Juventude agredida, por Carlos Alberto Di Franco

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A iniciação sexual precoce, o abuso sexual e a prostituição infantil são resultadas da cultura da promiscuidade que está aí

Carlos Alberto Di Franco – O Estado de São Paulo, 20/01/2025

O leitor é o melhor termômetro para medir a temperatura do cidadão comum. Tomar o seu pulso equivale a uma pesquisa qualitativa informal. Aos que há anos me honram com sua leitura neste espaço opinativo, transmito uma experiência recorrente: família, ética e valores aumentam o índice de leitura.

Sempre que tratei de temas relacionados à família, recebi muitos e-mails e mensagens. Sem dúvida uma sugestiva amostragem de opinião pública, sobretudo considerando o rico mosaico etário, profissional e social dos remetentes.

Neste Brasil sacudido por uma brutal crise ética, alimentada pelo cinismo dos homens públicos e pela mentira dos que deveriam dar exemplo de integridade, há, felizmente, uma ampla classe média sintonizada com valores e princípios que podem fazer a diferença. E nós, jornalistas, devemos escrever para a classe média. Nela reside o alicerce da estabilidade democrática. Escreva algo, sublinhavam alguns dos e-mails que recebi, a respeito da desorientação da juventude. Meu artigo de hoje, caro leitor, foi pautado por você. Tomarei como gancho um dado objetivo e preocupante.

A gravidez precoce é hoje no Brasil uma das maiores causas de evasão escolar entre garotas de 15 a 17 anos. Dados da Unesco mostraram que, das jovens dessa faixa etária que abandonaram os estudos, 25% alegaram a gravidez como motivo. Outros estudos revelam que complicações decorrentes da gestação e do parto são a terceira causa de morte entre as adolescentes, atrás apenas de acidentes de trânsito e homicídios. A gravidez afeta até quem mal saiu da infância.

A gravidez precoce realmente está se tornando um grande problema na educação. Se 25% das meninas de 15 a 17 anos grávidas deixam a escola, isso significa dizer que mais de 200 mil param anualmente de estudar. Futuro triste. Cenário complicado. Mas dramaticamente coerente com um país em que o ministro mais importante não é o da Educação ou o da Saúde, mas o da Fazenda.

É um absurdo acreditar que uma criança vá ter maturidade para ter um filho com essa idade. Pregar a abstinência sexual de meninas de 11 a 14 anos não significa ser moralista ou careta, mas responsável. Não se trata de histeria conservadora, mas de bom senso.

A culpa não é só do entretenimento permissivo ou da TV, que, frequentemente, apresenta bons programas. É de todos nós – governantes, formadores de opinião e pais de família –, que, num exercício de anticidadania, aceitamos que o País fosse definido mundo afora como o paraíso do sexo fácil, barato, descartável. É triste, para não dizer trágico, ver o Brasil ser citado como um oásis excitante para os turistas que querem satisfazer suas taras e fantasias sexuais com crianças e adolescentes. Reportagens denunciando redes de prostituição infantil, algumas promovidas com o conhecimento ou até mesmo com a participação de autoridades públicas, crescem à sombra da impunidade.

O governo, assustado com o crescimento da gravidez precoce e com o crescente descaso dos usuários da camisinha, investe pesadamente nas campanhas em defesa do preservativo. A estratégia não funciona. Afinal, milhões de reais já foram gastos num inglório combate aos efeitos. A raiz do problema, independentemente da irritação que eu possa despertar em certas falanges politicamente corretas, está na onda de baixaria e vulgaridade que tomou conta do ambiente nacional. Hoje, diariamente, na televisão, nos outdoors, nas mensagens publicitárias, o sexo foi guindado à condição de produto de primeira necessidade.

Atualmente, graças ao impacto da TV e da internet, qualquer criança sabe mais sobre sexo, violência e aberrações do que qualquer adulto de um passado não tão remoto. Não é preciso ser psicólogo para que se possam prever as distorções afetivas, psíquicas e emocionais dessa perversa iniciação precoce. A inocência infantil está sendo impiedosamente banida. Por isso, a multiplicação de descobertas de redes de pedofilia não deve surpreender ninguém. Trata-se, na verdade, das consequências criminosas da escalada de erotização infantil promovida por alguns setores do negócio do entretenimento.

Se quisermos um entretenimento de qualidade precisamos separar o exercício da liberdade de expressão da prática do entretenimento mundo cão. Há uma liberdade de mercado que produz um mercado da liberdade. De resto, mesmo que exista uma demanda de vulgaridade e perversão, deve-se aceder a ela? Suponhamos que exista um público interessado em abuso sexual de crianças, assassinatos ao vivo, violência desse tipo. Nem por isso a TV deveria ter programas especializados em pedofilia e assassinatos. O mercado não é um juiz inapelável. Não se deve atuar à margem dele, mas não se pode sobrevalorizá-lo.

A iniciação sexual precoce, o abuso sexual e a prostituição infantil são, de fato, o resultado da cultura da promiscuidade que está aí. Sem nenhum moralismo, creio que chegou a hora de dar nome aos bois, de repensar o setor de entretenimento, e de investir em programação de qualidade.

A juventude merece atenção e prioridade nas nossas coberturas.

Carlos Alberto Di Franco, Jornalista.

 

Os migrantes do clima estão entre nós, por Giovanna Madalosso

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Conheci gente que migrou para Curitiba em busca de uns graus Celsius a menos

Giovanna Madalosso, Escritora, roteirista e uma das idealizadoras do movimento Um Grande Dia para as Escritoras.

Folha de São Paulo, 20/01/2025

Como muitos leitores sabem, tenho vivido entre São Paulo e Curitiba. E, nesta segunda cidade, venho assistindo a uma onda migratória peculiar, diferente de qualquer outra que acompanhei até então.

A primeira vez que vislumbrei a onda foi num jantar. Curitiba não é como São Paulo ou Rio, em que as mesas reúnem comensais egressos dos quatro cantos. É raro se ouvir um sotaque diferente entre as araucárias e, de repente, o de um casal chamou a minha atenção. Eram dois artistas manauaras que tinham acabado de se mudar para a capital paranaense. Perguntei por que tinham feito isso. Para fugir do calor, o manauara respondeu, argumentando que a capital do Amazonas nunca esteve tão quente.

Nos meses seguintes, descobri que aquele não era um caso único. Ao lado de imigrantes venezuelanos, cubanos e haitianos, que costumam optar por Curitiba por motivos de natureza política ou econômica, os brasileiros chegam buscando mais qualidade de vida e —aí vem a novidade— às vezes uns graus Celsius a menos, como outra família que conheci, vinda do Espírito Santo.

Isso sem falar nos gaúchos que, traumatizados com a catástrofe climática que destruiu Porto Alegre e com a inépcia do governo em preparar a cidade para um possível novo episódio, escolheram mudar de vez para esta outra capital do sul.

Faço ioga com uma paulistana recém-chegada que não mencionou a crise climática como motivo para ter saído de São Paulo. No entanto, entre um movimento de braço e outro, ela disse que migrou por conta do caos, dando como exemplo a fumaça das queimadas que rebaixaram o ar da pauliceia ao pior do mundo (olha a crise climática aí) e as quedas prolongadas de luz que lhe fizeram perder trabalho e dinheiro (olha a crise climática aí de novo, somada à inépcia de Enel).

E o que dizer de Santa Catarina aos últimos dias? E de Los Angeles? Quantas pessoas, neste exato momento, não cogitam deixar suas cidades? Os habitantes das ilhas Tuvalu não podem nem se dar ao luxo de cogitar. A chance de as ilhas desaparecerem é tão concreta que a Austrália já estuda um acordo para receber esses imigrantes.

Tirando casos agudos, a escolha de migrar ou não migrar acaba por ser um privilégio de classe. Nos próximos anos, assistiremos ao triste espetáculo dos ricos migrando para áreas mais seguras e amenas. Ou instagramando fotos de seus bunkers.

Para a maioria dos cidadãos, e logo mais para todos, restará a aventura de viver em um planeta colapsado pela emissão de carbono, onde não existe mais lugar seguro e, em breve, não haverá mais tantos lugares segurados —algumas empresas já cancelaram apólices em áreas passíveis de incêndios e outros desastres climáticos.

O que fazer com a nossa trouxinha de roupa? Se possível, manter onde está e lutar para que o município que habitamos, onde estão as pessoas que amamos, seja preparado para as condições extremas.

É muito mais caro criar novos povoamentos do que preparar as cidades que já existem para o enfrentamento climático. Mas é preciso cobrar os prefeitos, que, em sua grande maioria, seguem cimentando as cidades sem nenhum critério ambiental, enquanto o Brasil e outros países abrem novos poços de petróleo, garantia de que dias piores, infelizmente, virão.

