A nova fase do Neoliberalismo, por Dardot e Laval

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Por Pierre Dardot e Christian Laval, no Viento Sur

Traduzido pelo IHU

Há uma dezena de anos vem se anunciando regularmente o fim do neoliberalismo: a crise financeira mundial de 2008 se apresentou como o último estertor de sua agonia, depois, foi a vez da crise grega na Europa (ao menos até julho de 2015), sem esquecer, é claro, o terremoto causado pela eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, em novembro de 2016, seguido do referendo sobre o Brexit, em março de 2017.

O fato de Grã-Bretanha e Estados Unidos, que foram terras de promissão do neoliberalismo em tempos de Thatcher e Reagan, deixarem parecer que lhe viraram as costas mediante uma reação nacionalista tão repentina, marcou os espíritos em razão do seu alcance simbólico.

Depois, em outubro de 2018, ocorreu a eleição de Jair Bolsonaro, que promete tanto o retorno da ditadura como a aplicação de um programa neoliberal de uma violência e uma amplitude muito parecidas com as dos Chicago Boys de Pinochet.

O neoliberalismo não só sobrevive como sistema de poder, como também se reforça. É preciso compreender esta singular radicalização, o que implica discernir o caráter tanto plástico, como plural do neoliberalismo. Mas, é necessário ir ainda mais longe e perceber o sentido das transformações atuais do neoliberalismo, ou seja, a especificidade do que aqui chamamos o novo neoliberalismo.

A crise como modo de governo

Recordemos de início o que significa o conceito de neoliberalismo, que perde uma grande parte de sua pertinência quando é empregado de forma confusa, como acontece muitas vezes. Não se trata somente de políticas econômicas monetaristas ou de austeridade, de mercantilização das relações sociais ou de ditadura dos mercados financeiros. Trata-se mais fundamentalmente de uma racionalidade política que se tornou mundial e que consiste em impor por parte dos governos, na economia, na sociedade e no próprio Estado, a lógica do capital até a converter na forma das subjetividades e na norma das existências.

Projeto radical e inclusive, caso se queira, revolucionário, o neoliberalismo não se confunde, portanto, com um conservadorismo que se contenta em reproduzir as estruturas desiguais estabelecidas. Através do jogo das relações internacionais de concorrência e dominação e da mediação das grandes organizações de ‘governança mundial’ (FMI, Banco Mundial, União Europeia, etc.), este modo de governo se tornou com o tempo um verdadeiro sistema mundial de poder, comandado pelo imperativo de sua própria manutenção.

O que caracteriza este modo de governo é que se alimenta e se radicaliza por meio de suas próprias crises. O neoliberalismo só se sustenta e se reforça porque governa mediante a crise. Com efeito, desde os anos 1970, o neoliberalismo se nutre das crises econômicas e sociais que gera. Sua resposta é invariável: em vez de questionar a lógica que as provocou, é preciso levar ainda mais longe essa mesma lógica e procurar reforçá-la indefinidamente.

Se a austeridade gera déficit orçamentário, é preciso acrescentar uma dose suplementar. Se a concorrência destrói o tecido industrial ou desertifica regiões, é preciso aguçá-la ainda mais entre as empresas, entre os territórios, entre as cidades. Se os serviços públicos já não cumprem sua missão, é preciso esvaziar esta última de qualquer conteúdo e privar os serviços dos meios que precisam. Se a diminuição de impostos para os ricos ou empresas não dão os resultados esperados, é preciso aprofundar ainda mais nisto, etc.

Este governo mediante a crise só é possível, está claro, porque o neoliberalismo se tornou sistêmico. Toda crise econômica, como a de 2008, é interpretada em termos de sistema e só recebe respostas que compatíveis com o mesmo. A ausência de alternativas não é tão somente a manifestação de um dogmatismo no plano intelectual, mas a expressão de um funcionamento sistêmico, em escala mundial. Para amparar a globalização e/ou reforçar a União Europeia, os Estados impuseram múltiplas regras e imperativos que os levam a reagir no sentido do sistema.

Contudo, o que é mais recente e sem dúvida merece nossa atenção é que agora se nutre das reações negativas que provoca no plano político, que se reforça com a mesma hostilidade política que suscita. Estamos assistindo a uma de suas metamorfoses, e não é a menos perigosa. O neoliberalismo já não precisa de sua imagem liberal ou democrática, como nos bons tempos que é necessário chamar, com razão, de neoliberalismo clássico. Esta imagem inclusive se tornou um obstáculo para sua dominação, coisa que somente é possível porque o governo neoliberal não hesita em instrumentalizar os ressentimentos de um amplo setor da população, falta de identidade nacional e de proteção pelo Estado, dirigindo-os contra bodes expiatórios.

No passado, muitas vezes, o neoliberalismo se associou com a abertura, o progresso, as liberdades individuais, com o Estado de direito. Atualmente, conjuga-se com o fechamento de fronteiras, a construção de muros, o culto à nação e a soberania do Estado, a ofensiva declarada contra os direitos humanos, acusados de colocar em perigo a segurança. Como é possível esta metamorfose do neoliberalismo?

Trumpismo e fascismo

Trump é incontestavelmente um marco na história do neoliberalismo mundial. Esta mutação não afeta apenas os Estados Unidos, mas todos os governos, cada vez mais numerosos, que manifestam tendências nacionalistas, autoritárias e xenófobas até o ponto de assumir a referência ao fascismo, como no caso de Matteo Salvini, ou à ditadura militar, como Bolsonaro.

O fundamental é compreender que estes governos não se opõem em nada ao neoliberalismo como modo de poder. Ao contrário, reduzem os impostos para os mais ricos, cortam os subsídios sociais e aceleram as desregulamentações, particularmente em matéria financeira e ambiental. Estes governos autoritários, dos quais a extrema direita cada vez mais faz parte, assumem na realidade o caráter absolutista e hiperautoritário do neoliberalismo.

Para compreender esta transformação, primeiro convém evitar dois erros. O mais antigo consiste em confundir o neoliberalismo com o ultraliberalismo, o libertarianismo, o retorno a Adam Smith ou o fim do Estado, etc. Como já nos ensinou há muito tempo Michel Foucault, o neoliberalismo é um modo de governo muito ativo, que não tem muito a ver com o Estado mínimo passivo do liberalismo clássico. Deste ponto de vista, a novidade não consiste no grau de intervenção do Estado, nem em seu caráter coercitivo. O novo é que o antidemocratismo inato do neoliberalismo, manifesto em alguns de suas grandes teóricos, como Friedrich Hayek, se plasma hoje em um questionamento político cada vez mais aberto e radical dos princípios e as formas da democracia liberal.

O segundo erro, mais recente, consiste em explicar que estamos diante de um novo fascismo neoliberal, ou então diante de um momento neofascista do neoliberalismo [2]. Que seja ao menos frustrante, se não perigoso politicamente, falar com Chantal Mouffe de um momento populista para apresentar melhor o populismo como um remédio ao neoliberalismo, isto está fora de qualquer dúvida. Que seja necessário desmascarar a impostura de um Emmanuel Macron, que se apresenta como o único recurso contra a democracia iliberal de Viktor Orbán e consortes, isto também é certo. Mas, por acaso, isto justifica que se misture em um mesmo fenômeno político a ascensão das extremas direitas e a deriva autoritária do neoliberalismo?

A assimilação é evidentemente problemática: como identificar se não mediante uma analogia superficial o Estado total tão característico do fascismo e a difusão generalizada do modelo de mercado e da empresa no conjunto da sociedade? No fundo, se esta assimilação permite lançar luz, centrando-nos no fenômeno Trump, sobre certo número de traços do novo neoliberalismo, ao mesmo tempo mascara sua individualidade histórica. A inflação semântica em torno do fascismo, sem dúvida, tem efeitos críticos, mas tende a afogar os fenômenos ao mesmo tempo complexos e singulares em generalizações pouco pertinentes, que por sua vez não podem a não ser dar lugar a um desarme político.

Para Henry Giroux [3], por exemplo, o fascismo neoliberal é uma “formação econômico-política específica”, que mistura ortodoxia econômica, militarismo, desprezo pelas instituições e as leis, supremacismo branco, machismo, ódio aos intelectuais e amoralismo. Giroux toma emprestado do historiador do fascismo, Robert Paxton (2009), a ideia de que o fascismo se apoia em paixões mobilizadoras que voltamos a encontrar no fascismo neoliberal: amor ao chefe, hipernacionalismo, fantasmas racistas, desprezo ao débil, inferior, estrangeiro, desconsideração pelos direitos e a dignidade das pessoas, violência para com os adversários, etc.

Embora encontramos todos estes ingredientes no trumpismo e mais ainda no bolsonarismo brasileiro, por acaso, não nos escapa sua especificidade em relação ao fascismo histórico? Paxton admite que “Trump retoma vários motivos tipicamente fascistas”, mas vê nele sobretudo os traços mais comuns de uma “ditadura plutocrática” [4]. Porque também existem grandes diferenças com o fascismo: não impõe o partido único, nem a proibição de qualquer oposição e de qualquer dissidência, não mobiliza e enquadra as massas em organizações hierárquicas obrigatórias, não estabelece o corporativismo profissional, não pratica liturgias de uma religião laica, não preconiza o ideal do cidadão soldado totalmente consagrado ao Estado total, etc. (Gentile, 2004).

A este respeito, todo paralelismo com o final dos anos 1930, nos Estados Unidos, é enganoso, por mais que Trump tenha feito seu o lema “America first”, nome dado por Charles Lindbergh à organização fundada em outubro de 1940 para promover uma política isolacionista frente ao intervencionismo de Roosevelt. Trump não converte em realidade a ficção escrita por Philip Roth (2005), que imaginou que Lindbergh triunfaria sobre Roosevelt nas eleições presidenciais de 1940. Ocorre que Trump não é para Clinton ou Obama o que Lindbergh foi para Roosevelt e que, neste sentido, qualquer analogia é precária. Se Trump estimula cada vez mais a escalada antiestablishment para agradar sua clientela eleitoral, não trata, no entanto, de suscitar revoltas antissemitas, ao contrário do Lindbergh do romance, inspirado diretamente no exemplo nazista.

Mas, sobretudo, não estamos vivendo um momento polanyiano, como acredita Robert Kuttner (2018), caracterizado pela recuperação do controle dos mercados pelos poderes fascistas frente aos estragos causados pelo não intervencionismo. Em certo sentido, é totalmente o contrário, e o caso é bastante mais paradoxal. Trump pretende ser o campeão da racionalidade empresarial, inclusive em sua maneira de realizar sua política, tanto interior como exterior. Vivemos o momento em que o neoliberalismo segrega a partir do interior uma forma política original que combina autoritarismo antidemocrático, nacionalismo econômico e racionalidade capitalista ampliada.

Uma crise profunda da democracia liberal

Para compreender a mutação atual do neoliberalismo e evitar confundi-la com o seu fim é preciso ter uma concepção dinâmica do mesmo. Três ou quatro decênios de neoliberalização afetaram profundamente a própria sociedade, instalando em todos os aspectos das relações sociais situações de rivalidade, de precariedade, de incerteza, de empobrecimento absoluto e relativo. A generalização da concorrência nas economias, assim como, indiretamente, no trabalho assalariado, nas leis e nas instituições que marcam a atividade econômica, teve efeitos destrutivos na condição das pessoas assalariadas, que se sentiram abandonadas e traídas. As defesas coletivas da sociedade, por sua vez, se fragilizaram. Os sindicatos, em particular, perderam força e legitimidade.

Os coletivos de trabalho se decompuseram, muitas vezes, por efeito de uma gestão empresarial muito individualista. A participação política já não tem sentido diante da ausência de opções alternativas muito diferentes. Por certo, a social-democracia, assentida à racionalidade dominante, está em vias de desaparecimento em um grande número de países.

Em suma, o neoliberalismo gerou o que Gramsci chamou de ‘monstros’ mediante um duplo processo de desfiliação da comunidade política e de adesão a princípios etnoidentitários e autoritários, que colocam em questionamento o funcionamento normal das democracias liberais. O trágico do neoliberalismo é que, em nome da razão suprema do capital, atacou os próprios fundamentos da vida social, do modo como havia sido formulado e imposto na época moderna, através da crítica social e intelectual.

Para dizer isso de maneira um tanto esquemática, a implementação dos princípios mais elementares da democracia liberal comportou rapidamente muito mais concessões às massas do que poderia ser aceito pelo liberalismo clássico. Este é o sentido do que se chamou justiça social ou também democracia social, que não deixou de ser criticada pelos grupos de teóricos neoliberais. Ao querer converter a sociedade em uma ordem da concorrência que só conheceria homens econômicos ou capitais humanos em luta uns contra outros, minaram as próprias bases da vida social e política nas sociedades modernas, especialmente em razão da progressão do ressentimento e da cólera que semelhante mutação não poderia deixar de provocar.

Como se surpreender então com a resposta da massa de perdedores ao estabelecimento desta ordem competitiva? Ao ver se degradar suas condições e desaparecer seus pontos de apoio e de referência coletivos, refugiam-se na abstenção política ou no voto de protesto, que é antes de mais nada um chamado à proteção contra as ameaças que pesam sobre sua vida e seu futuro. Em poucas palavras, o neoliberalismo engendrou uma crise profunda da democracia liberal-social, cuja manifestação mais evidente é a forte ascensão dos regimes autoritários e dos partidos de extrema direita, apoiados por uma ampla parte das classes populares nacionais. Deixamos para trás a época do pós-guerra fria, na qual ainda era possível acreditar na expansão mundial do modelo de democracia de mercado.

Assistimos agora, e de forma acelerada, um processo inverso de saída da democracia ou de desdemocratização, para retomar a justa expressão de Wendy Brown. Os jornalistas gostam de misturar a extrema direita e a esquerda radical no vasto marasmo de um populismo antissistema. Não veem que a canalização e a exploração desta cólera e destes ressentimentos pela extrema direita dão luz a um novo neoliberalismo, ainda mais agressivo, ainda mais militarizado, ainda mais violento, do qual Trump é tanto a bandeira como a caricatura.

O novo neoliberalismo

O que aqui chamamos de novo neoliberalismo é uma versão original da racionalidade neoliberal na medida em que adotou abertamente o paradigma da guerra contra a população, apoiando-se, para se legitimar, na cólera dessa mesma população e invocando, inclusive, uma soberania popular dirigida contra as elites, contra a globalização ou contra a União Europeia, de acordo com os casos.

Em outras palavras, uma variante contemporânea do poder neoliberal fez sua a retórica do soberanismo e adotou um estilo populista para reforçar e radicalizar o domínio do capital sobre a sociedade. No fundo, é como se o neoliberalismo aproveitasse a crise da democracia liberal-social que provocou e não cessa de agravar para impor melhor a lógica do capital sobre a sociedade.

Esta recuperação da cólera e dos ressentimentos requer sem dúvida, para ser realizada efetivamente, o carisma de um líder capaz de encarnar a síntese, outrora improvável, de um nacionalismo econômico, uma liberalização dos mecanismos econômicos e financeiros e uma política sistematicamente pró-empresarial. No entanto, atualmente, todas as formas nacionais do neoliberalismo experimentam uma transformação de conjunto, da qual o trumpismo nos oferece a forma quase pura.

Esta transformação acentua um dos aspectos genéricos do neoliberalismo, seu caráter intrinsecamente estratégico. Porque não esqueçamos que o neoliberalismo não é conservadorismo. É um paradigma governamental cujo princípio é a guerra contra as estruturas arcaicas e as forças retrógradas que resistem à expansão da racionalidade capitalista e, mais amplamente, a luta para impor uma lógica normativa a populações que não a querem.

Para alcançar seus objetivos, este poder emprega todos os meios que lhe são necessários: a propaganda dos meios de comunicação, a legitimação pela ciência econômica, a chantagem e a mentira, o descumprimento das promessas, a corrupção sistêmica das elites, etc. Contudo, uma de suas alavancas preferidas é o recurso às vias da legalidade, leia-se da Constituição, de modo que cada vez mais o marco no qual todos os atores devem se mover se torne irreversível. Uma legalidade que evidentemente é de geometria variável, sempre mais favorável aos interesses das classes ricas que aos do restante.

Não é necessário recorrer ao estilo antigo, aos golpes de Estado militares, para colocar em prática os preceitos da escola de Chicago, se é possível colocar um cadeado no sistema político, como no Brasil, mediante um golpe parlamentar e judicial. Este último permitiu, por exemplo, ao presidente Temer congelar durante 20 anos os gastos sociais (sobretudo em detrimento da saúde pública e da universidade). Na realidade, o brasileiro não é um caso isolado, por mais que lá os recursos da manobra sejam mais visíveis que em outras partes, sobretudo após a vitória de Bolsonaro como ponto de chegada do processo. O fenômeno, para além de suas variações nacionais, é geral: é no interior do marco formal do sistema político representativo que se estabelecem dispositivos antidemocráticos de uma temível eficácia corrosiva.

Um governo de guerra civil

A lógica neoliberal contém em si mesma uma declaração de guerra a todas as forças de resistência às reformas em todas as camadas da sociedade. A linguagem vigente entre os governantes de todos os níveis não engana: a população inteira precisa se sentir mobilizada pela guerra econômica, e as reformas do direito trabalhista e da proteção social são realizadas justamente para favorecer o envolvimento universal nessa guerra. Tanto no plano simbólico como no institucional, ocorre uma mudança a partir do momento em que o princípio de competitividade adquire um caráter quase constitucional.

Posto que estamos em guerra, os princípios da divisão de poderes, dos direitos humanos e da soberania do povo já possuem apenas um valor relativo. Em outras palavras, a democracia liberal-social tende progressivamente a se esvaziar para passar a não ser mais que o revestimento jurídico-político de um governo de guerra. Aqueles que se opõem à neoliberalização se situam fora do espaço público legítimo, são maus patriotas, quando não traidores.

Esta matriz estratégica das transformações econômicas e sociais, muito próxima a um modelo naturalizado de guerra civil, se junta com outra tradição, esta mais genuinamente militar e policial, que declara a segurança nacional a prioridade de todos os objetivos governamentais. A fragilização das liberdades públicas do Estado de direito e a extensão concomitante dos poderes policiais se acentuaram com a guerra contra a criminalidade e a guerra contra a droga dos anos 1970.

