Sobre escolas, exclusão e segregação, por Otaviano Helene,

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Sistema educacional trabalha para reproduzir as desigualdades no futuro

Folha de São Paulo, 30/09/2020.

Perto de 20% das crianças abandonam a escola antes de completar os nove anos do ensino fundamental —obrigatório, por sinal. Até o final do ensino médio, a exclusão já terá atingido cerca de metade dos jovens. Se já hoje não ter completado o ensino fundamental e mesmo o médio é um limitante terrível na luta por empregos e pela inserção na sociedade, que perspectivas terão essas pessoas em um futuro cada vez mais complexo?

Além da exclusão pura e simples, há também o enorme problema da dependência do desempenho estudantil com sua situação socioeconômica. Quinze mil escolas públicas e privadas, cujos estudantes prestaram as provas do Enem, foram classificadas pelo Inep em sete níveis, de acordo com a situação socioeconômica.

Em nenhuma das escolas classificadas entre os três estratos inferiores, sejam elas públicas ou privadas, os estudantes conseguiram uma média superior a 650 pontos em matemática, uma nota de corte típica para cursos com procura intermediária. Nos quarto e quinto grupos socioeconômicos, menos do que 0,1% das escolas superavam aquele limite. Já no sexto grupo, apenas 2% das escolas conseguiram superar aqueles 650 pontos.

A enorme maioria das escolas cujos estudantes atingem aqueles 650 pontos pertence ao sétimo grupo mais bem aquinhoado —aquele cuja renda familiar era de pelo menos dez salários mínimos, contava com empregado doméstico, tinha pelo menos três carros e duas geladeiras e outros indicadores equivalentes. Ou seja, o acesso às carreiras mais competitivas em instituições de ensino superior de qualidade, quer pelos critérios da nota no Enem, quer por vestibulares tradicionais, é coisa existente, como regra, apenas nos grupos economicamente superiores. Quando uma nota de corte perto de 700 é considerada, a situação se mostra ainda mais excludente: fora dos 5% ou 10% mais ricos, praticamente não há chances de sucesso.

Seja pela simples eliminação do sistema escolar —que afeta, repetindo, perto da metade da população jovem antes do final do ensino médio—, seja pela deficiência na formação escolar, o sistema educacional brasileiro exclui grandes parte de sua população da oportunidade de uma vida com plenas condições de se inserir na sociedade e, também, de dar sua contribuição à ela na forma de um profissional competente.

Por causa dessas características, o sistema educacional brasileiro está contribuindo para reproduzir no futuro as desigualdades atuais, sejam elas nas diferenças de rendas entre as pessoas, sejam nas diferenças entre as várias regiões do país, de cada estado e de cada município. Nosso sistema educacional é simplesmente excludente e segregacionista

Além disso, o país não está formando os quadros profissionais de que precisaria para se impor soberanamente entre os demais países. Sobre esse aspecto, vale lembrar que o Brasil, proporcionalmente à população, está próximo da centésima posição no que diz respeito à formação de profissionais em áreas absolutamente estratégicas, quer para o bem-estar da população, como nas áreas de saúde, quer para a produção econômica, no caso das áreas técnicas mais avançadas.

Para superar tal absurda situação é necessário um reforço nos recursos financeiros das escolas públicas, que são as que atendem a enorme maioria dos estudantes, em especial os mais desfavorecidos economicamente, para que possam oferecer oportunidades iguais a todos, independentemente de seus estratos sociais, econômicos e culturais.

Mas, por tudo o que já se escreveu e debateu, e nada mudou, só podemos chegar à conclusão de que essa situação é um projeto de país dos donos do poder. Portanto, só mudaremos esse estado de coisas com muita pressão popular e luta dos trabalhadores, em especial dos trabalhadores da educação, seja em que governo for, pois sabemos que esses poderosos estão acima de qualquer governo.

Otaviano Helene

Professor do Instituto de Física da USP, ex-presidente do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) e autor de ‘Um Diagnóstico da Educação Brasileira e de seu Financiamento’ (Autores Associados)

 

Trabalho virtual?, por Ricardo Antunes

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Se o trabalho virtual não cessa de se expandir, é bom não esquecer que nenhum smartphone ou tablet pode sequer existir sem a interação com as atividades humanas, inclusive aquela que nos remete às cavernas: a extração mineral.

do Blog da Boitempo

Trabalho Virtual?

por Ricardo Antunes.

[Não há celulares, computadores, satélites, algoritmos, big data, internet das coisas, Indústria 4.0, 5G, ou seja, nada do chamado “mundo virtual e digital” que não dependa do labor que começa nos subterrâneos. Se o trabalho virtual não cessa de se expandir, é bom não esquecer que nenhum smartphone ou tablet pode sequer existir sem a interação com as atividades humanas, inclusive aquela que nos remete às cavernas: a extração mineral. Sem a produção de energia, cabos, computadores, celulares e tantos outros produtos materiais; sem o lançamento de satélites; sem a construção de edifícios onde tudo isso é produzido e vendido, sem a produção e a condução de veículos que viabilizem sua distribuição, a internet não poderia sequer existir. Nas plataformas digitais, os algoritmos, concebidos pelas corporações globais para controlar tempos, ritmos e movimentos de todas as atividades laborativas, foram o ingrediente que faltava para, sob uma falsa aparência de autonomia, impulsionar, comandar e induzir modalidades intensas de extração do sobretrabalho, nas quais as jornadas de 14 (ou mais) horas de trabalho estão longe de ser a exceção.]

1. O nosso mundo (nosso?) é mesmo muito estranho. Por isso não é possível deixar de recordar aqui a obra prima de Ciro Alegría, Ancho e lejano es el mundo, menos pelo seu conteúdo (um mergulho profundo no mundo indígena e amazônico latinoamericano), mas dele me recordo pela força e atualidade da metáfora presente em seu título.

É mesmo muito esquisito esse mundo. No ano passado, por exemplo, para voltarmos bem pouco no tempo, tudo parecia seguir uma normalidade lépida, faceira e ligeira. Veloz como um bólido, mas cambaleante como um bêbado. A diferença abissal entre ricos e pobres seguia seu curso “natural”, na bonança (coisa do passado) e nas crises, estas últimas convertidas em um verdadeiro depressed continuum, para recordar István Mészáros.

Assim, o desenfreado relógio da tecnologia continuava – para fazer uma remissão à insuperável metáfora de Karl Polanyi – turbinado como o “moinho satânico”. Plasmada dominantemente pelos movimentos dos mercados e das corporações, a tecnologia de nosso tempo continuava conectada, sempre on line. Sem direito à desconexão. Que a devastação da natureza seguisse seu curso impiedoso e letal, que a destruição do trabalho fizesse explodir bolsões de miséria e pobreza em quase todos os cantos do mundo, era uma consequência inevitável do espírito do tempo. Afinal, a compensação se encontrava no regozijo dos novos barões globais.

E foi desse modo que o mundo maquínico-informacional-digital não descansou, impelido pelo capital financeiro, o mais asséptico de todos, aquele cujo mister é sempre fazer mais dinheiro, como já disse um dia alguém.

Essa nova realidade “virtual” não poderia deixar de esparramar um palavrório diferenciado, um novo léxico global: gig-economy, sharing economy, platform economy, crowd sourcing, home office, home work etc. E foi assim, na mesma onda, com o virtual work, que deixou de ser espaço de reflexão dos filósofos e físicos e ganhou de vez as páginas dos jornais, revistas, internet, redes sociais, poluindo os apologéticos panfletos empresariais, repetidos ad nauseam por CEOs. Como quase tudo que se esparrama como vírus, o conteúdo parece menos importar. O que vale é ter impacto midiático.

Mas, antes de tratar contemporaneamente do trabalho virtual, é bom recordar, mesmo que sumariamente, o que é verdadeiramente substantivo: o trabalho.

  1. Desde logo é preciso dizer que o terreno é tortuoso e movediço. Um verdadeiro vale tudo. Mas, se como nos ensinou o gênio de Guimarães Rosa, “pão ou pães, é questão de opiniães”,aqui vai a nossa.

Em sua ontogênese, o trabalho nasceu e floresceu como um autêntico exercício humano, ato imprescindível para tecer, plasmar e deslanchar a vida, produção e reprodução do ser que acabava de se tornar social. E, ao assim proceder, suplantamos o último animal pré-humano. Foi por isso que György Lukács, em sua Ontologia do ser social, recorreu a Aristóteles para apresentar os dois elementos fundamentais explicativos desse novo ato humano: pensar e o produzir. Compete ao primeiro a delimitação da finalidade e dos meios para sua efetivação, sendo que ao segundo, cabe a concreção do fim pretendido, efetivar a sua realização.