 

Trump atraiu eleitores frustrados imitando táticas da esquerda, diz Naomi Klein

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Pesquisadora argumenta que a ascensão de extremistas criou ‘mundo invertido’ sinistro nas lacunas do progressismo

Folha de São Paulo, 20/01/2025

Naomi Klein começou a ser sugada por uma crise de identidade. De início parecia só um incômodo chato, mas de repente ela se sentia sumindo no meio de um redemoinho, sem saber onde se segurar. Não se engane, estamos falando mais de política que de psicanálise.

Uma das intelectuais mais celebradas da América do Norte, a canadense era às vezes confundida com outra escritora de sucesso, Naomi Wolf. Até aí, nada anormal —as duas eram quase contemporâneas, tinham alguma semelhança física e defendiam ideias de esquerda.

Klein ficou conhecida por críticas sistêmicas ao neoliberalismo em obras como “Sem Logo” e “A Doutrina do Choque”. Wolf se celebrizou por “O Mito da Beleza”, um protesto contundente contra as imposições sociais ao corpo feminino.

Tudo passou a ficar bem mais estranho quando Wolf, a “outra Naomi”, começou a ser rejeitada pelo campo progressista ao embasar cada vez menos suas ideias em fatos históricos e científicos, entrando numa espiral de teorias conspiratórias.

Ao ser cobrada nas redes sociais como se fosse sua homônima, Klein testemunhou de perto a metamorfose de Wolf em um estandarte do negacionismo do clima e da pandemia. Sua contraparte virou convidada de honra no podcast “The War Room”, de Steve Bannon, o estrategista-mor de Donald Trump.

Às vésperas da posse do republicano para um segundo mandato, o livro que Klein escreveu sobre sua experiência, “Doppelgänger”, ilumina os métodos pelos quais o trumpismo atraiu eleitores imitando táticas da esquerda, criando um submundo de “fatos alternativos”, se apresentando como mais tolerante a erros e estendendo tapete vermelho a ex-progressistas frustrados.

A autora entendeu que seu mergulho no “mundo invertido” da outra Naomi ensinava algo sobre as mudanças por que passam tantas democracias hoje, na “parte mais assustadora” de sua “jornada doppelganger” —expressão alemã que define duas pessoas que se parecem muito.

“Não é apenas um indivíduo que pode ter um duplo sinistro; nações e culturas também os têm.” O Estado incorporado pela extrema direita, segundo ela, é o “irmão gêmeo ubíquo das democracias liberais ocidentais”, “versões sombrias de nosso eu coletivo”.

O livro lançado há pouco no Brasil fala da sensação geral de não saber mais discernir o que é real do que não é —um sentimento difuso de desorientação, de “jet lag coletivo”. Foi buscando retomar o esteio que Klein elaborou seu longo ensaio e deu essa entrevista à Folha por videoconferência.

Seu livro antecipou falhas do campo progressista que ficaram mais visíveis após a eleição de Trump. A sra. retrata a postura de Bannon e outros líderes da direita como mais acolhedoras a novos eleitores que estavam distantes do seu campo político. Por que a direita foi eficiente em fazer isso e a esquerda não?

A direita que surgiu das cinzas do neoliberalismo não tem um projeto econômico transparente. É um discurso muito incoerente —não em termos do que faz quando chega ao poder, mas do que diz para chegar lá.

Há muita contradição, por exemplo, entre a fala sobre enfrentar as elites e a defesa de cortar impostos para as elites. É um discurso familiar à esquerda na crítica aos grandes poderes corporativos, mas sua política é neoliberalismo com esteroides. O que Elon Musk vai fazer no governo é superausteridade  —por isso ele tem tanto interesse em Javier Milei, da Argentina.

E é precisamente por causa dessa incoerência que eles conseguem montar uma coalizão a partir das falhas e dos abandonos da esquerda. Bannon estuda a esquerda bem de perto, fala abertamente que lê Joam Chomsky e Lênin. Ele presta atenção aos assuntos e às pessoas que a esquerda está deixando de lado.

Nós, da esquerda, temos um discurso de inclusão, de diversidade, mas na prática essa cultura é, com frequência, intolerante e doutrinária. Você sente às vezes que precisa fazer um teste para entrar na esquerda e depois continuar fazendo testes para ficar lá [risos]. É o oposto da tenda ampla e acolhedora necessária para uma coalizão vencer.

E não acho que a direita seja tão acolhedora quanto parece —são bem menos ao falar de deportações em massa e fronteiras militarizadas. Mas isso não significa que não podem se apresentar como uma cultura que deixa as pessoas à vontade para cometer erros e discordar.

Diria então que os partidos de esquerda julgam mais seus eleitores, enquanto a direita não demanda nada deles?

É complicado, primeiro porque o Partido Democrata não é a esquerda. É um partido comandado por uma elite de alto nível educacional, muito interconectada —são pessoas aterrorizadas pelo populismo de esquerda, como de Bernie Sanders [em cuja campanha Klein trabalhou], porque o status quo funciona bem para elas.

E eu tenho menos interesse no Partido Democrata que na esquerda, porque esta é a força que pode enfrentar o fascismo. Ele [o fascismo] surge em momentos de falha sistêmica, quando o centro se despedaça, então é necessária uma esquerda robusta para diagnosticar essas falhas pelo seu lado.

Se não houver ninguém nesse campo para entender que formas de organização e solidariedade podem ser criadas em contraposição à extrema direita, então a raiva justificada que as pessoas sentem por não conseguir pagar por comida e aluguel será direcionada a algum tipo de conspiração.

Por isso digo que a nova direita é uma “doppelgänger” da esquerda. O fascismo sempre tem uma estranha similaridade com a esquerda real, é um pseudo-nacional-socialismo, o que não quer dizer que são a mesma coisa. Não são.

É por isso que importa se a esquerda for hipócrita, se trair seus princípios e não conseguir criar uma cultura da qual uma pessoa normal gostaria de participar.

Como a esquerda pode atrair eleitores de direita sem ceder demais em sua agenda em temas essenciais, como a crise climática?

Não devemos pensar nessas pessoas como eleitores de direita, mas como pessoas que votaram à direita nessa eleição e podem ter votado na esquerda em outras. Estamos em um momento de muito fluxo, nada estático.

De uma maneira esquisita, estamos meio entorpecidos por uma sequência de choques, porque eles têm vindo em “stacatto”. São crises econômicas, climáticas, pandemias, revoltas políticas. Isso virou nossa realidade, e é perigoso se acostumar com políticas de abandono em massa da vida humana.

Então a política tem, mesmo, que voltar para o básico. As perguntas são: nós valorizamos a vida? Acreditamos que todas as pessoas têm o mesmo valor no mundo?

Há uma crise espiritual, eu diria. Às vezes penso que o papa [Francisco] é o único que consegue falar nessa língua hoje. Precisamos de líderes que sejam vozes algo proféticas no meio dessa intersecção de crises, de mortes tão massificadas, que na academia chamamos de “necropolítica”. Também acho que devemos parar de usar palavras como “necropolítica” [risos]. Mantenha as coisas simples.

Mas você falou de clima. Políticas para o clima hoje são associadas, na mente dos eleitores, com a classe média e a elite intelectual, como preocupações de luxo, que vão deixar sua vida mais cara.

O ecopopulismo conecta o debate sobre o clima a questões como mobilidade, moradia, alimentação. O movimento pelo clima deve encontrar os eleitores aí no meio, não forçar uma falsa escolha entre suas preocupações climáticas e suas necessidades imediatas.

Ao final do livro, a sra. urge as pessoas a serem menos individualistas e defende que a “destruição do eu” pela qual passou foi, na verdade, positiva. Isso envolve a redução do tempo nas redes sociais?

Sim, essa é fácil. Eu sou grata a Elon Musk por arruinar o Twitter. As melhores alternativas de mídia social, agora, vão ser as que engajam menos. Eu entrei no Bluesky, e não é um ambiente tão dramático e furioso. É até meio tedioso, e tudo bem!

Não é que precisamos aniquilar o ego, mas nós nos tornamos grandes demais para o nosso próprio bem. Ficamos obcecados com a otimização da nossa personalidade e da nossa marca particular. Não porque somos todos narcisistas, mas porque temos medo.

Não estamos vendo qualquer segurança econômica para além de nós mesmos e viramos nossa única boia de salvação. Quando nos juntamos em organizações, sejam sindicatos, coalizões políticas ou grupos de arte, dá uma sensação real de reforço de poder, de possibilidades.

Devemos voltar a pensar nas redes como ferramentas para levar pessoas a ambientes offline —como um grande quadro de avisos, não como uma rede de sociabilidade.

