O Papa Francisco e a esperança, por Dora Incontri

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Ele trouxe a esperança de renovação religiosa e política, com seu exemplo, com suas ideias e com sua forma única de exercer o papado.

por Dora Incontri – GGN – 19/02/2025.

Não quero de forma alguma caracterizar esse texto como um tributo que anuncia a morte de uma grande liderança mundial, o Papa Francisco, que de fato apresenta por esses dias um estado delicado de saúde. Ele está internado com pneumonia dupla. Quero, queremos muitos, que consiga superar esse momento, porque precisamos de sua presença no mundo.

É que estou quase terminando a leitura de seu livro Esperança, a autobiografia. Minha apreciação já começa com o título peculiar. Significativo que o subtítulo é a autobiografia, como se sua vida fosse uma nota de rodapé, submetida ao compromisso da esperança, um ensaio constante de esperançar – para usar um verbo caro a Paulo Freire.

É verdade que a vida de Giorgio Bergoglio trouxe por si mesma a esperança de renovação religiosa e política, com seu exemplo, com suas ideias e finalmente com sua forma única, simples e transformadora de exercer o papado. Lembremos que a instituição do papado levou à divisão da Igreja do Ocidente e do Oriente, provocou a ruptura da Reforma protestante e representou ao longo da história um lugar de poder desmedido, de imposições e perseguições, de corrupção e luxúria. O anarquista e espírita Maurice Lachâtre se deu ao trabalho, no século XIX, de escrever milhares de páginas de horrores em seu livro Crimes e história dos Papas.

No início deste século XXI, a Igreja tinha atravessado o retrocesso de Papas conservadores (João Paulo II e Bento XVI), quando surge a figura leve, aberta, amorosa e simples do Papa Francisco, um papa que transpôs os limites da Igreja Católica, para ser amado e admirado por pessoas de outras religiões ou mesmo sem religião. Prova disso é que estou aqui escrevendo esse texto em sua homenagem, sendo espírita kardecista, e, portanto, completamente desconectada da tradição do papado.

Giorgio chegou ao Vaticano e já evocou o que houve de mais luminoso e autenticamente cristão em toda a história da Igreja Católica: Francisco de Assis. Sendo jesuíta, mas tendo adotado o nome de Papa Francisco, (pela primeira vez na história da Igreja) já anunciava que seu compromisso seria de despojamento, de renúncia ao culto pessoal, de conexão com a natureza, de compaixão para com todos os excluídos e de disposição de diálogo com religiosos de todos os matizes e não religiosos de todos os rincões.

Começou por abolir os rituais de submissão pessoal: beija-mão, ajoelhar-se diante dele, tapete vermelho, vestimenta de púrpura, assento em trono, moradia em palácio.… Simplificou tudo, despojou-se de formalismos, como convém a alguém que esteja inspirado pelo exemplo de Francisco de Assis.

Depois, partiu para o diálogo com o mundo. Abriu-se para lideranças religiosas e políticas de todo o planeta, procurando estabelecer vínculos fraternos, cheios de respeito e proposta de cooperação universal, para salvar a Terra, para acabar com a guerra, para proteger os vulneráveis.

A sua história de vida, tão saborosamente retratada nesta Autobiografia, explica muito de sua postura humana e humanista. É de uma família de imigrantes italianos, por todos os lados (aliás como a minha, e essa ressonância produz intensas emoções nesta leitura). As circunstâncias da imigração e as lutas intensas semelhantes na Argentina e no Brasil, nas primeiras décadas do século XX deixaram nele marcas profundas. O interessante que, ao contrário de muitos italianos que já estavam radicados por aqui quando da ascensão do fascismo e, de longe, aderiram entusiasticamente ao Duce, a família de Bergoglio saiu da Itália em oposição a essa tomada de poder pela extrema direita. O menino foi criado de maneira simples, pobre, num catolicismo popular, mas com espírito crítico. Essa sua ascendência fez dele um defensor engajado dos refugiados, dos imigrantes, dos que enfrentam a fuga das guerras, da fome, das violências políticas, com tanta resistência de acolhimento por parte dos países mais ricos.

O que transparece na obra toda em que narra a sua vida é a profunda conexão com o mundo e seus problemas, com o momento histórico e suas tragédias globais. Isso vem também de sua inserção cultural. Leitor de boa literatura, amante da música, ligado ao cinema de arte – ou seja, uma erudição que não é apenas teológica, fechada em fontes religiosas – mostra que a arte é transformadora e formadora de pessoas engajadas no mundo.

Suas duas encíclicas, diretamente inspiradas em Francisco de Assis, Laudato si’ (2015) e Frattelli Tutti (2020) são obras-primas de defesa da vida, da natureza, de todos os povos e pessoas excluídas e marginalizadas. São apelos ao cuidado com o planeta e ao cuidado com o outro. E já no início da Frattelli Tutti, o Papa alude ao seu diálogo com uma liderança muçulmana, o Imã Ahmad Al-Tayyeb, lembrando da visita que Francisco de Assis fez ao Sultão Malik-al-Kamil, no Egito, em plena vigência das Cruzadas.

A sua atitude de abertura não se manifestou, nestes anos todos, apenas em relação ao diálogo com o outro, mas nas reformas que conseguiu implementar dentro da própria Igreja. Herdeiro da Teologia da Libertação, como bom latino-americano, que enfrentou na Argentina os horrores da ditadura militar, soube trazer temas absolutamente urgentes: o acolhimento aos homossexuais, o combate ao abuso sexual dentro da Igreja, a maior inserção das mulheres – isso tudo apesar da resistência brutal que tem enfrentado dos mais conservadores e dos fundamentalistas, que não faltam em qualquer religião nos dias de hoje.

Mas Francisco afirma em seu livro: “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e suja por ter saído pelas ruas a uma Igreja asfixiada e doente pela clausura e pela conveniência de se agarrar às próprias certezas”.

Esperemos que suas sementes frutifiquem, que venham outros papas que continuem a sua obra, quando ele se for, e que não assistamos a retrocessos tristes, em consonância com os retrocessos mundiais.

Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.

 

E se a imigração for a solução? por Lorena Hakak

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A questão cultural ganha força nos discursos dos políticos anti-imigração

Lorena Hakak, Doutora em economia e professora da FGV. Atua como presidente da GeFam (Sociedade de Economia da Família e do Gênero)

Folha de São Paulo, 18/02/2025

Muitos de nós, brasileiros, temos histórias para contar sobre como nossas famílias chegaram aqui. O Brasil é um país formado por diversas ondas de migração. Ao longo dos séculos, pessoas de diferentes partes do mundo buscaram refúgio aqui, fugindo da fome, de guerras, perseguições, catástrofes ambientais e pobreza, em busca de uma vida melhor e mais digna. Além disso, é fundamental ressaltar que milhões de africanos foram trazidos à força durante séculos e, apesar das condições brutais, permaneceram e contribuíram para a formação do país.

Se a imigração moldou diversos países, por que observamos um discurso anti-imigração? Os determinantes das atitudes de parte dos nativos em relação à imigração podem estar associados a questões econômicas, culturais ou de criminalidade. Segundo o artigo “The Political Effects of Immigration: Culture or Economics”, de Alberto Alesina e Marco Tabellini, o medo que assombra os nativos está na possibilidade de os imigrantes “roubarem” seus empregos ou reduzirem seus salários.