Pode-se dizer, então, que os ingleses acertaram, em sua linguagem, ao conceber essa atividade humana vital para manter o metabolismo entre humanidade e natureza como work. E assim o fizeram para que se pudesse claramente diferenciar de labour, aquele outro modo de ser do trabalho que remete a sujeição, vilipêndio, tripalium e que acabou por desfigurar o trabalho, na antessala da Revolução Industrial, fazendo-o assumir uma “segunda natureza”.

O trabalho deixou de ser atividade vital para a reprodução humano-social e metamorfoseou-se, convertendo-se em força de trabalho especial, imprescindível para a criação de uma riqueza excedente que passou a ser privadamente apropriada pela nova classe oriunda dos burgos. Vê-se, então, ao menos neste caso, a clara superioridade da língua de Shakespeare: trabalho, travail, arbeit, lavoro, trabajo, nenhuma delas oferece a clareza do binômio work e labour.

E foi assim que o único meio possível de sobrevivência para as massas camponesas e urbanas pobres e despossuídas se transformou indelevelmente e tornou-se uma imposição: laborar para não desempregar.

O imbróglio não foi pequeno e mudou profundamente o modo de vida da humanidade. Isto porque aquilo que, junto com a aparição da humanidade, germinou como um valor, transfigurou-se em um desvalor (ou não-valor), para poder “livremente” criar um mais-valor. Que passou a ser apropriado privadamente por outrem. A alquimia da modernidade estava, enfim, realizada.

3. Como entender, então, contemporaneamente, o trabalho virtual?

Um primeiro ponto é ontologicamente central: se esta modalidade de trabalho não para de se expandir aqui e alhures, é bom não esquecer que nenhum smartphonetablet ou assemelhado pode sequer existir sem a interação com as atividades humanas, inclusive aquela que nos remete às cavernas: o trabalho de extração mineral, realizado nas minas chinesas, africanas ou latino-americanas.

Não há celulares, computadores, satélites, algoritmos, big data, internet das coisas, indústria 4.0, 5G, ou seja, nada do chamado mundo virtual e digital que não dependa do labor que começa nos subterrâneos, nas “sucursais do inferno”. Como pude indicar em O privilégio da servidão, no plano fílmico, essa concretude é exasperada no filme Behemoth, de Zhao Liang. Sob temperatura desertificada, os acidentes, as contaminações do corpo produtivo, as mutilações, as mortes, eis o cenário real, a protoforma que plasma o mundo virtual com suas tecnologias da informação. E aqui faço um breve depoimento pessoal: como sociólogo do trabalho, visitei, uma única vez, uma mina, em Criciúma, Santa Catarina. Tão breve quanto desci aos infernos, pedi para subir à superfície. Bastou – e me marcou para sempre – a inesquecível, forte e lúgubre experiência.

Assim, uma efetiva compreensão do que é contemporaneamente o trabalho virtual nos obriga a romper, desde logo, um duplo limite, que oblitera seus sentidos e significados. O primeiro diz respeito ao forte traço eurocêntrico que frequentemente “esquece” que a maior parte da força global de trabalho está fora dos países do Norte. Esta se encontra pesadamente nos países do Sul, nas periferias globais, como China, Índia (e outros países asiáticos), além da África (África do Sul) e América Latina (Brasil, México). Estes países têm enorme força de trabalho, o que desde logo obsta qualquer formulação “generalizante” acerca dos significados do trabalho, quando a dita cuja se restringe estritamente ao Norte e exclui o Sul.

O segundo limite é, em alguma medida, consequência do anterior. Dada a complexidade atingida nas últimas décadas pela divisão internacional do trabalho, com a consequente expansão das novas cadeias produtivas de valor, há uma imbricação indissolúvel entre as chamadas atividades intelectuais e aquelas ditas manuais (sabemos, por certo, do enorme limite destas definições rígidas). Ou, nas palavras da qualificada socióloga do trabalho Ursula Huws, entre as atividades de “criação” e aquelas mais “rotineiras”2, que se ampliam no universo do trabalho virtual, online, com suas ferramentas de comando digital, softwares etc. e que cada vez mais se inserem nos processos produtivos fabris, agronegócios, nos escritórios, serviços, comércio etc3.

Mas é imperioso enfatizar, uma vez mais, que tais atividades sequer poderiam existir sem a produção de mercadorias que se originam em espaços como as sweatshops da China ou outros espaços produtivos do Sul4. Na síntese de Ursula Huws: sem a produção de energia, cabos, computadores, celulares e tantos outros produtos materiais; sem o fornecimento das matérias-primas; sem o lançamento de satélites espaciais para carregar os sinais; sem a construção de edifícios onde tudo isso é produzido e vendido, sem a produção e a condução de veículos que viabilizem sua distribuição, sem toda essa infraestrutura material, a internet não poderia sequer existir e menos ainda ser conectada5.

Recentemente, nas plataformas digitais essa realidade vem se exacerbando ao limite. Os algoritmos, concebidos e desenhados pelas corporações globais para controlar os tempos, ritmos e movimentos de todas as atividades laborativas, foram o ingrediente que faltava para, sob uma falsa aparência de autonomia, impulsionar, comandar e induzir modalidades intensas de extração do sobretrabalho, nas quais as jornadas de 12, 14 ou mais horas de trabalho estão longe de ser a exceção. O curioso mundo virtual algorítmico, então, convive muito bem com um trágico mundo real, onde a predação ilimitada do corpo produtivo do trabalho regride à fase pretérita do capitalismo, quando ele deslanchava sua “acumulação primitiva” com base no binômio exploração espoliação, ambos ilimitados6.

Assim, ao contrário de um imaginário mundo do trabalho virtual, ascético, limpo, paradisíaco, dadas as clivagens e diferenciações presentes na desigual divisão internacional do trabalho, estamos presenciando, simultaneamente, tanto a expansão do trabalho virtual quanto a ampliação do trabalho manual, visto que as primeiras dependem indelevelmente de uma infinitude de ações humanas que se desenvolvem no mundo coisal, objetivo, material.

Portanto, uma efetiva compreensão do significado real do trabalho virtual não pode obliterar e “apagar” estes traços centrais acima indicados, que tornaram o mundo do capital de nosso tempo um complexo emaranhado, que se encontra encalacrado até o pescoço. E que a pandemia exasperou e desnudou.

* Publicado originalmente na revista Com Ciência.

Reforma de impostos de Guedes é injusta, ineficiente e selvagem, por Vinícius Torres Freire.

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Com CPMF, reforma do governo aumenta injustiça e ineficiência tributária no país

“Poucas ideias são tão ruins que não podem ser pioradas. Infelizmente, o sistema tributário brasileiro não é exceção à regra… Uma prova disso é a constante ameaça do retorno da famosa… CPMF”, escreveu Adolfo Sachsida em um livro de 2017. Sachsida é ora secretário de Política Econômica do Ministério da Economia de Paulo Guedes.

A esse respeito, muita gente está de acordo com o secretário, este jornalista inclusive. Guedes quer substituir um imposto ruim e decadente, a contribuição patronal para o INSS, por um ainda pior, a CPMF ou equivalente. Se conseguir, vai aumentar a confusão, as distorções e várias iniquidades da tributação no Brasil.

Um modo de acabar com o imposto sobre folha de salários é tributar mais a renda, de preferência a dos mais ricos (ou o consumo, alternativa pior). Tributar mais os rendimentos maiores é também um modo de pegar os lucros da “economia digital”, que têm escapado dos fiscos do mundo inteiro.

Guedes não quer bulir com o IR. Pretende comer a renda de modo insidioso, com uma CPMF, imposto menos visível e que trata ricos e pobres da mesma maneira.

A ideia do ministro é arrumar R$ 120 bilhões a fim de reduzir o que as empresas pagam para o INSS. Acabaria o imposto sobre remunerações de um salário mínimo ou menos; a contribuição sobre salários maiores diminuiria. Uma conta de guardanapo indica que, de fato, esse dinheiro seria bastante para reduzir a alíquota do INSS de 20% para uns 11% (para salários maiores que um mínimo), tudo mais constante.

Guedes acha que arrecadaria esses R$ 120 bilhões com uma alíquota de 0,4% para sua CPMF misteriosa. Quando a CPMF era de 0,38% (de 2002 a 2007), a receita era regularmente 1,35% do PIB, atualmente uns R$ 94 bilhões. Mas passemos, pois ninguém sabe o que é essa CPMF do ministro e a economia mudou em 13 anos.

