Aperto monetário

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Ontem o Banco Central do Brasil (BCB) elevou as taxas de juros para a economia brasileira de 11,25% para 12, 25%, um crescimento de 1 ponto percentual, com impactos imediatos para a economia nacional, impactando os investimentos e a geração de emprego e de renda.

Segundo o Banco Central, o crescimento da taxa de juros brasileira está diretamente ligado aos riscos fiscais que estão crescendo de forma acelerada, levando a Autoridade Monetária a adotar políticas imediatas para evitar o estouro das metas inflacionárias.

Nas últimas semanas percebemos que os valores do dólar aumentaram substancialmente, gerando pressões sobre os preços internos e impactando sobre a inflação, movimentando as especulações e os ganhos dos agentes econômicos.

Importante destacar, que os movimentos cambiais estão ligados às movimentações do mercado norte-americano, perspectivas de elevação dos juros nos Estados Unidos que absorvem grande parte do dólar no mercado global e impacta sobre todas as regiões, internamente somos muito prejudicados em decorrência, segundo o “mercado”, dos desequilíbrios fiscais da sociedade brasileira.

Essa discussão está marcada por fortes politizações da economia brasileira, muitos grupos usam seus instrumentos econômicos e políticos para pressionar o governo para aumentar as taxas de juros, destacando que os riscos fiscais são elevados e o governo precisa rever suas estruturas de gasto, reduzindo seus empenhos e organizando as finanças públicas, sob pena de ver os juros futuros em amplo crescimento e inviabilizando a política econômica.

Para equilibrar o orçamento o governo precisa de uma força tarefa para controlar os gastos governamentais, um auxílio do Congresso Nacional e setores representativos da Justiça nacional, mas infelizmente, como o governo federal não dispõe de apoio necessário para organizar as contas e, os setores citados acima, usam seus poderes para prejudicar o controle das contas públicas, evitando a redução de seus gastos e chantageando o governo nacional, mantendo seus ganhos e aumentando-os sorrateiramente,  transferindo para o governo federal o ônus da piora das contas fiscais.

De outro lado, encontramos grupos de economistas e analistas, que acreditam que a situação é ruim para a economia nacional, com taxa de crescimento econômico interno baixa e postergando a recuperação dos setores produtivos, situação que permitiria o aumento da geração de emprego e a melhora substancial da renda agregada. Na situação atual, com taxas de juros mais elevadas, percebemos uma retração dos investimentos produtivos e postergando a recuperação da economia brasileira.

Estes grupos acreditam que o movimento do mercado tem o intuito fragilizar a política econômica e inviabilizar a melhora da economia nacional nos próximos anos do governo Lula, evitando uma reeleição ou, até mesmo, inviabilizando um candidato defendido pelo atual Presidente da República.

Quando falamos de corte de gastos estamos entrando numa seara espinhosa, o chamado mercado defende a redução dos dispêndios sociais, com cortes do Benefício de Prestação Continuada (BPC), o Abono salarial, as multas do FGTS, dentre outros dispêndios sociais. Nesta conta, o chamado mercado não coloca uma progressividade dos impostos, se esquece da tributação dos lucros e dividendos, uma excrescência que existem em apenas três nações do mundo, e servem para garantir os altos rendimentos do andar de cima.

Deixando de lado as discussões econômicas, as taxas elevadas tendem a reduzir os investimentos e esfriar a economia nacional no próximo ano, postergando novos investimentos internos e elevando os ganhos das aplicações financeiras, gerando ganhos substanciais para poucos grupos econômicos, os chamados rentistas ou os financistas.

As taxas de juros cobradas no Brasil se colocam entre as mais altas do mundo, algo ruim para a economia nacional, neste momento, somos detentores da maior taxa de juros do mundo, estimulando gastos substanciais do orçamento público em prol do rentismo, além de contribuírem negativamente para os indicadores degradantes que vivemos na sociedade brasileira, piora social e dificuldades crescentes de recursos das políticas públicas.

Num momento de recuperação econômica, onde os agentes econômicos que mantinham recursos em caixa estudavam aumentar os investimentos produtivos para aumentar a capacidade de suas empresas, com taxas de juros elevadas os empresários repensam suas estratégias de gestão, pois sabem que juros elevados geram incertezas na produção e leva os agentes a colocarem seus recursos econômicos e financeiros em títulos públicos, cujos retornos rendimentos são muito elevados e evitam perdas dos setores produtivos.

Destacamos ainda, que cada ponto percentual de aumento nas taxas de juros da Selic, definidas pelo Banco Central, correspondem a mais de 30/40 bilhões de reais de gastos do governo federal, recursos que pioram as contas governamentais e postergam a recuperação e o crescimento da economia nacional.

Mais uma vez, estamos vendo, o Brasil perdendo oportunidades históricas de alavancar o crescimento interno, com taxas de juros civilizadas, novas ondas de investimentos produtivas e perspectivas produtivas que culminariam no tão sonhado desenvolvimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel de Ciências Econômicas, Especialista em Economia do Setor Público, Mestre e Doutor em Sociologia.

Brutalidade policial pode pavimentar o caminho das milícias em SP, por Ricardo & Risso

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Exemplo vem do Rio de Janeiro, onde o descontrole das polícias faz parte de uma estratégia de lealdade da tropa para a manutenção do poder político

Carolina Ricardo, Diretora-executiva do Instituto Sou da Paz

Melina Risso, Diretora de pesquisa do Instituto Igarapé

Folha de São Paulo,11/12/2024.

A série de casos protagonizados por policiais militares de São Paulo que chocaram o país é resultado direto do modelo de gestão escolhido e implementado pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos). Os cidadãos paulistas precisam entender que estão seguindo o caminho da segurança pública do Rio de Janeiro, onde uma polícia sem controle ajudou a criar as milícias, fortaleceu o crime organizado e sustenta um tipo de política.

A atual orientação, que incentiva a brutalidade, resultou no maior índice de letalidade da PM de São Paulo desde 2020: 580 pessoas mortas em nove meses, segundo a própria Secretaria da Segurança Pública —um aumento de 55% ante o mesmo período de 2023. Com o aumento, o índice se equiparou ao dos anos em que a PM paulista não contava com as câmeras acopladas no uniforme, instrumento valioso para profissionalização da segurança e que comprovadamente previne excessos cometidos por policiais.

Nada do que vimos nos últimos episódios pode ser considerado como “exceções”. Ao contrário: dizem muito sobre a escolha deliberada de uma cultura de valorização da violência policial. O desmonte da estrutura de promoção nas polícias paulistas; a troca sem explicação de 34 coronéis na cúpula da PM; a criação de uma nova ouvidoria, sem independência; a orientação por ações midiáticas; e a falta de apoio psicológico aos policiais são evidências do aceno feito para a banda podre da polícia que venderá seu apoio político em troca da instalação da lógica do vale-tudo.

Vale até mesmo jogar um suspeito de uma ponte durante uma abordagem policial de rotina ou matar uma criança de 4 anos durante uma operação policial. Quando se valoriza esse tipo de ação, quem sofre são os bons policiais que entraram na corporação para defender a sociedade, com índices crescentes de suicídio e de vitimização.

Foram muitos os indicativos de que a mudança de rumo era urgente e necessária. Ao reconhecer seu erro em relação às corporais, o governador Tarcísio precisará provar que a mudança de posição não é mero oportunismo e sim convicção. Sem uma decisão política de que é importante controlar o uso da força e profissionalizar as polícias com medidas de tolerância zero para desvios, pouco adiantará colocar uma câmera no policial.