No entanto, os autores mostram que grande parte da literatura sobre os efeitos da imigração no mercado de trabalho não encontra impacto negativo significativo ou identifica até mesmo um efeito positivo. Mesmo quando há um impacto negativo, ele tende a ser de curta duração e concentrado entre trabalhadores com menor escolaridade. Outro receio associado à imigração é o possível aumento dos gastos públicos e a sobrecarga nos sistemas educacional e de saúde. No entanto, esses mesmos imigrantes também contribuem para a economia, aumentando a produtividade e gerando renda, o que, por sua vez, resulta em impostos para financiar os gastos do governo.

A questão cultural ganha força nos discursos dos políticos anti-imigração, especialmente quando determinados grupos apresentam diferenças culturais em relação ao país hospedeiro. Há um receio por parte da população local que esses grupos não iriam se assimilar. Em geral, um maior contato entre grupos, e uma menor segregação, poderiam ajudar a diminuir preconceitos e estereótipos negativos. Por fim, há a questão da violência. As evidências indicam que, em geral, os imigrantes não contribuem para o aumento da criminalidade nos países que os recebem, principalmente considerando crimes violentos. Muitas vezes os imigrantes são as vítimas da violência.

No início do século 20, os estrangeiros representavam aproximadamente 6% da população brasileira. Hoje, essa proporção é muito menor. Segundo dados das Nações Unidas, a proporção de imigrantes no Brasil era de 0,4% em 2000 e subiu para 0,7% da população em 2024. Esse aumento provavelmente está ligado às recentes ondas migratórias observadas no país.

O Brasil recebeu milhares de venezuelanos e haitianos, e já não é incomum encontrá-los, por exemplo, na cidade de São Paulo ocupando postos de trabalho formal. Porém, o país tem potencial para atrair muito mais. Para se tornar um destino mais atrativo, é essencial melhorar as taxas de crescimento econômico. Novas ondas migratórias oxigenam a economia, pois os imigrantes chegam com vontade de vencer e muitos se tornam empreendedores. Em média, eles assumem mais riscos. Além disso, contribuem para mitigar os efeitos da queda da taxa de fecundidade sobre a economia, que, como mencionei na coluna “Porque estão faltando bebês?”, continua em declínio no Brasil. A sociedade poderia —e deveria— fazer um esforço para atrair novos fluxos migratórios.

 

Mazzucato: “Salvemos a IA das Big Techs”

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Assim como capturaram a internet, megacorporações querem submeter a inteligência artificial a seus negócios. Em contra-ataque, Estados e sociedades devem definir o que querem da nova tecnologia – antes que o mercado o faça…

Mariana Mazzucato, Economista Italiana, professora da cátedra RM Phillips de Ciência e Tecnologia da Universidade de Sussex.

OUTRAS PALAVRAS, 18/02/2025

A Cúpula de Ação em Inteligência Artificial (IA) em Paris, no início deste mês, ocorreu em um momento crítico no desenvolvimento IA. A questão não é se a Europa pode competir com a China e os Estados Unidos em uma corrida armamentista em torno desta tecnologia; é se os europeus podem abrir uma abordagem diferente, que coloque o valor público no centro do desenvolvimento tecnológico e da governança. A tarefa é se afastar do feudalismo digital, termo que criei em 2019 para descrever o modelo de extração de renda das plataformas digitais dominantes.

A IA não é simplesmente mais um setor. É uma tecnologia de propósito geral que moldará todos os setores da economia. Ela pode gerar benefícios tremendos ou causar enormes danos. Embora muitos comentaristas falem sobre a IA como se fosse uma tecnologia neutra, isso subestima seu poder econômico fundamental. Mesmo que a construção da IA não tivesse custos, ela precisaria ser alimentada e implantada, o que requer acesso às plataformas de computação em nuvem dos gatekeepers, como Amazon Web Services, Microsoft Azure e Google Cloud.
Essa dependência torna mais urgente do que nunca direcionar o desenvolvimento da tecnologia para o bem comum. A verdadeira questão não é se devemos regular a IA, mas como moldar os mercados para a inovação em IA. Em vez de regular ou tributar o setor apenas após os fatos, precisamos criar um ecossistema de inovação descentralizado que sirva ao bem público.

A história da inovação tecnológica mostra o que está em jogo. Como argumentei em meu livro O Estado Empreendedor, muitas das tecnologias que usamos todos os dias surgiram como resultado de investimentos públicos coletivos.
O que seria o Google sem a internet financiada pelo Darpa1? O que seria o Uber sem o GPS financiado pela Marinha dos EUA? O que seria a Apple sem a tecnologia de tela sensível ao toque financiada pela CIA e a Siri financiada pela Darpa?

Embora frequentemente evitem contribuir com impostos, as empresas que lucraram com esses investimentos públicos agora usam suas rendas excessivas para drenar talentos das próprias instituições públicas que tornaram seu sucesso possível. Esse parasitismo é melhor exemplificado pelo “Departamento de Eficiência do Governo” (DOGE) de Elon Musk, que defende cortes nos mesmos programas de financiamento governamental que permitiram à Tesla se beneficiar de 4,9 bilhões de dólares em subsídios governamentais.

A falta de capacidade do Estado tornará cada vez mais difícil regular novas tecnologias no interesse público. O Estado já foi esvaziado de expertise, devido aos salários mais altos do setor privado e décadas de terceirização para consultores privados (o que Rosie Collington e eu chamamos de O Grande Golpe).

O que acontece quando a maior parte do conhecimento técnico se concentra em cinco empresas privadas?

Em vez de esperar para descobrir, devemos intervir agora para regular a IA de forma dinâmica e adaptável, enquanto a tecnologia de IA e os diversos mecanismos de sua monetização ainda estão evoluindo.

Em um projeto de pesquisa recente no Instituto de Inovação e Propósito Público da Univertity College de Londres, meus colegas e eu revisitamos o feudalismo digital e a necessidade de diferenciar entre criação e extração de valor na IA – o que chamamos de “renta de algoritmos”. Mostramos que plataformas como Facebook e Google evoluíram de maneiras que focam em “rentas de atenção”. À medida que a experiência do usuário é manipulada para maximizar os lucros, seus feeds são entupidos de anúncios e conteúdos “recomendados” viciantes, em um processo que o jornalista canadense Cory Doctorow descreveu de forma colorida como “emerdificação”.
Rolagem infinita, notificações incessantes e algoritmos projetados para maximizar o “engajamento” exibindo conteúdo prejudicial e atividades limítrofes à ilegalidade tornaram-se a norma.

Os sistemas de IA podem seguir o mesmo caminho extrativo e potencializar esse comportamento de busca por renta, como exigir pagamento para acesso a informações essenciais, privacidade de dados, segurança online, exclusão de publicidade ou serviços básicas para pequenas empresas em buscas globais de informações. Como as plataformas atualmente escondem seus algoritmos e mecanismos de alocação de atenção (as fontes de suas “rentas de atenção algorítmica”), a chave para regular o setor, assim como no enfrentamento das mudanças climáticas, é forçar os gigantes digitais a divulgar como seus algoritmos estão sendo usados. Essas informações devem então ser integradas aos padrões de relatórios para todas as plataformas digitais.