Uma CPMF ou coisa que o valha vai pesar mais sobre indústria e agricultura, menos sobre serviços. Impostos sobre a folha de salários, como a contribuição patronal para o INSS, pesam mais, claro, sobre setores que gastam relativamente mais com mão de obra e menos com capital.

Mas ao fim e ao cabo, impostos sobre transações financeiras são selvagens, em nada relacionados a um critério econômico razoável. Uma cadeia de produção longa e movimentação financeira relativamente grande levarão uma empresa a “pagar” mais (na verdade, a recolher mais imposto, repassando a conta para o cliente).

A CPMF tende a aumentar a iniquidade social e econômica da tributação. Um grande princípio da reforma tributária seria justamente uniformizar o quanto possível os impostos que cada setor ou empresa têm de recolher. Outro motivo da reforma é acabar com a cumulatividade (o imposto em cascata, que fica mais pesado quanto mais “fases” a produção de um bem ou serviço envolver). A CPMF é cumulativa.

Além do mais, uma CPMF de 0,4% é uma enormidade em ambiente de taxas de juros baixas. Logo, vai criar tumulto e custo também no mercado financeiro.

A redução dos encargos sobre a folha vai ajudar a criar empregos? Não há evidências. Talvez facilite formalização e contratações quando e se a economia estiver crescendo. Impostos menores sobre o emprego podem ser um coadjuvante da melhoria do mercado de trabalho, mas não o motivo.

Deputados relevantes ainda dizem que a CPMF não passa ou que pode atrasar a reforma tributária. Que o país esteja discutindo tal coisa é outro sucesso da selvageria iníqua e ignara que move o governo de Jair Bolsonaro.​

Vinicius Torres Freire

Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).

Reforçando o SUS

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Sistema deve ser mais funcional e eficiente para cumprir missão constitucional 

Arminio Fraga

Sócio da Gávea Investimentos, membro do Conselho Consultivo da StoneCo e Fundador do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde

Miguel Lago

É diretor-executivo do IEPS

Rudi Rocha

É diretor de pesquisa do IEPS e professor da FGV-Eaesp

A pandemia trouxe a importância dos sistemas públicos de saúde para o centro do debate. Ao longo dos últimos 30 anos, o Brasil construiu um dos maiores sistemas universais do mundo, com notáveis resultados em várias áreas, a despeito da escassez de recursos e da enorme desigualdade regional e social. No entanto, claramente restam ainda imensas carências, com consequências humanas dramáticas.

Há exatamente um ano lançamos o IEPS, organização apartidária e sem fins lucrativos, que tem por objetivo estudar, avaliar e sugerir melhorias em políticas para a saúde do país. Nesse espírito, apresentamos aqui algumas ideias que poderiam nortear uma agenda de reformas para fortalecer o SUS.

O tema é polêmico. Para alguns, o SUS carece de mais recursos. Para outros falta gestão, tecnologia e capital privado. O setor vive um estado permanente de embate. O quadro fiscal do Brasil é desfavorável. Gasta-se muito, mas nem sempre priorizando bem. Nossa visão é que o Estado gasta pouco com a saúde, e há de fato muito espaço para avanços nas outras frentes citadas. Vejamos por quê.

Países com sistemas de saúde universais e públicos tendem a investir significativamente mais do que o Brasil. Enquanto dedicamos menos de 4% do PIB ao SUS, o Reino Unido investe cerca de 8% do seu bem mais elevado PIB per capita no National Health Service (NHS). O subfinanciamento crônico se reflete em filas que estampam as capas de jornais e tempo de espera inaceitável para exames e cirurgias.

O primeiro estudo institucional do IEPS sugere que nos próximos dez anos o governo precisará aumentar significativamente os aportes ao SUS.

Em função dos imensos desafios que o país enfrenta na área fiscal, essa demanda terá que ser atendida gradualmente, como parte de um esforço maior de revisão das prioridades do gasto público.

Sistemas de saúde têm em essência duas características fundamentais: a repartição de riscos entre as pessoas e um desenho onde os mais ricos subsidiam os mais pobres. No Brasil, a recuperação da função distributiva passa por aumentar os aportes ao SUS e eliminar subsídios regressivos.

Apesar de o SUS oferecer serviços gratuitos a toda a população, o gasto privado com saúde segue maior que o gasto público. O setor que atende 22% dos brasileiros por meio de planos de saúde privados e gastos pessoais é responsável por 58% do gasto total com saúde no país.

Sem dúvida saltam aos olhos subsídios tributários dados pelo governo federal a gastos provados, que representam cerca de um terço do gasto federal com saúde (uns 0,6% do PIB). Adicionalmente, seria possível obter alguma receita com a introdução de tributos saudáveis sobre açúcar e ultraprocessados, como já se faz com álcool e tabaco.

Entendemos que o simples aporte incremental de recursos, embora urgente, não é suficiente. Precisa ser complementado por ganhos de eficiência.

Um primeiro passo seria coordenar melhor a atuação dos estados e municípios, de fato transformando a atenção básica na principal porta de entrada e vetor organizador do fluxo de pacientes dentro do sistema.

Para assegurar que essa integração seja bem-sucedida, é preciso implementar mudanças na organização regional do sistema. Um número muito grande de municípios não tem escala para ter seus próprios hospitais. Cabe desenvolver regiões de saúde dotadas de uma escala capaz de racionalizar a prestação dos serviços. Todo esforço institucional no sentido de promover mais regionalização deve ser encorajado.

Uma segunda área a explorar seria o aperfeiçoamento da colaboração com a iniciativa privada. Quando bem regulada, e com incentivos bem alinhados via contratos transparentes, pode ser uma aliada importante na busca por maior escala e eficiência.

O desempenho das organizações sociais da saúde Brasil afora é muito heterogêneo e precisa ser estudado para que se possa separar o joio do trigo. A falta de transparência de informações impede que tal avaliação seja feita com a profundidade adequada.

No entanto, a limitada evidência existente sugere que há muito espaço para melhorias no sistema. Em última instância, trata-se de um desafio de governança e gestão.

Para acelerar todas essas mudanças, será necessário um choque tecnológico. Destacam-se a criação de um prontuário eletrônico unificado por paciente e o uso da telemedicina pelas equipes de atenção básica em todo o território nacional, conectando-as com especialistas, aumentando sua resolutividade e suprindo assim as lacunas na oferta de médicos e profissionais de saúde que existem em muitas regiões do país. Há muito a se fazer nessa área, muito espaço para saltos de qualidade.

Outro tema relevante é a crescente judicialização da saúde observada no Brasil. Verdade que os processos de judicialização garantem a realização do direito constitucional à saúde, algo inquestionável. No entanto, a experiência internacional demonstra que, mesmo em países mais avançados, diante da finitude dos recursos orçamentários existentes, urge encarar o difícil desafio da priorização dos gastos com saúde.

Cabe reconfigurar a Conitec, transformando essa comissão interministerial em uma agência independente —nos moldes do NICE no Reino Unido— que determine com clareza o rol de procedimentos cobertos pelo SUS, bem como a incorporação de novas tecnologias.

Assim, litígios judiciais seriam reduzidos progressivamente, sobretudo os movidos por demandas nem sempre vinculadas a procedimentos efetivos e seguros para os pacientes.

Por fim, cabe adotar uma abordagem transversal de promoção de saúde em todas as políticas públicas (alimentação, urbanismo, ambiente, educação, cultura), pois será por meio delas que poderemos ter uma população cada vez mais saudável.

Um sistema de saúde que se propõe a cuidar de toda a população precisa estar mais bem preparado, funcional e eficiente para cumprir com sua missão constitucional. Os muitos que sofrem precisam de nossa pressa no reforço ao SUS.

Arminio Fraga

Sócio da Gávea Investimentos, é presidente do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

‘A crise econômica será severa e prolongada’, diz Monica De Bolle

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Professora da Johns Hopkins afirma que é necessário estender incentivos do governo a empresas e cidadãos

Entrevista com Monica Baumgarten De Bolle

Fernando Scheller, O Estado de S.Paulo – 27/09/2020

A economista Monica Baumgarten De Boile mergulha em Ruptura – primeiro livro da série A Pilha de Areia, que analisa os efeitos econômicos da pandemia de covid-19 – nas primeiras reações à crise trazida pela emergência sanitária global. Na obra, Monica defende que é preciso romper com padrões estabelecidos de estratégia econômica – como o teto de gastos públicos no Brasil – para responder aos desafios trazidos pelo coronavírus.

A economista deixa claro que a crise de saúde terá efeitos de prazo muito mais longo do que governos e empresas parecem projetar hoje. Para ela, o auxílio emergencial, que foi prorrogado até dezembro, terá de ser estendido novamente, uma vez que está claro que o emprego e a renda não vão se recompor inteiramente até janeiro de 2021.

