‘Bairros precisam ser mais do que loteamentos, devem ser reinventados’

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Crises tendem a acelerar decisões que em tempos normais demorariam anos ou décadas, como a retomada da vizinhança como referência para as atividades diárias, afirma professor

Pablo Pereira – Estado de São Paulo, 14/06/2020

Jeferson Tavares, professor no Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP (IAU-USP)

O momento atual, na visão do professor Jeferson Tavares, da USP, é uma oportunidade de pensar em uma sociedade mais solidária, que incentive a retomada de políticas públicas voltadas ao combate de desigualdades. Ele também acredita na reconstrução da identidade cidadão-cidade, perdida em bairros sem qualidade urbanística. “Quantos bairros conhecemos que não passam de um aglomerado de casas?”, questiona. “Nesses lugares, o cidadão perdeu a identidade com a cidade, e essa identidade precisa ser reconstruída pela base social”.

O professor também defende, para um futuro próximo, sistemas de cidades baseados na cooperação. “Em vez de espaços isolados, podemos construir cidades que cooperem entre si e por isso sejam mais eficazes no combate dos conflitos comuns”.

Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista:

As cidades mudarão a maneira como funcionam? Ou a vida seguirá no mesmo modelo?

Para entender a difusão do vírus da covid-19 é necessário entender o processo de urbanização do nosso território. No Estado de São Paulo, temos evidências de que o vírus se propagou seguindo a rota das principais rodovias e se difundiu a partir das cidades mais centrais. Ao longo de todo o século 20, o Estado estruturou-se por eixos e polos, e são esses elementos da urbanização que estão na base da interiorização da pandemia. As primeiras e principais cidades atingidas ou são cidades-sede das regiões metropolitanas ou sedes das regiões administrativas, indicando que, mais importante que o adensamento, é a conexão desses polos com outras cidades que tem acentuado a disseminação na escala regional. Ou seja, numa pandemia, compreender o território é elemento central para a prevenção e o combate da doença. É difícil prever exatamente quais mudanças ocorrerão no meio urbano, mas entendo que é uma oportunidade de pensar uma sociedade mais solidária, a começar por romper as barreiras históricas da desigualdade do desenvolvimento territorial que levou à precariedade habitacional e urbana, à vulnerabilidade social e ambiental, e à falta de condições mínimas de moradia. É possível traçarmos um quadro das prioridades e a principal delas, certamente, é retomar políticas públicas que combatam essas desigualdades e respeitem as diversidades regionais.

Como o trabalho, o lazer e a movimentação das pessoas nas cidades vão mudar daqui para a frente?

Crises tendem a acelerar decisões que em tempos normais demorariam anos ou décadas para serem tomadas. Desde o urbanismo racionalista de fins do século 19, a divisão monofuncional instalou-se como regra nas cidades e o lugar de trabalho tornou-se distinto do lugar de morar. As críticas a esse modelo são conhecidas há mais de 50 anos e hoje a mudança parece iminente, mas sem alternativas concretas. Haja vista a improvisação do ambiente doméstico para as atividades profissionais. Por outro lado, um indício importante é a retomada da vizinhança como referência para as atividades diárias. Os deslocamentos mais curtos, a valorização das opções do bairro e a integração social comunitária convergem como possibilidades a serem exploradas. Nesse aspecto, os bairros precisam ser mais que loteamentos, precisam ser reinventados. Quantos bairros conhecemos que não passam de um aglomerado de casas sem nenhuma qualidade urbanística? Nesses lugares, o cidadão perdeu a identidade com a cidade. E essa identidade precisa ser reconstruída pela base social.

São Paulo tem cerca de 8 milhões de usuários por dia no sistema público de transportes. Existe a possibilidade de mudanças no transporte urbano?

O transporte urbano é essencial para a qualidade de vida nas cidades. Se hoje é lugar de aglomerações é porque sua frota e/ou sistema não atendem à demanda. É preciso investimento e planejamento, porque ele interage com a estruturação urbana e sua qualidade e eficiência ajudam a tornar a cidade mais justa ao garantir acesso as infraestruturas urbanas, aos serviços públicos e às ofertas de emprego. É necessário integrar os meios de transportes ativos (caminhadas e bicicleta, por exemplo) aos motorizados e transformar as estações em marcos urbanos, pois em sua maioria – e principalmente nas periferias pobres – essas estações representam um lugar de cruzamentos de fluxos de pessoas e produtos sem representar sua importância para a vida contemporânea.

Durante anos, os urbanistas trabalharam para aumentar a densidade populacional nas cidades para reduzir custos e promover convivência baseada na proximidade das pessoas. O que vai acontecer agora? É possível um caminho no sentido contrário?

As economias de aglomeração como estratégias de ordenamento territorial ajudaram a produzir a cidade do século 20 que conhecemos. Mas estamos vivendo uma tendência à dispersão do tecido urbano com a profusão de condomínios residenciais, industriais e de serviços em áreas rurais, fora da mancha urbana e ao longo de rodovias. Essa dispersão força uma diminuição das densidades populacionais, rompe a dicotomia campo-cidade e centro-periferia, mas não representa uma solução adequada porque esse modelo tem intensificado a segregação social, a dependência do automóvel como principal meio de locomoção e a ocupação de áreas verdes cuja função ambiental é suprimida. Estamos vivendo um dilema entre cidades compactas e cidades dispersas que ofusca a essência do debate: é possível um novo modelo de desenvolvimento urbano?

O senhor acha que haverá uma mudança nas diretrizes, por exemplo, com mudanças sanitárias na infraestrutura de coleta de lixo nas ruas e nas residências?

Sem dúvida. Numa crise sanitária, o saneamento é central, sobretudo nos assentamentos precários. A falta de água potável atinge cerca de 40 milhões de pessoas. O déficit habitacional chega a 6,5 milhões de moradias. Some-se a isso as áreas de risco em encostas ou sobre córregos que são agravadas pelo descarte inadequado de lixo. Nas regiões metropolitanas, a desigualdade social acentua esses problemas nos bairros mais pobres. As soluções devem ser integradas aos projetos de urbanização e são urgentes. Atender à demanda é o mínimo a ser feito, mas dar segurança e qualidade de vida deve ser o principal objetivo.

Um dos setores mais afetados pela pandemia nas grandes aglomerações urbanas de hoje é o comércio, principalmente lojas de rua e empresas locais, como restaurantes e bares. O senhor acredita que isso voltará a ser como antes?

Desde os anos 1980, no Brasil, temos acompanhado o esvaziamento da rua pelo argumento da violência e a emergência de formas alternativas de serviços que quase sempre partem da precarização do trabalho informal. Fato é que a origem da cidade é a aproximação, a reunião e o encontro. Na vida urbana, não podemos abandonar a defesa do uso do espaço público. Ruas, praças, parques e calçadões são os lugares que concretizam a esfera pública do convívio. Ao contrário do que se pensa, valorizá-los é uma estratégia para manter a saúde física e mental dos cidadãos. E a vida econômica urbana está ligada a eles.

Existem pensadores que já planejam cidades com áreas independentes, o que facilitaria qualquer necessidade futura de isolamento em caso de futuras epidemias. O senhor acredita que é possível que tenhamos cidades policêntricas em vez das grandes cidades de hoje no futuro?

A descentralização de serviços e a constituição de uma estrutura policêntrica faz parte das políticas mais progressistas de desenvolvimento urbano e estão no centro da democratização da cidade. Portanto, não necessariamente significa independência, mas melhor redistribuição de estruturas de bem-estar social aproximando-as de seus usuários. Numa escala ainda mais ampla, pesquisadores têm estudado o fenômeno da cidade-região como uma nova forma de compreender a realidade urbana. A análise desse fenômeno no contexto brasileiro leva-nos a sistemas de cidades que estejam baseados na cooperação. Ou seja, em vez de espaços isolados, podemos construir cidades que cooperem entre si e por isso sejam mais eficazes no combate dos conflitos comuns.

Quais seriam as mudanças imediatas em metrópoles gigantes de hoje, como São Paulo, Rio, NY, Tóquio, Londres, Paris?

Vivemos num momento de cidades globais, megacidades e megalópolis como paradigmas atuais do urbanismo mundial. Mas a desigualdade, a precariedade e a segregação social nas grandes cidades brasileiras tornam nossa realidade diferente dos casos estrangeiros. Para combater esses problemas, sintetizo três urgências: formar novas instituições de planejamento a partir de uma visão territorial, sistêmica e interescalar; reconhecer que a dinâmica das cidades não está submetida às divisas municipais e, portanto, as principais soluções exigem um diálogo de cooperação interfederativa; e incorporar as águas urbanas nas diferentes escalas do planejamento. Precisamos tensionar os paradigmas de onde as decisões são tomadas para constituir cidades com mais urbanidade. Advogo pela cidade como artefato inacabado cuja perenidade está vinculada à dignidade do trabalho humano que o construiu.

 

The Economist: Jair Bolsonaro ameaça a democracia?

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Desde que assumiu o governo, em janeiro do ano passado, muitos brasileiros temem o risco que ele representa

The Economist, O Estado de S.Paulo 

13 de junho de 2020

Em muitos fins de semana desde que a covid-19 chegou ao Brasil, os apoiadores do presidente Jair Bolsonaro realizam manifestações em Brasília e São Paulo, para demandar a reabertura da economia, parcialmente submetida a um lockdown, o fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso e o retorno do regime militar dos anos 1964/1985. Alguns estão armados. Em Brasília, Bolsonaro com frequência se junta a eles, distribuindo abraços e apertos de mão e desafiando as regras de saúde estabelecidas. Nem ele e nem as pessoas usam máscaras no rosto.