Contudo, foi sobretudo após a declaração de guerra mundial contra o terrorismo, imediatamente depois do 11 de setembro de 2001, que se deu o desdobramento de um conjunto de medidas e dispositivos que violam abertamente as regras de proteção das liberdades na democracia liberal, chegando inclusive a incorporar na lei a vigilância massiva da população, a legalização do encarceramento sem julgamento e o uso sistemático da tortura.

Para Bernard E. Harcourt (2018), este modelo de governo, que consiste em “fazer a guerra contra todo cidadão”, procede em linha direta das estratégias militares contrainsurgentes colocadas em prática pelo exército francês na Indochina e na Argélia, transmitidas aos especialistas estadunidenses da luta anticomunista e praticadas por seus aliados, especialmente na América Latina e no sudeste asiático.

Hoje, a “contrarrevolução sem revolução”, como a denomina Harcourt, busca reduzir por todos os meios a um inimigo interior e exterior onipresente, que tem muito mais cara de jihadista, mas que pode adotar muitas outras caras (estudantes, ambientalistas, camponeses, jovens negros nos Estados Unidos ou jovens dos subúrbios na França, e talvez, sobretudo neste momento, migrantes ilegais, preferentemente muçulmanos). E para levar a bom término esta guerra contra o inimigo, convém que o poder, por um lado, militarize a polícia e, por outro, acumule uma massa de informações sobre toda a população com a finalidade de impedir qualquer rebelião possível. Em suma, o terrorismo de Estado se encontra novamente em plena progressão, até mesmo quando a ameaça comunista, que lhe havia servido de justificativa durante a Guerra Fria, desapareceu.

A imbricação destas duas dimensões, a radicalização da estratégia neoliberal e o paradigma militar da guerra contrainsurgente, a partir da mesma matriz de guerra civil, constitui atualmente o principal acelerador da saída da democracia. Este enlace só é possível graças à habilidade com a qual certo número de responsáveis políticos da direita, ainda que também da esquerda, se dedicam a canalizar, mediante um estilo populista, os ressentimentos e o ódio aos inimigos escolhidos, prometendo às massas ordem e proteção em troca de sua adesão à política neoliberal autoritária.

O neoliberalismo de Macron

No entanto, não é exagerado meter todas as formas de neoliberalismo no mesmo saco de um novo neoliberalismo? Existem tensões muito fortes em escala mundial ou europeia entre o que se deve qualificar como tipos nacionais diferentes de neoliberalismo. Sem dúvida, não assimilaríamos Trudeau, Merkel e Macron a Trump, Erdogan, Orbán, Salvini e Bolsonaro.

Alguns ainda permanecem fiéis a uma forma de concorrência comercial supostamente leal, sendo que Trump decidiu mudar as regras da concorrência, transformando esta última em guerra comercial a serviço da grandeza dos Estados Unidos (America is Great Again). Alguns invocam ainda, de palavra, os direitos humanos, a divisão de poderes, a tolerância e a igualdade de direitos das pessoas, quando aos outros tudo isto não é cuidado. Alguns pretendem mostrar uma atitude humana frente aos migrantes (alguns muito hipocritamente), quando outros não têm escrúpulos na hora de rejeitá-los e repatriá-los. Portanto, convém diferenciar o modelo neoliberal.

O macronismo não é trumpismo, ainda que só fosse pelas histórias e as estruturas políticas nacionais em que se inscrevem. Macron se apresentou como o baluarte frente ao populismo de extrema direita de Marine Le Pen, como sua aparente antítese. Aparente, porque Macron e Le Pen, se não são pessoas idênticas, na realidade, são perfeitamente complementares. Um se faz de baluarte, quando a outra aceita vestir os hábitos do espantalho, o que permite ao primeiro se apresentar como garantidor das liberdades e dos valores humanos. Se preciso, como ocorre hoje nos preparativos para as eleições europeias, Macron se dedica a alargar artificialmente a suposta diferença entre os partidários da democracia liberal e a democracia iliberal do estilo de Orbán, para que as pessoas acreditem mais facilmente que a União Europeia se situa como tal do lado da democracia liberal.

No entanto, talvez não se tenha percebido suficientemente o estilo populista de Macron, que pode parecer uma simples máscara por parte de um puro produto da elite política e financeira francesa. A denúncia do velho mundo dos partidos, a rejeição ao sistema, a evocação ritual do povo da França, tudo isto era talvez suficientemente superficial, ou inclusive grotesco, mas não por isso deixou de fazer uso do emprego de um método característico, justamente, do novo neoliberalismo, o da recuperação da cólera contra o sistema neoliberal. Não obstante, o macronismo não tinha o espaço político para tocar esta música durante muito tempo. Logo, revelou-se como o que era e o que fazia.

Em linha com os governos franceses precedentes, mas de maneira mais declarada ou menos vergonhosa, Macron associa ao nome de Europa a violência econômica mais crua e mais cínica contra as pessoas assalariadas, aposentadas, funcionárias e assistidas, assim como a violência policial mais sistemática contra as manifestações de oponentes, como se viu, em particular, na Notre-Dame-des-Landes e contra as pessoas migrantes. Todas as manifestações sindicais ou estudantis, inclusive as mais pacíficas, são reprimidas sistematicamente por uma polícia armada até os dentes, cujas novas manobras e técnicas de força são pensadas para aterrorizar aqueles que se manifestam e intimidar o restante da população.

O caso de Macron está entre os mais interessantes para completar o retrato do novo neoliberalismo. Levando mais longe ainda a identificação do Estado com a empresa privada, até o ponto de pretender fazer da França um start-up nation, não para de centralizar o poder em suas mãos e chega, inclusive, a promover uma mudança constitucional que convalidará a fragilização do Parlamento em nome da eficácia.

A diferença com Sarkozy neste ponto salta à vista. Enquanto este último se agarrava a declarações provocadoras, ao mesmo tempo em que alcançava um estilo relaxado no exercício de sua função, Macron pretende devolver todo o brilho e solenidade à função presidencial. Deste modo, conjuga um despotismo de empresa com a subjugação das instituições da democracia representativa em benefício exclusivo do poder executivo.

Falou-se com razão de bonapartismo para lhe caracterizar, não só pela maneira como tomou o poder, acabando com os velhos partidos governamentais, como também por causa de seu desprezo manifesto a todos os contrapoderes. A novidade que introduziu nesta antiga tradição bonapartista é justamente uma verdadeira governança de empresa. O macronismo é um bonapartismo empresarial.

O aspecto autoritário e vertical de seu modo de governo se encaixa perfeitamente no marco de um novo neoliberalismo mais violento e agressivo, imagem e semelhança da guerra travada contra os inimigos da segurança nacional. Por acaso, uma das medidas mais emblemáticas de Macron não foi a inclusão na lei ordinária, em outubro de 2017, de disposições excepcionais do estado de emergência, declarado após os atentados de novembro de 2015?

A aplicação da lei contra a democracia

Não cabe descartar que se produza no Ocidente um momento polanyiano, ou seja, uma solução verdadeiramente fascista, tanto no centro como na periferia, sobretudo caso seja produzida uma nova crise da amplitude da de 2008. O acesso ao poder pela extrema direita na Itália é um toque de advertência suplementar. Enquanto isso, neste momento que prevalece até nova ordem, estamos assistindo a uma exacerbação do neoliberalismo, que conjuga a maior liberdade do capital com ataques cada vez mais profundos, contra a democracia liberal-social, tanto no âmbito econômico e social, como no terreno judicial e policial. É necessário se contentar em retomar o tópico crítico de que o estado de exceção se tornou a regra?

Ao argumento de origem schmittiano do estado de exceção permanente, retomado por Giorgio Agamben, que supõe uma suspensão pura e simples do Estado de direito, devemos opor os fatos observáveis: o novo governo neoliberal se implanta e cristaliza com a promulgação de medidas de guerra econômica e policial. Dado que as crises sociais, econômicas e políticas são permanentes, corresponde à legislação estabelecer as regras válidas de forma permanente, que permitam aos governos responder a elas a todo momento e inclusive preveni-las.

Deste modo, a crise e urgências permitiram o nascimento do que Harcourt denomina um “novo estado de legalidade”, que legaliza o que até agora não eram mais que medidas de emergência ou respostas conjunturais de política econômica e social. Mais que um estado de exceção que opõe regras e exceções, precisamos vê-las com uma transformação progressiva e muito sutil do Estado de direito, que incorporou em sua legislação a situação de dupla guerra econômica e policial para a qual os governos nos conduziram.

Para dizer a verdade, os governantes não estão totalmente desprovidos para legitimar intelectualmente semelhante transformação. A doutrina neoliberal já havia elaborado o princípio desta concepção do Estado de direito. Assim, Hayek subordinava explicitamente o Estado de direito à lei. Segundo ele, a lei não designa qualquer norma, mas, sim, exclusivamente, o tipo de regras de conduta que são aplicáveis a todas as pessoas por igual, incluídas os personagens públicos. O que caracteriza propriamente a lei é, portanto, a universalidade formal, que exclui qualquer forma de exceção.

Por conseguinte, o verdadeiro Estado de direito é o Estado de direito material (materieller Rechtsstaat), que requer da ação do Estado a submissão a uma norma aplicável a todas as pessoas em virtude de seu caráter formal. Não basta que uma ação do Estado seja autorizada pela legalidade vigente, à margem da classe de normas das quais deriva. Em outras palavras, trata-se de criar não um sistema de exceção, mas, ao contrário, um sistema de normas que proíba a exceção. E dado que a guerra econômica e policial não tem fim e reivindica cada vez mais medidas de coerção, o sistema de leis que legalizam as medidas de guerra econômica e policial precisa se estender por força para além de qualquer limitação.

Dizendo de outra forma, já não há freio ao exercício do poder neoliberal por meio da lei, na mesma medida em que a lei se tornou o instrumento privilegiado da luta do neoliberalismo contra a democracia. O Estado de direito não está sendo abolido de fora, mas destruído por dentro para fazer dele uma arma de guerra contra a população e a serviço dos dominantes.

O projeto de lei de Macron sobre a reforma das aposentadorias é, a este respeito, exemplar: em conformidade com a exigência de universalidade formal, seu princípio é que um euro cotado confere exatamente o mesmo direito a todos, seja qual for sua condição social. Em virtude deste princípio, está proibido, portanto, levar em conta a penúria das condições de trabalho no cálculo do valor da aposentadoria. Nesta questão, também fica evidente a diferença entre Sarkozy e Macron. Enquanto o primeiro fez aprovar uma lei após outra, sem que lhe acompanhassem respectivos decretos de aplicação, o segundo se preocupa muito com a aplicação das leis.

Aí está a diferença entre reformar e transformar, tão cara a Macron: a transformação neoliberal da sociedade requer a continuidade da aplicação no tempo e não pode se contentar com os efeitos do anúncio, sem mais. Além disso, este modo de proceder comporta uma vantagem inestimável: uma vez aprovada uma lei, os governos podem escapar de sua parte de responsabilidade sob pretexto de que se limitam a aplicar a lei.

No fundo, o novo neoliberalismo é a continuação do antigo de maneira pior. O marco normativo global que insere indivíduos e instituições dentro de uma lógica de guerra implacável, reforça-se cada vez mais e acaba progressivamente com a capacidade de resistência, desativando o coletivo. Esta natureza antidemocrática do sistema neoliberal explica em grande parte a espiral sem fim da crise e o aceleramento diante de nossos olhos do processo de desdemocratização, pelo qual a democracia se esvazia de sua substância, sem que se suprima formalmente.

Referências

Gentile, Emilio (2004) Fascismo: historia e interpretación. Madri: Alianza.

Harcourt, Bernard E. (2018) The Counterrevolution, How Our Government Went to War against its Own Citizens. Nova York: Basic Books.

Kuttner, Robert (2018) Can democracy survive Global Capitalism? Nova York/Londres: WW. Norton & Company.

Paxton, Robert O. (2009) Anatomía del fascismo. Madri: Capitán Swing.

Roth, Philip (2005) La conjura contra América. Barcelona: Mondadori.

Notas

  1. Prefácio à tradução em inglês, publicada pela editora Verso, de La pesadilla que no acaba nunca (Gedisa, 2017), obra publicada originalmente por La Découverte, Paris, em 2016.
  2. Éric Fassin, “Le moment néofasciste du néolibéralisme”, Mediapart, 29 de junho de 2018, https://blogs.mediapart.fr/eric-fassin/blog/290618/le-moment-neofasciste-du-neoliberalisme .

3 Henry Giroux, Neoliberal Fascism and the Echoes of History, Neoliberal Fascism and the Echoes of History, 08/09/2018.

4 Robert O. Paxton, “Le régime de Trump est une ploutocratie”, Le Monde, 6 de março de 2017.

Superciclos de Liquidez, por Paulo Gala

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GGN – 20/12/2019

Num cenário onde a leniência do FED vai ampliando o ciclo mundo afora, até que no final venha uma ajuda mais forte e rápida. Fiquemos atentos para a subida e a descida.

Os grandes movimentos de preços de ativos são, no fundo, reflexos de superciclos. Os mais tradicionais são os de liquidez e de commodities. Hoje vivemos um superciclo de expansão de liquidez por conta das respostas à crise de 2008 e um superciclo de aumento de preços de commodities devido à entrada de China e Índia de fato na economia mundial. É claro que a alta das commodities é também turbinada pela liquidez excedente. Uma chave de leitura fácil para entender a segunda metade do século XX e primeira do século XXI é estudar esses ciclos de liquidez. O maravilhoso texto “Capital flows to developing countries in a historical perspective”, de Yilmaz Akyuz, ajuda muito a entender. O autor apresenta quatro grandes ciclos de fluxos de capital para países emergentes medidos em bilhões de dólares e porcentagem do PIB desde o início dos 70. Dá para ver claramente o ciclo dos anos 70, que foi capitaneado por empréstimos para governos desenvolvimentistas na Ásia e América do Sul. A liquidez mundial veio dos déficits externos americanos e da reciclagem dos petrodólares depois de 1974. Foi também uma boa época para preços de commodities, e o endividamento no mundo emergente correu solto. E assim foi até a crise da dívida em 1980. Com medo da inflação, o FED deu uma paulada nos juros no final dos 70 e colocou todo o mundo emergente de joelhos.

A festa voltou com força nos anos 90, depois da digestão dos excessos dos 70. Essa nova festa foi também disparada por um excesso de liquidez decorrente da crise dos Savings and Loan nos EUA e do estouro da bolha japonesa em 1990. Dinheiro farto. E como diz meu amigo, o brilhante economista Gabriel Palma, lá estava de novo a América Latina como tomadora de empréstimos e liquidez de última instância. Nessa a Ásia surfou junto. Quem não se lembra por aqui da primeira metade da década de 90? Foi uma farra. Tudo subindo, todos se endividando. O segundo ciclo de boom e bust começou a terminar em 1997, com a crise asiática. Depois vieram Rússia, Brasil e Argentina. Nesse segundo ciclo, os investimentos diretos estrangeiros tiveram mais importância do que os empréstimos comerciais dos anos 70. Mas foi uma festa bonita de se ver também. Algumas pérolas do período: Puerto Madero, Petronas Towers.

Depois veio o terceiro ciclo. Turbinado pela redução das taxas de juro do Greenspan no rescaldo do estouro da bolha pontocom. Além disso houve a reciclagem dos superávits asiáticos, especialmente China, reinvestindo seus capitais em títulos americanos, jogando as taxas longas ainda mais para baixo. Juros baixos for all (menos aqui no Brasil). Então essa farra da liquidez que já conhecemos ajudou a criar a super-bolha americana. E se espraiou para o mundo emergente. Nessa época, a bolsa brasileira saiu de 10.000 para 70.000 pontos. Foi um belo ciclo. Aliás, nesse período entrou também o atual superciclo de commodities, graças a China e Índia. O ciclo acabou na quebra da Lehman Brothers em 2008. No terremoto seguido de tsunami, que todos nós sofremos. E por que estudar esses ciclos? Como isto tudo nos afeta? Bom, estamos agora entrando no quarto ciclo. Um ciclo de liquidez somado a um ciclo de commodities

E nesse novo superciclo a sincronia é ainda maior. Tudo anda junto agora. Quer ver? Commodities, moedas emergentes e bolsas sobem juntos. É um play de todos contra o dólar. Quando a liquidez vaza, os ativos emergentes sobem. Quando a liquidez volta para os EUA, os emergentes caem. A crise de 2008 foi emblemática. E as bolsas no mundo emergente estão absolutamente correlacionadas com os fluxos de capital. A enxurrada de dólares para esses países causou subidas simétricas. Cenas dos próximos capítulos. Em algum momento o FED vai começar a subir a taxa de juros e adotar estratégias de saída para as políticas de estímulo. O que vai ocorrer? Valorização do dólar, queda de commodities, depreciação de moedas e bolsas emergentes. Pode ser um processo gradual, é claro. Mas pode acontecer também de supetão. Num cenário onde a leniência do FED vai amplificando o ciclo mundo afora, até que no final venha um ajuste mais forte e rápido. Fiquemos atentos para a subida e a descida.

Paulo Gala é graduado em Economia pela FEA/USP. Mestre e Doutor em Economia pela Fundação Getúlio Vargas FGV/EESP de São Paulo, onde é professor desde 2002. 

“Deus não morreu. Ele tornou-se Dinheiro”, entrevista com Giorgio Agamben.

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“O capitalismo é uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro”, afirma Giorgio Agamben, em entrevista concedida a Peppe Salvà e publicada por Ragusa News 16-08-2012.

Giorgio Agamben é um dos maiores filósofos vivos. Amigo de Pasolini e de Heidegger, foi definido pelo Times e pelo Le Monde como uma das dez mais importantes cabeças pensantes do mundo. Pelo segundo ano consecutivo ele transcorreu um longo período de férias em Scicli, na Sicília, Itália, onde concedeu a entrevista.

