os defensores dos ideários neoliberais.

O Plano Real comemorou 30 anos e trouxe grandes benefícios para a sociedade brasileira, mas trouxeram, como tudo, outros grandes desajustes na estrutura econômica e produtiva, tais como a valorização excessiva do câmbio, taxas de juros elevadas, a entrada em demasia de produtos importados e, tudo isso, contribuíram, enormemente para a tal desindustrialização da economia nacional, cujos efeitos deletérios são sentidos ainda atualmente.

No ano de 2024, a inflação chegou a 4,83%, se compararmos com os números dos anos 1990, o número atual é inexpressivo, mas muitos especialistas acreditam que, se continuarmos nesta toada, a inflação tende a crescer de forma acelerada, uns dizendo que o país poderia voltar aos índices inflacionários dos anos 1990, um verdadeiro terrorismo e uma inverdade.

Para esclarecimento, no começo do século, as Autoridades Monetárias criaram um modelo chamado de Meta de Inflação, onde o governo nacional autorizava o Banco Central a buscar o centro da meta, se utilizando de todos os instrumentos da chamada política monetária, aceitando uma variação para baixo ou para cima, no caso brasileiro nossa meta de inflação definida institucionalmente era de 3,0%.

Lembro-os que os indicadores inflacionários nos mostram que o centro da meta inflacionária de 2024 era de 3,0%, com tolerância de 1,5% a 4,5%, desta forma, a inflação estourou o teto da meta, levando o Banco Central Brasileiro a apresentar uma carta endereçada ao Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, com justificativas das razões que levaram a inflação a ter ficado acima da meta.

Segundo o Presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, o estouro da meta inflacionária está ligado ao aumento do dólar, uma economia em crescimento e o clima, que geraram graves constrangimentos sobre os preços relativos, levando ao aumento da inflação.

A desvalorização cambial impacta fortemente sobre os preços relativos, levando a um aumento dos custos produtivos que são repassados para os consumidores, gerando preços mais em ascensão e impactando negativamente sobre a renda dos trabalhadores, criando uma verdadeira sensação de empobrecimento do salário nacional.

Outra justificativa para o aumento da inflação em 2024 foi as alterações climáticas, que impactaram fortemente sobre toda a agricultura nacional, com quebra de safras e redução nas plantações, reduzindo a oferta de produtos e levando o governo nacional a aumentar a importação, com impacto sobre a balança comercial, tudo isso contribuíram para a redução do superávit na balança comercial, que chegou a US$ 80 bilhões.

Outro motivo destacado pelo presidente do Bacen, foi o crescimento da economia nacional. No começo do ano de 2024 as expectativas de crescimento da economia nacional eram de 0,8%, 1,0% ou até 1,5%, mas o crescimento do produto interno bruto (PIB) superou todas as previsões dos economistas de mercado, os chamados ortodoxos, chegando a 3,5%. Com esse crescimento econômico os preços foram pressionados, afinal, a estrutura produtiva não conseguiu aumentar a produção, obrigando a Autoridade Monetária a aumentar as taxas de juros para esfriar o crescimento econômico nacional.

Juros altos reduz ou posterga os investimentos produtivos, fragilizando a geração de emprego, fundamentais para a melhora do ambiente econômico, tudo isso, melhoraria os indicadores econômicos e sociais, reduzindo as desigualdades que sempre caracterizaram a sociedade brasileira, uma nação rica em recursos naturais e dotado de um solo valoroso, mas ao mesmo tempo, uma nação marcada pelas desigualdades crescentes, uma estrutura fundiária atrasada e uma elite industrial que se compraz com ganhos elevados no mercado financeiro, perdendo a vocação ao empreendedorismo e a inovação.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre e Doutor em Sociologia.

 

 

Protecionismos

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O ano de 2025 começou com inúmeros sonhos, grandes promessas, expectativas crescentes e a busca contínua de metas pessoais e coletivas. Neste ambiente, marcado por inúmeras transformações econômicas e sociais, percebemos que o ano começou com grandes incertezas, volatilidades e instabilidades nos campos econômico e político, com a ascensão, ou o retorno, de Donald Trump, como presidente dos Estados Unidos, com a divulgação de medidas preocupantes, unilaterais e assustadoras com impactos generalizados sobre o comércio global e possíveis desequilíbrios da economia internacional.