Em ‘Doppelgänger’, a sra. divide a sociedade entre um ‘mundo real’ e um ‘mundo espelho’. Quanto esse conceito de polarização ajuda a entender a política de hoje e quanto ele mascara as diferenças que existem dentro desses grupos?

Ou as similaridades entre os dois grupos, não? Sim, mascara muito. Por isso eu concluo no livro que estamos todos em um “mundo espelho”, cada grupo de um lado do vidro. A ideia de que nós, pessoas de esquerda virtuosas que se baseiam na ciência, somos a realidade verdadeira —isso é um tipo de fantasia.

A separação mais importante é entre o mundo em que todos vivemos e o que chamo de “terra das sombras”, aquilo para o que ninguém suporta olhar. Estamos entendendo melhor o quanto nós nos amarramos a sistemas de aniquilação e morte, algo que nunca enfrentamos.

Eu me refiro, por exemplo, ao tamanho da crise climática, ou o que significa investir mais e mais na inteligência artificial, que cria “doppelgängers” virtuais de todo mundo enquanto suga toda a energia do mundo material. É incrivelmente distópico e só piorou desde que escrevi.

São coisas quase impossíveis de encarar, então nos distraímos freneticamente acusando os outros e purificando a nós mesmos. E ninguém está acertando as contas consigo mesmo, seja na esquerda ou na direita.

A crise climática, por exemplo, nem estava nas cédulas de votação em 2024. Não conseguimos lidar com isso porque significa encarar os limites do que nós conseguimos fazer como indivíduos. As implicações são esmagadoras, porque o trabalho que precisa ser feito é profundamente coletivo.

Ao mergulhar no mundo da extrema direita como uma pesquisadora de esquerda, como a sra. se equilibrou entre a discordância profunda e a atenção honesta àquele discurso?

Você tem que levar a sério. Estamos num momento de crise narrativa na esquerda, então é importante entender por que essas histórias têm tanta ressonância.

Algo em que toquei apenas superficialmente no livro é o papel das narrativas judaico-cristãs apocalípticas, que apontam para o fim dos tempos. No Brasil, não dá para entender a ascensão da ultradireita sem as narrativas religiosas, e elas estão profundamente codificadas no nosso imaginário coletivo. Somos incrivelmente obtusos, no mundo secular, em entender o poder dessas narrativas.

Nós achamos que vamos conseguir martelar fatos na cabeça das pessoas, mas você está indo contra uma cosmologia transcendente, oposta ao mundo material —com qual história você se contrapõe a isso? É por isso que o papa me interessa tanto [risos].

Doppelgänger: Uma Viagem Através do Mundo-Espelho

Autoria Naomi Klein/ Editora Carambaia

 

RAIO-X | NAOMI KLEIN, 54

Canadense nascida em Montreal, ficou conhecida por livros como “Sem Logo” (2000, Record), uma crítica à cultura do consumismo massificado, e “A Doutrina do Choque” (2007, Nova Fronteira), que argumenta que governos e empresas exploram momentos de comoção para agir contra os interesses da população. Nos últimos anos, tem se dedicado à pauta do clima, por exemplo na obra “Como Mudar Tudo” (2021, Rocco). Hoje é codiretora do Centro de Justiça Climática da Universidade da Colúmbia Britânica, professora da Universidade Rutgers, nos Estados Unidos, e colunista do jornal britânico The Guardian.

 

 

 

América do Sul – um continente partido e tutelado, por José Luís Fiori

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José Luís Fiori – A Terra é Redonda – 15/01/2025

No início do século XXI os Estados Unidos reduziram seu grau de envolvimento político com os assuntos sul-americanos. Esse “déficit de atenção” durou até o “desembarque” econômico dos chineses na América do Sul, e até o início do conflito na Ucrânia.

A história sul-americana foi sempre condicionada por uma geografia extremamente difícil, por uma economia fragmentada e voltada para fora, e por uma submissão, uma geografia extremamente difícil, por uma economia quase permanente à tutela militar da Inglaterra, no século XIX, e dos Estados Unidos, no século XX. E é possível afirmar, de alguma forma, que até hoje o continente se debate com esses constrangimentos originários e estruturais.

 

Uma geografia partida

 

O continente sul-americano está situada entre o Mar do Caribe, ao norte; o Oceano Atlântico, ao leste, nordeste e sudeste; e o Oceano Pacífico, a oeste. Sua superfície, de 17.819.100 km2, ocupa 12% da Terra e possui 6% da população mundial. Está separado da América Central pelo Istmo do Panamá; e da Antártida, pelo Estreito de Drake, e tem uma extensão de 7.500 km desde o Mar do Caribe até o Cabo Horn, no extremo sul. Cerca de quatro quintos do continente ficam abaixo da Linha do Equador, que corta Peru, Colômbia, Brasil e o país que leva o nome de Equador.

A América do Sul possui três grandes bacias hidrográficas: do Rio Orinoco, do Rio Amazonas e do Rio da Prata, e seus rios interiores possuem enorme potencial para navegação e aproveitamento de energia hidráulica. Os três sistemas drenam em conjunto uma área de 9.583.000 km2.

No entanto, o mais importante, do ponto de vista geopolítico, é que se trata de um espaço geográfico inteiramente segmentado por grandes barreiras naturais que dificultam enormemente sua integração física, como é o caso da Amazônia e da Cordilheira dos Andes, que tem 8 mil Km de extensão e atinge 6.700m de altitude, oferecendo apenas alguns pontos de passagem naturais. Na região da Floresta Amazônica, predominam as terras úmidas; na região central do continente, áreas alagadas, como o Pantanal brasileiro e o Chaco boliviano; mais ao sul, há planícies e cerrados; e na costa leste, a floresta original cedeu lugar a agricultura, urbanização e indústria.

O litoral atlântico é baixo e possui uma larga plataforma marítima, ao contrário do litoral do Pacífico, que possui grandes profundidades e onde não existem plataformas continentais. Nos Pampas de Argentina, Uruguai, Paraguai e sul do Brasil, encontram-se as terras mais férteis do continente e algumas das melhores do mundo. Existem, ainda, algumas pequenas áreas com bons solos nos vales andinos e na zona central do Chile, na planície equatoriana de Guayas e no vale colombiano de Cauca, além das terras roxas, no lado brasileiro da bacia do Paraná.

Por outro lado, as terras da bacia Amazônica e a maior parte das planícies tropicais são muito pobres e de baixa fertilidade, o que explica o fato de que a população das terras tropicais da Venezuela, Guiana e Suriname viva quase toda a poucos quilômetros da costa. A combinação de montanhas e florestas tropicais também limita enormemente as possibilidades de integração econômica dentro do arco de países que se estende da Guiana Francesa até a Bolívia.

No caso do Peru, por exemplo, existe uma clara divisão econômica e social em seu território, entre as zonas costeiras, onde se concentra a atividade extrativa e de exportação, e um interior extremamente isolado e atrasado economicamente. O Chile, por sua vez, possui um clima temperado e terras produtivas, mas é um dos países mais isolados do mundo, o que dificulta sua integração econômica com os demais países do “cone sul” – Argentina, Uruguai e Brasil – e o transforma obrigatoriamente numa economia aberta a exportadores, voltada quase exclusivamente para os EUA e os países asiáticos do Pacífico.

O mesmo se pode dizer dos demais países sul-americanos. Sua inserção na divisão internacional do trabalho, na condição de exportadores de commodities, reforçou sua ocupação econômica e demográfica inicial, dispersa e voltada para o litoral, sempre em busca dos mercados centrais, e com escasso interesse nos mercados regionais. Até o final do século XX, o Atlântico foi mais importante do que o Pacífico para o comércio de largo curso da América do Sul, e a presença de importantes bacias hidrográficas articuladas ao litoral atlântico, além da maior proximidade da Europa e dos EUA, desfavoreceu o lado pacífico do continente nos dois primeiros séculos de sua história independente.

Este panorama econômico vem mudando no século XXI, com o aumento da importância da bacia do Pacífico, graças ao deslocamento do centro mais dinâmico da economia mundial para o Leste e Sudeste Asiático, e à transformação da China no novo dínamo da economia sul-americana. A “virada” ao Pacífico, entretanto, representa ao mesmo tempo um desafio e uma ameaça. Desafio pela dimensão financeira do projeto de integração bioceânica, e ameaça porque o desenvolvimento deste projeto só se viabilizará com a participação da China, que está sendo definida pelos Estados Unidos, neste momento geopolítico do mundo, como seu grande competidor estratégico que deve ser cercado e bloqueado em todos os pontos do sistema econômico mundial.