“A crise será muito severa e prolongada. É curioso, porque essas noções não foram completamente absorvidas. Já se entendeu que é uma questão severa. O que não aconteceu, pelas projeções que se faz para a economia de 2021, é as pessoas se darem conta de que o processo (de recuperação) será muito prolongado e lento”, disse ela, em entrevista ao Estadão.

Especialmente no Brasil, falta uma visão mais multidisciplinar da análise econômica?

Isso é particularmente marcante na macroeconomia. A microeconomia avançou mais. Juntou-se com a psicologia comportamental para explicar como pessoas fazem escolhas. Num modelo tradicional, as decisões são vistas como racionais, e a gente sabe que não é assim. Na parte aplicada, a microeconomia soube incorporar até técnicas biomédicas para fazer estudos randomizados e testar a efetividade de políticas públicas.

E a macroeconomia?

A macroeconomia é outra história. De muitas formas, parou no tempo. A economia nasceu da filosofia moral, depois virou economia política. Só após os anos 1950 que a economia foi tendo esse caráter mais tecnocrata. E virou um negócio de modelagem, análise quantitativa. O macroeconomista deve ter um olhar abrangente, saber que instituições, política e cultura afetam (a economia).

E como isso fica evidente?

Ficou mais claro depois da crise de 2008. E, agora, mais ainda: porque a pandemia é um desafio muito maior do que o de 2008. Acho que há um atraso completo na macroeconomia. E a ruptura trazida pela pandemia deveria ser uma oportunidade para mudar isso.

Essa limitação de visão atrapalhou a previsão da crise?

Essa foi uma das motivações para meu canal no YouTube: como é que os economistas não estavam conseguindo enxergar a crise? Isso deixou muito visível a limitação a um molde de pensamento. Sempre tive um background na área biomédica, e estou estudando de novo, e ficou muito claro que a gente estava enfrentando uma coisa inédita, para a qual a economia não tinha boas respostas. Entendi também que (a crise) será muito severa e prolongada. É curioso, porque essas noções não foram completamente absorvidas. Já se entendeu que é uma questão severa. O que eu acho que não aconteceu, pelas projeções que se faz para a economia de 2021, é as pessoas se darem conta de que o processo (de recuperação) será muito prolongado e lento.

Sua série de livros trabalha com o tema ‘A Pilha de Areia’. Como se explica o conceito?

Quando você faz um castelo de areia, de uma coisa você tem certeza: em algum momento, ela vai desmoronar. Esse desmoronamento pode acontecer muito rapidamente ou demorar muito. Pensando nas pandemias, em termos da pilha de areia: a gente tinha certeza absoluta de que uma pandemia viria. Era dado, já tínhamos tido algumas – a última foi a de H1N1, em 2009. Aquela, em termos de pilha de areia, foi um desmoronamento pequeno e relativamente rápido. Na grande pandemia de 1918, foi exatamente o contrário: todo mundo achava que a influenza era uma gripe – os cientistas não entendiam como tanta gente estava morrendo. O tamanho e intensidade daquilo foi um choque para o mundo. Então, a gente tem de estar sempre preparado – e foi o grande erro do mundo todo, que ficou anestesiado com a H1N1, de 2009.

Isso atrapalhou a resposta econômica do Brasil à pandemia?

Acho que a gente conseguiu dar alguma resposta, ainda que muito insuficiente. A gente está deixando muita empresa de porte menor falir. Isso vai ter consequências graves para o emprego e para a eficiência dos mercados, porque você vai gerar uma concentração enorme em determinados setores. Isso se resolveria com política de crédito público.

O BNDES deve ser mais ativo?

O BNDES está em uma prisão ideológica. A TLP é uma excelente taxa de referência para o BNDES, mas é ruim em um momento de crise porque tem uma parte pós-fixada. As empresas ficam sem saber quanto vão pagar de juros. Isso seria facilmente corrigido se o BNDES também emprestasse às taxas do Tesouro. Não precisa colocar subsídio nenhum. O que as empresas pedem é uma taxa prefixada. A única explicação (para a estratégia atual) é: ‘nós não vamos fazer o que a Dilma fez’. Mas não convence.

E a distribuição de renda, deve ser mais generosa e longa?

Principalmente, mais longa. (O auxílio emergencial) não ficou tão bom quanto poderia ter ficado, mas ajudou, apesar de muito problema de execução e fraude. Agora, o desafio que está colocado é o seguinte: o benefício foi reduzido e estendido até dezembro. Só que tem o precipício, porque a gente sabe que a pandemia ainda está descontrolada e as pessoas não vão achar emprego até o fim do ano. E a situação da economia em janeiro vai ser de penúria. Então, alguma coisa a mais vai ter de ser feita.

 

América Latina precisa ser agressiva para transferir renda durante a pandemia: entrevista com Andrés Velasco

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Folha de São Paulo, 21/09/2020 – Saúde em Público

Pablo Peña Corrales
Miguel Lago
Fernando Falbel

A América Latina vive um momento extremamente delicado. A região é uma das mais afetadas pela pandemia da Covid-19, com mais de 320 mil mortes confirmadas, quase um terço do número total mundial. Previsões estimam que a economia encolha cerca de 10% neste ano.

Para entender esses múltiplos desafios de ordem sanitária, econômica, social e política na região, o blog Saúde em Público falou com Andrés Velasco, um dos mais influentes intelectuais latino-americanos.

Hoje reitor da escola de políticas públicas da prestigiosa London School of Economics, Velasco foi ministro da Fazenda do Chile (2006-2010, no primeiro governo de Michelle Bachelet) e é pré-candidato à Presidência do país.

*Antes da pandemia do novo coronavírus, a saúde já era uma das grandes preocupações da América Latina. Dos protestos brasileiros em 2013 às manifestações chilenas em 2019, a saúde também tem sido uma demanda frequente. Por que os latino-americanos parecem tão insatisfeitos com seus sistemas de saúde? Sem dúvida, muitas pessoas estão insatisfeitas, e isso não é surpreendente por vários motivos.

Em primeiro lugar, muitos sistemas na região deixam muito a desejar.

Em segundo lugar, se há algo que sabemos sobre as tendências de médio prazo da economia e da sociedade, é que os tratamentos médicos estão se tornando mais caros.

Quando um país é muito pobre, as pessoas morrem de diarreia. Isso pode ser corrigido com gastos públicos limitados. Quando o país eleva seus padrões e as pessoas morrem de câncer, ataques cardíacos ou similares, é mais caro tratar, requer maior infraestrutura, maior nível de sofisticação, maior cobertura, e, nessa dimensão, todos os nossos sistemas ficam aquém.

Terceiro, a saúde é muito difícil de reformar. [O ex-presidente dos Estados Unidos Bill] Clinton, que falhou na tentativa, sabe muito bem disso; [Barack] Obama, que conseguiu fazê-lo —embora com dificuldades que ainda não foram completamente superadas, em parte porque não existe uma receita óbvia e compartilhada—, também o sabe.

Agora, não sejamos unanimemente pessimistas. Nos principais países da região, como Uruguai ou Chile, a expectativa de vida ao nascer é próxima à dos países desenvolvidos, embora gastando cerca de um terço ou um quarto per capita.

Portanto, há algo a partir do qual se pode construir, mas ainda há muito a ser feito. Nos países menos desenvolvidos, alguns da região andina, outros da América Central ou do Caribe, praticamente tudo está por fazer, tanto em termos de cobertura quanto de qualidade.

Especialistas como Ezekiel Emanuel, da Universidade da Pensilvânia, afirmam que muitas vezes exageramos o impacto dos tratamentos médicos sobre a saúde e argumentam que os resultados de saúde são explicados principalmente por fatores exógenos, como pobreza, alimentação ou desigualdade. O sr. acha que falta uma visão ampla da saúde na América Latina? Provavelmente, sim. Existe uma correlação evidente entre a pobreza e o impacto de certos choques, conforme evidenciado pela Covid. E isso não é um problema apenas na América Latina.

No Reino Unido, a taxa de mortalidade entre minorias étnicas é três vezes a taxa de mortalidade do resto da população. No entanto, esse não é um argumento para não melhorar os sistemas de saúde, mas sim para melhorá-los e também avançar em outras direções.

Mas, como governar é priorizar, e não há país que possa fazer tudo ao mesmo tempo, você tem que se perguntar onde estão as prioridades e onde estão os recursos. Desse ponto de vista, melhorar a saúde é provavelmente algo que pode ser alcançado em um prazo mais próximo do que abolir a pobreza ou acabar com a desigualdade.