Segundo ele, “a nova ordem do poder mundial funda-se sobre um modelo de governabilidade que se define como democrática, mas que nada tem a ver com o que este termo significava em Atenas”. Assim, “a tarefa que nos espera consiste em pensar integralmente, de cabo a cabo, aquilo que até agora havíamos definido com a expressão, de resto pouco clara em si mesma, “vida política”, afima Agamben.

A tradução é de Selvino  J. Assmann, professor de Filosofia do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC [e tradutor de três das quatro obras de Agamben publicadas pela Boitempo], para o site do Instituto Humanitas Unisinos.

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O governo Monti invoca a crise e o estado de necessidade, e parece ser a única saída tanto da catástrofe financeira quanto das formas indecentes que o poder havia assumido na Itália. A convocação de Monti era a única saída, ou poderia, pelo contrário, servir de pretexto para impor uma séria limitação às liberdades democráticas?

“Crise” e “economia” atualmente não são usadas como conceitos, mas como palavras de ordem, que servem para impor e para fazer com que se aceitem medidas e restrições que as pessoas não têm motivo algum para aceitar. “Crise” hoje em dia significa simplesmente “você deve obedecer!”. Creio que seja evidente para todos que a chamada “crise” já dura decênios e nada mais é senão o modo normal como funciona o capitalismo em nosso tempo. E se trata de um funcionamento que nada tem de racional.

Para entendermos o que está acontecendo, é preciso tomar ao pé da letra a ideia de Walter Benjamin, segundo o qual o capitalismo é, realmente, uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro.  Deus não morreu, ele se tornou Dinheiro.  O Banco – com os seus cinzentos funcionários e especialistas – assumiu o lugar da Igreja e dos seus padres e, governando o crédito (até mesmo o crédito dos Estados, que docilmente abdicaram de sua soberania), manipula e gere a fé – a escassa, incerta confiança – que o nosso tempo ainda traz consigo. Além disso, o fato de o capitalismo ser hoje uma religião, nada o mostra melhor do que o titulo de um grande jornal nacional (italiano) de alguns dias atrás: “salvar o euro a qualquer preço”. Isso mesmo, “salvar” é um termo religioso, mas o que significa “a qualquer preço”? Até ao preço de “sacrificar” vidas humanas? Só numa perspectiva religiosa (ou melhor, pseudo-religiosa) podem ser feitas afirmações tão evidentemente absurdas e desumanas.

A crise econômica que ameaça levar consigo parte dos Estados europeus pode ser vista como condição de crise de toda a modernidade?

A crise atravessada pela Europa não é apenas um problema econômico, como se gostaria que fosse vista, mas é antes de mais nada uma crise da relação com o passado. O conhecimento do passado é o único caminho de acesso ao presente. É procurando compreender o presente que os seres humanos – pelo menos nós, europeus – são obrigados a interrogar o passado.  Eu disse “nós, europeus”, pois me parece que, se admitirmos que a palavra “Europa” tenha um sentido, ele, como hoje aparece como evidente, não pode ser nem político, nem religioso e menos ainda econômico, mas talvez consista nisso, no fato de que o homem europeu – à diferença, por exemplo, dos asiáticos e dos americanos, para quem a história e o passado têm um significado completamente diferente – pode ter acesso à sua verdade unicamente através de um confronto com o passado, unicamente fazendo as contas com a sua história.

O passado não é, pois, apenas um patrimônio de bens e de tradições, de memórias e de saberes, mas também e sobretudo um componente antropológico essencial do homem europeu, que só pode ter acesso ao presente olhando, de cada vez, para o que ele foi. Daí nasce a relação especial que os países europeus (a Itália, ou melhor, a Sicília, sob este ponto de vista é exemplar) têm com relação às suas cidades, às suas obras de arte, à sua paisagem: não se trata de conservar bens mais ou menos preciosos, entretanto exteriores e disponíveis; trata-se, isso sim, da própria realidade da Europa, da sua indisponível sobrevivência. Neste sentido, ao destruírem, com o cimento, com as autopistas e a Alta Velocidade, a paisagem italiana, os especuladores não nos privam apenas de um bem, mas destroem a nossa própria identidade. A própria expressão “bens culturais” é enganadora, pois sugere que se trata de bens entre outros bens, que podem ser desfrutados economicamente e talvez vendidos, como se fosse possível liquidar e por à venda a própria identidade.

Há muitos anos, um filósofo que também era um alto funcionário da Europa nascente, Alexandre Kojève, afirmava que o homo sapiens havia chegado ao fim de sua história e já não tinha nada diante de si a não ser duas possibilidades: o acesso a uma animalidade pós-histórica (encarnado pela american way of life) ou o esnobismo (encarnado pelos japoneses, que continuavam a celebrar as suas cerimônias do chá, esvaziadas, porém, de qualquer significado histórico). Entre uma América do Norte integralmente re-animalizada e um Japão que só se mantém humano ao preço de renunciar a todo conteúdo histórico, a Europa poderia oferecer a alternativa de uma cultura que continua sendo humana e vital, mesmo depois do fim da história, porque é capaz de confrontar-se com a sua própria história na sua totalidade e capaz de alcançar, a partir deste confronto, uma nova vida.

A sua obra mais conhecida, Homo Sacer, pergunta pela relação entre poder político e vida nua, e evidencia as dificuldades presentes nos dois termos. Qual é o ponto de mediação possível entre os dois pólos?

Minhas investigações mostraram que o poder soberano se fundamenta, desde a sua origem, na separação entre vida nua (a vida biológica, que, na Grécia, encontrava seu lugar na casa) e vida politicamente qualificada (que tinha seu lugar na cidade). A vida nua foi excluída da política e, ao mesmo tempo, foi incluída e capturada através da sua exclusão. Neste sentido, a vida nua é o fundamento negativo do poder. Tal separação atinge sua forma extrema na biopolítica moderna, na qual o cuidado e a decisão sobre a vida nua se tornam aquilo que está em jogo na política. O que aconteceu nos estados totalitários do século XX reside no fato de que é o poder (também na forma da ciência) que decide, em última análise, sobre o que é uma vida humana e sobre o que ela não é. Contra isso, se trata de pensar numa política das formas de vida, a saber, de uma vida que nunca seja separável da sua forma, que jamais seja vida nua.

O mal-estar, para usar um eufemismo, com que o ser humano comum se põe frente ao mundo da política tem a ver especificamente com a  condição italiana ou é de algum modo inevitável?

Acredito que atualmente estamos frente a um fenômeno novo que vai além do desencanto e da desconfiança recíproca entre os cidadãos e o poder e tem a ver com o planeta inteiro. O que está acontecendo é uma transformação radical das categorias com que estávamos acostumados a pensar a política. A nova ordem do poder mundial funda-se sobre um modelo de governamentalidade que se define como democrática, mas que nada tem a ver com o que este termo significava em Atenas. E que este modelo seja, do ponto de vista do poder, mais econômico e funcional é provado pelo fato de que foi adotado também por aqueles regimes que até poucos anos atrás eram ditaduras. É mais simples manipular a opinião das pessoas através da mídia e da televisão do que dever impor em cada oportunidade as próprias decisões com a violência. As formas da política por nós conhecidas – o Estado nacional, a soberania, a participação democrática, os partidos políticos, o direito internacional – já chegaram ao fim da sua história. Elas continuam vivas como formas vazias, mas a política tem hoje a forma de uma “economia”, a saber, de um governo das coisas e dos seres humanos. A tarefa que nos espera consiste, portanto, em pensar integralmente, de cabo a cabo, aquilo que até agora havíamos definido com a expressão, de resto pouco clara em si mesma, “vida política”.

O estado de exceção, que o senhor vinculou ao conceito de soberania, hoje em dia parece assumir o caráter de normalidade, mas os cidadãos ficam perdidos perante a incerteza na qual vivem cotidianamente. É possível atenuar esta sensação?

Vivemos há decênios num estado de exceção que se tornou regra, exatamente assim como acontece na economia em que a crise se tornou a condição normal. O estado de exceção – que deveria sempre ser limitado no tempo – é, pelo contrário, o modelo normal de governo, e isso precisamente nos estados que se dizem democráticos. Poucos sabem que as normas introduzidas, em matéria de segurança, depois do 11 de setembro (na Itália já se havia começado a partir dos anos de chumbo) são piores do que aquelas que vigoravam sob o fascismo. E os crimes contra a humanidade cometidos durante o nazismo foram possibilitados exatamente pelo fato de Hitler, logo depois que assumiu o poder, ter proclamado um estado de exceção que nunca foi revogado. E certamente ele não dispunha das possibilidades de controle (dados biométricos, videocâmeras, celulares, cartões de crédito) próprias dos estados contemporâneos. Poder-se-ia afirmar hoje que o Estado considera todo cidadão um terrorista virtual. Isso não pode senão piorar e tornar impossível aquela participação na política que deveria definir a democracia. Uma cidade cujas praças e cujas estradas são controladas por videocâmeras não é mais um lugar público: é uma prisão.

A grande autoridade que muitos atribuem a estudiosos que, como o senhor, investigam a natureza do poder político poderá trazer-nos esperanças de que, dizendo-o de forma banal, o futuro será melhor do que o presente?

Otimismo e pessimismo não são categorias úteis para pensar. Como escrevia Marx em carta a Ruge: “a situação desesperada da época em que vivo me enche de esperança”.

Podemos fazer-lhe uma pergunta sobre a aula que o senhor deu em Scicli? Houve quem lesse a conclusão que se refere a Piero Guccione como se fosse uma homenagem devida a uma amizade enraizada no tempo, enquanto outros viram nela uma indicação de como sair do xeque-mate no qual a arte contemporânea está envolvida.

Trata-se de uma homenagem a Piero Guccione e a Scicli, pequena cidade em que moram alguns dos mais importantes pintores vivos. A situação da arte hoje em dia é talvez o lugar exemplar para compreendermos a crise na relação com o passado, de que acabamos de falar. O único lugar em que o passado pode viver é o presente, e se o presente não sente mais o próprio passado como vivo, o museu e a arte, que daquele passado é a figura eminente, se tornam lugares problemáticos. Em uma sociedade que já não sabe o que fazer do seu passado, a arte se encontra premida entre a Cila do museu e a Caribdis da mercantilização. E muitas vezes, como acontece nos templos do absurdo que são os museus de arte contemporânea, as duas coisas coincidem.

Duchamp talvez tenha sido o primeiro a dar-se conta do beco sem saída em que a arte se meteu. O que faz Duchamp quando inventa o ready-made? Ele toma um objeto de uso qualquer, por exemplo, um vaso sanitário, e, introduzindo-o num museu, o força a apresentar-se como obra de arte. Naturalmente – a não ser o breve instante que dura o efeito do estranhamento e da surpresa – na realidade nada alcança aqui a presença: nem a obra, pois se trata de um  objeto de uso qualquer, produzido industrialmente, nem a operação artística, porque não há de forma alguma uma poiesis, produção – e nem sequer o artista, porque aquele que assina com um irônico nome falso o vaso sanitário não age como artista, mas, se muito, como filósofo ou crítico, ou, conforme gostava de dizer Duchamp, como “alguém que respira”, um simples ser vivo.

Em todo caso, certamente ele não queria produzir uma obra de arte, mas desobstruir o caminhar da arte, fechada entre o museu e a mercantilização.  Vocês sabem: o que de fato aconteceu é que um conluio, infelizmente ainda ativo, de hábeis especuladores e de “vivos” transformou o ready-made em obra de arte. E a chamada arte contemporânea nada mais faz do que repetir o gesto de Duchamp, enchendo com não-obras e performances em museus, que são meros organismos do mercado, destinados a acelerar a circulação de mercadorias, que, assim como o dinheiro, já alcançaram o estado de liquidez e querem ainda valer como obras. Esta é a contradição da arte contemporânea: abolir a obra e ao mesmo tempo estipular seu preço.

Sobre o autor

Giorgio Agamben nasceu em Roma em 1942. É um dos principais intelectuais de sua geração, autor de muitos livros e responsável pela edição italiana das obras de Walter Benjamin. Deu cursos em várias universidades europeias e norte-americanas, recusando-se a prosseguir lecionando na New York University em protesto à política de segurança dos Estados Unidos. Foi diretor de programa no Collège International de Philosophie de Paris. Mais recentemente ministrou aulas de Iconologia no Istituto Universitario di Architettura di Venezia (Iuav), afastando-se da carreira docente no final de 2009. Sua obra, influenciada por Michel Foucault e Hannah Arendt, centra-se nas relações entre filosofia, literatura, poesia e, fundamentalmente, política. Entre seus principais livros destacam-se Homo sacer (2005), Estado de Exceção (2005), Profanações (2007), O que resta de Auschwitz (2008) e O reino e a glória (2011) os quatro últimos publicados no Brasil pela Boitempo Editora. 

A grande divergência, por Rodrigo Zeidan

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Estamos no meio de um processo de retrocesso como na década de 1930

As eleições no Reino Unido e na Argélia, o novo acordo comercial entre EUA, México e Canadá, o quase abandono da Organização Mundial do Comércio e a nova lei para cidadania na Índia são parte de um movimento de desglobalização. O Brasil, um país já isolado, vai ter que se contentar com migalhas, como vender carne para a China.

As sociedades estão dispostas a pagar um alto preço pelo isolamento e pela maior autonomia de decisão sobre migração e comércio. No Reino Unido, o brexit já tem afetado a economia, e as coisas devem piorar.

Mais de 60% das empresas britânicas colocam a saída da União Europeia como um dos três maiores riscos para os negócios. O brexit deve custar pelo menos 2% do PIB por ano até 2023.

Estimativas indicam que cada família vai perder £ 870 (cerca de R$ 4.700) por ano, permanentemente. As coisas ainda podem piorar, dependendo de quão atabalhoado seja o brexit.

O outro resultado relevante da eleição britânica é o fato de que o Partido Nacional Escocês (SNP, em inglês) levou praticamente toda a Escócia. Não deve demorar para nova votação para independência (no referendo de 2014, 55% votaram por manter a Escócia no Reino Unido).
Na Argélia, os cinco candidatos eram ex-membros do governo, em uma eleição de fachada na qual, inicialmente, o presidente pretendia concorrer ao quinto mandato. Isolado o país estava e continuará.

O acordo EUA-Canadá-México (USCMA, em inglês) substitui o Nafta com raro apoio dos dois partidos americanos. O USCMA é uma versão bem aguada do Nafta e acaba com o livre-comércio na região.

Na Índia, o isolacionismo vem alienar mais de 200 milhões de muçulmanos. Uma nova lei de imigração torna praticamente impossível que refugiados muçulmanos (e também ateus e judeus) consigam cidadania indiana.

O governo de Narendra Modi tem uma trajetória similar ao atual governo brasileiro.

Assumiu prometendo reformas, mas concentrou a maior parte dos seus esforços numa agenda ultranacionalista de costumes. Resultado? A economia desacelera fortemente.

Globalmente, os organismos multilaterais estão definhando. Na quarta-feira (11), o painel de juízes da OMC parou de funcionar, já que os mandatos venceram e os Estados Unidos bloqueiam novas nomeações. Simplesmente não há mais quem analise disputas comerciais entre países por árbitros razoavelmente lentos. O protecionismo comercial não vai ser mais punido.

O isolacionismo não afeta somente comércio, mas também investimentos. Há sinais claros de que as cadeias de suprimento globais estão se reorganizando e encolhendo.

Em 2018, foram 60.500 os projetos de investimento de empresas estrangeiras na China.

Em 2019, esse número não deve passar de 40 mil (no acumulado do ano até setembro, eram pouco mais de 30 mil).

Os investimentos chineses nos Estados Unidos e no mundo também se contraíram, com previsão de queda de mais de 30% para este ano. E isso depois de esses investimentos, somente nos EUA, terem despencado mais de 80% em 2018.

O que vale para a China vale para o resto do mundo. Investimentos estão sendo adiados, e a incerteza torna mais difícil qualquer recuperação, seja chinesa, indiana ou brasileira.

Estamos no meio de um processo de retrocesso como na década de 1930, com a onda protecionista varrendo o sistema global. Esperemos que desta vez não acabe em tragédia. De qualquer forma, a onda nacionalista pode ser temporária, mas os efeitos serão sentidos por muito tempo.

Rodrigo Zeidan

Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

 

Economia Brasileira, lenta recuperação e mudanças estruturais

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Depois de um período de forte degradação econômica, marcado por uma recessão que gerou mais de 13 milhões de desempregados e um contingente de quase 40 milhões de pessoas na indignidade, onde além dos desempregados somamos os subempregados e os desalentados, a economia brasileira dá sinais, ainda medíocres e inconsistentes, de recuperação econômica, gerando de um lado os ventos ufanistas daqueles que querem acreditar que encontramos os caminhos concretos do crescimento e logo estaremos nos destacando no cenário internacional, rumo ao tão almejado desenvolvimento econômico.

Neste período de crise econômica, as condições sociais pioraram consideravelmente, comprometendo todas as melhoras que tivemos no período 2003/2013, quando o país conseguiu a façanha de crescer e incluir mais pessoas dentro do sistema econômico, gerando mais emprego e melhorando as perspectivas do país, dando a grupos, até então excluídos ou marginalizados, algumas perspectivas de sonhar com um futuro melhor, estes sonhos acabaram se transformando em um verdadeiro pesadelo na atualidade, comprometendo conquistas importantes e gerando fortes preocupações políticas e econômicas, que passaram a colocar em xeque a nossa frágil democracia, como estamos vendo acontecer em outros países e regiões da comunidade internacional.

A economia brasileira vivenciou um momento de grande crise econômica e constrangimentos sociais, a recessão degradou grande parte das conquistas anteriores e gerou forte descontentamento na sociedade, depois de quedas no produto interno bruto de 3,9% em 2015 e de 3,6% em 2016, a economia apresentou algum espasmo de crescimento no período 2017/2018, onde crescemos baixíssimos 1,1 e 1,2%, números estes insuficientes para melhorar as condições econômicas e abrir novas oportunidades de investimentos e geração de empregos. Na atualidade estamos percebendo alguns sinais de melhorias, embora tímidas e limitadas, estamos percebendo que o crescimento de 2020 deve chegar na casa dos 2%, número ainda baixo para resolver os graves desajustes econômicos, mas depois de anos de baixíssimo crescimento, até mesmo estes números estão sendo comemorados pela elite econômica nacional.