Desde que Bolsonaro, antigo capitão do Exército com ideias de direita, assumiu o governo, em janeiro de 2019, muitos brasileiros temem a ameaça que ele representa para a democracia. Alguns argumentam que as instituições do País são fortes o bastante para freá-lo. Na verdade, o presidente lotou o seu governo com oficiais militares. Mas eles são vistos como tendo uma influência moderadora e as manifestações são pequenas.

As tensões aumentaram nas últimas semanas. Bolsonaro se tornou mais ameaçador, ao se dirigir ao Congresso afirmando que “o tempo da vilania acabou, agora é o povo no poder”, e ao Poder Judiciário dizendo “acabou, porra!” Alguns ministros militares, a começar pelo vice-presidente Hamilton Mourão, general aposentado, também fizeram ameaças veladas contra o STF, o Congresso e a mídia.

Em uma mensagem pelo WhatsApp vazada no mês passado, o ministro do STF Celso de Mello escreveu: “temos de resistir contra a destruição da ordem democrática para evitar o que ocorreu na República de Weimar “que foi derrubada por Hitler”. “A democracia brasileira está sob uma grave ameaça”, diz Oscar Vilhena Vieira, diretor da faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV). “O presidente não vem tentando apenas criar um conflito institucional, mas também estimulando grupos violentos”.

Deputado durante 28 anos, Bolsonaro nunca mostrou muito respeito pela democracia. E se tornou mais controvertido por duas razões. Em primeiro lugar, o STF iniciou investigações que o envolvem. Uma delas tem a ver com a destituição do diretor da Polícia Federal para proteger um dos seus filhos contra um processo, afirmam seus críticos.

E a outra se refere a apoiadores (incluindo dois filhos dele) suspeitos de orquestrarem acusações falsas e ameaças contra ministros do STF. A segunda razão é que Bolsonaro mostra pouca capacidade para governar. A pandemia amplificou isto. Sua recusa em apoiar os lockdowns e o distanciamento social contribuíram para agravar a propagação da covid-19, com o País registrando hoje quase 40 mil mortes, o terceiro número mais alto do mundo.

Ele vem perdendo apoio popular embora mantenha uma base de 30% de eleitores. Um sinal da sua fragilidade é que ele cada vez mais depende do Exército. Dez dos seus 22 ministros são militares e outros três mil ocupam cargos no governo. “Na verdade, temos um regime miliar”, disse um oficial aposentado. E isto representa um risco para as forças armadas e para a democracia. Bolsonaro tem exacerbado a divisão interna e a politização do Exército, cuja disciplina e hierarquia vêm se desgastando. Muitos oficiais de escalão inferior apoiam Bolsonaro nas redes sociais. Quatro generais com cargos no governo, dois no serviço ativo, têm mais poder do que o comandante das forças armadas, seu superior.

O Exército também coloca em sério risco a sua reputação. Está hoje à frente do ministério da Saúde (onde por um breve período tentou suspender as publicações de dados completos sobre a covid-19), da coordenação política e proteção do Amazonas. “Eles realmente acreditam que sabem como fazer as coisas”, diz um ex-oficial. Eles poderão aprender da maneira difícil, como durante a ditadura, que não sabem. Bolsonaro não parece forte o bastante para desencadear um golpe. Ele enfrenta oposição de muitos governadores.

Embora o vírus tenha temporariamente incapacitado o Congresso, Oscar Vilhena Vieira observa que o STF tem atuado de uma maneira inusitadamente unida. Entretanto, “a democracia pode desaparecer se você não tiver um homem forte”, alerta Matias Spektor, do Centro de Relações Internacionais da FGV. Se Bolsonaro acabar sofrendo um impeachment, Mourão o sucederá, trazendo o Exército para ainda mais perto do poder.

Uma outra ameaça, observa Spektor, é o esvaziamento das instituições democráticas por Bolsonaro, como também a instigação do conflito. Nomeou um procurador geral mais simpático a ele e tem influência sobre as forças de polícia estaduais, como também sobre a Polícia Federal. Uma batida policial silenciou o governador do Rio de Janeiro, que recentemente começou a criticá-lo. Os democratas brasileiros, seus adversários, começam a reunir uma oposição ao presidente. E estão certos em ficar alarmados.

Laura Carvalho fala sobre curto-circuito na política econômica e discute volta do Estado

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Para economista, valorização do papel do governo como indutor do crescimento não é fato consumado

Eduardo Cucolo – Folha de São Paula – 12/06/2020

Dois anos após o lançamento de “Valsa Brasileira: do boom ao caos econômico”, a economista Laura Carvalho (FEA-USP) lança o livro “Curto-circuito: o vírus e a volta do Estado”, no qual defende a necessidade de se repensar as funções do Estado diante de uma crise que tem exigido gastos públicos em níveis sem precedentes em todo o mundo.

Para a economista, a volta do Estado como indutor do crescimento e garantidor de um ambiente de bem-estar social não é um fato consumado. Ela diz também que o elevado nível de endividamento global, inclusive do Brasil, pode gerar uma reação semelhante àquela vista após a crise de 2008-2009, que foi seguida por uma onda de austeridade fiscal e desmonte de políticas públicas em outros países.

Sobre o título do livro, Laura diz que o curto-circuito se refere também à forma como a crise atual obrigou uma equipe econômica alinhada com esse pensamento a agir em sentido contrário e à dúvida sobre como o bolsonarismo irá se colocar diante da possibilidade de que uma política de austeridade atrase a recuperação econômica do Brasil e abale ainda mais a popularidade do presidente da República.

A senhora estruturou o livro em cima de cinco funções do Estado. A pandemia e a recuperação posterior tendem a fortalecer essas funções e a presença estatal?

São cinco funções que a pandemia contribuiu para revelar e para fazer a gente repensar. De forma alguma eu quero dizer que a volta do Estado seja um fato consumado. Não estou anunciando que o Estado voltou. O que eu tento fazer é repensar os papéis do Estado a partir dessa pandemia, muito mais no sentido de propostas do que de uma previsão ou futurologia.

Dessas cinco funções do Estado, quais a sra. considera mais fundamentais hoje e quais serão mais importantes no período de recuperação pós-pandemia?

As duas igualmente importantes hoje são as funções de Estado protetor e prestador de serviços. Eu trato no livro da questão da proteção, da renda básica universal, que é fundamental diante dessa massa de trabalhadores informais e que vêm perdendo sua renda nesse momento e precisam de alguma renda até para conseguir evitar o contágio. Na função de prestador de serviço, principalmente considerando a necessidade de recursos para a área de saúde e de uma gestão mais eficiente. Essas duas são as urgentes. Para o pós-pandemia, para uma recuperação mais rápida da economia, eu colocaria a função de investidor em infraestrutura como aquilo que pode contribuir para dinamizar a economia e, ao mesmo tempo, para superar algumas lacunas históricas que ficaram mais aparentes.

Quando se fala em ação do Estado como investidor e empreendedor, vêm à mente os problemas que ocorreram no governo Dilma Rousseff, o que é usado como argumento por muitos economistas para defender que a recuperação precisa ser puxada pelo setor privado.

A função do Estado como empreendedor tem a ver com uma crítica da política industrial que foi implementada no passado, no governo Dilma, e eu busco refletir sobre um novo modelo de política de desenvolvimento que estivesse ligada às demandas da sociedade e não à ideia de proteger algum setor.

O livro tenta partir de questões da história contemporânea para introduzir conceitos da economia, mas também tentar fazer uma análise crítica do passado mirando uma agenda futura. Em todas essas funções aparece um pouco uma crítica à trajetória e papéis que o Estado veio tendo no Brasil nas últimas décadas, ao mesmo tempo mostrando que alguns dos instrumentos foram importantes para que a gente conseguisse reagir agora, mesmo que de forma insuficiente, como o Cadastro Único, a existência do BNDES, mesmo que não tenha sido aproveitado nessa crise, o SUS. Alguns desses instrumentos vinham sendo desmontados.

A senhora faz um diagnóstico de que a economia brasileira vem, desde a saída de recessão em 2016, em um cenário de estagnação porque se tirou do Estado o papel de indutor do crescimento.

Na situação atual, ou a gente dá sorte de ter o resto do mundo puxando nosso crescimento via exportações ou precisa do Estado. Só tem essas duas maneiras de injetar ânimo em uma situação como essa. Essa pandemia criou uma situação ainda mais dramática por ter vindo sobre uma economia que, ao contrário dos países ricos, não vinha em uma trajetória de expansão, não estava com taxa de desemprego baixa, tinha informalidade recorde. Isso fará com essa crise seja ainda mais grave por aqui e o volume de recursos para responder a isso seja muito maior.

A equipe econômica do governo federal defende uma ideologia econômica que você chama no livro de anacrônica e está tendo de lidar com uma demanda por mais Estado neste momento. A pandemia pode trazer mudanças nessa política econômica?

O título do livro, curto circuito, tem dois sentidos. Um sentido é o curto circuito macroeconômico que a pandemia gerou, o diagnóstico de que as características dessa crise são bem diferentes das crises originadas no setor financeiro, de 1929, de 2008.

Mas o título também vale para a ideia, para a maneira como essas demandas de um Estado maior, muito urgentes, se dão em um ambiente de um governo que não tem essas características e não se preparou para isso. As demandas e as necessidades do momento bateram de frente com essa ideologia da equipe econômica.

O bolsonarismo entrou um pouco em curto circuito na medida em que houve uma ruptura drástica, tanto na política fiscal como na política monetária em relação ao que vinha ocorrendo nos últimos anos. A atuação do Banco Central e da política fiscal é anticíclica, ao contrário do que foi nos últimos anos. Isso em um governo que se propunha a fazer o contrário.