Em alguns países, como México e Brasil, mais do que se esconderem atrás de especialistas, os líderes políticos parecem ignorá-los por completo. O que os líderes regionais, os cidadãos e a sociedade civil podem fazer para influenciar a resposta nacional? Espero que a sociedade, nas próximas eleições, leve em consideração o desempenho desastroso, catastrófico e patético de alguns desses líderes populistas que não acreditam na ciência.

Expressar um certo ceticismo sobre a sabedoria científica, que é o que acabei de fazer, parece-me inevitável. Mas ir ao extremo de sustentar, como disse o presidente do Brasil, que o vírus foi uma invenção da imprensa para prejudicá-lo, ou ao ponto de fazer como fez o presidente do México, que continua organizando atividades políticas nas quais aperta as mãos e abraça seus correligionários porque é muito macho e o vírus não atinge os machos, é um ato de irresponsabilidade brutal que seria tragicômico se não tivesse provavelmente custado milhares ou dezenas de milhares de mortes.

E o mecanismo que temos nas democracias para punir aqueles que se comportam de forma irresponsável é negar-lhes o voto da próxima vez.

Como a economia da América Latina será afetada? Acho que a crise econômica vai se traduzir em um agravamento de muitas coisas na América Latina. Falemos em termos quantitativos. Em quase todos os países da América Latina, salvo raras exceções, o PIB vai se contrair em 10%, um pouco mais ou um pouco menos, neste ano.

Com isso, esta será a maior crise da América Latina: para alguns países, desde os anos 1980, e, para outros, provavelmente desde a Grande Depressão. É verdade que esperamos um crescimento positivo no próximo ano, mas não podemos esquecer que é um crescimento a partir de um ponto muito inferior.

Portanto, a questão é quanto tempo levará para as economias produzirem a mesma coisa que produziram, digamos, em dezembro do ano passado. E suspeito que esse tempo não será de um ano. Serão dois anos ou mais.

Ademais, essa crise chega em um momento de muitas mudanças tecnológicas. Isso favorece quem tem alto capital humano, porque pode usá-lo em todo o mundo, mas é muito ruim para quem não o tem e precisa ir trabalhar em um restaurante e lavar a louça.

Além disso, alguns empregadores perceberam com esta crise que há coisas que podem ser feitas remotamente ou mesmo que as máquinas podem fazer, e, portanto, não seria surpreendente se, juntamente com a contração cíclica do emprego, houvesse uma contração estrutural do emprego.

Sou economista e otimista e acho que, quando a economia destrói empregos, também cria empregos a longo prazo. O problema é que ambos não acontecem ao mesmo tempo. A destruição é rápida, a criação é lenta e, portanto, eu não ficaria surpreso se tivéssemos um período prolongado de dois, três, quatro anos com taxas de desemprego muito altas na região.

Por fim, essa recessão prolongada afetará muito as finanças públicas. A necessidade de outro ajuste fiscal se tornará, mais cedo ou mais tarde, aguda.

E, portanto, quando os governos têm menos dinheiro, enfim, gastam menos em muitas coisas, não seria estranho que víssemos menos dinheiro indo para a saúde.

Portanto, a combinação de todos esses fatores é catastrófica. E, desse ponto de vista, não me surpreenderia se tivéssemos alguns anos em que os indicadores de saúde na América Latina, que vêm melhorando, diminuíssem fortemente.

Quais medidas econômicas podem ajudar tanto a controlar a pandemia quanto reduzir seu impacto econômico? O economista peruano Roberto Chan sintetizou uma das chaves da pandemia com uma montagem: mostrou uma foto de um ano atrás de um dos principais mercados de Lima [capital do Peru], com a praça repleta de gente. Ele então mostrou uma foto do mesmo lugar no meio da quarentena de Lima. E o que se viu? Uma praça repleta de gente. É triste, mas não é surpreendente. Em muitos lugares de Lima não há geladeira, e mais da metade da força de trabalho é informal.

Em geral, nos países em desenvolvimento, a política econômica, a política de transferências é indissociável da política de saúde. Temos que ser muito agressivos e proativos nas políticas de transferências. Tanto por razões humanitárias, porque há pessoas que não têm o suficiente para alimentar os filhos, como também por questões de saúde, porque é a melhor forma de permitir que as pessoas fiquem em casa.

Agora, qual é a dificuldade? Obviamente, existem governos que não têm dinheiro. Há, pelo menos na América Latina, uma separação muito clara entre países com capacidade de endividamento que conseguiram emitir dívidas e receber fundos e o resto.

Peru e Chile conseguiram empréstimos sem maiores problemas. O Brasil conseguiu, mas alcançando níveis de endividamento que vêm se tornando muito perigosos. A Argentina fez isso emitindo pesos, o que em algum momento trará uma pressão inflacionária.

Há também uma dificuldade prática: quando os sistemas de seguridade social são muito primários, não há um cadastro adequado das famílias, muitas das quais não têm conta em banco. Embora o governo tenha o dinheiro, não é fácil garantir que os recursos cheguem às pessoas.

No Peru, eles tentaram levar dinheiro para as famílias, o governo tinha o dinheiro, mas a única maneira de as pessoas coletarem esses recursos era ficando em uma longa fila do lado de fora de um banco.

Ora, é difícil imaginar algo mais propício ao contágio do que milhares de cidadãos amontoados na porta de um banco tentando receber um cheque ou um pagamento em dinheiro.

Concluindo, duas lições: as emergências são mais um motivo para deixar um espaço fiscal em tempos normais e precisamos regularizar e bancarizar muito mais famílias na região.

O cenário que o senhor descreve é, para dizer o mínimo, desafiador. O que recomendaria aos reformadores e líderes políticos latino-americanos que desejam melhorar a saúde em seus países Primeiro uma recomendação conceitual, depois uma recomendação tática.

O conceito é que você não deve se apegar a sistemas puros. Acho que muitas vezes na América Latina o debate sobre saúde, assim como o debate sobre a previdência, não é muito produtivo porque se discutem abstrações de mercado puro ou somente Estado, que, a bem da verdade, não existem em muitos países ou, quando existem, não funcionam muito bem.

Portanto, seria aconselhável procurar modelos híbridos adaptados às circunstâncias de cada país.

E a recomendação tática é que a saúde é uma área que precisa de reformas mais ou menos extensas. Não apenas porque é bom ser ambicioso mas porque, se o pacote de reformas for muito pequeno e incluir muito pouco, sempre haverá perdedores evidentes.

Mas,0 quando se mudam várias coisas ao mesmo tempo, é possível que, se um grupo perder aqui, ganhará ali, e isso permite fazer compensações que facilitam a viabilidade política dessa reforma.

Andrés Velasco é formado em economia e filosofia na Universidade Yale e doutor em economia pela Universidade Columbia, é reitor da escola de políticas públicas da London School of Economics; foi ministro da Fazenda do Chile (março de 2006 a março de 2010, no primeiro governo de Michelle Bachelet)

 

Os dois modelos, por Mario Vargas Lhosa.

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Assumir o capitalismo é simplesmente impossível para alguns países

Mario Vargas Lhosa, Estado de São Paulo, 20/09/2020.

Uma das teses mais controversas do liberalismo de hoje é que, pela primeira vez na história da humanidade, os países podem escolher ser pobres ou prósperos. Isto nunca fora possível, porque a prosperidade sempre dependeu da quantidade de recursos que uma nação detinha, de sua localização geográfica e de seu poderio militar. Mas, no mundo globalizado de nossos tempos, bem se sabe quais são as políticas que criam empregos e fortalecem o país em termos econômicos – e quais são as políticas que o empobrecem e afundam. Os casos antinômicos da Venezuela e da Alemanha poderiam servir de exemplo.

O caso da Venezuela é conhecido em todo o mundo. Foi um dos países mais ricos do planeta, porque é, em suma, um imenso lago de petróleo e outros minerais que há poucos anos atraiu uma imigração gigantesca, para a qual sobrava trabalho. O país assim avançava a passos de gigante, apesar da corrupção e das atrocidades de seus governos, o que permitiu que o comandante Chávez e seu “socialismo do século 21” conquistassem o poder em eleições que provavelmente foram livres.

Elas nunca mais o seriam, claro. Hoje, a Venezuela está morrendo de fome e se afogando na corrupção. Para sobreviver, pelo menos 5 milhões de venezuelanos fugiram do país, a pé, carregando as malas e as crianças. É claro que o socialismo, do passado ou do presente, não garante prosperidade, mas, sim, miséria, a curto ou longo prazo. Por essa razão, Rússia e China deixaram de ser socialistas para praticar um capitalismo de compadrio, com ampla margem para a iniciativa privada e a competição na vida econômica, mas com uma rigidez muito estrita na esfera política, onde o antigo sistema autoritário persiste quase intacto.

