Vírus limitou tática de Trump de mudar a história quando convinha, afirma filósofo.

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Para Simon Critchley, pandemia é pior para líderes populistas como Bolsonaro e o presidente dos EUA.

Bruno Benevides – Folha de São Paulo, 17/05/2020

A pandemia de coronavírus está aumentando a importância das nações ao redor do mundo —e isso, paradoxalmente, pode prejudicar líderes de viés nacionalista, como o americano Donald Trump e o brasileiro Jair Bolsonaro, de acordo com o filósofo político britânico Simon Critchley.

“Quando as pessoas estão sob ameaça de ficarem doentes ou de morrerem, elas querem um governo que saiba o que está fazendo. E isso é ruim para líderes como Bolsonaro e Trump. Eles não vão poder mudar de ideia a toda hora”, diz ele à Folha, por telefone, de Nova York, onde é professor da universidade The New School.

Conhecido pela capacidade de unir filosofia e cultura pop, Critchley tem livros publicados sobre assuntos como futebol, o músico David Bowie e a importância do humor na história humana. Atualmente ele atua como curador da Stone, a seção de filosofia do jornal The New York Times.

Ex-integrante de bandas punks antes de enveredar pela vida acadêmica, Critchley usa o tempo durante a pandemia para refletir sobre a mortalidade humana.

“É um momento que força as pessoas a pensarem em algumas questões básicas, de como elas vivem a vida, como elas entendem sua vida e outras coisas nesse sentido. É muito revelador o que está acontecendo”, afirma.

É possível voltar para o mundo como ele era antes da pandemia? Possível é, mas não é provável. Algumas coisas estão sendo revistas. Acho que o período de auge da globalização acabou. Há uma mudança em como compreendemos essa globalização, ela traz questões sobre a produção. Muitos países que supostamente são economias avançadas, como os Estados Unidos e o Reino Unido, não produzem mais as coisas, eles são dependentes de uma cadeia global, o que é uma opção questionável. Há também uma mudança sobre a ideia de nação.

Qual é essa mudança? O interessante da pandemia, em especial no contexto europeu, é que está ocorrendo uma espécie de reação nacional, um nacionalismo indefinido. A União Europeia é uma tentativa de 70 anos de estabelecer instituições transnacionais. Só que ninguém enfrentou um problema de saúde pública como o atual.

As pessoas estão assustadas, voltamos a um mundo hobbesiano, no qual a obrigação primária da nação é proteger e garantir a segurança de seus cidadãos. E isso requer um governo mais tradicional. É isso que está sendo revisto pela pandemia. É possível olhar para a Europa e ver a diferença na resposta de cada país, da Alemanha à Dinamarca, da Itália à Holanda, cada um desses países respondeu de acordo com seu contexto nacional. E seus líderes foram julgadas por um tipo de competência mais tradicional. Quem está se saindo melhor são pessoas como [a chanceler alemã] Angela Merkel.

E como ficam líderes com discurso nacionalista, como Jair Bolsonaro e Donald Trump? Eles estão em dificuldade política. Isso revela algo muito tradicional da natureza de governar. Quando as pessoas estão sob ameaça de ficarem doentes ou de morrerem, elas querem um governo que saiba o que está fazendo. E isso é ruim para líderes como Bolsonaro e Trump. Eles não vão poder mudar de ideia a toda hora.

Há um problema real no mundo, que tem efeitos reais. Não dá para mudar a história como Trump fazia a todo momento, todo dia. Obviamente que a pandemia é algo ruim, mas para uma pessoa como eu, que ensina filosofia, é um momento de muita reflexão. É um momento que força as pessoas a pensarem em algumas questões básicas, de como elas vivem a vida, como elas entendem sua vida e outras coisas nesse sentido. É muito revelador o que está acontecendo.

Como assim? Há um choque de realidade acontecendo. Há uma verdade. A verdade é o vírus, e ele não se importa. São processos diferentes dos processos políticos dos últimos anos, da era da pós-verdade. Não há pós-verdade em relação a isso, não em relação a um vírus. Há uma verdade sobre esse vírus.

No contexto americano, Trump tem administrado a situação de uma maneira muito ruim e desonesta. Creio que essa estratégia que ele usou nos últimos três anos, de constantemente mudar a história quando convinha, encontrou um limite com o vírus. Ele está aqui, está tendo efeitos reais em diferentes partes do mundo e requer um pensamento cuidadoso de longo prazo.

Quase todos os cientistas estão trabalhando para tentar encontrar uma vacina, mas isso ocorre em um tempo diferente do tempo político. Trump conseguia controlar esse tempo da política muito bem. Então o que está acontecendo agora é uma grande ameaça para Trump. E acho que vale a mesma coisa para Bolsonaro. O lado esperançoso do que estou falando é que a pandemia terá consequências políticas reais para o tipo de populista que chegou ao poder nos últimos anos.

Alguns intelectuais têm defendido que a pandemia causará grandes mudanças na sociedade. O senhor concorda? Acho que a mudança será menos dramática. Vamos lembrar que o que queremos do governo é a capacidade de liderar as pessoas, de ajudar as pessoas durante uma situação crítica. Então acho que a situação atual vai produzir uma espécie de conservadorismo leve. Espero que faça as pessoas terem um pouco mais de compaixão com as outras, que as faça serem um pouco mais solidárias, que as faça se sentirem parte de uma unidade maior, seja qual for —no meu caso, é a cidade de Nova York.

Há um desejo desesperado de se sentir a salvo, de se sentir seguro. A melhor coisa que pode acontecer em decorrência da pandemia é nos fazer focar assuntos como sustentabilidade. Se conseguirmos juntar a pandemia à mudança climática, isso será uma grande conquista. Não estou extremamente esperançoso que isso irá acontecer, mas é uma possibilidade.

O senhor disse que pensamos em questões básicas durante a pandemia. Ela mudou o modo como lidamos com a morte? Nós nos esquecemos de que somos mortais, que somos finitos, que morremos, parece que sempre precisamos ser lembrados disso. De certa maneira, a pandemia é uma coisa muito antiga, é uma situação muito semelhante à que nossos ancestrais viveram. Se pensar na peste negra, na varíola, nos efeitos da guerra. Nós somos parte de uma geração à qual foi permitida esquecer a nossa mortalidade, negá-la. Essa pandemia está nos lembrando dessa característica muito antiga dos seres humanos. E é bom que estejamos sendo lembrados disso.

Estamos nos sentindo menos imortais, então? Espero que sim. O que está acontecendo durante a pandemia é que estamos sendo lembrados disso, isso está sendo jogado na nossa frente. Eu espero que isso nos deixe menos narcisistas, porque esse sentimento de imortalidade tem sido amplificado por essa nossa vida virtual. Essa segunda vida, essa vida mágica online, os rastros que deixamos para trás nas mídias sociais, imaginamos que isso seja imortal. Um dos grandes problemas nos últimos tempos tem sido o grande crescimento do narcisismo. E acho que a pandemia mostra isso, acho que ela cria buracos nesse nosso senso de proteção.

O senhor é um conhecido fã de futebol. Como fica o esporte no meio disso tudo? Olha, eu tenho um interesse pessoal nisso, sou torcedor do Liverpool. Faz 30 anos que não ganhamos a Liga e estávamos 25 pontos na frente na Premier League [o campeonato inglês]. Se decidissem cancelar o campeonato, eu ficaria muito desapontado. Acho que os campeonatos vão terminar, mas sem torcedores, vai ser uma caricatura. Os jovens vão ser muito estranhos, esporte sem torcedores é algo sem sentido.

O senhor disse que acabou o auge da globalização. Isso também acontecerá no futebol? Eu não sei se o futebol vai mudar, hoje há esse livre comércio de seres humanos no mercado de transferências. Acho que seria bom se conseguíssemos pensar mais racionalmente na quantidade de dinheiro envolvida no jogo, que é uma questão pornográfica. Acho que seria ótimo se essa pandemia levantasse algumas questões sobre isso, se nos fizesse repensar o que realmente importa no futebol.

SIMON CRITCHLEY, 60

Inglês, formou-se em filosofia na Universidade de Essex, onde também concluiu seu doutorado sobre a obra do francês Jacques Derrida. Já deu aulas em instituições da Holanda, Alemanha, Austrália, Noruega e Estados Unidos e desde 2004 é professor da The New School, em Nova York. Além da vida acadêmica, tem mais de uma dezena de livros publicados (a maioria sem tradução para o português), incluindo “The Ethics of Deconstruction”, “The Book of Dead Philosophers” e “What We Think When We Think About Football”

 

Ameaça protecionista, por Lourival Sant’Ana.

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Mudança na OMC é resultado do enfraquecimento da ordem comercial internacional

O Estado de S.Paulo – 17 de maio de 2020

A renúncia do diplomata brasileiro Roberto Azevêdo ao cargo de diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC) um ano antes de encerrar seu mandato é resultado do espetacular enfraquecimento da ordem comercial internacional baseada em regras.