Desenvolvedores de IA como OpenAI e Anthropic escondem, entre outras coisas, as fontes de seus dados de treinamento; quais salvaguardas colocaram em seus modelos; como aplicam seus termos de serviço; os danos posteriores de seus produtos (como uso viciante e acesso de menores de idade); e até que ponto suas plataformas estão sendo usadas para monetizar a atenção global por meio de publicidade direcionada. O grande e crescente impacto ambiental da IA adiciona mais uma camada de urgência ao desafio. As emissões das principais empresas de IA dispararam, levando a Agência Internacional de Energia (AIE) a alertar que o “consumo global de eletricidade de data centers, IA e o setor de criptomoedas pode dobrar até 2026”.

Felizmente, desenvolvimentos recentes sugerem que caminhos alternativos são possíveis.

A DeepSeek, empresa chinesa de IA que fez muitas ações de tecnologia dos EUA sofreram perdas abruptas no final de janeiro, parece ter demonstrado que um desempenho comparável pode ser alcançado com significativamente menos poder de computação e consumo de energia.

Abordagens mais eficientes para o desenvolvimento de IA poderiam ajudar a quebrar o domínio que as principais empresas de computação em nuvem estabeleceram por meio de seu controle sobre vastos recursos de computação?

Embora seja cedo para dizer se o avanço da DeepSeek levará a uma reestruturação do setor, isso nos lembra que a inovação no nível de software continua viável e necessária para abordar o impacto ambiental da IA.

Como Gabriela Ramos da UNESCO e eu argumentamos, a IA pode melhorar nossas vidas de muitas maneiras, desde melhorar a produção de alimentos até aumentar a resiliência contra desastres naturais. Governantes europeus, de Mario Draghi a Ursula von der Leyen e Christine Lagarde, consideram a IA crucial para reviver a produtividade europeia. Mas, a menos que abordem a natureza do feudalismo digital, o comportamento extrativo que sustenta o desenvolvimento de modelos de IA e a atual falta de capacidade regulatória no setor público, qualquer tentativa de estimular um crescimento mais robusto e sustentável se chocará contra as rochas de novas e mais profundas desigualdades.

Não se trata de escolher entre inovação e regulamentação, nem se trata de gerenciar o desenvolvimento tecnológico de cima para baixo. Trata-se de criar incentivos e condições para direcionar os mercados a entregar os resultados que desejamos como sociedade. Devemos reivindicar a IA para que ela forneça valor público, em vez de se tornar outra máquina de extração de renda. A Cúpula de Paris oferece uma oportunidade para mostrar essa visão alternativa.

1 Agência para Projetos de Pesquisa Avançada em Defesa (DARPA, na sigla em inglês) dos Estados Unidos. Criada no contexto da guerra fria (em 1958), para disputa da corrida nuclear, acabou desenvolvendo os protocolos que levariam à criação da internet

Desafios

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Vivemos num momento marcado por muitas transformações interessantes, um período de grandes alterações estruturais na sociedade internacional, com impactos para todas as nações, alterações organizacionais, com modificações comportamentais dos indivíduos, demandas crescentes dos consumidores e mudanças gigantescas no mundo do trabalho, exigindo atualizações constantes, capacitações cotidianas e qualificações emocionais e espirituais.

Neste momento, percebemos o crescimento dos conflitos militares e investimentos crescentes na indústria bélica, onde regiões inteiras estão reservando recursos orçamentários, recursos estes inexistentes, para investirem na indústria da defesa, deslocando bilhões de recursos para a segurança e deixando levas gigantescas de trabalhadores e cidadãos sem recursos materiais, sem infraestrutura, sem saúde pública, sem educação e sem dignidade, com isso, percebemos os burburinhos na sociedade, medos e desesperanças crescentes.

Neste cenário de grandes desafios, percebemos que as nações estão envoltas em desequilíbrios fiscais e financeiros, levando a classe política a perderem credibilidade, gerando o crescimento de grupos e setores políticos que defendem rupturas abruptas na estrutura política como forma de resolver os grandes desafios da sociedade contemporânea, desta forma, percebemos o surgimento de variados confrontos nas mais variadas regiões do mundo.

No Brasil, percebemos inúmeros desafios e oportunidades, ainda mais num momento como este, onde as nações estão envoltas em preocupações políticas e desequilíbrios econômicos, exigindo, internamente, variadas escolhas imprescindíveis, atacando as heranças milenares, os variados privilégios arraigados e uma grande gama de atrasos históricos que se fazem presentes em todas as épocas e lugares, além de perpetuarem as desigualdades conhecidas e pouco atacadas pelos donos do poder.

Neste ambiente de confrontos comerciais e retóricas agressivas, o Brasil precisa se preparar para as grandes transformações econômicas e geopolíticas em curso na sociedade global, com isso, faz-se necessário escolher um caminho seguro, inclusivo e transparente, evitando alinhamentos automáticos com nações em confronto, sabendo que temos limitações tecnológicas, fragilidades produtivas e dependência de países mais avançados e detentores de conhecimentos que pouco dominamos.

Diante destes desafios, o Brasil precisa construir novos consensos políticos, deixando de lado conversas desnecessárias e pouco produtivas que pululam na mídia corporativa e nos parlamentos, precisamos discutir as oportunidades que se abrem nos confrontos hegemônicos que se apresentam na sociedade global, investindo maciçamente em educação de qualidade, valorizando os cientistas e pesquisadores nacionais, fortalecendo as instituições de fomento e utilizando as compras governamentais como um claro instrumento de fortalecimento da estrutura nacional, precisamos valorizar nossos sistemas produtivos e exigir dos investidores internacionais, as fundamentais e imprescindíveis, transferências de tecnologias, instrumentos adotados para as nações que conseguiram dar saltos de produtividade, aumentando o crescimento econômico, o bem-estar da população e as transformações nas estruturas produtivas, gerenciais e comerciais.

Os desafios são enormes para nações como o Brasil, com sua herança de pilhagem, de escravidão, de baixo salário e de desigualdades crescentes, afinal, somos uma das dez maiores economias do mundo, mesmo assim, possuímos mais de 50 milhões de cidadãos que não possuem saneamento básico, mais de 40 milhões de trabalhadores que sobrevivem na informalidade, milhões de crianças vivendo na indignidade, milhões de lares vivendo na escuridão e, mesmo assim, os discursos dominantes nos meios de comunicação são pouco condizentes com a realidade da população.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Modificações na família contemporânea, por Fernando Nogueira da Costa

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Fernando Nogueira da Costa

A Terra é Redonda, 17/02/2-25

Diminuição da utilidade da família pela atomização e comoditização

A “atomização”, segundo Branko Milanovic, no livro Capitalismo sem rivais, se refere ao fato de as famílias terem perdido em grande medida sua vantagem econômica, pois um número crescente de bens e serviços antes produzidos em casa, fora do mercado e não sujeitos a troca pecuniária pode agora ser comprado ou alugado no mercado. Atividades como preparar comida, limpar, fazer jardinagem e cuidar de bebês, idosos e doentes eram fornecidas “gratuitamente” em casa nas sociedades tradicionais, caso a famílias não fosse muito rica.

Essa era uma das principais razões econômicas da existência do casamento: divisão de trabalho no casal para aumento da “produtividade familiar”. Viver junto “internaliza” essas atividades (cozinhar, limpar etc.) e proporciona economia de escala em tudo, do abastecimento à eletricidade.