Os bons resultados que São Paulo vinha obtendo eram fruto de um conjunto amplo de medidas, como o investimento em armas menos letais, a criação de comissões de mitigação de risco, apoio psicológico a policiais, treinamento sistemático e, não menos importante, o envolvimento da cúpula da Segurança Pública no programa e na difusão de uma cultura de contenção ao uso desproporcional da força.

No Rio, o descontrole das polícias faz parte de uma estratégia de lealdade da tropa para a manutenção do poder político, seja por meio do expressivo voto da família policial ou do controle territorial que garante o curral eleitoral.

A economia política da violência criada pela lógica do vale-tudo se misturou ao crime organizado e hoje opera em sintonia, beneficiando uma determinada classe política em detrimento da segurança da sociedade.

Criar esse mecanismo é relativamente fácil, começa pela desestruturação das instituições. Ainda não sabemos como reverter o processo sem decretar a morte eleitoral dos que ousam fazê-lo.

Com ações movidas sob o espírito da aniquilação e da atenção midiática, como assistimos nas operações Escudo e Verão, São Paulo tem escolhido o modelo da vingança e da falta de controle das polícias. É assim que começa. Fica aqui o nosso alerta.

 

Ajuste fiscal

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Neste momento de grandes transformações estruturais da sociedade brasileira, marcadas pelo incremento da concorrência, alterações no mundo do trabalho, polarizações políticas, degradações ambientais, aumento dos conflitos militares, crescimento do protecionismo e incertezas econômicas, os agentes econômicos exigem, corretamente, um equilíbrio fiscal das contas públicas, com a definição de regras fiscais claras e consistentes para que os agentes produtivos tenham confiança nos rumos da economia nacional, estimulando novos investimentos produtivos, com geração de emprego e movimentando o ciclo econômico, evitando que o crescimento da economia sejam sustentável e consistente, não apenas um breve voo de galinha.

Ajuste fiscal é um tema complexo em todas as nações do mundo, gerando constrangimentos e conflitos na comunidade, suas repercussões impactam sobre toda a sociedade, diante disso, os agentes econômicos, sociais e políticos se organizam para evitar perdas monetárias e financeiras, buscando justificar as isenções e garantindo apoio dos legisladores e dos governos nacionais, mantendo seus privilégios e transferindo o ônus do equilíbrio fiscal para outros grupos econômicos e sociais

Diante da necessidade de controle dos gastos públicos e equilíbrio dos recursos, precisamos destacar a estrutura dos gastos governamentais, analisando em detalhes as origens dos recursos públicos que entram no caixa dos governos e para onde vão estes recursos, dando transparência dos recursos públicos, estudando a necessidade e a importância das políticas públicas, investigando as isenções fiscais e tributárias e as chamadas desonerações.

Neste cenário de ajustes das contas públicos, encontramos um verdadeiro conflito distributivo entre todos os setores da economia, onde grupos mais fortes e dotados de grande poder monetário e força política se utilizam de seus instrumentos para perpetuar seus ganhos financeiros e exige que os governos retirem recursos dos setores mais fragilizados da comunidade, se “esquecendo” dos bilhões acumulados historicamente em isenções fiscais e tributárias, além dos privilégios auferidos pelo sistema tributário nacional que não tributa lucros e dividendos, garantindo ganhos substanciais e aumentando as distorções sociais e, infelizmente, tributa fortemente uma classe média assalariada, endividada e incapaz de estimular o crescimento da economia.

O ajuste fiscal deve ser visto como algo imprescindível para todas as nações do mundo, ainda mais num momento marcado por grandes desequilíbrios financeiros globais e o incremento da competição entre empresas e governos nacionais para atraírem mais investimentos produtivos e a geração de emprego e a sobrevivência de seus trabalhadores de forma mais digna e decente. O ajuste fiscal deve priorizar os grupos mais privilegiados na sociedade, forçando os setores a pagarem seu quinhão do equilíbrio fiscal, reduzindo os penduricalhos salariais que garantem ganhos substanciais e sem tributação adequada, reduzindo os bilhões de isenções fiscais e tributárias de empresas e setores que, sistematicamente, cobram dos governos um ajuste nas contas públicas e não abrem mão de suas isenções tributárias e seus ganhos fáceis garantidos pelas taxas de juros elevadas praticadas pela Autoridade Monetária. Discutir ajuste fiscal e taxa de juros são assuntos urgente e imprescindível mas, receio que nossa sociedade não esteja capacitada para entrar a fundo nesta discussão, como disse Jean-Paul Sartre: “O inferno são os outros”…

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia do Setor Público, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor universitário.

O mito do desenvolvimento econômico – 50 anos depois, por Leda Paulani

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Introdução à nova edição do livro “O mito do desenvolvimento econômico”, de Celso Furtado

Leda Paulani – A Terra é Redonda – 03/12/2024

Se há um traço distintivo na obra de Celso Furtado é a ideia de que não havia restrições objetivas para que o Brasil se tornasse um país forte, soberano, senhor de seu destino, com economia e cultura próprias e com um lugar ao sol no comando dos rumos mundiais. Mas, nele, isso nunca foi reflexo de um imaginário nacional grandioso, mas vazio, que se escorava preguiçosamente na fantasia do “país do futuro”.

Ao contrário, sua percepção embasava-se na análise que fazia do processo socioeconômico que ocorria por aqui, análise fundamentada teoricamente, colocando sempre como pano de fundo a conexão da economia brasileira com o andamento da acumulação de capital em nível mundial. Celso Furtado era um economista político. Mas, mais que isso, era um militante, que nunca deixou de lutar para que essa esperança se objetivasse e foi nessa condição que ocupou importantes cargos em vários governos. Constituiu-se, por isso, num intérprete privilegiado das venturas e desventuras desta periferia.

Mas, para falar cinquenta anos depois deste pequeno grande livro chamado O mito do desenvolvimento econômico, quero trazer à baila uma questão um tanto rarefeita e, à primeira vista, distante, tanto do tema do livro como do propósito de escrever sobre ele meio século depois. Refiro-me à questão metodológica, ou metateórica, ou epistemológica, como queiram. Para mostrar em que medida este livro pode ser entendido como um esforço singular de interpretação, é preciso considerar não só que Celso Furtado era um economista político, e que teve possibilidades concretas, como homem de Estado, de apurar ainda mais suas análises.

É preciso levar em conta também o que significava para ele o processo de produção do conhecimento, sobretudo no campo das ciências sociais. O desvio não será muito grande, não só porque o próprio livro traz também um ensaio metodológico, o que indica a importância que Furtado conferia ao tema, como porque, dado seu objeto, a reflexão mesma em torno da questão metateórica nos trará rapidamente de volta ao mito do desenvolvimento econômico.

Apesar de haver muito dessa discussão em sua tríade autobiográfica, [1] valho-me aqui, para tanto, de uma entrevista que tive o privilégio de fazer com ele em 1997, e de onde se extraiu um depoimento que foi publicado na revista Economia Aplicada, [2] então do ipe-usp. [3] Naquela tarde, passada no Rio de Janeiro, em conversa com o grande economista, que impressionava por sua figura intensa e forte, mas igualmente serena, ouvi que ele tivera três ordens de influência: a do positivismo (ele tinha uma biblioteca positivista em casa, segundo informou), que lhe permitiu adotar uma sorte de “metafísica construtiva” que lhe trouxe confiança na ciência, a de Marx, através da sociologia do conhecimento de Karl Mannheim, que o projetou na história, e, por meio de Gilberto Freyre, a da sociologia americana, que o alertou para a importância da dimensão cultural e do relativismo que daí deriva.

