Revisão da macroeconomia encontra enorme resistência, afirma André Lara Resende

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Agosto de 2019 – Jornal daUnicamp

Ex-diretor do Banco Central esteve na Unicamp para ministrar a palestra de abertura da Semana da Economia

O economista André Lara Resende, ex-diretor do Banco Central e um dos integrantes da equipe que formulou o Plano Real, abriu na noite desta segunda-feira (12) a Semana da Economia, evento organizado pelos alunos de graduação do Instituto de Economia (IE) da Unicamp. Convidado para falar sobre macroeconomia, Resende alinhavou as suas reflexões com um tema que vem defendendo e que tem provocado ampla controvérsia entre os seus pares: a Teoria Moderna da Moeda, também chamada de Teoria Monetária Moderna (MMT, em inglês). Um dos pressupostos da MMT, e que tem causado maior resistência por parte dos críticos, assevera que os países que emitem a sua própria moeda soberana não enfrentam restrições financeiras. Ou seja, por maiores que sejam os gastos, eles não podem se tornar insolventes. “Quanto a esta questão, não há o que discutir. É uma questão lógica. A resistência me impressiona”, afirmou. Antes de falar a uma plateia que lotou o Auditório “Zeferino Vaz” do IE, Resende recebeu o Jornal da Unicamp para a entrevista que segue, na qual ele ofereceu maiores detalhes sobre a MMT.

Jornal da Unicamp  Que reflexões o senhor trouxe para a Semana da Economia, organizada pelos estudantes de graduação do Instituto de Economia da Unicamp?

André Lara Resende – O tema da minha conferência é a crise da macroeconomia. A macroeconomia, como toda a teoria econômica, é algo em mutação permanente. A crise de 2008 deveria ter forçado uma revisão da macroeconomia. Essa revisão ainda está em curso, mas encontra enorme resistência.

JU – O atual contexto político brasileiro é um elemento dificultador dessa revisão no âmbito doméstico?

André Lara Resende – Penso que não. A resistência independe das circunstâncias políticas dos países. Essa resistência existe sempre.

JU – Um tema que o senhor trouxe para a sua conferência, e que tem sido objeto de vários artigos seus, é a Teoria Moderna da Moeda ou Teoria Monetária Moderna. Para os que s não estão familiarizados com o assunto, quais são os princípios da MMT?

André Lara Resende – Toda vez que damos uma denominação para uma dada teoria, isso ajuda de certa forma a organizar as ideias em torno delas. Por outro lado, pode também prejudicar o entendimento daquilo que está se falando, pois vira um rótulo. E o rótulo tende a identificar, sem que haja reflexão. Uma vez rotulada, a teoria pode ser associada, por exemplo, a certo tipo de posição política, o que dificulta ainda mais o entendimento das ideias que estão sendo discutidas. O que se convencionou chamar de Teoria Monetária Moderna, que considero um mau nome, visto que o moderno já é velho, parte da observação de que a teoria monetária num sistema de moeda fiduciária tem implicações muito diferentes da teoria monetária clássica. No mundo da moeda fiduciária, o que choca algumas correntes é a afirmação de que o governo que emite a sua própria moeda não tem restrição financeira. Isso, embora seja um corolário lógico e irrefutável, tem gerado enorme resistência.

JU – Os críticos da MMT dizem que ela é um tanto confusa. Esta posição é um indício dessa resistência à qual o senhor se refere?

André Lara Resende – Não tem nada de confusa. Para ser sincero, a maioria das críticas que eu vi demonstra que os seus autores não se deram ao trabalho de tentar entender. Não viram, não leram e não gostaram. Isso evidentemente não é aceitável do ponto de vista de um posicionamento intelectual, acadêmico.

JU – Os pressupostos da teoria são válidos indistintamente para todos os países que emitem moeda fiduciária?

André Lara Resende – Qualquer país que emite moeda fiduciária não sofre restrição financeira. Quando ele gasta, inevitavelmente emite moeda. Quando tributa, forçosamente destrói moeda. Essa vinculação entre política fiscal e política monetária durante muito tempo foi mantida separada pela teoria convencional. A própria teoria convencional, de duas ou três décadas para cá, entendeu que essa desvinculação é equivocada. A Teoria Monetária Moderna, por entender melhor o funcionamento da emissão de moeda – a palavra emissão é ruim; é preferível ‘criação’ –, desmascara algumas das teses da teoria monetária convencional. A partir daí, isso tem implicações na política monetária e na política fiscal.

Voltando à sua pergunta, o fato de o governo que emite a sua moeda fiduciária não ter restrição financeira, não significa que tudo é possível. A restrição da oferta, da realidade dos recursos, continua a ser uma ciência da escassez. Você tem que tomar decisões sobre a alocação dos recursos. Quando você aumenta os gastos públicos, a despeito de você ter como financiá-los ou não, isso significa que algum outro tipo de gasto, caso você esteja perto do limite da capacidade, deixará de ser feito. São decisões técnicas e políticas. A teoria convencional, por alguma razão, defende que a decisão é meramente técnica, mas não é.

JU – Diferentes gerações testemunharam economistas e governantes afirmarem que as contas de um país se assemelham às contas de uma residência. Ou seja, o princípio é de que não se deve gastar mais do que se ganha ou arrecada. A MMT considera que a comparação não procede. Poderia explicar melhor esse entendimento?

André Lara Resende – O senso comum diz que todos devemos respeitar as nossas restrições orçamentárias. Isso não é verdade, e Keynes [John Maynard Keynes, economista britânico considerado o “pai” da macroeconomia moderna] mostrou isso claramente na sua Teoria Geral. Ele demonstrou que existe uma falácia da composição. O que é verdade no nível individual pode não ser no nível agregado. Tomemos como exemplo a poupança. Quando uma pessoa poupa, ela terá mais renda no futuro. Se a economia toda aumenta a sua taxa de poupança, isso pode levar a uma redução da renda e do emprego. Portanto, o comportamento dos agregados não é igual ao comportamento microeconômico dos indivíduos. O mais difícil de ser entendido é que, como a moeda é fiduciária, criada quando o governo gasta, o governo não tem uma restrição financeira. Ele não precisa encontrar fontes de recursos para seus gastos. Isso vai contra o senso comum, mas é uma dedução lógica da moeda fiduciária.

JU – Quem cria a moeda é o governo central. Como ficam estados e municípios nesse contexto?

André Lara Resende – Estados e municípios não têm capacidade de emissão. Eles estão submetidos a uma restrição financeira. Portanto, não têm a mesma flexibilidade que o governo central. Pode-se gastar bem ou gastar mal. Alguma restrição a gastos correntes, especialmente com pessoal, faz todo o sentido. Isso porque existe uma tendência política demagógica inevitável, adotada por homens públicos que querem aumentar a sua área de influência, de contratar pessoas no setor público, inchando-o. Esse tipo de funcionário público tende a se organizar do ponto de vista corporativo para obter vantagens. Com isso, aumenta-se o gasto corrente no orçamento. Isso achata o que sobra para gastos de investimentos e de transferências, visto que o governo tem um papel importante de transferência de renda. Se o governo gasta tudo na operação da máquina pública, ele torna-se incapaz de cumprir todas as suas obrigações.

JU – É possível outro entendimento sobre o déficit e a consequente reforma da Previdência Social à luz da MMT?

André Lara Resende – O déficit da Previdência no Brasil é um fato. A Previdência ficou crescentemente deficitária. Isso estava evidente há 15 anos. Eu dirigi um grupo de estudos para propor a reforma da Previdência. Na época, nós estimamos que a Previdência ficaria inviável entre 2010 e 2015. São duas as razões principais desse déficit. A primeira é de ordem demográfica. O sistema de repartição, com o qual os trabalhadores da ativa contribuem para o pagamento dos benefícios dos aposentados, é altamente superavitário no início, especialmente quando a população é crescente e jovem. À medida que ocorre um inflexão demográfica, situação na qual a população envelhece e que há mais pessoas se aposentando que ingressando no mercado de trabalho, esse sistema tende a se tornar deficitário. Isso é normal e ocorreu no mundo todo. No Brasil, essa inflexão foi mais rápida.

A segunda razão é que setores com força política se organizaram para arrancar benefícios previdenciários muito acima da contribuição. Gente se beneficiando sem tempo de contribuição, com idade mínima reduzida e recebendo o último salário incorporado de diversos benefícios, coisas que não existem em lugar nenhum do mundo. Essa combinação de reversão demográfica com corporativismo que adquiriu vantagens tornou o sistema inviável. Ele precisaria ser reformado.

JU – Os artigos publicados pelo senhor na imprensa sobre a MMT repercutiram muito e causaram polêmica. Como andam as discussões sobre o tema neste momento?

André Lara Resende – Os meus artigos deste ano são uma continuação dos artigos que estão no livro que publiquei em 2017, intitulado “Juros, Moeda e Ortodoxia”, nos quais eu já discutia essas questões. Desde lá, meus artigos realmente têm causado bastante controvérsia. Em relação aos artigos do livro, eu até compreendia a polêmica. Quanto à questão mais recente, de que o governo que emite moeda fiduciária não tem restrição financeira, não há o que discutir. É uma questão de lógica. A resistência me impressiona.

JU – O senhor identifica os motivos desta resistência?

André Lara Resende – É estranho. Penso que tem uma combinação política, de interesses constituídos. Esses interesses políticos não me parecem ser conscientemente organizados. Isso é grave porque são interesses inconscientes. E existe também um fator psicológico, do ponto de vista dos economistas, que enxergam nisso uma perda de status e poder. Os economistas são percebidos como técnicos de alta competência, que falam uma linguagem matematizada, hermética. Quando alguém aponta que eles estão dizendo a coisa errada há muitos anos, eles resistem. Do ponto de vista intelectual, e foi o que aconteceu comigo, é preciso analisar as proposições e, se for o caso, admitir que estava errado. Quando se usa o conhecimento como arma de poder político e de influência, você se sente ameaçado pela desmoralização da tese que você defende. Isso explica em grande parte a resistência.

JU – Qual a importância de trazer reflexões dessa ordem para um evento como este do Instituto de Economia da Unicamp, que é organizado pelos estudantes de graduação?

André Lara Resende – Acho muito importante. Essa discussão, e eu tenho feito conscientemente isso, tem que ser feita nos fóruns que têm interesse de debater as ideias. Uma das coisas que estou criticando é a ideia de despolitizar a teoria econômica. Como alguém já afirmou, a perigosa homenagem que a macroeconomia faz à política é torná-la invisível. Minha preocupação é escrever e discutir minhas ideias nos ambientes acadêmicos e intelectuais, e não nos ambientes políticos.

 

‘Bolsonaro é qualquer coisa menos liberal’

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Para economista, que foi professora em Chicago, liberalismo é confundindo com violência e visão reacionária no Brasil.

Entrevista com

Deirdre McCloskey, economista e professora da Universidade de Illinois em Chicago

Luciana Dyniewicz, O Estado de S.Paulo 

24 de janeiro de 2020

Defensora do liberalismo e professora na Universidade de Chicago entre 1968 e 1980 – época em que o ministro brasileiro da Economia, Paulo Guedes passou por lá –, a economista Deirdre McCloskey afirma que o governo de Jair Bolsonaro é “qualquer coisa menos liberal”, pois, para ela, não é possível separar as questões econômicas das sociais. “A ideia principal do liberalismo é que não haja hierarquias: homem sobre mulher, heterossexuais sobre gays ou Estado sobre indivíduos”, disse Deirdre, que estará em São Paulo na próxima quarta-feira,29, para um evento do banco Credit Suisse.

Em uma época marcada por polarizações, a economista ganhou destaque no debate econômico mundial por criticar aspectos tanto da direita quanto da esquerda. Deirdre, que já esteve no Brasil há dois anos para o projeto Fronteiras do Pensamento, dessa vez também fará palestra para funcionários da Petrobrás.

A economista, que hoje é professora da Universidade de Illinois em Chicago, vê com descrédito a possibilidade de Guedes conseguir transformar a economia brasileira em liberal e não se mostra satisfeita com os rumos do governo brasileiro. “Um ministro da Economia não faz tudo funcionar, é preciso ter outras políticas por trás. (…) Bolsonaro pode ser capturado pelos interesses, especialmente dos mais ricos”. A seguir, os principais trechos da entrevista.

A sra. já disse que o liberalismo é incompatível com violência e divisões na sociedade por gênero ou raça. Considerando isso, acha que o governo Bolsonaro é liberal?

Não. No meu país e no seu, há uma grande confusão sobre liberalismo. Nos EUA, significa uma versão suave de socialismo. Na América Latina, principalmente no Brasil, significa reacionário e violento. Os governos de Trump e Bolsonaro são qualquer coisa menos liberais. A palavra liberalismo vem do latim, ‘liber’, o que significa não-escravo. No resto do mundo, as pessoas sabem o que liberal significa. O presidente Emmanuel Macron, na França, é um liberal. A ideia principal do liberalismo é que não haja hierarquias: homem sobre mulher, heterossexuais sobre gays ou Estado sobre indivíduos.

Não podemos separar o econômico do social? O governo brasileiro se diz liberal na economia e conservador nos costumes.

Acho que não. Claro, pessoas como Bolsonaro dizem que sim. Acham que pode haver livre mercado na economia, ainda que haja um fascismo contra gays, por exemplo. Não concordo com isso. Para mim, assim como era para Adam Smith e John Stuart Mill, liberdade é liberdade.

A plataforma econômica do governo tem apoio do mercado…

O apoio do mundo dos negócios não é ao liberalismo. O apoio do que na América Latina vocês chamam de governos liberais vem porque os empresários querem o monopólio. Na Itália, os fascistas eram donos das indústrias e os empresários amavam Mussolini. Isso porque o Estado os ajudava. Isso é fascismo. Outra palavra para isso é corporativismo. As corporações parecem controlar o governo e o usam em benefício próprio. Em um mercado livre, as corporações têm de competir, o que é bom para você e para mim. Mas não é bom para nós quando há tarifas de importação, subsídios ou políticas para inovação. Não importa se as políticas são de direita ou de esquerda. Qualquer privilégio para um grupo machuca as pessoas comuns. É por isso que o Brasil tem crescimento econômico lento.