O “novo” governo estadunidense defende abertamente o aumento do protecionismo comercial, com o aumento das tarifas e forçando as empresas estrangeiras vistas como estratégicas para investir internamente, aumentando a geração de emprego e melhorando a renda dos trabalhadores. Estas medidas podem ser vistas como nacionalistas e protecionistas, como uma forma de estimular o ambiente econômico, mas sabemos, que estas políticas impactarão fortemente sobre a economia mundial, levando os parceiros a adotarem represálias comerciais e adotarem políticas protecionistas parecidas, aumentando as tarifas de importação, incrementando os subsídios, reduzindo o comércio internacional e diminuindo os espaços de crescimento das economias.

No campo econômico, as propostas de Donald Trump tendem a gerar graves constrangimentos para a economia internacional, aumentando a inflação, levando a Autoridade Monetária a aumentar as taxas de juros, atraindo dólares e gerando uma forte desvalorização das moedas, obrigando os Bancos Centrais a aumentarem as taxas de juros internas, reduzindo os investimentos nacionais e levando as economias a uma possível crise econômica, com graves custos políticos e sociais.

As medidas alardeadas pela “nova” administração dos Estados Unidos estão gerando grandes incertezas na sociedade global, não apenas para as nações rivais, como a Rússia e a China, mas também os países aliados, como Canadá, México, União Europeia e o Panamá. Todas estas medidas acabam criando mais incertezas e mais dúvidas sobre a sociedade internacional, gerando mais rivalidades, antagonismos e constrangimentos.

O protecionismo norte-americano vem ganhando novos contornos, recentemente o governo exigiu que a empresa detentora do Tik Tok, ByteDance, vendesse seu controle acionário para um grupo local, alegando, como sempre, risco à segurança nacional, alegação esta que está sendo utilizada pelo governo estadunidense para vetar a aquisição de uma empresa siderúrgica local, a US Steel, que está sendo adquirida por um grande conglomerado siderúrgico japonês, Nippon Steel, alegando novamente risco à segurança nacional do país.

Vivemos num momento de grandes instabilidades, os governos estão adotando políticas protecionistas para fortalecer as atividades internas e recuperar seus setores industriais, adotando políticas nacionalistas, aumentando os subsídios fiscais e tributários para atrair empresas estratégicas de ponta, aumentando a animosidade entre os atores econômicos, gerando fortes constrangimentos políticos, levando as nações a conflitos militares que podem culminar em destruições generalizadas.

Neste cenário de forte protecionismo interno das nações desenvolvidas, marcadas pelo aumento das concorrências comerciais e produtivas, encontramos estratégias diferentes e variadas, alguns países protegem seus setores econômicos, fortalecem suas estruturas nacionais, exigindo empresas locais comprometidas com um projeto nacional, enquanto outros países, verdadeiros vassalos submissos ao mercado financeiro global, vendem seus conglomerados econômicos e produtivos a preços irrisórios, enriquecem as custas da miséria da população e acreditam serem verdadeiros patriotas.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Segurança, prioridade esquecida, por Maria Hermínia Tavares.

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Regras constitucionais inadequadas e visões opostas sobre o assunto vêm bloqueando os necessários avanços

Maria Hermínia Tavares, Professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, é pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Folha de São Paulo, 09/01/2025

A segurança pública é o grande fracasso do sistema democrático que se construiu sob a égide da Constituição de 1988. Nos 36 anos desde a sua promulgação, o país promoveu profundas reformas no sistema de proteção social. Elas permitiram a universalização da atenção primária em saúde por meio do SUS; o acesso à educação básica para todos —além da ampliação do ensino médio e do ensino superior; a existência de um conjunto robusto de políticas assistenciais organizadas no Suas (Sistema Único de Assistência Social), ancoradas no Bolsa Família e no BPC (Benefício de Prestação Continuada).

