Vivemos subnotificação catastrófica de depressão na pandemia, diz Andrew Solomon

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Autor de best-seller sobre a doença diz que há equivoco ao achar que saúde mental é um luxo.

Patrícia Campos Mello – Folha de São Paulo, 22/06/2020

Em “O Demônio do Meio-Dia: Uma Anatomia da Depressão”, premiado best-seller internacional, Andrew Soloman, 56, examina o contexto cutural e científico da doença que o acometeu. Desde a publicação do livro, em 2000, ele virou uma referência mundial no assunto.

Em tempos de pandemia e isolamento social, Solomon acredita que há um grande risco em relação à depressão. Segundo ele, a gravidade da Covid-19 leva as pessoas a acharem que saúde mental é um luxo.

“Vivemos uma subnotificação de problemas de saúde mental em escala catastrófica, e há consequências muito sérias”, diz à Folha o professor de psicologia clínica na Universidade Columbia. Ele afirma que o isolamento social necessário na pandemia pode contribuir para um aumento nos casos de depressão.

Solomon acredita que muita gente não se dá conta que deveria e poderia buscar ajuda.

“Como temos que lidar com uma doença grave, a Covid-19, as pessoas acabam achando que saúde mental é um luxo, algo não essencial no momento. Não é um luxo, as pessoas morrem de depressão, as pessoas deixam de funcionar, há vários problemas físicos que são consequência da depressão”, afirma Solomon, que iria abrir o ciclo de palestras Fronteiras do Pensamento, em maio.

Com a pandemia, as conferências serão realizadas no segundo semestre, em algum formato mais adequado à nova realidade.

O senhor tem conversado com várias pessoas que estão com sintomas de depressão durante o isolamento necessário na epidemia do novo coronavírus. Como uma pessoa pode saber se o que ela tem é uma tristeza normal, dadas as circunstâncias, ou se é uma depressão que requer ajuda?

 É difícil dizer. É bastante racional, no momento, achar tudo muito difícil e incerto e vivenciar algo que parece depressão ou ansiedade. Pode ser uma resposta natural a tudo o que está acontecendo. Um dos fatores-chave é saber como você se sente em relação ao presente e como você se sente em relação ao futuro.

É racional a sensação de que estamos vivendo tempos muito estranhos, que não poder sair de casa e encontrar pessoas é muito ruim e triste. Mas a sensação de que toda a sua vida desapareceu e nunca mais vai voltar ao normal é provavelmente fruto de uma depressão. Essencialmente, seja uma depressão que saiu do nada, como ocorre com muitas pessoas, ou uma depressão decorrente das circunstâncias atuais, as duas são muito incapacitantes. Elas são depressão e provavelmente são tratáveis.

Se você está preocupado, mas ainda está conseguindo funcionar, você provavelmente está apenas lidando com o que está acontecendo. Mas se você chega a um ponto em que não consegue dormir, come o dia inteiro ou não consegue comer nada, sente uma ansiedade enorme quando se senta para fazer coisas rotineiras, tudo isso são indicações de depressão.

O perigo é que as pessoas pensam que estão ansiosas porque estamos vivendo em tempos horríveis e deixam de procurar tratamento. E quando elas vão finalmente se tratar, a depressão já se aprofundou, e quanto mais se aprofunda, mais difícil para a pessoa se recuperar.

Eu disse a muitas pessoas: não quer dizer que não haja razões para você se sentir dessa maneira, mas acho que é muito incapacitante e não ajuda estar assim. Digo a essas pessoas que elas deveriam buscar algum tipo de tratamento, para que possam ficar um pouco mais funcionais.

O senhor acha que há uma subnotificação dos problemas de saúde mental atualmente?

Vivemos uma subnotificação de problemas de saúde mental em escala catastrófica, e há consequências muito sérias. Acabo de falar com um amigo que me contou a história de uma amiga. Ela já estava um pouco deprimida quando tudo isso começou. Morava sozinha em um apartamento em Nova York e disse para o meu amigo que ela estava enlouquecendo, não sabia o que fazer, não via uma única pessoa havia seis semanas. Ela se suicidou.

Isso está acontecendo frequentemente. Como temos que lidar com uma doença grave, a Covid-19, as pessoas acabam achando que saúde mental é um luxo, algo não essencial no momento. Não é um luxo, as pessoas morrem de depressão, as pessoas deixam de funcionar, há vários problemas físicos que são consequência da depressão.

A depressão também afeta o sistema imunológico, o que deixa as pessoas menos capazes de combater o vírus se forem expostas. No momento, a depressão está muito, muito disseminada.

Existe alguma “dieta de saúde mental” que as pessoas podem seguir, ações que nos protegem de alguma forma da possibilidade de depressão e ansiedade neste momento de pandemia? 

Depressão é uma doença muito comum e tratável. Para as pessoas que estejam se sentindo muito pressionadas, sugiro que procurem ajuda profissional, não tenham medo de tomar remédios e fazer terapia. Não é um sinal de fraqueza, é um sinal de coragem.

Em geral, ajuda muito estabelecer rotinas, ter um número adequado de horas de sono, nem muito, nem pouco; não comer demais, não beber demais. Se a pessoa conseguir fazer tudo isso, ótimo.

Acho que o principal problema em relação a essa epidemia é a solidão terrível que ela gerou. Quando você está muito solitário e isolado, a ideia de procurar outras pessoas parece uma coisa enorme e pouco atrativa. Mas é uma medida de saúde muito importante falar com seus amigos, sua família, ou pessoas com as quais você tem conexão. Pode ser pelo Zoom ou outra plataforma online, telefone ou WhatsApp. Use qualquer tecnologia que estiver disponível e fique em contato com outras pessoas.

A depressão, mesmo em circunstâncias normais, é uma doença da solidão. Então se você conseguir sair um pouco dessa solidão, tem mais chances de ficar bem. Alguns dizem é muito trabalho ligar para as pessoas. Pensam: “Talvez não queiram falar comigo”. Meu conselho é: liguem, fiquem em contato.

Quais são os efeitos psicológicos da pandemia sobre as crianças?

O principal a se fazer com as crianças é mantê-las ativas e interessadas. É difícil, porque as crianças querem interagir fisicamente com os amigos, não só conversar pelo Zoom. Quando sugiro ao meu filho George fazer FaceTime com os amigos, ele faz, mas as crianças não têm muito sobre o que falar quando não estão fazendo coisas. E se as crianças não podem ter a companhia de outras crianças, elas precisam ter a companhia de adultos. É preciso que os pais reservem um tempo fora das suas preocupações usuais e foquem a família.

O que é pior, o isolamento social, o medo da doença ou não saber como vai ser a vida em alguns meses? 

Há dois aspectos traumáticos para as pessoas. Uma é o vírus, o medo de morrer e de pessoas que você ama morrerem. O outro aspecto é a sensação de estar desligado das outras pessoas.

Você está trancado em sua casa, com seus filhos, seus pais, ou marido ou mulher, num grupo pequeno. É muito difícil não acabar brigando. E ainda por cima, a pessoa está isolada do contexto social mais amplo onde teria mais pessoas para apoio e amizade.

Ou seja, é tanto o inferno são os outros como o inferno é não ter os outros, ao mesmo tempo. O isolamento é muito difícil tanto pelas pessoas que estão com você, quanto pelas pessoas que não estão com você.

Mas o medo do vírus é muito real, e o fato de não termos um cronograma torna tudo muito difícil. Se todo mundo soubesse que nós temos a pandemia, ela é horrível e vai durar até março, pensariam: bom, março está muito longe, mas pelo menos é possível fazer um cronograma. Dá para dizer às crianças: olha, é muito difícil, mas chegando em março, nós vamos fazer isso, vamos fazer aquilo. Nós sentimos constantemente essa ansiedade e medo por não saber quando vai acabar. O fato de não podermos nos programar é muito ruim.

O senhor trabalhou muitos anos como repórter internacional e escreveu um livro sobre a importância de viajar. Daqui para frente, não será tão fácil viajar. Passagens aéreas poderão ficar muito caras por causa da necessidade de manter assentos vazios. As pessoas podem ser obrigadas a fazer quarentena toda vez que viajem. Qual é o impacto disso em nossas vidas?

Até existir uma vacina, não vamos conseguir viajar como costumávamos. E mesmo quando descobrirem uma vacina, o fato de termos passado por isso e sabermos que há patógenos como esse no mundo vai tornar as pessoas bem menos animadas para embarcar em aviões e viajar ao redor do mundo. Meu medo é que isso também leve a um crescimento do nacionalismo e xenofobia, o que já vem ocorrendo.

A parcela da população que viaja para o exterior é pequena, mas há um efeito multiplicador das experiências dessas pessoas, que cria uma sensação de um mundo conectado. O que temos hoje é uma sensação de um mundo desconectado.

O senhor está escrevendo um novo livro. Pode contar um pouco?

É um livro sobre a expansão da ideia do que é uma família —casais divorciados e enteados, casais interraciais, pais e mães solteiros, reprodução assistida, adoção, acolhimento de órfãos em famílias, casais gays, famílias com vários pais e mães e famílias sem filhos.

O livro é estruturado para espelhar o “Longe da Árvore”, que relatava como pais comuns viviam com filhos extraordinários. Esse livro é sobre como famílias extraordinárias se formam e como tomam conta de seus filhos, o que significa ser uma família incomum, as coisas que igualam todos nós e as maneiras pelas quais não somos iguais.