Das três fontes de influência, disse que a primeira depois refutou, porque foi perdendo a confiança na ciência. O que permaneceu muito forte nele foi o “historicismo” de origem marxiana, ou seja, a percepção de que a história é o contexto que envolve tudo e que dá ao homem um marco de referência para pensar. Para ele, “quem não tem esse pensamento histórico, não vai muito longe. Isso é o que separa um pensador do economista moderno, que pretende ser um engenheiro social”. Na mesma linha, ele vai afirmar pouco mais à frente que “a economia vai se tornando uma ciência cada vez mais formal, que é exatamente a negação da ciência social”.

De toda forma, a combinação das três heranças resultou numa visão da produção do conhecimento sobre o mundo social que, além da inescapável consideração da história, associa ao necessário saber teórico e analítico também a imaginação. Para ele, a ciência se constrói, em grande parte, por aqueles que, confiantes em sua imaginação, são capazes de, empurrados pela intuição, ultrapassar determinados limites.

Para Celso Furtado, toda a teorização que se construiu, a partir da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), entre os anos 1950 e 1970, sobre a singularidade latino-americana foi resultado dessa postura: “Acredito que o passo a mais que nós demos na América Latina foi justamente este: imaginamos que éramos capazes de identificar os nossos problemas e de elaborar uma teoria para eles, ou seja, imaginamos que havia uma realidade latino-americana, uma realidade brasileira, e então o fundamental aí tinha que ser captado dessa realidade”. O mito do desenvolvimento econômico é igualmente resultado desse espírito.

Além da imaginação, há ainda outro elemento apontado por Celso Furtado como essencial. Segundo ele, é preciso ter compromisso com alguma coisa, ou seja, se o objeto cujo conhecimento se busca é a realidade social, o diletantismo não é suficiente para que a imagem de atividade nobre que a ciência carrega tenha efetividade: “A ciência social tem que responder às questões colocadas pela sociedade […], não podemos nos eximir de compromissos mais amplos, porque há muitas áreas que não merecem atenção da ciência, e são áreas vitais”. Assim, por mais que haja consciência dos limites ao desenvolvimento do conhecimento que lhe são intrínsecos, ou seja, criados pela própria sociedade, é preciso insistir na produção de uma ciência social pura, que não seja refém de interesses e clientelas específicos. Mas não é fácil, ele avisa.

Para o próprio Celso Furtado, no entanto, isso nunca foi um problema. O mito do desenvolvimento econômico, escrito num momento em que se entoavam loas ao dito “milagre econômico” – seis anos de crescimento a taxas que hoje diríamos “chinesas” –, não se deixou seduzir pelo clima de euforia (construído, ademais, sob as botas dos militares).

Considerado o momento de seu nascimento, não foi pouca coisa, em meio a tanto ufanismo, adentrar a cena um livro que insistia em que, para países periféricos como o Brasil, o desenvolvimento econômico, se entendido tão somente como a possibilidade de os países mais pobres alcançarem em algum momento o padrão de vida dos países centrais, era um mito; mais ainda, um mito que se configurava como “um dos pilares da doutrina que serve de cobertura à dominação dos povos dos países periféricos”. Seu compromisso com o país obrigou-o a dizer que era melhor ir devagar com o andor, escapar de objetivos abstratos, como o puro e simples “crescimento”, e realizar a tarefa básica de identificar as necessidades fundamentais do coletivo.

E com isso chegamos ao livro objeto deste prefácio, não sem antes enfatizar que ele jamais teria sido escrito se a pena que o redigiu tivesse por dono um economista convencional, que elabora seus modelos sem pudor, alheio à história e às carências de seu país, esquecendo-se, como disse Celso Furtado na citada entrevista, “que a ciência social se baseia na ideia de que o homem é, antes de tudo, um processo, não é um dado, uma coisa inerte”.

São quatro os ensaios que compõem o livro. O primeiro, o mais longo e então inédito, cuja quinta e última seção fornece o nome da obra, versa sobre as tendências estruturais do sistema capitalista na fase de predomínio das grandes empresas. A seu lado vão mais três peças: uma reflexão sobre desenvolvimento e dependência, que o próprio Furtado considera, na apresentação que faz, como o núcleo teórico dos demais, uma discussão sobre o modelo brasileiro de subdesenvolvimento e, por fim, o dito “ensaio metodológico”, no qual o autor, não por acaso, faz uma digressão sobre objetividade e ilusionismo em Economia.

O que conecta os quatro ensaios, para além de terem sido escritos entre 1972 e 1974 – período em que Celso Furtado atuou como professor visitante na American University (Estados Unidos) e na Universidade de Cambridge (Inglaterra) –, é o espírito militante do autor e sua inquebrantável disposição para analisar, alertar e apontar os descaminhos que ia tomando o desenvolvimento brasileiro, assentado em imensas desigualdades e delas dependente para ser “bem-sucedido”. Daí todo seu esforço de sustentar a análise na discussão sobre as tendências estruturais do sistema capitalista. Como pensar o desenvolvimento de um país periférico como o Brasil sem vinculá-lo ao plano internacional?

O objeto inicial de exame no ensaio que dá título ao livro é o estudo The Limits to Growth [Os Limites do crescimento], trabalho realizado por Donella H. Meadows, Dennis L. Meadows, Jorgen Randers e William W. Behrens em 1972, no Instituto de Tecnologia de Massachussetts (mit), nos Estados Unidos, para o Clube de Roma.

No estudo, que ficaria bastante famoso (traduzido para 30 idiomas, vendeu mais de 30 milhões de cópias) há aquilo que Furtado vai chamar de “profecia do colapso”. A tese central é que se o desenvolvimento econômico, nos moldes em que ia se dando nos países mais avançados, fosse universalizado, a pressão sobre os recursos não renováveis e a poluição do meio ambiente seriam de tal ordem que o sistema econômico mundial colapsaria.

Celso Furtado discorda da tese, não por divergir da questão em si, isto é, do problema causado pelo consumo exacerbado de recursos não renováveis e da deterioração ambiental que daí advém. Ao contrário, chega mesmo a dizer que “em nossa civilização, a criação de valor econômico provoca, na grande maioria dos casos, processos irreversíveis de degradação do mundo físico”, e que, portanto, é preciso reconhecer “o caráter predatório do processo de civilização, particularmente da variante desse processo engendrada pela revolução industrial”.

Sua discordância deriva do pressuposto da tese, a saber, que o desenvolvimento era um processo de tipo linear, pelo qual passariam todos os países, de modo que, em algum momento da história, todos teriam o mesmo tipo e o mesmo nível de desenvolvimento então em vigor nos países centrais. Para nosso autor, a tese, totalmente equivocada, se chocava com aquela que ele considerou, na entrevista, como “a contribuição mais importante que dei à teoria econômica”, qual seja, sua teoria do subdesenvolvimento, que ele desenvolvera uma década antes. Se o subdesenvolvimento era, não uma etapa, mas um tipo específico de desenvolvimento capitalista, a tese linear estava descartada por definição, o que tornava pouco realista a profecia do colapso.

Muito marcado pelo que ia se dando no Brasil, Celso Furtado concluíra que, dada a divisão internacional do trabalho, consagrada com a consolidação do capitalismo, passaram a existir estruturas socioeconômicas em que o produto e a produtividade do trabalho crescem por mero rearranjo dos recursos disponíveis, com progresso técnico insignificante, ou, pior ainda, por meio da dilapidação de reservas de recursos naturais não reprodutíveis. Assim, o novo excedente não se conectava com o processo de formação de capital, tendendo tais economias a se especializarem na exportação de produtos primários.

Todavia, para Celso Furtado, mais do que a tendência à produção de bens primários, sobretudo agrícolas, o que estabelecia a linha demarcatória entre desenvolvimento e subdesenvolvimento era a orientação dada à utilização do excedente engendrado pelo incremento de produtividade. Nessas economias, de fraca formação de capital, o excedente, transmutado em capacidade para importar, permanecia disponível para a aquisição de bens de consumo. Assim, era pelo lado da demanda de bens de consumo que tais países se inseriam mais profundamente na civilização industrial.