A política econômica continuará nesse caminho nos próximos anos?

Neste ano, a gente teve uma ruptura muito clara. O déficit vai a 7% do PIB, a dívida pública tende a subir para mais de 100% do PIB em alguns anos. Há também uma valorização do papel do Estado pela sociedade.

Agora, dizer que está claro que daqui pra frente haverá uma mudança na postura que incorpore a valorização dessas funções, criando uma agenda econômica nova, que reduza desigualdades, isso a gente não tem como afirmar. Pelo contrário, o Ministério da Economia aponta para uma tentativa de utilizar essa dívida maior para acelerar reformas que reduzam o tamanho do Estado, até de forma mais agressiva do que vinha ocorrendo.

Essa é uma das perguntas do livro. Será que o bolsonarismo abrirá mão daquele fundamentalismo de mercado que ajudou a elegê-lo e a conquistar a maior de parte das elites econômicas desde 2018 ou o manterá, com o risco de perder ainda mais apoio, dado que a gente vai ter um quadro econômico mais difícil daqui pra frente?

A senhora defende no seu livro um sistema de renda básica universal. Qual a sua proposta?

Há duas visões de renda básica.  A ideia do [ganhador do Prêmio Nobel Milton] Friedman de um Imposto de Renda negativo. Abaixo de um certo patamar de renda, as pessoas recebem o benefício e acima pagam imposto. E a renda básica universal, a ideia de que todos têm direito a uma renda mínima.

Isso cria a ideia de que vai transferir para pessoas ricas, porque está dando renda para todos, sem exigir que se comprove nada, assim com no SUS, mas você corrige isso na tributação. A Justiça não vem por tornar os serviços ou direitos mais focalizados, vem ao dar a todos esses direitos de forma universal, mas tributar mais os que ganham mais. É isso o que eu defendo como sistema.

O caminho pode ser gradual, mas é possível financiar um sistema de renda básica para todos, o que substitui os programas existentes, que exigem que se comprove renda. Uma parte do custo sai daí, mas outra parte precisa tirar da tributação progressiva, com a redução de deduções do IR para saúde e educação privadas, isenção para lucros e dividendos e até criando alíquotas mais altas para o topo da pirâmide.

RAIO-X

Laura Carvalho, 36, é professora livre-docente do Departamento de Economia da FEA (Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP) e autora de “Valsa Brasileira: do Boom ao Caos Econômico” (Todavia, 2018). Foi colunista da Folha de 2015 a 2019.

O TCU deve desculpas a Dilma, por Nelson Barbosa.

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Tribunal decidiu fazer apenas uma ressalva às contas de 2019, mudando radicalmente de postura em relação ao que fez durante o governo Dilma Rousseff

Nelson Barbosa – Folha de São Paulo – 11/06/2020

O TCU fez uma “ressalva” às contas do primeiro ano de governo Bolsonaro. Segundo informações da imprensa, em 2019, houve pagamento de R$ 1,5 bilhão em benefícios previdenciários sem respaldo na Lei Orçamentária.

Especificamente, diante do forte contingenciamento de gastos no início de 2019, o governo reavaliou para menos a dotação orçamentária do INSS, de modo a evitar cortes maiores em outras áreas. Porém, com o passar do tempo, a despesa do INSS acabou sendo maior do que o inicialmente esperado, e houve pagamento de R$ 1,5 bilhão de benefícios previdenciários sem autorização do Congresso.

A realização de despesa sem previsão orçamentária viola a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), mas o TCU decidiu fazer apenas uma ressalva às contas de 2019, mudando radicalmente de postura em relação ao que fez durante o governo Dilma Rousseff.

Façamos uma pausa para contar até três e refletir se a atitude do TCU caracteriza ou não dois pesos e duas medidas. Um, dois, três… voltou? Pois bem, prefiro considerar a reviravolta no TCU como aprendizado em vez de má fé. Assim como pessoas, as instituições podem melhorar.

Vou ainda mais longe e parabenizo a todos os envolvidos no TCU pela decisão construtiva em relação do governo Bolsonaro. Ainda bem que agora vocês decidiram poupar o presidente, apontar falha técnica e recomendar sua correção, pois com certeza teria sido pior não pagar R$ 1,5 bilhão a quem tinha direito à aposentadoria no final de 2019.

A mudança no TCU é ainda mais bem-vinda quando lembramos que, em 2016, a presidente Dilma Rousseff sofreu impeachment sob acusação de ter irregularmente realocado verbas orçamentárias por decreto, mas sem gastar um centavo acima do aprovado pelo Congresso!

É verdade que o absurdo processo de impeachment foi do Congresso, não do TCU. Porém, também é verdade que, em 2016, vários membros do corpo técnico do TCU foram ao Congresso acusar a presidente de crime fiscal por realocar verbas sem gasto adicional. Um deles chegou a revelar, em ato falho, que ajudou na redação de um pedido de investigação que ele mesmo avaliou! O referido servidor deveria ter sido afastado, mas no Brasil de 2016… um, dois, três.

Voltando aos dias de hoje, presumo que os mesmos integrantes do TCU que acusaram a presidente Dilma de crime em 2016 tenham mudado de opinião diante da ressalva que deram ao “gasto sem orçamento” de R$ 1,5 bilhão por parte de Bolsonaro. Se for isso, que o bom senso seja eterno enquanto dure e mandem uma carta de desculpas à presidente Dilma.

Também torço para que a reviravolta no TCU seja o início do fim da “idolatria da auditoria e controle” em que nos metemos desde 2005, quando começou a politização da justiça pelo processo do mensalão.

Desde então houve muitas notícias falsas, acusações infundadas na primeira página de jornais e revistas, geralmente por procuradores e auditores em busca de fama, quase sempre só contra pessoas de esquerda, mas sem registro bombástico equivalente quando vários acusados foram inocentados.

Combate à corrupção e maior eficiência na alocação de recursos públicos são deveres de qualquer político, independente de ideologia. Por este motivo relembro que os governos do PT aumentaram a transparência da máquina pública e deram mais poder aos órgãos de controle, mesmo sabendo que isto poderia ser temporariamente desvirtuado por falsos heróis contra o próprio PT. Já tivemos “Batman”, “Super-Homem” e até “Messias”, todos com seu séquito de “minions”, mas no final a verdade sempre aparece.

Nelson Barbosa

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

 

EUA e China podem evoluir para oligarquias, diz Branko Milanovic

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Para economista, há risco de capitalismo liberal caminhar em direção a regime plutocrático

Celso Rocha de Barros – Folha de São Paulo- 31/05/2020

[RESUMO] Nesta entrevista, o economista Branko Milanovic comenta as diferenças e similaridades entre os dois modelos de capitalismo, a relação de ambos com a corrupção e a desigualdade e os efeitos da disputa entre EUA e China sobre a América Latina.

O que aconteceu com o capitalismo desde que ele ficou sozinho no mundo, desde que o único outro “game in town”, o comunismo, desmoronou? Branko Milanovic tenta responder a essa questão em seu livro mais recente, “Capitalismo sem Rivais”, sobre o qual conversou com a Folha em entrevista por email. A editora Todavia lança a obra no país na quarta-feira (3).

Economista, especialista em estudos sobre desigualdade, o autor trabalhou no Banco Mundial e hoje é professor da City University de Nova York. Nas últimas duas décadas, Milanović se consagrou como um dos principais nomes no debate mundial sobre desigualdade —mais especificamente, no debate sobre a desigualdade sobre a desigualdade global.

“As frequentes alusões de Bolsonaro favoráveis ao regime militar brasileiro podem levar a acreditar que uma combinação de capitalismo liberal e político talvez não seja mal vista por alguns”, diz Milanović à Folha.

O senhor escreveu recentemente que a pandemia da Covid-19 poderia ser o “momento Sputnik” da China, o ponto em que o país assumiria a liderança em importantes aspectos mundiais. A analogia com a Guerra Fria ainda faz sentido hoje, quando o mundo está muito mais integrado? A analogia com a Guerra Fria não é perfeita porque a China é muito mais integrada à economia global e mais interdependente dos Estados Unidos que a União Soviética era. Em segundo lugar, a disputa ideológica é muito menos aguda.

Mas também não devemos ser prisioneiros da analogia da Guerra Fria, esquecendo outras disputas entre as grandes potências que provocaram duas guerras mundiais e inúmeros outros conflitos. Penso que é cada vez mais evidente que existe um conflito de interesses real entre a China e os Estados Unidos.

Em algum momento deste século, a China, cuja população é quatro vezes maior que a dos EUA, pode alcançar um desenvolvimento tecnológico inigualável, o que a tornaria o poder econômico supremo.

Nos termos do seu livro, a concorrência entre a China e os EUA é, entre outras coisas, uma competição entre dois tipos de capitalismo, um “meritocrático” (o norte-americano) e um “político” (o chinês). Existem países que poderiam passar de um modelo para o outro em um futuro próximo? Isso dependerá, primeiro, da vontade da China de exportar seu modelo e, segundo, de outros países interessados ​​em aceitá-lo. Acredito que, apesar da relutância histórica da China em impor seus arranjos políticos internos a outros, ela será inexoravelmente levada a fazer exatamente isso devido à grande competição de poder com os Estados Unidos. Agora, quanto à atratividade do “modelo chinês”, acho que é o maior entre as elites modernizadoras nacionalistas.