O senhor tem uma família incomum… 

(Risos) Sim. Meu marido é pai biológico de dois filhos de amigas lésbicas que moram em Minnesota (nos EUA). Eu tenho uma filha com uma amiga da faculdade, que é casada. Eles vivem no Texas. Em circunstâncias normais, nós nos vemos bastante.

Eu e o John [meu marido] queríamos ter um filho para estar conosco o tempo todo e tivemos o George. Eu sou o pai biológico, o John é o pai adotivo, tivemos uma doadora de óvulos e uma barriga de aluguel —que é a mãe biológica dos dois filhos do John.

Seis pais, de quatro filhos, em três estados. Normalmente, passamos o Natal todos juntos, às vezes em Minneapolis. Nosso mais velho, filho biológico do John, veio morar com a gente por um ano no ano passado, quando terminou o ensino médio e ainda não tinha começado a faculdade. Foi ótimo. O livro também é sobre isso. Não existe linguagem que dê conta da complexidade das relações atuais.

Andrew Solomon, 56

Professor de psicologia clínica na Universidade Columbia, em Nova York, é escritor, ativista e conferencista. É autor, entre outros livros, de “Longe da Árvore” e “O Demônio do Meio-Dia”, que venceu o National Book Award de 2001. Escreveu para veículos como a revista The New Yorker e o jornal The New York Times.

 

Thomas Piketty: em face de nosso passado colonial e escravista, ”enfrentar o racismo, reparar a história”

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Após a onda de mobilizações contra a discriminação, é necessário mudar o sistema econômico, tendo como fundamento a redução das desigualdades, argumenta o economista

Por Thomas Piketty – 18/06/2020

Crônica. A onda de mobilizações contra o racismo e a discriminação coloca uma questão crucial: a das reparações diante de um passado colonial e escravista que definitivamente não passa. Qualquer que seja sua complexidade, a questão não pode ser evitada para sempre, nem nos Estados Unidos nem na Europa.

No final da Guerra Civil, em 1865, o republicano Lincoln prometeu aos escravos emancipados que obteriam após a vitória “uma mula e 40 acres de terra” (cerca de 16 hectares). A idéia era compensá-los por décadas de maus-tratos e trabalho não remunerado e permitir-lhes encarar o futuro como trabalhadores livres. Se tivesse sido adotado, este programa representaria uma redistribuição agrária em larga escala, principalmente às custas dos grandes proprietários de escravos.

Mas assim que a luta terminou, a promessa foi esquecida: nenhum texto de compensação foi adotado e os 40 acres e a mula se tornaram o símbolo da decepção e da hipocrisia dos nortistas – tanto que o diretor [de cinema] Spike Lee utilizou a expressão ironicamente para nomear sua empresa de produção. Os democratas retomaram o controle do Sul e impuseram a segregação e discriminação racial por mais um século, até a década de 1960. Novamente, nenhuma compensação foi aplicada.

Estranhamente, no entanto, outros episódios históricos deram origem a tratamentos diferentes. Em 1988, o Congresso aprovou uma lei concedendo US $ 20.000 aos nipo-americanos internados durante a Segunda Guerra Mundial. A indenização foi aplicada às pessoas ainda vivas em 1988 (cerca de 80.000 pessoas em 120.000 nipo-americanos internados de 1942 a 1946), a um custo de US $ 1,6 bilhão. Uma compensação de mesmo tipo paga às vítimas afro-americanas da segregação teria um forte valor simbólico.

O grilhão do Haiti

No Reino Unido e na França, a abolição da escravidão era sempre acompanhada de compensações do Tesouro Nacional [pagas] aos proprietários. Para intelectuais “liberais” como Tocqueville ou Schoelcher, tratava-se de uma obviedade: se privamos esses proprietários de suas propriedades (que, afinal, foram adquiridas em um contexto legal) sem justa compensação, então onde iríamos parar nessa perigosa escalada? Quanto aos ex-escravos, eles deveriam aprender a liberdade trabalhando duro. Não tiveram direito senão à obrigação de estabelecer contratos de trabalho de longo prazo com proprietários, cuja falta ensejaria prisão por vadiagem. Outras formas de trabalho forçado foram aplicadas nas colônias francesas até 1950.

Quando da abolição britânica [da escravatura], em 1833, o equivalente a 5% da renda nacional do Reino Unido (hoje 120 bilhões de euros) foi pago a 4.000 proprietários, com remuneração média de 30 milhões de euros, origem de muitas fortunas ainda hoje visíveis. Uma compensação também foi aplicada em 1848 aos proprietários da [Ilha da] Reunião, da Guadalupe, da Martinica e da Guiana. Em 2001, durante os debates em torno do reconhecimento da escravidão como um crime contra a humanidade, Christiane Taubira tentou, sem sucesso, convencer seus colegas deputados a criar uma comissão encarregada de refletir sobre compensações para os descendentes de escravos, em particular quanto ao acesso à terra e à propriedade, sempre muito concentradas entre os descendentes dos plantadores.

A injustiça mais extrema é, sem dúvida, o caso de Saint-Domingue, que foi a joia das ilhas escravistas francesas no século 18, antes de se revoltar em 1791 e proclamar sua independência em 1804 sob o nome de Haiti. Em 1825, o Estado francês impôs ao país uma dívida considerável (300% do PIB haitiano da época) para compensar os proprietários franceses pela perda de propriedades escravistas. Ameaçada de invasão, a ilha não teve outra escolha a não ser cumprir e pagar essa dívida, que o país arrastou como um grilhão até 1950, depois de muitos refinanciamentos e juros pagos aos banqueiros franceses e americanos.

Herança mínima

O Haiti agora está pedindo à França que devolva esse tributo injusto (30 bilhões de euros hoje, sem contar os juros), e é difícil não concordar. Ao recusar qualquer discussão sobre uma dívida que os haitianos tiveram que pagar à França por querer deixar de ser escravos, quando os pagamentos feitos de 1825 a 1950 estão bem documentados e não são contestados por ninguém, e que se pratica ainda hoje compensações pelas espoliações que ocorreram durante as duas guerras mundiais, corre-se inevitavelmente o risco de criar um imenso sentimento de injustiça.

O mesmo vale para a questão de nomes de ruas e estátuas, como a do comerciante de escravos que foi recentemente derrubada em Bristol. Obviamente, nem sempre será fácil traçar a linha entre estátuas boas e ruins. Mas, assim como para a redistribuição de propriedades, não temos outra escolha senão confiar nas deliberações democráticas para tentar estabelecer regras e critérios justos. Recusar a discussão é perpetuar a injustiça.

Bem além desse debate difícil, mas necessário, sobre reparações, devemos também e acima de tudo olhar para o futuro. Para reparar a sociedade dos danos do racismo e do colonialismo, é necessário mudar o sistema econômico, tendo como fundamento a redução das desigualdades e a igualdade no acesso de todos à educação, emprego e propriedade (inclusive por meio de uma herança mínima), independentemente das origens, tanto para negros quanto para brancos. A mobilização que hoje reúne cidadãos de todo o mundo pode contribuir para isso.

Thomas Piketty é Diretor de Estudos na Ecole des hautes études en sciences sociales, Ecole d’économie de Paris

Publicado originalmente em Le Monde | Tradução de Aluisio Schumacher

Racismo é um impedimento ao desenvolvimento econômico brasileiro

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Além de moralmente degradante, o preconceito é um obstáculo ao crescimento do país; não é um problema dos negros, mas da sociedade como um todo

Antonio Quintella e Lilia Moritz Schwarcz*, Especial para o Estado

20/06/2020 |

Durante muito tempo a “branquitude” – o privilégio que a sociedade colonial e europeia adquiriu e conservou no Brasil – reinou como se fosse verdade e realidade “natural”: inquestionável e, por isso, invisível. Foi assim que nos acostumamos a achar “normal” não encontrar negros e negras nos bancos das nossas melhores escolas, nas redações dos jornais, nos ambientes corporativos, na direção de instituições e até mesmo nas áreas de lazer dos bairros considerados mais nobres. Também defendemos uma suposta “meritocracia” sem atentarmos para os cortes de classe e raça que esse conceito traz; como falar em “mérito”, de uma forma geral, quando o ponto de largada é profundamente desigual? Nos habituamos, ainda, a chamar de “universal”, e sem pejas, uma história que é só europeia, e a uma arte que é eminentemente masculina e ocidental. Se a “nossa” arte e a “nossa” história carecem de adjetivação, já as demais precisam ser qualificadas como se fossem derivações subordinadas: arte africana, arte indígena, história africana, história indígena.

Tal tipo de procedimento, levado a cabo durante tantos séculos, e de forma impune, acabou gerando uma grande cegueira cultural e processos de invisibilidade social muito perversos pois nem sequer nomeados. E, em geral, onde reina o silêncio, sobra contradição. “Raça” só existe uma – a humana –, e aí estão os biólogos para comprovar. Mas desde sempre a humanidade criou outro conceito, “raça social”, e é dele que estamos aqui tratando. Qual seja, das maneiras como as sociedades “driblam a natureza”, e constroem marcadores sociais de diferença como raça, gênero, sexo, região e geração, e, assim, criam novas realidades ensejadas historicamente e ao longo do tempo.