A dureza do período 2014/2016 pode ser compreendida como um período de grandes equívocos na condução da política econômica, marcado por desonerações exageradas, por políticas de controle de preços em setores como os combustíveis e energia elétrica, além de queda nos juros sem se atentar para os indicadores macroeconômicos, tudo isso culminou numa situação de insolvência generalizada na estrutura produtiva, descontrole nos gastos governamentais e uma grande confusão na condução na política monetária, cujas intervenções foram vistas pela sociedade como desastrosas e seus resultados extremamente negativos para a economia brasileira.

A partir de 2016, as bases da política econômica se alteraram imensamente, neste momento o governo passou a diminuir as intervenções estatais, deixou que os preços dos serviços controlados pelo Estado se acomodassem em um patamar maior, levando a inflação a um incremento que obrigou o governo federal a adoção de medidas fortes para reduzir as atividades econômicas e combatesse a inflação que crescia de forma acelerada, gerando desconfortos crescentes para o governo. A opção pela austeridade nos gastos públicos era descrita pelo governo como uma forma de reestruturar as finanças do setor público e colocar as despesas em ordem, evitando, com isso, o descontrole fiscal e financeiro que permeava a economia brasileira a algumas décadas e as autoridades via nesta oportunidade um momento exato e propício para que o ajuste fiscal, sempre postergado, fosse feito de forma rápida, generalizada e agressiva, evitando que o Estado Nacional continuasse a pagar juros elevados para financiar suas despesas e conseguisse recursos para o tão esperado e desejado investimento público.

A recuperação, ora em curso, deve ser vista com entusiasmo reduzido, isto porque estamos num momento muito particular da economia brasileira, percebemos e nos alegramos com a retomada, todos almejam que a economia volte ao tão acalentado crescimento econômico, visando algo maior e mais consistente, parecido com um sustentável desenvolvimento econômico. Nestes anos percebemos que a desindustrialização crassa a economia brasileira, os indicadores nos mostram que passamos por um processo perigoso de desindustrialização, nosso setor industrial vem perdendo participação no produto interno bruto, estes dados deveriam acender uma luz na sociedade, mostrando-a que nenhum país conseguiu se aventurar no desenvolvimento econômico sem, antes, construir uma estrutura industrial de relevo, diversificada e dotada de tecnologias, máquinas e equipamentos altamente sofisticados.

Embora tenhamos grande vocação agrícola, tema este que sempre esteve presente nos espaços de discussões política e econômica, como no grande debate materializado por dois expoentes da sociedade brasileira, Eugênio Gudin, economista  liberal e defensor da vocação agrícola nacional e Roberto Simonsen, grande industrial paulista, idealizador da FIESP e defensor ardoroso do desenvolvimento de uma base industrial de destaque, que colocasse a sociedade brasileira na condição de destaque no cenário internacional. Neste momento, o Brasil começava a trilhar caminhos sólidos e consistentes para reverter sua condição de país subdesenvolvido, o debate auxiliou na construção de bases concretas para a indústria nacional e o sonho, da época, de que o apoio a indústria traria ganhos incomensuráveis para a sociedade brasileira e nos levaria ao panteão dos países desenvolvidos, deixando para trás anos de colonização e exploração.

Depois desta discussão e da vitória dos industrializantes, a economia começou a galgar espaços de industrialização, marcadas por um projeto fortemente intervencionista, centrado no Estado nacional, nas políticas industriais ativas e nacionalistas, o país conseguiu construir uma base industrial de destaque, nos destacando entre as maiores economias do mundo e nos colocando como o país que mais cresceu no período 1900/1980, onde saímos de uma condição de fragilização econômica, centrada no meio rural e fortemente dependente do trabalho desqualificado, para uma economia industrializada, numa sociedade urbana e marcada por trabalhadores em crescente qualificação, com isso, éramos descritos como um país em ascensão no cenário internacional e com potencial econômico que gerava grandes ciúmes em países desenvolvidos e naqueles que caminhavam na estrada do desenvolvimento.

Depois dos anos 1980, o Brasil perdeu o rumo do crescimento econômico, nossos indicadores pioraram de forma acelerada, nossa indústria perdeu força e nossas questões sociais se agravaram fortemente, entramos num período de reestruturação e a agenda econômica se tornou a mais relevante para definir os rumos futuros do país, para voltar a crescer e fazer com que os ventos do desenvolvimento voltassem, eram necessários que debelássemos a inflação que crescia de forma avassaladora e controlássemos o endividamento externo, cujo potencial de degradação era bastante acelerado. Os anos 90 foram responsáveis pela estabilização econômica, políticas de estabilização foram implementadas para que nossos indicadores voltassem a valores aceitáveis na economia internacional, estes indicadores demoraram a cair para números civilizados, na atualidade podemos considerá-los mais parecido com os que encontramos internacionalmente, hoje a inflação está na casa dos 4% ao ano, uma grande conquista para um país que, em épocas anteriores, registrou números próximos de 80% ano mês ou mais de 2000% ao ano.

A recuperação econômica, ora em curso, nos parece consistente, embora devemos destacar ainda, que além da desindustrialização, estamos bastante preocupados com a qualidade da economia que vai emergir desta crise, estamos vendo claramente uma forte degradação do emprego, estamos gerando novas ocupações em situação bastante precária, com proteção social reduzida e com grande parte da força de trabalhando na informalidade, culminando em empregos piores e grande degradação para a classe trabalhadora.

Estamos criando empregos em setores com baixa produtividade, tais como a construção civil, serviços não sofisticados em geral (lojas, restaurantes, cabeleireiros, serviços médicos, call centers, telecom, etc..), além de serviços de transportes (motoristas de ônibus, caminhões e taxis), entre outros. A produtividade destes empregos gerados na economia brasileira é bastante reduzida e muito parecida com estes empregos em países como os Estados Unidos, Europa e Ásia. Nas comparações internacionais, percebemos que o grande diferencial de produtividade entre as economias está justamente no setor de bens transacionáveis, especialmente nos empregos industriais, justamente aqueles empregos que não estamos gerando na atualidade, longe dos chamados serviços não sofisticados.

Os empregos gerados devem ser descritos como de baixa complexidade econômica, neles estamos pagando salários reduzidos e deixando de incorporar novas tecnologias, de agregar valores aos produtos vendidos e, quando necessitamos dos produtos de alto valor agregado, temos que recorrer aos grandes conglomerados globais, sediados em países que conseguiram desenvolver um parque industrial de altíssima complexidade econômica, com isso, nos tornamos importadores de tecnologias, máquinas, equipamentos e pesquisas científicas e nos especializamos em exportar produtos agrícolas, as chamadas commodities. Estamos retornando ao debate descrito acima que, embora bastante relevante, nos mostra um final diferente dos anos 1930/1940, neste novo debate da contemporaneidade, os vencedores tendem a ser os defensores da especialização nos produtos primários, como sempre desejaram os economistas liberais.

O setor agrícola brasileiro passa por um amplo processo de desenvolvimento, a agricultura nacional está ganhando espaço no mercado global, trazendo ganhos financeiros consideráveis, o grande problema é que setor agrícola tradable, que já foi intensivo em mão de obra, encontra-se inteiramente mecanizado, diante disso, percebemos que o que sobra para a formação de capital fixo são migalhas. Embora devemos ter orgulho do setor agrícola nacional, devemos compreender, que nenhum país conseguiu alçar espaços consistentes de desenvolvimento econômico dependendo do setor agrícola, ainda mais quando percebemos que as grandes tecnologias utilizadas na agricultura nacional são importadas e são produzidas por grandes conglomerados internacionais, sediados em países desenvolvidos que possuem um setor industrial sólido e desenvolvido, baseado em altos investimentos tecnológicos, em máquinas sofisticadas e em equipamentos de grande complexidade, exigindo mão de obra altamente qualificada e dotada de uma educação de destaque internacional, que os colocam nas melhores posições nos principais indicadores de educação da sociedade internacional.

Não existe atalho ao desenvolvimento econômico das nações, todos que conseguiram construir uma sociedade mais desenvolvida, se utilizaram do Estado como agente planejador, investidor e regulador, além de um mercado centrado na concorrência e em instituições sólidas e consistentes, onde a educação sempre recebeu os mais sólidos investimentos, onde as leis eram sempre claras e precisas, marcados por um ambiente de estabilidade política, onde as decisões se davam de forma ágil e rápidas e a interação entre Estado e Mercado visavam o bem comum da coletividade, neste cenário todos os agentes econômicos e sociais sabiam exatamente sua importância dentro da construção de um ambiente propício ao investimento produtivo e a uma melhora das condições sociais.

Em pleno século XXI, o país precisa rever questões centrais em sua inserção na economia internacional, sem indústria relevante e com trabalho precário, baseado em aplicativos, com baixos salários e condições degradantes, estamos nos condenando a uma posição de indignidade e de subalternidade aos grandes conglomerados internacionais, estes sim os verdadeiros donos do mundo, controladores dos recursos financeiros, das grandes mídias, dos grandes bancos, dos complexos industriais e das mentes de todos os indivíduos, o futuro que se desenha é preocupante e assustador, com isso, os movimentos sociais e as reivindicações dos trabalhadores, que crescem em todas as regiões do mundo, desde os países mais miseráveis até os desenvolvidos  tendem a aumentar e a se intensificar, pois estes movimentos retratam as angústias das pessoas e os medos mais íntimos e secretos que todos carregamos dentro de nossas intimidades.

Descontentamento e insatisfação social na sociedade global

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Depois da crise financeira que afetou a economia internacional em 2008, a sociedade vem passando por aumento das instabilidades, dos medos e dos descontentamentos, levando população as ruas, movimentos separatistas, conflitos étnicos e divergências políticas crescentes, criando instabilidades e incertezas generalizadas em todos os rincões do globo.

Nestes movimentos encontramos reivindicações generalizadas, desde movimentos reivindicando mais espaço de participação democrática, passando por movimentos defendendo políticas públicas mais específicas para o combate a pobreza e a desigualdade, movimentos reivindicando o impeachment de governantes até movimentos com bandeiras mais conservadoras, em defesa da família e dos bons costumes, o mundo se encontra em um momento de grandes reflexões, todos reivindicam um novo modelo de sociedade, mais oportunidades, mais democracia e uma melhor perspectiva para um futuro próximo, onde a tecnologia e os progressos científicos e tecnológicos sejam empregados para melhorar as condições de todos os indivíduos e não se restrinja a um grupo social ou a um conjunto de afortunados e bem nascidos.

Nestas movimentações que se espalham por todas as regiões do mundo, encontramos de tudo, desde movimentos mais pacíficos e tolerantes até grupos mais agressivos e violentos, que acreditam que apenas com o uso da força vão conseguir demonstrar para a sociedade seus anseios e suas mais íntimas angústias. São movimentos que denotam uma angústia global da sociedade, atingindo desde países ricos e desenvolvidos, como países pobres e também países que se encontram em ascensão econômica, sendo descrito por muitos, como uma economia com potencial elevado de desenvolvimento.

Para que compreendamos estes movimentos precisamos deixar claro, que a ciência econômica se encontra em um momento de grande inquietação, não conseguindo dar as respostas demandadas pela sociedade, sendo vista mais como um instrumento de dominação e de legitimação dos interesses dos donos do capital, que dominam ainda a ciência, a tecnologia, as finanças e os grandes conglomerados, do que como um instrumento político de organização e de combate ao subdesenvolvimento econômico e da escassez, como era de seu interesse em seus mais íntimos primórdios de existência. Neste novo momento, a economia está se negando a visualizar as evidências em curso na sociedade, os movimentos da economia monetária e financeira se sobrepondo a produção e o desenvolvimento se colocando cada vez mais distante da sociedade, onde apenas poucos estão usufruindo das benesses do desenvolvimento econômico.

Nesta discrepância que vivemos de riqueza, de prosperidade e de oportunidade na sociedade global, as pessoas estão cada vez mais desgostosas com a situação que vivem, indivíduos trabalhando em condições degradantes, sendo que muitos indivíduos estão sem nenhum trabalho, o crescimento de uma tecnologia que reduz as oportunidades de emprego para uma parcela considerável da sociedade, o enfraquecimento dos sindicatos, dos partidos e dos movimentos dos trabalhadores, embora muitos acreditem que estes eram muito corporativistas, dificilmente encontramos sindicatos, sejam patronais ou de trabalhadores, que não possuem perfis corporativistas, vivemos num momento de  grandes perdas para as classes trabalhadores e neste momento o lema deve ser, união e resistência, pois o drama pode aumentar de forma exponencial.

Só para que tenhamos uma mínima ideia do descalabro que vivemos na contemporaneidade, 82% de toda a riqueza criada no ano de 2018 ficou concentrada nas mãos de apenas 1% da população mundial, ou seja, apenas 70 milhões de pessoas embolsaram mais de 80% da riqueza global, enquanto as outras 99% ou 6,93 bilhões de pessoas do mundo, dividiram apenas 18% da riqueza gerada pela economia internacional, estes números ajudam a compreender alguns dos motivos das reivindicações dos indivíduos nos mais variados países do mundo.

Nestes movimentos, muitos se tornam guerras e conflitos abertos, como estamos vendo no Chile, um país que poucos imaginavam que seria acometido com reivindicações assim, afinal, desde o governo autoritário de Augusto Pinochet, as condições econômicas estão melhorando de forma acelerada, como defendem os apoiadores do general, que para implementar estas medidas liberais, milhares de pessoas foram mortas ou desapareceram e nunca mais foram encontradas. Na atualidade, percebemos que a situação real dos chilenos não é tão agradável como o discurso oficial quer demonstrar, os ventos do liberalismo econômico implementado pelos Chicago Boys não foram tão auspiciosos, mesmo com inflação sob controle e indicadores macroeconômicos positivos, a população se encontra em situação de desalento e de desesperança, os serviços públicos foram privatizados, as universidades foram todas repassadas a iniciativa privada e todos que possuem condições podem acessar estes serviços, desde que possuam recursos para pagar ou condições para angariar créditos financeiros para usufruir destes benefícios, o que percebemos é que os descontentamentos cresceram, os endividados aumentaram e a insatisfação cresce de forma acelerada, tudo isso culminou na situação degradante que estamos vivenciando.

Encontramos movimentos em países desenvolvidos, a França depois de ser acossada pelo movimento dos coletes amarelos, o país se encontra em um momento de grandes reivindicações contra a proposta de reforma da Previdência defendida pelo presidente Emmanuel Macron. Nestes movimentos, encontramos milhares de cidadãos franceses indo para as ruas e rechaçando a reforma proposta pelo governo, percebemos ainda, que todas estas medidas que estão sendo apresentadas pelo governo francês, estiveram presentes na pauta de inúmeros países, em decorrência do envelhecimento da população e das transformações no emprego e nos modelos de trabalho da contemporaneidade, embora estas justificativas sejam corretas, elas não nos mostra os grandes ganhadores destas reformas, o sistema financeiro e as finanças internacionais, todos os grupos dotados dos grandes recursos globais, que controlam os grandes conglomerados e mantem grande influência sobre os governos, controlando indicações em setores estratégicos, desde os altos cargos da equipe econômica, até os responsáveis pela política monetária, todos oriundos dos grandes bancos nacionais e estrangeiros.

Os conflitos em curso em Hong Kong também estão chamando a atenção da comunidade internacional, são manifestações que confrontam diretamente o governo chinês e reivindicam maior abertura política, maior transparência e uma maior autonomia com relação ao poderio autoritário da China. Embora seja um movimento forte e consistente, destoa dos movimentos citados anteriormente, tanto no Chile quanto na França, pois estão sendo motivados por direitos imateriais, ao contrário dos movimentos dos outros países, que podem ser descritos como um medo maior do rumo que sua respectiva sociedade está tomando, os chilenos estão denunciando ao mundo uma condição de degradação, onde uma parcela menor está usufruindo dos benesses deste capitalismo globalizado, enquanto uma parcela considerável da população vive em condições de degradação e sem perspectivas de melhoras no médio prazo. No caso da França, percebemos um movimento de resistência da população, que anteriormente vivia sob o manto de um Estado de Bem-Estar social que incluía e garantia uma condição econômica e social de destaque, mas agora percebe que todas as conquistas estão sendo deixadas de lado e as perspectivas são sombrias e perturbadoras.

Neste ambiente de inquietação na sociedade internacional, os cidadãos estão percebendo que os políticos não representam os anseios e os desejos da comunidade, que a política está carcomida com corrupção, desmandos e interesses privados e que os interesses da população estão cada vez mais distantes dos interesses dos donos do poder e, principalmente, dos donos do capital. Estes últimos dominam as questões financeiras, controlam os grandes conglomerados econômicos e produtivos e influenciam as escolhas da coletividade, são eles que dominam a ciência e a tecnologia e estão prestes a controlar as grandes empresas estatais, defendendo as privatizações de forma radical e unilateral, mostrando suas vantagens e escondendo seus malefícios, o exemplo chileno pode servir como um instrumento de reflexão, a retirada do Estado de países pobres com população tão dependentes e carentes dos serviços públicos pode ser um erro fatal, cujos constrangimentos não tardam a se materializar.

A sociedade começa a perceber a insustentabilidade deste sistema altamente tóxico, onde de um lado degradamos o meio ambiente, aumentamos as queimadas e ameaçamos terras demarcadas, de outro estimulamos o trabalho precário e degradante, com cargas excessivas e com jornadas que não mais poupam os domingos e feriados, tudo isso para produzir e aumentar os lucros dos grupos que mais ganham. Neste ambiente percebemos uma degradação dos laços sociais e uma forte fragilização das famílias, onde a carga de trabalho é tão excessiva que os filhos não mais se encontram com seus pais, onde os casais não mais tem tempo para ficar juntos, conversar e planejar suas existências, neste ambiente entregamos os rebentos para a escolha educar e transmitir conhecimentos, exigências excessivas para uma escola mal preparada, mas instrumentalizada e com recursos humanos ultrapassados, o resultado desta equação estamos vendo todos os dias na comunidade, professores ausentes das aulas por depressão, escolas violentas e degradadas, polícias agressivas e defasadas e uma comunidade amedrontada e indivíduos imaturos e despreparados para os embates da vida, tudo isso se materializa em ansiedades, depressões generalizadas e, nos extremos do mundo contemporâneo, em um crescimento acelerado e vertiginoso do suicídio, principalmente entre indivíduos entre 15 e 29 anos, que cansaram de sonhar, perderam as esperanças e encontram nas drogas a fuga de um mundo que não lhes garante oportunidades.