Porém, com o aumento da riqueza, quase todos esses serviços podem ser adquiridos fora de casa e há cada vez menos necessidade de compartilhar a vida com outras pessoas. Por isso – e pelo ingresso das mulheres no mercado de trabalho –, as sociedades contemporâneas (exceto na África) tendem a um tamanho de família mínimo.

Todas as atividades domésticas podem agora ser terceirizadas. De acordo com a conclusão distópica de Branko Milanovic, o mundo consistiria em indivíduos vivendo e trabalhando sozinhos (exceto quando cuidam de crianças), sem terem vínculos ou relações permanentes com outras pessoas, e cujas necessidades seriam supridas pelos mercados.

A atomização, levada ao extremo, implica no fim da família. Também é acelerada pelas crescentes intrusões legais na vida familiar quando as regras existentes dentro das famílias são diferentes das em vigor fora delas.

Muitas têm o objetivo de minimizar o contato com quem não é membro da família. Essa separação radical entre quem é e quem não é da família era uma característica encontrada na maioria das sociedades do mundo até recentemente, espécie de compartilhamento baseado na exclusão.

O modelo mercantilizado de hoje permite ao mundo externo invadir a casa não só na forma de entrega de refeições e serviços de limpeza, mas também na forma de intrusão legal. Essas invasões – como os acordos pré-nupciais e a capacidade dos tribunais de afastar filhos e controlar o comportamento dos cônjuges –, embora em muitos casos sejam desejáveis, como na prevenção de abusos de cônjuges, esvaziam ainda mais o pacto interno tácito mantenedor das famílias unidas.

O “código legal” interno da família é terceirizado para a sociedade como um todo. Levanta a questão: qual é a vantagem da existência da família ou da coabitação em um mundo rico e comercializado, onde todos os serviços podem ser adquiridos?

O uso de mão de obra assalariada vinda de fora de casa faz parte de um modo de produção capitalista típico, com uma nítida distinção entre a produção e as esferas familiares – distinção fundamental para definir o capitalismo. O novo capitalismo hipermercantilizado unifica a produção e a família, mas o faz por incorporar a família ao modo de produção capitalista.

O capitalismo avança para “conquistar” novas esferas e “comoditizar” novos bens e serviços. Esse estágio de comercializar e/ou negociar por completo todas as relações pessoais tradicionalmente deixadas de fora do mercado implica melhorias substanciais na produtividade do trabalho.

A contrapartida da atomização é a comoditização. Na atomização, ficamos sozinhos porque todas as nossas necessidades podem ser satisfeitas pelo comprado de outras pessoas no mercado. Em plena comoditização, nos tornamos esse outro: satisfazemos as necessidades das pessoas por meio da comoditização de nossos ativos, inclusive de nosso tempo livre.

Enquanto consumidores, adquirimos a capacidade de comprar atividades antes fornecidas em espécie pela família. Enquanto produtores, o capitalismo também oferece um amplo campo de atividades possíveis de fornecermos aos outros. Desse modo, atomização e comoditização andam juntas.

A culinária tornou-se terceirizada e as famílias não costumam fazer todas as refeições juntas. Limpeza, reparos, jardinagem e criação dos filhos se tornaram mais comercializados e deixaram de ser “deveres de casa”.

O crescimento da gig economy – mercado de trabalho “sob demanda” ou de “bicos” com trabalhadores temporários e sem vínculo empregatício com empresas contratantes para serviços pontuais – comercializa nosso tempo livre, inclusive coisas possuídas, mas nunca usadas antes para fins comerciais. Agora, qualquer pessoa com algum tempo livre pode “vendê-lo”, por exemplo, ao trabalhar para uma empresa de compartilhamento de carona ou entrega de compras à distância.

Um carro particular era “capital morto” e agora se torna capital vivo se usado como “táxi” para empresas a Uber. Manter o carro ocioso na garagem passou a ter um custo de oportunidade.

Da mesma forma, casas no passado emprestadas por uma semana sem compensação para familiares e amigos agora se tornaram bens alugados para viajantes. Esses bens passam a ser mercadorias e adquirem um preço de mercado.

Não os usar é um claro desperdício de recursos pelo custo de oportunidade. Somos levados a pensar nessas atividades como bens ou serviços comerciais.

Novos mercados surgiram quando os bens tradicionalmente produzidos pelas famílias começaram a ser produzidos pela indústria e comercializados com uma produtividade muito maior na economia de escala com linhas de montagem. Hoje, em relação à comoditização dos serviços trata-se exatamente do mesmo processo.

Os serviços pessoais são mais difíceis de comoditizar porque os aumentos de produtividade são mais difíceis por definição: serviço exige o encontro direto do produtor com o consumidor. Logo, os ganhos da divisão do trabalho são menores.

Para Branko Milanovic, a comoditização do antes não comercial tende a fazer as pessoas realizarem muitos trabalhos diversos. Até, como no caso do aluguel de apartamentos ou casas, tende a transformá-las em “capitalistas” no seu dia a dia.

O tipo de trabalho emergente no século XXI não é o tipo considerado desejável por Max Weber porque falta ao trabalhador um senso de vocação ou a dedicação a uma profissão. Carece do caráter sistemático e metódico.

Os trabalhadores sem quaisquer características pessoais se tornam, do ponto de vista dos patrões, “agentes” totalmente intercambiáveis. Para Branko Milanovic, esses três eventos estão inter-relacionados: (i) mudança na formação da família (atomização), (ii) expansão da comoditização para novas atividades e (iii) mercados de trabalho totalmente flexíveis com ocupações temporárias.

Se ficam no mesmo trabalho por um longo período, os indivíduos tentam estabelecer relações de confiança com as pessoas com quem sempre interagem. Eles se envolvem no chamado de “jogos repetidos” com empatia e simpatia.

Quando aparecem novas pessoas lhe tratando como um completo estranho, você não tem muito incentivo para se comportar com “simpatia” e enviar sinais de comportamento cooperativo porque essas novas pessoas também se mudarão em breve. Investir em ser simpático é esforço necessário se justificado pela expectativa de essa simpatia ser retribuída adiante.

A avaliação profissional passa a ser se ele apresenta alguma “simpatia”, apesar da falta de relacionamentos duradouros. Por qual razão mudamos nosso comportamento quando nossas interações são comoditizadas? Porque somos reduzidos à função econômica, porque ser simpático é um investimento, porque a lógica de ser simpático vai além da lógica de mercado…

A disseminação da comoditização acaba com a alienação. A ordem das coisas é internalizada de tal maneira a ponto de não haver mais nada sem “precificação”.

A crescente comoditização de muitas atividades, a ascensão da gig economy e de um mercado de trabalho radicalmente flexível fazem parte da mesma evolução. São movimentos em direção a uma economia mais racional, mas, em última análise, mais despersonalizada, onde a maioria das interações será de contatos pontuais.

A atomização esvazia a vida familiar e a falta de interações pessoais reduz o comportamento “doce” do comércio. Ocorre em um contexto de amoralidade.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP).

 

A era da maldade, por Antonio Prata

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Com sua proposta para Gaza, Trump é autoritário, irresponsável, criminoso, mas sobretudo cruel.