O tema da raça entrou finalmente na agenda da nossa contemporaneidade. No entanto, se os brasileiros podem até assumir a existência do racismo no país, em geral, negam que sejam, eles próprios, racistas, e costumam jogar o preconceito no “outro”: na história, no colega, no parente, no vizinho. No entanto, o racismo existente no país toma todos; sem exceção. Ele está presente no ambiente escolar, com altos níveis de repetência entre os alunos negros; na área da saúde e basta notar como as pessoas negras são as maiores vítimas da Covid-19; na área do trabalho com poucos participando de cargos de direção; na área da cultura e da moda, ainda espaços eminentemente brancos. E não adianta culpar apenas o passado, e maldizer o legado pesado da escravidão. Nos dias de hoje temos reproduzido dados que indicam a existência de um racismo estrutural e institucional, presente nas áreas mais insuspeitas e, também, naquelas muito suspeitas.

É por isso que a questão deixou de ser apenas moral; não adianta mais dizer que não somos racistas, é passada a hora de praticarmos atos antirracistas. Como foram os colonizadores brancos que implementaram o tráfico negreiro e criaram teorias que procuraram naturalizar a diferença – como o darwinismo racial, que determinava que as raças eram ontologicamente diferentes, ou o racismo científico, o qual colocava os brancos no alto de uma pirâmide social e os negros na sua base – é hora de atuarmos como aliados nessa luta que é de todos os brasileiros. Na luta antirracista.

Não teremos uma democracia por aqui, como bem demonstra Sílvio Almeida, enquanto permitirmos que o racismo vigore e de forma tão perversa. Mas, também, jamais teremos no Brasil uma economia tão pujante e produtiva, quanto poderíamos ter e apresentar (e precisamos dela para vencer a extrema pobreza e desigualdade que nos assolam), se o racismo permanecer entre nós. A manutenção do status quo, se não o seu agravamento, não é sustentável. Ademais, essa preocupante trajetória pode colocar em risco a nossa precária estabilidade institucional.

Muito já foi dito sobre fazer crescer o bolo ou, ainda, que a subida da maré levanta todos os barcos, e que esses processos enriquecem as nações. Entretanto, as evidências das últimas décadas demonstram que ao longo desse caminho não somos todos igualmente beneficiados. Aliás, muitos sequer são beneficiados de todo. Na ausência de políticas públicas compensatórias e bem coordenadas, os benefícios vão para uns e não para outros, e, em geral, os maiores benefícios são capturados por muito poucos.

Infelizmente, a pandemia provocada pela disseminação do Covid-19 fez o bolo decrescer e a maré baixar repentina e significativamente. Nesse ambiente, que possivelmente nos fará conviver com altas taxas de desemprego e baixos níveis de ocupação e atividade por muito tempo, as desigualdades tendem a se tornar ainda mais expressivas e as vantagens percebidas por aqueles que detém o capital (seja ele intelectual e/ou financeiro) mais pronunciadas. Essas disparidades não podem ser moralmente toleráveis e, além do mais, comprometerão o desempenho da própria economia brasileira enquanto persistirem.

Diante dos inúmeros desafios introduzidos pela pandemia, em especial os de ordem econômico-social, é necessário resgatar a discussão em torno das opções disponíveis para combater a pobreza no Brasil. Ricardo Paes de Barros (et. al.) propunha, já em 2000 (Desigualdade e Pobreza no Brasil: Retrato de uma Estabilidade Inaceitável, Revista Brasileira de Ciências Sociais), que o foco no crescimento econômico como estratégia central no combate à pobreza deveria ser relativizado. O estudo àquela época apontava para (a despeito dos ciclos, transformações e dos mais variados experimentos econômicos) uma relativa estabilidade na dimensão da pobreza no país, e propunha que políticas que focassem na diminuição da desigualdade precisariam ser combinadas com aquelas que estimulassem o crescimento econômico. Não seriam essas políticas mutuamente excludentes, mas complementares. O diagnóstico feito a partir daquele minucioso estudo demonstrava a existência de uma estreita relação entre a má distribuição dos recursos e a pobreza, situação que permanece até hoje. O estudo sentenciava então que “o Brasil não é um país pobre, mas um país com muitos pobres”.

Devemos adicionar uma nova dimensão a essa discussão. O tema do racismo tem claro impacto no ambiente do trabalho, como vem mostrando Cida Bento, entre outros. As práticas e atitudes racistas alijam uma parcela considerável da nossa população, tolhendo-a de oportunidades indispensáveis e fundamentais na área da educação e ocupacional, por exemplo, impedindo-a de exercer as mais diversas atividades profissionais na plenitude do seu potencial criativo e produtivo. A eliminação do racismo é ainda mais relevante em uma sociedade tão desigual quanto a brasileira, em que, segundo dados e termos do IBGE, negros e pardos correspondem a quase 56% da população.

O Brasil já não mais se beneficia de um bônus demográfico, ao contrário. Na medida em que nossa população envelhece, nosso crescimento econômico depende, sobretudo, de um aumento significativo da produtividade. Vários estudos recentes têm sido feitos a respeito da relativa perda de dinamismo da economia brasileira nos últimos anos, apontando que isso possa estar associado à baixa produtividade do trabalho. O Professor José Pastore em artigo no Estadão (de 27 de fevereiro de 2020) sugeria que a “produtividade não resulta desta ou daquela providência, mas sim de ações orquestradas em vários campos durante muitas décadas”, notadamente no campo da educação. Sem dúvida, o aumento da produtividade também passa pela desburocratização, pela abertura da economia, pelos esforços de privatização, pela racionalização da carga tributária e maior eficiência do Estado.

Mas esses esforços terão sido insuficientes se tivermos deixado para trás metade dos brasileiros.

Se o Brasil pretende crescer de forma sustentável, precisa resgatar uma histórica dívida social. Devemos urgentemente oferecer as condições necessárias para mitigar a desigualdade, em especial a de oportunidades. É necessária uma profunda reflexão sobre a nossa sociedade, reconhecendo a riqueza da sua diversidade e estabelecendo uma agenda de inclusão que desperte, motive, engaje e permita que a população negra ocupe, com destaque e sem constrangimentos, espaço nos meios acadêmicos, culturais e empresariais.

A defesa da pauta antirracista implica, portanto, uma agenda de ações. Mas sua defesa não leva em conta apenas a “culpa” ou o mero ressarcimento; o qual, aliás, nunca foi realizado. Ela pretende mostrar que seremos muito melhores se formos mais diversos. Mais é sempre mais, quando se pretende colocar em relação potencialidades, experiências, percursos e histórias tão distintas como comuns.

Portanto, o antirracismo, além de precisar fazer parte de uma agenda republicana e democrática brasileira, precisa ser incorporado ao pensamento e à formulação da política econômica. O racismo não é apenas moralmente degradante e inaceitável, ele também é um impedimento ao pleno e sustentável desenvolvimento econômico. Não, o problema não é só dos negros, é da sociedade como um todo. E da conscientização e efetiva mobilização das nossas lideranças dependem as soluções.

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ANTONIO QUINTELLA É EMPRESÁRIO, ECONOMISTA PELA PUC-RJ E MBA PELA LONDON BUSINESS SCHOOL/UNIVERSIDADE DE LONDRES

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LILIA M. SCHWARCZ É HISTORIADORA E ANTROPÓLOGA, PROFESSORA DA USP E EM PRINCETON, CURADORA ADJUNTA PARA HISTÓRIAS DO MASP E AUTORA DE VÁRIOS LIVROS, SENDO O MAIS RECENTE ‘SOBRE O AUTORITARISMO BRASILEIRO’ (2019)

Bolsonaro não controla apoiadores mais radicais’, diz pesquisador

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Professor vê presidente como ‘refém do monstro’ que ele próprio criou: o bolsonarismo, que junta até correntes antagônicas

David Nemer, professor da Universidade de Virgínia

Breno Pires, O Estado de S.Paulo 21/06/2020 |

BRASÍLIA – O professor David Nemer, da Universidade de Virgínia, nos Estados Unidos, tem dedicado seus estudos ao funcionamento da rede bolsonarista no WhatsApp. Diferentemente do Twitter e do Facebook, o aplicativo foge do controle social e virou uma arma do presidente para manter o patamar de 30% nas pesquisas de opinião.

Doutor em antropologia da tecnologia, Nemer acompanha, agora, um processo de “desidratação” e “radicalização” do grupo de seguidores que está na mira de um inquérito do Supremo Tribunal Federal (STF). Em entrevista ao Estadão, ele avalia que essa rede diminui e torna-se cada vez mais radical desde a saída de Sérgio Moro do governo, a aliança do Palácio do Planalto com o Centrão e as divergências de movimentos de direita. Ao mesmo tempo, influencia a agenda hostil do presidente ao Estado Democrático. “Hoje o bolsonarismo é maior do que a figura do Bolsonaro”, afirma.

Eram grupos conservadores que já existiam e que se uniram em torno de Bolsonaro pelo antipetismo. Bolsonaro no início não era uma unanimidade entre eles, havia dúvidas, até por ser um nome velho da política. Se você olhar para o bolsonarismo, tem pilares antagônicos. Há o liberal, representado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e o militar, que é nacionalista. São ideias que se confrontam. Evangélicos querem ter presença forte e os liberais são contra a presença da religião no governo.