A Alemanha, por outro lado, é um país que prospera a cada dia e em todos os sentidos. Acabo de visitar o país, depois de 7 meses, e mais uma vez fiquei maravilhado com o espetáculo de uma velha Alemanha Oriental em plena efervescência, onde se ressuscitam antigos palácios e se constroem arranha-céus por toda parte, onde ninguém parece morrer de fome, onde a democracia funciona em todos os níveis e onde a maioria dos cidadãos parece feliz com sua sorte.

O governo de coalizão, ainda presidido por Angela Merkel, parece firme, embora haja discrepâncias e disputas internas, e as próximas eleições, apesar do coronavírus, não devem mudar esse quadro que parece perfeitamente controlado, nesse período de estabilidade e progresso que o país vive.

O que a Alemanha fez para ser como é? Escolheu ser próspera, ou seja, integrou sua economia aos mercados mundiais e estimulou a iniciativa privada, a concorrência e a poupança. Além disso, o desenvolvimento econômico que vive há muitos anos lhe permite ser bastante independente – o país mais rico da União Europeia, sem dúvida – mesmo que, em termos energéticos, ainda dependa da Rússia, a quem se une por um tratado preocupante. Mas, em relação ao seu europeísmo, às suas políticas de imigração e ao seu respeito pela legalidade, não há nada a criticar e há muito a se imitar.

É fácil seguir o modelo alemão? Não é. Muitos países que gostariam de ser prósperos não conseguem seguir seus passos. Qual é o problema?

Basicamente, a corrupção. É o caso da América Latina, sem dúvida. A corrupção está tão profundamente arraigada em seus governos, seus ministros e funcionários roubam tanto e o roubo é uma prática tão difundida em quase todos os Estados que é impossível estabelecer uma economia de mercado que funcione de verdade, com uma concorrência séria e genuína.

Para que o modelo do progresso funcione, é preciso eliminar a corrupção, ou reduzi-la na expressão mínima, e isso, para muitos Estados, é simplesmente impossível. Aqueles que tiveram sucesso, como Cingapura, Coreia do Sul, Taiwan ou Hong Kong (antes de voltar a fazer parte da China), progrediram sem medida e acabaram com a fome e o desemprego. E a democracia começou a funcionar nesses países (no caso de Cingapura, de maneira mais limitada).

Por outro lado, a transição de uma economia sequestrada pela corrupção – em que ministros, chefes militares e meros funcionários enchem os bolsos ilegalmente – não é nada fácil. É preciso um apoio popular e jornalístico incessante, um Judiciário que atue de acordo com as leis e lideranças convictas e corajosas que acreditem no modelo e o ponham em prática sem medo nem hesitação. E, acima de tudo, é preciso uma opinião pública que acredite e dê respaldo ao modelo. Nem tudo se passa no campo econômico.

Pelo contrário: a prosperidade econômica não basta para criar magicamente uma sociedade onde a maioria dos cidadãos se sinta confortável. Ao mesmo tempo, é necessária uma verdadeira igualdade de oportunidades, que só pode ser oferecida por uma educação pública de alto nível, que garanta, a cada geração, um ponto de partida uniforme. Isso se realizou na França antes de qualquer outro lugar e também – pasmem – na Argentina do século passado, quando o modelo educacional criado às margens do Rio da Prata pelos herdeiros de Sarmiento despertava a admiração de todo o mundo.

O curioso é que, apesar do óbvio, os ataques ao modelo exitoso estão ficando cada dia mais intensos e vêm, sobretudo, de países que tentaram aplicá-lo e não conseguiram por vários motivos, especialmente por causa de uma classe política populista e demagógica, que questiona esse sistema por motivos supostamente morais. A maior dificuldade para que esses países sigam o modelo do progresso é semântica: um problema de palavras.

Assumir o “capitalismo”, um requisito essencial, é simplesmente impossível para a maioria desses países, uma vez que a esquerda em geral, e a esquerda comunista em particular, hoje minúscula, conseguiu criar em torno dessa palavra – capitalismo – um sentido de injustiça e desigualdade, de patifaria e egoísmo, que a torna impronunciável. Ou, melhor dizendo, associou-se a palavra a um complexo de inferioridade que impede que aqueles que nela acreditam a pronunciem, muito menos a promovam.

Muitas vezes, este é o caso dos próprios empresários, que têm vergonha de ser quem são e do que representam. Esse é um dos grandes paradoxos do nosso tempo: o sistema que trouxe modernidade, prosperidade e, acima de tudo, liberdade aos países mais avançados do mundo costuma ser impronunciável no terceiro mundo, onde nenhum líder político que se preze ousaria promover uma fórmula “capitalista” – palavra amaldiçoada – para seus eleitores, pois o mais provável é que teria muito poucos.

A esquerda conseguiu impor aquela confusão mental que nos dias de hoje, especialmente nos países subdesenvolvidos, impede que se aproveite a extraordinária possibilidade de tirar da pobreza e do subdesenvolvimento dezenas ou centenas de países, os quais, paralisados pelo suposto socialismo que finalmente traria igualdade, solidariedade e boa renda para seus cidadãos, afundam cada vez mais na corrupção e na miséria, como a Venezuela.

A possibilidade de escolher entre pobreza ou riqueza está sempre presente, como possibilidade teórica. Mas, na prática, o socialismo continua triunfando sobre o capitalismo, pelo menos no papel e nos discursos. Este não se importa, pois tem a sensação – a garantia – de que o futuro lhe pertence. Os outros países, enquanto continuam empobrecendo, contentam-se não com o progresso, mas com o triunfo de uma só palavra.  / TRADUÇÃO RENATO PRELORENTZOU

É PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA

 

Ideias de Ruth Cardoso para políticas públicas se perderam com avanço do populismo

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Antropóloga, que faria 90 anos neste sábado (19), lançou propostas inovadoras para terceiro setor

Folha de São Paulo, 20/09/2020 

Augusto de Franco

Autor de obras sobre desenvolvimento local, capital social, democracia e redes sociais. Foi membro do Comitê Executivo do Conselho da Comunidade Solidária (1995-2002)

[RESUMO] Autor comenta legado de Ruth Cardoso, que completaria 90 anos neste sábado (19), no debate acerca do terceiro setor e políticas sociais. Ideias arrojadas da antropóloga se perderam com ondas políticas populistas e regressivas.

Um dos temas submetidos aos debates promovidos pelo Centro Ruth Cardoso e a Fundação Fernando Henrique neste neste mês de setembro é o papel da sociedade civil nas políticas sociais. Ruth (1930-2008) completaria 90 anos neste sábado (19).

Embora tenha escrito com ela e outros autores dois livros sobre o assunto, não quero apenas relembrar nossas ideias durante aquele período de atuação do Conselho da Comunidade Solidária (1995-2002).

Mais interessante, talvez, seja tentar imaginar o que Ruth pensaria e faria hoje, duas décadas depois daquelas reflexões e experiências que tanto nos empolgaram.

Houve naquela época a abertura de uma janela de inovação social. Entre 1989 e 1998, tivemos a queda do Muro de Berlim e o declínio do socialismo real, o surgimento da World Wide Web e da nova ciência das redes, a ascensão do chamado terceiro setor, as teorias do capital social e a experimentação de uma nova geração de políticas sociais, entendidas como indução do desenvolvimento. Ruth não veio de Vênus. Ela floresceu naquela onda.

Quando essa janela se fechou, voltamos à década de 1980. E Ruth, nos seus últimos anos, sofreu “ao assistir à derruição sistemática das bases de um novo padrão de relação entre Estado e sociedade, que tanto se esforçou por construir”. Como escrevi em artigo publicado em 26/06/2008, dia de seu enterro, nesta Folha, “passou-se a tempo de não sofrer mais. Foi poupada do que ainda virá. Pobres de nós que teremos de aguentar sozinhos, por muito tempo ainda, todos os efeitos associados à volta regressiva de um passado do qual ela quis se desvencilhar”.

Pois sim. Esse passado voltou em 2003. E tornou a voltar em 2018, quando a marcha para algum lugar remoto no tempo sofreu uma aceleração ainda maior.

Se uma janela de inovação se fecha, há ondas regressivas sobrevindo. A primeira grande onda regressiva veio após o atentado ao World Trade Center, em 2001, com o unilateralismo, a guerra fria contra o terrorismo e a ascensão dos neopopulismos ditos de esquerda (gente como Chávez e Putin tomou o poder para alterar os regimes que os elegeram e nunca mais sair do governo).