Acha que podemos comparar a Itália fascista com o Brasil atual?

Sim, mas não estou falando algo apenas sobre o Brasil. Há um movimento populista e fascista global. Você o vê na Hungria, na Polônia, nas Filipinas, na Rússia e nos EUA.

Há uma discussão corrente no Brasil sobre a relação entre crescimento e democracia, de que, caso a economia se recupere, questões como liberdade de imprensa e homofobia se tornam menores para muitas pessoas…

Isso é certamente correto. É o caso da China. A economia chinesa vai bem e acho que, se houvesse eleições de verdade lá, o partido comunista venceria. As pessoas estão dispostas a sacrificar a liberdade de imprensa e de expressão e tribunais honestos se seus bolsos estiverem cheios.

Vê alguma forma de mudar isso?

Tentando persuadir as pessoas de que liberdade é melhor. Se você oprime gays ou mulheres, também será pobre, porque, no mundo moderno, o liberalismo funciona. Ele faz as pessoas mais ricas e livres ao mesmo tempo.

Falando estritamente de economia, o Brasil está indo na direção correta?

Não sou especialista em Brasil, mas peguemos o exemplo da Amazônia. Não é do interesse dos brasileiros que as plantas da Amazônia sejam usadas sem nenhum direito de propriedade. Isso é entregar a Amazônia a empresas madeireiras privadas sem fazê-las pagar nada. É uma ideia muito ruim. Bolsonaro já cortou impostos?

Não.

A mesma coisa com Trump, que elevou impostos para beneficiar indústrias específicas, como a de painéis de energia solar. Eu esperaria que Bolsonaro fizesse algo parecido. Posso estar errada, mas acho que ele pode ser capturado pelos interesses, especialmente dos mais ricos. E eu não sou contra ricos, não quero atacá-los. Mas os donos das empresas precisam competir uns com os outros e com os estrangeiros também, e vice-versa. O Brasil faz bem aviões, os quais vende em todo o mundo. Mas, nos EUA, a Boeing é protegida pelos EUA, contra o Brasil. Isso é uma loucura. Deveríamos ser capazes de comprar aviões em qualquer parte do mundo.

A situação fiscal do Brasil é delicada. Acha que mesmo assim deveria haver redução?

Impostos são fonte de receita para governos e tornam a economia menos eficiente. Eles impedem a competição. (Para reduzir impostos no Brasil) seria melhor cortar o investimento nas forças armadas, o que Bolsonaro obviamente não fará.

O ministro Paulo Guedes foi seu aluno em Chicago? Ele defende uma postura liberal em relação ao comércio…

Se ele esteve lá nos anos 70, quase certeza que foi meu aluno. As turmas eram grandes, mas acho que me lembro desse nome. Se ele está fazendo o que aprendeu em Chicago, está colocando a economia na direção correta. Mas um ministro da Economia não faz tudo funcionar. É preciso ter outras políticas por trás.

A sra. sempre afirma que o problema das sociedades não é a desigualdade, mas a pobreza. O liberalismo é suficiente para reduzir a pobreza? Políticas para ajudar pessoas a saírem da extrema pobreza são desnecessárias?

Sou a favor dessas políticas. O governo deve taxar pessoas como você e eu para pagar educação fundamental e talvez educação secundária. Não acho que deva pagar por universidades. Também devemos ser taxadas para pagar o Bolsa Família. E é isso. Mas também tem de haver políticas liberais que quebrem monopólios. Vamos pegar o exemplo dos sistemas de saúde: o problema que temos nos EUA é que a indústria é monopolista. Os preços de medicamentos são extremamente altos e ainda tem uma lei que proíbe os cidadãos americanos de comprarem remédios no Canadá ou no México. É uma loucura. É uma proteção especial para os donos das empresas de remédios.

Como liberal e mulher transexual, acha que políticas de igualdade de gênero ou de raça devem ser adotadas?

Não, elas transformam transgêneros ou gays ou negros em crianças. Vamos pegar um exemplo concreto de transgêneros: quem deve pagar pela operação de mudança de sexo? O Estado ou o indivíduo? Pra mim, deve ser o indivíduo. As operações de mudança de sexo não são tão caras. Custam quase o mesmo que um carro pequeno. O problema de o Estado assumindo coisas é que você pode se tornar um escravo do Estado. Se você tem uma pessoa legal no comando do Estado, como o Barack Obama, tudo está bem. Mas, se você tem pessoas desagradáveis e loucas, como Bolsonaro ou Trump, as mesmas regras – os mesmos subsídios, as mesmas proteções que ajudam as pessoas transexuais – podem se virar instantaneamente contra elas. O Trump, por exemplo, para satisfazer suas bases, tirou os transgêneros das Forças Armadas. Eu quero tirar o Estado grande do que é da minha e da sua conta. Quero que as pessoas convençam uns aos outros com trocas monetárias: eu ofereço meu trabalho para você, você me dá dinheiro em troca e eu compro coisas. É assim que os pobres melhoraram de vida nos últimos dois séculos, não é através da ação do Estado.

Não existe ser liberal na economia e intolerante nos costumes, diz Elena Landau

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Para economista que atuou nas privatizações de FHC, liberalismo é progressista e respeita direito LGBT

Eduardo Cucolo e Alexia Salomão 

SÃO PAULO – Folha de São Paulo – 30/12/2019

A economista e advogada Elena Landau, uma das responsáveis pelo programa de privatizações dos governos Itamar Franco e FHC, em meados da década de 1990, diz que o governo atual não tem obtido grandes avanços que possam ser considerados uma agenda verdadeiramente liberal na área econômica.

Afirma também que, no caso da gestão Jair Bolonaro, aquilo que se chama de conservadorismo em termos de costumes se trata, na realidade, de retrocesso civilizatório. Em entrevista à Folha, ela afirma ainda que o programa de privatizações do Ministério da Economia está sem rumo.

Há hoje uma discussão sobre o que é liberalismo, se o governo atual é liberal, se o governo FHC, do qual você participou, era neoliberal ou social-democrata. O ministro Paulo Guedes (Economia) afirma que este é o primeiro governo liberal depois de 30 anos de social-democracia. Afinal, o que é liberalismo?

Eu sempre uso a definição do Vargas Llosa: é uma questão da atitude. A atitude liberal é de tolerância e de diálogo.

Muitas correntes hoje são tratadas como liberais e não têm nenhuma atitude liberal. Não permitem que você pense diferente de seus integrantes. Se você acredita que o Estado tem funções, que há falhas de mercado ou fala em mobilidade social, você é considerado de esquerda. Eles são dogmáticos. Isso não é liberalismo. Um liberal é tudo menos dogmático. Essa briguinha é coisa de adolescente.

Me diga: o que seria equivalente, no governo de hoje, a colocar de uma só vez na linha da privatização o Sistema Telebrás, o Sistema Eletrobrás e a Vale? Eu quero que o Guedes me responda se isso é social-democracia ou se é liberalismo. Eu tenho certeza de que sou liberal. Tenho certeza de que o presidente Fernando Henrique é uma pessoa liberal.

Tem gente chamando o ex-presidente FHC de comunista.

A equipe econômica do Fernando Henrique era muito liberal. O Fernando Henrique é um liberal clássico. Ele tem uma formação de centro-esquerda. Qual o problema?

Liberais são progressistas. Essa ideia de que não há progressismo no liberalismo é absurda. O desfavor que esse grupo liberal de direita, alguns “liberminions”, que apoiam o governo Bolsonaro acima de qualquer coisa, não entendem que o liberalismo clássico era progressista. Quem inventou Imposto de Renda negativo, quem batalhou pelo voto da mulher? Não tem ninguém que diga que você é ou não um liberal avaliando se você é a favor ou contra posse de arma.

As pessoas acham que falar sobre desigualdade, mobilidade social, identidade de gênero, é coisa de comunista. Isso ocorre porque as pessoas não conhecem o liberalismo clássico. Olham para a agenda econômica e acham que aquilo é o suficiente. O Livres, não.

O ministro Paulo Guedes [Economia] costuma dizer que o governo atual é liberal na economia e conservador nos costumes. Existe essa diferença?

Não há possibilidade de ser um liberal se você não respeita identidade de gênero, se você não respeita religiões, se você quer calar a cultura, como se está fazendo. A palavra “conservador” é mal utilizada.

Esse governo não tem nada de conservador. A gente está usando conservador como sinônimo de obscurantismo, retrocesso civilizatório. Você não pode dizer que é conservador um cara que defende e elogia um torturador. Isso não é conservadorismo. Isso é absurdo.

E como está a posição liberal na economia, então? Para muitos, o Brasil avançou nessa questão. Qual é a sua opinião?

Não acho que a gente tenha tido grandes avanços assim no que se refere a uma economia liberal. Não posso duvidar de que o ministro tem uma pauta e um pensamento liberal, mas, na prática, ainda falta muita coisa para fazer. Até agora, a gente fez a reforma da Previdência. E o que mais?

Cadê a abertura comercial, a grande privatização, a grande reforma do Estado, a liberação das poupanças compulsórias do trabalhador? Cadê o fim do Sistema S e das desonerações prometidas? Não fui eu quem prometi acabar com essas coisas todas. Eles ganharam a campanha com essa promessa. Então, cumpram.

Você participou das grandes privatizações no governo FHC. Como você avalia o atual programa de desestatização?

Não adianta dizer que o Salim [Mattar, secretário de Desestatização do Ministério da Economia] vai privatizar se ele não tem poder para privatizar. Os presidentes das estatais, por decisões empresariais, indicam de qual subsidiária, de qual participação vão se desfazer e como vão se desfazer. É decisão individual. Você vende a BR Distribuidora, e o recurso recebido vai para o caixa da Petrobras. Não vai para o caixa da União.

Não é o que foi prometido.

Você diz que o presidente Bolsonaro é o maior privatizante da história. Aí você fala em Banco do Brasil. Não pode. Petrobras não pode. A Caixa não está pronta. Nem Valec. Nem a TV do Lula. Enquanto a Valec não for privatizada, eu não considero que está tendo programa de privatização. A Eletrobrás está no meio e ninguém toma conta dessa privatização. Está sem comando. Não tem rumo.

O Guedes prometeu US$ 20 bilhões, R$ 100 bilhões. Antes do leilão de cessão onerosa, quanto tinha chegado ao Tesouro dos R$ 96 bilhões que foram para o governo? Foram R$ 6 bilhões de concessão e de outorga. O resto tinha indo tudo para o caixa das empresas estatais. O dinheiro que entrou da TAG no caixa da Petrobras foi usado para comprar Búzios. Se a Petrobras não tivesse comprado nada, tinha ficado no seu caixa.

Não precisa de lei para vender empresas estatais, exceto as quatro grandes: Petrobras, Banco do Brasil, Caixa e Eletrobrás. Então, não vamos dar desculpa de que o Congresso Nacional não está contribuindo.
Falta Casa Civil também. Na minha época, a Casa Civil era fundamental, porque ela representava o presidente da República. Era a Casa Civil que ajudava o BNDES.

O BNDES foi o alvo de questionamentos, passaram o ano procurando uma caixa-preta na instituição e Guedes já falou que, por ele, fechava o BNDES. Qual a sua visão sobre o banco?

Poucas vezes eu concordo com o Guedes. Eu não sei se tem de fechar o BNDES, mas certamente ele tem de diminuir de tamanho, o que passa por uma reforma de RH, de redução de funcionários, de reestruturação do banco e da BNDESPar.

Eu costumava dizer que o BNDES era um banco em busca de uma missão. O [presidente atual, Gustavo] Montezano criou uma função para o BNDES, que é virar um banco do investimento, no sentido de estruturar negócios para municípios e estados que precisam desse apoio. Na BNDESPar, ou vende a carteira toda para um banco ou divide ou terceiriza. É ineficiente o desinvestimento através da BNDESPar.

Muitas pessoas têm dito que, se o governo arrumar a economia, o restante vai caminhar bem, e que não tem problema polêmicas causadas em outras áreas, como Ministério da Educação e Funarte. A economia caminha separado do resto da gestão e, se a economia for bem, basta?

Economia ir bem é mais do que obrigação. E não, não basta.

É ótimo que o país melhore. Estamos torcendo para que o Brasil tenha recuperação de crescimento, que volte a ter investimento.

E, do ponto de vista econômico, eu pergunto: é possível fazer o Brasil dar salto de produtividade sem educação? O ministro da Educação está preocupado em olhar o passado. Ele olha os números do Pisa [Programa Internacional de Avaliação de Alunos, no qual o Brasil costuma ser mal avaliado] e fica falando do PT.

Gente, desapega do PT. Esquece o PT. Se as pessoas quisessem o PT, teriam votado no PT. O PT perdeu as eleições. Eu quero saber do futuro.

Agora, do ponto de vista social, a gente está vendo pelo resto do mundo que não adianta a economia ir bem com a desigualdade piorando.

O ruim da polarização é que o debate está proibido. Então eu gosto de ver que o Livres está incomodando, porque o Livres é um movimento liberal que permite o debate.

Você mencionou várias vezes o Livres. Pode falar sobre sua relação com o movimento e a saída do PSDB? 

Eu saí do PSDB por causa da questão do Aécio [Neves, deputado que é réu em ação envolvendo a delação de Joesley Batista, da J&F] e pela questão de titubear na discussão da reforma da Previdência e todas essas reformas que o PSDB defendeu na minha época e que agora abandonou.