Os grupos implodiram. Com Bolsonaro eleito, o PT já não é mais a mesma ameaça. As pessoas voltam a priorizar os pilares do bolsonarismo que mais lhe agradam, liberais, militares. Então, os grandes grupos deram lugar aos temáticos. Há o armamentista, há o liberal, há o evangélico. E, depois, com a saída de pessoas importantes da campanha, como Joice Hasselmann, Janaina Paschoal e Sérgio Moro, muitas pessoas deixaram o barco bolsonarista. As que ficaram estão firmes com Bolsonaro. Antes tinha mais pessoas. Agora tem menos pessoas indo para as ruas, mas estas são mais radicais. O número é menor, sem diálogo e barulhento.

  • Como define o bolsonarismo?

É um movimento sociopolítico sustentado por diversas correntes de pensamento que não são necessariamente complementares e às vezes antagônicos, como o liberalismo econômico, o militarismo, o cristianismo conservador e os pensamentos de Olavo de Carvalho. O presidente se utiliza dessas correntes para justificar a militância para o patriotismo, os bons costumes, os valores familiares, a lei e a ordem e a caçada à esquerda. Uma estratégia do bolsonarismo é a criação do inimigo, onde qualquer pessoa ou entidade que se oponha a ele é julgada como antinação, anticristão e comunista. O bolsonarismo também tem uma agenda hostil ao Estado Democrático.

  • A presença do presidente em atos antidemocráticos é uma influência desses grupos radicais?

Sim. O Frankenstein cresceu e agora volta para assombrar. Hoje o bolsonarismo é maior do que a figura do Bolsonaro. O presidente é refém do monstro que criou, que é o bolsonarismo. Outro dia, Olavo de Carvalho disse que, se ele quiser, derruba o presidente. Isso também é fruto do bolsonarismo. O presidente não controla mais a ala radical dele que se alimentou das falas e do pensamento dele.

  • Esses apoiadores mostram obediência ao presidente?

Até que ponto a obediência cega é ao Bolsonaro ou ao bolsonarismo? Nos primeiros atos, por volta de 15 de março, depois de muita crítica, ele pediu para as pessoas não irem mais para as ruas (por causa da pandemia). Não adiantou, as pessoas saíram. Ele viu que não tinha controle. Então, com medo de essas pessoas virarem oposição, o presidente se junta a um potencial inimigo. Esse é um exemplo de que o bolsonarismo está maior que ele.

  • Quando o presidente foi maior que o bolsonarismo?

Talvez na aproximação ao Centrão. Talvez na saída do Moro. Foi interessante porque a saída dele foi rápida, ninguém estava esperando. Foi um baque forte, mas logo os influenciadores superaram. Mas não dá pra enganar: Bolsonaro continua sendo a cara do bolsonarismo.

  • Como se diferenciam os grupos bolsonaristas do WhatsApp e do Twitter?

No WhatsApp, você tem a participação orgânica e coletiva de pessoas reais. No Twitter, por existir forte presença de contas inautênticas, fica difícil ter a sensação real da adesão daquela mensagem. É mais unilateral, e a informação vem de certos hubs, como (o blogueiro) Allan dos Santos, Leandro Ruschel e a deputada Carla Zambelli (PSL-SP).

  • O presidente diz que o inquérito das fake news é inconstitucional. O senhor concorda? 

De jeito nenhum. O que esse inquérito está vendo é o financiamento ilegal das contas. Eles estão verificando sobre a questão das fake news. Se fossem realmente atrás de todo mundo, a lista seria muito maior. Por exemplo, ainda não se vê como alvos integrantes do chamado “gabinete do ódio”. Acredito que os motivos que levam à investigação são concretos. É lógico que tem de esperar a conclusão e o julgamento. Mas isso não é censura. As leis do País ainda se aplicam na internet. Essa ideia de que internet é terra de ninguém, por mais que possa parecer, não é verdade. Alguma hora a gente tem esse choque de realidade.

  • Os grupos bolsonaristas estão diminuindo?

A diminuição dos grupos de WhatsApp ocorre de acordo com as pesquisas de opinião. Quando se fala que sobraram 25% a 30% de aprovação, é o mesmo porcentual lá do início do governo. Não vai dar para mudar opinião desses eleitores. As mudanças para acontecerem nesse grupo devem ser de longo prazo. O bolsonarismo vai permanecer por muito tempo além da figura do Bolsonaro, mesmo que, nas próximas eleições, algum candidato de esquerda ou de centro ganhe. Haverá reações radicais. Estudar e compreender o bolsonarismo não é coisa de momento, é algo que já vem sendo construído por um tempo e que vai ficar por muito tempo.

  • É possível fazer um paralelo entre apoiadores de Bolsonaro e de Donald Trump nas redes? 

Há uma espécie de ciclo da direita avançando nesse aspecto da desinformação por meio das redes sociais. Com o aquecer das eleições dos EUA, estou fazendo pesquisa principalmente em grupos de Telegram. Ainda está muito no início para eu ter algum tipo de achado forte, mas é bem parecido com o que aconteceu no Brasil em 2018 no WhatsApp, que por sua vez se baseou muito no que foi o Trump de 2016 no Facebook. De certa forma, a direita amplifica o que foi feito no outro país no passado recente. WhatsApp e Telegram nunca foram populares nos EUA, mas estão ficando agora. A expectativa é que fiquem ainda mais durante as eleições, pois as campanhas já entenderam o poder da persuasão que esses aplicativos promovem, principalmente, no que tange à distribuição de fake news.

Entrevista: ‘Trump e Bolsonaro não são populistas’

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Para professor de Yale, as estratégias adotadas pelos governos dos dois líderes estão mais voltadas para o fascismo

Paulo Beraldo, O Estado de S.Paulo – 21/06/2020

Acabar com a legitimidade da oposição, elaborar um discurso de vítima do sistema, eleger culpados para problemas estruturais e criticar o intelectualismo: a fórmula é a mesma, mas se repete em países tão distintos quanto ÍndiaHungriaPolôniaEstados Unidos e Brasil. A avaliação é do filósofo Jason Stanley, autor de Como Funciona o Fascismo – A Política do ‘Nós e Eles’, para quem o termo populista não serve para designar o comportamento de líderes como o indiano Narendra Modi, o americano Donald Trump e o presidente Jair Bolsonaro.

Muitas pessoas perderam confiança nas democracias para garantir serviços fundamentais como educação, saúde e segurança. O estudo Democracias sob Tensão, conduzido pela Fondapol, mostrou que 77% das pessoas no Brasil entendem que a democracia aqui não funciona bem. Em todo o mundo, a média de satisfação com o sistema é de 51%. Como restaurar a confiança?

Para que a democracia seja protegida, os jornalistas devem ser capazes de fazer seu trabalho sem assédio de políticos e os sistemas públicos de educação devem ser fortes e estar disponíveis para todos, assim os cidadãos podem participar da formação das políticas pelas quais são governados. Deve haver um caminho visível para reduzir a desigualdade entre os cidadãos para que o ideal de igualdade política democrática não seja visto como vazio e hipócrita. A democracia promete liberdade aos cidadãos, mas quando eles são esmagados por dívidas e trabalho sem fim, sem esperança de que seus filhos terão uma vida mais digna, eles podem ser manipulados por demagogos a jogar a culpa de seus problemas em fontes que não são as responsáveis por eles: os pobres, os homossexuais, os liberais, os ateus, os imigrantes, os negros e outros grupos que não são responsáveis pelas disparidades de riqueza e oportunidade.

Como o sr. vê a valorização das pessoas pelas democracias hoje em dia?

Há o risco de as pessoas verem a democracia como hipócrita, como uma máscara para elites poderosas controlarem o discurso e a sociedade em detrimento da maioria. Os líderes que incentivam essa narrativa e obtêm sucesso por meio dessa estratégia são muito mais corruptos do que os líderes que eles superam, e minam mais a retórica da democracia, alimentando o sentido de que esses líderes são “autênticos”. Jair Bolsonaro, Donald Trump e Narendra Modi nem mesmo inspiram competência e ninguém se inspiraria na existência de autocracias tecnocráticas, como Cingapura, para apoiar alguém como Bolsonaro.

É possível prever as condições que permitem que as democracias se transformem em autocracias e até ditaduras?

Há várias maneiras de as democracias se transformarem em autocracias e vários tipos de autocracia. Depois, existem os tipos de movimentos políticos em questão no meu livro Como o Fascismo Funciona. Esses movimentos políticos acabam frequentemente em incompetência e corrupção em massa, uma vez que seu principal valor político é a lealdade.

Em seu livro, o sr. diz que vitimização, anti-intelectualismo e deslegitimação da oposição são características importantes do fascismo. Por que políticos de países muito diferentes adotam essas estratégias hoje em dia?

O apelo à vitimização permite que os políticos justifiquem comportamentos antiéticos e sem princípios – por exemplo, comportamentos ilegais e antiéticos são justificados porque são os alvos de uma mídia e classe política supostamente injustas. Justifica o sentimento de queixa legítima para seus apoiadores. A vitimização do grupo dominante é muito poderosa, como vemos hoje na Índia, com o apelo do nacionalismo hindu. Os hindus são a maioria (cerca de 80%) e muitos estão convencidos de que seu país está sob ameaça dos muçulmanos. O anti-intelectualismo faz parte do apelo das figuras de autoridade; a autoridade do homem forte tem como base a força. E a deslegitimação da oposição faz parte do impulso antidemocrático.

Muitos desses líderes também fazem uso da religião e tentam se retratar como escolhidos. Há como combater isso?