 

Uma história tutelada

 

Do ponto de vista geopolítico, entretanto, a América do Sul viveu quase toda a sua história independente sob a tutela anglosaxônica: primeiro da Grã-Bretanha, até o fim do século XIX, e depois dos Estados Unidos, até o início do século XXI. Além disso, durante o século XIX, foi uma zona de experimentação do “imperialismo de livre comércio” da Grã-Bretanha, e no século XX em particular, depois da 2ª Guerra Mundial, transformou-se num aliado incondicional da política externa norte-americana, que promoveu ativamente a redemocratização e o desenvolvimento do continente na década de 1950.

Nos anos 1960, entretanto, depois da vitória da Revolução Cubana, os Estados Unidos apoiaram os golpes de Estado e a formação de governos militares em quase todo o continente sul-americano. E após o golpe que derrubou o presidente Salvador Allende no Chile, em 1973, incentivaram a mudança da política econômica dos governos sul-americanos, que abandonaram – em sua maioria – seu “desenvolvimentismo” do pós-guerra.

No início dos anos 1980, a política do “dólar forte” do governo americano provocou um forte desequilíbrio dos balanços de pagamento na América Latina e deu origem à “crise da dívida externa” que atingiu toda a região, liquidando definitivamente o modelo desenvolvimentista brasileiro que havia sido o mais bem-sucedido da região.

A crise se prolongou por toda a década, mas ao mesmo tempo conviveu com o fim das ditaduras militares e com o início dos movimentos de redemocratização de quase todos os países do continente. Mais uma vez, entretanto, os novos governos democráticos sul-americanos aderiram em conjunto ao projeto da “globalização liberal” liderado pelos Estados Unidos, e às políticas neoliberais do chamado “Consenso de Washington”, que produziram sucessivas crises cambiais – no México, em 1994; na Argentina, em 1999; e no Brasil, em 2001 –, antes de serem abandonados e substituídos por governos que tentaram levar à frente, durante uma década, uma agenda experimental antineoliberal, sem deixar de alinhar-se à estratégia geopolítica global de combate ao terrorismo comandada pelos norte-americanos.

Relembrando a história: depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, em Washington e New York, a política externa norte-americana mudou de rumo, relegando ao segundo plano as questões econômicas e priorizando o combate global ao terrorismo. Nesse novo contexto, o governo republicano de George W. Bush manteve seu apoio ao projeto da ALCA de integração econômica da América do Sul, proposto na década de 90 pela administração Clinton, mas já sem o entusiasmo das administrações democratas. Até porque a resistência sul-americana e, em particular, a oposição do Brasil e da Argentina após 2002, esvaziaram e logo engavetaram a proposta norte-americana em 2005.

Os EUA mudaram, então, seu projeto inicial e passaram a negociar tratados comerciais bilaterais com alguns países do continente. Assim, depois do fracasso das políticas neoliberais do Consenso de Washington, do abandono do projeto da ALCA e da desastrosa intervenção norte-americana a favor do golpe militar da Venezuela, em 2003, os Estados Unidos mudaram sua posição no que se referia aos assuntos continentais, atraídos cada vez mais pelos novos desafios que vinham da Ásia e do Oriente Médio, e do avanço da OTAN na direção da Europa do Leste.

Essa tendência se fortaleceu na segunda década do século XXI, quando o esfacelamento da “ordem mundial” estabelecida depois da Guerra Fria e a mudança do foco geopolítico mundial reduziram a quase nada a atenção americana em relação à América do Sul, o que não impediu que eles apoiassem os golpes de Estado de Honduras, Paraguai e Brasil durante o governo democrata de Barack Obama.

Na terceira década do século, entretanto, depois da catástrofe da pandemia de Covid-19 e frente ao desafio das guerras da Ucrânia e de Gaza, e mais ainda, face ao deslocamento do eixo dinâmico da economia mundial na direção da Ásia e da China, em particular, a América do Sul reduziu ainda mais sua importância geopolítica e geoeconômica no sistema internacional, dividindo-se de cima abaixo frente ao conflito entre Estados Unidos e Venezuela, e desintegrando-se como um ator geopolítico global.

As vezes de forma mais lenta, às vezes mais acelerada, algumas mudanças vêm acontecendo no panorama geopolítico e geoeconômico da América do Sul. Em algumas mudanças vêm acontecendo no panorama alguns casos, reforçando velhos caminhos e “vocações” do continente; em outros, abrindo novas perspectivas e oportunidades que poderão ou não ser aproveitadas pelos 12 países que convivem lado a lado dentro desse território recortado por tantas barreiras geográficas, e tão próximo dos Estados Unidos. Destacamos em seguida quatro mudanças que deverão pesar decisivamente sobre o futuro continental.

 

O aumento da assimetria sul-americana

 

Em 1950, os dois países mais ricos da América do Sul – Brasil e Argentina – tinham mais ou menos o mesmo PIB, apesar de que os argentinos tivessem uma renda per capita, homogeneidade social, nível educacional e qualidade de vida extraordinariamente superiores em relação aos brasileiros. Hoje, setenta anos depois, a situação mudou radicalmente: se o PIB dos dois países girava em torno de US$ 80 bilhões em 1950, 70 anos depois, o PIB brasileiro multiplicou 23 vezes e é hoje de cerca de US$ 2,17 trilhões, enquanto o argentino multiplicou-se apenas oito vezes no mesmo período, sendo hoje de 640 bilhões de dólares.

Uma assimetria entre os dois países que tende a aumentar exponencialmente nos próximos anos, e muito mais ainda entre o Brasil e os demais países sul-americanos. Hoje, o Brasil já possui metade da população e do produto sul-americano, e é o único país da região que tem alguma presença no tabuleiro geopolítico internacional.

Depois do Golpe de Estado de 2016, entretanto, e até 2022, dois sucessivos governos de direita alteraram radicalmente a política externa, afastando o Brasil de todas as iniciativas integracionistas na América do Sul, ao mesmo tempo que se alinhava aos Estados Unidos e à OTAN, frente aos conflitos internacionais fora do continente. Em 2023, entretanto, o país retomou o rumo anterior de sua política externa e vem assumindo posições cada vez mais ativas no campo internacional, no grupo do BRICS, na presidência rotativa do G20 e na liderança mundial da luta pela sustentabilidade e controle das mudanças climáticas.

No seu próprio continente, entretanto, o Brasil vem encontrando grandes resistências, que muito têm a ver com o aumento da assimetria regional, em que o Brasil aparece hoje como uma espécie de “elefante no meio da sala”.

 

A expansão da presença chinesa

 

A segunda grande transformação da América do Sul, nas primeiras décadas do século XXI, foram o surgimento e a expansão acelerada do papel da China no desenvolvimento econômico do continente. Em apenas três décadas, o fluxo comercial entre América do Sul e China cresceu de US$ 15 bilhões em 2001, para cerca de US$ 300 bilhões em 2019. E o fluxo dos investimentos diretos chineses na região cresceu e se manteve em torno de US$ 10 bilhões anuais, em média, entre 2011 e 2018. Brasil, Peru e Argentina receberam a maior parcela desses investimentos até 2022, ficando o Brasil com 22% deste total, incluindo a fabricação de veículos elétricos, aquisição de ativos de lítio, expansão da Huawei e de outras empresas chinesas de data centers, computação em nuvem e tecnologia 5G, e em grande quantidade de infraestrutura elétrica.

Nas duas primeiras décadas do século XXI, a China também dobrou sua participação nas importações realizadas pelos países sul-americanos, cujo valor bruto cresceu mais de 700%, enquanto as exportações brasileiras para a América do Sul, por exemplo, no mesmo período, cresceram menos de 40% do crescimento chinês. Mesmo durante a crise econômica de 2008, a participação brasileira no mercado argentino recuou de 42% para 31,5%, enquanto a participação chinesa subiu de 21,5% para 30,5%. E o mesmo aconteceu na Venezuela, onde a participação chinesa subiu de 4,4% em 2008, para 11,5% nos quatro primeiros meses de 2009.

Hoje, a China é o maior parceiro comercial do Brasil, do Chile e do Peru no continente sul-americano, e está entre os três maiores parceiros comerciais de todos os países do continente. Só no caso brasileiro, 30,6% de suas exportações em 2023 foram para a China, que foi ao mesmo tempo o maior fornecedor de bens importados pelo Brasil. E oito países sul-americanos já fazem parte da iniciativa da Belt and Road chinesa: Argentina, Peru, Bolívia, Chile, Guiana, Suriname, Uruguai e Venezuela.

Na linguagem estruturalista clássica, pode-se afirmar que nesse período a China se transformou no novo “centro cíclico principal” da economia sul-americana. E hoje, como no passado, o principal interesse dos chineses na América do Sul segue sendo seus recursos naturais e minerais, apesar de também estarem participando das grandes licitações governamentais da região. E o cenário para os próximos anos promete uma oferta excedente de produtos e capitais chineses, que deve derrubar barreiras e constituir um imenso desafio competitivo para os capitais norte-americanos e brasileiros.