O mundo contemporâneo ressente de valores mais concretos, nos últimos anos estamos percebendo que os valores da sociedade estão dominados pelo poder do dinheiro e do capital, estes pensam a sociedade através da busca constante pelos rendimentos, pelos ganhos materiais e pelos prazeres do imediatismo, com isso, percebemos que o novo Deus da sociedade capitalista é o Dinheiro, por ele, pessoas rendem as maiores homenagens, concedendo-lhes os prêmios mais robustos e transformando-o em um grande mantra, nos valores do mundo contemporâneo, os valores baseados na ética e na moral coletiva são substituídos por valores dos indivíduos, vivemos e cultivamos o individualismo e depois reclamamos da competição excessiva e da solidão, vivemos em uma sociedade líquida, como nos mostrou o grande sociólogo polonês Zygmunt Baumman, com Amores Líquidos e Medos Líquidos, retratando a alma e as dores dos indivíduos na contemporaneidade. Estamos regredindo a passos largos, estamos perdendo como civilização e como seres humanos, deixando valores passageiros dominarem o comportamento social e nossa coesão como indivíduos, nossos sentimentos e emoções. Estamos nos deixando levar pelo imediatismo do consumo e os gozos dos prazeres insaciáveis do sexo e do dinheiro, para que tenhamos uma visão menos pessimista e introduzir um pouco de esperança em um mundo tão marcado pela desesperança, recorramos a história, esta nos mostra que, depois da tormenta, da tempestade e da degradação, o ser humano sempre busca a bonança, acreditemos nisso, sempre!

Graeber narra o declínio da Ciência Econômica

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David Graeber – Outras Palavras

Ela mantém-se aferrada aos dogmas – enquanto os problemas centrais ligados à produção e distribuição de riquezas mudaram. Contudo, tornou-se mais influente, ao se converter em ideologia do 1%. Que fazer: salvá-la ou destruí-la?

Há um sentimento crescente, entre aqueles que têm a responsabilidade de administrar grandes economias: o de que a disciplina de Economia não é mais adequada ao seu objetivo. Ela está começando a parecer uma ciência desenvolvida para resolver problemas que não existem mais.

Um bom exemplo é a obsessão pela inflação. Os economistas ainda ensinam aos alunos que o principal papel econômico do governo – muitos insistiriam que seu único papel econômico realmente adequado – é garantir a estabilidade de preços. Devemos estar constantemente vigilantes sobre os perigos da inflação. Para os governos, simplesmente imprimir dinheiro é, portanto, inerentemente pecaminoso. Se, no entanto, a inflação se mantiver muito baixa, por meio da ação coordenada do governo e dos banqueiros centrais, o mercado encontrará sua “taxa natural de desemprego” e os investidores, aproveitando os sinais claros de preços, serão capazes de garantir um crescimento saudável. Essas premissas vieram com o monetarismo da década de 1980, a idéia de que o governo deveria se restringir à administração do suprimento de dinheiro. Na década de 1990, passaram a ser aceitas como um senso comum tão elementar que praticamente todo debate político teve que partir de um reconhecimento ritual dos perigos dos gastos do governo. Continua a ser assim, apesar do fato de que, desde a recessão de 2008, os bancos centrais imprimiram dinheiro freneticamente na tentativa de criar inflação e obrigar os ricos a fazer algo útil com seu dinheiro, tendo fracassado retumbantemente em ambos os empreendimentos.

Agora vivemos em um universo econômico diferente do que vivíamos antes do crash. A queda do desemprego não eleva mais os salários. Imprimir dinheiro não causa inflação. No entanto, a linguagem do debate público e a suposta sabedoria transmitida nos livros econômicos permanecem quase inteiramente inalteradas.

Espera-se uma certa defasagem institucional. Hoje em dia, os economistas convencionais (orig.: mainstream) podem não ser particularmente bons em prever colisões financeiras, facilitar a prosperidade geral ou criar modelos para prevenir as mudanças climáticas. Mas quando se trata de se estabelecer em posições de autoridade intelectual, não afetadas por essas falhas, seu sucesso é incomparável. Alguém teria que olhar para a história das religiões para encontrar algo parecido. Até hoje, a economia continua a ser ensinada não como uma história de argumentos – não, como qualquer outra ciência social, como uma série de perspectivas teóricas muitas vezes conflitantes – mas como algo mais parecido com a física, a realização gradual de verdades matemáticas universais e intransponíveis. É claro que existem teorias “heterodoxas” da economia (institucionalista, marxista, feminista, “austríaca”, pós-keynesiana …), mas seus expoentes foram quase completamente excluídos do que são considerados departamentos “sérios”. Até mesmo rebeliões diretas de estudantes de economia (do movimento pós-autista na França até a economia do pós-colapso na Grã-Bretanha) foram incapazes de incluí-los no currículo básico.

Como resultado, os economistas heterodoxos continuam sendo tratados como quase malucos, apesar de frequentemente terem um histórico muito melhor de previsão de eventos econômicos do mundo real. Além disso, as suposições psicológicas básicas nas quais a economia convencional (neoclássica) baseia-se – apesar de há muito serem refutadas por psicólogos reais – colonizaram o restante da academia e tiveram um impacto profundo nas compreensões populares sobre o mundo.

Em nenhum lugar essa separação entre o debate público e a realidade econômica é mais dramática do que na Grã-Bretanha, e talvez por isso pareça ser o primeiro país em que algo está começando a quebrar. Na virada do século, foi o “novo” Partido Trabalhista, de centro-esquerda, que presidiu a bolha pré-colapso. A expulsão dos bastardos por parte dos eleitores trouxe uma série de governos conservadores, os quais logo descobriram que uma retórica de “austeridade” – a evocação churchilliana de sacrifício comum – caiu bem no público britânico. Garantiu ampla aceitação popular para políticas que reduziram o pouco que restava do estado social britânico e concentraram os recursos no andar de cima, junto aos ricos. “Não existe uma árvore mágica do dinheiro”, disse Theresa May durante a eleição de 2017 – praticamente a única linha memorável de uma das campanhas mais sem brilho da história britânica. A frase é repetida incessantemente na mídia, sempre que alguém pergunta por que o Reino Unido é o único país da Europa Ocidental que adota cobrança para a universidade ou se é realmente necessário ter tantas pessoas dormindo nas ruas.

O mais extraordinário da frase de May é que ela é falsa. Há muitas árvores mágicas de dinheiro na Grã-Bretanha, assim como em qualquer economia desenvolvida. Elas são chamados de “bancos”. Como o dinheiro moderno é simplesmente crédito, os bancos podem criar dinheiro literalmente do nada, simplesmente fazendo empréstimos. Quase todo o dinheiro que circula na Grã-Bretanha no momento é criado por bancos dessa maneira. O público não apenas não está ciente disso, mas uma pesquisa recente do grupo de pesquisa britânico Positive Money descobriu que 85% dos membros do Parlamento não tinham idéia de onde realmente vinha o dinheiro (a maioria parecia ter a impressão de que era produzido pela Casa da Moeda Real).

Os economistas, por razões óbvias, não podem ignorar completamente o papel dos bancos, mas passaram boa parte do século XX discutindo sobre o que realmente acontece quando alguém solicita um empréstimo. Uma escola insiste em que os bancos transferem os fundos existentes de suas reservas, outra afirma que eles produzem dinheiro novo, mas apenas com base em um efeito multiplicador (para que seu empréstimo de carro ainda possa ser visto como ancorado, em última análise no fundo de pensão de alguma avó aposentada). Somente uma minoria – principalmente economistas heterodoxos, pós-keynesianos e partidários da Teoria Monetária Moderna – defende o que é chamado de “teoria da criação de crédito do setor bancário”. Ou seja, a noção de que os banqueiros simplesmente acenam com uma varinha mágica e fazem o dinheiro aparecer, seguros e confiantes de que, mesmo que entreguem a um cliente um crédito de US$ 1 milhão, ao final das contas o destinatário o devolverá ao banco, para que, no sistema como um todo, os créditos e dívidas sejam cancelados. Em vez de os empréstimos serem baseados em depósitos, nessa visão, os próprios depósitos são o resultado de empréstimos

A única coisa que parecia nunca ocorrer a alguém era conseguir um emprego em um banco e descobrir o que realmente acontece quando alguém pede dinheiro emprestado. Em 2014, um economista alemão chamado Richard Werner fez exatamente isso e descobriu que, de fato, os agentes de crédito não verificam seus fundos, reservas ou qualquer outra coisa existente. Eles simplesmente criam dinheiro do nada, ou, como ele preferia dizer, da “poeira de fada”

Parece ter sido também naquele ano que elementos do notoriamente independente serviço público britânico decidiram que bastava. A questão da criação de dinheiro tornou-se um ponto crítico de discórdia. A grande maioria dos economistas do Reino Unido rejeitou a “austeridade”, por considerá-la contraproducente (o que, previsivelmente, quase não teve impacto no debate público). Mas, a partir de em certo momento, exigir que os tecnocratas encarregados de administrar o sistema baseiem todas as decisões políticas em suposições falsas sobre algo tão elementar quanto a natureza do dinheiro torna-se um pouco como exigir que os arquitetos continuem entendendo que a raiz quadrada de 47 é na verdade π. Os arquitetos sabem que os edifícios começarão a cair. Pessoas morreriam

Em pouco tempo, o Banco da Inglaterra (um banco central cujos economistas são mais livres para se expressar, uma vez que não fazem parte formalmente do governo) lançou um elaborado relatório oficial chamado “Criação de dinheiro na economia moderna”. Repleto de vídeos e animações, ele afirma o mesmo ponto: os livros didáticos de economia existentes, e particularmente a ortodoxia monetarista dominante, estão errados. Os economistas heterodoxos estão certos. Os bancos privados criam dinheiro. Os bancos centrais, como o Banco da Inglaterra, também criam dinheiro, mas os monetaristas estão completamente errados ao insistir que sua função adequada é controlar o suprimento de dinheiro. De fato, os bancos centrais não controlam de maneira alguma a oferta de moeda; sua principal função é definir a taxa de juros – determinar quanto os bancos privados podem cobrar pelo dinheiro que criam [no Brasil, nem isso – Nota de Outras Palavras]. Quase todo o debate público sobre esses assuntos é, portanto, baseado em premissas falsas. Por exemplo, se o que o Banco da Inglaterra estava dizendo era verdade, então os empréstimos tomados pelo governo não desviavam fundos do setor privado – eles criavam dinheiro inteiramente novo, que não existia antes.

Alguém poderia ter imaginado que tal admissão criaria uma espécie de respingo, e em certos círculos restritos, isso aconteceu. Os bancos centrais da Noruega, Suíça e Alemanha publicaram rapidamente documentos semelhantes. De volta ao Reino Unido, a resposta imediata da mídia foi simplesmente o silêncio. Segundo o meu conhecimento, o relatório do Banco da Inglaterra nunca foi mencionado em nenhum canal de notícias. Os colunistas de jornais continuaram a escrever como se o monetarismo estivesse evidentemente correto. Os políticos continuaram sendo questionados sobre onde encontrariam dinheiro para programas sociais. Era como se uma espécie de entente cordiale tivesse sido estabelecida, na qual os tecnocratas pudessem viver em um universo teórico, enquanto os políticos e os comentaristas de notícias continuariam a existir em outro, completamente diferente.

Ainda assim, há sinais de que esse arranjo é temporário. A Inglaterra – e o Banco da Inglaterra em particular – orgulha-se de ser o principal indicador das tendências econômicas globais. O próprio monetarismo começou sua respeitabilidade intelectual na década de 1970, depois de ter sido adotado por economistas do Banco da Inglaterra. A partir daí, foi finalmente adotado pelo regime insurgente de Thatcher, e somente depois por Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e posteriormente exportado para quase todos os lugares.

É possível que um padrão semelhante esteja se reproduzindo hoje. Em 2015, um ano após o aparecimento do relatório do Banco da Inglaterra, o Partido Trabalhista pela primeira vez permitiu eleições abertas para sua liderança. Sua ala esquerda do partido, sob a liderança de Jeremy Corbyn e do agora ministro da Fazenda paralelo, John McDonnell, assumiu o controle. Na época, a esquerda trabalhista era considerada ainda mais extremista marginal do que a ala de Margareth Thatcher no Partido Conservador em 1975. Também é (apesar dos constantes esforços da mídia em retratá-los como socialistas não-reconstruídos da década de 1970) o único grande grupo político no Reino Unido aberto a novas ideias econômicas. Enquanto praticamente todo o establishment político passou dos últimos anos gritando, uns contra os outros, sobre o Brexit, o gabinete de McDonnell – e os grupos de apoio da juventude trabalhista – estão realizando workshops e tomando iniciativas políticas sobre tudo. Propõem desde uma semana de trabalho de quatro dias e renda básica universal a uma Revolução Industrial Verde e ao “Comunismo de Luxo Totalmente Automatizado”. Convidam economistas heterodoxos a participar de iniciativas de educação popular destinadas a transformar as concepções de como a economia realmente funciona. O corbynismo enfrentou oposição quase histérica de praticamente todos os setores do establishment político, mas seria imprudente ignorar a possibilidade de que algo histórico esteja acontecendo.

Um sinal de que algo historicamente novo realmente surgiu será se os estudiosos começarem a ler o passado sob uma nova luz. Consequentemente, um dos livros mais importantes a sair do Reino Unido nos últimos anos teria que ser Money and Government: The Past and Future of Economics, de Robert Skidelsky. Aparentemente é uma tentativa de responder à pergunta de por que a economia dominante tornou-se tão inútil nos anos imediatamente anteriores e posteriores à crise de 2008. Na verdade, trata-se de uma tentativa de recontar a história da disciplina econômica através da consideração das duas coisas – dinheiro e governo – sobre as quais a maioria dos economistas menos gosta de falar.

Skidelsky está bem posicionado para contar esta história. Ele personifica um tipo exclusivamente inglês: o gentil dissidente. Está tão firmemente instalado no establishment que nunca lhe ocorre que talvez não seja capaz de dizer o que exatamente ele próprio pensa. Suas opiniões são toleradas pelo resto do establishment precisamente por isso. Nascido na Mandchúria, treinado em Oxford, professor de Economia Política em Warwick, Skidelsky é mais conhecido como autor da biografia definitiva em três volumes de John Maynard Keynes. Nas últimas três décadas, esteve na Câmara dos Lordes como Barão de Tilton, afiliado em momentos diferentes a vários partidos políticos e, às vezes, a nenhum deles. Durante os primeiros anos do primeiro ministro Tony Blair, foi um conservador e até serviu como porta-voz da oposição em questões econômicas na câmara alta. Atualmente, é independente, alinhado com a esquerda do Partido Trabalhista. Em outras palavras, ele segue sua própria bandeira. Geralmente, é uma bandeira interessante. Nos últimos anos, Skidelsky aproveitou sua posição no corpo legislativo de elite do mundo para realizar uma série de seminários de alto nível sobre a reforma da disciplina econômica; este livro é, em certo sentido, o primeiro produto importante desses empreendimentos.

O que isso revela é uma guerra sem fim entre duas amplas perspectivas teóricas nas quais o mesmo lado sempre parece vencer – por razões que raramente têm algo a ver com sofisticação teórica ou maior poder preditivo. O cerne da discussão sempre parece recair sobre a natureza do dinheiro. O dinheiro é melhor concebido como uma mercadoria física, uma substância preciosa usada para facilitar as trocas, ou é melhor vê-lo principalmente como crédito, como método de contabilidade ou circulação – de qualquer forma, um arranjo social? Esta é uma disputa que vem ocorrendo de alguma forma há milhares de anos. O que chamamos de “dinheiro” é sempre uma mistura de ambos, e, como eu próprio observei em Debit (2011), o centro de gravidade entre os dois tende a mudar de um lado para o outro ao longo do tempo. Na Idade Média, as transações cotidianas na Eurásia eram tipicamente realizadas por meio de crédito, e supunha-se que o dinheiro era uma abstração. Foi a ascensão dos impérios europeus globais nos séculos XVI e XVII, e a correspondente inundação de ouro e prata saqueados das Américas, que realmente mudou as percepções. Historicamente, o sentimento de que ouro é dinheiro tende a marcar períodos de violência generalizada, escravidão em massa e exércitos predadores – para a maior parte do mundo era precisamente a experiência dos impérios espanhol, português, holandês, francês e britânico. Uma inovação teórica importante que essas novas teorias de dinheiro baseadas em barras de ouro permitiram foi, como observa Skidelsky, o que passou a ser chamado de Teoria Quantitativa da Moeda (geralmente referida nos livros didáticos – já que os economistas se deleitam infinitamente nas abreviações – como QTM).

O argumento da QTM foi apresentado pela primeira vez por um advogado francês chamado Jean Bodin, durante um debate sobre a causa da forte e desestabilizadora inflação de preços que se seguiu imediatamente à conquista ibérica das Américas. Bodin argumentou que a inflação era uma simples questão de oferta e demanda: o enorme influxo de ouro e prata das colônias espanholas estava barateando o valor do dinheiro na Europa. O princípio básico, sem dúvida, teria parecido uma questão de senso comum para qualquer pessoa com experiência em comércio na época, mas na verdade baseia-se em uma série de suposições falsas. Por um lado, a maior parte do ouro e da prata extraídos do México e do Peru não acabaram na Europa e certamente não foram cunhados como moeda. A maior parte foi transportada diretamente para a China e a Índia (para comprar especiarias, sedas, chitas e outros “luxos orientais”). Seus eventuais efeitos inflacionários locais foram baseada em vínculos especulativos de um tipo ou de outro. Quase sempre é assim, quando aplica-se a QTM: a lógica parece evidente, mas apenas se você deixar de fora a maioria dos fatores decisivos.