A industrialização por substituição de importações, quando surge, pelas mãos de subsidiárias de empresas dos países cêntricos, acaba então por “reforçar a tendência para a reprodução de padrões de consumo de sociedades de muito mais elevado nível de renda média”, resultando daí “a síndrome de tendência à concentração de renda, tão familiar a todos os que estudam a industrialização dos países subdesenvolvidos”.

A esse traço, que, no segundo ensaio do livro, Celso Furtado relaciona com aquilo que chama de “dependência cultural” (sobretudo das elites), ele associa as características tomadas pelo processo de acumulação naquele momento, a saber, o fato de serem as grandes empresas internacionais a dar-lhe o tom. Entre essas características, o domínio dos oligopólios (com os padrões de consumo se homogeneizando no plano internacional), operações em centros de decisão que escapam ao controle dos governos nacionais, e uma tendência à construção de um espaço unificado de atuação capitalista.

Nesse contexto, os países periféricos, em meio à industrialização por substituição de importações, verão um processo de agravamento de suas disparidades internas. Ao utilizarem tecnologia em geral já amortizada, as grandes empresas oligopólicas conseguiam superar o obstáculo produzido pela incipiente formação de capital, mas industrializavam a periferia perpetuando o atraso cifrado na desigualdade. Sem o dinamismo econômico do centro do sistema, caracterizado por permanente fluxo de novos produtos e elevação dos salários reais, o capitalismo periférico, em contraste, “engendra o mimetismo cultural e requer permanente concentração de renda”.

Em poucas palavras, para Celso Furtado, a evolução do sistema capitalista que ele presenciara caracterizava-se por “um processo de homogeneização e integração do centro, um distanciamento crescente entre o centro e a periferia e uma ampliação considerável do fosso que, na periferia, separa uma minoria privilegiada e as grandes massas da população”. Daí porque a profecia do colapso não tinha condições de vingar, já que o padrão de vida dos países do centro jamais se universalizaria na periferia do sistema.

O Brasil, com sua expressiva dimensão demográfica e um setor exportador altamente rentável, mostra Celso Furtado no terceiro ensaio do livro, tornara-se um caso de sucesso do processo de industrialização, mas não conseguira operar com as regras que prevalecem nas economias desenvolvidas, de modo que o sistema então criado foi espontaneamente beneficiando apenas uma minoria.

Feito esse rápido inventário das principais observações e análises de Celso Furtado, o que podemos dizer de O mito do desenvolvimento econômico cinquenta anos depois? É evidente que há um contexto datado na obra, por exemplo, quando nosso autor afirma que o privilégio de emitir o dólar “constitui prova irrefutável de que esse país exerce com exclusividade a tutela do conjunto do sistema capitalista”. Cinco décadas depois, ainda que o privilégio continue a existir, e tenha sido reforçado pela política de Paul Volcker, presidente do Federal Reserve, ao final dos anos 1970, a liderança americana tem estado sob permanente controvérsia, principalmente por conta da assombrosa evolução da China.

Da mesma maneira, considerada a forma como Celso Furtado faz sua análise, fica implícito que ele considerava ao menos a industrialização, ainda que não a superação do atraso, como algo que tinha se consolidado no Brasil, o que, sabemos hoje, não é verdade, dado o evidente processo de desindustrialização precoce sofrido pelo país.

Isso posto, porém, os acertos de Celso Furtado são de espantar. Nem é preciso considerar sua preocupação com o permanente desgaste dos recursos naturais, a inevitável poluição e o uso frequente de “vantagens comparativas predatórias”, sobretudo na periferia do sistema, que atravessa todo o livro, evidência máxima da correta sintonia em que operava a economia política furtadiana.

O que parece aqui mais importante mencionar é sua correta percepção quanto às tendências unificadoras do sistema capitalista. Note-se que estávamos em 1974, ainda bem longe, portanto, da queda do muro de Berlim e de se começar a falar em globalização, e mesmo assim ele afirma que “as tendências a uma crescente unificação do sistema capitalista aparecem agora com muito maior clareza do que era o caso na metade do decênio de 1960”.

Associada a isso, também a percepção precisa de que ia se formando ao longo do globo uma espécie de grande e única reserva de mão de obra à disposição do capital internacional, haja vista a facilidade com que as grandes empresas podiam evitar aumentos de salário, principalmente na periferia, deslocando os investimentos para áreas com condições mais favoráveis.

Contudo, o que é de fato mais assombroso é o acerto de seus prognósticos, feitos há cinquenta anos, quanto ao destino da modernização em curso no Brasil. Desde então até hoje, com um e outro alívio trazido por políticas sociais de alto impacto implantadas por governos populares, o atraso só fez transbordar. Esse esforço singular de interpretação não teria sido possível sem a compreensão que tinha Celso Furtado da verdadeira constituição do processo de produção de conhecimento do social, aliando à teoria e à percepção do caráter histórico dos fenômenos sob análise também a imaginação e o compromisso com a coletividade.

Na já citada entrevista, diz Celso Furtado: “Minha vida foi simultaneamente um êxito e uma frustração: um êxito pelo fato de que eu acreditei na industrialização, na modernização do Brasil, e isso se realizou; e uma frustração porque eu talvez não tenha percebido com suficiente clareza as resistências que existiam à consolidação mais firme desse processo, ou seja, que, a despeito da industrialização, o atraso social ia se acumulando”.

Não é preciso dizer mais, penso, sobre a importância de se voltar a ler hoje O mito do desenvolvimento econômico, reeditado boa hora.

*Leda Maria Paulani é professora titular sênior da FEA-USP. Autora, entre outros livros, de Modernidade e discurso econômico (Boitempo)

 

Individualismo

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Vivemos numa sociedade marcadamente individualista, o modelo econômico estimula a concorrência, os valores que comandam a sociedade capitalista internacional estão centrados nos valores do imediatismo, queremos mais e mais…. e não estamos nos atentando com as destruições estruturais que ameaçam os seres humanos e a vida em sociedade.

Neste mundo, marcado pelo consumo e pela acumulação, percebemos a degradação crescente do meio ambiente, a temperatura do planeta aumenta de forma acelerada, o clima está vivendo grandes alterações que impacta em todas as regiões do globo, nações dotadas de grandes vantagens comparativas na agricultura e da produção agrícola e mineral estão passando por mudanças extremas, o futuro está sendo marcado por grandes incertezas e grandes instabilidades.

A concorrência é sempre salutar desde que os agentes econômicos, sociais e políticos estejam concorrendo com todas as mesmas “armas”, desta forma podemos acreditar que os melhores tendem a ganhar, mas o que percebemos é uma história diferente, o discurso do mérito está difundido na sociedade, mesmo sabendo que vivemos numa sociedade altamente desigual, marcada pela exploração, pela escravização e pela corrupção que crassa parte substancial da sociedade.

Nesta mesma sociedade, a busca pelo prazer cresce de forma acelerada, os esforços cotidianos que anteriormente passavam pelos estudos e pelas reflexões teóricas, cursos superiores e qualificações constantes estão sendo substituídos por horas e mais horas na academia, nas clínicas estéticas , conversas com personal trainers e nas redes sociais, buscando mais e mais seguidores e uma curtida em uma foto extraordinária, os profissionais que antes eram referência para os jovens e para as crianças estão sendo alteradas por uma carreira de youtubers, influencers, etc… quais as contribuições para o progresso da sociedade mundial estas áreas tendem a trazer para formação humana?