Eu acompanhava o Livres pelo Twitter, tinha dois amigos meus que trabalhavam nesse movimento suprapartidário. Fui conversar com essas pessoas e me convidaram para ir para a fundação do Livres.

Começamos com alguns deputados, a bancada está crescendo. A gente leva discussões como plantio da maconha, desobrigação de serviço militar versus prestação de serviço para comunidade, apoio à questão LGBT. Na economia, a gente passa o dia inteiro falando que não está suficiente. Liberalismo não se resume a economia. No Livres, você vê um movimento liberal progressista ganhando o coração e a adesão de uma juventude.

O Livres tem posição sobre legalização das drogas? O Milton Friedman, da Universidade de Chicago, era defensor aberto da legalização das drogas. O Livres é a favor da descriminalização, da legalização.

Agora saiu a medicinal, e os nossos deputados federais, Tiago Mitraud (Novo-MG) e Marcelo Calero (PPS-RJ), do Livres, entraram com projeto para permitir o plantio, para não ter de depender de indústrias farmacêuticas para usos medicinais. Depois a gente vai do plantio para discussão de uso recreativo. Aos poucos avançamos.

Vira e mexe você é agredida nas redes sociais. Sempre foi difícil ou o ambiente agora é mais agressivo?

No governo do PT, por causa da minha atuação na privatização, diziam que eu vendi o patrimônio público. Eu simplesmente bloqueava. Umas três vezes, eu fechei minha conta e comecei do zero, jurando que ia ter conta fechada para não entrar em polêmica. Chega uma hora, porém, vem a pergunta: qual a graça de ter uma conta fechada?

Mas agora é muito pior do que no tempo do PT. A agressão, a baixaria, o nível e o tom da agressividade, as palavras usadas, tudo tem outro padrão. E não é só robô. Eu devo ter bloqueado mais de mil contas. Botou petralha ou tucanália na minha tela, é bloqueado. O mais novo xingamento que eu recebo é de ser “isentona”, virou um xingamento hoje em dia. Eu sou agredida pelos dois grupos.

Você está otimista para 2020? Será que agora a economia vai? 

Temos uma retomada cíclica. Já tem gente falando em 3%. O problema é quanto disso vai se refletir em emprego formal, em emprego de qualidade, em aumento de produtividade, infraestrutura, se de fato a gente vai ter uma virada na educação. Você pode ser oposição, pode não gostar do governo, mas a obrigação é torcer para dar certo.

Um ano de bizarrices, sectarismo e ideologia, por Marco Aurélio Nogueira

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Complexidade do Brasil e do mundo esteve além do entendimento médio do governo em 2019 – O Estado de São Paulo, 28/12/2019.

Para dizer o mínimo: 2019 foi perturbador.

Chegamos a dezembro com sinais de que a economia começa a se recuperar. A taxa de crescimento bateu em 1% no ano, mas o desemprego e a renda continuaram a martelar os brasileiros. A produtividade permanece baixa, o crescimento não se mostra sustentado. Nos bastidores da estridência governamental, escorreu uma política econômica que se proclama liberal, mas age em nome de um governo que ameaça as liberdades básicas.

Nenhum país anda só com as pernas da economia. Depende de coisas que têm alto poder de determinação. É preciso olhar o todo, avaliar o que impacta o cotidiano da população, prestar atenção na política, naquilo que fazem as oposições e o governo, na repercussão de escândalos como o do senador Flávio Bolsonaro, nas atitudes intempestivas do presidente.

O balanço do ano não é animador. A política externa, ideologizada de modo caricatural, converteu o País em chacota mundial. Combinou sem critério o fundamentalismo religioso e o patriotismo rasteiro, trocando o pragmatismo característico do Itamaraty por pregações moralistas, subservientes, fechadas ao interesse nacional: uma visão que se aliena do mundo e do próprio País.

O meio ambiente foi tratado com desdém. As populações indígenas foram vistas como “entraves” à exploração do território e das florestas. Queimadas, desmatamento, óleo emporcalhando mares e praias, todo um cenário complicado a requerer uma atenção que não apareceu: em vez dela, sucederam-se insultos que isolaram o País.

A letalidade policial continuou a assustar. As mortes absurdas afetam principalmente os jovens, os mais pobres, os negros e mulatos, as periferias das grandes cidades. Uma parcela importantíssima da sociedade está sendo dizimada, encurralada, amedrontada.

A área da Cultura concentrou as principais aberrações, com encarregados a exibir seu reacionarismo e seu desprezo pelos produtos e produtores culturais. O aparelhamento é ostensivo: o que importa é a fidelidade ao chefe, não a competência. Artistas foram caçados como inimigos públicos. A Educação não ficou muito atrás, com a agravante de que o responsável por ela não só demonstrou completa falta de cultura e educação, como foi de uma inoperância a toda prova. Travou uma “guerra cultural” de baixíssimo nível contra escolas, professores, universidades, pesquisadores. Fez do MEC um deserto de ideias e iniciativas.

Das áreas que deveriam iluminar e fornecer diretrizes somente saíram fachos de obscurantismo e ideologia.

Um bizarro festival de besteiras assolou o País. Entre tapas, mentiras e fake news, instituiu-se a era da pós-verdade. A complexidade do Brasil e do mundo foi ignorada, esteve além do entendimento médio do governo. Autoridades públicas e agentes do Estado disputaram entre si para estabelecer quem fala a barbaridade maior, quem exibe a grosseria mais extremada ou demonstra a ignorância mais avessa à ciência e aos valores básicos da vida moderna. O presidente não demonstrou compostura ou respeito à liturgia do cargo que ocupa. Houve racismo explícito, preconceitos, difamações, ataques a direitos. A milícia digital foi abertamente incentivada. Consta que é coordenada por um “gabinete do ódio” instalado no Palácio do Planalto. O sectarismo deu o tom.

Obscurantistas empedernidos, monarquistas sem nobreza, filósofos de araque capricham em discursos e postagens que usam a religiosidade xucra para imbecilizar a população. O compósito é chocante. A Terra é plana, o aquecimento global é uma balela, o rock é satânico, os territórios e a natureza devem ser apropriados sem dó. Aos que pensam de outro modo, o fogo do Inferno.

Os colaboradores de Bolsonaro – civis e militares – mostraram-se mais serviçais do que se poderia imaginar. O capitão submeteu os generais. 2019 terminou com o País em regressão civilizatória, com muitos ataques e denúncias, à esquerda e à direita, mas nenhum debate.

Reforçou-se uma estranha dialética: o presidente tem alta impopularidade, mas é seguido por uma trupe de apoiadores que bebem suas palavras como se destilassem o soro da verdade e acreditam que é preciso, mesmo, “evitar a volta da esquerda”. É o que permite a um governo fraco falar grosso e sonhar com o futuro.

O Executivo não produziu, mas houve quem fez por ele. A Câmara e o Senado organizaram uma pauta “reformadora” e compensaram a inação governamental. O Supremo Tribunal Federal limitou excessos. Até a alquebrada Lava Jato ficou em evidência. A impressão foi de que havia um governo ativo, mas a falta de articulação entre os Poderes foi completa.

Consolidou-se a ideia de que é preciso administrar a crise fiscal e dinamizar a economia. Mas, no jogo que está sendo jogado, as cartas escondem blefes, os jogadores não revelam seus truques e a plateia acompanha sem entender os desfechos prováveis. Nada se fala sobre bem-estar, distribuição de renda, igualdade social e respeito. Na falta de um projeto nacional que proponha a reorganização democrática do País, as propostas governamentais vão passando, sem alternativas.

Um gestual, uma narrativa, atos em série – coerção à imprensa, ataques às instituições, agressões a minorias – soltaram um bafo de autoritarismo. O oficialismo quis passar a sensação de que tudo está “normal”. É uma “normalidade” fajuta, que intimida a população e abre espaços para fanáticos e radicais de direita, impulsionados pela ignorância que vai sendo decantada para a população a partir das cúpulas do governo.

Os democratas não podem assistir passivamente à onda de boçalidade e autoritarismo que se impõe, meio como pastiche, meio como pantomima. Precisam organizar uma agenda que congregue os que fazem da democracia uma praia comum, a ser defendida e valorizada. Não há mais tempo para projetos personalistas e cálculos partidários egoístas. Basta de divergências inúteis, diversionistas.

* PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UNESP

A nova fase do Neoliberalismo, por Dardot e Laval

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Por Pierre Dardot e Christian Laval, no Viento Sur

Traduzido pelo IHU

Há uma dezena de anos vem se anunciando regularmente o fim do neoliberalismo: a crise financeira mundial de 2008 se apresentou como o último estertor de sua agonia, depois, foi a vez da crise grega na Europa (ao menos até julho de 2015), sem esquecer, é claro, o terremoto causado pela eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, em novembro de 2016, seguido do referendo sobre o Brexit, em março de 2017.

O fato de Grã-Bretanha e Estados Unidos, que foram terras de promissão do neoliberalismo em tempos de Thatcher e Reagan, deixarem parecer que lhe viraram as costas mediante uma reação nacionalista tão repentina, marcou os espíritos em razão do seu alcance simbólico.

Depois, em outubro de 2018, ocorreu a eleição de Jair Bolsonaro, que promete tanto o retorno da ditadura como a aplicação de um programa neoliberal de uma violência e uma amplitude muito parecidas com as dos Chicago Boys de Pinochet.

O neoliberalismo não só sobrevive como sistema de poder, como também se reforça. É preciso compreender esta singular radicalização, o que implica discernir o caráter tanto plástico, como plural do neoliberalismo. Mas, é necessário ir ainda mais longe e perceber o sentido das transformações atuais do neoliberalismo, ou seja, a especificidade do que aqui chamamos o novo neoliberalismo.

A crise como modo de governo

Recordemos de início o que significa o conceito de neoliberalismo, que perde uma grande parte de sua pertinência quando é empregado de forma confusa, como acontece muitas vezes. Não se trata somente de políticas econômicas monetaristas ou de austeridade, de mercantilização das relações sociais ou de ditadura dos mercados financeiros. Trata-se mais fundamentalmente de uma racionalidade política que se tornou mundial e que consiste em impor por parte dos governos, na economia, na sociedade e no próprio Estado, a lógica do capital até a converter na forma das subjetividades e na norma das existências.

Projeto radical e inclusive, caso se queira, revolucionário, o neoliberalismo não se confunde, portanto, com um conservadorismo que se contenta em reproduzir as estruturas desiguais estabelecidas. Através do jogo das relações internacionais de concorrência e dominação e da mediação das grandes organizações de ‘governança mundial’ (FMI, Banco Mundial, União Europeia, etc.), este modo de governo se tornou com o tempo um verdadeiro sistema mundial de poder, comandado pelo imperativo de sua própria manutenção.

O que caracteriza este modo de governo é que se alimenta e se radicaliza por meio de suas próprias crises. O neoliberalismo só se sustenta e se reforça porque governa mediante a crise. Com efeito, desde os anos 1970, o neoliberalismo se nutre das crises econômicas e sociais que gera. Sua resposta é invariável: em vez de questionar a lógica que as provocou, é preciso levar ainda mais longe essa mesma lógica e procurar reforçá-la indefinidamente.

Se a austeridade gera déficit orçamentário, é preciso acrescentar uma dose suplementar. Se a concorrência destrói o tecido industrial ou desertifica regiões, é preciso aguçá-la ainda mais entre as empresas, entre os territórios, entre as cidades. Se os serviços públicos já não cumprem sua missão, é preciso esvaziar esta última de qualquer conteúdo e privar os serviços dos meios que precisam. Se a diminuição de impostos para os ricos ou empresas não dão os resultados esperados, é preciso aprofundar ainda mais nisto, etc.

Este governo mediante a crise só é possível, está claro, porque o neoliberalismo se tornou sistêmico. Toda crise econômica, como a de 2008, é interpretada em termos de sistema e só recebe respostas que compatíveis com o mesmo. A ausência de alternativas não é tão somente a manifestação de um dogmatismo no plano intelectual, mas a expressão de um funcionamento sistêmico, em escala mundial. Para amparar a globalização e/ou reforçar a União Europeia, os Estados impuseram múltiplas regras e imperativos que os levam a reagir no sentido do sistema.

Contudo, o que é mais recente e sem dúvida merece nossa atenção é que agora se nutre das reações negativas que provoca no plano político, que se reforça com a mesma hostilidade política que suscita. Estamos assistindo a uma de suas metamorfoses, e não é a menos perigosa. O neoliberalismo já não precisa de sua imagem liberal ou democrática, como nos bons tempos que é necessário chamar, com razão, de neoliberalismo clássico. Esta imagem inclusive se tornou um obstáculo para sua dominação, coisa que somente é possível porque o governo neoliberal não hesita em instrumentalizar os ressentimentos de um amplo setor da população, falta de identidade nacional e de proteção pelo Estado, dirigindo-os contra bodes expiatórios.

No passado, muitas vezes, o neoliberalismo se associou com a abertura, o progresso, as liberdades individuais, com o Estado de direito. Atualmente, conjuga-se com o fechamento de fronteiras, a construção de muros, o culto à nação e a soberania do Estado, a ofensiva declarada contra os direitos humanos, acusados de colocar em perigo a segurança. Como é possível esta metamorfose do neoliberalismo?

Trumpismo e fascismo

Trump é incontestavelmente um marco na história do neoliberalismo mundial. Esta mutação não afeta apenas os Estados Unidos, mas todos os governos, cada vez mais numerosos, que manifestam tendências nacionalistas, autoritárias e xenófobas até o ponto de assumir a referência ao fascismo, como no caso de Matteo Salvini, ou à ditadura militar, como Bolsonaro.

O fundamental é compreender que estes governos não se opõem em nada ao neoliberalismo como modo de poder. Ao contrário, reduzem os impostos para os mais ricos, cortam os subsídios sociais e aceleram as desregulamentações, particularmente em matéria financeira e ambiental. Estes governos autoritários, dos quais a extrema direita cada vez mais faz parte, assumem na realidade o caráter absolutista e hiperautoritário do neoliberalismo.