Antonio Prata, Escritor e roteirista, autor de “Por quem as panelas batem”

Folha de São Paulo, 16/02/2025

Quando Trump afirma que vai expulsar mais de 2 milhões de palestinos de suas terras e transformar a Faixa de Gaza e na Riviera do Oriente Médio está sendo autoritário, irresponsável, criminoso, mas sobretudo cruel. Dizer a pessoas que perderam pais, filhas, amigos, casas, empregos e a perspectiva de um futuro que serão exiladas para milionários do mundo todo se bronzearem e tomarem gin tônica em Clubs Med construídos, literalmente, sobre os cadáveres de seus entes queridos é um escárnio –e é isso mesmo que pretende ser. Gasolina no fogo. Sangue no rio de piranhas. É Trump agitando o Coliseu das redes, unindo seu exército de admiradores no gozo com o sofrimento alheio.

Segundo reportagem da Folha, na última terça (11), um estudo de Berkley mostrou que o discurso de ódio no Twitter cresceu 50% desde que Elon Musk o comprou e o transformou em X. O próprio comprador ajudou a engrossar o caldo, semana passada, ao postar que havia passado o fim de semana “enfiando a Usaid” —agência americana de auxílio humanitário para o exterior— “no triturador de madeira”. Isso é um deboche com gente morrendo de Aids em Botswana e Lesoto, com famílias de hondurenhos e nicaraguenses desabrigados por furacões, sem falar dos mais de 10 mil funcionários da agência que aguardam ter seus empregos triturados a qualquer momento. O tuíte não é sobre a eficiência do governo. Não é Hayek nem Mises. É Goebbels e Calígula.

Embora a direita seja mais eficiente na administração da crueldade, não detém o seu monopólio. De maneira menos pragmática e menos abrangente, mas igualmente perversa, a esquerda contribui para a tragédia climática dos humores. Basta um “erro”, um “deslize”, uma discordância do protocolo politicamente correto da semana e, sob a desculpa esfarrapada da “justiça” ou da “reparação”, hostes partem pra cima do “infiel”, os smartphones e teclados dos computadores em riste, feito tochas e foices. O sadismo com que essa turba ataca os “hereges” não difere do de Trump falando do seu projeto de Gaza-o-Lago nem de Musk triturando a ajuda humanitária. No fundo, é só o prazer de fazer o mal.

A bruxa está solta –e não é só nas redes. Em São Paulo, dois ladrões numa moto matam o ciclista para roubar um celular. Pouco mais tarde, baleiam outro, por mais um telefone. No Rio, o motorista de Uber dá um chute nas costas e nocauteia a senhora que derrubou farelo de biscoito em seu carro. Os PMs jogam o cara da ponte.

Em Minas Gerais, em 2016, um jovem de 19 anos desafiou os candidatos interessados no apoio dos 10 mil membros da sua organização, a Direita Minas, a aparecerem em público com camisetas de Brilhante Ustra. Ustra era especialista em torturar pais e mães diante dos filhos e vice-versa. Uma vez, levou uma menina de 5 anos para ver a mãe, destroçada, no calabouço. A menina perguntou: “Mamãe, por que você tá verde”. Em 2022, esse jovem chamado Nikolas Ferreira foi o deputado federal mais votado do Brasil, hasteando as bandeiras do cristianismo e da defesa da família. Existe algo menos cristão e que agrida mais a família do que torturar filhos diante dos pais?

Se vivo fosse, depois de publicar “A Era das Revoluções”, “A Era dos Impérios”, “A Era do Capital” e “A Era dos Extremos”, acho que Eric Hobsbawm iria escrever “A Era da Maldade”. Sorte a dele, morreu antes de o mundo ir pro brejo.

 

A heterodoxia trumpista não funcionará, por Samuel Pessoa.

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Aumentar alíquotas de importação para atender seu eleitorado não vai dar certo

Samuel Pessoa, Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP.

Folha de São Paulo, 16/02/2025

A eleição de Trump responde a uma demanda muito clara. Nas últimas décadas, houve forte redução do emprego para o trabalhador de média escolaridade, em geral o trabalhador com o ensino médio completo e alguma formação técnica. Essa queda ocorreu tanto para o trabalhador do chão de fábrica, que foi substituído por robôs, quanto para o trabalhador de escritório, que foi substituído por computadores.

Adicionalmente, há uma queda da qualidade da rede pública de educação americana, desde os anos 1960, aproximadamente. De sorte que o filho do trabalhador que perde emprego na indústria não consegue competir com os filhos dos ricos, nem com os filhos dos imigrantes asiáticos, pelos bons empregos do Vale do Silício.

Contribuiu para o fenômeno, em menor dimensão, a emergência da China e sua capacidade industrial imensa, com força de trabalho bem-educada, disciplinada e com enorme capacidade de poupança. Uma versão turbinada do que foi o Japão nos anos 1980. Era comum professores de economia vaticinarem a superação da liderança americana pelo Japão.

O progresso técnico, a China em menor medida e a dificuldade de o sistema público de educação de igualar as oportunidades geraram o fenômeno dos flyovers: a classe média empobrecida do meio dos EUA que a elite sobrevoa quando vai de avião da Nova Inglaterra para a Califórnia. Os flyovers são os eleitores de Trump.

Para atender ao seu eleitorado, o plano de Trump a aumentar alíquotas de importação. Não funcionará. O elevado déficit comercial dos EUA resulta de dois fenômenos. Primeiro, do excesso de absorção doméstica sobre a produção. Segundo, do baixo custo de financiamento internacional dos EUA.

O excesso de absorção sobre a produção resulta das escolhas de consumo e poupança da população americana. Essas não são alteradas por tarifas de importação.

O baixo custo de financiamento do Tesouro americano é consequência de os EUA emitirem a moeda de curso global e de a dívida pública emitida pelo Tesouro ser vista como porto seguro, em momentos de aumento de risco. Além de os EUA terem a praça financeira mais eficiente que há: captarem no mundo todo a baixo custo e investirem em renda variável com elevado retorno.

A saída ortodoxa para o problema é atacar a dificuldade do sistema público de educação, para que ele volte a ser capaz de igualar as oportunidades. A segunda saída ortodoxa é reduzir a absorção doméstica, o que pode ser obtido por meio de elevação da poupança pública. Me parece que Trump não avançará por aqui.

Há heterodoxias possíveis. Por exemplo, uma política mais agressiva de elevação do salário mínimo e medidas legais que facilitem a capacidade de sindicalização seriam bem-vindas, e há boa teoria econômica sustentando essas heterodoxias, nem tão heterodoxas assim.

É possível adotarmos a sugestão de Daron Acemoglu, Nobel de Economia de 2024, e tributar o uso de robôs. Uma versão moderna do movimento ludista, comum na Inglaterra durante a primeira Revolução Industrial, talvez conseguisse, como sugere Acemoglu, induzir o progresso técnico a aumentar a demanda pelos trabalhadores de média escolaridade. Talvez funcione. Sou bem mais cético aqui. O que sabemos é que a heterodoxia trumpista não funcionará.

 

Os coachs mirins que pregam o não-estudar, por Danilo Marques

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Com relevante alcance nas redes, eles ensinam crianças a enriquecer rápido, até com “investimentos na Bolsa”. Têm como herói Pablo Marçal. O primeiro ensinamento: largar a escola. Um trabalho infantil estimulado pelos pais e pelas regras frouxas das Big Techs

Danilo Marques – OUTRAS MÍDIAS/Piauí – 14/02/2025

Um grupo de aproximadamente vinte crianças e adolescentes se reuniu na Praça Sol Peres, no Morumbi, em 18 de janeiro. Não estavam ali para jogar bola, caçar Pokémons ou ensaiar coreografias para o TikTok. Encontraram-se, em vez disso, para falar de investimentos. O organizador da trupe, um paulistano de 17 anos e 147 mil seguidores no Instagram, disse se tratar de um “encontro de jovens prósperos”; espíritos “obstinados” interessados em fazer networking para crescer no universo do marketing digital. A meninada, nos vídeos gravados naquela tarde, demonstra uma sobriedade pouco adolescente: cumprimentam-se com apertos de mão e tapinhas no ombro.