Tais elites desejam modernizar (desenvolver) seu país e, ao mesmo tempo, ficar isoladas do estrito controle popular. Elas podem achar o modelo chinês atraente. Nesse modelo, podem até aceitar eleições e um sistema multipartidário, mas aos partidos alternativos nunca seria permitido chegar ao poder.

A propósito, a China também possui formalmente vários partidos com assentos pré-designados no Congresso Nacional.

Não são poucos os países que possuem hoje esse sistema: Argélia, Angola, Azerbaijão, Belarus, grande parte da Ásia Central, Etiópia, Rússia, Singapura, Tanzânia, Vietnã. Pode-se até incluir a Turquia e a Hungria.

Qual dos dois modelos acredita ser mais dependente do sucesso da globalização econômica? Eu acho que a China precisa da continuação da globalização ainda mais que os Estados Unidos. Em parte porque ainda é tecnologicamente menos avançada (embora isso esteja mudando rapidamente em algumas áreas) e, portanto, pode se beneficiar mais da globalização e da transferência de tecnologia. Mas as elites nos Estados Unidos também precisam da globalização, pois é uma maneira de enriquecer levando a produção da mão de obra doméstica ocidental, de custo mais elevado, para o resto do mundo.

Costuma-se dizer que o capitalismo foi capaz de absorver pontos fortes dos regimes comunistas (Estado de bem-estar etc.), mas o contrário não aconteceu. Você acha que algo semelhante pode decidir a concorrência entre o capitalismo político e o meritocrático? Essa é uma pergunta interessante. Havia na década de 1960 uma corrente (por exemplo, Jan Tinbergen, John Kenneth Galbraith, Andrei Sakharov) afirmando que os dois sistemas convergiriam: os requisitos tecnológicos em ambos são semelhantes e, argumentou-se, os sistemas socialistas teriam que aceitar uma dose maior dos mercados para crescer mais rapidamente, enquanto o capitalismo teria que aceitar direitos sociais e trabalhistas mais amplos. O último ponto ocorreu, mas não o primeiro. Isso mostrou claramente que o capitalismo era mais flexível.

No final de “Capitalismo sem Rivais”, vislumbro uma possibilidade de convergência entre os dois modelos de capitalismo, mas de uma maneira diferente do que se pensava em relação a uma convergência entre socialismo e o capitalismo. Penso que não se pode descartar a possibilidade de o capitalismo liberal caminhar cada vez mais em direção a uma política plutocrática.

Isso é mais óbvio nos Estados Unidos, onde o dinheiro e os ricos desempenham um papel enorme na política. Isso poderia levar à criação de uma elite político-econômica “unificada” que controlaria tanto a economia quanto a política.

Mas algo semelhante também é visível na China, com a diferença de que lá a elite política tende a tomar para si o poder econômico. No final, ambos os sistemas podem evoluir para uma oligarquia, com a diferença de que, nos Estados Unidos, a oligarquia econômica conquistará o poder político, enquanto na China seria o contrário.

O senhor menciona que a corrupção no capitalismo político não pode ser eliminada, mas tem que ser mantida sob controle. Se a China decidir avançar em direção a um sistema menos corrupto, existe alguma maneira de fazer isso gradualmente? O Brasil recentemente teve um choque anticorrupção que levou a uma intensa turbulência política. Penso que devemos considerar a corrupção como uma característica inerente ao capitalismo político, porque ele se baseia na ausência de Estado de Direito e na capacidade de o Estado tomar decisões que não sejam limitadas pelas regras.

O poder irrestrito do Estado em decisões de importância significativa é uma característica fundamental do capitalismo político e a causa principal da corrupção. Portanto, não vejo como alguém poderia manter o capitalismo político e eliminar a corrupção.

Mas, para preservar a estabilidade política, é importante que o Estado não tome muitas dessas decisões políticas e mantenha a corrupção sob controle (isto é, dentro de alguns limites).

O senhor escreveu que a existência da União Soviética forçou o capitalismo ocidental a se tornar mais igualitário. Acha que concorrência entre os modelos de capitalismo pode afetar os níveis de desigualdade nos dois lados? Não tenho certeza disso, porque os dois sistemas são muito desiguais, portanto a concorrência deles não parece jogar na área da igualdade, mas na área do crescimento econômico.

Na literatura sobre transições pós-socialistas, houve a ideia de “sub-reforma”, o risco de países periféricos ficarem presos na terra de ninguém entre comunismo e capitalismo, com “o pior dos dois mundos”. Pode ocorrer o mesmo com os países da América Latina nesta disputa entre o capitalismo meritocrático e político? Isso não é impossível. Podíamos antes ver os países latino-americanos como democracias consolidadas, mas os recentes acontecimentos na Bolívia, Equador, Venezuela, Nicarágua e El Salvador nos fazem pensar se os sistemas híbridos não podem também reaparecer em outros países da América Latina.

As frequentes alusões de Bolsonaro favoráveis ao regime militar brasileiro, combinadas com a ênfase em destacar o crescimento econômico (que, aliás, foi significativo nesse período), podem levar a acreditar que uma combinação de capitalismo liberal e político talvez não seja mal vista por alguns.

 

Pandemia tirou mundo de rota suicida do sistema econômico tradicional, diz Nobel da Paz

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Muhammad Yunus afirma que crise é oportunidade para livrar humanidade de modelo que cria e sustenta pobreza

Folha de SÃO PAULO – 01/06/2020.

O vencedor do Prêmio Nobal da Paz Muhammad Yunnus vê a crise causada pelo coronavírus como uma oportunidade para o mundo redesenhar o sistema econômico tradicional, que, segundo ele, havia colocado a humanidade em uma rota suicida.

“Tínhamos acabado de começar a década da última chance”, disse o economista em entrevista por email.

Segundo Yunus, o aquecimento global atingiu seu último estágio, e o aumento da desigualdade de renda se transformou em uma “bomba-relógio de raiva e desconfiança”.

Nascido em Bangladesh, país pobre da Ásia, Yunus ganhou notoriedade ao criar, em 1976, o Grameen Bank, instituição dedicada a emprestar recursos a pequenos empreendedores de baixa renda.

Por essa iniciativa, recebeu a alcunha de “pai do microcrédito” e foi laureado —ao lado do banco que fundou— com o Nobel da Paz em 2006, pelo seu papel no combate à pobreza.

Depois disso, uma tentativa de entrar para a vida política colocou Yunus em choque com Sheikh Hasina, atual primeira-ministra de Bangladesh. O economista preferiu não comentar o tema na conversa com a Folha.

Afastado do Grameen desde 2011, Yunus, que fará 80 anos em junho, dedica-se a outros empreendimentos, inclusive no Brasil, onde é sócio da Yunus Negócios Sociais.

O economista disse que seu sonho no país é criar um empreendimento social numa zona “desmilitarizada de intenções agressivas” na Amazônia.

Para Yunus, o mundo espera que o Brasil exerça uma maior liderança em assuntos globais.

Recentemente, participou, ao vivo de Bangladesh, do debate “No going back talks”, promovido pela instituição no Brasil para discutir o mundo pós-pandemia. O evento foi acompanhado por 6.000 pessoas, segundo os organizadores.

O sr. escreveu recentemente que a crise do coronavírus é uma oportunidade para que o mundo se reinvente. O que precisa ser reinventado? 

Antes de essa crise começar, a contagem regressiva para o fim da sobrevivência humana neste planeta já havia começado. Tínhamos acabado de começar a década da última chance. O aquecimento global atingira seu último estágio. A concentração de riqueza chegou a um nível tal que tornou o mundo uma bomba-relógio de raiva e desconfiança.

A inteligência artificial ameaçava criar desemprego em massa. Nós estávamos nos aproximando rapidamente da linha final. A pandemia nos salvou de tudo isso, levando o sistema à paralisia. Criou uma tremenda oportunidade para nos distanciarmos da rota suicida dos dias pré-coronavírus e criarmos um novo mundo livre de todos esses perigos.

O que sugiro é a criação de um novo tipo de negócio que contrabalance o antigo. Um modelo que seja exclusivamente dedicado a solucionar os problemas das pessoas e que não gere lucro para seus donos. É o que chamamos de negócio social.

Mas houve desenvolvimentos positivos também nas últimas décadas?

A tecnologia mudou tudo e estará por trás das mudanças do futuro. Mudou os jovens, tornando-os mais independentes e empreendedores. Graças à tecnologia da comunicação, as distâncias desapareceram. A inteligência artificial está mudando os sistemas de saúde dramaticamente.

Mas a tecnologia também desempenha papéis negativos. Tem ajudado a falsidade a competir com a verdade. A inteligência artificial tem ameaçado a própria existência humana neste planeta. Continua a viabilizar a produção de armas de destruição em massa.

No balanço geral, o mundo vinha se tornando pior?

Podemos fazer uma lista impressionante de coisas que conquistamos para o planeta e as pessoas. Evitamos o holocausto nuclear e a Terceira Guerra Mundial. Conquistamos o espaço. A economia global cresceu a um ritmo sem precedentes. Houve conquistas impressionantes na saúde e na educação. A tecnologia transforma o mundo rapidamente. Todas essas conquistas ainda vão longe.

Mas, enquanto nos orgulhamos delas, simultaneamente, temos de reconhecer que empurramos o mundo ao limite de sua sobrevivência. Todas essas conquistas se tornam sem sentido diante de todas as ameaças. Levamos o mundo a um estágio em que nossos adolescentes são obrigados a nos culpar por privá-los da vida deles.

Uma questão que surge naturalmente é: quem nos dá o direito de destruirmos o futuro das nossas futuras gerações? Não temos resposta aceitável.