Para compreender esta transformação, primeiro convém evitar dois erros. O mais antigo consiste em confundir o neoliberalismo com o ultraliberalismo, o libertarianismo, o retorno a Adam Smith ou o fim do Estado, etc. Como já nos ensinou há muito tempo Michel Foucault, o neoliberalismo é um modo de governo muito ativo, que não tem muito a ver com o Estado mínimo passivo do liberalismo clássico. Deste ponto de vista, a novidade não consiste no grau de intervenção do Estado, nem em seu caráter coercitivo. O novo é que o antidemocratismo inato do neoliberalismo, manifesto em alguns de suas grandes teóricos, como Friedrich Hayek, se plasma hoje em um questionamento político cada vez mais aberto e radical dos princípios e as formas da democracia liberal.

O segundo erro, mais recente, consiste em explicar que estamos diante de um novo fascismo neoliberal, ou então diante de um momento neofascista do neoliberalismo [2]. Que seja ao menos frustrante, se não perigoso politicamente, falar com Chantal Mouffe de um momento populista para apresentar melhor o populismo como um remédio ao neoliberalismo, isto está fora de qualquer dúvida. Que seja necessário desmascarar a impostura de um Emmanuel Macron, que se apresenta como o único recurso contra a democracia iliberal de Viktor Orbán e consortes, isto também é certo. Mas, por acaso, isto justifica que se misture em um mesmo fenômeno político a ascensão das extremas direitas e a deriva autoritária do neoliberalismo?

A assimilação é evidentemente problemática: como identificar se não mediante uma analogia superficial o Estado total tão característico do fascismo e a difusão generalizada do modelo de mercado e da empresa no conjunto da sociedade? No fundo, se esta assimilação permite lançar luz, centrando-nos no fenômeno Trump, sobre certo número de traços do novo neoliberalismo, ao mesmo tempo mascara sua individualidade histórica. A inflação semântica em torno do fascismo, sem dúvida, tem efeitos críticos, mas tende a afogar os fenômenos ao mesmo tempo complexos e singulares em generalizações pouco pertinentes, que por sua vez não podem a não ser dar lugar a um desarme político.

Para Henry Giroux [3], por exemplo, o fascismo neoliberal é uma “formação econômico-política específica”, que mistura ortodoxia econômica, militarismo, desprezo pelas instituições e as leis, supremacismo branco, machismo, ódio aos intelectuais e amoralismo. Giroux toma emprestado do historiador do fascismo, Robert Paxton (2009), a ideia de que o fascismo se apoia em paixões mobilizadoras que voltamos a encontrar no fascismo neoliberal: amor ao chefe, hipernacionalismo, fantasmas racistas, desprezo ao débil, inferior, estrangeiro, desconsideração pelos direitos e a dignidade das pessoas, violência para com os adversários, etc.

Embora encontramos todos estes ingredientes no trumpismo e mais ainda no bolsonarismo brasileiro, por acaso, não nos escapa sua especificidade em relação ao fascismo histórico? Paxton admite que “Trump retoma vários motivos tipicamente fascistas”, mas vê nele sobretudo os traços mais comuns de uma “ditadura plutocrática” [4]. Porque também existem grandes diferenças com o fascismo: não impõe o partido único, nem a proibição de qualquer oposição e de qualquer dissidência, não mobiliza e enquadra as massas em organizações hierárquicas obrigatórias, não estabelece o corporativismo profissional, não pratica liturgias de uma religião laica, não preconiza o ideal do cidadão soldado totalmente consagrado ao Estado total, etc. (Gentile, 2004).

A este respeito, todo paralelismo com o final dos anos 1930, nos Estados Unidos, é enganoso, por mais que Trump tenha feito seu o lema “America first”, nome dado por Charles Lindbergh à organização fundada em outubro de 1940 para promover uma política isolacionista frente ao intervencionismo de Roosevelt. Trump não converte em realidade a ficção escrita por Philip Roth (2005), que imaginou que Lindbergh triunfaria sobre Roosevelt nas eleições presidenciais de 1940. Ocorre que Trump não é para Clinton ou Obama o que Lindbergh foi para Roosevelt e que, neste sentido, qualquer analogia é precária. Se Trump estimula cada vez mais a escalada antiestablishment para agradar sua clientela eleitoral, não trata, no entanto, de suscitar revoltas antissemitas, ao contrário do Lindbergh do romance, inspirado diretamente no exemplo nazista.

Mas, sobretudo, não estamos vivendo um momento polanyiano, como acredita Robert Kuttner (2018), caracterizado pela recuperação do controle dos mercados pelos poderes fascistas frente aos estragos causados pelo não intervencionismo. Em certo sentido, é totalmente o contrário, e o caso é bastante mais paradoxal. Trump pretende ser o campeão da racionalidade empresarial, inclusive em sua maneira de realizar sua política, tanto interior como exterior. Vivemos o momento em que o neoliberalismo segrega a partir do interior uma forma política original que combina autoritarismo antidemocrático, nacionalismo econômico e racionalidade capitalista ampliada.

Uma crise profunda da democracia liberal

Para compreender a mutação atual do neoliberalismo e evitar confundi-la com o seu fim é preciso ter uma concepção dinâmica do mesmo. Três ou quatro decênios de neoliberalização afetaram profundamente a própria sociedade, instalando em todos os aspectos das relações sociais situações de rivalidade, de precariedade, de incerteza, de empobrecimento absoluto e relativo. A generalização da concorrência nas economias, assim como, indiretamente, no trabalho assalariado, nas leis e nas instituições que marcam a atividade econômica, teve efeitos destrutivos na condição das pessoas assalariadas, que se sentiram abandonadas e traídas. As defesas coletivas da sociedade, por sua vez, se fragilizaram. Os sindicatos, em particular, perderam força e legitimidade.

Os coletivos de trabalho se decompuseram, muitas vezes, por efeito de uma gestão empresarial muito individualista. A participação política já não tem sentido diante da ausência de opções alternativas muito diferentes. Por certo, a social-democracia, assentida à racionalidade dominante, está em vias de desaparecimento em um grande número de países.

Em suma, o neoliberalismo gerou o que Gramsci chamou de ‘monstros’ mediante um duplo processo de desfiliação da comunidade política e de adesão a princípios etnoidentitários e autoritários, que colocam em questionamento o funcionamento normal das democracias liberais. O trágico do neoliberalismo é que, em nome da razão suprema do capital, atacou os próprios fundamentos da vida social, do modo como havia sido formulado e imposto na época moderna, através da crítica social e intelectual.

Para dizer isso de maneira um tanto esquemática, a implementação dos princípios mais elementares da democracia liberal comportou rapidamente muito mais concessões às massas do que poderia ser aceito pelo liberalismo clássico. Este é o sentido do que se chamou justiça social ou também democracia social, que não deixou de ser criticada pelos grupos de teóricos neoliberais. Ao querer converter a sociedade em uma ordem da concorrência que só conheceria homens econômicos ou capitais humanos em luta uns contra outros, minaram as próprias bases da vida social e política nas sociedades modernas, especialmente em razão da progressão do ressentimento e da cólera que semelhante mutação não poderia deixar de provocar.

Como se surpreender então com a resposta da massa de perdedores ao estabelecimento desta ordem competitiva? Ao ver se degradar suas condições e desaparecer seus pontos de apoio e de referência coletivos, refugiam-se na abstenção política ou no voto de protesto, que é antes de mais nada um chamado à proteção contra as ameaças que pesam sobre sua vida e seu futuro. Em poucas palavras, o neoliberalismo engendrou uma crise profunda da democracia liberal-social, cuja manifestação mais evidente é a forte ascensão dos regimes autoritários e dos partidos de extrema direita, apoiados por uma ampla parte das classes populares nacionais. Deixamos para trás a época do pós-guerra fria, na qual ainda era possível acreditar na expansão mundial do modelo de democracia de mercado.

Assistimos agora, e de forma acelerada, um processo inverso de saída da democracia ou de desdemocratização, para retomar a justa expressão de Wendy Brown. Os jornalistas gostam de misturar a extrema direita e a esquerda radical no vasto marasmo de um populismo antissistema. Não veem que a canalização e a exploração desta cólera e destes ressentimentos pela extrema direita dão luz a um novo neoliberalismo, ainda mais agressivo, ainda mais militarizado, ainda mais violento, do qual Trump é tanto a bandeira como a caricatura.

O novo neoliberalismo

O que aqui chamamos de novo neoliberalismo é uma versão original da racionalidade neoliberal na medida em que adotou abertamente o paradigma da guerra contra a população, apoiando-se, para se legitimar, na cólera dessa mesma população e invocando, inclusive, uma soberania popular dirigida contra as elites, contra a globalização ou contra a União Europeia, de acordo com os casos.

Em outras palavras, uma variante contemporânea do poder neoliberal fez sua a retórica do soberanismo e adotou um estilo populista para reforçar e radicalizar o domínio do capital sobre a sociedade. No fundo, é como se o neoliberalismo aproveitasse a crise da democracia liberal-social que provocou e não cessa de agravar para impor melhor a lógica do capital sobre a sociedade.

Esta recuperação da cólera e dos ressentimentos requer sem dúvida, para ser realizada efetivamente, o carisma de um líder capaz de encarnar a síntese, outrora improvável, de um nacionalismo econômico, uma liberalização dos mecanismos econômicos e financeiros e uma política sistematicamente pró-empresarial. No entanto, atualmente, todas as formas nacionais do neoliberalismo experimentam uma transformação de conjunto, da qual o trumpismo nos oferece a forma quase pura.

Esta transformação acentua um dos aspectos genéricos do neoliberalismo, seu caráter intrinsecamente estratégico. Porque não esqueçamos que o neoliberalismo não é conservadorismo. É um paradigma governamental cujo princípio é a guerra contra as estruturas arcaicas e as forças retrógradas que resistem à expansão da racionalidade capitalista e, mais amplamente, a luta para impor uma lógica normativa a populações que não a querem.

Para alcançar seus objetivos, este poder emprega todos os meios que lhe são necessários: a propaganda dos meios de comunicação, a legitimação pela ciência econômica, a chantagem e a mentira, o descumprimento das promessas, a corrupção sistêmica das elites, etc. Contudo, uma de suas alavancas preferidas é o recurso às vias da legalidade, leia-se da Constituição, de modo que cada vez mais o marco no qual todos os atores devem se mover se torne irreversível. Uma legalidade que evidentemente é de geometria variável, sempre mais favorável aos interesses das classes ricas que aos do restante.

Não é necessário recorrer ao estilo antigo, aos golpes de Estado militares, para colocar em prática os preceitos da escola de Chicago, se é possível colocar um cadeado no sistema político, como no Brasil, mediante um golpe parlamentar e judicial. Este último permitiu, por exemplo, ao presidente Temer congelar durante 20 anos os gastos sociais (sobretudo em detrimento da saúde pública e da universidade). Na realidade, o brasileiro não é um caso isolado, por mais que lá os recursos da manobra sejam mais visíveis que em outras partes, sobretudo após a vitória de Bolsonaro como ponto de chegada do processo. O fenômeno, para além de suas variações nacionais, é geral: é no interior do marco formal do sistema político representativo que se estabelecem dispositivos antidemocráticos de uma temível eficácia corrosiva.

Um governo de guerra civil

A lógica neoliberal contém em si mesma uma declaração de guerra a todas as forças de resistência às reformas em todas as camadas da sociedade. A linguagem vigente entre os governantes de todos os níveis não engana: a população inteira precisa se sentir mobilizada pela guerra econômica, e as reformas do direito trabalhista e da proteção social são realizadas justamente para favorecer o envolvimento universal nessa guerra. Tanto no plano simbólico como no institucional, ocorre uma mudança a partir do momento em que o princípio de competitividade adquire um caráter quase constitucional.

Posto que estamos em guerra, os princípios da divisão de poderes, dos direitos humanos e da soberania do povo já possuem apenas um valor relativo. Em outras palavras, a democracia liberal-social tende progressivamente a se esvaziar para passar a não ser mais que o revestimento jurídico-político de um governo de guerra. Aqueles que se opõem à neoliberalização se situam fora do espaço público legítimo, são maus patriotas, quando não traidores.

Esta matriz estratégica das transformações econômicas e sociais, muito próxima a um modelo naturalizado de guerra civil, se junta com outra tradição, esta mais genuinamente militar e policial, que declara a segurança nacional a prioridade de todos os objetivos governamentais. A fragilização das liberdades públicas do Estado de direito e a extensão concomitante dos poderes policiais se acentuaram com a guerra contra a criminalidade e a guerra contra a droga dos anos 1970.

Contudo, foi sobretudo após a declaração de guerra mundial contra o terrorismo, imediatamente depois do 11 de setembro de 2001, que se deu o desdobramento de um conjunto de medidas e dispositivos que violam abertamente as regras de proteção das liberdades na democracia liberal, chegando inclusive a incorporar na lei a vigilância massiva da população, a legalização do encarceramento sem julgamento e o uso sistemático da tortura.

Para Bernard E. Harcourt (2018), este modelo de governo, que consiste em “fazer a guerra contra todo cidadão”, procede em linha direta das estratégias militares contrainsurgentes colocadas em prática pelo exército francês na Indochina e na Argélia, transmitidas aos especialistas estadunidenses da luta anticomunista e praticadas por seus aliados, especialmente na América Latina e no sudeste asiático.