 

A nova estratégia norte-americana de “polarização mundial”

 

A terceira grande mudança aconteceu no campo das relações da América do Sul com os Estados Unidos, que nunca abandonaram sua Doutrina Monroe, formulada em 1823 com o objetivo de combater e expulsar a influência europeia do continente sul-americano. A diferença é que, no século XIX, esse discurso era contrário aos interesses das potências coloniais europeias, e favorável à independência de suas colônias sul-americanas.

Na primeira metade do século XX, entretanto, a mesma doutrina legitimou a intervenção norte-americana na América Central e Caribe, para mudar governos e regimes que eles consideravam contrários aos seus interesses. E na segunda metade do século, ela voltou a ser utilizada para “proteger” os países da América do Sul, só que agora contra a “ameaça comunista”, que justificou o apoio norte-americano a uma sucessão de golpes e regimes militares que liquidaram a democracia no continente, destruindo ao mesmo tempo sua soberania e seus projetos autônomos de futuro.

No início do século XXI, durante a sua “guerra global ao terrorismo”, os Estados Unidos reduziram seu grau de envolvimento político com os assuntos sul-americanos. Um “déficit de atenção” que durou até o “desembarque” econômico dos chineses na América do Sul na segunda década do século, e até o início do conflito entre os Estados Unidos e a Rússia, na Ucrânia, após o golpe de Estado de 2014.

Desde então, os Estados Unidos vêm se propondo “repolarizar o mundo” no estilo da Guerra Fria do século XX, de maneira que os demais países do sistema internacional, e também da América do Sul, teriam que se posicionar de um lado ou de outro da “linha vermelha” estabelecida por eles e seus aliado europeus.

 

O declínio do projeto de integração sul-americano

 

A maioria dos países sul-americanos superou o impacto da crise de 2008 mais rapidamente do que no resto do mundo, graças à grande demanda de seus produtos de exportação por parte das economias asiáticas, da China em particular, que sustentaram as quantidades e os preços das commodities sul-americanas num nível extremamente elevado.

Mas este sucesso de curto prazo provocou um efeito inesperado em toda a América do Sul, ao aprofundar, de forma paradoxal, as velhas dificuldades enfrentadas desde sempre pelo projeto de integração econômica da América do Sul. Basta dizer que, na América do Norte, o comércio intrarregional é da ordem de 40% do seu comércio global; na Ásia, de 58%; e na Europa, de 68%; enquanto na América do Sul, mal chega aos 18%.

 

Os caminhos do futuro

 

Dividida em blocos, e com a maior parte dos países separados ou distantes do Brasil, por conta do contencioso venezuelano, a América do Sul deverá se manter na sua condição tradicional de periferia econômica do sistema internacional, mesmo diversificando e ampliando seus mercados na direção da Ásia. Para não ser assim, o Brasil terá que assumir a “liderança material” do continente, construindo uma estrutura produtiva que combine indústrias de alto valor agregado e tecnologias de ponta, com a produção de alimentos e commodities de alta produtividade, mantendo sua condição de grande produtor de energia tradicional e “energia limpa”.

Neste caso, o Brasil poderá mudar o rumo da região, transformando-se na sua “locomotiva econômica”, por cima das divergências políticas e ideológicas que hoje dividem e imobilizam um continente que – sem o Brasil – não tem a menor relevância geopolítica dentro do Sistema Mundial.

Neste ponto, entretanto, não há como enganar-se: o Brasil enfrentará nos próximos anos uma concorrência acirrada e um boicote explicito do governo de Donald Trump que considera que a única relevância da América do Sul é pertencer ao “quintal dos Estados Unidos”.

*José Luís Fiori é professor emérito da UFRJ. Autor, entre outros livros, de Uma teoria do poder global (Vozes)

 

A nova onda de falta de controle nas redes sociais, por Ana Fontes

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Em que momento da nossa história combater preconceitos passou a ser secundário?

Ana Fontes, É empreendedora social e fundadora da RME (Rede Mulher Empreendedora). Vice-presidente do Conselho do Pacto Global da ONU Brasil e membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável da Presidência da República

Folha de São Paulo, 18/01/2025

Onde foi que nos perdemos? Quando pautas de direitos humanos se tornaram pautas político-partidárias? Em que momento da nossa história combater preconceitos, defender o clima, promover inclusão e diversidade passaram a ser secundários? Essas questões deveriam ser universais, abraçadas por todos que acreditam em um mundo melhor, onde cada pessoa tem acesso a direitos básicos como água potável, saúde, educação e alimentação. Em suma, o direito a uma vida digna.

Como chegamos a esse ponto de retrocesso? Um movimento preocupante nas grandes empresas já era visível desde o final de 2024, quando muitas encerraram áreas dedicadas à sustentabilidade e diversidade. Para quem já considerava isso um retrocesso grave, o cenário ganhou contornos ainda mais sombrios em janeiro deste ano, com o anúncio de Mark Zuckemberg.

O criador da Meta declarou que irá seguir os passos de Elon Musk, dono da plataforma X (antigo Twitter), em uma política que privilegia a “liberdade de expressão” —um alinhamento direto com o discurso do governo Trump, que reassume a presidência dos Estados Unidos neste mês. Este movimento que eu defino como meninos mimados liderando o mundo, é perigoso de infinitas formas.

Entre as medidas anunciadas, Zuckerberg decidiu encerrar os programas profissionais de checagem de fatos em suas plataformas, substituindo-os por um sistema de “colaboração da comunidade”, o mesmo modelo usado por Musk. Segundo ele, a ideia é garantir a liberdade de expressão dos usuários.

Contudo, as consequências dessa decisão são previsíveis. Em suas próprias palavras, as instituições foram “castradas” e precisam de uma “energia mais masculina”. Essa narrativa reflete o poder de homens que, embora privilegiados, ignoram responsabilidades sociais.

Os efeitos desse posicionamento são claros: meninas/mulheres e outros grupos minorizados que são alvos recorrentes de ataques online serão ainda mais vulneráveis. Com a falta de regulação e a permissão para conteúdo prejudicial, essas populações enfrentarão riscos crescentes para sua saúde física e mental. É um reflexo direto do aumento do efeito backlash —uma resposta coordenada e negativa contra avanços sociais, ou seja um retrocesso.

Em contraste, o governo brasileiro já se posicionou afirmando que tais mudanças violam a Constituição. Ainda assim, resta o desafio de pressionar grandes empresas para que reintegrem pautas sociais em suas estratégias corporativas. Essas questões são cruciais para garantir o bem-estar de meninas e mulheres no Brasil e no mundo.

O que precisamos é de um esforço coletivo para resistir a esse retrocesso e reafirmar a importância dos direitos básicos e da dignidade humana como pilares fundamentais da sociedade.

 

O ameaçador mundo novo, por Fernando Gabeira,

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Fernando Gabeira, O Estado de São Paulo, 17/01/2025

O anúncio da Meta indicando que vai alterar seu sistema de trabalho trouxe um grande debate ao Brasil. A empresa decidiu acabar com a estrutura de mediação dos posts e aceitar alguns comportamentos retrógradas, como associar orientação sexual a doença.

Nem todas as decisões da Meta coincidem com a legislação brasileira, bastante clara sobre racismo e homofobia. Certamente não coincide com a legislação escocesa, que recentemente lançou um ato sobretudo para proteger as pessoas trans.

É mais ou menos consenso que as empresas têm o direito de definir suas normas, mas precisam respeitar as legislações nacionais. É uma questão de soberania.

No entanto, por mais acalorado que seja, esse debate não atinge ainda a dimensão das mudanças que estamos experimentando. Formou-se uma coalizão de bilionários em torno do governo Donald Trump, alguns deles como Elon Musk e Mark Zuckerberg, donos das big techs que controlam a infra do debate mundial nas redes.

Esse é um desafio histórico, sem precedentes e muito imediato para que possamos ter alternativas acabadas para ele.

Uma linha de raciocínio e também de estudo é compreender que a ideia de soberania nacional não pode se limitar a um debate sobre como aplicar a lei nas redes, mas precisa avançar desse plano simbólico para o plano econômico.

As redes sociais têm hoje uma importância enorme no comércio assim como são a chance de renda para milhares de trabalhadores autônomos. Sem elas, viveríamos um baque sem precedentes.

Lula da Silva fez uma reunião para ver como tratariam as normas da Meta, que na verdade tornaram-se idênticas às do X. Ao invés de estruturas de moderação, existem notas da comunidade. Portanto a Meta vai argumentar que atua no mesmo nível de legalidade do X. O argumento de que atinge um número maior de usuários não tem fundamento, na medida em que a lei não diferencia o tratamento das redes pelo número de usuários.