Para os avanços na área social foi fundamental encontrar a fórmula de produzir a cooperação entre governos nos três níveis da federação. Assim, foi decisiva a existência, em cada âmbito de ação, de redes de especialistas que transitavam entre o mundo acadêmico e a prática de gestão pública. Nesse enlace, geraram-se diagnósticos do legado de políticas anteriores e produziram-se inovações orientadas por abrangentes ideias do que fazer. Dito de outro modo, pensamento e instituições permitiram a colaboração intergovernamental —com uma exceção.

No livro “Segurança Pública: um projeto para o Brasil”, de 2020, o professor Daniel Vargas, da Escola de Direito da FGV, argumenta que regras constitucionais e visões opostas sobre esse tema vêm bloqueando avanços. De um lado, a Carta de 1988 estabeleceu um regime de segurança descentralizado, com o centro de gravidade nos estados; compartimentado entre os diversos órgãos encarregados de manter a ordem e combater o crime (polícias, Ministério Público, Judiciário e sistema penitenciário); e rígido, devido ao estabelecimento, detalhado em lei, das atribuições de cada um deles.

De outro lado, duas visões influentes e diametralmente opostas dificultaram a convergência em torno de inovadoras soluções institucionais. A primeira, típica das direitas, que delas usam e abusam para fins eleitorais, é o punitivismo. Ou seja, na sua versão mais polida, a crença de que as coisas podem se resolver com mais cadeia e endurecimento do direito penal. Sua tradução mais crua é a legitimação da violência policial desenfreada.

A segunda visão seria própria dos progressistas. Estes, cativos da memória dos desmandos da ditadura militar, não conseguem ir além da oposição de princípio ao primado da barbárie oferecida pelo punitivismo.

Sob a democracia, não faltaram experiências nos estados. Embora promissoras, foram abandonadas sem gerar legados duradouros. Tampouco faltou consciência da necessidade de articulação federativa tanto na lei de 2018 que criou o Susp (Sistema Único de Segurança Pública), quanto na proposta do ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski de transformá-la em dispositivo constitucional.

Mas, tudo continuará como está —um consumado desastre— enquanto, primeiro, não surgir uma comunidade de especialistas mais pragmática, influente e apta a construir consensos e pensar em incentivos para a cooperação entre os entes da federação e os diferentes órgãos do sistema de segurança. E, segundo, sobretudo enquanto Brasília não se dispuser a dar a devida atenção àquilo que é prioridade para os brasileiros.

Zuckerberg está errado, por Thiago Amparo

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E está contribuindo para transformar o Vale do Silício no curral do autoritário de plantão

Thiago Amparo, Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

Folha de São Paulo, 09/01/2025

Se havia alguma dúvida sobre a posição política do CEO da Meta, agora não há mais. Como quem discursa em uma convenção ultraconservadora, o anúncio feito por Mark Zuckemberg na terça (7) é, na linguagem, trumpista ao chamar checagem factual de censura, e extremismo de liberdade; é, no seu impacto, perigoso ao desmerecer os esforços da própria empresa contra ilegalidades; e é, no espectro político, radical de direita ao favorecer toda sorte de discursos de desinformação desde que estes privilegiem Trump e aliados.

Zuckerberg mostra o que já era claro em Bezos e Musk: o Vale do Silício deixou de ser oásis da inovação para se tornar o curral do autoritário de plantão, desde que este faça com que as empresas ganhem o maior volume de dinheiro possível com a menor regulação aceitável. Os donos da tecnologia se juntam formalmente ao tecnoautoritarismo. Zuckerberg quer que creiamos que coisas como proibir chamar pessoas trans de doentes mentais ou derrubar conteúdos que exponham crianças a exploração sexual sejam políticas abrangentes demais e, portanto, inaceitáveis. Não o são.

Zuckerberg propõe, ademais, um tecnoimperialismo ao colocar a Meta à disposição do governo Trump na batalha contra regulação na Europa e na América Latina. Glenn Greenwald está errado ao repetir nesta Folha o despautério de Zuckerberg sobre ilusórias cortes secretas no Brasil: a quem não souber onde é o STF eu passo o endereço (os invasores do 8 de Janeiro, impulsionados pela desinformação, sabiam); a quem não souber a diferença entre tribunal secreto e investigação sob sigilo, a lei explica. O STF suspendeu postagens em investigação de golpe, e as cortes eleitorais engajaram com plataformas no cumprimento da lei.