Hoje, a “contrarrevolução sem revolução”, como a denomina Harcourt, busca reduzir por todos os meios a um inimigo interior e exterior onipresente, que tem muito mais cara de jihadista, mas que pode adotar muitas outras caras (estudantes, ambientalistas, camponeses, jovens negros nos Estados Unidos ou jovens dos subúrbios na França, e talvez, sobretudo neste momento, migrantes ilegais, preferentemente muçulmanos). E para levar a bom término esta guerra contra o inimigo, convém que o poder, por um lado, militarize a polícia e, por outro, acumule uma massa de informações sobre toda a população com a finalidade de impedir qualquer rebelião possível. Em suma, o terrorismo de Estado se encontra novamente em plena progressão, até mesmo quando a ameaça comunista, que lhe havia servido de justificativa durante a Guerra Fria, desapareceu.

A imbricação destas duas dimensões, a radicalização da estratégia neoliberal e o paradigma militar da guerra contrainsurgente, a partir da mesma matriz de guerra civil, constitui atualmente o principal acelerador da saída da democracia. Este enlace só é possível graças à habilidade com a qual certo número de responsáveis políticos da direita, ainda que também da esquerda, se dedicam a canalizar, mediante um estilo populista, os ressentimentos e o ódio aos inimigos escolhidos, prometendo às massas ordem e proteção em troca de sua adesão à política neoliberal autoritária.

O neoliberalismo de Macron

No entanto, não é exagerado meter todas as formas de neoliberalismo no mesmo saco de um novo neoliberalismo? Existem tensões muito fortes em escala mundial ou europeia entre o que se deve qualificar como tipos nacionais diferentes de neoliberalismo. Sem dúvida, não assimilaríamos Trudeau, Merkel e Macron a Trump, Erdogan, Orbán, Salvini e Bolsonaro.

Alguns ainda permanecem fiéis a uma forma de concorrência comercial supostamente leal, sendo que Trump decidiu mudar as regras da concorrência, transformando esta última em guerra comercial a serviço da grandeza dos Estados Unidos (America is Great Again). Alguns invocam ainda, de palavra, os direitos humanos, a divisão de poderes, a tolerância e a igualdade de direitos das pessoas, quando aos outros tudo isto não é cuidado. Alguns pretendem mostrar uma atitude humana frente aos migrantes (alguns muito hipocritamente), quando outros não têm escrúpulos na hora de rejeitá-los e repatriá-los. Portanto, convém diferenciar o modelo neoliberal.

O macronismo não é trumpismo, ainda que só fosse pelas histórias e as estruturas políticas nacionais em que se inscrevem. Macron se apresentou como o baluarte frente ao populismo de extrema direita de Marine Le Pen, como sua aparente antítese. Aparente, porque Macron e Le Pen, se não são pessoas idênticas, na realidade, são perfeitamente complementares. Um se faz de baluarte, quando a outra aceita vestir os hábitos do espantalho, o que permite ao primeiro se apresentar como garantidor das liberdades e dos valores humanos. Se preciso, como ocorre hoje nos preparativos para as eleições europeias, Macron se dedica a alargar artificialmente a suposta diferença entre os partidários da democracia liberal e a democracia iliberal do estilo de Orbán, para que as pessoas acreditem mais facilmente que a União Europeia se situa como tal do lado da democracia liberal.

No entanto, talvez não se tenha percebido suficientemente o estilo populista de Macron, que pode parecer uma simples máscara por parte de um puro produto da elite política e financeira francesa. A denúncia do velho mundo dos partidos, a rejeição ao sistema, a evocação ritual do povo da França, tudo isto era talvez suficientemente superficial, ou inclusive grotesco, mas não por isso deixou de fazer uso do emprego de um método característico, justamente, do novo neoliberalismo, o da recuperação da cólera contra o sistema neoliberal. Não obstante, o macronismo não tinha o espaço político para tocar esta música durante muito tempo. Logo, revelou-se como o que era e o que fazia.

Em linha com os governos franceses precedentes, mas de maneira mais declarada ou menos vergonhosa, Macron associa ao nome de Europa a violência econômica mais crua e mais cínica contra as pessoas assalariadas, aposentadas, funcionárias e assistidas, assim como a violência policial mais sistemática contra as manifestações de oponentes, como se viu, em particular, na Notre-Dame-des-Landes e contra as pessoas migrantes. Todas as manifestações sindicais ou estudantis, inclusive as mais pacíficas, são reprimidas sistematicamente por uma polícia armada até os dentes, cujas novas manobras e técnicas de força são pensadas para aterrorizar aqueles que se manifestam e intimidar o restante da população.

O caso de Macron está entre os mais interessantes para completar o retrato do novo neoliberalismo. Levando mais longe ainda a identificação do Estado com a empresa privada, até o ponto de pretender fazer da França um start-up nation, não para de centralizar o poder em suas mãos e chega, inclusive, a promover uma mudança constitucional que convalidará a fragilização do Parlamento em nome da eficácia.

A diferença com Sarkozy neste ponto salta à vista. Enquanto este último se agarrava a declarações provocadoras, ao mesmo tempo em que alcançava um estilo relaxado no exercício de sua função, Macron pretende devolver todo o brilho e solenidade à função presidencial. Deste modo, conjuga um despotismo de empresa com a subjugação das instituições da democracia representativa em benefício exclusivo do poder executivo.

Falou-se com razão de bonapartismo para lhe caracterizar, não só pela maneira como tomou o poder, acabando com os velhos partidos governamentais, como também por causa de seu desprezo manifesto a todos os contrapoderes. A novidade que introduziu nesta antiga tradição bonapartista é justamente uma verdadeira governança de empresa. O macronismo é um bonapartismo empresarial.

O aspecto autoritário e vertical de seu modo de governo se encaixa perfeitamente no marco de um novo neoliberalismo mais violento e agressivo, imagem e semelhança da guerra travada contra os inimigos da segurança nacional. Por acaso, uma das medidas mais emblemáticas de Macron não foi a inclusão na lei ordinária, em outubro de 2017, de disposições excepcionais do estado de emergência, declarado após os atentados de novembro de 2015?

A aplicação da lei contra a democracia

Não cabe descartar que se produza no Ocidente um momento polanyiano, ou seja, uma solução verdadeiramente fascista, tanto no centro como na periferia, sobretudo caso seja produzida uma nova crise da amplitude da de 2008. O acesso ao poder pela extrema direita na Itália é um toque de advertência suplementar. Enquanto isso, neste momento que prevalece até nova ordem, estamos assistindo a uma exacerbação do neoliberalismo, que conjuga a maior liberdade do capital com ataques cada vez mais profundos, contra a democracia liberal-social, tanto no âmbito econômico e social, como no terreno judicial e policial. É necessário se contentar em retomar o tópico crítico de que o estado de exceção se tornou a regra?

Ao argumento de origem schmittiano do estado de exceção permanente, retomado por Giorgio Agamben, que supõe uma suspensão pura e simples do Estado de direito, devemos opor os fatos observáveis: o novo governo neoliberal se implanta e cristaliza com a promulgação de medidas de guerra econômica e policial. Dado que as crises sociais, econômicas e políticas são permanentes, corresponde à legislação estabelecer as regras válidas de forma permanente, que permitam aos governos responder a elas a todo momento e inclusive preveni-las.

Deste modo, a crise e urgências permitiram o nascimento do que Harcourt denomina um “novo estado de legalidade”, que legaliza o que até agora não eram mais que medidas de emergência ou respostas conjunturais de política econômica e social. Mais que um estado de exceção que opõe regras e exceções, precisamos vê-las com uma transformação progressiva e muito sutil do Estado de direito, que incorporou em sua legislação a situação de dupla guerra econômica e policial para a qual os governos nos conduziram.

Para dizer a verdade, os governantes não estão totalmente desprovidos para legitimar intelectualmente semelhante transformação. A doutrina neoliberal já havia elaborado o princípio desta concepção do Estado de direito. Assim, Hayek subordinava explicitamente o Estado de direito à lei. Segundo ele, a lei não designa qualquer norma, mas, sim, exclusivamente, o tipo de regras de conduta que são aplicáveis a todas as pessoas por igual, incluídas os personagens públicos. O que caracteriza propriamente a lei é, portanto, a universalidade formal, que exclui qualquer forma de exceção.

Por conseguinte, o verdadeiro Estado de direito é o Estado de direito material (materieller Rechtsstaat), que requer da ação do Estado a submissão a uma norma aplicável a todas as pessoas em virtude de seu caráter formal. Não basta que uma ação do Estado seja autorizada pela legalidade vigente, à margem da classe de normas das quais deriva. Em outras palavras, trata-se de criar não um sistema de exceção, mas, ao contrário, um sistema de normas que proíba a exceção. E dado que a guerra econômica e policial não tem fim e reivindica cada vez mais medidas de coerção, o sistema de leis que legalizam as medidas de guerra econômica e policial precisa se estender por força para além de qualquer limitação.

Dizendo de outra forma, já não há freio ao exercício do poder neoliberal por meio da lei, na mesma medida em que a lei se tornou o instrumento privilegiado da luta do neoliberalismo contra a democracia. O Estado de direito não está sendo abolido de fora, mas destruído por dentro para fazer dele uma arma de guerra contra a população e a serviço dos dominantes.

O projeto de lei de Macron sobre a reforma das aposentadorias é, a este respeito, exemplar: em conformidade com a exigência de universalidade formal, seu princípio é que um euro cotado confere exatamente o mesmo direito a todos, seja qual for sua condição social. Em virtude deste princípio, está proibido, portanto, levar em conta a penúria das condições de trabalho no cálculo do valor da aposentadoria. Nesta questão, também fica evidente a diferença entre Sarkozy e Macron. Enquanto o primeiro fez aprovar uma lei após outra, sem que lhe acompanhassem respectivos decretos de aplicação, o segundo se preocupa muito com a aplicação das leis.

Aí está a diferença entre reformar e transformar, tão cara a Macron: a transformação neoliberal da sociedade requer a continuidade da aplicação no tempo e não pode se contentar com os efeitos do anúncio, sem mais. Além disso, este modo de proceder comporta uma vantagem inestimável: uma vez aprovada uma lei, os governos podem escapar de sua parte de responsabilidade sob pretexto de que se limitam a aplicar a lei.

No fundo, o novo neoliberalismo é a continuação do antigo de maneira pior. O marco normativo global que insere indivíduos e instituições dentro de uma lógica de guerra implacável, reforça-se cada vez mais e acaba progressivamente com a capacidade de resistência, desativando o coletivo. Esta natureza antidemocrática do sistema neoliberal explica em grande parte a espiral sem fim da crise e o aceleramento diante de nossos olhos do processo de desdemocratização, pelo qual a democracia se esvazia de sua substância, sem que se suprima formalmente.

Referências

Gentile, Emilio (2004) Fascismo: historia e interpretación. Madri: Alianza.

Harcourt, Bernard E. (2018) The Counterrevolution, How Our Government Went to War against its Own Citizens. Nova York: Basic Books.

Kuttner, Robert (2018) Can democracy survive Global Capitalism? Nova York/Londres: WW. Norton & Company.

Paxton, Robert O. (2009) Anatomía del fascismo. Madri: Capitán Swing.

Roth, Philip (2005) La conjura contra América. Barcelona: Mondadori.

Notas

  1. Prefácio à tradução em inglês, publicada pela editora Verso, de La pesadilla que no acaba nunca (Gedisa, 2017), obra publicada originalmente por La Découverte, Paris, em 2016.
  2. Éric Fassin, “Le moment néofasciste du néolibéralisme”, Mediapart, 29 de junho de 2018, https://blogs.mediapart.fr/eric-fassin/blog/290618/le-moment-neofasciste-du-neoliberalisme .

3 Henry Giroux, Neoliberal Fascism and the Echoes of History, Neoliberal Fascism and the Echoes of History, 08/09/2018.

4 Robert O. Paxton, “Le régime de Trump est une ploutocratie”, Le Monde, 6 de março de 2017.

Superciclos de Liquidez, por Paulo Gala

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GGN – 20/12/2019

Num cenário onde a leniência do FED vai ampliando o ciclo mundo afora, até que no final venha uma ajuda mais forte e rápida. Fiquemos atentos para a subida e a descida.

Os grandes movimentos de preços de ativos são, no fundo, reflexos de superciclos. Os mais tradicionais são os de liquidez e de commodities. Hoje vivemos um superciclo de expansão de liquidez por conta das respostas à crise de 2008 e um superciclo de aumento de preços de commodities devido à entrada de China e Índia de fato na economia mundial. É claro que a alta das commodities é também turbinada pela liquidez excedente. Uma chave de leitura fácil para entender a segunda metade do século XX e primeira do século XXI é estudar esses ciclos de liquidez. O maravilhoso texto “Capital flows to developing countries in a historical perspective”, de Yilmaz Akyuz, ajuda muito a entender. O autor apresenta quatro grandes ciclos de fluxos de capital para países emergentes medidos em bilhões de dólares e porcentagem do PIB desde o início dos 70. Dá para ver claramente o ciclo dos anos 70, que foi capitaneado por empréstimos para governos desenvolvimentistas na Ásia e América do Sul. A liquidez mundial veio dos déficits externos americanos e da reciclagem dos petrodólares depois de 1974. Foi também uma boa época para preços de commodities, e o endividamento no mundo emergente correu solto. E assim foi até a crise da dívida em 1980. Com medo da inflação, o FED deu uma paulada nos juros no final dos 70 e colocou todo o mundo emergente de joelhos.

A festa voltou com força nos anos 90, depois da digestão dos excessos dos 70. Essa nova festa foi também disparada por um excesso de liquidez decorrente da crise dos Savings and Loan nos EUA e do estouro da bolha japonesa em 1990. Dinheiro farto. E como diz meu amigo, o brilhante economista Gabriel Palma, lá estava de novo a América Latina como tomadora de empréstimos e liquidez de última instância. Nessa a Ásia surfou junto. Quem não se lembra por aqui da primeira metade da década de 90? Foi uma farra. Tudo subindo, todos se endividando. O segundo ciclo de boom e bust começou a terminar em 1997, com a crise asiática. Depois vieram Rússia, Brasil e Argentina. Nesse segundo ciclo, os investimentos diretos estrangeiros tiveram mais importância do que os empréstimos comerciais dos anos 70. Mas foi uma festa bonita de se ver também. Algumas pérolas do período: Puerto Madero, Petronas Towers.