O líder do grupo se apresenta nas redes sociais como um empreendedor que, apesar de tão pouca idade, “fatura alguns dígitos” por mês. “Ensino a geração Z a prosperar”, diz a descrição de seu perfil do Instagram. Ele se veste apenas com camisetas lisas, geralmente pretas, e um ocasional colete puffer. Quando está num carro, só se permite ser fotografado no banco de trás, como alguém que dispõe de chofer. Calça sapatos semelhantes a mocassins e, ao posar para fotos, nunca encara a câmera – mantém o olhar fixo no horizonte, pensativo. Foi com esse olhar que anunciou, recentemente, ter faturado meio milhão de reais em 2024.

Em um de seus vídeos, o influenciador disse ter abandonado a escola aos 15 anos. “Eu larguei porque não me identificava mais com o ensino.” Segundo ele, não fazia sentido frequentar um ambiente com crianças que “almejavam fazer metade do dinheiro que eu estava fazendo”. No fim da gravação, recomendou aos seguidores que não trilhassem o mesmo caminho. Mas o recado era claro: empreender dá muito mais frutos do que estudar.

Como ele, há toda uma legião de influenciadores mirins que, transitando entre o linguajar corporativo e o tom de pregação neopentecostal, prometem aos seguidores o enriquecimento rápido. Um maranhense de 14 anos, que aparenta ter ainda menos, arregimentou 411 mil seguidores no Instagram com lições similares. “Ensino pessoas a mudarem de vida com a internet”, diz seu perfil. Posa para fotos ao lado de BMWs e garante já ter faturado mais de 200 mil reais com investimentos. A origem do dinheiro, nesse e na maioria dos casos, não é clara. Atribui-se ao marketing digital – termo abrangente que abarca a comercialização de qualquer tipo de produto na internet.

A mensagem é sempre a mesma: escola não dá futuro; trabalho de carteira assinada, idem. Os meninos são um subproduto da cultura coach que se alastrou pelo país nas últimas duas décadas. Ensinam que, com autodisciplina e um mindset adequado, qualquer um pode se tornar milionário pela força do próprio trabalho, sem depender de empregadores ou títulos acadêmicos. Basta, é claro, pagar algumas mentorias exclusivas para descobrir como chegar lá (o influenciador paulistano de 17 anos anuncia ter dado aulas a mais de 10 mil pessoas em um curso online que criou com dois amigos, ambos também adolescentes com ambição milionária).

O Brasil é um terreno fértil para ideias do tipo. Quase 40% da população ocupada trabalha na informalidade, segundo os dados mais recentes do IBGE. O número de trabalhadores com ensino superior completo vem crescendo, mas grande parte dessa mão de obra é contratada para funções que não exigem diploma universitário e têm teto salarial baixo. Um levantamento publicado em 2022 pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) mostrou que, no segundo trimestre daquele ano, quase 80% dos brasileiros com ensino superior que entraram no mercado de trabalho foram parar em cargos que exigiam, no máximo, o ensino médio completo. Ainda segundo o Dieese, mais de 1 milhão de brasileiros formados em universidade trabalhavam como lojistas e vendedores em 2022. A eles, somavam-se 86 mil motoristas de aplicativo e 70 mil entregadores de comida e outros produtos.,

Era questão de tempo até que esse fenômeno se refletisse na juventude. “A escola não prepara o jovem para o futuro, prepara para ser dependente”, professou o paulistano de 17 anos em um vídeo recente. “O ENEM NÃO VAI TE DEIXAR RICO”, alardeou em outra postagem, com todas as letras em caixa alta. Em dez anos, o número de inscritos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) caiu pela metade, de 8,7 milhões para 4,3 milhões. O fenômeno se explica, em parte, pela profusão de cursos à distância baratos oferecidos por faculdades privadas, que não participam do Enem. Mas pesquisadores do tema também atribuem a mudança ao desinteresse dos jovens, num país em que o estudo não é mesmo garantia de bons salários e vida estável.

“Fazer faculdade, estágio, conseguir emprego, deslanchar na carreira, são coisas demoradas e que hoje são mais difíceis de conseguir”, diz Bernardo Soares, especialista em educação e aplicação de tecnologias em sala de aula. Ele lamenta que, por vezes, ao explicar as condições do mercado de trabalho aos alunos que o procuram, acaba desincentivando-os a seguir as carreiras que almejavam, como – justamente – a de professor. “Isso se soma ao retorno rápido que as redes te dão, sem que você precise necessariamente ter experiência na área. Elas podem dar lucro e visibilidade mais facilmente que as profissões tradicionais.”

“Faturei 300 reais sem fazer nada”, diz um menino sul-mato-grossense de 13 anos, num vídeo compartilhado com seus 30 mil seguidores. Até poucos meses atrás, o garoto só queria saber de jogos eletrônicos, como Roblox, e vídeos de TikTok. O pai, contudo, não gostava de ver o filho grudado em telas o dia todo. Deu-lhe de presente, então, uma pilha de livros. Entre eles, Geração de valor e O homem mais rico da Babilônia, que costumam figurar entre os títulos de auto-ajuda mais lidos do Brasil. O menino, em pouco tempo, largou os divertimentos online e passou a cultivar uma ambição milionária. “Só em 2023, leu 35 livros”, contou o pai à piauí. Zootecnólogo formado numa universidade federal, ele abandonou a área e hoje trabalha com manutenção de ar-condicionados. Tem 38 anos.

Orgulha-se da carreira digital que o filho vem construindo. Conta que o menino, seguindo os ensinamentos de influenciadores como Thiago Nigro – autor de Do mil ao milhão, livro mais vendido do país em 2020 –, passou a comprar doces para revender na escola. O dinheiro que arrecadava – e que não era pouco, segundo o pai – logo investia em fundos imobiliários e ações. O negócio fez sucesso, até que o colégio, preocupado com o volume de transações no recreio, proibiu as vendas. Pai e filho não viram alternativa senão vender os doces na rua. A rotina trabalhadora do menino passou a ser filmada pelo progenitor e postada nas redes sociais.

Hoje o garoto tem conta própria no Instagram. Está no segundo perfil – o primeiro foi suspenso pela Meta, empresa responsável pela rede, por ter cometido uma infração (o menino tinha menos de 13 anos, idade mínima para abrir uma conta). Antes de receber a sanção, acumulava 70 mil seguidores, que agora tenta recuperar. O pai, temendo um novo banimento, usou os próprios dados (nome, idade, etc.) para recadastrar o filho na rede.