Mesmo com falhas, não há que se dizer que o STF seja uma corte secreta, tampouco que o risco maior para a democracia está em derrubar postagem pró-golpe, e não na tentativa de envenenar um presidente, revelada inclusive pela retirada do sigilo da decisão de Moraes.

O Vale do Silício está com as malas prontas para se mudar da Califórnia para o Texas e, a partir de lá, governar o mundo.

 

O que significa o 8 de janeiro para a extrema direita, dois anos depois? Wilson Gomes

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Grave violação das instituições democráticas dividiu grupo político entre críticas táticas e justificativas ideológicas

Wilson Gomes, Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de “Crônica de uma Tragédia Anunciada”.

Folha de São Paulo, 08/01/2025

Oito de janeiro. A data desta coluna se impõe como tema e como memória, especialmente após os relatórios da Polícia Federal sobre a “trama golpista” da extrema direita. Não era, como supomos em 2023, o plano “A” do golpe —este havia sido previsto para dezembro de 2022—, mas um plano de contingência, a última tentativa dos conspiradores de fazer o Alto Comando das Forças Armadas ignorar sua avaliação de que as circunstâncias eram desfavoráveis.

Nos últimos dois anos, o governo, o campo político democrático, a imprensa e a esquerda adotaram concepção bastante homogênea acerca daqueles eventos.

Desde os primeiros “vivos”, o telejornalismo tratou o episódio como uma tentativa de golpe de Estado, sem ambiguidades. Assim também se comportaram o governo e o Judiciário, que agiram rapidamente para debelar o ataque, evitar que suas consequências se alastrassem e punir os envolvidos. Tentativa de “abolição violenta do Estado de Direito” foi o selo definitivo que fechou a interpretação.

Pelo menos para o campo democrático e para as autoridades e instituições que tinham a obrigação de defender a democracia.

Mas e os envolvidos? Como os bolsonaristas elaboraram esses eventos e as suas consequências?

Minha hipótese, decorrente da observação sistemática dos grupos bolsonaristas online, é que o bolsonarismo, apesar das diferenças internas, nunca assumiu uma condenação clara e uniforme sobre os eventos do 8 de janeiro. Enquanto a sociedade brasileira, em geral, tende a ver os atos como uma grave violação das instituições democráticas, a extrema direita os enxerga de maneira ambígua, dividida entre críticas táticas e justificativas ideológicas. O que emerge é uma constelação de discursos e pontos de vista que se alternam entre a autocrítica estratégica, a vitimização e a negação de responsabilidade.

Em muitos casos, os atos são vistos como “burrice estratégica”, um “gol contra” que deu aos adversários a oportunidade de perseguir a direita e reforçar a sua posição de poder. Essa postura tenta separar o objetivo, considerado legítimo —contestar o governo e as instituições—, dos meios, esses sim, desastrados.

Os argumentos predominantes nesses ambientes são variados, mas um dos mais recorrentes é o da “armadilha orquestrada pelo governo”. Os atos não teriam sido genuínos ou espontâneos, mas parte de uma trama extremamente elaborada para desestabilizar a direita, prender simpatizantes e consolidar o poder do “desgoverno” atual.

Termos como “armadilha”, “infiltrados” e “conspiração” são amplamente usados para transferir a culpa aos outros. Essa versão permite que a extrema direita se mantenha em uma posição de vítima, reforçando a ideia geral de perseguição política.

Outra narrativa comum é a de que os manifestantes, muitas vezes descritos como “patriotas” ou “inocentes úteis”, foram injustamente presos e perseguidos, com algumas versões investindo no drama humano dos participantes ao mencionar idosos, cadeirantes ou mães com crianças. A vitimização é uma estratégia central: os envolvidos são vistos como mártires de um sistema opressor, apanhados em um protesto legítimo que foi manipulado e draconiamente reprimido.

No entanto, essas posições não são homogêneas. Alguns setores, mais pragmáticos, reconhecem os eventos como um erro estratégico que enfraqueceu a direita e forneceu munição para os seus adversários políticos.