A OMC foi criada em 1995 sob a liderança dos Estados Unidos e da Europa. Na época, eles eram os mais competitivos do mundo e portanto os mais beneficiados por regras que impedem a imposição arbitrária de tarifas e o exercício de subsídios que solapam a concorrência.

Se americanos e europeus eram os beneficiários imediatos, no longo prazo o incentivo à concorrência abriria caminho para novos players. Afinal, o livre-comércio leva as empresas a se desdobrar para melhorar seus produtos e reduzir seus custos, sob pena de desaparecer.

Inversamente, a proteção, na forma de tarifas altas e outros benefícios, cria um ecossistema de ineficiência e acomodação. O Brasil, um dos países mais fechados do mundo, é o melhor exemplo disso. Quando viajam para países que têm acordos de livre-comércio com o restante do mundo, os brasileiros compram tudo o que podem.

Nesse processo, surgiram concorrentes como Japão, China, Taiwan, Coreia do Sul, Índia e México, na indústria; Brasil e Austrália, no agronegócio. Por isso, as regras de livre-comércio se tornaram nocivas para camadas da população nos EUA e na Europa, que perderam seus empregos para mexicanos, chineses, etc.

A China se tornou a principal vilã no comércio internacional. Manipulava a moeda, subsidiava a indústria, praticava dumping, inundando o mercado com produtos abaixo do custo de produção, desrespeitava patentes, violava direitos trabalhistas e normas ambientais. Em 2002, a China entrou na OMC, com apoio dos EUA, que pretendiam com isso enquadrar o parceiro/concorrente.

Foi o que aconteceu. Na medida em que aperfeiçoou sua tecnologia, ela passou a usufruir das regras e do sistema. Já no governo de Barack Obama, os EUA começaram a barrar a nomeação de juízes para o Órgão de Apelação (OA) da OMC, o mais importante da entidade.

A eleição de Donald Trump foi parte desse processo. Ele apresentou o discurso mais contundente para os americanos que se sentiam – ou que passaram a se sentir, por influência de Trump – prejudicados pela globalização. Trump passou a ameaçar e a impor tarifas contra a China e outros países. O aço e o alumínio brasileiros estiveram na mira. Os EUA se tornaram grandes violadores das regras do comércio.

Em dezembro, com a falta de nomeações, o Órgão de Apelação ficou reduzido, de sete, para um juiz. Isso o tornou inoperante, já que ele só pode tomar decisões na presença de três juízes. Dois dias antes de Azevêdo anunciar sua saída, dois deputados democratas apresentaram proposta de retirada dos EUA da OMC. Antes disso, um senador republicano havia feito a mesma coisa, sugerindo que essa é uma posição acima de diferenças partidárias.

No último lance da disputa entre EUA e China, Trump determinou, na sexta-feira, que exportações de componentes para a Huawei, a gigante chinesa do 5G, precisarão de autorização. Ele acusa a China de tentar roubar as pesquisas de vacina dos EUA.

Trump ameaça até mesmo não honrar títulos da dívida americana em mãos da China, em retaliação contra a suposta origem do coronavírus em um laboratório de Wuhan. As evidências indicam que ele veio da natureza.

As pesquisas do Partido Republicano mostram que o eleitorado gosta quando Trump ataca a China. Por isso sua campanha tem dito que o candidato democrata Joe Biden ficou do lado da China e não do povo americano.

Kellie Meiman Hock, estrategista democrata para comércio exterior, me garantiu que as duas campanhas se diferenciarão nitidamente nesse tema. Seria uma prova de duas coisas: coragem e lucidez. O protecionismo fará mais mal do que bem aos EUA. Pergunte ao Brasil.

‘Dívida externa deveria ser suspensa’, diz Carmen Reinhart

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Economista de Harvard defende que emergentes adiem pagamentos para poderem gastar no que é necessário

Entrevista com

Carmen Reinhart, economista e professora em Harvard

Luciana Dyniewicz, O Estado de S.Paulo – 17 de maio de 2020

Após publicar, em meio à crise de 2009, um estudo que foi abraçado por governantes que defendiam a austeridade e que indica que países com uma relação entre dívida e PIB superior a 90% crescem menos, a economista Carmen Reinhart vem defendendo que os países gastem o que for preciso para amenizar a crise decorrente da pandemia da covid-19. Professora em Harvard, Reinhart diz que, neste momento, há preocupações maiores do que o endividamento. “Há muitas rupturas, além da questão do endividamento, que provavelmente terão um efeito adverso maior no crescimento.”

A seguir, trechos da entrevista.

A sra. tem defendido políticas fiscais agressivas durante a pandemia. Depois da crise de 2009, porém, advogava pela redução de gastos públicos, porque seus estudos indicavam que países com dívida maior que 90% do PIB cresciam menos. Por que essa mudança?

O que estamos respondendo agora não é uma crise padrão. É uma emergência de saúde. Durante uma guerra – e hoje há muitos elementos de guerra -, você se preocupa em vencê-la e, depois, em pagar a dívida. Eu me preocupo com os desafios que teremos no futuro por causa do endividamento, mas também me preocupo que uma falta de reação agora tenha consequências grandes tanto em termos de vidas como em efeitos de longo prazo que uma epidemia pode causar em todas as dimensões da vida.

O que podemos esperar para esses países que chegarão a uma dívida/PIB superior a 90%, como o Brasil? Vão crescer menos depois da pandemia?

Não tenho ideia. Sabemos se a crise vai terminar em um mês ou em um ano? A feição da economia dependerá da duração da pandemia. Minha suspeita é que teremos um período de crescimento mais lento, mas isso não ocorrerá apenas por causa do endividamento. Ocorrerá também porque cadeias de fornecimento globais estão sendo interrompidas. A Organização Mundial do Comércio (OMC) indicou que o comércio global neste ano pode cair de 13% a 32%. Se for um número no meio desses dois extremos, teremos a maior queda desde a depressão de 1930. Outra questão é que a pandemia não é sincronizada, começou na China, foi para a Europa, agora está atingindo os Estados Unidos. Por quanto tempo o turismo e outras atividades relacionadas ficarão suspensas? Há muitas rupturas, além da questão do endividamento, que provavelmente terão um efeito adverso maior no crescimento.

Como ficam os países emergentes diante dessas rupturas?

O Brasil e outros produtores de commodities vão sofrer mais um impacto negativo. Esses países se beneficiaram depois da crise de 2008/2009, porque a China estava crescendo a dois dígitos, o que elevou o preço das commodities. Não acho que a China vá voltar a crescer nem 6%. Então o preço das commodities não vai mais ser um propulsor. O que quero dizer é que me preocupo com o endividamento dos países, mas tenho muitas outras preocupações, incluindo uma desglobalização.

A sra. vem defendendo a suspensão do pagamento da dívida externa de países emergentes. No caso do Brasil, que tem sobretudo uma dívida doméstica, o que poderia ser feito?

O que Kenneth Rogoff (também autor do estudo que relaciona endividamento elevado a baixo crescimento) e eu propomos é uma suspensão temporária para permitir que os países não tenham de se preocupar com a dívida neste ano e possam se preocupar em gastar no que é preciso. Suspender o pagamento da dívida externa ajudaria um pouco o Brasil também, porque há dívida externa, mas não é algo relevante. Suspender o pagamento da dívida interna não ajudaria. Se você tem um fundo de pensão que depende de investimentos em letras do Tesouro e suspende os pagamentos, as consequências são o oposto do que se quer, que é colocar dinheiro no bolso de famílias. O mais próximo do que estamos propondo seria o Brasil negociar com os investidores estrangeiros que têm papéis da dívida doméstica brasileira.

O que o Brasil poderia fazer, então, para amenizar a crise?

O Brasil entrou na crise já endividado e com questões fiscais não resolvidas. O Banco Central está sendo mais agressivo na parte dos juros. Mas, do lado fiscal – e você está falando com alguém que se preocupa muito com endividamento -, minha visão é que não se pode lutar uma guerra como essa com um braço atrás das costas. É preciso uma resposta fiscal para ajudar aqueles que perderam seus empregos por causa do lockdown e os negócios que tiveram de fechar. Não estamos falando de luxo, estamos falando de necessidades.

Como um país como o Brasil pode financiar esse aumento de gastos?

Tem de ser uma mistura: uma parte com emissão de dívida, outra com relaxamento monetário (que reduz os juros da dívida). Uma coisa que tem de ter cuidado é com o gerenciamento da dívida. Não se pode ter muita dívida de curto prazo, porque aí você pode enfrentar problemas de risco mais alto. É preciso escalonar os pagamentos para não ter agrupamentos, para não ter um perfil de pagamento de dívidas que dê origem a pontos vulneráveis.

Quais impactos no sistema financeiro global teria uma suspensão do pagamento da dívida externa pelos emergentes? Não poderia incentivar os países a adotarem políticas fiscais irresponsáveis?

A palavra chave é ‘temporário’. O G-20 já endossou isso para países da IDA (braço do Banco Mundial que ajuda os países mais pobres do mundo) enfrentarem uma crise que supera qualquer outra desde 1930

Em artigo recente, a sra. mencionou que a situação das empresas americanas é preocupante, dado suas dívidas. Qual a probabilidade de a crise causada pela pandemia resultar também em uma crise financeira global?