Uma das reuniões necessárias poderia, por exemplo, avaliar possibilidade de reduzirmos a dependência das big techs. Esse tipo de reunião tem de contar com gente que conheça bem e consiga mapear o longo e áspero caminho pela frente.

Não sou especialista nesses temas. Mas tenho uma intuição na qual pretendo trabalhar. Essa coalizão que se formou em torno de Trump e tende a favorecer a extrema direita mundial, além de superpoderosa, nega as mudanças climáticas.

Alguns dos caminhos de adaptação às mudanças climáticas coincidem com a possibilidade de reduzirmos o poder das big techs sobre as estruturas nacionais.

Um deles é a transição energética no sentido da produção de energia barata, abundante e renovável. Esse tópico é essencial nos dois aspectos: redução das emissões e possibilidade de fornecer a matéria-prima para um mundo em que a inteligência artificial (IA) tem papel dominante.

A quantidade de energia que os centros de dados demandam é brutal e já tem um peso no consumo norte-americano. Alguns especialistas costumam dizer que a IA, para ter as mesmas possibilidades da mente humana, precisa da energia de toda uma hidroelétrica. Pode ser uma força de expressão, mas serve para ilustrar o problema.

Em termos de defesa diante das big techs, a descentralização que é demandada num mundo mais sustentável precisa se dar também na infraestrutura de comunicação. Quantos satélites temos, quantos precisamos, quem nos ajudará a lançá-los no espaço? Como estão as redes de fibra ótica, como construir novas e descentralizadas?

Da mesma forma, talvez seja preciso desenvolver tecnologias de comunicação offline, como servidores locais e intranet.

Assim como nas mudanças climáticas, é necessário incentivar a produção local para reduzir a dependência de cadeias globais.

Na pandemia, vimos nossas lacunas em material médico, abundante na Índia e China. Na guerra da Ucrânia, sentimos a falta de fertilizantes.

Além disso, precisaríamos avançar na formação de mão de obra qualificada em setores críticos: cibersegurança, engenharia de redes e gestão de crise.

Ideal também seria criar sistemas redundantes para várias rotas de cabos submarinos para comunicação global.

Enfim, será preciso investimento numa economia diversificada em inovação e tecnologia, e ainda assim estaríamos dependentes das redes pela sua importância decisiva para nossa sobrevivência.

As ideias que estou apresentando são apenas as que nascem da própria luta contra o aquecimento global, e também de sugestões da própria IA confrontada com a pergunta: o que um país pode fazer para se tornar menos dependente das redes?

Hoje estamos diante de uma realidade sem precedentes. O mundo caminha para ultrapassar os limites planejados para o aquecimento global e, ao mesmo tempo, está diante de uma forte coalizão de big techs em torno de um governo que nega o fenômeno, duvida das vacinas e não reconhece a necessidade de proteção de setores vulneráveis.

As tarefas para enfrentar esse novo momento são gigantescas. Diante delas as pequenas divergências são insignificantes, assim como a necessidade do diálogo é urgente, mesmo que a gente reconheça que nossas propostas são ainda embrionárias e só o tempo e a troca coletiva poderão amadurecê-las.

JORNALISTA

 

Varoufakis: Trump topará na muralha da China

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Planos do futuro presidente são contraditórios e escondem um provável desafio a Pequim. Mas os chineses resistirão. A dúvida é: estarão também dispostos a dar um grande salto e criar, em torno dos BRICS, uma ordem alternativa à do dólar?

Yanis Varoufakis – OUTRAS PALAVRAS – 16/01/2025

Donald Trump quer impulsionar as exportações de seu país, trazer empregos de volta para os Estados Unidos e reduzir o déficit comercial norte-americano. Para isso, ele precisa de um dólar mais fraco. Mas, ao mesmo tempo, ele quer um dólar forte, e não tolerará qualquer discussão sobre o fim do privilégio exorbitante da supremacia do dólar americano nas transações internacionais.

Trump pode ter ambos? Seu primeiro problema é que introduzir tarifas sobre produtos importados, projeto que anunciou com alarde, e no qual investiu muito capital político, provavelmente aumentará o valor do dólar.

Por quê? Principalmente porque toda vez que há incerteza global, devido a um problema que emana dos Estados Unidos — seja a crise de 2008 ou qualquer outra –, há, paradoxalmente, uma corrida de dinheiro estrangeiro para os Estados Unidos, elevando o valor do dólar.

Se as tarifas de Trump criarem incerteza global, o resultado provável será um aumento no valor do dólar. E esse é o seu primeiro problema. O resultado será que, mesmo que as importações inicialmente diminuam como resultado das tarifas elevadas, a entrada de capital nos Estados Unidos impulsionará o valor do dólar. Isso anulará quaisquer efeitos que as tarifas tenham tido, na limitação das importações e no aumento das exportações americanas.

O segundo problema de Donald Trump é que, se ele levar adiante suas propostas de grandes cortes de impostos, especialmente para corporações e oligarcas extremamente ricos dos Estados Unidos, isso também atrairá capital estrangeiro para seu país. E o que este movimento fará? Aumentará o valor do dólar e, assim, ampliará o abismo entre a poupança e o investimento norte-americanos — o investimento é muito maior do que a poupança – o que é uma das causas fundamentais do déficit comercial dos EUA.

O terceiro problema de Trump é o privilégio exorbitante do dólar. É a razão pela qual, sempre que há uma crise (especialmente quando se origina nos Estados Unidos), o dólar sobe e o déficit comercial dos EUA piora, especialmente durante períodos de redução da demanda e empregos nos Estados Unidos.

Portanto, se Donald Trump realmente quisesse reduzir o déficit comercial norte-americano, ele teria que acabar com o privilégio exorbitante do dólar. Mas, é claro, ele nunca permitirá isso, porque seus melhores amigos, sua tribo, são os rentistas e os financistas – que ficariam horrorizados se os Estados Unidos perdessem o privilégio exorbitante do dólar. É altamente improvável que Donald Trump queira ser o primeiro presidente norte-americano, desde a Segunda Guerra Mundial, a perder o poder hegemônico dos Estados Unidos, ao abrir mão do privilégio exorbitante do dólar.

Alguns argumentam – e acredito que têm razão, ao menos em parte – que talvez o que ele esteja tentando fazer é ameaçar o mundo, a China e a União Europeia em particular, com tarifas muito altas. O objetivo real seria chegar a um acordo que os leve a aceitar uma desvalorização do yuan, do euro e de outras moedas concorrentes, para que os Estados Unidos possam ver suas exportações aumentarem e as importações diminuírem.

Em outras palavras, fazer um acordo. Algo semelhante ao que Ronald Reagan fez em 1985. Os infames Acordos da Plaza supostamente foram uma reunião multilateral entre europeus, norte-americanos, canadenses, australianos. Na realidade, representaram um ultimato de Washington a Tóquio. Apreciem fortemente o iene! Caso contrário, vamos impor grandes tarifas sobre as exportações japonesas. Os japoneses cederam. Aceitar os Acordos de Plaza foi razão pela qual as enormes taxas de crescimento econômico vividas pelo Japão entre 1950 e 1985 despencaram, e porque o país perdeu seu vigor e dinamismo.

É provável que a China aceite um novo Acordo da Plaza? Eu atribuo probabilidade zero a essa hipótese. A China não é o Japão.

O Japão era um país ocupado pelos Estados Unidos. Os Estados Unidos escreveram sua Constituição. Ainda há dezenas de milhares de soldados norte-americanos ocupando Okinawa. A China, volto a repetir, não é o Japão. É altamente improvável que aceitem isso, especialmente em um momento em que a conta de capital do país, do ponto de vista econômico, recomendaria uma desvalorização do yuan.

Os chineses nunca aceitarão uma grande valorização de sua moeda, que faça a diferença para o déficit comercial dos Estados Unidos, da maneira que Donald Trump gostaria. Contar com isso é atirar pedras à Lua.

Não há novos Acordos da Plaza entre os Estados Unidos e Pequim no horizonte, agora. Nesse sentido, parece muito improvável que Donald Trump consiga alcançar seus dois objetivos ao mesmo tempo: reduzir o déficit comercial dos EUA e manter o privilégio exorbitante do dólar.

A grande questão, no entanto, para 2025 e além, diz respeito ao dilema da China. Pequim decidirá manter-se estática, ganhando tempo até que as contradições internas dos Estados Unidos – o dilema de Trump – se desenrolem?

Ou Pequim fará a escolha, que ainda não fez? O governo chinês ainda não tomou uma decisão, e penso que fará isso em algum momento: tomar a decisão de converter a área dos BRICS em uma nova versão de Bretton Woods.