A segunda grande onda regressiva veio com a ascensão dos populismos autoritários, ditos de extrema-direita. Ainda estamos nesta segunda onda, que se avoluma. Bolsonaro foi eleito (e pode ser reeleito) no Brasil; Trump também pode ser reeleito nos EUA; Erdogan, Orbán, e Duda avançam na Europa.

Levantamento do jornal inglês “The Guardian”, no fim do ano passado, revela que, há duas décadas, 7% dos europeus votavam em candidatos populistas, de diferentes espectros, e agora esse número passou para 25%.

Qual o problema? É que o populismo configura ambientes avessos à inovação. Ademais, populismos não promovem políticas sociais, e sim políticas para pobres. Não é a mesma coisa? Não, não é, como veremos adiante.

Fomos assim remetidos, talvez, para muito antes da década de 1980. Pode-se dizer que, em termos de inovação social, não é que estejamos desatualizados, mas sim que o mundo se desatualizou, nos deixou perdidos lá na frente.

Ruth em 2020 está perdida no tempo. Cabe a nós achá-la novamente. Vamos tentar farejar o caminho das ideias e práticas que nos levaram à essa perdição.

AS IDEIAS LÁ NA FRENTE

O Conselho da Comunidade Solidária, sob a presidência de Ruth Cardoso, foi fundado em 1995 como um novo instrumento de diálogo político e de promoção de parcerias entre Estado e sociedade para o enfrentamento da pobreza e da exclusão.

No início de 1996, por iniciativa de parte de seus próprios conselheiros, a Comunidade Solidária resolveu se reinventar. Naquela época foram lançados os fundamentos de um novo referencial para a ação social do Estado e da sociedade, com os quais trabalharíamos nos anos seguintes:

1) Não há contradição entre dever do Estado e responsabilidade do cidadão. 2) Não há contradição entre políticas públicas e dinâmicas comunitárias, entre oferta de serviços e fortalecimento do capital social local. 3) Não há contradição entre políticas de alcance universal e políticas focalizadas. 4) Não há contradição entre políticas assistenciais e políticas de indução ao desenvolvimento. 5) Não deve haver contradição entre política econômica e política social. 6) Não há caminho único nem receita infalível para superar a pobreza. 7) Compartilhar com a sociedade tarefas, formulação e implementação de uma estratégia de desenvolvimento social não é apenas uma possibilidade, mas uma necessidade, na sociedade contemporânea.

Adotando essas referências, o Conselho da Comunidade Solidária redefiniu a sua missão e foi refinando o seu papel ao longo do tempo. Em síntese, achávamos que nosso papel era promover programas inovadores de investimento em capital humano e, sobretudo, em capital social.

Nosso objetivo não era, portanto, fazer programas compensatórios ou assistenciais, conquanto reconhecêssemos que essas iniciativas fossem necessárias. Queríamos induzir o desenvolvimento social despertando as forças vivas e empreendedoras das comunidades, sempre pela ação de organizações da sociedade civil, em parceria com os governos e as empresas.

Ruth acompanhava com atenção os diferentes programas de transferência condicionada de renda, como o Bolsa Escola, tão caro ao nosso amigo Cristovam Buarque, então governador do Distrito Federal, ou o programa de renda mínima ensaiado por Magalhães Teixeira (mais conhecido como o Prefeito Grama de Campinas), a partir de 1994.

Sim, houve um Bolsa Escola federal durante o governo Fernando Henrique, e um Bolsa Família a iniciado pelo governo Lula (consolidando várias iniciativas anteriores). Há uma crença, repetida por quase todo mundo, de que foi Ruth Cardoso quem organizou tudo isso. Não é verdade. Não que ela se opusesse a tais iniciativas, mas simplesmente porque essa não era a sua praia.

Já em meados de 1996, nós, da Comunidade Solidária, estávamos envolvidos com uma nova geração de políticas sociais, uma terceira geração, por assim dizer, que não era, como a primeira, que predominou até o final dos anos 1980, baseada em políticas de intervenção centralizada do Estado, nem como a segunda, inaugurada após a Constituição de 1988, baseada em políticas públicas de oferta governamental descentralizada.

A terceira geração, acreditávamos, era baseada em políticas públicas de parceria entre Estado e sociedade para o investimento no desenvolvimento social.

Para essa terceira geração, o foco era o investimento em ativos (nas potencialidades já existentes em setores e localidades), e não apenas o gasto estatal para satisfazer necessidades setoriais, como destacado nos pontos a seguir.

1) O Estado é tão necessário quanto insuficiente, devendo-se, portanto, lançar mão de parcerias e buscar sinergias entre todos os setores (o Estado, o mercado e a sociedade civil) para promover o desenvolvimento.

2) Política pública não é sinônimo de política governamental, o Estado não detém nem deve deter o monopólio do público; existe uma esfera pública não estatal em expansão, constituída por entes e processos da sociedade civil que podem ser voltados à promoção do desenvolvimento.

3) Promover o desenvolvimento social não constitui uma tarefa lateral e separável das outras tarefas do Estado como indutor do desenvolvimento, na medida em que todo desenvolvimento é desenvolvimento social.

4) Induzir o desenvolvimento significa investir em capacidades permanentes de pessoas e comunidades para que possam afirmar uma nova identidade no mundo ao ensaiar seu próprio caminho de superação de problemas e de satisfação de necessidades, tornando dinâmicas suas potencialidades para antecipar o futuro que almejam.

AS IDEIAS PARA TRÁS

Na compreensão do que é política social, ficamos para trás. Há quem ache que política social é somente política para os pobres. Ou que apenas compensa defasagens de inserção no mundo produtivo.

Outros acreditam que seus objetivos são humanitários (para evitar que as pessoas caiam em extrema pobreza) ou estabilizadores da paz social (para evitar que as pessoas se revoltem violentamente contra o sistema, como no Chile em 2019. Cada uma dessas visões tem, em parte, seus miligramas de verdade. Mas todas estão baseadas em razões diminutivas.

A política social é necessária porque há um desenvolvimento que não é decorrência direta ou automática de crescimento econômico, sobretudo em sociedades altamente desiguais.

Mesmo com o aumento do bolo total de renda e riqueza, sua distribuição não se dará de modo equitativo diante de outras desigualdades, consideradas externalidades econômicas, como as de conhecimento e poder. Assim, não adianta pensar apenas em políticas de geração de emprego e renda.

É necessário pensar em políticas de investimento em capital humano (conhecimento) e em capital social (poder ou empoderamento), sendo este último o fator essencial pelo seu efeito sistêmico. Ora, a distribuição de poder depende do avanço do processo de democratização.

Por isso, políticas sociais não devem ser encaradas apenas como políticas para pobres, de proteção e assistência social, e sim como políticas de promoção ou indução do desenvolvimento social para todos. E o desenvolvimento social é parte (ou fenômeno acompanhante) do processo político de democratização da sociedade, do Estado e do padrão de relação Estado-sociedade.

Hoje, tudo isso que foi expectado, formulado e experimentado há mais de 20 anos parece futurível. Discute-se o valor de uma renda mínima a ser ofertada integralmente pelo Estado, e não a ser gerada pela sociedade e pelo mercado com os incentivos corretos do Estado. Nesta discussão, Ruth está perdida no futuro.

Não que não tenha sido necessário, sobretudo diante da crise econômica agravada pela pandemia, um auxílio emergencial de oferta estatal centralizada. Talvez precisemos manter essa ajuda ainda por muito tempo.

Mas, como brincávamos àquela época, trata-se de “dinheiro jogado de helicóptero”, pois, ainda que possa aquecer as economias locais e resgatar parte das populações da pobreza de renda, não é capaz de fornecer capacidades permanentes que permitam às pessoas e às comunidades mais carentes se emanciparem. ​

A pobreza não é apenas insuficiência de renda, mas principalmente insuficiência de rede. Sim, capital social é rede.

AS IDEIAS AGORA

Se pudéssemos ter saltado diretamente de 2002 para 2020, encontraríamos Ruth dizendo que o desenvolvimento não pode ser levado de fora para dentro, nem de amanhã para ontem. Que ele é um metabolismo da rede no presente.

E que, para tanto, existem apenas dois caminhos: a) aumentar a conectividade geral dos ambientes onde vivem as pessoas (inclusive, mas não só, em condição de pobreza), possibilitando a multiplicação dos laços fracos entre elas; e b) incrementar as relações amistosas que possam surgir entre essas pessoas quando elas se conectam a partir de seus desejos congruentes para fazer qualquer coisa juntas.

É mais simples do que parece para quem não quer usar as políticas sociais para conduzir rebanhos. Mas vá-se lá dizer-lhes!