No caso da inflação de preços do século XVI, por exemplo, a partir do momento em que se considera crédito, acumulação e especulação — sem mencionar o aumento das taxas de atividade econômica, investimento em novas tecnologias e níveis salariais (que, por sua vez, têm muito a ver com o poder relativo de trabalhadores e empregadores, credores e devedores) – torna-se impossível dizer com certeza qual é o fator decisivo. É a oferta monetária que impulsiona os preços ou os preços que impulsionam a oferta monetária? Tecnicamente, isso se resume a uma escolha entre o que é chamado de teorias exógenas e endógenas do dinheiro. O dinheiro deveria ser tratado como um fator externo, como todos os dobrões espanhóis supostamente varrendo Antuérpia, Dublin e Gênova nos dias de Felipe II? Ou deveria ser imaginado, antes de tudo, como um produto da própria atividade econômica, extraído, cunhado e colocado em circulação – ou, mais frequentemente, criado como instrumentos de crédito, como empréstimos, a fim de atender a uma demanda – o que, é claro, significaria que as raízes da inflação estão em outro lugar?

Para ser franco: A QTM está obviamente errada. Dobrar a quantidade de ouro em um país não afetará o preço do queijo, se você der todo o ouro às pessoas ricas e elas o enterrarem em seus quintais, ou preferir usá-lo para fazer submarinos folheados a ouro [é por isso, aliás, que o quantitative easing (flexibilização quantitativa), a estratégia de comprar títulos públicos de longo prazo para colocar dinheiro em circulação, também não funcionou]. O que realmente importa é o gasto.

No entanto, desde a época de Jean Bodin até o presente, quase toda vez que houve um grande debate sobre políticas, os defensores da QTM venceram. Na Inglaterra, o padrão foi estabelecido em 1696, logo após a criação do Banco da Inglaterra, com uma discussão sobre inflação em tempo de guerra, entre o secretário do Tesouro William Lowndes, Sir Isaac Newton (então diretor da casa da moeda) e o filósofo John Locke. Newton concordara com o Tesouro, em que as moedas de prata tinham que ser desvalorizadas oficialmente para evitar um colapso deflacionário; Locke assumiu uma posição monetarista extrema, argumentando que o governo deveria se limitar a garantir o valor da propriedade (incluindo moedas) e que alterar seu valor confundiria os investidores e fraudaria os credores. Locke venceu. O resultado foi um colapso deflacionário. Um forte aperto no suprimento de dinheiro criou uma contração econômica abrupta, que tirou centenas de milhares de pessoas do trabalho e criou penúria em massa, tumultos e fome. O governo rapidamente moderou sua política (primeiro, permitindo que os bancos monetizassem as dívidas de guerra na forma de notas bancárias e, eventualmente, removendo completamente o padrão prata). Porém, na retórica oficial, a ideologia de Locke – favorável um governo reduzido, pró-credor e ortodoxa em relação ao papel da moeda – tornou-se o fundamento de todo o debate político.

Segundo Skidelsky, o padrão iria se repetir continuamente: em 1797, nas décadas de 1840, 1890 e, na transição entre as décadas de 1970-80, com a adoção do monetarismo por Thatcher e Reagan. Sempre ocorre a mesma sequência de eventos:
(1) O governo adota políticas monetárias ortodoxas (moeda exógena) como uma questão de princípio.

(2)Um desastre se segue.

(3) O governo abandona discretamente as políticas ortodoxas.

(4) A economia se recupera.

(5) A filosofia monetária ortodoxa, no entanto, torna-se senso comum universal ou, se já o era, consegue se fortalecer ainda mais.

Como foi possível justificar uma série tão notável de fracassos? Boa parte da culpa, segundo Skidelsky, pode ser atribuída ao filósofo escocês David Hume. Um dos primeiros defensores da QTM, Hume também foi o primeiro a introduzir a noção de que choques de curto prazo – como os produzidos por Locke – criariam benefícios a longo prazo se tivessem o efeito de liberar os poderes de autorregulação do mercado:

Desde Hume, os economistas distinguem entre os efeitos de curto e de longo prazo da mudança econômica, incluindo os efeitos de intervenções políticas. A distinção serviu para proteger a teoria do equilíbrio, permitindo que ela fosse enunciada de uma forma que levasse em conta a realidade. Em Economia, o curto prazo agora normalmente representa o período durante o qual um mercado (ou uma economia de mercado) se desvia temporariamente de sua posição de equilíbrio de longo prazo sob o impacto de algum “choque”, como um pêndulo temporariamente desalojado de uma posição de descanso. Esse modo de pensar sugere que os governos devem deixar que os mercados descubram suas posições de equilíbrio natural. As intervenções do governo para “corrigir” os desvios adicionarão apenas camadas extras de ilusão à original.

Existe uma falha lógica em qualquer teoria desse tipo: não há maneira possível de refutá-la. A premissa de que os mercados sempre se endireitam no final só pode ser testada se alguém tiver uma definição comum de quando será o “fim”. Mas para os economistas, essa definição acaba sendo “o tempo que leva para chegar a um ponto em que posso dizer que a economia voltou ao equilíbrio”. (Da mesma forma, é impossível demonstrar o erro de afirmações como “os bárbaros sempre vencem no final” ou “a verdade sempre prevalece”, pois na prática elas apenas querem dizer“ sempre que os bárbaros vencerem, ou que a verdade prevalecer, declararei a história terminada”).

Nesse ponto, todas as peças estavam no lugar: políticas de aperto monetário (que beneficiavam credores e ricos) podiam ser justificadas como “remédio severo” para apagar os sinais de preço, de modo que o mercado pudesse retornar a um estado saudável de equilíbrio de longo prazo. Ao descrever como tudo isso aconteceu, Skidelsky está nos fornecendo uma extensão digna de uma história que Karl Polanyi começou a traçar nos anos 1940: a história de como os mercados nacionais supostamente auto-regulados eram o produto de cuidadosa engenharia social. Parte disso envolvia a criação de políticas governamentais conscientemente projetadas para inspirar ressentimentos contra o “big government” (“Estado inchado”). Skidelsky escreve:

Uma inovação crucial foi o imposto de renda, cobrado pela primeira vez em 1814 e renovado pelo [primeiro-ministro Robert] Peel em 1842. Entre 1911 e 14, ele se tornou a principal fonte de receita do governo. O imposto de renda teve o duplo benefício de fornecer ao Estado britânico uma base de receita segura e alinhar os interesses dos eleitores ao governo barato, uma vez que apenas os contribuintes tiveram o direito ao voto…. “Probidade fiscal”, sob Gladstone, “tornou-se a nova moralidade”.

De fato, não há absolutamente nenhuma razão para um Estado moderno se financiar pela apropriação de uma proporção dos ganhos de cada cidadão. Existem muitas outras maneiras de fazer isso. Muitas – como impostos sobre terras, riquezas, comércio ou sobre o consumidor (qualquer um dos quais pode ser tornado mais ou menos progressivo) – são consideravelmente mais eficientes, além do que a criação de um aparato burocrático capaz de monitorar os assuntos pessoais dos cidadãos no grau exigido pelo sistema de imposto de renda e, em si, enormemente caro. Mas isso não leva ao ponto real: o imposto de renda deve ser intrusivo e irritante. Precisa produzir pelo menos certa sensação de injustiça. Como grande parte do liberalismo clássico (e do neoliberalismo contemporâneo), é um truque político engenhoso — uma expansão do Estado burocrático que também permite que seus líderes finjam advogar por um Estado mínimo.

A única exceção importante a esse padrão foram os meados do século XX, que passaram a ser lembrados como a era keynesiana. Foi um período em que as democracias capitalistas, apavoradas com a Revolução Russa e a perspectiva de rebelião em massa de suas próprias classes trabalhadoras, permitiram níveis sem precedentes de redistribuição – o que, por sua vez, levou à prosperidade material mais generalizada da história da humanidade. A história da revolução keynesiana da década de 1930 e a contra-revolução neoclássica da década de 1970 já foi contada inúmeras vezes, mas Skidelsky dá ao leitor uma nova sensação do conflito subjacente.

O próprio Keynes era um anticomunista convicto, mas em grande parte porque achava que o capitalismo era mais propenso a impulsionar o rápido avanço tecnológico, de modo a eliminar amplamente a necessidade de trabalho material. Ele desejava o pleno emprego não porque achava que o trabalho era bom, mas porque, em última análise, desejava acabar com o trabalho, imaginando uma sociedade em que a tecnologia tornaria obsoleto o trabalho humano. Em outras palavras, ele assumiu que o terreno estava sempre movendo-se sob os pés dos analistas; o objeto de qualquer ciência social era inerentemente instável. Max Weber, por razões semelhantes, argumentou que nunca seria possível aos cientistas sociais inventar algo remotamente parecido com as leis da física, porque no momento em que chegassem perto de reunir informações suficientes, a própria sociedade e aquilo que os analistas sentiam ser importante saber sobre ela, teria mudado tanto que as informações se tornariam irrelevantes. Os oponentes de Keynes, por outro lado, estavam determinados a enraizar seus argumentos em algo que consideravam como princípios universais.

É difícil para não especialistas ver o que realmente está em jogo aqui, porque o argumento passou a ser recontado como uma disputa técnica entre os papéis da micro e macroeconomia. Os keynesianos insistiram que o primeiro é apropriado para estudar o comportamento de famílias ou empresas individuais, que tentam ampliar sua vantagem no mercado; mas que, assim que se começa a olhar para as economias nacionais, está se mudando para um nível de complexidade totalmente diferente, onde diferentes tipos de leis se aplicam. Assim como é impossível entender os hábitos de acasalamento de um porco-espinho analisando todas as reações químicas em suas células, os padrões de comércio, investimento ou flutuações nas taxas de juros ou emprego não eram apenas o agregado de todas as microtransações que pareciam produzi-los. Os padrões tinham, como diriam os filósofos da ciência, “propriedades emergentes”. Obviamente, era necessário entender o nível micro (assim como era necessário entender a química que compunha o porco-espinho) para ter alguma chance de entender o nível macro. Mas isso não era, por si só, suficiente.

Os contra-revolucionários – começando com o antigo rival de Keynes, Friedrich Hayek e os vários luminares que se juntaram a ele na Sociedade Mont Pelerin – apostaram diretamente nessa noção de que as economias nacionais não são nada mais que a soma de suas partes. Politicamente, observa Skidelsky, isso se deveu a uma hostilidade à própria ideia de Estado (e, em um sentido mais amplo, a qualquer bem coletivo). As economias nacionais poderiam de fato ser reduzidas ao efeito agregado de milhões de decisões individuais e, portanto, todos os elementos da macroeconomia precisavam ser sistematicamente “micro-fundados”.

Uma razão pela qual essa posição era tão radical é a de que ela foi tomada exatamente no mesmo momento em que a própria microeconomia estava completando uma profunda transformação – que havia começado com a revolução marginalista do final do século XIX. Passava de uma técnica, para entender como aqueles que operavam o mercado tomam decisões, a uma filosofia geral da vida humana. Foi capaz de fazê-lo, de modo notável, propondo uma série de suposições que até os próprios economistas estavam felizes em admitir que não eram realmente verdadeiras. “Vamos supor”, diziam eles, “sujeitos puramente racionais, motivados exclusivamente pelo interesse próprio, que sabem exatamente o que querem, nunca mudam de ideia e têm acesso completo a todas as informações relevantes sobre preços”. Isso lhes permitiu fazer equações precisas sobre exatamente como se deveria esperar que os indivíduos agissem…

Certamente não há nada de errado em criar modelos simplificados. Pode-se argumentar que é assim que qualquer ciência dos assuntos humanos deve proceder. Mas uma ciência empírica passa a comparar esses modelos com o que as pessoas realmente fazem, para então ajustar seus modelos. Isso é precisamente o que os economistas não fizeram. Em vez disso, descobriram que, se alguém envolvesse esses modelos em fórmulas matemáticas completamente impenetráveis para os não iniciados, seria possível criar um universo no qual essas premissas nunca pudessem ser refutadas. (“Todos os atores estão envolvidos na maximização da utilidade. O que é utilidade? O que quer que seja que um ator pareça estar maximizando”). As equações matemáticas permitiram aos economistas afirmar de forma plausível que a disciplina deles era o único ramo da teoria social que avançara para algo como uma ciência preditiva (mesmo que a maioria de suas previsões bem-sucedidas fosse do comportamento de pessoas que haviam sido treinadas em teoria econômica).

Isso permitiu que o Homo economicus invadisse o restante da academia, de modo que, nas décadas de 1950 e 1960, quase todas as disciplinas acadêmicas no negócio de preparar jovens para posições de poder (ciência política, relações internacionais, etc.) haviam adotado alguma variante de “teoria da escolha racional” – em última análise, extraída da microeconomia. Nas décadas de 1980 e 1990, havia-se chegado a um ponto em que nem mesmo os chefes de fundações de arte ou organizações de caridade seriam considerados totalmente qualificados se não estivessem ao menos amplamente familiarizados com uma “ciência” dos assuntos humanos que partia da suposição de que os humanos eram fundamentalmente egoístas e gananciosos.

Essas eram, então, as “microfundações” às quais os reformadores neoclássicos exigiam que a macroeconomia retornasse. Aqui eles foram capazes de tirar proveito de certas fraquezas inegáveis nas formulações keynesianas. Acima de tudo sua incapacidade de explicar a estagflação da década de 1970, de afastar a superestrutura keynesiana restante, para retornar à mesma política de dinheiro duro e Estado enxuto que havia sido dominante no mundo do século XIX. O padrão tradicional se seguiu. O monetarismo não funcionou; no Reino Unido e depois nos EUA, essas políticas foram rapidamente abandonadas. Mas ideologicamente, a intervenção foi tão eficaz que, mesmo quando “novos keynesianos” como Joseph Stiglitz ou Paul Krugman voltaram a dominar o debate sobre macroeconomia, eles ainda se sentiam obrigados a manter as novas microfundações.

O problema, como Skidelsky enfatiza, é que, se suas suposições iniciais forem absurdas, multiplicá-las por mil vezes dificilmente as tornará menos absurdas. Ou, como diz, de maneira menos gentil, “premissas lunáticas levam a conclusões malucas”:

A hipótese do mercado eficiente (EMH), popularizada por Eugene Fama … é a aplicação das expectativas racionais aos mercados financeiros. A hipótese das expectativas racionais (REH) diz que os agentes utilizam de maneira ideal todas as informações disponíveis sobre a economia e a política instantaneamente para ajustar suas expectativas….

Assim, nas palavras de Fama, … “Em um mercado eficiente, a concorrência entre os muitos participantes inteligentes leva a uma situação em que … o preço real de um título será uma boa estimativa de seu valor intrínseco”. [Grifo de Skidelsky]

Em outras palavras, éramos obrigados a fingir que os mercados não poderiam, por definição, estar errados. Se, na década de 1980, o terreno em que o complexo Imperial em Tóquio foi construído, por exemplo, era mais valorizado do que a de todos os terrenos de Nova York, então isso teria que ser porque era o que realmente ele valia. Se houver desvios, eles são puramente aleatórios, “estocásticos” e, portanto, imprevisíveis, temporários e, em última análise, insignificantes. De qualquer forma, atores racionais irão rapidamente intervir para varrer quaisquer ações subvalorizadas. Skidelsky observa secamente:

Há um paradoxo aqui. Por um lado, a teoria diz que não há sentido em tentar lucrar com a especulação, porque as ações sempre são precificadas corretamente e seus movimentos não podem ser previstos. Mas, por outro lado, se os investidores não tentassem lucrar, o mercado não seria eficiente porque não haveria mecanismo de autocorreção.

Em segundo lugar, se as ações sempre tiverem preços corretos, bolhas e crises não poderão ser geradas pelo mercado….

Essa atitude entrou na política: “funcionários do governo, começando com Alan Greenspan, presidente do Federal Reserve, não estavam dispostos a estourar a bolha precisamente porque não estavam dispostos a sequer julgar que se tratava de uma bolha”. Isso impossibilitou a identificação de bolhas porque descartou-as a priori.

Se houver uma resposta para a famosa pergunta da rainha da Inglaterra, sobre por que ninguém previu a grande crise, será essa.

Neste ponto, chegamos ao círculo completo. Após um embaraço tão catastrófico, os economistas ortodoxos recorreram ao seu forte apelo – política acadêmica e poder institucional. No Reino Unido, um dos primeiros movimentos da nova coalizão entre Conservadores e Liberal-democratas, em 2010, foi reformar o sistema de ensino superior triplicando as mensalidades e instituindo um regime de empréstimos estudantis ao estilo norte-americano. O senso comum poderia sugerir que, se o sistema educacional estivesse funcionando com êxito (apesar de todos os seus pontos fracos, o sistema universitário britânico era considerado um dos melhores do mundo), enquanto o sistema financeiro estava operando tão mal que quase destruía a economia global, o mais sensato seria reformar o sistema financeiro para parecer um pouco mais com o sistema educacional, e não o contrário. Um esforço agressivo para fazer o oposto poderia ser apenas um movimento ideológico. Foi um ataque total à própria ideia de que o conhecimento poderia ser outra coisa senão um bem econômico.

Movimentos semelhantes foram feitos para solidificar o controle sobre a estrutura institucional. A BBC, outrora orgulhosamente independente, sob os Conservadores, passou a assemelhar-se cada vez mais a uma rede de radiodifusão estatal. Seus comentaristas políticos recitavam quase literalmente os últimos pontos de discussão do partido no poder – que, pelo menos economicamente, tinham como premissa as próprias teorias que acabavam de ser desacreditadas. O debate político simplesmente supunha que o “remédio” usual e a “probidade fiscal” gladstoniana eram a única solução. Ao mesmo tempo, o Banco da Inglaterra começou a imprimir dinheiro como louco, efetivamente entregando-o ao 1%, em uma tentativa malsucedida de desbaratar a inflação. Os resultados práticos foram, para dizer o mínimo, pouco inspiradores. Mesmo no auge da “recuperação”, no quinto país mais rico do mundo, algo como um cidadão britânico em cada doze experimentou fome, inclusive passando dias inteiros sem comida. Se uma “economia” deve ser definida como o meio pelo qual uma população humana se provê de suas necessidades materiais, a economia britânica é cada vez mais disfuncional. Esforços frenéticos por parte da classe política britânica para mudar de assunto (Brexit) dificilmente poderão durar para sempre. Em algum momento, os problemas reais terão que ser abordados.