Isso é o mais próximo de uma autocrítica que se consegue chegar, ainda que limitada a questões de eficácia política e imagem pública. Por outro lado, setores mais ideológicos e conspiratórios rejeitam qualquer culpa, preferindo acreditar que tudo foi uma farsa organizada pelo governo para justificar a repressão. Esses grupos frequentemente usam o 8 de janeiro como um símbolo da luta contra um “estado de exceção” que, segundo eles, está em curso no Brasil.

Essas nuances revelam que o 8 de janeiro é um ponto de tensão dentro da extrema direita. As críticas ao evento não convergem com a posição predominante da sociedade brasileira, pois divergem do pressuposto de que foi um ataque à democracia. Os argumentos predominantes oscilam entre negar responsabilidade, justificar os atos como legítimos e lamentar seus resultados práticos. Internamente, essas diferenças refletem divisões que fragmentam a direita radical.

No final, o que emerge é que o 8 de janeiro foi um evento mal compreendido ou uma armação dos inimigos da extrema direita, em que patriotas inocentes caíram feito patos. E que, se houve um golpe nesse dia, a direita foi a vítima maior da artimanha.

 

Força bruta é a arma da falta de inteligência, por Ilona Szabó de Carvalho

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Além de ineficaz para garantir segurança, o uso desproporcional da força é ameaça constante à democracia

Ilona Szabó de Carvalho, Presidente do Instituto Igarapé, membro do Conselho de Alto Nível sobre Multilateralismo Eficaz, do Secretário-Geral. da ONU, e mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia).

Folha de São Paulo, 08/01/2025

Neste 8 de janeiro, que marca dois anos de um brutal ataque à democracia, faço um alerta sobre a perigosa reação de governadores ao decreto sobre uso da força publicado pelo governo federal na véspera do Natal. A atitude mostra o quão equivocados estão sobre suas responsabilidades perante a segurança pública em um país democrático.

Para lembrar, o texto, que reitera que a força deve ser aplicada com bom senso e sem discriminação — sendo a arma de fogo o último recurso, condiciona o repasse de recursos federais aos órgãos de segurança estaduais à adequação a essas normas. Só o fato de ser necessário um decreto para determinar o que já deveria ser default nas políticas de segurança pública escancara o grau de descompromisso de um número relevante de governantes com a proteção da população, para não falar da democracia.

Quando comecei a trabalhar com segurança pública, estava cercada de policiais que se orgulhavam de seu treinamento para o uso legal e progressivo da força. Eram guardiões da boa conduta e do verdadeiro ethos de proteção cidadã e democrática que as polícias precisam carregar e exercer.

Hoje, os bons exemplos estão escanteados. São cada vez mais raras as manifestações de policiais falando contra os abusos dos pares. A polarização tóxica acirrou o corporativismo e intimida ou, no mínimo, inibe os bons policiais de se colocarem em público. O populismo extremista que rifa a segurança pública por motivos eleitoreiros, seja no Poder Executivo ou Legislativo, e que por vezes conta com o respaldo do Judiciário e do Ministério Público, mantém impunes os que abusam da força.

O resultado se vê nas barbáries cometidas pela Polícia Militar de São Paulo, registradas em vídeos de câmeras privadas, e nas que se manifestam em diversos outros estados líderes em violência policial, como Rio de Janeiro, Bahia e Amapá – além dos “erros” cometidos por policiais rodoviários federais ainda ‘empoderados’ pela gestão passada.

A ineficácia dos órgãos de segurança pública no Brasil se ancora na leitura rasteira de seus papéis e deveres. Sem inteligência, em todos os sentidos, a única arma proposta é a força bruta.

Não é preciso inventar a roda. É preciso, e urgente, que sejam exercidos os controles interno e externo previstos na legislação. Inclusive pelo Ministério Público, que, em boa parte, não vem cumprindo seu papel de fiscalização da atividade policial.

Por isso, o decreto é bem-vindo e precisa ser implementado com urgência. O governo federal deve usar todos os recursos de que dispõe para incentivar o uso responsável da força e a transformação das polícias militares e civis dos estados brasileiros em instituições cidadãs e democráticas.