Significante e depende de quanto a pandemia vai durar. O Fed (Federal Reserve, o banco central americano) foi agressivo ao estabelecer medidas para incentivar a economia. Então, há políticas tentando mitigar esse risco (de crise financeira). Mas, quanto mais tempo a pandemia durar, mais provável serão os defaults, sejam eles corporativos ou de países. Os ingredientes para uma crise sistêmica estão aí.

Se houver uma crise financeira depois da crise da pandemia, podemos ter um cenário similar ao de 1930?

A diferença chave é que políticas monetárias e fiscais estão sendo adotadas para estimular a economia. Em 1930, as taxas de juros reais eram altas, ainda que as nominais tivessem caído a zero. Não acho que haverá isso agora. Mas há similaridades importantes. Como em 1930, agora há a queda do preço das commodities, que não é apenas um choque da covid-19. A guerra do petróleo entre Arábia Saudita e Rússia derrubou o preço do petróleo e de outras commodities e golpeou mercados emergentes. Outro problema é a queda do comércio global. Temos ainda uma parada brusca e exagerada em fluxos de capitais para mercados emergentes e uma volatilidade enorme no mercado financeiro. Outra semelhança é que economias avançadas e emergentes serão atingidas de forma grave, a última vez que isso ocorreu foi em 1930. Nos anos 80, foi uma crise nos emergentes e, em 2008/2009, foi mais nos avançados.

 

Afinal, emitiremos dinheiro para lutar contra a Covid-19? Por Bresser Pereira

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Folha de São Paulo, 15/05/2020.

Não precisam ter medo: prática não provocará aumento da dívida pública

Desde o fim de março venho defendendo que o Banco Central seja autorizado a emitir dinheiro para financiar os grandes gastos necessários para enfrentar o novo coronavírus. Já há algum tempo o tema é objeto de uma reforma constitucional, a emenda da guerra à Covid-19. Os membros do Congresso, porém, mal assessorados, e a opinião pública brasileira, ainda escaldada pela grande inflação de 1980-1994, tem medo de que isso provoque alta de preços.

Não precisam ter medo. No quadro atual de aumento violento do desemprego e de recessão —senão depressão—, a compra de títulos novos do Tesouro não causará inflação. Hoje, depois de ter sido abandonada pelos bancos centrais nos anos 1990, e depois das enormes emissões de moeda feitas pelos países ricos desde 2009 sem que houvesse qualquer inflação, a teoria monetarista está completamente desmoralizada.

Essa prática, baseada em uma identidade elementar (MV=Py), transformava-se em uma teoria na qual V, o número de vezes em que a mesma moeda é usada no ano, era considerada constante; e, portanto, a inflação (P) era causada pelo aumento da quantidade de moeda (M) acima do aumento da produção (y). Na prática, a velocidade de circulação da moeda não é constante, e é o PIB que determina a quantidade de moeda. O aumento dos preços independe da quantidade de moeda; ele é causado pelo excesso de demanda, que não faz parte dessa equação.

Como é possível que a variação do PIB determine a quantidade de moeda em circulação? Porque o dinheiro é criado pelo aumento do crédito, seja ao setor privado ou ao Estado, e o crédito tende a crescer com o PIB para que a moeda possa desempenhar seu papel de óleo lubrificante do motor econômico. Quando o país entra em recessão e precisa aumentar fortemente sua despesa pública, o Tesouro precisa de crédito para financiá-lo, e, portanto, haverá uma emissão de moeda, não importando se os títulos emitidos forem financiados pelo setor privado ou público.

Portanto, se concordamos que o Estado precisará realizar grandes gastos, muito mais do que os 3,2% hoje previstos, haverá emissão de moeda, tanto quando o setor privado for o credor quanto se o Banco Central fizer esse papel.

Qual é, então, a diferença entre a venda de títulos do Tesouro ao setor privado ou ao Banco Central? A diferença objetiva é que no primeiro caso haverá aumento da dívida pública, que depois precisará ser paga e envolverá anos de austeridade, enquanto no segundo não há aumento da dívida pública. A dívida pública é a dívida do Estado, e tanto o Tesouro quanto o Banco Central fazem parte dele. Em termos líquidos, não há qualquer aumento da dívida pública.

É verdade que as normas contábeis geralmente seguidas pelos países não reconhecem esse fato. Segundo meus cálculos, o Japão deve ter reduzido em 77%, e os Estados Unidos, em 12% do PIB sua dívida pública entre 2009 e 2019 —mas a dívida pública contabilizada desses dois países não mudou por isso. Porque os economistas adoram ficções.

Neste momento, é importante jogar no lixo esse medo de emissão de moeda. Porque não haverá aumento da dívida pública e porque não se deve prever que o governo federal mergulhe na irresponsabilidade fiscal —ele apenas terá menos medo em realizar os gastos necessários.
Parece que esse medo está diminuindo. No dia 1º de maio, a Folha dedicou duas páginas ao problema da emissão de moeda via Banco Central-Tesouro.

Paulo Guedes diz que pode emitir moeda se a inflação for a zero. Dois economistas igualmente ortodoxos, Henrique Meirelles e Márcio Garcia, defendem essa política. E a Folha defende que “ao imprimir dinheiro, o Estado cria poder de compra que antes não existia”. Equivoca-se apenas em afirmar que haverá aumento da dívida pública.

A compra de títulos do Tesouro pelo Banco Central precisará ser cuidadosamente regulada e transparentemente controlada. Dessa maneira, estou seguro que será um trunfo na luta contra a Covid-19 e a depressão à vista.

 

A era da superexploração virtual do trabalho, entrevista com Ruy Braga.

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Isolamento impõe transformação radical do ambiente doméstico, com jornadas extenuantes e redução de salários. Corporações aceleram projeto de ensino à distância. Um desafio urgente à esquerda: a criação de plataformas cooperativas.

Ruy Braga Neto e Rafael Grohmann, em entrevista ao IHU Online.

Sociologicamente, nas análises, costumava-se usar o termo “mundo do trabalho”. Ou seja, é observar os diversos aspectos da vida atravessados pela perspectiva do trabalho. Mas, e quando o trabalho – ou a falta dele – transborda, passa a ser uma espécie de agenciador de todas os aspectos da vida? Nesses tempos de pandemia causada pelo novo coronavírus, muitas pessoas foram jogadas na realidade do home office e o lar passou a ser organizado desde a centralidade do trabalho. As jornadas extrapolam e as demais tarefas e aspectos da vida preenchem os – poucos – espaços que sobram. De outro lado, há quem sequer consegue se manter no trabalho, seja porque foi demitido em decorrência da crise ou porque a exposição a jornadas extenuantes levou ao adoecimento. Nesse contexto, em que a Revolução 4.0 é o outro aspecto a ser levado em conta, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU foi ouvir especialistas sobre o atual contexto do mundo do trabalho, na passagem por um 1º de maio nunca visto.

O professor Ruy Braga Neto observa que o “home office tem se mostrado viável até o momento, apesar de todo o improviso”. Mas adverte que “sua generalização e rotinização exigirão mudanças muito profundas no ambiente de trabalho, além de investimentos em plataformas digitais pelas empresas e novas soluções relativas às jornadas de trabalho”. Além disso, lógicas de produção terão de ser repensadas. “O ambiente doméstico não é – e na minha opinião, nem deve ser – estruturado para favorecer a produtividade do trabalho. Em geral, os trabalhadores e os profissionais não estão preparados para trabalhar em casa ao lado das atividades mais tradicionais do lar”, pontua em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. “Evidentemente, essa tendência irá aprofundar as desigualdades existentes entre aqueles que terão condições de acompanhar as mudanças tecnológicas e aqueles que não serão capazes de se adaptar ao novo contexto social que se avizinha”, acrescenta.

Já o professor Rafael Grohmann chama atenção para outra perspectiva de uma mesma realidade. “De um lado, trabalhadores que ficam em home office estão perdendo parte dos seus salários, perdendo parte da jornada de trabalho, intensificando a própria precarização do trabalho. Por outro lado, esta situação acaba colocando ainda mais pessoas para trabalhar em plataformas digitais, como os entregadores, que estão sendo mais solicitados e expostos ao risco”, analisa, em entrevista concedida via WhatApp à IHU On-Line. Para Rafael, que ainda lembra daqueles que simplesmente são excluídos desse mundo, este é um momento em que a discussão sobre uma renda universal se coloca com força. “Falar em renda básica universal nesse cenário é o mínimo em que uma saída liberal poderia incorrer. É o mínimo em um cenário de situação econômica tão grave que não se vê desde 1930”, sintetiza.