A teoria econômica, tal como existe, assemelha-se cada vez mais a um galpão cheio de ferramentas quebradas. Isso não quer dizer que não haja informações úteis, mas fundamentalmente a disciplina existente é projetada para resolver os problemas de outro século. O problema de como determinar a distribuição ideal do trabalho e dos recursos, para criar altos níveis de crescimento econômico, simplesmente não é o mesmo problema que estamos enfrentando agora: isto é, como lidar com o aumento da produtividade tecnológica, a redução da demanda real de trabalho e o manejo eficaz dos trabalhos relacionando ao cuidado, sem também destruir a Terra. Isso exige uma ciência diferente. As “microfundações” da economia atual são precisamente o que está impedindo isso. Qualquer ciência nova e viável terá que recorrer ao conhecimento acumulado do feminismo, economia comportamental, psicologia e até antropologia para apresentar teorias baseadas em como as pessoas realmente se comportam, ou mais uma vez abraçar a noção de níveis emergentes de complexidade – ou, provavelmente, ambos.

Intelectualmente, isso não será fácil. Politicamente, será ainda mais difícil. Romper com o bloqueio da economia neoclássica nas principais instituições e seu domínio quase-teológico sobre a mídia – para não mencionar todas as maneiras sutis para definir nossas concepções de motivações humanas e os horizontes das possibilidades humanas – é uma perspectiva assustadora. Presumivelmente, algum tipo de choque seria necessário. O que é preciso? Outro colapso no estilo de 2008? Alguma mudança política radical em um grande governo, de repercussão mundial? Uma rebelião global da juventude? Seja como for, livros como este – e possivelmente este livro de Skidelsky – terão um papel crucial.

 Moral, ética e os valores da sociedade contemporânea

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            O poder cada vez maior do dinheiro, do capital e dos recursos monetários estão gerando grandes transformações no indivíduo, mudando hábitos, costumes e comportamentos, causando constrangimentos, medos e desesperanças, mas ao mesmo tempo, criando um grande laboratório para que se compreenda os seres humanos, seus valores e sua natureza.

Um dos grandes males da expansão do capitalismo na sociedade mundial é que, neste sistema, tudo pode ser comercializado, tudo se compra, tudo se vende, o local deste comércio é conhecido como mercado, que passa a ter um poder incomensurável, se parecendo mais como uma religião, como um grande Deus ou uma divindade, do que como um espaço de trocas e de satisfações pessoais, o mercado ganha um status sobrenatural e todos os indivíduos devem se adaptar a esta nova realidade, sob pena de ser condenado ao esquecimento eterno, ao purgatório do desemprego, a exclusão social e a desesperança com relação ao futuro.

Neste mundo baseado e estruturado na matéria, a Doutrina Espírita surge como um grande oásis de reflexão sobre a vida, a partir da Terceira Revelação os indivíduos passaram a perceber que o mundo não se restringe apenas a vivência material, somos espíritos imortais, nascemos e vivemos em vários corpos e em inúmeras oportunidades, nascemos várias vezes, fomos homens ou mulheres, ricos ou pobres, dotados de conhecimentos ou não, somos um misto de muitos indivíduos dentro de um mesmo espírito, vivemos várias vidas e trazemos todas elas dentro de nosso íntimo, com isso, começamos a compreender muitos dos desequilíbrios e desajustes que cultivamos intimamente e que não conseguiremos compreender em apenas uma única existência, por isso estamos em constantes momentos de vida, uns no mundo material e outras no mundo imaterial.

No mundo contemporâneo estamos sendo testados todos os momentos, o poder do dinheiro, do capital e do luxo é imenso, todos somos atraídos pelos seus encantos, pelo seu glamour e pela sua ostentação, tudo isso nos gera prazer e nos coloca em evidência e revive nossos mais mesquinhos desejos e vontades. Vivemos numa sociedade onde as pessoas são avaliadas pelo que possuem, pelos seus recursos monetários, pelas suas propriedades e pelos seus títulos, muitos conceituam-na como meritocracia, mas na verdade é uma sociedade centrada na exclusão e na exploração, o que muitos não querem enxergar, é que quem hoje explora amanhã pode ser o explorado.

A Doutrina Espírita nos mostra, claramente, que somos frutos de uma constante evolução, estamos sempre progredindo, uns acumulam mais conhecimento, outros se elevam moralmente, outros evoluem em seus desprendimentos, mas estamos evoluindo, esta é a lei criada por Deus. A evolução é estimulada pelas leis naturais, em alguns momentos acreditamos que tudo está perdido, que estamos regredindo e andando para trás, tudo não passa de uma visão limitada e enganosa, se não estamos evoluindo por nós mesmos, os amigos espirituais estimulam a evolução, inspirando ações, enviando espíritos mais evoluídos para nos direcionar e nos mostrando caminhos mais consistentes e solidificados, com isso, somos impelidos ao crescimento, mesmo sabendo que muitos se comprazem com a situação atual, para estes as dores, as doenças e os vazios existenciais, as dúvidas constantes e os medos servem como uma verdadeira alavanca que nos impulsiona para a reflexão, para a busca e para as novas descobertas que passam a dar mais sentido à vida e consistência para nossas ações e comportamentos.

Estas dores, embora causem fortes constrangimentos aos indivíduos, nos forçam para uma busca mais consciente da existência humana, muitas pessoas buscam as casas espíritas e os conhecimentos oriundos da Doutrina dos Espíritos para compreenderem questões íntimas e pessoais, tristezas, mágoas e ressentimentos acumulados. Quantos irmãos se veem em dores morais e em vazios existenciais e buscam compreender o porquê estão solitários, qual a raiz de sua solidão e qual o sentido de suas existências no mundo material. A maioria dos indivíduos vive por viver, acorda sem refletir, se alimenta por se alimentar, trabalha por trabalhar e não se questiona o significado de todas estas atividades cotidianas, estes indivíduos tendem, ao desencarnar, não compreenderem sua situação no mundo imaterial, vivendo na ignorância, no desconhecimento e na escuridão, são indivíduos que sempre viveram atrelados a matéria, aos valores do dinheiro e não se preocuparam com a grandeza da existência humana.

Na atual existência física precisamos estar conscientes de que somos seres deveras imperfeitos, todos cometemos equívocos variados, nossa trajetória de vidas passadas se mostra muito espinhosas, cometemos erros terríveis, agredimos, ultrajamos, vilipendiamos, caluniamos, muitos cometeram inúmeros crimes e assassinatos, além de termos, em muitas existências abandonamos pessoas que na atualidade estão ao nosso lado para o reajuste, afinal, não podemos nunca nos esquecer de que somos imperfeitos. Diante de tudo isso, devemos evitar os julgamentos, quando apontamos o dedo para outro indivíduo, quando menosprezamos aqueles que cometeram equívocos, quando nos colocamos como superiores de nossos colegas ou conhecidos, estamos nos esquecendo de nosso passado, de nossos crimes e de nossos desequilíbrios. Embora queiramos esconder este passado nos vãos de nosso subconsciente, ele está mais vivo do que imaginamos e sempre ressurgirá quando nos colocarmos como superiores e julgarmos nossos irmãos em queda, tenhamos misericórdia e oremos por estes irmãos, afinal, todos nós, com certeza, gostaríamos que os outros agissem desta forma conosco em nossas quedas e em nossos inúmeros deslizes.

Na contemporaneidade vivemos um discurso preocupante sobre valores morais e éticos, nos colocamos sempre do lado do bem e degradamos todos aqueles que agem de uma forma equivocada, muitas vezes os agredimos para mostrar nossa superioridade moral, alardeando os valores cristãos, mas no íntimo agimos sempre de acordo com nossos interesses e deixamos de lado os valores mais sólidos e consistentes, lembremos sempre dos ensinamentos de Jesus: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Porque sois semelhantes aos sepulcros caiados, que por fora realmente parecem formosos, mas por dentro estão cheios de ossos e de toda imundície. Assim também vos exteriormente pareceis justos aos homens, mas por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniquidade”.

Os julgamentos devem ser evitados a todos os momentos, a Doutrina Espírita nos mostra claramente que somos indivíduos, com muitas existências físicas, nestas vivências cometemos equívocos que, se tomássemos consciência na atualidade, estaríamos internados em hospitais psiquiátricos, nossos erros foram tremendos e estão dentro de nossa intimidade e a qualquer momento podemos acessar estes desequilíbrios e os resultados seriam desastrosos, levando-nos a desajustes emocionais severos. Sabendo destes ricos e pormenores da vida de cada um, o espiritismo nos mostra que, ao renascer no corpo material, passamos a esquecer momentaneamente este passado sombrio, ficam encastelados em nossos subconscientes para que, aos poucos, possamos compreender, digerir e expiar de forma consciente para que alcancemos o progresso espiritual e o tão almejado desenvolvimento espiritual.

Muitos irmãos nascem em famílias com graves desequilíbrios emocionais e espirituais, vivem em situações difíceis, passam por privações materiais e recebem em seu ventre crianças especiais, indivíduos dotados de grande inteligência, mas que se equivocaram em vidas anteriores e, na atualidade, nascem com deficiências físicas ou sensoriais, estão expiando seus erros pregressos, nasceram nestes lares e com estes familiares, porque estes, em algum momento de sua existência anterior contribuíram para agravar estes desajustes.

A Doutrina Espírita nos mostra claramente que não existe acaso, todos os nossos atos são computados no grande computador da vida, quando agimos bem e de forma carinhosa, quando somos caridosos e atenciosos com os indivíduos, recebemos da vida este mesmo carinho e esta mesma atenção, a vida nos retorna tudo aquilo que nós damos e, com isso, nosso caráter e nossos valores são elevados a uma categoria maior, denotando nossa evolução.

Numa das passagens mais interessantes do livro Nosso Lar, psicografia de Francisco Cândido Xavier e ditado pelo espírito do médico André Luiz, o autor espiritual nos mostra que poucas pessoas oraram para ele quando este se encontrava encarnado, sua mãe e uma senhora cujo marido tinha sido atendido algumas vezes de graça em seu consultório, como retribuição esta senhora orou por ele pedindo proteção e agradecendo as consultas, estas preces foram muito importantes no mundo físico e também no mundo espiritual, auxiliando em suas dificuldades e limitações. Neste episódio, o Espiritismo nos mostra como a prece é um instrumento fundamental para que consigamos nos equilibrar espiritualmente e serve como um instrumento de auxílio e proteção aos outros e de agradecimento a Deus, a oração mostra nossa humildade e disseca nossos sentimentos mais íntimos e pessoais.

Fujamos sempre de julgar os outros indivíduos, o que não queremos para nós não devemos fazer para as outras pessoas, se julgarmos nossos semelhantes estamos abrindo caminho para que sejamos julgados e neste julgamentos, com certeza, seremos condenados, afinal, precisamos compreender que estamos encarnados em um mundo de expiação e de prova, nascemos neste planeta porque somos atraídos pelas energias emanadas deste local, se são energias negativas e atrasadas, é porque ainda trazemos muito destas energias desequilibradas dentro de cada um de nós.

A melhor forma de progredirmos espiritualmente neste mundo marcado pelo atraso moral e pelos valores do dinheiro, é nos vigiarmos e mantermos sempre a disciplina, o comportamento reto e a vigilância de nossos pensamentos. Controlar os nossos sentimentos não é algo fácil e imediato, para que consigamos devemos entender que tudo deve ser visto como um grande processo, devemos exercitar estes sentimentos e pensamentos, devemos fazer caridade, devemos cultivar o hábito da oração, devemos compreender que a natureza não dá saltos, tudo acontece ao seu tempo, mas devemos nos dedicar, estudar, refletir e compreender que evoluímos paulatinamente nas várias oportunidades que a espiritualidade nos concede, entendamos tudo isso e, com certeza, viveremos melhor e seremos luzes para o progresso de todos que nos ladeiam, o progresso individual leva a comunidade a um progresso coletivo e o indivíduo a progredir para mundo melhores, onde a violência se reduz, a solidariedade aumenta e a proximidade com o progresso se faz mais evidente em cada ser humano.

Liberalismo e Conservadorismo no Brasil Contemporâneo

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Estamos vivendo um momento único de grande apreensão na sociedade brasileira, depois de cinco anos de crise econômica, incremento acelerado do desemprego, redução sistemática nos salários e na renda agregada, estamos retomando algum crescimento econômico, ainda muito lento e reduzido, mas a economia começa a dar sinais de retomada, gerando aplausos e comemorações de um lado e fortes preocupações do outro, com isso, estamos vivendo mais um dos inúmeros paradoxos da economia brasileira.

A agenda liberal parece estar sendo blindada pelos grandes grupos econômicos que defendem este governo, as medidas liberalizantes parecem ser o ideal a ser conquistado, privatizar empresas estatais, acelerar a abertura da economia, desregulamentar o sistema econômico, diminuir os custos do trabalho e facilitar os investimentos privados como forma de incrementar o empreendedorismo e a inovação. São medidas que estão sendo fortemente implementadas pelo governo federal, acreditando que, desta forma, a economia brasileira tende a encontrar o caminho para o crescimento econômico, para a redução das desigualdades sociais e para uma melhora no ambiente de negócio, atraindo recursos externos e dinamizando o desenvolvimento econômico do país.

São medidas ousadas, algumas delas nos parecem bastante necessárias e fundamentais para destravar a economia brasileira, que durante muitas décadas se viu envolta em discussões desnecessárias, onde o Estado ganhou um protagonismo exagerado, abrindo espaço para que grupos organizados parasitassem os escaninhos do poder em busca de subsídios excessivos, além de benefícios fiscais e orçamentários, contribuindo para a degradação dos serviços públicos e, ao mesmo tempo, mantendo elevados os serviços da dívida pública que os beneficiavam com retornos financeiros altos em detrimento da desestruturação do Estado Nacional. Uma reconfiguração deste Estado deve ser uma das prioridades da sociedade brasileira, como os governos ditos de esquerda não tiveram coragem de encarar esta missão, outros governos devem se candidatar a cumprir com estes objetivos, embora saibamos que neste momento as políticas a serem adotadas pelo governo devem beneficiar alguns grupos em detrimento de outros, os grandes empresários e o setor financeiro aparecem como ganhadores, enquanto os grupos mais vulneráveis da sociedade serão os grandes perdedores deste novo modelo, quem sobreviver poderá constatar, depois da euforia vamos nos encontrar com a realidade.

A agenda econômica está centrada na diminuição do papel do Estado, segundo integrantes do governo, devemos privatizar tudo, este seria o grande objetivo dos economistas liberais liderados pelo Ministro da Economia, Paulo Guedes, com isso, reduziríamos a dívida pública e teríamos recursos para investimentos sociais, recuperando a capacidade de investimento do Estado atualmente em situação de insolvência e penúria fiscal, habilitando o governo a uma atuação mais efetiva na regulação, embora discreta dos mercados, deixando para os grupos econômicos o comando dos setores produtivos, reduzindo os incentivos fiscais e financeiros para os grupos industriais, além da redução do papel do BNDES e da diversificação dos mercados externos, aumentando os acordos comerciais e, se necessário, saindo do Mercosul, visto com desdém pelas lideranças que comandam a economia do país, estas medidas devem ser vistas como uma grande revolução para a economia brasileira, com medidas extremas e necessárias e outras marcadas pelo fanatismo e pelo excesso de pendor ideológico. Depois de um governo mais afeito aos pensamentos da esquerda, da intervenção e do Estado grande, estamos em um momento onde estamos colocando um governo mais sensível ao pensamento da direita, menos intervencionista e mais centrado na iniciativa privada.

Diminuir o papel do Estado é uma medida essencial e deve ser adotada com urgência, transferindo a atuação direta da produção para a regulação e melhorando os serviços públicos, racionalizando o uso do dinheiro público, dando transparência a todos os recursos investidos e criando a cultura, inexistente no Brasil, de avaliar todos os serviços e atividades prestadas pelos entes governamentais, analisando se os recursos estão trazendo os benefícios desejados e esperados pela sociedade. Sem avaliações positivas estes serviços devem ser substituídos ou melhorados de forma a gerar os benefícios para a comunidade de uma forma geral, sem viés ideológico nos programas e enfoque na eficiência das políticas, para isso, cabe ao governo e a sociedade civil se transformarem em agentes ativos na avaliação e no controle das políticas públicas.

A forte aproximação com ideias liberais pode trazer transtornos futuros para o governo, como estamos vendo em sociedades que fizeram ajustes duros, privatizaram todas as empresas e transferiram os serviços para grupos e conglomerados privados, esta visão pode conter um forte equívoco cujos impactos podem ser bastante negativos, vide o caso do Chile, de exemplo de políticas liberais e melhoria nos ambientes de negócio, até uma posição de agitação social e movimentos de rua sem controle, cujas reclamações envolvem os graves desequilíbrios gerados pelas políticas para os setores populares. A adoção de políticas visando diminuir os custos de contratação devem ser encaradas como positivas, mas estas medidas não devem culminar em mais desequilíbrios na Previdência Social ou no fundo de garantia, muito menos devem ser bancadas com descontos sobre o seguro desemprego de trabalhadores desempregados. Estes recursos devem ser extraídos de impostos mais efetivos sobre heranças e aplicações financeiras e, principalmente, sobre as isenções fiscais e tributárias que são concedidas para os grandes grupos econômicos nacionais, que de um lado criticam o governo e sua ineficiência de forma veemente enquanto do outro se utiliza de seu poder econômico e de seu forte lobby político para extrair da sociedade isenções fiscais e ganhos tributários elevados.