Zygmunt Baumam alertou a sociedade sobre o mundo líquido, os amores líquidos, os medos líquidos, o mundo digital nos trazem vantagens e desvantagens elevadas, mas  precisamos, antes de mais nada, que os seres humanos necessitem agendar uma viagem para os seus sentimentos mais íntimos e pessoais, sem esta viagem individual estaremos construindo uma sociedade cada vez mais narcisista, imaturo e incapaz de compreender os grandes e verdadeiros desafios da sociedade contemporânea.

A psicanálise e seus predicados, por Vera Iaconelli

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Psicanálise evangélica, positiva, próspera e demais bizarrices revelam oportunismo, má-fé e ignorância sobre a teoria

Vera Iaconelli, Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “Manifesto Antimaternalista” e “Felicidade Ordinária”. É doutora em psicologia pela USP.

Folha de São Paulo, 04/12/2024

A psicanálise é um campo centenário de teorização, de pesquisa e de tratamento que não se encaixa nos moldes do ensino universitário. Uma vez que a análise do analista é seu esteio, as supervisões e a escrita, seu testemunho e não há certificado, a academia e o Estado não têm nada a dizer sobre suas formas próprias de transmissão.

A psicanálise tem sido atacada desde o dia um por propor escutar os pacientes cujos sintomas os psiquiatras eram incapazes de curar e, ao fazê-lo, reverter quadros incapacitantes. Não se tratava, obviamente, de uma escuta comum, dessas que temos com médico, padre, amigo ou professor. Freud, com sólida formação como neurologista, sabia de experiência própria como as falas de um doutor não surtiam efeito nesses casos.

Ele passou a escutar o sofrimento dos pacientes, submetidos tanto a formas de opressão e injustiça do campo social quanto às suas altas exigências inconscientes. Logo ficou claro que uma psicanálise que não considerasse o reconhecimento da alteridade como um valor absoluto, e que não defendesse a diversidade humana, não teria razão de existir.

Há mais de 80 anos, Lacan já denunciava que medicina, linguística, psicologia estão entre as áreas afins à psicanálise, mas não devem ser confundidas com ela.

E seguimos, dentro dessa tradição, escutando como os sujeitos se estruturam nos ambientes nos quais foram formados, como lidam com os acontecimentos que se apresentam e, principalmente, como encaram o fato estrutural de que somos todos castrados, limitados.

A psicanálise se debruça sobre inúmeros campos de fenômenos (alcoolismo, desemprego, parentalidade, suicídio…) sem que arrede o pé de ser o exercício da escuta de cada sujeito único diante desses fenômenos. Isso quer dizer que, a rigor, os estudos da psicanálise sobre o suicídio, sobre o alcoolismo ou sobre o desemprego se referem à forma como estudamos esses fenômenos e não a qualquer predicado da psicanálise, cuja única qualidade é escutar o inconsciente.

Se o leigo pedir uma dica de como separar o joio do trigo na oferta obscena de psicanalistas que vemos hoje nas redes, diria que qualquer um que apresente uma psicanálise com adjetivos e/ou certificada está realizando uma impostura. Psicanálise evangélica, positiva, próspera, enfim, essas bizarrices oportunistas só revelam ignorância sobre a teoria, oportunismo e má-fé.

Uma psicanálise do Evangelho, por exemplo, deveria ser aquela que estuda o que Freud demonstrou em “O futuro de uma ilusão”: o caráter alienante das crenças baseadas em dogmas. A ideia de positividade, outro exemplo, vai na contramão de toda a história do pensamento psicanalítico, que se baseia no reconhecimento do negativo como constituinte da subjetividade.

De todas as perseguições e ameaças que a psicanálise sofre desde sua criação – nazismo, fascismo, racismo, misoginia–, as investidas atuais têm sido as que mais arriscam descaracterizá-la.

Seguindo os passos de Freud e dos pós-freudianos, sabemos que a resistência a escutar o inconsciente é um fato estrutural, por isso não existe caminho suave para a formação do psicanalista. Mas as formas nas quais essa resistência se apresenta em cada época variam e devem ser continuamente mapeadas e combatidas.

 

Crescimento Econômico

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Apesar das dificuldades constantes das questões fiscais, a economia brasileira apresentou um crescimento de 0,9% no último trimestre, gerando sentimentos interessantes, uns grupos ressaltam o crescimento econômico do período de forma positiva, destacando a resiliência na estrutura produtiva nacional mesmo num ambiente marcado por grandes instabilidades e inseguranças.

De outro lado, percebemos grupos econômicos e políticos que acreditam que o crescimento econômico está diminuindo, perdendo tração, destacando a fragilização fiscal e que as perspectivas não são muito positivas, apostando que a economia nacional chegou no seu limite máximo e, se continuar crescendo, vai produzir impactos inflacionários que tendem a aparecer com maior força, levando o Banco Central a intensificar o incremento nas taxas de juros, reduzindo os investimentos produtivos, aumentando o desemprego e limitando a renda agregada, como força de reduzir os impactos sobre os preços.

Vivemos num momento de grandes incertezas, o tão sonhado crescimento econômico e a redução do desemprego, visto como muito positivo, tende a pressionar os preços relativos e a inflação cresce com maior rigor e intensidade, gerando pressões crescentes sobre o governo federal para adotar medidas mais profundas para encontrar o equilíbrio fiscal, reduzindo os repasses para os grupos mais fragilizados, esse grupo é visto como o grande responsável pelo retorno do presidente Lula ao governo numa eleição fortemente polarizada.

A economia brasileira apresentou indicadores que sinalizam um crescimento em torno de 4%, um número visto por muitos economistas ortodoxos como algo muito elevado para o potencial da economia nacional. Vivemos momentos de forte crescimento da demanda, motivado pelo consumo crescente e pelos investimentos em ascensão, que tendem a diminuir nos próximos meses, mostrando que para continuar crescendo e com redução no desemprego, precisamos aumentar os investimentos produtivos. Neste cenário, percebemos que, com as taxas de juros que temos , nosso crescimento tende a diminuir de forma acelerada, o chamado voo de galinha, que acontece com a economia nacional a muitas décadas.

 

Milei supera oposição e joga sozinho em 1º ano de governo, por Fabio Giambiagi

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 Em cenário de turbulências e oposição dividida, presidente pode ser divisor de águas na Argentina

Fabio Giambiagi, Economista especialista em finanças públicas e Previdência Social. Autor, entre outros, do livro “Tudo Sobre o Déficit Público: Um Guia Sobre o Maior Desafio do País Para a Década de 2020” (Alta Books).

Folha de São Paulo, 01/12/2024

[RESUMO] Javier Milei completa no dia 10 seu primeiro ano como presidente da Argentina, período marcado pelo início da implementação de um programa de corte de gastos e de diminuição estatal sem precedentes na história de seu país, frente a uma oposição peronista enfraquecida. Embora resultados até aqui exitosos em alguns indicadores inspirem prognósticos otimistas, ainda é cedo para dizer se a Argentina caminha mais uma vez para o desastre ou se Milei, figura folclórica cheia de bizarrices, levará o país a uma economia estável de livre mercado.

O variado conjunto de esquisitices que marcou a irrupção do presidente argentino Javier Milei na política fez com que muitas vezes fosse encarado apenas como uma figura folclórica. O objetivo deste artigo é mostrar como, a despeito de tais bizarrices, ele pode vir a se tornar um divisor de águas na história da Argentina, pela profundidade do ajuste e das reformas que vem tentando implementar.

A exemplo de Jair Bolsonaro, Milei é um personagem que desperta emoções intensas. Traçar uma avaliação isenta do seu primeiro ano de governo, portanto, é um desafio.

Tentarei, no restante deste texto, não cair nos extremos, tanto de quem diz que ele está liderando uma economia em “recuperação em forma de V”, como da postura da oposição peronista, que julga que ele está destruindo o país, esquecendo-se do que foram as últimas décadas da Argentina, cuja decadência, na verdade, começou na última Presidência de Juan Domingo Perón (1973-1974).