Não podemos negar que esse feito é nosso. Mas o ponto importante é que podemos desfazer isso e criar um mundo de felicidade perpétua. É uma questão de escolha. Mas não estamos fazendo essa escolha. Por quê? Isso me intriga.

A desigualdade de renda aumentou, mas a pobreza caiu bastante. Isso é positivo? 

Claro que sim. É uma das conquistas mais gloriosas. Não devemos minimizar sua importância. Milhões de pessoas ultrapassaram a linha da pobreza em tempo recorde, mas elas continuam muito próximas dela. Sua vulnerabilidade aparece agora novamente durante a pandemia da Covid-19. De repente, elas voltam para baixo da linha da pobreza.

Esse sobe e desce não pode ser uma solução sustentável. Elas não merecem isso, para começar. São seres humanos tão criativos como todos os outros. A pobreza não foi criada por elas. É o sistema econômico que cria e sustenta a pobreza. A pobreza torna a injustiça da máquina econômica visível. Ela é facilmente visível porque é muito cruel.

Como a crise do coronavírus incentiva a reinvenção da economia?

Esta crise criou uma oportunidade enorme porque derrubou o sistema atual. Quando uma cidade grande é, inesperadamente, atingida por um terremoto e é totalmente destruída, ela cria a oportunidade para reconstrução a partir do zero. Devemos construir uma cidade como a antiga ou desenhá-la de forma totalmente diferente? É exatamente essa pergunta que precisamos nos fazer agora.

A crise do coronavírus cria uma oportunidade, não um incentivo. O incentivo vem da nossa experiência do mundo pré-corona, quando debatíamos quanto tempo o mundo ainda tinha antes de atingir sua linha final. Era o incentivo para mudar drasticamente e escapar do desastre iminente, que se tornava mais forte a cada dia. Mas havia poucas oportunidades. Agora, a crise cria uma megaoportunidade.

O sr. já identificou mudanças positivas na sociedade desde a eclosão dessa crise?

Nosso principal objetivo é redesenhar o motor econômico que nos trouxe a esse ponto. Temos de criar um mundo que garanta zero emissão líquida de carbono, zero concentração de riqueza, zero desemprego.

No processo de redesenho, temos de fazer o seguinte: o novo sistema começa com mudanças conceituais, fazendo todo negócio que visa ao lucro se tornar social e ambientalmente responsável. O lucro a todo custo não será mais permitido. O sistema novo introduzirá o negócio social.

É quase o inverso dos negócios convencionais. Em vez de maximização de lucros, ele trabalha com zero lucro pessoal. É dedicado a solucionar os problemas das pessoas. Esses negócios sociais têm de estar no centro do nosso novo mundo. Diremos aos jovens que eles não são caçadores de empregos, mas criadores de empregos, empreendedores.

O novo sistema redesenhará todo o sistema financeiro, tornando-o, majoritariamente, baseado em negócios sociais, garantindo que todos os serviços financeiros estarão disponíveis aos 50% dos homens e mulheres da parte inferior da pirâmide social.

Todos os desempregados receberão ativos para começar suas empresas. O sistema educacional será redesenhado para preparar os jovens para começar suas vidas como empreendedores.

Como os governos podem ajudar nesse redesenho? 

O papel dos governos é inspirar e mobilizar os indivíduos e envolver os negócios na construção de outros negócios sociais focados em solucionar os problemas das pessoas; ajudar a criar empreendedorismo entre os jovens; dar apoio legal e regulatório. Sua principal responsabilidade será remover barreiras legais e regulatórias para a criação de novas instituições financeiras e novos negócios.

Com base em sua experiência com a Yunus Negócios Sociais no Brasil, quais são as principais barreiras à inovação no país?

Yunus Negócios Sociais no Brasil enfrenta os mesmos problemas que em outros países. Os sistemas financeiros são construídos para propósitos diferentes dos nossos. O sistema legal, institucional, não foi desenhado para atender os 50% da base, aqueles que realmente precisam de acesso a linhas de crédito para suas iniciativas. Mas não desistimos. Sabemos que o futuro está do nosso lado.

Uma de nossas conquistas no Brasil indica isso. Com apoio do escritório Mattos Filho Advogados e sua sócia Marina Procknor, nosso time criou um fundo de investimento inovador que serve exclusivamente a negócios sociais. Sete investimentos já foram feitos, em setores como educação, reflorestamento e construção.

Continuamos a perseguir nosso projeto dos sonhos no Brasil, que visa à criação de uma empresa social brasileira para transformar um pedaço grande da floresta amazônica numa área protegida de incêndios e outros ataques, criando qualidade de vida para as famílias que morem nessa área. Convidamos empresas brasileiras e internacionais a juntarem-se a nós nesse projeto.

Nosso desejo é fazer desse negócio social uma “zona desmilitarizada” em que todos trabalhem juntos por um propósito comum, não importa o quão antagônicas sejam suas ideias fora dela. Todas as armas e intenções agressivas seriam deixadas de fora dessa zona. Precisamos da ajuda de vocês, brasileiros, para identificar uma área apropriada para esse projeto.

Que aspectos positivos vocês destacariam com base na experiência no Brasil?

Brasil se tornou um poder econômico e social, se transformou muito rapidamente. Ganhou respeito global por suas conquistas, se tornou um líder em transformação social. O mundo acompanha os passos do Brasil com enorme interesse. Debates políticos e sociais do Brasil são de grande interesse para o mundo.

Mas eu tenho a impressão de que o Brasil não está muito ciente de sua influência global. Espero que se torne mais envolvido com o resto do mundo e ofereça a liderança que o mundo espera de vocês. Isso beneficiará ambos os lados.

 

“A ‘economia donut’ satisfaz as necessidades de todas as pessoas, mas dentro dos limites do planeta”, Entrevista com Kate Rayworth.

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Para Kate Rayworth (Londres, 1970), a economia deveria ter a forma de um donut, de uma rosquinha. Esboçou uma teoria que rompe com o mercado da forma como é hoje. Propõe deixar de buscar riqueza à custa dos limites ambientais e da justiça social. Sua teoria foi apresentada como um documento de trabalho para Oxfam, em 2012, depois conquistou protagonismo na Assembleia Geral da ONU e foi uma referência para o movimento social Occupy London.

Defende uma transição da que chama economia do século XX para a do século XXI, na qual o PIB, um índice finito, seria substituído por uma rosquinha que relaciona as necessidades humanas com o impacto ambiental da economia na sociedade e na Terra como ente vivo.

A entrevista é de Belén Kayser, publicada por Rebelión, 16-05-2020. A tradução é do Cepat. Publicado no Brasil 20/05/2020.

Nota do Instituto Humanitas Unisinos IHU: Amanhã, quinta-feira, Kate Raworth proferirá a conferência ‘Designing a regenerative and distributive economy‘ promovida por A Economia de Francisco. On-life seminars. Moving towards a post-Covid better World.

Estudou economia, mas não se sente economista. Por quê?

Defino-me como uma economista renegada e me parece razoável. Acredito no conceito grego de economia como a arte de administrar o lar. A Universidade deveria reconhecer que o sistema de produção e distribuição depende da sociedade e do mundo vivo, onde está integrado, e da saúde de ambos. A economia é interdependente da saúde e dos recursos do planeta, são as fontes às quais recorre. Todos os economistas deveriam repensar os indicadores do mundo em que vivemos e questionar como lidamos com os nossos recursos planetários. Isto deveria ser o ponto de partida: a natureza é inerente à economia.

O que quer dizer, quando pede para abandonar a concepção do século passado?

Nos anos 1870, os economistas fizeram uma analogia entre as leis do movimento de Newton e a economia: assim como a gravidade atraía coisas para ela, os preços iriam atrair a economia para o equilíbrio. O problema é que, enquanto a ciência avançou, a economia ficou no século XIX. Se a questão é administrar seu lar, primeiro você precisa entender como funciona. Aprender da psicologia, da neurociência, da sociologia, da antropologia e da ciência terrestre. É preciso colocar à frente o bem-estar humano e planetário e a saúde de ambos. O indicador do crescimento é o PIB, mas deveria ser a prosperidade humana. É preciso traçar que tipo de mentalidade econômica, instituições, políticas e estruturas são necessárias para isso.

Propõe uma nova estrutura em forma de ‘donut’. O que significa?

É um diagrama que almeja condensar o salto do velho para o novo pensamento econômico. O desafio é criar economias locais e globais que levem a todos o espaço seguro e justo do donut [o anel principal, por baixo do qual estão as carências do sistema e, por cima, os excessos]. Em vez de perseguir um PIB cada vez maior, é hora de descobrir como prosperar de forma equilibrada. A economia donut satisfaz as necessidades de todas as pessoas, mas dentro dos limites do planeta. Que tipo de economia do século XXI poderá fazer isto?

Por que é tão importante o meio ambiente em seu sistema?

O bem-estar humano depende da terra viva. Se quisermos ter comida suficiente, precisamos de solos férteis e um clima estável. Se quisermos viver de forma saudável, precisamos de ar limpo e uma camada de ozônio. Nosso bem-estar depende dos sistemas que suportam a vida na Terra. Estes foram mal compreendidos no século passado e deixados à margem da teoria econômica. É hora de colocá-los no centro de nossa visão de bem-estar.

Como sua teoria propõe repartir a riqueza?

É preciso pré-redistribuir as fontes de crescimento e de conhecimento. Por exemplo, auxiliar para que a propriedade seja distribuída, compartilhada, com energias renováveis, e que as comunidades sejam proprietárias. O crescimento das licenças de código aberto é um conhecimento de forma distributiva. Em relação à moradia, apoiar um modelo mais distributivo, por exemplo, mediante cooperativas. A reforma é profunda. Mais que confiar na redistribuição de renda, é preciso pensar em instituições mais distributivas e pensar em como criar uma economia com tecnologia, com desenho.