O menino publica, em vídeo, pequenas lições com títulos chamativos: “Três ideias de renda extra”; “faturei 6.000 todos os meses”. Não costuma obter mais do que 10 mil visualizações por vídeo, mas, às vezes, acontece de uma postagem furar a bolha e virar motivo de chacota entre pessoas menos receptivas a esse tipo de conteúdo. Um desses posts, no qual o garoto anunciava uma aula sobre investimentos na Bolsa de Valores, acumula 871 mil visualizações. “O bullying precisa voltar, urgentemente”, comentou um usuário, fazendo troça do garoto. “Queria saber quanto vocês ganham para enganar o povo!”, escreveu outro, num vídeo em que o menino dizia ganhar “3 mil reais limpos, por mês” (na gravação, ele conversava com Renato Cariani, influenciador fitness que tem 9 milhões de seguidores no Instagram e atualmente é réu sob acusação de tráfico de drogas, suspeito de desviar produtos químicos para abastecer facções criminosas).

O pai diz não se incomodar com situações desse tipo. Pelo contrário, acha que o filho deve mesmo viralizar, mesmo que seja por razões negativas. As críticas geram tanto engajamento quanto os elogios, e o que importa, no fim, é que mais pessoas assistam ao menino, ele explica.

Com esse raciocínio, permitiu que o filho participasse no ano passado do reality show La Casa Digital, apresentado pelo ex-coach Pablo Marçal, e cujo objetivo é ensinar aos participantes técnicas avançadas de marketing digital. “Foi uma oportunidade que a gente não podia perder”, diz o pai. O menino viajou de Rondonópolis a São Paulo para participar das gravações, ao lado de outros onze menores de idade. “Boto mais fé em vocês do que neles [os adultos]”, disse Marçal em um dos blocos do programa intitulado “Conversa com os juvenis”. O ex-coach é atento às novas gerações e publicou, em 2022, o livro Como fazer um milhão antes dos 20, escrito em colaboração com o influenciador digital Marcos Paulo.

Algumas portas se abriram desde então para o menino, que se apresenta como “filho do Deus vivo, palestrante, influencer, escritor e investidor”. Recentemente, palestrou em um evento organizado por Marçal e, segundo o pai, pintaram oportunidades de negócios. A família agora está de mudança para Barueri (SP), esperançosa de conseguir algum dinheiro com o mercado financeiro e o marketing digital. O objetivo maior, diz o pai, é que o menino fature o primeiro milhão antes dos 18. Depois se corrige: o garoto “já é milionário”. Faltam zeros na conta, mas, segundo ele, ser milionário é antes de tudo um estado de espírito.

Renata Tomaz, professora da Fundação Getulio Vargas (FGV) que há mais de dez anos estuda a presença de crianças e adolescentes na internet, diz ter uma percepção pouco otimista sobre o tema. “Eu via crianças produzindo visões de mundo e discutindo questões muito importantes. Usando a rede como instrumento para se fazerem vistas.” Uma paisagem mais colaborativa e com potencial educativo, que foi completamente transformada pela plataformização da internet e a introdução do algoritmo. Para Renata, a rede permitia, lá atrás, uma “produção social da infância” mais ativa. “Hoje o que temos é um terreno privado, com um modelo de negócio ao qual todos os usuários tiveram que se submeter.”

Nas pesquisas que conduziu com meninos e meninas, Tomaz diz ter ouvido uma dezena de vezes a frase: “Eu não preciso crescer para fazer dinheiro.” Ela conta de adolescentes que, por volta dos 15 anos de idade, sonham construir impérios milionários vendendo cursos e investindo na Bolsa de Valores. Alguns já se portam como empresários bem-sucedidos, na roupa e no jeito de falar. É o que na antropologia se denomina “imitação prestigiosa” – a forma pela qual as pessoas constroem sua própria imagem e comportamento nos moldes daqueles que admiram.

“Crianças sempre tiveram a capacidade de identificar, em quaisquer contextos, figuras dignas de prestígio”, diz Tomaz. Para quem vive colado no feed do Instagram e no YouTube, essas figuras frequentemente são coaches e influenciadores que ostentam apartamentos luxuosos, carros possantes e uma vida, em suma, invejável. Eles ocuparam, no imaginário de muitas crianças, o espaço de idolatria que antes era reservado a jogadores de futebol.

Até certo ponto, são crianças fazendo o que sempre fizeram. A diferença está no alcance das redes sociais, que não apenas expõem (e por vezes remuneram) a meninada que cria conteúdo como abrem brechas para todo tipo de transação financeira. “O trabalho infantil continua proibido no Brasil”, diz Cíntia Burille, advogada especializada em questões da infância e da adolescência. Ela vê com preocupação a liberdade que pais e responsáveis têm dado aos filhos na internet. Não apenas pela exposição que as crianças sofrem, mas por elas se envolverem numa operação comercial. “Esses influenciadores se enquadram perfeitamente na ideia de trabalho infantil, o que é vetado por nosso ordenamento jurídico.”

Burille acha, contudo, que a responsabilidade maior por esse problema é das big techs, que estabelecem regras frouxas para o cadastro de crianças e pouco fiscalizam seu cumprimento. Nas principais redes (Instagram, TikTok e Facebook), é exigido apenas que o usuário tenha 13 anos ou mais. “A gente sabe que são inúmeros os perfis de crianças com idades inferiores a 13 anos, até de recém-nascidos”, diz Burille. “Tenho um posicionamento bastante firme de que as redes sociais não só podem, como, na verdade, devem ser responsabilizadas.”

À piauí, a Meta afirmou por meio de nota que contas de pessoas menores de 13 anos devem ser administradas pelos responsáveis e isso deve ser sinalizado na bio – o campo em que os usuários geralmente se apresentam. Não é o caso de vários perfis de crianças encontrados pela reportagem. A piauí criou um perfil-teste no Instagram e informou ter mais de 13 anos; em nenhum momento a plataforma exigiu comprovação da idade. Ainda segundo a Meta, “todo conteúdo deve ser compartilhado pelos responsáveis em nome do menor, e não na voz ou na perspectiva do menor” – o que, novamente, nem sempre acontece. A empresa disse ter restringido as ferramentas de monetização disponíveis para os menores de 18 anos: “Isso significa que essas contas não podem oferecer assinaturas, receber presentes ou selos.”

Mas quem quer encontrar outros caminhos. O influenciador paulistano de 17 anos que promoveu o encontro de jovens no Morumbi, em janeiro, cadastrou seu curso de marketing digital na Kirvano, uma plataforma de vídeos. A empresa veta, em tese, que crianças com menos de 13 anos façam compras na plataforma; para vender conteúdo, então, só quem tem mais de 18. Mas lá está o curso do rapaz, apresentado por ele e dois colegas, todos menores de idade (se venderam tantas assinaturas quanto dizem que venderam, já embolsaram quase 2 milhões de reais burlando as regras). É possível supor que os compradores tenham a mesma idade do trio ou sejam mais jovens. A piauí pediu esclarecimentos à Kirvano, mas não obteve resposta.

O rapaz não escolheu fazer o evento no Morumbi por acaso. Gosta de frequentar o bairro, reduto histórico da elite paulistana onde, um dia, funcionou uma grande fazenda de café. Embora passe hoje por um processo de desvalorização, o bairro “cheira a prosperidade”, conforme disse um de seus amigos, num vídeo que gravaram recentemente. No Morumbi, o trio montou um escritório onde grava aulas e podcasts sobre marketing digital, eventualmente com a participação de convidados. “Fuja do ambiente de pobre, esteja onde os ricos estão”, eles ensinam em diferentes postagens.