O bom jornalismo deve revelar que tais afirmações frequentemente têm como base a hipocrisia. Também precisamos de cidadãos com um senso das tradições democráticas do país – a maneira como o Brasil emergiu da ditadura militar para ser a democracia em desenvolvimento mais inspiradora do mundo.

Grandes democracias como Índia, EUA e Brasil são hoje lideradas pelo que muitos analistas definem como políticos populistas. Em seu livro, o sr. prefere evitar esse termo. Poderia explicar o porquê?

Lula era populista. Bernie Sanders é populista. É absurdo ter uma categoria que agrupe Bolsonaro e Lula. Se o objetivo é combater políticos como Trump, Bolsonaro e Modi, que buscam dividir, é preciso ter políticas populistas que transmitam confiança às pessoas. O problema não é o populismo. É o que chamo de fascismo, concorde você ou não com esse rótulo. Muitos políticos que chamamos com naturalidade de populistas nunca empregariam as táticas que descrevo. Então, precisamos de outro termo. Talvez não seja fascista. Mas definitivamente não é populista.

 

Dani Rodrik, economista: “Esta crise nos ensina que nossas prioridades estavam equivocadas”

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Professor em Harvard diz que a pandemia amplificou as tensões econômicas já existentes e afirma que autocratas como Bolsonaro e Trump tem respondido pior ao momento.

Luis Doncel – El país, 20/06/2020

Dani Rodrik passeava com seu cachorro na manhã de quinta-feira passada quando deu uma olhada na sua conta do Twitter. Foi então que soube que havia ganhado o Prêmio Princesa de Astúrias de Ciências Sociais de 2020, um dos mais importantes da Espanha. A esse economista turco-norte-americano, um dos mais influentes da atualidade, não lhe escapa a ironia de ser premiado por seus estudos sobre a globalização justamente quando este fenômeno recebeu o golpe mais duro de sua história. A pandemia do coronavírus, afirma ele no seu gabinete da Escola de Governo John F. Kennedy, da Universidade Harvard, funciona como uma espécie de lupa que amplifica todas as tensões latentes na economia durante décadas.

“Não me surpreende que a hiperglobalização esteja vindo abaixo. Faz anos que digo que não é sustentável. A grande pergunta agora é se criaremos uma globalização mais saudável e inclusiva ou avançaremos para o unilateralismo de Trump, com políticas insensatas que não beneficiam nem ao país que as promove nem aos seus sócios”, diz ao EL PAÍS, por videoconferência, esse professor que é presença habitual nos bolões de aposta do Nobel. Para ele, tanto Trump quanto Jair Bolsonaro são líderes populistas que se gabam de ter todas as respostas, algo que esta crise contribuiu para desmentir. “Não me surpreende que autocratas como Bolsonaro, Trump ou até certo ponto Boris Johnson estejam respondendo pior à crise do coronavírus”, diz (leia mais no quadro abaixo).

Foi sua primeira entrevista desde que foi anunciado como ganhador do prêmio que —se a pandemia não impedir— receberá em 16 de outubro em Oviedo, no norte da Espanha.

Pergunta. As tensões entre a China e os EUA e os problemas na OMC já deixavam antever o declínio da globalização. Mas a pandemia foi o terremoto definitivo. Trata-se de uma sacudida temporária ou deixará rastros mais profundos?

Resposta. Os sinais de que a globalização se desfazia eram evidentes antes de Trump. Mas sua chegada à Casa Branca exacerbou essas tensões. Não voltaremos à era de hiperglobalização dos anos 2000. Haverá mais regionalização no comércio e um uso muito mais ativo de políticas públicas, como a industrialização. E mais tensões em áreas tecnológicas, onde as nações tratarão de construir muros em torno de seus sistemas de inovação. Mas não estamos falando do desmoronamento do comércio global. Não voltaremos para os anos 1930 do século passado.

P. Não estamos então perante o ocaso da globalização.

R. A hiperglobalização era um estado mental. Vamos nos afastando dessa ideia de que cada país devia se adaptar à economia internacional. E devemos entender que é justamente o contrário: que a economia internacional deve servir aos objetivos de cada país.

P. Que parte desta mudança pode ser atribuída a esta crise?

R. Nos EUA, esta crise tornou ainda mais evidente o nível de desigualdade e a falta de um seguro de saúde e a falta de um seguro de saúde para muitas pessoas. No mundo, mostra as incompatibilidades do sistema chinês com os da Europa e EUA. Mostra que devemos criar um novo modus vivendi. A pandemia funciona como uma lupa que amplifica as tensões econômicas já existentes.

P. Que lições devemos extrair desta crise?

R. Ela nos ensina como nossas prioridades estiveram equivocadas nas últimas quatro décadas. Quanto trabalhamos para ter mais globalização econômica, como investimos pouco em assegurar os bens necessários para a saúde pública. Se tivéssemos dado a mesma importância à Organização Mundial da Saúde que à OCDE ou ao FMI, teríamos nos saído melhor. A crise é um aviso de que a melhor globalização seria a que se construísse em torno de bens públicos, como evitar a mudança climática ou lidar com as pandemias no âmbito da saúde pública. E não ter dedicado tanto interesse a assuntos como liberalizar o comércio ou os fluxos internacionais de capital.

P. É também um chamado de atenção a seus colegas, aos quais você critica pela obsessão com os modelos matemáticos?

R. Não acredito que o problema seja usar a matemática, que é apenas uma forma de garantir que não nos enganamos. Mas ela é um problema se fizer que deixemos de nos fazer as perguntas fundamentais. Um bom efeito da crise é que empurra os economistas a nos fazermos essas perguntas importantes. Vemos isso na quantidade de pesquisa acadêmica que está sendo publicada. Acredito que os economistas estejam respondendo ao desafio.

P. Você falou da boa saúde do Estado-nação. Ele sairá fortalecido desta crise? Está de volta? Ou será que na realidade, apesar do declínio tantas vezes prognosticado, nunca foi embora?

R. Sim, a decadência do Estado-nação ocorreu mais em nossa imaginação que na realidade. Quando havia uma crise, quem estava lá? Os Governos nacionais. Mas agora é muito mais evidente. Chama a atenção o papel da política industrial, que parecia ter desaparecido. Os países na verdade se ocupavam dela, mas era algo do que não se falava. E agora tanto nos EUA como na EU estas políticas voltam com muito força. Porque é preciso competir com a China, mas também porque é preciso assegurar a produção para cobrir, por exemplo, as necessidades sanitárias. É uma mudança muito importante na narrativa.

P. Você foi muito crítico com a gestão europeia da crise anterior. Mas o Banco Central Europeu, a Comissão Européia e os Governos nacionais agiram agora com mais rapidez e decisão. Vemos finalmente uma resposta comum à crise?

R. É certo que desta vez foi mais rápida e efetiva, em parte graças à experiência da crise anterior. O fundo de recuperação proposto pela Comissão Europeia é um passo importante. E parece que a ideia de mutualizar a dívida se infiltra na UE. Resta ver se será um primeiro passo em um processo que leve a uma união fiscal e política ou uma resposta única a esta crise. Mas que a França e Alemanha tenham chegado a um acordo e que a Alemanha tenha aceitado o fundo é ótimo sinal. Isso não aconteceu há 12 anos.

P. Isto o deixa mais otimista com o futuro do euro?

R. Honestamente, não sei. A Europa deve escolher entre uma união fiscal e política real, ou recuar em sua integração. Essa é a opção em longo prazo. A única forma de superar feridas como o Brexit é criar uma comunidade política transnacional, onde as pessoas se sintam representadas. É um caminho longo, mas será preciso decidir se se deseja trilhá-lo. Se não, temo que o Brexit será o primeiro passo em um processo de desintegração econômica. Se não se avançar por esse caminho, a união não poderá se manter em sua forma atual.

P. Ao falar de seu famoso trilema, segundo o qual os países têm que escolher dois destes elementos: democracia, hiperglobalização e soberania nacional, você diz que em nenhum lugar isso é tão verdadeiro como a Europa. A qual destas pernas a Europa poderia renunciar?

R. Sempre fui a favor da integração política na Europa. Mas estou consciente de que esse caminho é mais difícil depois das decisões tomadas na crise do euro. Em lugar de ser abordada como uma oportunidade para construir instituições melhores, uns puseram a culpa nos outros, numa história de esforçados trabalhadores alemães frente a gregos indolentes e endividados. Isso inflamou as tensões nacionais e deu força aos populistas. A reposta a essa crise fez que a integração política agora seja mais difícil. O fundo de 750 bilhões [de euros; 4,37 trilhões de reais] tem como mudar isso? Tenho alguma esperança de que haverá a solidariedade de que a Europa necessita para avançar na integração política. Anima-me que a Alemanha tenha aderido. Estou mais otimista, mas ainda há muitas dúvidas.

P. A desindustrialização afeta a países como a Espanha, que assiste ao fechamento de importantes fábricas. E a crise atual agravará esse processo. Que respostas os Governos podem dar?

R. É muito difícil aumentar o emprego na indústria. Talvez seja impossível. Os empregos de qualidade que queremos não virão da indústria, e sim dos serviços. Para um país como a Espanha, virá do turismo, das finanças, da educação, da saúde… Será preciso pôr em marcha regulações que permitam ao mesmo tempo aumentar a produtividade e o emprego de qualidade.

 

“O liberalismo enfraqueceu nossa rede de salvação˜: Entrevista com Richard Senett.