Assim como Bretton Woods tinha em seu centro o dólar norte-americano, a área dos BRICS teria o yuan como moeda central, com taxas de câmbio mais ou menos fixas entre o a moeda chinesa, a rúpia indiana e outras, e com o objetivo de reciclar os superávits da China dentro da área dos BRICS. Este seria o maior e mais letal perigo para o privilégio exorbitante do dólar.

Essa ainda não é uma decisão tomada. Em 2025 ou nos anos seguintes, penso que saberemos a resposta. Até lá, fiquem bem.

 

O que fazer para estabilizar a economia? Por Paulo Nogueira Batista Júnior

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Paulo Nogueira Batista Júnior

É preciso vencer a resistência da plutocracia nacional, que controla o Congresso e a mídia corporativa

A Terra é Redonda, 17/01/2025

Desde o final de novembro de 2024, a economia brasileira passou por intensa instabilidade financeira e cambial. Foi o pior momento da economia no governo Lula. Os mercados ficaram mais calmos neste início de ano, mas o câmbio permanece acima de 6 reis por dólar, com impacto adverso sobre a taxa de inflação e os juros.

O que fazer? Vou passar em revista algumas alternativas, sem a pretensão de esgotar o assunto ou sequer de fazer justiça às possibilidades que serão aventadas.

Há dois tipos de medidas: as mais convencionais e as menos rotineiras. O mais natural seria começar pelas convencionais. O governo já está tomando ou programando algumas medidas desse tipo.

No que diz respeito à política fiscal, é recomendável, em primeiro lugar, tomar providências adicionais de ajustamento para dissipar percepções ainda predominantemente negativas sobre as contas públicas. Medidas adicionais reduziriam as necessidades de financiamento do governo e a sua dependência em relação ao mercado financeiro. Em paralelo, caberia confirmar que o aumento da faixa de isenção do imposto de renda será compensado integralmente pelo aumento das alíquotas efetivas sobre os contribuintes de alta renda, especificando de que maneiras eles seriam chamados a contribuir mais.

Outro ponto importante seria reforçar a posição do ministro Fernando Haddad dentro do governo. Nos últimos meses, disseminou-se a suspeita de que ele estaria enfraquecido, o que contribuiu para o tumulto financeiro e a depreciação do real. Se o Presidente Lula atuar para desfazer essa suspeita, ficará mais fácil acalmar o mercado e formar expectativas positivas em relação à política fiscal.

Não se deve esquecer, leitor ou leitora, que dentro de qualquer governo todos os ministros querem gastar, menos um, o da Fazenda, que quer economizar. Por isso, ele é o único que nunca pode ser “fritado”. Mas, pensando melhor, essa observação deve ser supérflua, uma vez que o Presidente da República, no seu terceiro mandato, é um líder político super tarimbado.

Seja como for, o governo deve ter em mente que o ajuste fiscal envolve, sempre e em qualquer parte, um conflito distributivo. Ou seja: implica escolher quem será onerado por cortes de despesas ou aumentos da carga tributária. Como o Brasil apresenta elevado grau de concentração da renda e da riqueza, o ajuste deve ser progressivo ou, no mínimo, neutro em termos distributivos. Isso significa que não só o imposto de renda, mas também os cortes de gastos, inclusive de isenções e incentivos, devem mirar sobretudo os setores de renda alta. Em suma, o ajuste deve ser compatível com o mote que foi usado por Lula na campanha eleitoral – “colocar o pobre no orçamento; e o rico no imposto de renda”.

Isso é mais fácil de dizer do que fazer, como se sabe. Mas promessa é promessa. Tanto mais, ressalte-se, que os juros continuarão elevados em 2025, contribuindo para concentrar a renda nacional. Se a política fiscal também for injusta, o governo Lula promoverá concentração da renda por duas vias, pela política fiscal e pela política monetária, em flagrante conflito com a sua base social e o discurso de campanha.

De novo, é muito improvável que o presidente Lula se disponha a fazer tal estelionato eleitoral. Experiente como é, sabe certamente que estelionato eleitoral costuma ser severamente punido no Brasil – Fernando Henrique Cardoso, para mencionar apenas um exemplo, nunca se recuperou politicamente do estelionato de 1998.

Evidentemente, admitir que os juros continuarão altos durante 2025 não significa supor que eles não possam diminuir em algum momento, digamos, do segundo trimestre em diante. Se a política fiscal seguir o caminho antes mencionado e a posição do Ministro da Fazenda for reforçada, o Banco Central terá a oportunidade, que não deveria perder, de baixar a taxa de juro gradualmente.

E não é só a política fiscal que pode contribuir para juros menores. O Banco Central nem sempre usa, como poderia, todos os instrumentos de que dispõe para induzir uma queda do dólar e baixar os juros. Alguns são tradicionais, como vender swaps cambiais ou lançar mão das reservas internacionais para intervenções pontuais no mercado de câmbio à vista.

Apesar da perda de cerca de US$ 30 bilhões no final do ano passado, as reservas continuam elevadas e podem ser acionadas para sufocar turbulências cambiais. E a venda de swaps é uma forma de oferecer hedge cambial e defender o real sem gastar reservas, assumindo obrigações denominadas em moeda nacional.

Outros instrumentos são mais inovadores se comparados à experiência brasileira das décadas recentes. Menciono três deles, em apertada síntese. Todos eles têm seus riscos, mas podem ser recomendáveis, especialmente se houver novos episódios de turbulência.

Primeiro instrumento: autorizar o Banco Central a operar, quando oportuno, ao longo da curva de juros, influenciando as taxas longas, como fazem alguns dos principais bancos centrais, inclusive o dos EUA.

Segundo: reintroduzir controles de capital, modernizados para incidir sobre derivativos, que correspondem hoje à maior parte das operações de mercado. O Banco Central e Receita Federal passariam a atuar em conjunto para regular e fiscalizar as remessas de capital dos ricos e super ricos ao exterior. Para esse e outros fins, a Receita deveria recriar uma unidade dedicada os grandes contribuintes.

Terceiro: o Banco Central e o Tesouro podem explorar a possibilidade de captar recursos externos de fontes governamentais, em montante apreciável e em condições de prazo e custo mais favoráveis do que as do mercado interno. Esses recursos teriam que ser usados exclusivamente para substituir uma parte da dívida interna por dívida externa, e não para financiar um aumento do déficit fiscal ou a acumulação de reservas internacionais. Com isso, melhoraria o perfil da dívida pública, aumentaria a sua estabilidade e o governo ficaria menos dependente do financiamento doméstico.

Em suma, se a política fiscal for reforçada, se o Banco Central contribuir, por seu lado, para a valorização do real e a queda dos juros, e se for possível, além disso, negociar financiamento externo junto a novas fontes, o governo teria condições de estabilizar os mercados financeiros e cambiais e retomar a trajetória econômica bem-sucedida de 2023 e 2024.

Uma ressalva final. Algumas das medidas acima, especialmente as não convencionais, esbarrariam na resistência da plutocracia nacional, que controla o Congresso e a mídia corporativa. Para adotá-las, o governo teria que estar bem preparado do ponto de vista técnico e disposto a contrariar interesses poderosos.

Difícil, sem dúvida. Mas não é sempre difícil governar de forma justa, com o interesse do povo em mente? E não foi exatamente para isso que Lula se elegeu?

*Paulo Nogueira Batista Jr. é economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS. Autor, entre outros livros, de Estilhaços (Contracorrente)

 

As mutações do capital e a tragédia do rentismo, por Antonio Martins

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Mariana Mazzucato alerta: Estado comandou os avanços tecnológicos das últimas décadas – porém, os rentistas capturaram os resultados, e agora bloqueiam soluções para os grandes dilemas da crise civilizatória. A China tirou as lições corretas, mas é preciso ir além

OUTRAS PALAVRAS – 15/01/2025

Por Antonio Martins

Algumas falas iluminam. Autora de livros celebrados, como O Estado empreendedor, Missão Economia e O Valor de tudoa italiana Mariana Mazzucato integra um grupo de economistas que conseguiu aos poucos, nos últimos anos, cavar a crosta dos velhos dogmas e tornar visível a infâmia das relações sociais contemporâneas. Assessorou governos como os da Colômbia, México e Brasil. Tornou-se conhecida principalmente por sua ideia de políticas orientadas por missões. Mas uma entrevista que concedeu a Martin Wolf, principal analista econômico do Financial Times, no apagar das luzes de 2024, permite vislumbrar amplamente suas ideias e abre as portas para um exame mais profundo de sua obra.

No diálogo, Mariana oferece visões não convencionais, mas muito consistentes e provocadoras, sobre alguns dos principais fenômenos que marcaram as economias do Ocidente nas últimas décadas. Polemiza sobre a origem dos impulsos que permitiram a notável transformação tecnológica que levou à internet e todos os seus desdobramentos, ou a drogas e tratamentos revolucionários contra doenças como o câncer. Sustenta, contra o pensamento hegemônicoque o motor essencial foi a ação dos Estados.