 

A ilusão de uma recuperação em ‘V’

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Esperada contração nos gastos inviabilizará um avanço mais consistente

Esther Dweck

Professora do Instituto de Economia da UFRJ, coordenadora do Grupo de Economia do Setor Público (Gesp-IE/UFRJ) e ex-secretária de Orçamento Federal (2015-16, governo Dilma)

Thiago de Moraes Moreira

Consultor em planejamento estratégico e professor do Conselho Regional de Economia (Corecon-RJ) e do Ibmec-RJ

Muitos economistas vêm afirmando que o pior da pandemia já ficou para trás e apostam na recuperação em “V”. A letra “V” simbolizaria um cenário de recuperação acelerada, após a forte queda da atividade registrada em abril e que levou à inédita queda do PIB do segundo trimestre de quase 10%.

As últimas pesquisas reforçaram tal visão, mostrando a recuperação da produção industrial e do comércio. Os indicadores de expectativas também mostraram forte reação. A principal referência internacional para a confiança empresarial, o Purchasing Managers’ Index, vem registrando valores acima de 50 para a indústria brasileira desde junho, o marco divisor entre o pessimismo e o otimismo, após ter atingido 36 pontos em abril.

Entretanto, há indícios de superestimação da retomada, o que podemos denominar de “overshooting” das expectativas. Os resultados recentes de recuperação refletem principalmente o afrouxamento do isolamento social e os efeitos positivos sobre o consumo privado decorrentes das políticas de garantia de renda, como o auxílio emergencial e o seguro-desemprego.

O sucesso dessas políticas levou o governo a prorrogá-las, evitando a perda súbita de renda de parte expressiva da população. Vale também lembrar que milhões de trabalhadores formais estão com seus contratos de trabalho temporariamente suspensos ou com jornada (e salários) reduzidos, o que ainda tem evitado um processo de demissão generalizada.

No entanto, a redução do auxílio emergencial, a indefinição sobre a ampliação da cobertura do Bolsa Família para 2021, a retomada do teto de gastos já incorporada no Projeto de Lei Orçamentária (Ploa) 2021 e o fim do programa voltado à sustentação de empregos formais, apontam para uma forte contração econômica, que certamente irá interromper a trajetória em “V”.

O governo brasileiro novamente se recusa a assumir seu papel central na recuperação econômica, baseando-se no velho e ultrapassado argumento de que, sem uma austeridade fiscal rigorosa, a economia caminharia para o caos. Muitos economistas de orientação liberal no exterior estão sugerindo ações expansionistas de política fiscal, como pôde ser verificado nas últimas recomendações do FMI aos países do G20 para o enfrentamento do período pós-pandemia.

Somada a essa contração fiscal e ao aumento do desemprego, não podemos ainda descartar uma possível aceleração da Covid-19 no país, como a experiência recente de muitos países europeus tem sinalizado, o que poderia levar à necessidade de novas medidas de isolamento social.

Ainda não sabemos se o preço da negligência de autoridades no combate à pandemia já foi pago com as milhares de vidas perdidas e com o número ainda elevado de mortes diárias —e se a chamada “imunidade coletiva” já está próxima de ser atingida ou se poderemos assistir ainda a uma piora da situação.

Enfim, as hipóteses sanitárias, de evolução da renda e do mercado de trabalho, bem como as medidas de política fiscal, apontam para diferentes cenários de interrupção da recuperação econômica.

Um recrudescimento da pandemia pode ser o causador dessa interrupção, a qual pode ocorrer ainda neste ou no próximo ano, até que uma vacina efetiva esteja à disposição da população brasileira. No entanto, ainda que descartemos a hipótese de piora das condições sanitárias, há razões econômicas suficientes para a interrupção da retomada.

O esperado impacto negativo na renda decorrente do enfraquecimento dos programas assistenciais e do fim do programa de proteção ao emprego formal devem interromper a recuperação em curso da demanda privada. Acrescente-se a isso o enfraquecimento da demanda governamental com a retomada do recessivo teto de gastos. Em um contexto de evidente insuficiência de demanda agregada, a esperada contração nos gastos (públicos e privados) inviabilizará qualquer recuperação mais consistente, impondo dificuldades ainda maiores para uma economia que mesmo antes da pandemia ainda sequer havia recuperado o nível do PIB de 2014.

 

Não há justificativa razoável para deixar os magistrados de fora da reforma administrativa

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Salário inicial de um juiz federal recém-empossado foi de R$ 32 mil em 2019, 81% do salário de um ministro do STF

O encaminhamento da proposta de reforma administrativa ao Congresso trouxe necessária discussão sobre a adequação dos serviços prestados pelo Estado às demandas da população. Ampla gama de carreiras foi considerada, incluindo o funcionalismo nas suas esferas municipais, estaduais e federais, e em todos os Poderes.

Curiosamente, a proposta abriu exceções, mantendo intactas as regras de algumas carreiras específicas, como juízes, desembargadores, procuradores e promotores. Essas categorias têm participação relevante no Orçamento público, e suas atividades são de enorme importância para a sociedade e para a economia.

No caso do Judiciário, as despesas alcançaram R$ 100 bilhões em 2019, 1,5% do PIB, dos quais 90% são gastos com recursos humanos (Justiça em Números, 2020). Em perspectiva comparada, a alocação de recursos ao Poder Judiciário é elevada, já que países como França e EUA destinam em torno de 0,2% do PIB para essa atividade.

Relativo aos outros Poderes, o salário médio do Judiciário é três vezes maior que os salários do Executivo e do Legislativo (Atlas do Estado Brasileiro, 2019), guiado principalmente pela destinação de recursos que é dada aos magistrados, já que o custo médio mensal é de R$ 51 mil para eles, comparado a R$ 16 mil para os servidores do próprio Judiciário.

A extrema concentração de salários próximo ao teto remuneratório inviabiliza qualquer tipo de promoção por desempenho dos magistrados. Vale lembrar que o salário inicial de um juiz federal recém-empossado foi de R$ 32 mil em 2019 e corresponde a 81% do salário de um ministro do STF. Não surpreende a constante pressão pelas verbas indenizatórias como forma de salário.

Talvez haja entendimento de uma já elevada produtividade dos magistrados, justificando o recebimento do teto remuneratório, mesmo em início de carreira. O Justiça em Números de 2020 dá ênfase ao aumento de 13% da produtividade média do magistrado no último ano, atingindo o maior valor da série histórica, com média de 2.107 processos baixados por magistrado.

Com a máxima venia, cabe análise contraditória. O número de processos baixados é medida superestimada da resolutividade judicial, pois inclui processos remetidos para outros órgãos judiciais ou instâncias superiores. Ou seja, processos que não foram propriamente resolvidos. Mais correto seria considerar o mesmo processo ao longo de toda a sua “vida”, incluindo informações sobre a taxa de reforma das decisões contestadas.

Ademais, causa espécie associar o resultado de todo o Judiciário apenas aos magistrados, já que amplas estruturas administrativas de suporte também estão envolvidas.

O Judiciário conta com apenas 18 mil magistrados, mas tem o apoio de 270 mil servidores e 160 mil auxiliares. A produtividade do magistrado poderia ser muito mais bem mensurada pela avaliação de suas sentenças em comitê externo, incluindo aferição das horas trabalhadas em sistema de ponto, informação que a categoria recusa fornecer à sociedade.

Por outros indicadores, mais amplos, a eficiência do Judiciário não parece ser expressiva. A taxa de congestionamento —o percentual de processos que ficaram represados sem solução— é de 69%. A redundância decisória também é alta. Os percentuais de recursos dirigidos ao órgão que teve sua decisão contestada ou encaminhados à instância superior foram ambos de 11%.

Na Justiça do Trabalho, a recorribilidade a instâncias superiores chega a 51%. Isso sem contar a baixa taxa de resolução de conflitos em instâncias inferiores: 1 a cada 4 casos iniciados nas Varas do Trabalho chega ao Tribunal Superior do Trabalho. O tempo médio que um caso ganha sua primeira decisão é substancial, alcançando 57 meses nas Varas Estaduais.

Ao que tudo indica, nosso Judiciário é composto por magistrados de baixa capacidade resolutiva, apesar de amplo escopo decisório. A morosidade e a redundância da Justiça são prova evidente de enorme desperdício de recursos no setor.

Não há justificativa econômica (nem ética) razoável para deixar os magistrados de fora da reforma administrativa. Afinal, magistrados são servidores públicos como todos os demais outros. A sociedade como um todo ganha com Judiciário menos burocrático, mais rápido e menos imprevisível.

Cecilia Machado

Economista, é professora da EPGE (Escola Brasileira de Economia e Finanças) da FG