O ajuste

A base de toda a estratégia oficial é atingir e manter o tão almejado “déficit zero” nas contas públicas, ou seja, o equilíbrio entre receitas e despesas totais. Se o governo conseguir, seria realmente um feito notável que, mantido a longo prazo, marcaria um contraste completo em relação às décadas de desequilíbrio fiscal responsáveis pelas múltiplas crises econômicas argentinas desde o pós-guerra.

Por enquanto, esse resultado vem sendo conseguido, ao menos até outubro, graças a uma estratégia de “arrocho” da despesa —que, em quaisquer outras circunstâncias que não as da Argentina atual, teria levado os responsáveis por essa política à beira da destituição, por falta de condições para se manter no poder.

Entretanto, na Argentina de 2024, qual é o pano de fundo? Três governos anteriores fracassados (Cristina Kirchner, Maurpicio Macri e Alberto Fernandez), uma inflação em 2023 na casa de três dígitos anuais, um nível muito elevado de pobreza antes de Milei assumir, a oposição estraçalhada, e Fernandez suspeito de praticar corrupção e indiciado por agressão contra ex-primeira-dama.

Nesse contexto, Milei  reuniu absoluto em 2024 no campo da política com uma espécie de “cheque em branco” inicial da sociedade para fazer “o que fosse preciso” para cumprir a promessa de acabar com a inflação.

O seu governo então promoveu uma contração real do gasto, até outubro, de nada menos que 28%, na comparação com os mesmos meses do ano anterior, com reduções de 19% da despesa em benefícios previdenciários, de 30% em subsídios, de 68% nas transferências discricionárias para as províncias e de 78% no investimento público.

Isso levou o país não apenas a obter superávit primário nas suas contas, como inclusive a ter um pequeno superávit fiscal nominal nos primeiros dez meses do ano, mesmo incluindo os juros.

A repetição constante da expressão “no hay plata” para dizer “não” às demandas por mais despesas levou muitos analistas a admitir que o país está passando por uma “mudança de época”, uma espécie de novo zeitgeist em relação à cultura tradicionalmente estatista e gastadora da política argentina.

A dúvida, no caso, é se a sociedade suportará estoicamente esse rigor e premiará o presidente com uma vitória eleitoral nas eleições parlamentares de 2025 e na reeleição em 2027, ou se, no meio do caminho, não voltará a dar uma chance ao velho peronismo ressurgindo, mais uma vez, das cinzas.

Inflação

Em algumas entrevistas nos anos que antecederam a sua eleição, quando era presença constante em programas de televisão e de YouTube, Milei reconheceu que “a diferença entre um gênio e um louco é o sucesso”. Como ele trouxe elementos disruptivos positivos, mas, ao mesmo tempo, está longe de ser considerado uma pessoa que funciona dentro das condições normais de temperatura e pressão, a forma como passará à história argentina dependerá do que ocorrer com a inflação.

Se houver um “antes” e um “depois” da Presidência dele, como foi o caso do Plano Real aqui, será visto pelos livros como “o presidente que derrotou a inflação”, da mesma forma que FHC está associado à ideia de conquista da estabilidade.

Por outro lado, se a inflação, após uma queda temporária, voltar a subir, Milei ficará conhecido para sempre pelo título da biografia não autorizada que um jornalista lançou sobre ele em 2023, “El loco”. E o que foi que aconteceu com a inflação, até agora?

Os dados mostram uma queda muito expressiva da variação mensal dos preços depois de dezembro, quando Milei assumiu o governo. No começo de sua gestão, ele adotou uma maxidesvalorização que gerou um salto inicial da inflação, até então ligeiramente superior a 10% ao mês.

Na disputa política, o peronismo imputa os 26% de inflação de dezembro a Milei, mas é óbvio que, na guerra de narrativas, este joga a culpa no governo anterior, devido à forte expansão monetária durante a campanha eleitoral.

Depois disso, a taxa de variação mensal dos preços foi caindo seguidamente, com uma ou outra oscilação, para 21% em janeiro, 13% em fevereiro, 11% em março e assim sucessivamente, até menos de 3% em outubro.

O governo ainda se aferra ao poder de convergência relacionado com o crawling peg, minidesvalorizações diárias da taxa oficial, de 2% ao mês, que em 2025 será de apenas 1,4 %, com o que Milei aposta em obter uma inflação mensal de 1% a 1,5% ano que vem.

Para um país que parecia flertar com a hiperinflação, isso pode parecer detalhe, mas o problema é que a cada mês que a desvalorização nominal fica abaixo da inflação, a taxa de câmbio real se aprecia mais, o que inspira preocupações naturais acerca da competitividade da economia e do que poderá acontecer caso o governo deixe a taxa de câmbio flutuar livremente.

O que vai ocorrer com a inflação e com a taxa de câmbio está ainda em aberto, indo desde o otimismo do governo, que menciona chegar no futuro a uma mítica “inflação zero”, até as cassandras habituais da oposição.

Elas citam, semana sim e a outra também, com evidente frisson, os finais desastrosos de Alfonsín em 1989, De la Rua em 2001 e Macri tendo que pedir uma ajuda bilionária ao FMI para o país não quebrar em 2018.

Com essas lembranças presentes na memória do país, fazem menção ao “dia em que vai explodir tudo” —uma espécie de “tara” da política local, pouco acostumada a alternâncias tranquilas de poder. Por enquanto, porém, Milei navega de braçada, como dizendo “so far, so good” (por enquanto, tudo bem).

Recessão

É importante lembrar que em 2023 a Argentina enfrentou a pior seca dos últimos 100 anos. Portanto, em condições normais, 2024 deveria ser um ano de recuperação, nem que seja pelo retorno à normalidade do setor agropecuário, chave na economia do país.

O fato de, após a queda do PIB de 2023, o país se preparar para um novo encolhimento no ano em curso, da ordem de 3%, dá uma ideia da intensidade da crise.

Fazer história contrafactual é um exercício tão difícil quanto fútil, de modo que cada um pode imaginar o que quiser acerca do que poderia ter acontecido com os números de crescimento, se o candidato do peronismo tivesse vencido o segundo turno das eleições presidenciais em 2023.

Após o início de um declínio que, em termos dessazonalizados, já tinha começado antes de Milei assumir, a queda do nível de atividade alcançou proporções dramáticas no primeiro semestre, com o investimento chegando a cair a taxas interanuais de mais de 25% (24% no primeiro trimestre e 29% no segundo).

Chama a atenção, pela sua elevada importância relativa e pela sua intensidade, a dimensão da queda observada no consumo das famílias, com reduções interanuais de 7% no primeiro trimestre e de 10% no segundo. Há dados inequívocos, entretanto, de que o terceiro trimestre do ano marcou uma clara mudança, sendo que o governo espera que a economia cresça 5% em 2025.

As exportações estão “voando”, mas olhando para a frente, excetuando-se a recuperação do crédito em curso no rastro de uma queda da incerteza inflacionária e a possibilidade de algum “efeito rebote” do investimento após o “fundo do poço” de 2024, não está claro quais seriam os drivers do crescimento sustentado durante vários anos.

A economia operará em um ambiente onde o investimento público terá ido quase a zero; a taxa de juros real, com uma política monetária convencional, nos próximos anos, deveria aumentar em relação a 2024 em um regime de taxa de câmbio flutuante; e o grau de confiança estará longe de ter um incremento expressivo, enquanto existir a possibilidade de que um eventual novo governo em 2028 promova um giro de 180 graus em relação às políticas atuais, na ausência de acordos políticos com alguma semelhança com o famoso Pacto de Moncloa espanhol. Enfim, vale a velha expressão: “A ver”.