Ruy Braga também pensa nesse sentido e aponta que entre as propostas para se sair da crise está a necessidade de o Estado “ampliar políticas redistributivas e investir na universalização do acesso à saúde, à educação, ao saneamento e à habitação”. “É claro que isso terá um preço que deverá ser pago conforme o princípio do “quem pode mais, paga mais”, ou seja, tributos e impostos progressivos”, acrescenta. Rafael ainda vê a emergência de “pensar também como se dá a extração de valor das plataformas no mundo do trabalho e lutar por outras plataformas possíveis no mundo do trabalho a partir da coletivização delas e de projetos como o cooperativismo de plataforma”.

Ruy Gomes Braga Neto é especialista em Sociologia do Trabalho e leciona no Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – USP, onde coordenou o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania – Cenedic. Graduado em Ciências Sociais, mestre em Sociologia e doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, é autor dos livros A política do precariado (São Paulo: Boitempo, 2012) e A rebeldia do precariado (São Paulo: Boitempo, 2017).

Rafael Grohmann é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos. Doutor e Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo – USP, é criador e editor da newsletter DigiLabour. Entre os livros publicados, está As Mudanças no Mundo do Trabalho do Jornalista (São Paulo: Atlas, 2013).

Confira as entrevistas

IHU On-Line – Que mudanças de fundo vislumbra no mundo do trabalho?

Ruy Braga Neto – A questão principal diz respeito aos desdobramentos econômicos em escala mundial decorrentes do que muitos estão chamando de “grande isolamento”. O mais evidente é a desaceleração da economia e, consequentemente, a desaceleração do processo de globalização econômica. A partir de agora, ficaremos mais tempo em casa e, consequentemente, o mundo do trabalho tende a se transformar com um predomínio de tecnologias remotas e virtualização das relações de trabalho onde isso se mostrar viável. Apesar de o setor de serviços ser mais permeável ao trabalho remoto e virtual, contraditoriamente, alguns segmentos deste setor, notoriamente, o turismo, a aviação, a hotelaria, o entretenimento etc., serão mais duramente atingidos pela desaceleração econômica.

Por outro lado, uma das consequências do isolamento social é a ampliação do uso do trabalho remoto. O home office tem se mostrado viável até o momento, apesar de todo o improviso. Ocorre que sua generalização e rotinização exigirão mudanças muito profundas no ambiente de trabalho, além de investimentos em plataformas digitais pelas empresas e novas soluções relativas às jornadas de trabalho.

Na realidade, o ambiente doméstico não é – e na minha opinião, nem deve ser – estruturado para favorecer a produtividade do trabalho. Em geral, os trabalhadores e os profissionais não estão preparados para trabalhar em casa ao lado em casa ao lado das atividades mais tradicionais do lar. Isso deve causar inúmeros problemas relacionados ao sofrimento psíquico do trabalhador e, consequentemente, à queda da produtividade do trabalho. Ou seja, as empresas terão que redefinir os parâmetros globais dessa modalidade de trabalho a partir de algum modelo híbrido no qual as atividades remotas sejam combinadas com atividades presenciais. O grande isolamento irá promover uma mudança muito profunda no ambiente de trabalho e as tecnologias virtuais e comunicacionais serão cada dia mais importantes na redefinição deste ambiente. O mesmo deve ocorrer também na indústria com uma pressão cada vez maior para a automação de processos.

IHU On-Line – O que se pode esperar em termos de desemprego e desigualdades? Qual deve ser o papel do Estado nesse contexto?

Ruy Braga Neto – O futuro previsível do trabalho está muito conectado às soluções tecnológicas providas pelas tecnologias da informação. Evidentemente, essa tendência irá aprofundar as desigualdades existentes entre aqueles que terão condições de acompanhar as mudanças tecnológicas e aqueles que não serão capazes de se adaptar ao novo contexto social que se avizinha. A tendência é que haja um aumento das desigualdades e um aprofundamento da polarização social que fatalmente irá tensionar as estruturas políticas.

Isso é inescapável quando pensamos no aumento do desemprego e, consequentemente, do subemprego e da informalização econômica daí decorrentes. Trata-se de uma situação dramática na qual muitos serão lançados a sua própria sorte e tendo a rua, agora, mais como uma ameaça de morte do que como uma aliada da sobrevivência. Na realidade já estamos assistindo este fenômeno acontecendo agora. Basta observarmos os números do seguro-desemprego: mais de um milhão de trabalhadores acessaram o direito nos últimos 45 dias. Em pouco tempo, estes trabalhadores passarão para a informalidade, pois as empresas não irão recontratá-los.

A previsão feita recentemente pelo Banco Mundial para o Brasil aponta para um aumento de 5 milhões de desempregados decorrentes da crise econômica. O pior para o trabalhador ainda está por vir. E não há como enfrentar uma situação como essa sem o recurso às políticas públicas protetivas do trabalho. Ou seja, os Estados nacionais serão agentes cada dia mais centrais neste mundo redesenhado pelo grande isolamento.

IHU On-Line – Quais são as alternativas e propostas de saída para a crise?

Ruy Braga Neto – Em um sentido progressista, os Estados poderão ampliar políticas redistributivas e investir na universalização do acesso à saúde, à educação, ao saneamento e à habitação. É claro que isso terá um preço que deverá ser pago conforme o princípio do “quem pode mais, paga mais”, ou seja, tributos e impostos progressivos. O caminho da renda cidadã incondicional será cada dia mais desejável e, de uma certa maneira, incontornável.

Em um sentido regressivo, devemos assistir ao fortalecimento de populismo de direita com o emprego massivo de meios repressivos a fim de conter revoltas e o descontentamento social com o aprofundamento da fratura social trazida pelo grande isolamento. Infelizmente, para o caso brasileiro, prevejo um futuro bastante sombrio em termos de iniciativas políticas, com um processo de aumento da desigualdade alimentando a angústia dos trabalhadores. Resta saber se este estresse social que se acumula irá se voltar contra os governantes que nada fizeram para enfrentar a crise de saúde pública somada à crise política ou se servirá para alimentar protestos que reivindiquem mais proteção e soluções redistributivas.

IHU On-Line – Que mudanças de fundo vislumbra no mundo do trabalho?

Rafael Grohmann – Nós estamos num ponto crucial da história do século XXI porque estamos num momento de disputas e lutas em relação ao nosso futuro e o que vamos apreender desse futuro em relação também ao mundo do trabalho. O professor Rafael Evangelista, da Unicamp, escreveu um texto em que diz que estamos numa disputa de três caminhos: aceleração, ruptura e exceção, ou seja, qual vai ser o sentido da pandemia de coronavírus para as nossas vidas.

De um lado – e essa parece ser a narrativa e o sentido por enquanto dominante –, o capital quer acelerar processos que estavam em andamento pelas suas vias, como home office, educação a distância, digitalização de todos os serviços que já estavam numa agenda conjuntamente de financeirização, dataficação e uma racionalidade neoliberal por trás desses processos. Por outro, podemos considerar este momento como uma exceção ou uma ruptura – e esse é o ponto que o Evangelista coloca. Tenho entendido que este momento pode servir para essas questões, que o Rafael chama de aceleração do próprio movimento do capital – o que já tem acontecido – e algumas mudanças podem se manter a despeito de as pessoas estarem mexidas com sua saúde mental, estarem se sentido cada vez mais pressionadas por produtividade, sentindo que o mundo do trabalho é o único mundo possível neste cenário de quem acaba ficando em home office, por exemplo.

Então, de um lado, trabalhadores que ficam em home office – que é uma parcela da população –estão perdendo parte dos seus salários, perdendo parte da jornada de trabalho, intensificando a própria precarização do trabalho. Por outro lado, esta situação acaba colocando ainda mais pessoas para trabalhar em plataformas digitais, como os entregadores, que estão sendo mais solicitados e expostos ao risco. Mas o ponto do que vai mudar na sociedade é que este é um momento de disputa.

Neoliberalismo progressista

Já antes da pandemia, Nancy Fraser, no livro “Capitalismo em debate” (Boitempo, 2020), diz que o que está em crise é uma certa hegemonia do que ela chama – com certa controvérsia – de neoliberalismo progressista, ou seja, as alianças neoliberais do século XX, desde Tony Blair, Bill Clinton, Rede Globo e por aí vai. É isto que está colocado em xeque hoje tanto pela extrema direita quanto numa alternativa à esquerda. Se este é um momento de disputa, é hora também de a esquerda mostrar alternativas a esse momento e colocar-se na disputa por esse sentido. Quer dizer, de que maneira vamos sobreviver nesta crise de pandemia com mais cooperação, alternativas de trabalho que mudem uma lógica individualista, que pensem em coletivização, seja de plataforma, seja de trabalho, ou seja, como este também é o momento para prefigurar ou vislumbrar outros tipos de vida que estavam naturalizados antes da crise de pandemia.

Capitalismo: dominação plena ou seu fim?

Então, este é um momento de disputa e não são desses dois sentidos entre aceleração e essa possível volta, pois isso está em aberto. Não dá para dizer, de um lado, que o capitalismo já ganhou e dominou tudo e, por outro, não dá para dizer que o capitalismo nunca esteve tão próximo do seu fim. Isso seria de uma ingenuidade tremenda de não ver como as lógicas do capital, num cenário de financeirização e plataformização, e as grandes empresas tecnológicas estão de mãos dadas com vigilância extrema aos trabalhadores, inclusive pela própria gestão algorítmica. Por isso considero que este é um cenário aberto e que setores progressistas da sociedade têm que disputar o que é e como apreendemos outros futuros possíveis a partir disso que está acontecendo também no mundo do trabalho.