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coronavírus atrapalhou os planos deste incansável defensor do Estado de bem-estar social. Neste ano, o confinamento e as restrições para voar retiveram Richard Sennett (Chicago, 1943) em Londres, onde vive metade do ano com sua esposa, a também socióloga Saskia Sassen, e leciona na London School of Economics.

A entrevista é de Carmen Pérez-Lanzac, publicada por El País, 13-06-2020.

O renomado sociólogo não passará a primavera setentrional (de setembro a dezembro) em Nova York, onde fica mais perto do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), no qual também leciona. No dia desta entrevista, 27 de abril, Sennett estava ansioso para retomar seu trabalho nas Nações Unidas, onde colabora no desenvolvimento de estratégias para que as cidades enfrentem a crise climática. A ONU reabriu após permanecer várias semanas fechada devido à pandemia. O autor de Construir e Habitar: Ética para uma Cidade Aberta (Record, 2018) está impressionado: seus vizinhos londrinos se organizaram e trazem alimentos para ele e sua esposa, assim como para outros moradores de seu edifício. Essa gentileza lhe deu esperança.

Eis a entrevista.

Nesta crise, o que aprenderemos de útil para as futuras transformações que a mudança climática trará?

Que uma das coisas nas quais temos de nos concentrar, em relação à vida nas cidades, é o quanto poderemos viver adensados. Para questões climáticas, a densidade não é algo ruim. É importante que as pessoas vivam de forma mais compacta, usem o transporte público e não ande cada uma isolada em seu carro. Mas a densidade também pode ser uma ameaça. Por isso, a questão é desenvolver formas para que nossas cidades sejam tanto verdes como saudáveis. Esse é o desafio ao qual eu e meus colegas na ONU estamos nos dedicando agora.

E como as cidades mudarão?

A melhor proposta que ouvi para as cidades ricas é de Anne Hidalgo, a prefeita de Paris: criar nós de concentração, o que ela chama de “cidades de 15 minutos”. Nelas, as pessoas podem chegar de bicicleta ou andando em 15 minutos a um centro que não necessite de transporte público, que pode chegar a ser muito perigoso em casos como o que vivemos atualmente. É uma mudança enorme. Em cidades como Paris, significa reconstruir totalmente a urbe. Seria algo mais parecido com Londres, que é uma espécie de acúmulo de muitas cidades entre as quais você pode se deslocar a pé.

E as cidades que não são ricas?

Infelizmente, no sul essa não é uma opção viável. As pessoas vivem em subúrbios ou favelas a horas de distância de onde trabalham. Imaginar que pudessem chegar andando é apenas uma fantasia. A única forma pela qual poderiam conseguir isso seria através do controle estatal de toda a indústria e da descentralização de toda a produção. Economicamente, seria muito complicado. No grupo da ONU em que estou trabalhando estamos imaginando opções para São Paulo. Existem maneiras de, pelo menos, criar redes de comunicação para que as pessoas saibam o que acontece no resto da cidade e possam reagir. Imaginemos que um bairro estivesse muito afetado pela covid-19 ou semelhante. Pelo menos o resto poderia se proteger não passando por esse bairro. Não é uma grande opção, mas há tão pouco dinheiro na maioria das cidades dos países em desenvolvimento que a situação é completamente diferente. A não ser que haja uma mudança maciça na economia e no poder estatal, é mais uma estratégia de adaptação.

E sobre o sistema econômico, que lições aprenderemos?

O liberalismo, como força econômica, enfraqueceu nossa rede de salvação, aquela que nos ajuda em caso de crise. Ele transformou o Estado de bem-estar em algo que não funciona. O Estado está nos ensinando a fazer máscaras porque não pode nos prover delas! Em meu edifício, criamos novas formas de comunicação entre os moradores porque não temos outra maneira de fazer isso através de nenhum órgão público. Nós mesmos tivemos de criar as conexões. O Estado estará fraco demais para enfrentar a mudança climática. Caso houvesse escassez de água, não seria algo que os capitalistas resolveriam. Teremos de mudar a economia e decidir como supriremos a ausência do Estado.

Que diferenças vê entre as duas crises, a provocada pela pandemia e a que está sendo gerada pela mudança climática?

A grande diferença entre a crise que vivemos atualmente e a mudança climática é que a crise atual é abrupta e acentuada. Para tentar frear a pandemia, você pode confinar a população, fazer exames… O problema com a mudança climática é que é algo muito lento, seus efeitos não são dramáticos. A questão do aumento da temperatura no planeta e particularmente nas cidades é algo que vai acontecendo ano após ano. Em uma década, não haverá um momento em que digamos: “Ah, temos um problema” ―ele estará sendo gerado. Devemos começar a nos preparar para algo que vai ocorrer daqui a 20 anos, e custa fazer isso.

O que acredita que, na esteira desta crise, deveríamos fazer para manter um equilíbrio entre nossa segurança e nossa liberdade?

Não podemos ter as duas coisas. Qualquer atividade é um risco. E isso nos leva a tomar decisões concretas em função de quanto risco estivermos dispostos a assumir. Sempre há opções na vida. Você pode anular todo o risco adotando o modelo autoritário, o modelo chinês, mas não queremos viver dessa forma. Filosoficamente, já escrevi muito sobre este assunto. A insegurança é um assunto no qual todos os adultos devem pensar. Em que aspectos você se sente inseguro, e como. No caso da pandemia, não estou preocupado com minha própria morte, mas gostaria que houvesse o máximo de segurança para meus netos, proteção para a família. A liberdade é sempre um risco. Em minha opinião, a melhor maneira de lidar com isso é através do Estado de bem-estar social.

 

 

Ministério da Educação só propôs ações minúsculas na crise da Covid-19, por Priscila Cruz

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Ministro não se engaja por soluções, desrespeita instituições e faz declarações racistas

Priscila Cruz – Folha de São Paulo – 13/06/2020

Encontro no “Livro do Desassossego”, de Fernando Pessoa, uma síntese da dissonância que estamos vivendo: “Uns governam o mundo, outros são o mundo”.

O aumento do isolamento ético, programático e de propósito de autoridades públicas —notem que não é mais possível falarmos em lideranças públicas— em relação à população; o abandono do interesse público em benefício de um projeto de poder, não de país; o populismo do ódio, da negação e da desconstrução, ao invés da formulação de soluções, trabalho duro e busca por resultados.

Alguns políticos nos vêm à cabeça. Entretanto, tratarei aqui dos efeitos desse modo de governar no Ministério da Educação e o que deve ser feito. Nota importante de partida: os efeitos da pandemia são gigantescos. A inação do MEC não pode ser perdoada.

Comecemos com o que deveria ter sido feito pelo governo federal e não foi, tendo como premissa a redução dos efeitos devastadores na segurança alimentar, na aprendizagem e no aumento das desigualdades entre os alunos da educação básica.

Falar do que não foi feito não é pisotear o passado. É fazer um retrato em preto e branco dos últimos 90 dias. Enxergar o escuro nos dá a dimensão do que precisa ser feito se quisermos reconstruir o país a partir do investimento nas pessoas, o que se mostra, pela história de diversos países, ser a melhor estratégia para o desenvolvimento social e econômico duradouros.

Pois bem, em uma República Federativa, com divisão de responsabilidades intrincadas, a primeira ação deveria ter sido a formação de um gabinete tripartite —União, Estados e Municípios— para a definição de respostas imediatas à crise e monitoramento da situação, formulação de soluções e coordenação de esforços de implementação.

Muito poderia ter sido feito, iniciando com a segurança alimentar dos estudantes e apresentação ao Legislativo de medida provisória que autorizasse estados e municípios a usar os recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) de acordo com as condições locais.

No campo da aprendizagem, o gabinete tripartite de gestão federativa poderia ter identificado estratégias para o ensino remoto mais eficazes com base em evidências, ter promovido a troca ágil de melhores experiências nacionais e ter realizado o levantamento da extensão e das experiências de ensino remoto.

Sobre a conectividade, poderia ter buscado junto ao setor privado parcerias e apoio para garantir a ampliação da conexão à internet a estudantes e a redes de ensino.

O MEC poderia, ainda, em articulação com estados e municípios e com o melhor interesse do avanço do ensino público brasileiro, ter se empenhado junto com o Congresso Nacional na aprovação do novo Fundeb e na tramitação da lei que institui o Sistema Nacional de Educação, fundamentais para a acelerar a recuperação da educação e garantir que, no futuro, o sistema esteja melhor preparado para enfrentar crises.

Em vez de engajamento para encontrar soluções, assistimos à distopia espetaculosa de um ministro em ataques a governadores e prefeitos, declarações racistas e desrespeito às instituições —o que parece uma tática para esconder a inoperância escancarada da sua gestão.

Não bastassem as falas desencontradas sobre a realização do Enem, nada empáticas com os alunos, o que produziu foram medidas sem a menor chance de prosperar, como a MP 979, que pretendia lhe dar exclusividade na indicação dos reitores das universidades e institutos federais durante a pandemia; e ações minúsculas frente ao impacto que o um ministério poderia ter, como a série de vídeos Tempo de Aprender.

 

Felizmente temos uma comunidade mobilizada pela educação no país, de educadores, organizações da sociedade civil, gestores estaduais e municipais e gestores escolares, sem esquecer o protagonismo do Conselho Nacional de Educação na formulação das diretrizes de ensino remoto em vista da suspensão das aulas presenciais.