Depois veio o terceiro ciclo. Turbinado pela redução das taxas de juro do Greenspan no rescaldo do estouro da bolha pontocom. Além disso houve a reciclagem dos superávits asiáticos, especialmente China, reinvestindo seus capitais em títulos americanos, jogando as taxas longas ainda mais para baixo. Juros baixos for all (menos aqui no Brasil). Então essa farra da liquidez que já conhecemos ajudou a criar a super-bolha americana. E se espraiou para o mundo emergente. Nessa época, a bolsa brasileira saiu de 10.000 para 70.000 pontos. Foi um belo ciclo. Aliás, nesse período entrou também o atual superciclo de commodities, graças a China e Índia. O ciclo acabou na quebra da Lehman Brothers em 2008. No terremoto seguido de tsunami, que todos nós sofremos. E por que estudar esses ciclos? Como isto tudo nos afeta? Bom, estamos agora entrando no quarto ciclo. Um ciclo de liquidez somado a um ciclo de commodities

E nesse novo superciclo a sincronia é ainda maior. Tudo anda junto agora. Quer ver? Commodities, moedas emergentes e bolsas sobem juntos. É um play de todos contra o dólar. Quando a liquidez vaza, os ativos emergentes sobem. Quando a liquidez volta para os EUA, os emergentes caem. A crise de 2008 foi emblemática. E as bolsas no mundo emergente estão absolutamente correlacionadas com os fluxos de capital. A enxurrada de dólares para esses países causou subidas simétricas. Cenas dos próximos capítulos. Em algum momento o FED vai começar a subir a taxa de juros e adotar estratégias de saída para as políticas de estímulo. O que vai ocorrer? Valorização do dólar, queda de commodities, depreciação de moedas e bolsas emergentes. Pode ser um processo gradual, é claro. Mas pode acontecer também de supetão. Num cenário onde a leniência do FED vai amplificando o ciclo mundo afora, até que no final venha um ajuste mais forte e rápido. Fiquemos atentos para a subida e a descida.

Paulo Gala é graduado em Economia pela FEA/USP. Mestre e Doutor em Economia pela Fundação Getúlio Vargas FGV/EESP de São Paulo, onde é professor desde 2002. 

“Deus não morreu. Ele tornou-se Dinheiro”, entrevista com Giorgio Agamben.

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“O capitalismo é uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro”, afirma Giorgio Agamben, em entrevista concedida a Peppe Salvà e publicada por Ragusa News 16-08-2012.

Giorgio Agamben é um dos maiores filósofos vivos. Amigo de Pasolini e de Heidegger, foi definido pelo Times e pelo Le Monde como uma das dez mais importantes cabeças pensantes do mundo. Pelo segundo ano consecutivo ele transcorreu um longo período de férias em Scicli, na Sicília, Itália, onde concedeu a entrevista.

Segundo ele, “a nova ordem do poder mundial funda-se sobre um modelo de governabilidade que se define como democrática, mas que nada tem a ver com o que este termo significava em Atenas”. Assim, “a tarefa que nos espera consiste em pensar integralmente, de cabo a cabo, aquilo que até agora havíamos definido com a expressão, de resto pouco clara em si mesma, “vida política”, afima Agamben.

A tradução é de Selvino  J. Assmann, professor de Filosofia do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC [e tradutor de três das quatro obras de Agamben publicadas pela Boitempo], para o site do Instituto Humanitas Unisinos.

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O governo Monti invoca a crise e o estado de necessidade, e parece ser a única saída tanto da catástrofe financeira quanto das formas indecentes que o poder havia assumido na Itália. A convocação de Monti era a única saída, ou poderia, pelo contrário, servir de pretexto para impor uma séria limitação às liberdades democráticas?

“Crise” e “economia” atualmente não são usadas como conceitos, mas como palavras de ordem, que servem para impor e para fazer com que se aceitem medidas e restrições que as pessoas não têm motivo algum para aceitar. “Crise” hoje em dia significa simplesmente “você deve obedecer!”. Creio que seja evidente para todos que a chamada “crise” já dura decênios e nada mais é senão o modo normal como funciona o capitalismo em nosso tempo. E se trata de um funcionamento que nada tem de racional.

Para entendermos o que está acontecendo, é preciso tomar ao pé da letra a ideia de Walter Benjamin, segundo o qual o capitalismo é, realmente, uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro.  Deus não morreu, ele se tornou Dinheiro.  O Banco – com os seus cinzentos funcionários e especialistas – assumiu o lugar da Igreja e dos seus padres e, governando o crédito (até mesmo o crédito dos Estados, que docilmente abdicaram de sua soberania), manipula e gere a fé – a escassa, incerta confiança – que o nosso tempo ainda traz consigo. Além disso, o fato de o capitalismo ser hoje uma religião, nada o mostra melhor do que o titulo de um grande jornal nacional (italiano) de alguns dias atrás: “salvar o euro a qualquer preço”. Isso mesmo, “salvar” é um termo religioso, mas o que significa “a qualquer preço”? Até ao preço de “sacrificar” vidas humanas? Só numa perspectiva religiosa (ou melhor, pseudo-religiosa) podem ser feitas afirmações tão evidentemente absurdas e desumanas.

A crise econômica que ameaça levar consigo parte dos Estados europeus pode ser vista como condição de crise de toda a modernidade?

A crise atravessada pela Europa não é apenas um problema econômico, como se gostaria que fosse vista, mas é antes de mais nada uma crise da relação com o passado. O conhecimento do passado é o único caminho de acesso ao presente. É procurando compreender o presente que os seres humanos – pelo menos nós, europeus – são obrigados a interrogar o passado.  Eu disse “nós, europeus”, pois me parece que, se admitirmos que a palavra “Europa” tenha um sentido, ele, como hoje aparece como evidente, não pode ser nem político, nem religioso e menos ainda econômico, mas talvez consista nisso, no fato de que o homem europeu – à diferença, por exemplo, dos asiáticos e dos americanos, para quem a história e o passado têm um significado completamente diferente – pode ter acesso à sua verdade unicamente através de um confronto com o passado, unicamente fazendo as contas com a sua história.

O passado não é, pois, apenas um patrimônio de bens e de tradições, de memórias e de saberes, mas também e sobretudo um componente antropológico essencial do homem europeu, que só pode ter acesso ao presente olhando, de cada vez, para o que ele foi. Daí nasce a relação especial que os países europeus (a Itália, ou melhor, a Sicília, sob este ponto de vista é exemplar) têm com relação às suas cidades, às suas obras de arte, à sua paisagem: não se trata de conservar bens mais ou menos preciosos, entretanto exteriores e disponíveis; trata-se, isso sim, da própria realidade da Europa, da sua indisponível sobrevivência. Neste sentido, ao destruírem, com o cimento, com as autopistas e a Alta Velocidade, a paisagem italiana, os especuladores não nos privam apenas de um bem, mas destroem a nossa própria identidade. A própria expressão “bens culturais” é enganadora, pois sugere que se trata de bens entre outros bens, que podem ser desfrutados economicamente e talvez vendidos, como se fosse possível liquidar e por à venda a própria identidade.

Há muitos anos, um filósofo que também era um alto funcionário da Europa nascente, Alexandre Kojève, afirmava que o homo sapiens havia chegado ao fim de sua história e já não tinha nada diante de si a não ser duas possibilidades: o acesso a uma animalidade pós-histórica (encarnado pela american way of life) ou o esnobismo (encarnado pelos japoneses, que continuavam a celebrar as suas cerimônias do chá, esvaziadas, porém, de qualquer significado histórico). Entre uma América do Norte integralmente re-animalizada e um Japão que só se mantém humano ao preço de renunciar a todo conteúdo histórico, a Europa poderia oferecer a alternativa de uma cultura que continua sendo humana e vital, mesmo depois do fim da história, porque é capaz de confrontar-se com a sua própria história na sua totalidade e capaz de alcançar, a partir deste confronto, uma nova vida.

A sua obra mais conhecida, Homo Sacer, pergunta pela relação entre poder político e vida nua, e evidencia as dificuldades presentes nos dois termos. Qual é o ponto de mediação possível entre os dois pólos?

Minhas investigações mostraram que o poder soberano se fundamenta, desde a sua origem, na separação entre vida nua (a vida biológica, que, na Grécia, encontrava seu lugar na casa) e vida politicamente qualificada (que tinha seu lugar na cidade). A vida nua foi excluída da política e, ao mesmo tempo, foi incluída e capturada através da sua exclusão. Neste sentido, a vida nua é o fundamento negativo do poder. Tal separação atinge sua forma extrema na biopolítica moderna, na qual o cuidado e a decisão sobre a vida nua se tornam aquilo que está em jogo na política. O que aconteceu nos estados totalitários do século XX reside no fato de que é o poder (também na forma da ciência) que decide, em última análise, sobre o que é uma vida humana e sobre o que ela não é. Contra isso, se trata de pensar numa política das formas de vida, a saber, de uma vida que nunca seja separável da sua forma, que jamais seja vida nua.

O mal-estar, para usar um eufemismo, com que o ser humano comum se põe frente ao mundo da política tem a ver especificamente com a  condição italiana ou é de algum modo inevitável?

Acredito que atualmente estamos frente a um fenômeno novo que vai além do desencanto e da desconfiança recíproca entre os cidadãos e o poder e tem a ver com o planeta inteiro. O que está acontecendo é uma transformação radical das categorias com que estávamos acostumados a pensar a política. A nova ordem do poder mundial funda-se sobre um modelo de governamentalidade que se define como democrática, mas que nada tem a ver com o que este termo significava em Atenas. E que este modelo seja, do ponto de vista do poder, mais econômico e funcional é provado pelo fato de que foi adotado também por aqueles regimes que até poucos anos atrás eram ditaduras. É mais simples manipular a opinião das pessoas através da mídia e da televisão do que dever impor em cada oportunidade as próprias decisões com a violência. As formas da política por nós conhecidas – o Estado nacional, a soberania, a participação democrática, os partidos políticos, o direito internacional – já chegaram ao fim da sua história. Elas continuam vivas como formas vazias, mas a política tem hoje a forma de uma “economia”, a saber, de um governo das coisas e dos seres humanos. A tarefa que nos espera consiste, portanto, em pensar integralmente, de cabo a cabo, aquilo que até agora havíamos definido com a expressão, de resto pouco clara em si mesma, “vida política”.

O estado de exceção, que o senhor vinculou ao conceito de soberania, hoje em dia parece assumir o caráter de normalidade, mas os cidadãos ficam perdidos perante a incerteza na qual vivem cotidianamente. É possível atenuar esta sensação?

Vivemos há decênios num estado de exceção que se tornou regra, exatamente assim como acontece na economia em que a crise se tornou a condição normal. O estado de exceção – que deveria sempre ser limitado no tempo – é, pelo contrário, o modelo normal de governo, e isso precisamente nos estados que se dizem democráticos. Poucos sabem que as normas introduzidas, em matéria de segurança, depois do 11 de setembro (na Itália já se havia começado a partir dos anos de chumbo) são piores do que aquelas que vigoravam sob o fascismo. E os crimes contra a humanidade cometidos durante o nazismo foram possibilitados exatamente pelo fato de Hitler, logo depois que assumiu o poder, ter proclamado um estado de exceção que nunca foi revogado. E certamente ele não dispunha das possibilidades de controle (dados biométricos, videocâmeras, celulares, cartões de crédito) próprias dos estados contemporâneos. Poder-se-ia afirmar hoje que o Estado considera todo cidadão um terrorista virtual. Isso não pode senão piorar e tornar impossível aquela participação na política que deveria definir a democracia. Uma cidade cujas praças e cujas estradas são controladas por videocâmeras não é mais um lugar público: é uma prisão.

A grande autoridade que muitos atribuem a estudiosos que, como o senhor, investigam a natureza do poder político poderá trazer-nos esperanças de que, dizendo-o de forma banal, o futuro será melhor do que o presente?

Otimismo e pessimismo não são categorias úteis para pensar. Como escrevia Marx em carta a Ruge: “a situação desesperada da época em que vivo me enche de esperança”.

Podemos fazer-lhe uma pergunta sobre a aula que o senhor deu em Scicli? Houve quem lesse a conclusão que se refere a Piero Guccione como se fosse uma homenagem devida a uma amizade enraizada no tempo, enquanto outros viram nela uma indicação de como sair do xeque-mate no qual a arte contemporânea está envolvida.

Trata-se de uma homenagem a Piero Guccione e a Scicli, pequena cidade em que moram alguns dos mais importantes pintores vivos. A situação da arte hoje em dia é talvez o lugar exemplar para compreendermos a crise na relação com o passado, de que acabamos de falar. O único lugar em que o passado pode viver é o presente, e se o presente não sente mais o próprio passado como vivo, o museu e a arte, que daquele passado é a figura eminente, se tornam lugares problemáticos. Em uma sociedade que já não sabe o que fazer do seu passado, a arte se encontra premida entre a Cila do museu e a Caribdis da mercantilização. E muitas vezes, como acontece nos templos do absurdo que são os museus de arte contemporânea, as duas coisas coincidem.

Duchamp talvez tenha sido o primeiro a dar-se conta do beco sem saída em que a arte se meteu. O que faz Duchamp quando inventa o ready-made? Ele toma um objeto de uso qualquer, por exemplo, um vaso sanitário, e, introduzindo-o num museu, o força a apresentar-se como obra de arte. Naturalmente – a não ser o breve instante que dura o efeito do estranhamento e da surpresa – na realidade nada alcança aqui a presença: nem a obra, pois se trata de um  objeto de uso qualquer, produzido industrialmente, nem a operação artística, porque não há de forma alguma uma poiesis, produção – e nem sequer o artista, porque aquele que assina com um irônico nome falso o vaso sanitário não age como artista, mas, se muito, como filósofo ou crítico, ou, conforme gostava de dizer Duchamp, como “alguém que respira”, um simples ser vivo.