Encontramos muitas falas desprezíveis, deselegantes e desnecessárias e que poderiam ser evitadas para que se crie o ambiente salutar para atrair os grandes investimentos nacionais e internacionais, para que o país consiga construir uma recuperação econômica mais sólida e consistente, fugindo dos voos rasteiros e alçando novos horizontes. Nestas falas encontramos pensamentos preconceituosos, gestos tresloucados, comentários maldosos e opiniões precipitadas que interditam o debate, constrangem os contendores e espalham ventos de intolerância, violência e agressividades.

Percebemos também uma crescente falta de tato de integrantes do governo com postagens agressivas nas redes sociais, pessoas estimulando ódios e ressentimentos, debates eivados de violência e de intolerância, além de ofensas pessoais e palavras de baixo calão. Nestes debates encontramos discussões que servem apenas para criar um ambiente de constantes confrontos, estimulando grupos organizados e exércitos de difamação que trabalham exaustivamente para que os debates sejam interrompidos e todos que pensam de forma contrária sejam acusados de esquerdistas e comunistas, vendo nestas pessoas figuras deletérias, corruptas e que não comungam com o bem do país e o progresso do povo brasileiro, devendo portanto, ser aniquilados e trucidadas pelos agentes do bem e da ordem.

Estamos vendo o crescimento de uma agenda conservadora ultrapassada, grupos religiosos intolerantes e defensores de ideias retrógradas estão ganhando espaço dentro do Estado Nacional. Estamos vivenciando no Brasil contemporâneo discursos agressivos e contrários aos homossexuais, às lésbicas e aos gays, fomentamos discursos intolerantes com os grupos indígenas e suas terras demarcadas, preconceitos com negros e intolerâncias generalizadas, estamos regredindo em termos civilizatórios, estamos retomando pensamentos arcaicos e nos deixando levar pela obscuridade crescente que alimentamos durante muitos anos. Neste momento tudo é possível e aceitável, até mesmo aprovar o excludente de ilicitude e estimular as mortes, desde que elas ocorram nas favelas e nas comunidades pobres e miseráveis, como estamos vendo todos os dias.

Estamos vivendo a introdução de uma agenda conservadora agressiva e intolerante marcada por pitadas de liberalismo econômico, neste casamento por conveniência um dos lados deve se conscientizar de que a convivência será impossível. Para muitos o liberalismo pressupõe democracia, pluralidade e discussões democráticas, enquanto o conservadorismo que estamos presenciando se caracteriza por forte componente ideológico, radical e intolerante. Saímos de um pensamento ideologizado de esquerda e estamos rumando para um pensamento ideologizado de direita, no Brasil, podemos dizer, com certeza, que a direita se assumiu enquanto tal e saiu do armário, intensificando o conflito e aumentando os desafios políticos no caos contemporâneo.

Os valores liberais tendem a divergir rapidamente dos valores conservadores, criando espaços de dissensos ou se adaptando para garantir seus ganhos políticos imediatos. Os liberais acreditam ser defensores da democracia, mas aceitam regimes de exceção, como no governo de Augusto Pinochet, no Chile, desde que estes adotem políticas racionais, entendendo racionais como as políticas que atuam para liberar os mercados dos braços fortes dos Estados, incrementar as privatizações, garantindo aos atores privados novos horizontes de investimentos, espaços para jogatinas e desregulamentação financeira, mesmo que estes gerem degradação social, aumento da desigualdade e da exclusão social, afinal se acreditam melhores, pois são frutos da meritocracia, como se existisse meritocracia em uma sociedade marcada por exclusão social e pobrezas crescentes.

As políticas liberais estão seduzindo a elite econômica brasileira, grupos de classe média alta acreditam piamente que as medidas adotadas pelo ministério da Economia tendem a garantir forte crescimento econômico. Quando estas medidas começarem a fazer efeito e o Estado perder toda a capacidade de atuação, quando as barreiras protecionistas forem abolidas e quando os resultados econômicos não vierem da forma como muitos acreditam, o entusiasmo com o governo tende a arrefecer e as críticas tendem a aumentar, com sérios riscos de o sistema entrar em colapso e os tão temidos movimentos sociais poderão se tornar uma realidade, como estamos vendo em vários países do mundo e, principalmente, em países da América Latina, como Chile, Colômbia, Peru e Bolívia.

As medidas que estão em estudo pelo governo federal tendem a diminuir fortemente a proteção aos grupos nacionais, além de reduzir muitos repasses de recursos para políticas sociais, contingenciando recursos para saúde e educação, com isso, os conglomerados privados tendem a ganhar novos espaços nestas áreas. Na educação, recentemente, o ministro propôs que as próprias instituições particulares passassem a se regular, diminuindo a atuação do Ministério e garantindo maiores espaços para os grupos privados, com isso, teríamos no médio prazo poucos agentes dominando todo o setor educacional, que para atuar demitiriam todos os professores com mestrado e doutorado e contratariam especialistas e profissionais sem experiência, diminuindo custos, aumentando a quantidade de diplomados e garantindo mão de obra barata e teoricamente qualificada para as empresas de entrega, tais como Uber, com isso teríamos a chamada uberização da economia, empregos precários, salários reduzidos e ausência de proteção social.

Muitos grupos estão atuando fortemente nas redes sociais e defendendo as políticas liberalizantes, como se estas fossem trazer os ganhos imaginados pela população brasileira, muitos foram para as urnas e votaram no novo, acreditaram no discurso da racionalidade e da segurança, embora todos desejamos a melhora do país e o tão sonhado crescimento econômico, estamos num momento onde a distância dos países desenvolvidos tende a aumentar rapidamente, nunca estivemos tão distante deste mundo tão sonhado, que sabe que todos compreendamos que, ao invés de sonhar, estamos mesmo em um pesadelo, e pior, este pesadelo parece estar apenas no seu início.

 

 

 

 

 

Fundamentalismo de mercado pode ser calcanhar de Aquiles de Bolsonaro

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Laura Carvalho argumenta que, no Brasil, conservadorismo moralista se uniu à agenda da Faria Lima 

Folha de São Paulo, 01/12/2019.

Laura Carvalho

[RESUMO] A eleição do populismo autoritário de direita como rejeição ao establishment político uniu, no Brasil, a agenda do conservadorismo moralista ao fundamentalismo de mercado.

Ao cogitar um novo AI-5 como resposta a eventuais protestos contra seu ambicioso pacote de reformas, o ministro da Economia, Paulo Guedes, desenhou para quem ainda se recusava a enxergar que o governo Bolsonaro não tem duas alas distintas: Estado mínimo na proteção social pede Estado máximo no encarceramento e na repressão, como bem alertou Loïc Wacquant em seu livro “As Prisões da Miséria” (Zahar).

No entanto, ainda que a associação íntima entre fundamentalismo de mercado e autoritarismo não seja nenhuma novidade para quem conhece o entusiasmo de Guedes e do próprio presidente Jair Bolsonaro pelo governo de Augusto Pinochet no Chile, essa agenda destoa de outros movimentos de extrema direita do mundo atual.

No caso da guerra comercial promovida por Donald Trump ou do brexit no Reino Unido, ficam muito claros a incompatibilidade com os princípios do liberalismo econômico e o contraste com a própria agenda de Guedes, que defende uma abertura comercial indiscriminada e unilateral no Brasil. Mas e o governo de Viktor Orbán na Hungria, que vem sendo fonte de um vasto repertório de ideias autoritárias adotadas pelo bolsonarismo como forma de interferir nos meios de comunicação e no Judiciário do país?

Em artigo publicado no jornal The New York Times em 16/10, intitulado “The case for populism” (a defesa do populismo), Maria Schmidt, historiadora e ex-assessora de Viktor Orbán, faz questão de distinguir a plataforma do primeiro-ministro húngaro e o que chama de “agenda econômica neoliberal de Bruxelas” imposta ao país nas décadas que sucederam o fim do comunismo.

“Entusiasmados em recuperar o controle de nosso destino e emergir da Cortina de Ferro, nós, húngaros, ingenuamente acreditamos que a Europa Ocidental fosse partilhar de nossa exaltação […] Em vez disso, nós fomos forçados a nos adaptar ao Ocidente”, escreve Schmidt.

Sobre os motivos da vitória de Orbán em 2010, afirma: “As elites políticas que preferiram manter o status quo durante a crise financeira de 2008 deixaram a classe média da Hungria, bem como a maior parte de seus cidadãos mais necessitados, totalmente desamparados”.

“Desde então, o sr. Orbán colocou os interesses da Hungria em primeiro lugar ao elaborar suas políticas econômicas […], impôs taxas especiais sobre empresas multinacionais e bancos para distribuir o peso da crise tão proporcionalmente quanto possível entre os agentes de mercado que a causaram (e lucraram a partir dela) e os cidadãos húngaros”, argumenta.

Voltando aos EUA, cabe ressaltar que, apesar de o governo Trump ter aprovado um grande plano de redução de impostos que beneficiou também os mais ricos, sua plataforma eleitoral de 2016 tinha explorado as relações próximas de sua oponente Hillary Clinton com doadores de Wall Street para dissociar-se não apenas do establishment político mas também do establishment econômico que, desde a década de 1980, produz desigualdades crescentes e crises financeiras ao redor do mundo.

Da mesma forma, no Reino Unido, o apoio de agentes do setor financeiro à permanência na União Europeia foi muito utilizado na campanha a favor do brexit para opor o interesse dos bancos ao da maioria.

Nesse contexto, e diante da importação pelo bolsonarismo de tantas outras táticas adotadas por essas plataformas políticas no que tange ao papel de redes sociais, fake news, anti-intelectualismo, guerra cultural e criminalização da política institucional, cabe perguntar: por que sua plataforma combinou o conservadorismo moral tão típico desses movimentos com o fundamentalismo de mercado da Faria Lima? E indo além: seria esse seu trunfo ou seu calcanhar de Aquiles?

São inúmeros —e pouquíssimo surpreendentes— os estudos empíricos atestando o papel de uma melhora ou piora na economia para o resultado de processos eleitorais ao redor do mundo.

Contudo, quando o tema é o atual fortalecimento da extrema direita, uma parte da literatura, que está bem representada pelos estudos de Pippa Norris, da Harvard Kennedy School, e Ronald Inglehart, da Universidade de Michigan, tem defendido a predominância do que chamam de “cultural backlash”— a expressão, título do livro que a dupla lançou neste ano, indica uma reação de setores conservadores ao progressismo cada vez maior da sociedade no campo dos valores.

A partir de dados amostrais individuais que englobam 31 países europeus, nos anos de 2002 a 2014, os autores chegam à conclusão de que valores culturais predizem melhor o voto em partidos populistas do que o que chamam “insegurança econômica”, medida por indicadores de desigualdade social, renda e emprego.

Ainda que não se possa estabelecer causalidade nesse tipo de exercício, tais evidências vêm servindo de contraponto à visão que atribui aos efeitos colaterais da globalização comercial e às desigualdades crescentes observadas nos países ricos desde os anos 1980 um papel central na explicação desses fenômenos.

Porém, como apontou o economista Dani Rodrik, da Harvard Kennedy School, no artigo “Populism and the economics of globalization” (populismo e a economia da globalização), de 2017, fatores culturais e econômicos podem não ser passíveis de separação: o mal-estar econômico e social gerado pela globalização comercial e pela imigração pode ter criado as bases para que políticos populistas explorassem uma divisão cultural da sociedade, atribuindo aos imigrantes e a outras minorias a responsabilidade pela deterioração da situação material experimentada por boa parte da população.

Essa hipótese parece obter sustentação em artigos recentes na literatura econômica, que encontraram evidências de que distritos ou regiões mais expostas à importação de produtos chineses são mais propensas a apoiar partidos de extrema direita nos EUA e Europa ocidental.

Só que, no caso brasileiro, ainda que produtos chineses também tenham contribuído para a perda de postos de trabalho, a globalização comercial e o crescimento acelerado da China também foram responsáveis por um superciclo de commodities nos anos 2000, que elevou substancialmente o preço de produtos que exportamos, como petróleo, soja e minério de ferro.

Como sabemos, esse cenário externo favorável viabilizou uma agenda que trouxe muitos ganhos para a base da pirâmide (ainda que sem reduzir a alta concentração de renda no topo) por meio de forte expansão de investimentos públicos, benefícios sociais e empregos formais em setores de serviços e construção civil.

O crescimento da arrecadação de impostos —devido ao crescimento da economia, ao boom de commodities e à formalização das relações de trabalho— permitiu que esse processo fosse compatível com uma redução da dívida pública em relação ao PIB.

Nesse sentido, as condições econômicas mais estruturais identificadas por parte da literatura como fundamentais para a emergência do populismo de direita nos EUA e na Europa não parecem ter vigorado da mesma forma no Brasil, onde a globalização comercial teve um efeito, no mínimo, ambíguo.

A American Economic Review —principal revista científica de economia— publicou em sua última edição de novembro um artigo que leva em conta um prazo mais curto, o do pós-crise de 2008.

Em “Did austerity cause brexit?” (a austeridade causou o brexit?), o autor, Thiemo Fetzer, professor da Universidade de Warwick, utiliza estimativas de incidência dos cortes feitos a partir de 2010 em dez programas sociais em todos os distritos do Reino Unido, além de dados individuais que documentam se o eleitor recebe algum benefício social e qual seu voto (ou intenção de voto) declarado.

Fetzer conclui que a redução nos programas sociais aumenta substancialmente a declaração de votos pró-brexit, bem como a concordância com afirmações do tipo “o governo não se importa [comigo]”.

Ainda carecemos de estudos como esse para estimar o papel da recessão de 2015-16 e do ajuste fiscal executado desde então para a eleição de Jair Bolsonaro. Mas é de se esperar que a frustração crescente da população com o alto desemprego e a perda de renda em meio a uma das crises mais profundas da nossa história tenha sido crucial também para o processo eleitoral.

Mesmo que a recessão tenha se originado pelo fim do boom das commodities e por erros de política econômica pré e pós-2014, a percepção em meio aos sucessivos escândalos da Operação Lava Jato passou a ser que a corrupção era também a causa da crise para a maior parte da população (67% segundo pesquisa do Datapopular realizada em 2015).

Nesse contexto, em vez de culpar imigrantes ou a invasão de produtos chineses pelo colapso da economia, como fez o populismo de direita nos países ricos, atribuiu-se a responsabilidade pela crise ao PT, à gastança desenfreada e ao Estado corrupto.

Em um primeiro momento, as falsas promessas de retomada centraram-se, portanto, no impeachment de Dilma Rousseff e em sua substituição por um governo supostamente comprometido com o corte de gastos públicos e a diminuição do papel do Estado na economia. A reforma trabalhista e a aprovação do teto de gastos trariam de volta os empregos e a confiança dos investidores.

Mas a campanha presidencial de 2018 acabou se dando após sucessivas frustrações nas projeções de crescimento, um consequente aprofundamento dos desequilíbrios fiscais e escândalos de corrupção envolvendo o governo Temer. A culpa já não era mais só do PT, era de todo o establishment político.

Assim, a combinação da agenda de conservadorismo moral com a de fundamentalismo de mercado, que marca o bolsonarismo, se encaixou como uma luva: livrar-se da corrupção e da crise econômica exigia livrar-se do próprio Estado em todos os seus papéis que não o de combate ao crime.

Passados dois anos e meio desde o início da mais lenta recuperação da nossa história —que nem sequer chegou à base da pirâmide—, já deveria estar claro que o aprofundamento da agenda centrada no corte de gastos públicos e na redução de encargos e obrigações trabalhistas não é capaz de nos tirar do quadro de estagnação desigual em que nos metemos.

Não à toa, o próprio governo já começou a recorrer à liberação de recursos do FGTS, ao barateamento do crédito habitacional via bancos públicos e à transferência de recursos do pré-sal para estados e municípios como tentativa de estimular a economia.

No entanto as restrições cada vez maiores impostas ao Orçamento pelo teto de gastos —e pelas novas medidas anunciadas pelo governo, caso aprovadas— devem causar um sucateamento ainda maior dos serviços públicos e um desmantelamento de redes de proteção social que já têm sido insuficientes para impedir o rápido aumento da pobreza no país.

Assim, Bolsonaro não deve contar, em 2022, com o baixo desemprego e o crescimento dos salários que atualmente contribuem, por exemplo, para aumentar a popularidade de Donald Trump nos EUA ou a de Viktor Orbán na Hungria.

Para fazer frente ao forte apelo do populismo político no atual cenário, Dani Rodrik também tem defendido a adoção do que chama de bom populismo econômico, ou seja, o retorno da justiça social para o centro de uma agenda antiestablishment de política econômica. É o que têm feito Elizabeth Warren e Bernie Sanders nas primárias do Partido Democrata americano.

Se o governo Bolsonaro não abrir mão de dobrar a aposta na agenda que vem excluindo a maioria dos brasileiros do crescimento econômico, talvez seja hora de o campo democrático dedicar-se a construir um plano alternativo, capaz de canalizar o acúmulo de frustrações da população para o enfrentamento de conflitos distributivos evitados até aqui pelo Executivo e pelo Congresso.

É claro que o ganha-ganha dos anos 2000 já não é possível em meio ao atual cenário de desaceleração global. Isso significa que a disponibilidade maior de recursos para saúde, educação, infraestrutura e proteção social dependerá da redução de benefícios tributários (como isenção de Imposto de Renda sobre dividendos, Simples, desonerações e deduções de despesas com saúde e educação privadas), da eliminação de remunerações do funcionalismo acima do teto constitucional e do aumento da alíquota de imposto sobre a renda e o patrimônio do 1% mais rico da população.

A boa notícia é que um programa como esse também poderia funcionar como um motor de retomada da economia, na medida em que redistribui renda de quem poupa uma fração elevada para quem consome quase tudo o que ganha.

A insegurança econômica da população, quando combinada ao fundamentalismo de mercado, pode tornar-se o calcanhar de Aquiles de Bolsonaro. As ultrajantes ameaças de edição de um novo AI-5 por parte de seu clã, temeroso de uma nova onda de protestos de rua, deixam isso bastante evidente.

Laura Carvalho professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, é autora de ‘Valsa Brasileira: Do Boom ao Caos Econômico’ (Todavia).