Infelizmente, porém, são esforços insuficientes. Muito terá que ser feito para recuperar impactos desse período e para isso precisamos de competência, coordenação e articulação.

Com uma atuação pífia antes da pandemia e agora escancaradamente desastrosa, a manutenção do atual ministro no cargo não tem razão que não seja satisfazer outros interesses. Se isso ocorrer, entrará para a história como um grave episódio de lesa-humanidade, lesa-brasileiros.

Priscila Cruz é cofundadora e presidente-executiva do Todos Pela Educação, é mestre em administração pública pela Harvard Kennedy School of Government

 

 

Informar mais pobres de maneira incompreensível freia o desenvolvimento, diz Nobel de Economia

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Michael Kremer, professor de Harvard, diz que crise do coronavírus pode servir como empurrão para uso mais intenso de tecnologias simples

Érica Fraga – Folha de São Paulo – 13/06/2020.

A informação transmitida de forma incompreensível para os mais pobres pode ser uma barreira maior ao desenvolvimento econômico do que a falta de tecnologia ou de interesse dos governantes.

Essas são algumas conclusões que o economista norte-americano Michael Kremer, professor da Universidade Harvard, tira de seu trabalho dedicado à avaliação de políticas públicas, que lhe rendeu o Prêmio Nobel de Economia ao lado de Esther Duflo e Abhijit Banerjee, em 2019.

Os três foram reconhecidos por mostrar que experimentos semelhantes aos testes da eficácia de remédios na medicina poderiam ser usados para mensurar o impacto de soluções para problemas como dificuldades de aprendizagem.

Nos últimos anos, Kremer tem focado o desenvolvimento de mecanismos desse tipo para aumentar a eficiência de pequenos produtores rurais em países da África e da Ásia.

Assim como um estudo antigo do economista mostrou que livros didáticos são pouco úteis para alunos pobres se eles não entenderem seu conteúdo, suas pesquisas recentes indicam que muitos agricultores não compreendem a linguagem técnica de orientações oferecidas por governos.

“Houve um caso em que forneciam orientação com base no pH [nível de acidez] do solo. Bem, os agricultores podem não saber o que é pH e, certamente, não sabem qual é o pH do seu solo”, disse Kremer em entrevista à Folha.

Em parceria com o Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA), o economista trará, agora, para a América Latina ferramentas que testou em nações como Quênia e Índia.

Na semana passada, ele participou de uma agenda intensa de reuniões com representantes do IICA e de um debate online com Manuel Otero, presidente da instituição.

Nesses encontros, ressaltou que a crise do coronavírus pode servir como empurrão para o uso mais intenso de tecnologias simples, via celulares, na comunicação com pequenos produtores.

O vencedor do Nobel também está envolvido em uma iniciativa que busca convencer governos e empresas a investir pesadamente na busca por uma vacina contra a Covid-19 assim como em fábricas para a sua produção.

“Esse é um investimento que países de renda média também deveriam estar fazendo”, afirmou o Prêmio
Nobel de Economia.

Quais são os principais fatores que freiam o aumento da produtividade de pequenos agricultores em países pobres e em desenvolvimento?

Muito da pobreza no mundo está concentrada em áreas rurais. Há muitos fatores que impactam a renda na agricultura, como acesso à terra, educação limitada, mas também a informação.

Nesse contexto em que a tecnologia agrícola está mudando, seja pelo surgimento de novos meios de produção, novas pragas e mudanças climáticas, os fazendeiros precisam de acesso à informação e às melhores recomendações científicas.

Tradicionalmente, essa informação é fornecida por agentes de instituições oficiais de extensão [formação] rural, que visitam os fazendeiros pessoalmente. Esse é um canal muito importante, mas muito caro.

A maior parte dos fazendeiros tem telefones pelos quais conseguem pegar informações sobre as mais recentes evidências científicas, formatadas sob medida para os desafios particulares que afetam suas regiões, as sementes que estão usando, as condições meteorológicas, a época da safra.

Os celulares são uma ótima ferramenta para alcançá-los neste momento em que a Covid-19 nos dá um empurrão extra para usarmos as tecnologias disponíveis para interagir remotamente.

A linguagem da ciência é normalmente complicada, e, no meio rural, principalmente o mais pobre, há uma barreira educacional. Como resolver isso?


Temos feito muitos trabalhos em países da África oriental, como Quênia, Etiópia e Ruanda, e, com outros colegas, na Índia e no Paquistão. Há abordagens que incluem mensagens de texto, dependentes do nível de alfabetização, mas outras que incluem mensagens de voz.

É possível ter sistemas pelos quais os fazendeiros recebem mensagens de voz e podem até escolher previamente os tópicos que lhes interessam ou preocupam, a língua que preferem.

Temos evidências científicas, com outros pesquisadores, dos ganhos enormes em termos de custo e benefício que eles podem ter com as tecnologias existentes.

Na conversa com Manuel Otero, o sr. disse que o trabalho dos economistas é buscar evidências e que caberia à ciência política responder sobre como governos reagem a elas. Os economistas não deveriam se preocupar com essa questão do convencimento dos governos também?


Inicialmente, em minha carreira, acho que fui um pouco cínico demais sobre governos, o que pode soar estranho, porque, normalmente, as pessoas começam idealistas, aí deparam com a realidade nos governos e se tornam cínicas.

Mas, nesse caso da agricultura, descobrimos, muito consistentemente, que os governos normalmente são responsivos às evidências.

Bem, para ser um pouco cínico, acho que os governos têm interesse em agradar aos fazendeiros porque há muitos votos nas áreas agrícolas. Mas, se há algo barato, eles se interessam. Se é caro, talvez não.

Mensagens de celular são baratas. E acho que as pessoas nos ministérios da Agricultura realmente se importam, querem transmitir os conteúdos adequados. Mas os funcionários dessas áreas escrevem mensagens muito técnicas, que os fazendeiros têm dificuldade de entender.

Como vocês têm ajudado nisso?

Realizamos muitos grupos focais com os agricultores para descobrir que mensagens eles entendem. Muitos governos tinham dados que nos ajudaram também. Fomos testando ideias para descobrir o que funcionava.

Na Índia, o governo estava prestes a iniciar um programa de larga escala para distribuir informações para os agricultores sobre a qualidade do solo. Fizemos entrevistas com eles e descobrimos que não
entendiam esse conteúdo.

Estavam apresentando muita informação de forma complicada, mencionando unidades que os agricultores não conheciam. Então, trabalhamos com o governo para criar mensagens de telefone muito simples e isso aumentou dramaticamente a compreensão.

Não houve nenhuma resistência da parte do governo, uma vez que eles viram as evidências. Mas tenho certeza de que há outros temas em que é diferente, quando há muitos interesses financeiros envolvidos, corrupção ou algo mais.

Em um estudo antigo, o sr. descobriu que livros didáticos melhoravam o desempenho apenas dos melhores alunos. Pode haver um problema comum, de comunicação incompreensível, atrapalhando áreas diversas como educação e agricultura?

Sim. No trabalho muito inicial com o qual estive envolvido, descobrimos que o livro didático que o Ministério da Educação estava produzindo em escolas muito pobres, no Quênia, ajudava os alunos que já estavam entre os melhores, mas não os estudantes típicos.

Com o tempo, outros pesquisadores mostraram que não é que os alunos não conseguem aprender, mas que você precisa desenvolver materiais baseados no que já sabem. A partir daí, eles conseguirão alcançar os conteúdos mais avançados e progredir na aprendizagem.

Acho que, de fato, há uma analogia com a agricultura. Houve um caso em que o serviço de informação telefônica fornecia orientação sobre o que o agricultor deveria fazer com base no pH do solo. Bem, os agricultores podem não saber o que é pH e, certamente, não sabem qual é o pH do seu solo. Mas, se você desenvolver uma mensagem compreensível, ela terá mais impacto.

No Brasil, pequenos agricultores têm dificuldade em compatibilizar sua produção com o mercado consumidor. Mensagens de texto podem ajudar nisso?

No Quênia, uma empresa grande de açúcar deveria fornecer fertilizantes e sementes aos agricultores. Mas algumas vezes atrasava ou não fazia a entrega por problemas internos de administração. Então, criaram uma linha telefônica cujo objetivo não era enviar conteúdo aos agricultores, mas coletar informações deles. Isso levou a uma queda dramática nas falhas de entregas.

Há um estudo muito interessante de Robert Jensen que olhou o mercado de peixes. Com telefones celulares, os pescadores, ainda no mar, passaram a poder ligar para os mercados e descobrir os preços. Isso permitiu que ganhassem mais dinheiro e beneficiou também os consumidores. Haverá ganhos ainda maiores quando estivermos não só fornecendo informações mas indo além e as integrando, por exemplo, às cadeias de oferta.

Qual é sua expectativa em relação ao trabalho que fará na América Latina?

Já trabalhei na Colômbia, avaliando um programa educacional que fornecia recursos para crianças de áreas pobres irem para a escola secundária. Descobrimos resultados muito bons.

Já fui a conferências no Brasil, que é um país maravilhoso, mas não trabalhei ainda aí.

Minha impressão é que os governos têm dados muito bons na América Latina. Além disso, por serem países com renda média, e não baixa, mais recursos estão disponíveis, há economistas e especialistas em agricultura muito bons, que podem implementar as ferramentas adequadas.