Em todo caso, certamente ele não queria produzir uma obra de arte, mas desobstruir o caminhar da arte, fechada entre o museu e a mercantilização.  Vocês sabem: o que de fato aconteceu é que um conluio, infelizmente ainda ativo, de hábeis especuladores e de “vivos” transformou o ready-made em obra de arte. E a chamada arte contemporânea nada mais faz do que repetir o gesto de Duchamp, enchendo com não-obras e performances em museus, que são meros organismos do mercado, destinados a acelerar a circulação de mercadorias, que, assim como o dinheiro, já alcançaram o estado de liquidez e querem ainda valer como obras. Esta é a contradição da arte contemporânea: abolir a obra e ao mesmo tempo estipular seu preço.

Sobre o autor

Giorgio Agamben nasceu em Roma em 1942. É um dos principais intelectuais de sua geração, autor de muitos livros e responsável pela edição italiana das obras de Walter Benjamin. Deu cursos em várias universidades europeias e norte-americanas, recusando-se a prosseguir lecionando na New York University em protesto à política de segurança dos Estados Unidos. Foi diretor de programa no Collège International de Philosophie de Paris. Mais recentemente ministrou aulas de Iconologia no Istituto Universitario di Architettura di Venezia (Iuav), afastando-se da carreira docente no final de 2009. Sua obra, influenciada por Michel Foucault e Hannah Arendt, centra-se nas relações entre filosofia, literatura, poesia e, fundamentalmente, política. Entre seus principais livros destacam-se Homo sacer (2005), Estado de Exceção (2005), Profanações (2007), O que resta de Auschwitz (2008) e O reino e a glória (2011) os quatro últimos publicados no Brasil pela Boitempo Editora. 

A grande divergência, por Rodrigo Zeidan

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Estamos no meio de um processo de retrocesso como na década de 1930

As eleições no Reino Unido e na Argélia, o novo acordo comercial entre EUA, México e Canadá, o quase abandono da Organização Mundial do Comércio e a nova lei para cidadania na Índia são parte de um movimento de desglobalização. O Brasil, um país já isolado, vai ter que se contentar com migalhas, como vender carne para a China.

As sociedades estão dispostas a pagar um alto preço pelo isolamento e pela maior autonomia de decisão sobre migração e comércio. No Reino Unido, o brexit já tem afetado a economia, e as coisas devem piorar.

Mais de 60% das empresas britânicas colocam a saída da União Europeia como um dos três maiores riscos para os negócios. O brexit deve custar pelo menos 2% do PIB por ano até 2023.

Estimativas indicam que cada família vai perder £ 870 (cerca de R$ 4.700) por ano, permanentemente. As coisas ainda podem piorar, dependendo de quão atabalhoado seja o brexit.

O outro resultado relevante da eleição britânica é o fato de que o Partido Nacional Escocês (SNP, em inglês) levou praticamente toda a Escócia. Não deve demorar para nova votação para independência (no referendo de 2014, 55% votaram por manter a Escócia no Reino Unido).
Na Argélia, os cinco candidatos eram ex-membros do governo, em uma eleição de fachada na qual, inicialmente, o presidente pretendia concorrer ao quinto mandato. Isolado o país estava e continuará.

O acordo EUA-Canadá-México (USCMA, em inglês) substitui o Nafta com raro apoio dos dois partidos americanos. O USCMA é uma versão bem aguada do Nafta e acaba com o livre-comércio na região.

Na Índia, o isolacionismo vem alienar mais de 200 milhões de muçulmanos. Uma nova lei de imigração torna praticamente impossível que refugiados muçulmanos (e também ateus e judeus) consigam cidadania indiana.

O governo de Narendra Modi tem uma trajetória similar ao atual governo brasileiro.

Assumiu prometendo reformas, mas concentrou a maior parte dos seus esforços numa agenda ultranacionalista de costumes. Resultado? A economia desacelera fortemente.

Globalmente, os organismos multilaterais estão definhando. Na quarta-feira (11), o painel de juízes da OMC parou de funcionar, já que os mandatos venceram e os Estados Unidos bloqueiam novas nomeações. Simplesmente não há mais quem analise disputas comerciais entre países por árbitros razoavelmente lentos. O protecionismo comercial não vai ser mais punido.

O isolacionismo não afeta somente comércio, mas também investimentos. Há sinais claros de que as cadeias de suprimento globais estão se reorganizando e encolhendo.

Em 2018, foram 60.500 os projetos de investimento de empresas estrangeiras na China.

Em 2019, esse número não deve passar de 40 mil (no acumulado do ano até setembro, eram pouco mais de 30 mil).

Os investimentos chineses nos Estados Unidos e no mundo também se contraíram, com previsão de queda de mais de 30% para este ano. E isso depois de esses investimentos, somente nos EUA, terem despencado mais de 80% em 2018.

O que vale para a China vale para o resto do mundo. Investimentos estão sendo adiados, e a incerteza torna mais difícil qualquer recuperação, seja chinesa, indiana ou brasileira.

Estamos no meio de um processo de retrocesso como na década de 1930, com a onda protecionista varrendo o sistema global. Esperemos que desta vez não acabe em tragédia. De qualquer forma, a onda nacionalista pode ser temporária, mas os efeitos serão sentidos por muito tempo.

Rodrigo Zeidan

Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

 

Economia Brasileira, lenta recuperação e mudanças estruturais

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Depois de um período de forte degradação econômica, marcado por uma recessão que gerou mais de 13 milhões de desempregados e um contingente de quase 40 milhões de pessoas na indignidade, onde além dos desempregados somamos os subempregados e os desalentados, a economia brasileira dá sinais, ainda medíocres e inconsistentes, de recuperação econômica, gerando de um lado os ventos ufanistas daqueles que querem acreditar que encontramos os caminhos concretos do crescimento e logo estaremos nos destacando no cenário internacional, rumo ao tão almejado desenvolvimento econômico.

Neste período de crise econômica, as condições sociais pioraram consideravelmente, comprometendo todas as melhoras que tivemos no período 2003/2013, quando o país conseguiu a façanha de crescer e incluir mais pessoas dentro do sistema econômico, gerando mais emprego e melhorando as perspectivas do país, dando a grupos, até então excluídos ou marginalizados, algumas perspectivas de sonhar com um futuro melhor, estes sonhos acabaram se transformando em um verdadeiro pesadelo na atualidade, comprometendo conquistas importantes e gerando fortes preocupações políticas e econômicas, que passaram a colocar em xeque a nossa frágil democracia, como estamos vendo acontecer em outros países e regiões da comunidade internacional.

A economia brasileira vivenciou um momento de grande crise econômica e constrangimentos sociais, a recessão degradou grande parte das conquistas anteriores e gerou forte descontentamento na sociedade, depois de quedas no produto interno bruto de 3,9% em 2015 e de 3,6% em 2016, a economia apresentou algum espasmo de crescimento no período 2017/2018, onde crescemos baixíssimos 1,1 e 1,2%, números estes insuficientes para melhorar as condições econômicas e abrir novas oportunidades de investimentos e geração de empregos. Na atualidade estamos percebendo alguns sinais de melhorias, embora tímidas e limitadas, estamos percebendo que o crescimento de 2020 deve chegar na casa dos 2%, número ainda baixo para resolver os graves desajustes econômicos, mas depois de anos de baixíssimo crescimento, até mesmo estes números estão sendo comemorados pela elite econômica nacional.

A dureza do período 2014/2016 pode ser compreendida como um período de grandes equívocos na condução da política econômica, marcado por desonerações exageradas, por políticas de controle de preços em setores como os combustíveis e energia elétrica, além de queda nos juros sem se atentar para os indicadores macroeconômicos, tudo isso culminou numa situação de insolvência generalizada na estrutura produtiva, descontrole nos gastos governamentais e uma grande confusão na condução na política monetária, cujas intervenções foram vistas pela sociedade como desastrosas e seus resultados extremamente negativos para a economia brasileira.

A partir de 2016, as bases da política econômica se alteraram imensamente, neste momento o governo passou a diminuir as intervenções estatais, deixou que os preços dos serviços controlados pelo Estado se acomodassem em um patamar maior, levando a inflação a um incremento que obrigou o governo federal a adoção de medidas fortes para reduzir as atividades econômicas e combatesse a inflação que crescia de forma acelerada, gerando desconfortos crescentes para o governo. A opção pela austeridade nos gastos públicos era descrita pelo governo como uma forma de reestruturar as finanças do setor público e colocar as despesas em ordem, evitando, com isso, o descontrole fiscal e financeiro que permeava a economia brasileira a algumas décadas e as autoridades via nesta oportunidade um momento exato e propício para que o ajuste fiscal, sempre postergado, fosse feito de forma rápida, generalizada e agressiva, evitando que o Estado Nacional continuasse a pagar juros elevados para financiar suas despesas e conseguisse recursos para o tão esperado e desejado investimento público.

A recuperação, ora em curso, deve ser vista com entusiasmo reduzido, isto porque estamos num momento muito particular da economia brasileira, percebemos e nos alegramos com a retomada, todos almejam que a economia volte ao tão acalentado crescimento econômico, visando algo maior e mais consistente, parecido com um sustentável desenvolvimento econômico. Nestes anos percebemos que a desindustrialização crassa a economia brasileira, os indicadores nos mostram que passamos por um processo perigoso de desindustrialização, nosso setor industrial vem perdendo participação no produto interno bruto, estes dados deveriam acender uma luz na sociedade, mostrando-a que nenhum país conseguiu se aventurar no desenvolvimento econômico sem, antes, construir uma estrutura industrial de relevo, diversificada e dotada de tecnologias, máquinas e equipamentos altamente sofisticados.

Embora tenhamos grande vocação agrícola, tema este que sempre esteve presente nos espaços de discussões política e econômica, como no grande debate materializado por dois expoentes da sociedade brasileira, Eugênio Gudin, economista  liberal e defensor da vocação agrícola nacional e Roberto Simonsen, grande industrial paulista, idealizador da FIESP e defensor ardoroso do desenvolvimento de uma base industrial de destaque, que colocasse a sociedade brasileira na condição de destaque no cenário internacional. Neste momento, o Brasil começava a trilhar caminhos sólidos e consistentes para reverter sua condição de país subdesenvolvido, o debate auxiliou na construção de bases concretas para a indústria nacional e o sonho, da época, de que o apoio a indústria traria ganhos incomensuráveis para a sociedade brasileira e nos levaria ao panteão dos países desenvolvidos, deixando para trás anos de colonização e exploração.

Depois desta discussão e da vitória dos industrializantes, a economia começou a galgar espaços de industrialização, marcadas por um projeto fortemente intervencionista, centrado no Estado nacional, nas políticas industriais ativas e nacionalistas, o país conseguiu construir uma base industrial de destaque, nos destacando entre as maiores economias do mundo e nos colocando como o país que mais cresceu no período 1900/1980, onde saímos de uma condição de fragilização econômica, centrada no meio rural e fortemente dependente do trabalho desqualificado, para uma economia industrializada, numa sociedade urbana e marcada por trabalhadores em crescente qualificação, com isso, éramos descritos como um país em ascensão no cenário internacional e com potencial econômico que gerava grandes ciúmes em países desenvolvidos e naqueles que caminhavam na estrada do desenvolvimento.

Depois dos anos 1980, o Brasil perdeu o rumo do crescimento econômico, nossos indicadores pioraram de forma acelerada, nossa indústria perdeu força e nossas questões sociais se agravaram fortemente, entramos num período de reestruturação e a agenda econômica se tornou a mais relevante para definir os rumos futuros do país, para voltar a crescer e fazer com que os ventos do desenvolvimento voltassem, eram necessários que debelássemos a inflação que crescia de forma avassaladora e controlássemos o endividamento externo, cujo potencial de degradação era bastante acelerado. Os anos 90 foram responsáveis pela estabilização econômica, políticas de estabilização foram implementadas para que nossos indicadores voltassem a valores aceitáveis na economia internacional, estes indicadores demoraram a cair para números civilizados, na atualidade podemos considerá-los mais parecido com os que encontramos internacionalmente, hoje a inflação está na casa dos 4% ao ano, uma grande conquista para um país que, em épocas anteriores, registrou números próximos de 80% ano mês ou mais de 2000% ao ano.

A recuperação econômica, ora em curso, nos parece consistente, embora devemos destacar ainda, que além da desindustrialização, estamos bastante preocupados com a qualidade da economia que vai emergir desta crise, estamos vendo claramente uma forte degradação do emprego, estamos gerando novas ocupações em situação bastante precária, com proteção social reduzida e com grande parte da força de trabalhando na informalidade, culminando em empregos piores e grande degradação para a classe trabalhadora.

Estamos criando empregos em setores com baixa produtividade, tais como a construção civil, serviços não sofisticados em geral (lojas, restaurantes, cabeleireiros, serviços médicos, call centers, telecom, etc..), além de serviços de transportes (motoristas de ônibus, caminhões e taxis), entre outros. A produtividade destes empregos gerados na economia brasileira é bastante reduzida e muito parecida com estes empregos em países como os Estados Unidos, Europa e Ásia. Nas comparações internacionais, percebemos que o grande diferencial de produtividade entre as economias está justamente no setor de bens transacionáveis, especialmente nos empregos industriais, justamente aqueles empregos que não estamos gerando na atualidade, longe dos chamados serviços não sofisticados.