Em que a gestão centralizada e a distributiva se diferenciam?

Pensemos na energia fóssil: era extraída, refinada e vendida. Isso era uma gestão centralizada nas mãos de uma empresa que possui os direitos de uma exploração e que gere tudo. No caso da energia, a distribuição por desenho seriam as pequenas estações solares de uma casa. No século XX, a propriedade se tornou muito importante, um campo de batalha entre companhias, com suas patentes e a propriedade intelectual. Haviam boicotes para que a inovação não crescesse. Hoje, temos creative commons, licenças de uso coletivas e padrões abertos, outra forma de distribuição por desenho. Em matéria de instituições, é possível aplicar o mesmo modelo e mudaria seu comportamento.

Como deveríamos mudar, então, a forma de fazer negócios?

Perguntando-nos: Por que uma companhia pode explorar os recursos da Terra com a bandeira de conseguir lucros e aumentar as vendas? Por que tem o direito de minar os direitos sociais? O desenho das empresas do século XXI precisa gerar valor social, ambiental e cultural, compartilhar e beneficiar a criação conjunta e a devolver ao planeta do qual dependemos. Então, rapidamente as empresas velhas ficarão realmente velhas, caducas, não terão lugar. Mas, cuidado, há empresas que querem repensar seus modelos e podem ocorrer casos como a da mal chamada economia colaborativa: que sejam negócios de antes, com o disfarce novo.

Você não acredita na economia compartilhada?

As mudanças de modelo, tecnológicas e de uso sempre trarão consigo possibilidades muito distintas, mas a palavra compartilhar implica outras coisas mais humanas e profundas na natureza. Nunca chamaria o Airbnb de economia compartilhada. Isto é microcapitalismo, continua sendo aluguel, não é compartilhar, ainda que o termo esteja tão ampliado. A tecnologia nem sempre defende distribuir de forma igualitária os recursos. A rede, por exemplo, está dominada pelo Facebook, EbayGoogle… bem poucas empresas levam a vantagem das redes em que estão.

A Internet retrocedeu?

A Internet 2.0 se tornou algo muito concentrado, mas nem sempre foi assim. A Internet 1.0 abrigava redes mais autênticas, com mais valor. Estamos nos inícios da Internet 3.0. As pessoas estão começando a reagir, a se rebelar contra tudo, a entender os efeitos negativos dessas redes, dessa Internet. Preocupam-se com a privacidade, os preços dos aluguéis… A Internet terá um valor diferente se formos capazes de criar, de ter outro tipo de redes de colaboração: menores, melhor conectadas entre si e não dominadas pelos grandes da Internet.

Como acontecerá a transição?

Haverá velhos agentes que se transformarão para fazer parte do novo sistema, mas será difícil. Por exemplo, o redesenho concebido pelo donut consiste em que as companhias poderiam começar a vender serviços em vez de produtos: iluminação em vez de lâmpadas.

Que exemplos você conhece que estão neste novo paradigma?

O diretor executivo de Unilever, Paul Polman, está tentando reinventar a companhia, dar a ela um propósito do século XXI, mas segue nas mãos do mercado, negocia na bolsa, continua sendo regido pelo curto prazo. Patagonia é uma empresa que de base possui um sistema distinto, que trabalha para mudar o sistema em que vivemos. Yvon Chouinard (1938, Lewiston) a fundou sobre valores realmente ambientais – é alpinista e ecologista –, é assim na filosofia da marca. Ou Houdini, fundada com base dos limites planetários.

As empresas podem pensar que seu sistema não é possível ser aplicado ao mundo em que vivemos, onde quase tudo é extrativo ou tem obsolescência. Eu falo também em minha teoria da ética. Suponho que não é muito ético fabricar algo que você sabe que irá quebrar.

As pequenas empresas têm maiores possibilidades de se transformar em empresas do século XXI?

É certo que as startups, a priori, têm maiores possibilidades de mudar suas estruturas ou de nascer com um modelo de negócio mais circular, mas quando falo com elas, o que mais repetem é que precisam crescer. É o que mais lhes importa. Nisso está baseado seu modelo. Todas estão competindo no mesmo terreno, ainda que às vezes em mundos paralelos. Você pode centrar seus esforços em ser sustentável e regenerador, mas em última instância depende da estrutura da companhia. Obter o maior retorno e lucros possíveis deve deixar de ser a meta. E a base deve ser a proteção ambiental, não pode ser algo acessório.

Não é partidária de frear os abusos ambientais com impostos. Por quê?

Os impostos, as cotas e os preços escalonados podem contribuir para aliviar a pressão que a humanidade exerce sobre as fontes da Terra, mas são insuficientes. As empresas exercem pressão para atrasar sua execução ou para reduzir os tipos fiscais, obter bonificações… Os Governos cedem porque temem que seu país possa perder competitividade ou que seu partido perca votos. As cotas e impostos que limitam as existências e reduzem os fluxos de poluição pretendem mudar o comportamento de um sistema, mas são alavancas de baixa influência. Quando a indústria é de fabricar, usar e jogar, os incentivos não evitam que os recursos se esgotem. O que se necessita é um paradigma de desenho regenerativo que mude as empresas.

E por onde começamos?

Por exemplo, para retirar do mercado os plásticos de apenas um uso e os produtos com obsolescência, é preciso criar um ecossistema de materiais diferente do que temos e pelas mãos das empresas. Algumas companhias têm em suas fábricas alguns dos engenheiros e desenhistas mais engenhosos e brilhantes, estou certa de que existiriam desenhos mais efetivos, se fosse o seu objetivo. É preciso pensar que todos os materiais, sejam biológicos ou técnicos, sejam metais, fibras que não se decompõem naturalmente, devem ser desenhados para ser reutilizados ou reacondicionados e, em última instância, reciclados.

Olhe, por exemplo, os telefones móveis: em 2010, só foram reutilizados 6%, 9% foram desmontados para reciclar e 85% foi para o lixo. É preciso outro desenho.

O ‘donut’ acabará com a desigualdade?

Das emissões poluentes, 45% partem da demanda de 10% da população. Existe uma enorme diferença no uso que se faz dos recursos planetários. Um dos principais propósitos do donut é criar uma economia regeneradora e reduzir esta brecha. Eliminar os extremos no bem-estar. E uma das razões pelas quais insisto tanto nos limites planetários é a mudança climática. Sei que é um projeto muito audaz para o século XXI, mas é precisamente este o tipo de projeto que devemos abordar, porque não podemos deixar este legado aos que vierem depois e aos filhos destes. E devemos nos sentir orgulhosos de colocá-los como meta.

 

 

Peste Negra reduziu desigualdades mas o coronavírus vai aumentá-las, diz historiador Walter Scheidel

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Professor da Universidade de Stanford, o pesquisador austríaco lança no Brasil livro sobre a história da desigualdade e fala sobre o impacto da covid-19 no mundo

André Cáceres, O Estado de S.Paulo

23 de maio de 2020

Peste, guerra, fome e morte. Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse podem ter significados variados a depender da crença de cada um, mas para o historiador austríaco e professor da Universidade de Stanford Walter Scheidel essas condições significam uma coisa ao longo dos séculos: redução das desigualdades econômicas.

Em seu mais recente livro, Violência e a História da Desigualdade – Da Idade da Pedra ao Século 21 (ed. Zahar), Scheidel defende que o nivelamento das rendas só se deu, em toda a história humana, por meio dessas grandes catástrofes, que ele chama de Quatro Grandes Niveladores — uma dos poucas exceções, de acordo com o pesquisador, foi a América Latina nos anos 2000, que reduziu disparidades por métodos pacíficos e democráticos, mas esse processo não se provou duradouro.

Scheidel utiliza-se de farta documentação histórica para demonstrar como as guerras, epidemias, crises e revoluções foram eventos niveladores. Após a Peste Negra, por exemplo, o contingente de trabalhadores ficou tão reduzido que a mão-de-obra tornou-se valiosa ao ponto de reduzir as injustiças sociais durante vários séculos. Mas esse tipo de nivelamento não deve acontecer, segundo ele, após a atual pandemia de covid-19.

Há alguma perspectiva de que a atual pandemia provocada pelo novo coronavírus traga efeitos similares de redução de desigualdades ao das grandes epidemias do passado?

Estou muito cético quanto a isso por várias razões. O maior motivo é que a atual pandemia será muito menos severa em termos de mortalidade do que as grandes pestes do passado. Mesmo no pior cenário, a mortalidade será muito menor, em termos de porcentagem da população, e deve afetar ainda menos a força de trabalho, porque a maioria das vítimas são pessoas mais velhas. Salários não devem subir como resultado dessa pandemia, porque a mão-de-obra não se tornará escassa. Então esse efeito não deve aparecer desta vez. Há uma grande quantidade de motivos para crer que a pandemia deve aumentar em vez de reduzir a desigualdade, pelo menos a curto prazo, o que já estamos testemunhando. Há certos grupos de pessoas que estão relativamente protegidas, seus empregos estão seguros, eles podem continuar a trabalhar, e outras pessoas que estão muito mais expostas em determinados setores ou perdendo seus empregos. Então o desemprego está mal-distribuído pela população, como resultado disso a disparidade deve aumentar. Você a vê entre crianças e estudantes, alguns capazes de estudar online e outros sem acesso a esses recursos, e isso deve aumentar as injustiças educacionais também. Na crise de 2008, os ricos perderam inicialmente porque o valor de seus investimentos decaiu, mas eles os recuperaram em um período razoavelmente curto de tempo. Já se vê tendências semelhantes nas bolsas de valores, que não estão indo tão mal, então há uma boa chance que, mais uma vez, os ricos se recuperem mais rapidamente que a maioria da população. Isso deve aumentar a desigualdade. Então ainda que haja algum potencial de nivelamento, isso depende de como políticos, legisladores e eleitores responderão a essa crise e seus efeitos. Qualquer tipo de ruptura tem o potencial de balançar as coisas, e um resultado possível disso é que mais pessoas abracem políticas progressistas de redistribuição de renda, oferecendo mais proteção social e acesso à saúde aos trabalhadores ou aumentando impostos para os ricos. Isso é uma possibilidade, e certamente haverá partidos políticos que tentarão converter a crise em uma motivação para esses programas, mas também haverá uma resistência conservadora considerável, e, no longo prazo, dependerá de quem tem a vantagem. Não é algo que será decidido este ano, mas deve se arrastar por vários anos.