IHU On-Line – O que se pode esperar em termos de desemprego e desigualdades? Qual deve ser o papel do Estado nesse contexto?

Rafael Grohmann – A intensificação da digitalização do trabalho, neste contexto de pandemia, vai trazer uma intensificação das desigualdades de gênero, de raça, de classe num contexto como o do Brasil. Isso vai acabar dividido em pessoas que podem fazer home office e pessoas que estarão nas ruas e o trabalho digital feito de casa, em home office, com diferentes clivagens.

Pensando na própria questão de gênero, várias pesquisas estão mostrando que as mulheres acadêmicas estão sofrendo mais nesse processo de home office por maior sobrecarga de trabalho e estão submetendo menos artigos do que os homens proporcionalmente. Vamos ver uma intensificação da conta da pandemia para o próprio trabalhador. Por mais que se ensaie novamente o papel do Estado, o que temos visto por aí é uma intensificação do “se vire com o que você tem”, “faça mágica com o que você tem”. Saímos do que Ludmila Abílio chama de gestão da sobrevivência para a sobrevivência puramente, quer dizer, de nem conseguir pensar essa gestão. Isso envolve pensar como a crise de coronavírus impacta a saúde mental dos trabalhadores, porque falar em mundo do trabalho é falar que essas pessoas não são máquinas produtivas; são seres humanos que precisam ter não só o mundo do trabalho como o único norte da vida no sentido de só trabalhar, porque é preciso viver.

É preciso reinventar o espaço da vida de modo que não seja só trabalho. Aí entra o papel do trabalho não pago, do trabalho gratuito em contexto de pandemia e entra também a própria invisibilidade – se intensificando com o fato de todo mundo ficar em casa – de quem não trabalha e está perdendo o emprego. Isso é algo que se vislumbra para o futuro em relação a essa intensificação do trabalho.

Renda básica universal

Tem um índice criado pela Universidade de Oxford, The Online Labour Index, que mede a demanda e a oferta de trabalho digital on-line, principalmente home office, seja em plataformas para alimentar inteligência artificial ou plataforma freelancer em geral. Nesse tempo de coronavírus, a oferta de “jobs on-line” tem caído drasticamente. Pegar uns “freelas” em algumas plataformas enquanto se está com metade do salário tem sido cada vez mais difícil.

Na verdade, hoje, falar em renda básica universal nesse cenário é o mínimo em que uma saída liberal poderia incorrer. É o mínimo em um cenário de situação econômica tão grave que não se vê desde 1930. O que se prenuncia é isto: de que maneira os Estados vão assumir, no mínimo, essa tarefa? É preciso buscar formas alternativas de sustentação de arranjos produtivos para além da falácia do empreendedorismo. Quer dizer, como podemos pensar em coletivização das plataformas ou, como defende o autor Callum Cant num livro sobre entregadores de delivery, Riding for Deliveroo: Resistance in the New Economy, a expropriação das plataformas pelos trabalhadores. Este já era um desafio colocado antes da pandemia e agora se acentua não mais como uma utopia, mas de que maneira vamos sobreviver com o cenário que estamos enfrentando. Este é um ponto chave para pensarmos o que vai ser o pós-pandemia, que não vai ser “ok”. Vai ser um processo do qual não vamos sair os mesmos.

IHU On-Line – Quais são as alternativas e propostas de saída para a crise?

Rafael Grohmann – Se, como falei antes, estamos num momento de disputas e intensificação dessas disputas relacionadas ao mundo do trabalho, é hora de lutarmos por outros mundos possíveis em um contexto de trabalho digital e de plataformas. O que queremos não é uma volta ao mundo sem tecnologias, mas é preciso reconhecer as disputas políticas dentro das tecnologias e reconhecer que tecnologias são fruto do trabalho humano e reapropriadas por grandes empresas. É preciso pensar também como se dá a extração de valor das plataformas no mundo do trabalho e lutar por outras plataformas possíveis no mundo do trabalho a partir da coletivização delas e de projetos como o cooperativismo de plataforma.

Também é preciso lutar por uma regulação mais rígida das plataformas de trabalho, como tem feito o projeto Fairwork, coordenado pela Universidade de Oxford e que está vindo para o Brasil com a coordenação da Unisinos. Consiste em pressionar as plataformas digitais por melhores condições de trabalho. É hora de nós mesmos, pesquisadores universitários, estarmos mais envolvidos com pesquisas de intervenção no cenário do mundo do trabalho de maneira que não só compreendamos o que está acontecendo, mas busquemos, na prática, caminhos possíveis para outros futuros do trabalho que não este que repete a ideologia do Vale do Silício, que repete mantras de coaching e futuristas, através dos quais vamos cair num abismo do trabalho.

Lutas globais em contextos digitais

Precisamos ainda, como país, pensar o que queremos para as nossas políticas não só do trabalho, mas de ciência e tecnologia, como um país soberano também dentro de um contexto global. Quer dizer, como fazer circular a luta dos trabalhadores local, nacional e globalmente em um contexto digital. Como eu disse, não devemos lutar por uma era sem tecnologia, mas por plataformas alternativas.

Há uma pesquisa da Universidade de Westminster, capitaneada pelo professor Christian Fuchs, que mostra que mais da metade das pessoas no Reino Unido clama por outros tipos de plataformas alternativas. Precisamos também imaginar quais seriam esses modelos que não estão ainda dados. O que está colocado aí é que tipo de futuros possíveis podemos apreender e de que maneiras podemos ir além dos modelos que estão colocados. O momento é menos de respostas prontas e mais de imaginar futuros alternativos para o mundo do trabalho digital.

 

No governo, uma criança onipotente se transforma num canalha. Por Contardo Calligaris.

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Folha de São Paulo, 14/05/2020

Há quem ache que, diante da pandemia, deveríamos sacrificar vidas

A bolsa ou a vida? Anos atrás, o psicanalista francês Jacques Lacan se serviu dessa alternativa para explicar o que é uma escolha forçada —que, de fato, nem sequer é uma escolha.

Eis por quê: se eu escolher ficar com a bolsa, não perderei só a vida, mas também a própria bolsa pela qual me sacrifiquei, pois nenhum ladrão vai ser burro a ponto de deixar a bolsa com o meu cadáver.

Então, quem escolhe a bolsa perde a vida e também a bolsa.

Conclusão: só resta escolher a vida e entregar a bolsa. No Brasil, por causa de um gosto antigo pela violência (que talvez tenha penetrado a cultura nacional junto da prática da escravatura), o bandido, às vezes, recebe a bolsa e ainda assim nos dá um tiro de despedida. De qualquer forma, entregando a bolsa, temos ao menos uma chance de ficar com a vida —embora, é claro, uma vida sem a bolsa.

A alternativa de “a bolsa ou a vida?” talvez nos ajude a enxergar a estranheza do debate em curso entre a saúde e a economia diante da pandemia de coronavírus. Deveríamos, por exemplo, proteger as vidas com o maior isolamento social possível? Ou deveríamos aceitar um aumento da taxa de infecção e do número de mortos para preservar a atividade econômica? A vida ou a bolsa?

Parênteses: em outros países, o debate a favor ou contra o isolamento existe como discussão sobre qual caminho poderia, a longo prazo, produzir uma imunidade coletiva e portanto poupar mais vidas.

No Brasil, a questão é apenas sobre a “necessidade” de reabrir o comércio e retomar a atividade econômica.

Voltemos. Há uma diferença considerável entre a alternativa proposta pelo bandido e nossa situação atual. A pergunta do bandido se endereça a uma pessoa só —você, que está sendo assaltado.
Imagine que, na hora do assalto, você esteja com um seu conhecido. Ao serem assaltados, você consegue se entrincheirar numa sala segura, junto com a sua bolsa, mas seu conhecido fica de fora. O bandido pede para você escolher entre a sua bolsa e a vida do conhecido. Qual será sua escolha?

Os que acham que, diante da pandemia, deveríamos escolher a bolsa e sacrificar vidas não estão entrincheirados em abrigos que os protejam da contaminação e de uma morte eventual. Eles apenas se consideram invulneráveis. São crianças atrasadas, convencidas de sua onipotência e da proteção eterna que lhes seria reservada pelo amor de suas mães.

Essa é uma patologia frequente, sobretudo masculina, incômoda para quem tem a desgraça de conviver com o paciente e só realmente perigosa quando o paciente ocupa um cargo de governo, sobretudo executivo.

No governo, a criança onipotente se transforma facilmente num canalha, que, considerando-se invulnerável, está disposto a escolher a bolsa, porque a vida que ele perderia seria sempre a vida dos outros.