Os empregos gerados devem ser descritos como de baixa complexidade econômica, neles estamos pagando salários reduzidos e deixando de incorporar novas tecnologias, de agregar valores aos produtos vendidos e, quando necessitamos dos produtos de alto valor agregado, temos que recorrer aos grandes conglomerados globais, sediados em países que conseguiram desenvolver um parque industrial de altíssima complexidade econômica, com isso, nos tornamos importadores de tecnologias, máquinas, equipamentos e pesquisas científicas e nos especializamos em exportar produtos agrícolas, as chamadas commodities. Estamos retornando ao debate descrito acima que, embora bastante relevante, nos mostra um final diferente dos anos 1930/1940, neste novo debate da contemporaneidade, os vencedores tendem a ser os defensores da especialização nos produtos primários, como sempre desejaram os economistas liberais.

O setor agrícola brasileiro passa por um amplo processo de desenvolvimento, a agricultura nacional está ganhando espaço no mercado global, trazendo ganhos financeiros consideráveis, o grande problema é que setor agrícola tradable, que já foi intensivo em mão de obra, encontra-se inteiramente mecanizado, diante disso, percebemos que o que sobra para a formação de capital fixo são migalhas. Embora devemos ter orgulho do setor agrícola nacional, devemos compreender, que nenhum país conseguiu alçar espaços consistentes de desenvolvimento econômico dependendo do setor agrícola, ainda mais quando percebemos que as grandes tecnologias utilizadas na agricultura nacional são importadas e são produzidas por grandes conglomerados internacionais, sediados em países desenvolvidos que possuem um setor industrial sólido e desenvolvido, baseado em altos investimentos tecnológicos, em máquinas sofisticadas e em equipamentos de grande complexidade, exigindo mão de obra altamente qualificada e dotada de uma educação de destaque internacional, que os colocam nas melhores posições nos principais indicadores de educação da sociedade internacional.

Não existe atalho ao desenvolvimento econômico das nações, todos que conseguiram construir uma sociedade mais desenvolvida, se utilizaram do Estado como agente planejador, investidor e regulador, além de um mercado centrado na concorrência e em instituições sólidas e consistentes, onde a educação sempre recebeu os mais sólidos investimentos, onde as leis eram sempre claras e precisas, marcados por um ambiente de estabilidade política, onde as decisões se davam de forma ágil e rápidas e a interação entre Estado e Mercado visavam o bem comum da coletividade, neste cenário todos os agentes econômicos e sociais sabiam exatamente sua importância dentro da construção de um ambiente propício ao investimento produtivo e a uma melhora das condições sociais.

Em pleno século XXI, o país precisa rever questões centrais em sua inserção na economia internacional, sem indústria relevante e com trabalho precário, baseado em aplicativos, com baixos salários e condições degradantes, estamos nos condenando a uma posição de indignidade e de subalternidade aos grandes conglomerados internacionais, estes sim os verdadeiros donos do mundo, controladores dos recursos financeiros, das grandes mídias, dos grandes bancos, dos complexos industriais e das mentes de todos os indivíduos, o futuro que se desenha é preocupante e assustador, com isso, os movimentos sociais e as reivindicações dos trabalhadores, que crescem em todas as regiões do mundo, desde os países mais miseráveis até os desenvolvidos  tendem a aumentar e a se intensificar, pois estes movimentos retratam as angústias das pessoas e os medos mais íntimos e secretos que todos carregamos dentro de nossas intimidades.

Descontentamento e insatisfação social na sociedade global

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Depois da crise financeira que afetou a economia internacional em 2008, a sociedade vem passando por aumento das instabilidades, dos medos e dos descontentamentos, levando população as ruas, movimentos separatistas, conflitos étnicos e divergências políticas crescentes, criando instabilidades e incertezas generalizadas em todos os rincões do globo.

Nestes movimentos encontramos reivindicações generalizadas, desde movimentos reivindicando mais espaço de participação democrática, passando por movimentos defendendo políticas públicas mais específicas para o combate a pobreza e a desigualdade, movimentos reivindicando o impeachment de governantes até movimentos com bandeiras mais conservadoras, em defesa da família e dos bons costumes, o mundo se encontra em um momento de grandes reflexões, todos reivindicam um novo modelo de sociedade, mais oportunidades, mais democracia e uma melhor perspectiva para um futuro próximo, onde a tecnologia e os progressos científicos e tecnológicos sejam empregados para melhorar as condições de todos os indivíduos e não se restrinja a um grupo social ou a um conjunto de afortunados e bem nascidos.

Nestas movimentações que se espalham por todas as regiões do mundo, encontramos de tudo, desde movimentos mais pacíficos e tolerantes até grupos mais agressivos e violentos, que acreditam que apenas com o uso da força vão conseguir demonstrar para a sociedade seus anseios e suas mais íntimas angústias. São movimentos que denotam uma angústia global da sociedade, atingindo desde países ricos e desenvolvidos, como países pobres e também países que se encontram em ascensão econômica, sendo descrito por muitos, como uma economia com potencial elevado de desenvolvimento.

Para que compreendamos estes movimentos precisamos deixar claro, que a ciência econômica se encontra em um momento de grande inquietação, não conseguindo dar as respostas demandadas pela sociedade, sendo vista mais como um instrumento de dominação e de legitimação dos interesses dos donos do capital, que dominam ainda a ciência, a tecnologia, as finanças e os grandes conglomerados, do que como um instrumento político de organização e de combate ao subdesenvolvimento econômico e da escassez, como era de seu interesse em seus mais íntimos primórdios de existência. Neste novo momento, a economia está se negando a visualizar as evidências em curso na sociedade, os movimentos da economia monetária e financeira se sobrepondo a produção e o desenvolvimento se colocando cada vez mais distante da sociedade, onde apenas poucos estão usufruindo das benesses do desenvolvimento econômico.

Nesta discrepância que vivemos de riqueza, de prosperidade e de oportunidade na sociedade global, as pessoas estão cada vez mais desgostosas com a situação que vivem, indivíduos trabalhando em condições degradantes, sendo que muitos indivíduos estão sem nenhum trabalho, o crescimento de uma tecnologia que reduz as oportunidades de emprego para uma parcela considerável da sociedade, o enfraquecimento dos sindicatos, dos partidos e dos movimentos dos trabalhadores, embora muitos acreditem que estes eram muito corporativistas, dificilmente encontramos sindicatos, sejam patronais ou de trabalhadores, que não possuem perfis corporativistas, vivemos num momento de  grandes perdas para as classes trabalhadores e neste momento o lema deve ser, união e resistência, pois o drama pode aumentar de forma exponencial.

Só para que tenhamos uma mínima ideia do descalabro que vivemos na contemporaneidade, 82% de toda a riqueza criada no ano de 2018 ficou concentrada nas mãos de apenas 1% da população mundial, ou seja, apenas 70 milhões de pessoas embolsaram mais de 80% da riqueza global, enquanto as outras 99% ou 6,93 bilhões de pessoas do mundo, dividiram apenas 18% da riqueza gerada pela economia internacional, estes números ajudam a compreender alguns dos motivos das reivindicações dos indivíduos nos mais variados países do mundo.

Nestes movimentos, muitos se tornam guerras e conflitos abertos, como estamos vendo no Chile, um país que poucos imaginavam que seria acometido com reivindicações assim, afinal, desde o governo autoritário de Augusto Pinochet, as condições econômicas estão melhorando de forma acelerada, como defendem os apoiadores do general, que para implementar estas medidas liberais, milhares de pessoas foram mortas ou desapareceram e nunca mais foram encontradas. Na atualidade, percebemos que a situação real dos chilenos não é tão agradável como o discurso oficial quer demonstrar, os ventos do liberalismo econômico implementado pelos Chicago Boys não foram tão auspiciosos, mesmo com inflação sob controle e indicadores macroeconômicos positivos, a população se encontra em situação de desalento e de desesperança, os serviços públicos foram privatizados, as universidades foram todas repassadas a iniciativa privada e todos que possuem condições podem acessar estes serviços, desde que possuam recursos para pagar ou condições para angariar créditos financeiros para usufruir destes benefícios, o que percebemos é que os descontentamentos cresceram, os endividados aumentaram e a insatisfação cresce de forma acelerada, tudo isso culminou na situação degradante que estamos vivenciando.

Encontramos movimentos em países desenvolvidos, a França depois de ser acossada pelo movimento dos coletes amarelos, o país se encontra em um momento de grandes reivindicações contra a proposta de reforma da Previdência defendida pelo presidente Emmanuel Macron. Nestes movimentos, encontramos milhares de cidadãos franceses indo para as ruas e rechaçando a reforma proposta pelo governo, percebemos ainda, que todas estas medidas que estão sendo apresentadas pelo governo francês, estiveram presentes na pauta de inúmeros países, em decorrência do envelhecimento da população e das transformações no emprego e nos modelos de trabalho da contemporaneidade, embora estas justificativas sejam corretas, elas não nos mostra os grandes ganhadores destas reformas, o sistema financeiro e as finanças internacionais, todos os grupos dotados dos grandes recursos globais, que controlam os grandes conglomerados e mantem grande influência sobre os governos, controlando indicações em setores estratégicos, desde os altos cargos da equipe econômica, até os responsáveis pela política monetária, todos oriundos dos grandes bancos nacionais e estrangeiros.

Os conflitos em curso em Hong Kong também estão chamando a atenção da comunidade internacional, são manifestações que confrontam diretamente o governo chinês e reivindicam maior abertura política, maior transparência e uma maior autonomia com relação ao poderio autoritário da China. Embora seja um movimento forte e consistente, destoa dos movimentos citados anteriormente, tanto no Chile quanto na França, pois estão sendo motivados por direitos imateriais, ao contrário dos movimentos dos outros países, que podem ser descritos como um medo maior do rumo que sua respectiva sociedade está tomando, os chilenos estão denunciando ao mundo uma condição de degradação, onde uma parcela menor está usufruindo dos benesses deste capitalismo globalizado, enquanto uma parcela considerável da população vive em condições de degradação e sem perspectivas de melhoras no médio prazo. No caso da França, percebemos um movimento de resistência da população, que anteriormente vivia sob o manto de um Estado de Bem-Estar social que incluía e garantia uma condição econômica e social de destaque, mas agora percebe que todas as conquistas estão sendo deixadas de lado e as perspectivas são sombrias e perturbadoras.

Neste ambiente de inquietação na sociedade internacional, os cidadãos estão percebendo que os políticos não representam os anseios e os desejos da comunidade, que a política está carcomida com corrupção, desmandos e interesses privados e que os interesses da população estão cada vez mais distantes dos interesses dos donos do poder e, principalmente, dos donos do capital. Estes últimos dominam as questões financeiras, controlam os grandes conglomerados econômicos e produtivos e influenciam as escolhas da coletividade, são eles que dominam a ciência e a tecnologia e estão prestes a controlar as grandes empresas estatais, defendendo as privatizações de forma radical e unilateral, mostrando suas vantagens e escondendo seus malefícios, o exemplo chileno pode servir como um instrumento de reflexão, a retirada do Estado de países pobres com população tão dependentes e carentes dos serviços públicos pode ser um erro fatal, cujos constrangimentos não tardam a se materializar.

A sociedade começa a perceber a insustentabilidade deste sistema altamente tóxico, onde de um lado degradamos o meio ambiente, aumentamos as queimadas e ameaçamos terras demarcadas, de outro estimulamos o trabalho precário e degradante, com cargas excessivas e com jornadas que não mais poupam os domingos e feriados, tudo isso para produzir e aumentar os lucros dos grupos que mais ganham. Neste ambiente percebemos uma degradação dos laços sociais e uma forte fragilização das famílias, onde a carga de trabalho é tão excessiva que os filhos não mais se encontram com seus pais, onde os casais não mais tem tempo para ficar juntos, conversar e planejar suas existências, neste ambiente entregamos os rebentos para a escolha educar e transmitir conhecimentos, exigências excessivas para uma escola mal preparada, mas instrumentalizada e com recursos humanos ultrapassados, o resultado desta equação estamos vendo todos os dias na comunidade, professores ausentes das aulas por depressão, escolas violentas e degradadas, polícias agressivas e defasadas e uma comunidade amedrontada e indivíduos imaturos e despreparados para os embates da vida, tudo isso se materializa em ansiedades, depressões generalizadas e, nos extremos do mundo contemporâneo, em um crescimento acelerado e vertiginoso do suicídio, principalmente entre indivíduos entre 15 e 29 anos, que cansaram de sonhar, perderam as esperanças e encontram nas drogas a fuga de um mundo que não lhes garante oportunidades.

O mundo contemporâneo ressente de valores mais concretos, nos últimos anos estamos percebendo que os valores da sociedade estão dominados pelo poder do dinheiro e do capital, estes pensam a sociedade através da busca constante pelos rendimentos, pelos ganhos materiais e pelos prazeres do imediatismo, com isso, percebemos que o novo Deus da sociedade capitalista é o Dinheiro, por ele, pessoas rendem as maiores homenagens, concedendo-lhes os prêmios mais robustos e transformando-o em um grande mantra, nos valores do mundo contemporâneo, os valores baseados na ética e na moral coletiva são substituídos por valores dos indivíduos, vivemos e cultivamos o individualismo e depois reclamamos da competição excessiva e da solidão, vivemos em uma sociedade líquida, como nos mostrou o grande sociólogo polonês Zygmunt Baumman, com Amores Líquidos e Medos Líquidos, retratando a alma e as dores dos indivíduos na contemporaneidade. Estamos regredindo a passos largos, estamos perdendo como civilização e como seres humanos, deixando valores passageiros dominarem o comportamento social e nossa coesão como indivíduos, nossos sentimentos e emoções. Estamos nos deixando levar pelo imediatismo do consumo e os gozos dos prazeres insaciáveis do sexo e do dinheiro, para que tenhamos uma visão menos pessimista e introduzir um pouco de esperança em um mundo tão marcado pela desesperança, recorramos a história, esta nos mostra que, depois da tormenta, da tempestade e da degradação, o ser humano sempre busca a bonança, acreditemos nisso, sempre!