Pobreza

A população argentina tem passado, ao longo dos últimos 15 anos, por um calvário: cada vez que um governo acaba, o país está pior. Isso vale para diversas estatísticas. Uma delas é a da pobreza, talvez um dos indicadores mais emblemáticos da situação de um país.

Aqui a comparação com o passado distante fica prejudicada pelo “apagão” estatístico do segundo governo de Cristina Kirchner, quando o INDEC (IBGE/Argentino) passou de uma fase de “sovietização” dos dados. É razoável inferir, contudo, que no final daquele período (2012/2015) o país tinha mais pobres que no começo.

Depois, a pobreza continuou aumentando nos governos Macri e Fernández. O INDEC faz duas medições, uma por semestre, e revelou um forte crescimento também sob Milei, passando de 42% no final de 2023 (com 12% de indigência) para 53% no final do primeiro semestre de 2024 (18% de indigência), ainda que o governo atual acene com uma rápida queda no contexto de melhora do PIB no segundo semestre.

O fato é que até agora, na comparação com o começo da Presidência Macri, em 2016, a pobreza passou de 30% para 53%, e a indigência de 6% para 18%, com responsabilidades compartilhadas entre as gestões de Macri, Fernández e Milei. É muito impressionante.

Evidentemente, a economia poderá se recuperar (é razoável que haja uma boa melhora em 2025) e sempre haverá o argumento de que o ocorrido no primeiro semestre deste ano foi um efeito da necessidade de “limpar a bagunça” do caos deixado pelo kirchnerismo.

Politicamente, porém, considerando a famosa frase de Milei de que “a justiça social é um roubo”, é difícil que a oposição não explore esses números para convencer o eleitorado de que tudo decorre da insensibilidade social do presidente e de seu plano de ajuste.

O que o mercado olha?

O dólar, mais uma vez, está no epicentro do debate acerca dos rumos da economia argentina. Esta vive há anos uma situação particularmente ingrata.

Normalmente, as dívidas são roladas e, muitas vezes, aumentam. Os empréstimos do FMI são concedidos, justamente, para situações emergenciais, após as quais os países voltam aos mercados.

O problema da Argentina, porém, é sua fama, compreensível, de “caloteira serial”. Lembre-se o que, certa vez, disse David Lipton, antigo diretor do FMI: “Los argentinos son estafadores [vigaristas] simpáticos”.

A Argentina não teve, nos últimos anos, como repagar os quase US$ 45 bilhões que devia ao FMI, pois não conseguia recursos nos mercados internacionais. Tendo levado “calote” quatro vezes em quatro décadas, os investidores externos, por sua vez, ficaram escaldados com o país e só voltarão a apostar nele depois de estarem convencidos de que “dessa vez vai ser diferente”.

O que o mercado olha, então? Basicamente, cinco coisas: 1) as negociações com o FMI, para avaliar se há chances de a instituição emprestar ao país, o que requer um plano sólido de reformas e certa flexibilidade do organismo, para o qual a Argentina se converteu numa grande dor de cabeça nos últimos anos; 2) o spread entre o dólar paralelo e o oficial, como sinalizador da situação das contas externas; 3) a trajetória da inflação (continuará caindo? ficará estacionada ali pelos 3% mensais?); 4) os resultados fiscais mês a mês, para se ter certeza de que o ajuste é “pra valer”; e 5) as pesquisas sobre popularidade do governo, para medir a temperatura de até que ponto a população continuará a apoiar um presidente que fez o “maior ajuste fiscal da história”, como Milei não cansa de se gabar.

Nesse contexto, em algum momento, o governo terá que decidir o que fazer com o cepo cambial, um conjunto de restrições vigentes há 5 anos que limitam a demanda por dólares ao câmbio oficial.

O ideal para Milei seria acabar com as restrições, sem que no dia seguinte ocorra um salto da cotação cambialO outro extremo seria haver uma corrida e o dólar escalar. “Nesse caso, o governo terá acabado”, como diz Ricardo Arriazu, um dos economistas que mais apoiam a política oficial.

Por enquanto, o governo “vai levando” —nos últimos meses, inclusive, o spread chegou a diminuir expressivamente, no que a imprensa chamou de “veranito” financeiro.

“Y ahora, qué?”

Os primeiros meses de processos de transformação são incertos, pois no começo não se sabe se estamos na etapa inicial de uma nova era ou num interregno antes do retorno a algo que se imaginava ter ficado atrás.

Em 2024, sabemos que o Plano Real deu certo, mas em 1995 ainda havia muitos temores. Em 2024, sabemos que o câmbio flutuante de 1999 veio para ficar, mas as primeiras semanas do novo regime foram de pânico, com muitas dúvidas acerca do futuro.

Hoje, é difícil fazer apostas taxativas de que a Argentina esteja no limiar de uma transformação definitiva para se tornar uma economia estável e competitiva de livre mercado. Será que, no final, não assistiremos a um novo fracasso? Ninguém tem uma resposta categórica.

No cerne da questão, há um tema crucial: o que acontecerá com o país, 20 anos à frente? Há condições de serem estabelecidos entendimentos que, em caso de mudança de governo, possam ser respeitados, preservando políticas sensatas, como no Uruguai, onde as gestões se alternam sem grandes mudanças do menu econômico?

Olhando os dados fiscais e de inflação, há razões para otimismo. Já observando-se o comportamento do presidente, que com seu descontrole verbal chama de “ninho de ratos” o Congresso, enquanto os seus “trolls” qualificam como “fracassados” ou até “velhos mijões” os consultores críticos acima dos 60 anos, com campanhas de perseguição midiática de rara brutalidade, é difícil não encarar o futuro com reservas, acentuadas pelas dúvidas acerca da capacidade de conservar uma taxa de câmbio que foi se apreciando em termos reais.

“Pensei que não havia nada mais apaixonante do que uma corrida de touros, até que ouvi dois argentinos discutindo sobre política”, disse certa vez o mexicano Octavio Paz. A desunião foi sempre uma receita de fracasso no país.

Milei conseguiu fazer um ajuste impressionante sem apoio político, apenas a partir de determinação e liderança difundidas nas novas mídias. Se as pesquisas deixarem de sorrir para o governo, a lista dos inimigos dá três voltas na Casa Rosada.

Por enquanto, porém, com a inflação em queda, o dólar parado, a oposição dividida e o peronismo capitaneado pela figura fantasmagórica de Cristina Kirchner, Milei “les pasa por arriba” (esmaga) a todos.

 

Estamos vivendo numa democracia? por Oded Grajew

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Que modelo é este que produz terríveis desigualdades?; mudanças no IR são justas, mas pobres continuarão a ser penalizados

Oded Grajew, Presidente emérito do Instituto Ethos, conselheiro do Instituto Cidades Sustentáveis e membro do Pacto Nacional pelo Combate às Desigualdades

Folha de São Paulo, 02/12/2024

A democracia poderia ser definida como um regime político em que o poder é exercido de forma participativa pelos cidadãos, diretamente ou por meio dos seus representantes. Sendo assim, na democracia exercida em sua plenitude, as políticas públicas deveriam beneficiar de forma equitativa o conjunto da sociedade, resultando num país com poucas desigualdades.