O sr. está envolvido em discussões sobre a busca pela vacina contra o novo coronavírus. Como tem sido isso?

Obviamente, esse é um assunto-chave para o Brasil e para o mundo. Muitas vidas
estão sendo perdidas, e as perdas econômicas são da ordem de US$ 375 bilhões mensais. Se conseguirmos uma vacina semanas ou meses mais cedo, economizaremos bilhões de dólares.

Isso significa que vale a pena investir um montante enorme de recursos para tentar descobrir uma vacina e mesmo para instalar uma fábrica para sua produção antes de termos os resultados dos testes.

Claro que há o risco de você fazer a fábrica, o resultado da vacina não ser efetivo e parte do investimento ser perdida, mas o custo desse risco é muito pequeno relativo ao custo de não ter uma vacina.

Estou particularmente preocupado com a situação dos países de renda média. Em países como os Estados Unidos, já há parcerias com empresas farmacêuticas grandes para a produção. Os países de renda muito baixa, representados pela Gavi (entidade de disseminação de vacinas), levantaram recursos para isso também, pelo menos para a fase inicial.

Esse é um investimento que países de renda média também deveriam estar fazendo.

 

Perigo são patógenos originados dos animais silvestres, diz Jared Diamond

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Biogeógrafo afirma ter cautela ao comparar Covid-19 com pandemias do passado

Reinaldo José Lopes – Folha de São Paulo – 13/06/2020

Autor do best-seller “Armas, Germes e Aço”, uma das análises mais importantes sobre o impacto das doenças infecciosas sobre a história humana, o biogeógrafo americano Jared Diamond, 82, diz que é preciso cautela ao comparar a Covid-19 com outras pandemias do passado.

Além de ser menos letal do que o sarampo e a varíola, que dizimaram boa parte da população indígena do Novo Mundo logo após o contato com os europeus, o novo coronavírus representa também uma fase relativamente recente da história das moléstias emergentes, afirma Diamond.

As doenças infecciosas mais importantes do passado costumavam vir de animais domésticos, enquanto o maior perigo atual são os patógenos vindos de espécies silvestres, por meio do contato gerado pela devastação ambiental e pelo tráfico de animais.

Diamond, que conta ter perdido cinco amigos próximos por causa da Covid-19, afirma ter esperanças de que a doença mostre como a cooperação internacional é imprescindível para enfrentar os grandes desafios globais, em especial a mudança climática.

Muita gente tem comparado o impacto do novo coronavírus ao efeito das doenças infecciosas europeias sobre os povos indígenas na Era dos Descobrimentos. Até que ponto o sr. acha que a analogia é válida?

Por um lado, é verdade que, assim como o mundo inteiro hoje no caso do coronavírus, os povos do
Novo Mundo não tinham defesas naturais contra as doenças trazidas pelos europeus.

Já os habitantes da Europa, por causa de milênios de exposição a esses patógenos, tinham certo nível de imunidade genética a tais doenças, por efeito da seleção natural, e principalmente a imunidade adquirida a elas ao longo da vida. Ou seja, eles também podiam ficar doentes e morrer de sarampo ou varíola, mas alguns já estavam imunes por terem tido essas doenças antes e sobrevivido, e outros sofriam sintomas mais leves, ao contrário dos indígenas.

Por outro lado, a analogia não é muito precisa por dois motivos. A Covid-19 só se espalhou com tanta velocidade graças às viagens de avião de hoje, enquanto em 1500 as doenças dependiam de viagens marítimas ou terrestres lentas para se propagar. E, claro, não há como comparar a letalidade relativamente modesta do corona, de cerca de 1%, com a das doenças da Era dos Descobrimentos. Só o sarampo matou entre 20% e 30% dos indígenas das Américas.

Mas a letalidade de 1% depende do uso de medicina moderna, certo? Sem a tecnologia atual, ela não seria muito maior?

Alguns dados sugerem que na verdade ela não seria muito maior em épocas pré-modernas. A Covid-19 atingiu duramente a população da reserva indígena dos navajos [sudoeste dos EUA], onde não há infraestrutura médica e, em muitos casos, nem água encanada. A mortalidade é alta, mas nem chega perto da causada pelo sarampo na época colonial [de cerca de 6.000 infectados do povo navajo, 300 morreram até agora, uma letalidade de 5%].

O aparecimento de doenças como a gripe aviária, a Sars e agora a Covid-19 na China têm levado o público a enxergar o território como a grande fonte de novas pandemias ao longo da história. Essa impressão é justificável?

Não. Historicamente, a China não desempenhou um papel especial no surgimento de pandemias. Trata-se de algo que surgiu nos últimos 30 anos ou, no máximo, 50 anos. As principais doenças infecciosas do Velho Mundo, como o sarampo, a varíola e a tuberculose, apareceram nos mais variados lugares da Eurásia, e não há razão para acreditar que a China tenha desempenhado um papel na sua origem.

A África Subsaariana provavelmente é a fonte da malária, enquanto a dengue surgiu na Ásia tropical. A China parece ter sido importante na origem da peste bubônica e da gripe, mas durante a maior parte do tempo essas doenças não tiveram impacto significativo no Novo Mundo.

O Velho Mundo como um todo produziu a grande maioria das doenças infecciosas por dois motivos importantes: a presença de animais domésticos de grandes portes como bovinos e suínos, que não existiam nas Américas e foram a principal fonte dessas moléstias; e o fato de que os grandes símios [como chimpanzés e gorilas] e os demais macacos do Velho Mundo são geneticamente muito mais próximos do ser humano do que os macacos do Novo Mundo. Com isso, era mais fácil que as doenças dos primatas do Velho Mundo infectassem também as pessoas.

O que explica a importância da China nos últimos 30 anos é o fato de que a maioria das doenças de animais domésticos que podem nos infectar já saltaram para a população humana faz tempo, de modo que só as vindas de espécies selvagens podem se tornar novas pandemias.

A China se consolidou como mercado importante para animais silvestres vivos e também para produtos derivados deles para a medicina tradicional, o que aumenta o risco. Um fenômeno parecido envolvendo o consumo de carne de caça explica o surgimento de vírus como o HIV, o Ebola e o Marburg na África.

A intensificação da pecuária industrial também não aumenta esse tipo de risco? 

É verdade que a criação de animais em escala industrial aumenta o risco de novas doenças. Empacotar porcos e bois num espaço exíguo aumenta a transmissibilidade de doenças, e novas cepas de gripe muitas vezes vêm de suínos, mas a probabilidade de que algum patógeno fundamentalmente novo venha desses animais é pequena.
Se um visitante maligno do espaço sideral, um ser de seis pernas da galáxia de Andrômeda, resolvesse criar um plano para causar mal à humanidade, ele provavelmente pensaria: “Vou convencer esses terráqueos a criar mercados cheios de animais selvagens”.

O sr. buscou compreender as causas do fim de civilizações em “Colapso”. Há algo na pandemia atual que revele fragilidades da civilização do século 21? 

Acho que podemos dizer que ela é frágil em um aspecto: o que a Covid-19 está fazendo é ameaçar o futuro do comércio internacional. E o paradoxo é que, para ser franco, a taxa de letalidade da doença é baixa, mesmo quando comparada a outras pandemias recentes. A letalidade da Aids foi alta durante muito tempo, mas com efeito no longo prazo. O Ebola e o Marburg matam 50% ou mais dos infectados, mas sua transmissibilidade é baixa, o que impediu o pior. O coronavírus, apesar de efeitos normalmente modestos sobre a saúde individual, afeta a estrutura das conexões internacionais: contatos sociais e tecnologia do transporte moderno baseado em caminhões, ferrovias, aviões.

Em muitos países, parece ter havido um aumento da confiança da população na ciência por causa da pandemia. O sr. concorda que se trata de um sinal positivo?

É claro que é difícil falar de um lado positivo dessa pandemia. Eu e minha mulher perdemos cinco de nossos amigos próximos por causa da Covid-19, tem sido terrível. Mas é um sinal de esperança, sem dúvida. Com exceção do atual governo federal dos EUA, que é anticientífico, ignorante e estúpido, trata-se de um efeito positivo.

Mas o mais importante seria a compreensão sobre como precisamos lidar com problemas em escala global. Não adianta cada país controlar apenas a sua situação interna: se a Mongólia, digamos, continuar com a transmissão do vírus, o mundo inteiro pode acabar sofrendo de novo.

As vacinas vão vir, muito provavelmente, mas o mundo ainda vai ter de lidar coletivamente com os desafios muito maiores da mudança climática e da perda de recursos naturais. Minha esperança é que a Covid-19 ajude as pessoas a reconhecer isso.

E as coisas estão conectadas, certo? A destruição ambiental está diretamente ligada ao surgimento de patógenos. 

Sim, as pandemias recentes mostraram que o contato próximo entre seres humanos e animais selvagens, que é resultado da exploração desenfreada de ambientes naturais, é muito perigoso.

O sr. está escrevendo um novo livro?

Sim, como eu sempre digo, enquanto estou respirando e com o coração batendo, estou escrevendo (risos). Mas prefiro contar qual é o tema numa próxima ocasião.

RAIO-X

Jared Diamond, 82, Biogeógrafo, é professor da Universidade da Califórnia em Los Angeles e escritor; estuda a interface entre teoria da evolução e história da humanidade; é autor de “Armas, Germes e Aço” (1997, ganhador do prêmio Pulitzer) e “Colapso” (2005), entre outros