Com base na sua experiência pessoal, o influenciador mirim não tem dúvidas: “Se colocar empreendedorismo no lugar, sei lá, de reação química ou de alguma fórmula matemática nas escolas, a pobreza no Brasil será reduzida em 90%.” Convicto disso, no último 12 de outubro abordou crianças em um shopping de São Paulo e as presenteou com livros, como Os segredos da mente milionária. Acredita conter ensinamentos que transformarão suas vidas.

 

Calor extremo e desigualdades, por Márcia Castro

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O mundo anda para trás com as recentes decisões do governo dos EUA

Márcia Castro, Professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard.

Folha de São Paulo, 15/02/2025

Em julho de 2024, após a temperatura média global diária ter atingido um novo recorde, o secretário-geral da ONU, António Guterres, declarou que bilhões de pessoas no mundo estavam enfrentando uma epidemia de calor extremo.

Notícias sobre calor extremo são constantes.

Em 2024, o ano mais quente já registrado, 111 cidades do Brasil tiveram temperaturas acima da média por cerca de 150 dias, afetando mais de 6 milhões de pessoas. O município de Melgaço, no Pará, teve 228 dias com calor extremo.

Recentemente, o Rio Grande do Sul registrou temperaturas extremamente altas (acima de 40°C). O início das aulas teve que ser adiado já que apenas 1 em cada 4 escolas estaduais tem aparelhos de ar-condicionado.

No Brasil, apenas 70% das salas de aula nas escolas públicas eram climatizadas. Importante ressaltar que vários estudos mostram uma redução na atenção e no desempenho escolar devido ao calor extremo.

Os efeitos na saúde são marcantes. Entre 2000 e 2019, cerca de 489 mil mortes relacionadas ao calor ocorreram a cada ano no mundo. Considerando apenas as pessoas com mais de 65 anos de idade, a mortalidade relacionada ao calor aumentou aproximadamente 85% entre os períodos de 2000-2004 e 2018-2022. Na América do Sul, o número de mortes relacionadas ao calor aumentou 160% entre os períodos de 2000-2004 e 2017-2021.

No Brasil, entre 2000 e 2018, estima-se que quase 50 mil mortes foram atribuídas às ondas de calor. Durante o mesmo período, foi observado maior risco de morte na Amazônia durante períodos de onda de calor, especialmente as mais intensas.

Esses efeitos, entretanto, afetam desproporcionalmente algumas áreas e grupos populacionais. Ilhas de calor urbano, com pouca vegetação e dominadas por asfalto retêm o calor. Em áreas de habitação precária, com populações vivendo em condições de vulnerabilidade, crianças têm maior probabilidade de frequentar escolas sem ar-condicionado e famílias estão mais expostas aos efeitos do calor.

Além disso, idosos, mulheres, mulheres grávidas, lactentes, crianças pequenas, pessoas com problemas de saúde pré-existentes (incluindo saúde mental e pessoas com deficiência), pessoas que trabalham ao ar livre, aqueles em funções fisicamente exigentes ou que trabalham em ambientes internos sem ventilação também sofrem de forma desproporcional.

O impacto social e econômico é enorme. Os efeitos do calor extremo afetam o capital humano e, portanto, o potencial de desenvolvimento econômico, agravando as desigualdades existentes.

Em 2024, a cidade do Rio de Janeiro foi pioneira ao lançar o Protocolo de Enfrentamento ao Calor Extremo, que estabelece cinco níveis de calor e ações especificas a serem tomadas em cada nível.

Um estudo recente estima que, no nível mais severo (temperaturas acima de 44°C por pelo menos duas horas por dia), há um aumento de 50% nas mortes por diabetes, insuficiência renal e hipertensão na cidade do Rio de Janeiro.

Mitigar os efeitos do calor extremo demandam ações globais e locais.

Globalmente, o mundo anda para trás com as recentes decisões do governo dos EUA.

Localmente, as ações incluem a melhoria das condições das cidades e escolas. Acima de tudo, ações concretas implicam na redução das desigualdades.

 

Americanos vão aprender que importação é vida, por Rodrigo Zeidan

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Enquanto isso, vamos continuar sem importar para proteger indústrias locais; que não exportam

Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Folha de São Paulo, 15/02/2025

O que é melhor para uma sociedade, que um país seja exportador ou importador líquido de produtos? Se você respondeu que é melhor exportar, está errado, por mais contraintuitivo que pareça. Países ricos tendem a importar mais. Nem todo país rico é importador líquido, mas muitos países que consistentemente apresentam déficits comerciais são ricos.

Ou seja, a sanha de Trump para reduzir o déficit americano não faz sentido. Por exemplo, três quartos das importações mundiais são de produtos intermediários e equipamentos necessários para aumentar a produção local. Tarifas reduzem a produção total. Por exemplo, as tarifas de aço de Bush em 2002 e 2003 reduziram exportações e empregos, de acordo com publicação de Lydia Cox. Essas tarifas não funcionam no Brasil, nos EUA, na China, ou em Marte. As tarifas sobre aço e alumínio no primeiro governo Trump geraram mil empregos diretos no setor, mas destruíram 75 mil empregos nas indústrias manufatureiras americanas. Um desastre. O mercantilismo barato de Trump é estupidez. Reciprocidade brasileira seria outra.

Usamos estratégias parecidas e nos ferramos. O país exporta commodities e importa manufaturados exatamente por taxar importações demais, resultado da estratégia de substituição de importações acelerada pelos militares na década de 1970. No passado, ela ajudou a nos jogar na hiperinflação. Como vários governos não mudaram muito isso, pois nada é mais forte que pressão de indústrias subsidiadas, somos o país mais fechado para o comércio.

Os Estados Unidos da América Latina estão seguindo a mesma cartilha dos militares brasileiros e da Cepal (quem disse que direita e esquerda não concordam em algo?). Ao cortar importações para subsidiar as indústrias locais, governos jogam exportações no buraco.

No Brasil, precisamos ser exportadores líquidos para contrabalançar a saída de capital de outras fontes, mas isso não significa que seria o ideal. Importamos o que não fabricamos bem, o que liberaria recursos da sociedade para exportar mais. Quanto mais crescemos, mais importamos e exportamos.

Na década de 1980, o Brasil transacionava mais que a China. As exportações chinesas chegaram a US$ 100 bilhões em 1994, enquanto no Brasil isso só aconteceu em 2004. Hoje? Os chineses exportam o equivalente a R$ 20 trilhões, dez vezes mais que o Brasil (R$ 2 trilhões). Importações? R$ 15,3 trilhões, ante R$ 1,57 trilhão no nosso fechado mercado.

Enquanto mantivermos extensas políticas protecionistas, estaremos às margens das cadeias globais de valor. É por isso que na China política industrial tem chance de dar certo. Lá, subsidiam-se indústrias (não empresas) e esses subsídios são temporários, voltados para setores com capacidade exportadora. Não exportou? Quebra-se. Hoje, são mais de 130 montadores de veículos elétricos no país. Em 2030, devem ser 17. As outras vão quebrar ou serão engolidas. Esse é o capitalismo chinês, no qual o jogo não é processar outras empresas por vender mais barato, como a Anfavea quer fazer no Brasil. A BYD não quer chutar a Tesla da China, quer vencê-la.

Os americanos vão aprender que importação é vida. Enquanto isso, vamos continuar sem importar para proteger indústrias locais. Que não exportam. E continuaremos sem sair do lugar.