O mundo contemporâneo parece estar repleto de guerras, revoluções, crises e epidemias, mas por que não vemos esse efeito acontecer novamente hoje em dia?

Há muitas guerras, revoluções e epidemias hoje, isso é verdade em certa medida, mas se compararmos com grandes rupturas do passado, o que estamos vivendo atualmente no mundo não chega perto da magnitude do que já passamos. Apenas guerras muito grandes, como as mundiais, reduziram as desigualdades na Europa, América ou Ásia. O fato de a América Latina nunca ter passado por nada como as guerras mundiais ajuda a explicar por que sua disparidade ainda é muito alta. Nunca houve rupturas realmente violentas. O mesmo é verdadeiro para revoluções, não temos nenhuma grande revolução desde a maoista e suas derivadas em meados do século 20. Estados não entram mais em colapso. Eles eventualmente caem em certas partes do mundo, como a África Central e o Oriente Médio, mas em nenhum outro lugar, nem mesmo na Venezuela nesse momento, pelo fato de os Estados serem muito mais resilientes do que eles costumavam ser. E essa pandemia é muito menos severa do que a Gripe Espanhola há um século ou as grandes pragas do passado. Então eu acho que depende muito do quão grave e disruptivo um evento de crise é. Tenho pensado muito sobre isso, porque eu falo em meus livros sobre os quatro grandes niveladores, e eu acho que no mundo temos hoje quatro grandes estabilizadores, que previnem deslocamentos mais traumáticos (que poderiam ter um efeito de redução de desigualdade) de ocorrer. Um é que boa parte do mundo é muito mais rica do que era, o que evita colapsos sociais ou guerras civis, muito mais comuns no passado. O segundo são as redes de seguridade social, que, claro, estão desenvolvidas desproporcionalmente em diferentes partes do mundo, mas mesmo no Brasil há algum grau de segurança que não havia antes, e isso é ainda mais evidente em outros países, evitando que a pobreza chegue a níveis que façam as pessoas se radicalizarem. Também há a habilidade de bancos centrais criarem dinheiro para manter a economia girando, o que não era possível na década de 1930, por exemplo, durante a Grande Depressão, o que provocou um resultado muito diferente. E o quarto fator consiste na ciência moderna e na tecnologia, que ajudam a estabilizar a ordem existente, seja o fato de podermos trabalhar remotamente pela internet, o que não poderíamos fazer há dez ou vinte anos, ou o fato de sermos capazes de sequenciar o RNA do vírus em apenas algumas semanas e termos mais de uma centena de medicamentos ou tratamentos em teste pelo mundo. A ciência é hoje tão poderosa que tem o potencial de nos levar para fora dessa crise em relativamente pouco tempo. E se ela o fizer, então a ordem é novamente estabilizada. Então essa é uma resposta bem longa para a questão de por que não há grandes rupturas hoje como havia no passado. Sociedades, economias e tecnologias evoluíram de modo a manter a ordem existente. Quanto maior a estabilidade, mais a disparidade é favorecida, porque há menos pressão por mudanças. É isso que essencialmente vemos desde o fim da guerra fria, cada vez mais, então creio que a perspectiva de qualquer transformação radical por meio de grandes rupturas está ficando cada vez menos provável.

O sr. menciona brevemente a América Latina dos anos 2000 como um caso bastante único de redução de desigualdades sociais sem grandes choques ou rupturas, mas boa parte das conquistas sociais obtidas no início do século foram se perdendo nos últimos anos. O que o caso latino-americano pode nos dizer sobre desigualdade social no século 21?

O caso latino-americano é fascinante, porque, como eu disse, não houve grandes choques na história recente, o que explica que a desigualdade, que é historicamente alta por conta do colonialismo e outros fatores, tenha se mantido elevada durante o século 20, enquanto reduziu em outras partes do mundo. E depois de 2000 vemos muitos países experimentarem uma redução pacífica de injustiças, o que foi muito interessante, porque parece um contraexemplo à minha tese, de que rupturas violentas são necessárias para que isso ocorra. O que houve na América Latina nesse período foi o resultado de uma combinação incomum de circunstâncias favoráveis. Houve alguma recuperação de crises econômicas anteriores, uma forte desregulamentação nos anos 1990, abrindo as economias para o mundo, mais investimento em educação, transformações políticas e a explosão das commodities na China, então as exportações cresceram e beneficiaram determinados setores da população. E todos esses fatores se alinharam na medida certa para reduzir a disparidade, não drasticamente, mas de forma significativa. E não estava claro naquela época se esse processo era sustentável e poderia se manter por muito tempo. E ele não pôde. Primeiro por causa da guinada econômica no início dessa década, e também por conta da reação política de forças conservadores para derrubar os proponentes de mudanças progressistas no Brasil e em outros países. E, é claro, houve locais em que os próprios progressistas se radicalizaram, como na Venezuela e no Equador, e houve reação política contra isso. Então há muitas razões para explicar por que esse processo não pôde ser sustentado pelos últimos anos, e agora a situação é ainda pior, porque a atual crise deve amplificar esses problemas. Eu não tenho esperanças de ver uma nova redução de desigualdades na América Latina em um futuro próximo, graças às consequências da crise do coronavírus.

É possível haver no futuro mecanismos que favoreçam cenários pacíficos de redução de desigualdades?

É possível teoricamente, mas não parece acontecer muito na prática, então seria ao menos muito difícil. Não é que as pessoas nunca reduziram a disparidade por meios pacíficos, não está limitado ao exemplo latino-americano. Tem acontecido em pequenas proporções por todo o mundo. É possível, mas nunca ocorre em grande escala. Então, se o que você estiver procurando é uma redução maciça da desigualdade em um período curto de tempo, você vai precisar de um choque violento. Se você colocar suas esperanças em mudanças políticas pacíficas, a transformação será gradual e mais lenta, e por isso enfrenta um grande risco de ser desarmada por obstáculos como crise econômica, reação política e outros fatores que interferem nesse processo e o tornam muito mais difícil. Dito isso, há sociedades no mundo que são tão injustas hoje que não é preciso muito esforço para reduzir um pouco de sua disparidade. Se você vive na Suécia, não há muito o que se pode fazer, porque a desigualdade já é muito baixa. Mas se você vive no Brasil, na África do Sul ou nos Estados Unidos, há medidas que se pode tomar pacificamente que teriam um efeito real e não seriam terrivelmente radicais ou dramáticas. E a melhor chance que temos é que tais medidas sejam identificadas e implementadas. Certamente temos um modelo no que ocorreu na América Latina nos anos 2000.

Existe um ponto de equilíbrio no nível de desigualdade de um país que, se atingido, impede ela de voltar a crescer a níveis prejudiciais?

Pode ser que o nível de equilíbrio varie entre países. Nem todos os países são iguais. Se você olhar para países nórdicos que são, ou costumavam ser, muito homogêneos em termos de sua população, poderia ter sido mais fácil há 50 anos estabelecer Estados de bem-estar social altamente redistributivos. Se você vive em sociedades como o Brasil, a África do Sul e os EUA, que são muito mais heterogêneos e diversos, onde há legados de racismo e todo tipo de iniquidade estrutural, o ponto de equilíbrio da desigualdade pode simplesmente ser mais elevado. Talvez não seja possível baixá-lo a níveis escandinavos por causa da maneira pela qual a sociedade está estabelecida. Não quer dizer que seja impossível reduzir disparidades, mas talvez seja necessário ajustar as expectativas do que é politicamente ou socialmente viável em cada contexto. Essa é uma ótima questão que ainda não foi estudada o suficiente, porque não basta apontar para a Dinamarca e perguntar por que não somos como eles, isso não ajuda em nada. Deve-se levar em consideração todas as variáveis. Então a pergunta é: “Qual é o nível realista de desigualdade para o Brasil dadas condições que não mudarão do dia para a noite ou em nossos tempos de vida? O que pode ser conquistado nesse contexto?” Certamente haverá algo a ser feito, apenas não na mesma escala de outros países.

 

 

A economia mainstream sobreviverá à pandemia?

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Economistas neoclássicos não estão acostumados a lidar com pessoas

Folha de São Paulo, 20/05/2020

Marília Bassetti Marcato

 Uma das principais lições da pandemia do novo coronavírus é o risco de eleger lideranças que tenham como hábito ignorar as evidências.

Atualmente, sabemos que idosos e pessoas de qualquer idade com sérias condições médicas subjacentes correm risco maior de contrair doença grave por causa da Covid-19. Pessoas com doença pulmonar crônica ou asma de moderada a grave, pessoas com problemas cardíacos, pessoas imunocomprometidas, pessoas que transplantaram órgãos, pessoas de qualquer idade com obesidade grave, pessoas com diabetes, pessoas com insuficiência renal ou doença hepática. Pessoas.