Ou seja, os negacionistas acham que deveríamos desistir do isolamento social para preservar a economia e estão dispostos, para isso, a entregar, não a vida deles, mas a vida dos outros. Eles escolhem a bolsa e deixam o bandido (o vírus) matar a quem ele quiser (salvo a eles mesmos, que se imaginam protegidos por serem os eternos bebês maravilhosos de suas mães).

Alguém dirá: então deveríamos escolher a vida e esquecer a bolsa? E como vamos pôr comida na mesa?

Pois bem, é exatamente aqui que se esperariam a existência e a intervenção de um governo. O debate entre privilegiar a saúde ou a economia (a bolsa ou a vida) parece ser uma diversão inventada por um governo que não enxerga sua função crucial, a qual consistiria em administrar as consequências econômicas da única escolha aceitável (a escolha pela vida).

Ou seja, uma vez que só é possível escolher a vida (e não a bolsa), resta a tarefa de sustentar a vida de todos da melhor maneira possível.

Os governos, mundo afora, gastam e gastarão o que têm e o que não têm (sim, há momentos em qualquer administração nos quais é necessário gastar o que não se tem) para que os cidadãos possam proteger suas vidas (e logo retomá-las) sem se preocupar com sua sustentação básica, suas dívidas vencidas, seu aluguel e seus impostos atrasados etc.

Em vez disso, no Brasil, até agora, assistimos a uma comédia patética em que o governo promete, brada e não consegue nem sequer distribuir dignamente uma ajuda irrisória (os famosos R$ 600) sem que a própria distribuição se torne, para muitos, a ocasião de mais uma sinistra exposição ao contágio, em filas de espera.

Se governo não agir em favor da economia, classe política o fará, diz economista.

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Para diretor do Ibre/FGV, com empresas privadas combalidas durante pandemia, caberá ao Estado impulsionar retomada

Eduardo Cucolo e Alexa Salomão

10 de maio – Folha de São Paulo

Nem tudo é desastre para a economia brasileira diante da pandemia do novo coronavírus, diz o diretor do Ibre/FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), Luiz Guilherme Schymura.

Contrariando alguns de seus pares, ele acredita que a equipe econômica do governo federal deve tomar a dianteira para comandar um plano de recuperação dos investimentos que ajude o país a sair da crise em marcha.

Schymura defende um programa nos moldes do Pró-Brasil, lançado sem o aval do Ministério da Economia, porque acredita na necessidade de investimento público. Mas faz a ressalva: é preciso garantir que fique restrito ao menor gasto possível com obras exequíveis e que ofereçam alta taxa de retorno.

Qual o cenário que o sr. traça para a economia do país em meio à pandemia? Há alternativas para dirimir a queda do PIB? 
Ainda há muitas incertezas no ar, pessoas que estão perdendo emprego, e há iniciativas iniciais de transferência de renda, como o auxílio emergencial. Mas o momento da retomada vai gerar inexoravelmente a discussão sobre a atuação do Estado.

Teremos um setor privado em uma situação muito difícil, alquebrado, por causa da dificuldade em relação ao crédito, do período de poucas vendas e da economia combalida. É natural que o setor privado demore para reagir.

Quando esse cenário se desenhar, haverá uma cobrança muito grande da classe política para que ações sejam feitas. Vamos esperar que, com o tempo, o mercado se ajuste e a economia comece a crescer? Não foi assim depois da reforma da Previdência.

Acredito que a saída está num programa de investimento público, como esse que o Ministério da Infraestrutura está desenhando. Tem de dosar a quantidade de recursos, ver quais as obras mais viáveis, mas é por aí. A pressão política será insuportável. É importante o governo sair na frente com esse programa, gastando o mínimo necessário.

Há muitas resistências por causa de programas anteriores que não deram certo, como o PAC [Programa de Aceleração do Crescimento]. 
Ficamos com a impressão de que todo investimento público tem uma efetividade muito pequena, e há obras paradas. Mas algumas estão maduras para serem concluídas. A equipe dessa área tem um programa que pode fazer sentido, com obras que pedem investimento relativamente baixo para uma taxa de retorno alta.

Dada a situação fiscal muito delicada, eu não seria favorável a esse movimento, mas não podemos esquecer a pressão política que haverá e que alguns investimentos poderão ter uma taxa de retorno muito acima do esperado se forem bem selecionados.

Mas não é necessário um programa que não mexa negativamente com as expectativas? 
Isso é fundamental. É importante que o governo crie uma narrativa que deixe claro aos agentes econômicos que isso é inexorável em razão da necessidade de retomada da economia, mostre o quão eficazes serão os investimentos nesses projetos e que não é tanto [dinheiro] assim.

Nada de pensar em Plano de Metas, Plano Marshall, nada disso. Esse discurso neste momento é temerário. Não conseguiremos sair da crise se não mantivermos nossos juros em um patamar razoável. Os agentes econômicos precisam entender que não haverá aventuras, que o Brasil amadureceu na questão fiscal.

Mas repito. Se o governo não se mobilizar e agir para impulsionar a economia, a classe política o fará. Não esqueçamos que dificilmente iniciaremos a retomada com uma taxa de desemprego abaixo de 15%.

É possível administrar a questão fiscal com uma dívida que vai crescer? Saindo da pandemia, o estoque da dívida será muito mais alto, na faixa de 90% a 100% do PIB [Produto Interno Bruto]. Não vejo isso como uma situação tão dramática hoje.

As dívidas só fazem crescer em outros países, e ninguém está preocupado, porque tem um excesso de poupança, e a taxa de juros vai continuar muito baixa.

Pela pandemia, o mundo vai se tornar um lugar mais pobre. Que efeito pode ter para o brasileiro, em termos históricos, empobrecer? 
Devemos ter uma queda do PIB próxima a 4%, e o desemprego vai para 18%. Não estou dizendo que seja bom, mas, se no ano que vem começar a retomar um pouquinho, não vejo muitos problemas do ponto de vista de desastre social. Mas ficarão algumas questões.

Uma pergunta que eu me faço é como ficará esse modelo em que, no meio de uma pandemia, estamos repassando R$ 600, até R$ 1.200, para pessoas do Bolsa Família que ganhavam em média R$ 190. Como vai trabalhar politicamente o retorno aos R$ 190? Difícil entabular um discurso.

Como fica a questão do distanciamento social para a economia? Distanciamento horizontal é uma saída? Por enquanto, sim. Quem tentou fazer coisas diferentes entrou pelo cano, e estou falando de países de primeiro mundo.

Não sabemos o que significa esse vírus entrando nas nossas comunidades. Achar que a economia vai ter um desempenho pelo menos satisfatório enquanto esse vírus andar por aí é ilusão, isso não é possível. Enquanto não conseguirem uma vacina ou um antiviral com uma força grande, difícil acreditar que os países da América Latina consigam ter uma economia pujante.

A gente não consegue nem fazer dinheiro chegar à mão do informal. Como vai pensar em separar a população?
Isso aqui não é Coreia nem Japão. Mesmo naqueles países que estão tentando alternativas que não o isolamento horizontal a economia está sofrendo. Esse dilema isolamento horizontal e economia não é uma coisa tão simples.

Como o senhor avalia as ações atuais do governo do ponto de vista econômico? 
Um aspecto que me preocupa muito é a questão das pequenas e médias empresas. Vou mostrar uma coisa. [O entrevistado pega o celular e mostra uma imagem, uma placa na frente de um bar]. Está escrito assim: “Devido o [sic] novo coronavírus, não estou vendendo fiado!!! Vai que você morre”.

Isso é uma metáfora para o problema que estamos enfrentando. Os bancos privados não têm como emprestar para alguém se o risco de não receber é muito alto.

E vai ter quebradeira. Muitas das pequenas e médias empresas não têm como superar o momento de queda da demanda tão acentuada. Para muitas delas, esse financiamento não as tornará empresas viáveis. As empresas pequenas e médias têm fôlego para um ou dois meses. Os bancos não querem botar a mão nesse negócio, não têm interesse. No final das contas, o risco dessas operações deveria ficar com o governo. Não tem como.

O governo precisa ser mais enfático no combate à crise? 
Eles estão tentando, é difícil. Você vê hoje a PEC do Orçamento de Guerra. O objetivo é que o Banco Central possa comprar papéis do setor privado, coisa que não era permitida. Isso é muito razoável. Os bancos não vão ajudar diretamente. Quem vai fazer esse papel tem de ser o governo. No país mais liberal ou menos liberal do mundo, funciona dessa maneira.

Não interessa aos bancos emprestar, o risco é muito grande. Você acha que vai adotar medidas que os bancos vão sair emprestando como loucos? Isso não vai acontecer.

Agora, imagina qualquer um de nós sentado no Banco Central. Você compra um papel. A empresa quebra. O papel vira pó. Essa pandemia acaba daqui a três meses. Quanto tempo você acha que você fica fora da cadeia? Quem vai assinar um negócio desse? Você vê o BNDES. Passaram a limpo 500 vezes todas as operações que fizeram. Hoje tem um apagão de canetas. Você vai assinar uma coisa de altíssimo risco?