Vejamos o quadro no Brasil: somos o sétimo país mais desigual do mundo, apesar de sermos a oitava maior economia. De acordo com o Observatório Brasileiro das Desigualdades, idealizado pelo Pacto Nacional Pelo Combate às Desigualdades, as nossas desigualdades econômicas, sociais, ambientais, regionais, de gênero e raça são enormes. Por exemplo: 1% da população detém 63% da riqueza do Brasil; os 10% mais ricos obtêm um rendimento médio mensal per capita 14,4 vezes maior que os 40% mais pobres; cerca de 7,6 milhões de brasileiros vivem com uma renda domiciliar per capita mensal menor do que R$ 150; a mulher negra ganha em média 42% do que recebe o homem não negro; as pessoas negras representam 76,9% das vítimas de mortes violentas intencionais e são 83,1% das mortes decorrentes de intervenções policiais; a taxa de mortalidade infantil é 59% maior na região Norte do que na região Sul.

Todos que têm o mínimo de conhecimento de como funciona o nosso sistema político sabem da enorme influência do poder econômico nas eleições e sobre os tomadores de decisões, nas várias instâncias de poder das nossas instituições públicas. Como resultado direto temos políticas e decisões políticas que beneficiam a minoria mais rica e consequentemente sustentam e alimentam as desigualdades brasileiras.

O nosso sistema tributário é um dos mais regressivos do mundo; o Brasil é um dos poucos países que não taxam lucros e dividendos e instituímos diversos mecanismos que fazem com que, atualmente, mais de 70% da renda dos super-ricos não seja tributada. As mudanças no Imposto de Renda anunciadas na semana passada são justas, mas os pobres continuarão a pagar proporcionalmente mais tributos que os ricos porque ainda taxamos muito o consumo e pouco a renda e o patrimônio.

Tudo isso apesar de a Constituição brasileira declarar que “constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. O que significa que o nosso sistema tributário deveria ser considerado inconstitucional!

O nosso terrível e vergonhoso quadro de desigualdades não foi construído por acaso, é resultado de decisões políticas. Alimenta a descrença na política e na democracia e reforça os movimentos políticos extremos e autoritários (vale lembrar que os Estados Unidos são o país mais desigual entre as nações mais desenvolvidas).

Se quisermos valorizar e defender a democracia e barrar seus detratores precisamos nos empenhar para que as políticas públicas se liberem da influência excessiva do poder econômico, respondam às necessidades de toda a população e não apenas aos interesses de uma minoria —e estejam dedicadas, como manda a Constituição, à redução das desigualdades. Caso contrário, poderemos estar sempre nos perguntando: Estamos vivendo numa democracia? Que democracia é esta que produz tantas e terríveis desigualdades?

O que há por trás dos boicotes, por Ana Paula Vescovi

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Reações acirradas de grupos franceses ao acordo UE-Mercosul demonstram o quão estratégico ele se tornou

Ana Paula Vescovi, Economista-chefe do Santander Brasil.

Folha de São Paulo, 10/12/2024

Uma carta aberta de uma das maiores redes varejistas francesas iniciou boicote quase despretensioso sobre a compra de carnes do Brasil; a resposta brasileira, vinda do setor produtivo, traz à tona o potencial destrutivo da guerra comercial.

Os produtores sujeitos às restrições impostas pela França reagiram deixando de vender carnes para a rede europeia no Brasil. O movimento foi tão forte que levou a empresa francesa a uma retratação.

O principal prejudicado? O consumidor, sempre.

A proximidade da reunião de presidentes do Mercosul, no Uruguai, na primeira semana de dezembro atraiu o furor de produtores rurais franceses. A diplomacia dos dois blocos —União Europeia e Mercosul— trabalha para pautar e votar pela aprovação do acordo birregional.

O Brasil tem demonstrado com ênfase o seu interesse na aproximação. Do lado europeu, os mais enfáticos são os alemães, os espanhóis e os portugueses. Além da França, Polônia, Áustria e Itália apresentaram algum nível de resistência.

O que está em jogo é uma frente de redução de tarifas, com definição de quotas em alguns casos, para intensificar a corrente de comércio e serviços entre as duas regiões.

Os ganhos de comércio são há muito tempo conhecidos na literatura. São um verdadeiro ganha-ganha. Os países podem se especializar na produção de bens e serviços em que são mais eficientes, levando ao aumento da produtividade geral, do nível de renda e da produção e revelando vantagens comparativas.

Ademais, o comércio internacional promove a concorrência e a contestação de mercados, o que contribui para preços mais baixos, melhor qualidade e práticas de produção e maior inovação. O acesso a mercados maiores permite que as empresas produzam em maior escala, reduzindo potencialmente os custos por unidade e que os consumidores tenham acesso a uma gama maior de produtos e serviços de diferentes países.

Pode facilitar a troca de conhecimento e tecnologia entre países, promovendo inovação e maior crescimento potencial, além de fomentar os investimentos estrangeiros.

Embora alguns empregos possam ser deslocados entre setores e regiões, o comércio internacional cria oportunidades de trabalho em setores exportadores e nas indústrias de apoio. E não apenas empresas grandes exportam.

Os consumidores, por sua vez, podem obter preços mais baixos e maior poder de compra. E os países, por fim, podem se beneficiar com a promoção de laços diplomáticos e a paz entre as nações por meio de uma saudável interdependência econômica.

Além da teoria, a realidade demonstrou isso. Após a entrada da China na OMC (Organização Mundial do Comércio), em 2001, e economia mundial vivenciou anos de crescimento robusto com inflação controlada e juros baixos. O aumento de renda ampliou a classe média global, movimento que foi mais forte nos países em desenvolvimento. Estimativas apontam crescimento de 50% na América Latina. O que deu errado tem sido objeto de muitos estudos, mas a crise financeira global de 2008/2009 foi uma inflexão, entre outros fatores.

O concreto é que tudo mudou desde então e, nos últimos anos, as guerras comerciais têm prevalecido. As recentes eleições presidenciais nos Estados Unidos sancionaram mais aumentos de tarifas e mais disputas comerciais, o que tende a escalar no próximo ano. Esse é um fator importante por trás da reação dos franceses. A integração comercial entre Mercosul e União Europeia ficou ainda mais estratégica, para os dois lados, depois da eleição dos Estados Unidos.

De um lado, uma região que produz automação industrial de excelência, capaz de impulsionar a modernização do parque industrial na América do Sul. De outro lado, uma região capaz de alavancar os objetivos da transição (e da segurança) energética na Europa. O Brasil produz o crédito de carbono com o menor custo do planeta.

No meio, estão os produtores de alimentos na França e em algumas outras localidades. São acostumados a pesados subsídios e a uma regulação ambiental severa, com estrutura fundiária diferente da nossa (menos concentrada).

A acidez e o tom ofensivo das manifestações na França revelam nada mais do que o tamanho da briga para manter o status quo. Simplesmente negligenciam os anos de avanços tecnológicos e na vigilância sanitária que tivemos. No Brasil, iniciativas no próprio setor privado têm assegurado políticas rigorosas de desmatamento ilegal zero com 100% de rastreabilidade nos seus negócios de exportação. E não somente para a Europa. O uso de satélites de rastreamento e da inteligência artificial já é uma realidade no monitoramento de fazendas exportadoras.

Mas toda crise traz aprendizados. O primeiro deles seria assegurar um caminho consistente de “acreditação” para os nossos exportadores, com avanços consistentes no desmatamento ilegal zero e melhora na aplicação e fiscalização do Código Florestal. E muita disposição para explicar os progressos. O Brasil já se estabeleceu como uma potência pecuária, temos uma das agriculturas mais modernas do planeta, com muitos avanços por vir na área da agroenergia.

Com efeito, há muito o que avançar. E as vantagens do comércio podem trazer fortes incentivos para compromissos de preservação ambiental. Se a Europa está fidedignamente engajada no desmatamento ilegal zero, então não há melhor política do que aprofundar a (saudável) interdependência comercial com os países da região amazônica.

O que vimos com os boicotes foi uma demonstração pedagógica dos efeitos do protecionismo, caminho errado a seguir.