Os economistas neoclássicos não estão acostumados a lidar com pessoas. Historicamente, eles buscaram artificialmente se separar de outros campos de estudo, isentando-se da exigência de testabilidade empírica tão cara às ciências “duras”. Nesse tortuoso caminho, a economia neoclássica parece ter invertido o objetivo da pesquisa científica de descobrir a realidade sob a aparência, assumindo a forma de uma estrutura analítica cada vez mais formalista, axiomática e dedutiva.

Um “indivíduo sem individualidade” costuma assustar àqueles que não possuem treinamento fornecido em graduações de economia. Em pouco tempo, o aspirante a economista entende que é preciso fazer sacríficos para gerar soluções. Assim, não são incomuns análises econômicas que eliminam o tempo e o espaço, sem qualquer referência às evidências empíricas.

O prodigioso reducionismo da economia neoclássica estabeleceu conceitos e aparato técnico fundamentais para expandir a influência da economia para outras ciências sociais. Segundo Ben Fine e Dimitris Milonakis em “From economics imperialism to freakonomics”, essa característica reducionista teria um caráter triplo. Primeiro, o reducionismo do indivíduo constitui o principal elemento analítico (com o coletivo a partir da simples agregação de indivíduos). Segundo, a economia é reduzida às relações de oferta e demanda de mercado. Por fim, a análise econômica seria baseada em princípios sem apego à história.

Se o mundo real é profundamente diferente, este não parece ser um problema. Para os preocupados com o irrealismo das suposições, Milton Friedman deu a palavra de ordem metodológica: “Não se preocupem com as suposições, apenas observem suas consequências”. Pouco importa se todos os empresários buscam ou não maximizar seus lucros, o que importa é que tudo deve ocorrer como se os mesmos se comportassem de tal forma.

Mas o que restará da economia mainstream após a pandemia?

É certo que se ocupar de problemas concretos é uma virtude rara no meio da ciência econômica dominante, uma vez que não é de hoje que a dita ciência triste escolhe tratar de tópicos com menor probabilidade de suscitar questões de importância fundamental. Mas momentos de crise como o atual incitam perguntas fundamentais sobre a relação entre Estado e mercado que parecem desafiar a nossa compreensão.

A pandemia reforça a necessidade de repensar dogmas sobre o funcionamento da economia. Não há como separar a economia da sociedade e é, portanto, falsa a noção de que o arranjo econômico pode ser analisado independentemente dos processos de saúde pública e das interações sociais. Com isso em mente, não é preciso muito para identificar o descaramento dos sociólogos de mercado brasileiros quando comemoram que o pico da doença nas classes altas já passou.

No entanto, persiste a incapacidade da economia mainstream de considerar o funcionamento e a dinâmica dos sistemas econômicos em seus modelos abstratos e com amnésia histórica. Se todos somos keynesianos em momentos de crise, supor que o mercado é uma máquina autorreguladora certamente contém “um elemento de verdade, um elemento de má-fé e também algum engano” (salve, Braudel!).

Mas há uma esperança. Se a arrogância —traço tão comum aos economistas mainstreams— der lugar ao reencontro da ciência econômica com as demais ciências, em especial as sociais, é possível que os cálculos de quanto vale uma vida sejam deixados de lado.

Caso contrário, caberá à desconfiança popular decretar a morte da ciência econômica antes que a ciência econômica mate o povo.​

Marília Bassetti Marcato

Professora do Instituto de Economia da UFRJ

 

 

Deveríamos ajudar os trabalhadores, não matá-los

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 Auxílio-desemprego: uma história de sucesso que não é celebrada

Folha de São Paulo, 19/05/2020 –

Paul Krugman

Até onde sei, a maioria dos epidemiologistas está horrorizada com a corrida dos Estados Unidos para reabrir sua economia, e abandonar boa parte do distanciamento social que ajudou a conter a Covid-19.

Sabemos o que uma reabertura segura requer: um nível de contágio baixo, testes abundantes, e a capacidade de rastrear e isolar rapidamente os contatos de novos casos. Até o momento, não temos qualquer dessas coisas.

É claro que os epidemiologistas podem estar errados. Mas em cada estágio da crise, eles estiveram certos, enquanto as previsões dos políticos e seus asseclas quanto a um fim rápido da pandemia se provaram absolutamente incorretas. E se os especialistas estiverem certos mais uma vez, a abertura prematura pode resultar em centenas de milhares de mortes –e gerar resultados adversos mesmo em termos econômicos, já que uma segunda onda de infecções poderia nos forçar a voltar ao confinamento.

Assim, de onde vem essa pressão pela reabertura?

Parte dela vem dos malucos da direita. Apenas uma pequena minoria de americanos acredita que a liberdade inclui o direito de colocar vidas alheias em risco (e é isso que congregar grandes grupos de pessoas em meio a uma pandemia causa); que usar uma máscara seja antipatriótico, ou efeminado, ou algo assim; que a Covid-19 seja uma trapaça perpetrada pelos progressistas. Mas essa minoria tem imensa influência dentro do Partido Republicano.

Parte da pressão vem da obsessão de Donald Trump com o mercado de ações. Sua recusa inicial a fazer qualquer preparativo para a pandemia aparentemente se devia à preocupação de que reconhecer a ameaça, de qualquer maneira que fosse, “assustaria o mercado”. E a pressão pela reabertura pode refletir uma convicção semelhante de que voltar à vida normal seria bom para o mercado, mesmo que mate muita gente. Vamos morrer pelo índice Dow Jones!

Uma coisa que ouço com frequência é que devemos reabrir pelo bem dos trabalhadores, que precisam voltar a ganhar salários a fim de colocar comida na mesa para suas famílias. Por isso é importante compreender que esse é realmente um péssimo argumento.

Pois os Estados Unidos são perfeitamente capazes de proteger contra dificuldades econômicas severas os trabalhadores que perderam o emprego. Como disse Jerome Powell, o chairman do Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos, em uma entrevista televisada domingo, podemos e devemos adotar políticas que “mantenham os trabalhadores em suas casas, permitam que continuem pagando suas contas e mantenham suas famílias solventes”.

E o que realmente surpreende é que já estamos fazendo boa parte disso. A Lei CARES, o pacote de US$ 2 trilhões em assistência contra a pandemia aprovado no final de março, expandiu substancialmente a elegibilidade para o auxílio-desemprego e a generosidade desse auxílio. E os benefícios expandidos, a despeito de alguns tropeços iniciais, estão cada vez mais fazendo o que necessita ser feito.

É verdade que quando as solicitações de auxílio-desemprego começaram a disparar, em março, os escritórios que distribuem os benefícios – administrados pelos governos estaduais– ficaram sobrecarregados, o que levou muitos americanos que tinham direito a benefícios a não conseguir atendimento. E muitas famílias ainda não estão recebendo a assistência a que teriam direito.

Mesmo assim, um estudo da Brookings Institution indica que em abril o desemprego-desemprego cobriu cerca de metade dos salários perdidos por conta do confinamento –uma estimativa que confirma meus cálculos caseiros.

E esse “índice de substituição” deve quase certamente ter crescido de forma substancial nas últimas semanas. Os escritórios que administram o auxílio-desemprego estão gradualmente eliminando os atrasos acumulados no atendimento dos pedidos, e com isso o auxílio vem chegando a um número cada vez maior de trabalhadores desempregados. Ao mesmo tempo, as provas disponíveis indicam que os mercados de trabalho mais ou menos se estabilizaram, ao menos por enquanto, há cerca de um mês.

Por isso é uma aposta segura que, a esta altura, a maior parte, se bem que não toda, a perda de salários causada pelo distanciamento social esteja sendo compensada pela assistência governamental ampliada.

É uma história de sucesso que não está sendo celebrada; a maior parte da atenção da mídia se concentrou em outras partes da Lei CARES, especialmente o apoio às pequenas empresas, que está uma bagunça.

Mas o auxílio-desemprego, depois de problemas iniciais, está fazendo muito para ajudar os trabalhadores americanos. E o crédito por isso cabe aos democratas, que insistiram em que essa assistência fosse parte do pacote.

Suspeito que o sucesso do auxílio-desemprego ajude a explicar um aspecto chave da situação política com relação à reabertura –ou seja, que o clamor pelo fim das restrições não está vindo dos trabalhadores. As perdas de empregos se concentraram entre os trabalhadores de remuneração mais baixa, mas pesquisas de opinião pública indicam que a demanda por abertura rápida vem principalmente dos republicanos de alta renda.

Ou seja, fizemos um trabalho bem melhor do que a maioria das pessoas percebe em proteger os trabalhadores americanos contra dificuldades no período de confinamento. É claro que não foi um completo sucesso, e as primeiras semanas foram bem complicadas. Mas o fato é que o sofrimento foi bem menor do que se poderia esperar diante de um índice de desemprego real de provavelmente cerca de 20%.

Mas o auxílio-desemprego expandido que está apresentando resultados tão bons deve expirar em 31 de julho. Isso deveria causar medo.

Suponha que os epidemiologistas estejam certos, afinal, e que uma reabertura prematura leve a uma segunda onda de infecções. O que precisaremos nesse caso será de um segundo período de confinamento. Mas todas as indicações são de que os republicanos se opõem a prorrogar o auxílio.

O que eles querem, em lugar disso, são leis que isentem as empresas de responsabilidade legal caso seus empregados adoeçam.

Ou seja, querem forçar os americanos a voltar a trabalhar mesmo que isso os mate.