A postura do presidente da República, que se contrapõe a grande parte das medidas de isolamento, ajuda ou atrapalha? 
Não quero entrar na discussão da parte política, porque acho que já temos um problema institucional grande. O ideal é que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário estivessem trabalhando juntos, não tenho dúvida de que ajuda. A atual situação também não resolveria o problema do trabalhador informal. Não resolve a falta de liquidez das empresas de pequeno e médio porte. Não resolve o fato de comunidades não terem estrutura de saneamento.

Nós temos problemas socioeconômicos, e instituições que têm dificuldade de lidar com crises, como essa pandemia, o que não tem nada a ver com a questão política.

Pelo fato de a gente ter uma posição socioeconômica mais desfavorável que países de Primeiro Mundo e algumas instituições que não funcionam como no primeiro mundo, é mais importante que tenhamos uma coordenação não só entre os Poderes, mas entre os entes federativos.

Temos muitos informais, o que gera uma dificuldade em identificar quanto ganham. Nos países em que você quase não tem informalidade, é mais fácil fazer política para mitigar riscos dessa classe trabalhadora.

O que o senhor mencionou tem a ver com problemas estruturais do Brasil. O ministro Paulo Guedes estaria certo ao dizer que é o momento de mexer nas estruturas também? Que reformas seriam importantes neste momento? 
Acho que agora não dá para mexer nas estruturas. A gente ainda não sabe quais setores serão mais atingidos.

Agora é hora de questões mais emergenciais. Vamos esquecer as questões estruturais. Seria ótimo se conseguisse parar para resolver isso. Estamos vivendo um momento muito complicado.

O grande tema é a reforma do Estado. Essa eu acho essencial. Existe uma pressão da opinião pública com relação à visão dos servidores. Algumas vantagens, de estabilidade, de aposentadoria, que incomodam muito, vão incomodar muito mais.

Essa pandemia vai agravar essa questão. Enquanto o desemprego vai ser crescente e os salários de quem tem emprego vão cair na iniciativa privada, os servidores estarão sendo preservados.

Também está ficando claro com essa crise a questão do papel do Estado, ter um setor público que seja funcional, que esteja bem organizado. Quem é que está complementando salário? É o setor público. Essa questão do empoçamento de liquidez. Quem tem de estar por trás disso? O setor público. Inclusive estou aliviando os bancos aqui. Não estou criticando nenhum. Não estou esperando nada do setor privado. Nossa conversa toda aqui é setor público. Não falei nada de setor privado hoje. O setor privado está para ser ajudado, não está se exigindo nada do setor privado, pelo contrário.

Ocorre que isso exige mudanças do papel do Estado. Temos quadros espetaculares no setor público. Temos um grupo de servidores muito qualificados. É importante que essa questão seja desenvolvida puxando a questão da eficiência, da produtividade. Quando se fala de reforma do Estado, se fala de uma reforma administrativa para cortar salário. Mas estou falando em uma coisa mais pensada.

Se essa pandemia se estender, é possível ir mais longe nesses gastos? 
Aí é difícil traçar cenários. Tem de ver um pouco como está a situação global, como a economia mundial vai andar, como vão resolver a questão da pandemia, como vai estar o juro internacional nesse contexto.

Já estão falando em coronabonds na zona do euro para salvar alguns países. Será que isso vai virar um processo inflacionário que obrigue a elevação dos juros? Para nós, seria uma desgraça. Mesmo nos EUA. Eles são muito mais organizados do que a gente, mas lá está morrendo gente.

Quanto mais distante estamos da vacina ou de um antiviral que reduza o contágio ou a letalidade, pior vai ficando a situação para a gente.

Bolsonaro, escute: não há frases como ‘quem manda aqui sou eu’ na democracia, por Luís F. Ponde.

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A gangue do presidente é boçal como um churrasco de varanda.

Folha de São Paulo/ 11.mai.2020

Se as Forças Armadas caíssem na tentação de apoiar o golpismo bolsonarista, embarcariam num dos seus priores momentos da história. Não teriam nem a desculpa da Guerra Fria dos anos 1960. Seria pura e simplesmente se transformar numa gangue de farda, como o Exército da Venezuela, que junto com Chávez e Maduro, transformaram a Venezuela num pária geopolítico, matando a esmo sua população.

Ao longo dos últimos anos, as Forças Armadas (que incluem Exército, Aeronáutica e Marinha) conseguiram um respeitável reconhecimento por parte da população, afastando-se do horror da ditadura.

Já a gangue de ethos miliciano dos Bolsonaros é candidata à lata de lixo da história. Traço dessa gangue é achar que governo (eleito) e Estado são a mesma coisa. E, no seu ethos de churrasco de varanda, Bolsonaro entende que ambos são dele.

Bolsonaro quer se passar por militar, mas não é. Sua participação no Exército foi medíocre e curta em comparação a sua vida no centrão. ​

Bolsonaro é uma criatura do pântano, o centrão no período da Revolução Francesa, local onde crescem serpentes venenosas.

Para a excelente formação dos generais brasileiros fica claro que a única coisa a fazer agora é apoiar as instituições da democracia e dizer um grande “não” a Bolsonaro e sua gangue, mostrando a esses ignorantes que na democracia não existe frases como “quem manda aqui sou eu”.

Não, o senhor não manda em nada aqui, senhor Bolsonaro. Quem manda são as instituições.

É bom explicar a esse equivocado e seus seguidores ignorantes que a democracia é um regime institucional cujo primeiro objetivo de todos é controlar o poder pelo próprio poder.

Esses ignorantes que portam a camisa da seleção brasileira para agredir a imprensa são a vergonha do país.

Enquanto esses idiotas berram frases a favor da ditadura, nós nos afogamos na pandemia.

Esses ignorantes não entendem patavina do que é que seja uma democracia.

Aliás, acho que o Ministério Público deveria processar a administração Bolsonaro e sua gangue por genocídio em massa de brasileiros. Seria de bom tom. Todo e qualquer esforço institucional para barrar essa nova gangue será bem-vindo.

Aqui vai um apelo às Forças Armadas: vocês estão tendo um momento histórico para mostrar que merecem a confiança depositada em vocês pela imensa maioria de gente decente que carrega o Brasil nas costas. Não deixem a delinquência falar mais alto. Apoiem o STF em suas decisões, o Legislativo em sua função, que assim como o STF, deve servir de contrapeso aos abusos do Executivo.

Um dos traços de profunda ignorância política é achar que alguém seja perfeito na representação do bem comum ou que alguma instituição seja plena em sua função.

Bolsonaro e seus idiotas se oferecem como salvadores da pátria. Ninguém ou nenhuma instituição merece confiança absoluta, por isso elas limitam umas as outras. Os idiotas da política não sabem disso.

Sob o olhar da filósofa Hannah Arendt (1905-1975), assistimos em cada fala de Bolsonaro e seus asseclas, à agonia da vida do espírito (a vida da inteligência, grosso modo) e ao risco da instalação de uma nova banalidade do mal: a banalidade do mal é a estupidez, a inapetência ao pensamento, a recusa de um entendimento da realidade, na sua complexidade e precariedade, e a empatia para com esta.

E como diria Lionel Trilling (1905-1975), crítico literário, nunca foi tão importante a obrigação de ser inteligente. Que a inteligência seja um antídoto à estupidez reinante. Que esmaguemos essa estupidez elevando o nível do debate.

A virtude política máxima agora é a vigília. A atenção diante do risco. Não vivemos um momento geopolítico dado a ditaduras, como na Guerra Fria, mas nem por isso podemos descartar o risco do oportunismo mau caráter dessa gangue.

O interesse individual e o bem comum, por Affonso Celso Pastore.

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Para um presidente populista de direita, um número enorme de mortes é apenas estatística.

O Estado de S. Paulo – 10 de maio de 2020

Em visita ao CDPP em 2018, o professor Robert Pindik do MIT deu uma palestra sobre o custo social do carbono. Emissões de carbono levam ao aquecimento global, e um aumento de 2 graus na temperatura do planeta acarreta custos gigantescos: regiões férteis tornam-se desertos e o aumento do nível do mar alaga cidades litorâneas.

A forma de evitar tal ocorrência é obrigar todos os países a cobrarem um imposto sobre as emissões. Por que tem de ser cobrado de todos os países? Se apenas um deles tributasse as indústrias que queimam carvão, cairia nesse país o retorno privado dos investimentos nos produtos que utilizam o carvão, as fábricas mudariam para outro país que não tributa as emissões, e a poluição mundial continuaria aumentando.

No primeiro capítulo do seu livro Economics for the Common Good, Jan Tirole, o ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 2014, começa discutindo as relações entre a economia e a sociedade, entre o benefício privado e o “bem comum”, usando o exemplo do custo social do carbono. Seu tema é a diferença de motivação na busca do lucro privado e na busca do bem-estar de todos.