Já passou da hora de a segurança pública ser compreendida e priorizada em sua totalidade, e em todos os níveis de governo e poderes do Estado. Segurança pública é um sistema integrado, que começa na prevenção, passa pelas polícias, defensorias, ministérios públicos, sistema prisional, e Judiciário.

A desestruturação das políticas públicas de prevenção e das condições do sistema prisional perpetua o ciclo vicioso da força bruta e sustenta o populismo autoritário. Nesse filme, que, como já vimos, leva à porta de entrada da derrocada da democracia, o descontrole das polícias é um spin-off a ser derrotado nas bilheterias para as eleições do ano que vem.

 

Filhos dos ricos merecem herança? por Michel França

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Proteção excessiva de herdeiros limita desenvolvimento

Michael França, Ciclista, vencedor do Prêmio Jabuti Acadêmico, economista pela USP e pesquisador do Insper. Foi visiting scholar nas universidades de Columbia e Stanford.

Folha de São Paulo, 07/01/2025

Em minha última coluna, intitulada “Qual é o legado dos ricos”, argumentei que, com a baixa taxa de fecundidade e o progressivo abandono do ideal de ter filhos, especialmente nas gerações mais jovens, a árvore genealógica de muitas famílias está destinada a morrer em um futuro próximo.

Isso levanta uma relevante questão sobre o que realmente significa deixar um legado, visto que, para muitos, ainda predomina o antiquado modelo de transmitir fortunas herdadas de gerações passadas e acumuladas ao longo da vida para seus descendentes.

Não podemos negar que deixar a herança exclusivamente para os filhos tem um forte apelo emocional. Afinal, queremos proteger o futuro de nossos entes queridos. Apesar disso, é importante questionar se tal proteção realmente beneficiará os filhos, pois grandes heranças podem, na verdade, prejudicar mais do que ajudar.

Tal fato tende a ser negligenciado por muitos pais que procuram fazer de tudo por seus filhos. Porém, ao eliminar a necessidade de esforço e resiliência, fortunas herdadas tendem a desestimular o desenvolvimento pessoal e profissional, criando uma geração de herdeiros não só dependentes, mas também, em muitos casos, incompetentes.

Em vez de aprenderem a conquistar o que possuem, muitos crescem com a sensação de que tudo está garantido. Isso acaba levando-os a ter de tudo, mas, ainda assim, possuírem um sentimento de vazio e falta de propósito.

A ausência de necessidade de lutar pela segurança financeira faz com que muitos herdeiros apresentem dificuldades em construir uma identidade independente. Em diversos casos, isso se reflete em uma vida marcada pela falta de realização pessoal.

Para além do indivíduo, a transmissão de heranças tem um impacto coletivo negativo, pois intensifica a concentração da riqueza. A herança garante que aqueles que nascem em famílias mais ricas comecem a vida muito à frente dos demais, cristalizando ainda mais suas vantagens. Os ricos não herdam apenas bens, mas também toda uma rede de oportunidades derivadas de uma educação melhor, contatos e retornos dos mais variados ativos.

Como resultado, nossas elites deixam de se renovar. Quando grandes fortunas são passadas de uma geração para outra, o poder econômico e político fica concentrado em poucas famílias, reduzindo as possibilidades de transformações significativas em espaços de decisão.

Dessa forma, tal contexto nos desafia a refletir sobre qual impacto podemos gerar com nossos recursos e habilidades para além de nossos filhos e familiares. Para os filhos, optar por investir a riqueza em algo que promova um bem coletivo não significa abandono, mas uma oportunidade de trilhar seus próprios caminhos, com toda a sorte de já terem nascido em um ambiente altamente privilegiado.

Em vez de herdar fortunas, eles podem receber uma educação de excelência e a liberdade de construir sua própria trajetória com maior legitimidade, ou seja, sem o fardo de serem apontados como herdeiros. Pais que optam por não deixar a herança para os filhos não estão negando apoio, mas oferecendo uma chance para que eles desenvolvam sua independência, caráter e senso de propósito.