Nas decisões sobre políticas públicas esta última é que deve predominar, e além de considerar o efeito de externalidades, como ocorre nas emissões de carbono, é preciso entender a diferença entre retornos sociais e retornos privados. Os investimentos em saneamento básico – esgoto e tratamento da água – têm um retorno privado dado pela diferença entre os custos e as receitas cobradas de quem utiliza tais serviços, que é internalizado pela empresa que produz o serviço. Para chegar ao retorno social é preciso somar a ele os ganhos vindos da melhoria das condições de saúde. O interesse da empresa é maximizar o lucro privado, mas o interesse da sociedade é maximizar o bem-estar social, o que justifica a cobrança de um preço mais baixo por parte da empresa, com o governo cobrindo a diferença através de um subsídio.

Como avaliar o custo social do carbono? Como avaliar o benefício social de um investimento em saneamento básico? Os economistas dispõem dos modelos apropriados, mas para encaminhar a resposta tenho de voltar ao tema de meu último artigo discutindo o papel da taxa de desconto, cujo valor difere entre governos populistas e altruístas.

Governos populistas preferem ganhos imediatos de popularidade e, por isso, suas taxas de desconto são muito altas, o que reduz o valor presente dos benefícios auferidos por gerações futuras. Tais governos não se interessam por investimentos em saneamento, e esta é uma das razões pelo desprezo que o governo populista de Donald Trump tem sobre o custo social do carbono.

Tirole também argumenta que todos nós somos vítimas de falhas de percepção. Os empresários dão maior peso às condições que afetam o seu lucro, o que é importante, mas a maximização do lucro não pode ser o único critério utilizado nas decisões sobre políticas públicas. É compreensível que quem trabalhou por décadas a fio para construir uma empresa se revolte contra uma medida do governo que em uma pandemia impõe restrições que derrubam sua receita e colocam em risco a sobrevivência da empresa. Cabe ao governo deixar claro por que impôs aquela restrição, e garantir que na medida do possível compensará a empresa através de transferências de renda. A percepção de um empresário é obtida pela história de construção de sua empresa, enquanto a percepção do governo tem de ser motivada pela busca do bem comum que, neste caso, justifica a transferência.

Falando sobre percepções Tirole usa o exemplo da fotografia de Ailan Kurdy, um menino sírio de 4 anos encontrado morto em uma praia turca em 2015, que simboliza a tragédia dos que migram para a Europa em condições precárias. O impacto da foto excedeu o da informação sobre as centenas de mortes na travessia do Mediterrâneo. Cita uma frase atribuída a Stalin: “A morte de uma pessoa é uma tragédia, mas a morte de 100 mil pessoas é uma estatística”. Stalin nunca se preocupou com as mortes dos prisioneiros nos Gulags. Ao insistir em sua campanha contra o isolamento social, Bolsonaro revela desprezo pelo número de mortes, atuando para que tudo volte ao normal, ignorando a pandemia. Sem surpresas. Afinal, para um ditador comunista e para um presidente populista de direita, que não respeita as instituições e os valores democráticos, um número enorme de mortes é apenas uma estatística.

‘Ajuda estatal não pode criar parasitas’ segundo Mariana Mazzucato.

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Para ela, governos precisam criar critérios e contrapartidas antes de socorrer empresas, o que não foi feito em 2008

Entrevista com Mariana Mazzucato, economista

Luciana Dyniewicz, O Estado de S.Paulo 

04 de maio de 2020

Fundadora e diretora do Instituto de Inovação e Finalidade Pública da University College London, a economista Mariana Mazzucato está trabalhando no projeto para reconstruir a Itália após a pandemia da covid-19, em um comitê criado pelo primeiro-ministro, Giuseppe Conte, e comandado pelo ex-diretor executivo da Vodafone Vittorio Colao. Nesse projeto, deve focar no desenvolvimento de condicionalidades para empresas que o governo deverá socorrer, assunto que já vinha estudando.

“A questão é como reestruturar o sistema de modo que a ajuda a uma empresa seja parte de um ecossistema simbiótico e mutualista, e menos parasita”. Segundo Mariana, a pandemia expôs fraquezas do capitalismo e, agora, há uma oportunidade para corrigi-las.

Em artigos recentes, a sra. afirmou que a crise expôs problemas do capitalismo, como o trabalho precário. Como resolvê-los?

A crise expõe uma fraqueza no modo que organizamos o sistema capitalista. Há modos diferentes para organizá-lo. Agora, as empresas estão pedindo ajuda dos governos. Então é também o momento para criar parcerias público-privadas simbióticas, cooperações reais, o que chamo de ‘stakeholder’ (parte interessada), e não ‘shareholder’ (acionista). Há uma oportunidade de repensar o papel do governo e de como podemos trabalhar juntos (setores público e privado) para resolver grandes problemas. Hoje, tendemos a socializar o risco e privatizar a recompensa. Podemos criar estratégias que admitam que valor e riqueza são criados coletivamente.

Na crise de 2008, empresas também pediram socorro e, depois, não houve grandes mudanças na relação público-privada. Como isso pode mudar agora?

Não será diferente se não fizermos o que estou falando. Em 2008, os governos encheram o sistema com liquidez. O Goldman Sachs foi resgatado pelo contribuinte americano, mas não houve condicionalidades. Esta é uma oportunidade para redesenhar contratos. É preciso financiar capacidade produtiva, inovações sociais e soluções para problemas, sejam eles de energia ou de desigualdade. É para isso que o dinheiro público deve servir. As empresas aéreas, você pode resgatá-las, mas precisa condicionar isso à redução de emissão de carbono, por exemplo.

A sra. vê algum governo pensando nessa reestruturação?

Na Dinamarca, o governo decidiu não ajudar empresas que usam paraísos fiscais. É assim que os governos devem operar. Por outro lado, deve-se recompensar e ajudar os negócios bons. Escrevi um livro que chama O Estado Empreendedor. Esse Estado não é apenas um que gasta e investe, é também um que sabe negociar. Qualquer capitalista ou empreendedor vai negociar e estabelecer essa relação de recompensa de risco. A questão é como reestruturar o sistema de modo que a ajuda a uma empresa seja parte de um ecossistema simbiótico e mutualista, e menos parasita.

Vários governos estão investindo em pesquisas para uma vacina contra o coronavírus. Esse trabalho com o setor privado está sendo desenvolvido de modo mais simbiótico?

Não. Não há garantias de que esses investimentos públicos para vacinas estejam sendo estruturados de modo que elas sejam acessíveis e gratuitas.

Após essa crise, os Estados continuarão tendo uma participação maior na economia?

Talvez, daqui a um ano, digam que precisamos apertar os cintos. Aí teremos mais dez anos de austeridade. Esse seria o maior erro, porque hoje os sistemas de saúde estão de joelhos, em parte, devido a cortes nos orçamentos. Outra coisa é que sempre dizem que não há dinheiro, mas, quando vamos para a guerra, ninguém diz: ‘não tem dinheiro’. Precisamos ver as crises do clima e da desigualdade com a mesma urgência que vemos um cenário de guerra. Você pode causar inflação se criar dinheiro e não expandir a capacidade produtiva necessária para crescer. Mas precisamos perceber que podemos criar dinheiro para fazer qualquer coisa se fizermos isso de modo estratégico.

Um país endividado como o Brasil também deve imprimir dinheiro para investir?

O problema nunca é a dívida, é o que acontece no país. Na Itália, antes da covid, tínhamos um déficit baixo, mas uma alta relação dívida/PIB. O motivo é que o PIB não cresce a uma boa taxa há 20 anos, porque o crescimento da produtividade é zero. Setores público e privado não investem bem. Se você tiver investimento público, mas não investir nas coisas certas – educação, saúde e pesquisa –, não vai crescer. Aí, mesmo se o déficit for baixo, a relação dívida/PIB se deteriora. A lição para o Brasil é que o País deve perguntar que tipo de crescimento quer. Se quer um crescimento conduzido pelo investimento, precisa investir em áreas importantes, em economia verde, por exemplo. O papel do governo não deve ser simplesmente aumentar os lucros da indústria, dando incentivo fiscal. Deve desenhar políticas que catalisem novos investimentos no setor privado.

Como a sra. vê o Brasil hoje?

A situação do Brasil é trágica, como a dos EUA. O País tem grandes desafios sociais e econômicos e um presidente que talvez esteja mais interessado em seu pequeno círculo. Se falta liderança preocupada com o bem comum em um país, o que acho que é o caso do Brasil, e há (na presidência) alguém que nega a ciência – quando a ciência está no centro da crise na saúde –, você vai ter um grande problema.

O que o comitê de reconstrução da Itália está fazendo e qual seu papel nele?

Acabamos de terminar a primeira fase, de estabelecer critérios para reabrir a economia. Muito disso vem da OMC, mas adaptamos para questões específicas da Itália. Comecei a trabalhar na questão de condicionalidades: como trazer objetivos ambiciosos à mesa agora que os setores estão recebendo ajuda do governo e como usar isso para que a Itália não volte ao seu normal, que é o de uma economia estagnada, com alta taxa de desemprego entre jovens e de diferenças regionais gigantes. A ideia é usar esse momento para conduzir investimentos para a inovação.