Descreve, a seguir, a captura dos benefícios destas transformações, o que terminou gerando o caos desinformativo global patrocinado pelas Big Techs, ao apartheid vacinal. Frisa que este sequestro bloqueia agora o esforço que seria necessário – e perfeitamente possível – para fazer frente a desafios ainda mais urgentes: o empobrecimento das maiorias, as catástrofes climáticas, a falta de assistência digna à Saúde, o esgotamento das fontes de água. Mas ressalta: ainda é possível reverter o tempo perdido, se surgirem novas condições políticas. E vê como exemplo a China – onde o Estado não perdeu a capacidade de coordenar a inovação socialmente relevante, e ao promovê-la não favorece as megacorporações.

Na entrevista com Martin Wolf, o alvo da primeira lapada de Mazzucato é o mito da inovação comandada por jovens que se tornaram CEOs visionários, como Steve Jobs, Mark Zuckerberg ou Elon Musk. Em O Estado empreendedor, a economista descreve em detalhes o conjunto de “instituições estatais decentralizadas” que esteve por trás de todas as grandes inovações contemporâneas: a internet, os celulares, o GPS, a tela sensível ao toque, os assistentes virtuais. Os garotos legendários que iniciaram em suas garagens na Califórnia empresas hoje dominantes, ironiza ela, não partiram do nada.

Nos anos 1960 e 70, em meio à Guerra Fria, os EUA empreenderam um gigantesco esforço para superar tecnologicamente a URSS. O marco simbólico maior deste movimento foi a missão que o então presidente John Kennedy anunciou pela TV, em 1961: chegar à Lua naquela mesma década, antes dos soviéticos. Era tempos keynesianos e a fala de Kennedy expressava apenas a face mais pública de um processo que envolvia a criação de uma rede de agências e laboratórios estatais (boa parte deles dirigidos pela CIA e pelo Pentágono). Em paralelo, foram criados mecanismos de financiamento de longo prazo e de amortização de riscos – pois inovação se faz, necessariamente, por meio de tentativa e erro.

Mariana mostra como, por exemplo, a necessidade de fazer os satélites e centros de lançamento nuclear comunicaram-se entre si levou à criação da internet. Ou como o GPS surgiu do esforço para localizar os navios mercantes ou de guerra. Algo muito semelhante ocorreu na área de medicamentos. Nos EUA, o Institutos Nacionais de Saúde (NIH, em inglês) assumiram a pesquisa básica que levou às grandes inovações farmacêuticas contemporâneas – inclusive as vacinas de RNA, que permitiram responder em tempo recorde à covid.

Todo este movimento, Mariana prossegue, envolveu o setor privado – porém com coordenação inequivocamente estatal. Era preciso, por exemplo, encontrar maneiras de alimentar os astronautas, de vesti-los, de resolver o problema do banheiro. A NASA encomendava soluções, de maneira inteligente e desburocratizada, trocando o critério tosco do “preço mais baixo” pelo estímulo à inovação constante.

Quando estas inovações amadureceram, o capitalismo havia assumido a brutalidade neoliberal – por isso, dá-se a captura. Seus aspectos mais evidentes são o controle da internet por um oligopólio privado e o apartheid vacinal. O Estado criou a rede capaz de estabelecer uma intercomunicação humana jamais sonhada antes. Mas permite que ela seja reduzida a “jardins murados”, onde quatro grandes corporações apropriam-se da produção intelectual e simbólica de bilhões de pessoas, e onde viceja a desinformação. No campo farmacêutico, um sistema estatal de patentes permite que megaempresas apropriem-se da tecnologia desenvolvida em laboratórios públicos, monopolizem a produção de vacinas e outros medicamentos de ponta e impeçam seu acesso pelas populações que mais necessitam. O sequestro da tecnologia é um dos elementos essenciais do rentismo.

O pior, adverte Mazzucato, é que sob a lógica neoliberal tornou-se impossível articular o mesmo tipo de esforço que levou o ser humano à Lua – agora, para enfrentar os problemas cruciais da crise civilizatória. Seria perfeitamente viável, provoca a economista, a partir de sua teoria de missões políticas. “Há 4,5 bilhões de pessoas, mais da metade da população do planeta, sem acesso a serviços adequados de saúde”, lembra ela – e provoca: por que não transformar este problema num desafio semelhante ao formulado em 1961? Por que não fazer o mesmo em relação ao aquecimento global, numa “missão zero emissões de carbono”, que exigiria mudanças na alimentação, nos transportes, na infraestrutura?

O que seria perfeitamente possível torna-se quimera não por faltarem os meios necessários, mas porque, ao menos no Ocidente, as grandes corporações apoderaram-se da política. Não são mais comandadas pelo Estado – controlam-no. A catástrofe climática mostra suas garras mas, uma após a outra, as conferências sobre o clima fracassam, porque ninguém ousa impor limites e orientações ao grande poder econômico. Os dogmas vigentes dizimaram a própria capacidade de planejamento das instituições estatais. “É otimo que o Estado trabalhe com outros agentes. Mas quando ele não tem o conhecimento, a inteligência e os instrumentos para isso (…) torna-se incapaz sequer de entender os problemas e estabelecer os termos de referência. Torna-se refém”, lamenta Mariana.

Tudo está perdido? A economista vê, em meio ao desastre que se aproxima, dois elementos de esperança. O primeiro exige uma mudança essencial de orientação política. Os Estados conservam a capacidade de mobilizar recursos – inclusive emitindo dinheiro. Fazem-no… nas guerras. “Com elas, o dinheiro é criado a partir do nada. Mesmo na Alemanha [conhecida pela rigidez fiscal], depois da Ucrânia, bilhões foram criados para o esforço bélico. Poucos meses antes, eles não sabiam se haveria recursos para o clima ou a saúde. Ao longo da história, todos os países foram capazes de emitir dinheiro, mas para nossos problemas sociais, fingimos que não temos. (…) Vamos admitir que não estamos fazendo nada diante dos impasses sociais porque preferimos não tratá-los como urgências”…

Ao contrário do que se passou no Ocidente, argumenta Mazzucato, a China desenvolveu a capacidade de colocar os desafios políticos acima do interesse das corporações. Os chineses “estão dominando os segredos do Estado empresarial dos Estados Unidos no exato instante em que estes estão desaprendendo. (…) Eles dão consequência a suas palavras. Fizeram enormes investimentos. Esta é razão para estarem muito adiante, na corrida pelas energias renováveis e pelos carros elétricos”.

Os impasses, contudo, são globais, frisa a economista ao final de sua entrevista. “Assim como não poderíamos ter um apartheid vacinal durante a pandemia, não podemos admitir um nacionalismo verde, porque o problema é global. Por isso são necessários, por exemplo, acordos de compartilhamento de conhecimento e tecnologia.

A crise civilizatória perdura e se aprofunda. No Ocidente, diante da falta de saídas reais, parcelas crescentes das sociedades são tomadas pelo ressentimento e aderem à ultradireita. As esquerdas tradicionais parecem incapazes de encontrar respostas. Conforme afirmou o sociólogo Manuel Castells num texto recente, têm dificuldades de encarar “sociedades em plena transformação ecológica, tecnológica, cultural e política”, porque “aferram-se a marcos mentais, ideologias e táticas que não se conectam à maioria das pessoas – especialmente os jovens”. Ao desfazer mitos sobre as causas desta crise e ao mostrar caminhos para superá-la, Mariana Mazzucato merece atenção.

 

O país dos não leitores, por Ruy Castro

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73% dos brasileiros não leram um livro até o fim em 2024 nem para saber se o assassino era o mordomo

Ruy Castro, Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues, é membro da Academia Brasileira de Letras.

Folha de São Paulo, 17/01/2025

São números terríveis, deprimentes, divulgados há pouco. Segundo a nova edição da pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil” do Instituto Pró-Livro, concluída em 2024, 53% das pessoas ouvidas admitiram que, nos três meses anteriores, não tinham lido um só livro, nem mesmo em parte. E isso em qualquer mídia, física ou digital, e gênero. Não apenas a frágil área de literatura, biografia, história, infantil ou ensaio fora desprezada —nem os didáticos e religiosos, incluindo a Bíblia, mereceram uma vista d’olhos. A pesquisa revelou que, pela primeira vez, desde 2007, quando ela começou, o Brasil tem mais não leitores do que leitores.

Ao perguntarem aos 47% de leitores se haviam lido o livro inteiro, o número caiu para 27%. Ou seja, em 2024, 73% dos brasileiros não leram um livro até o fim nem para saber se o assassino era o mordomo.


Comparada à pesquisa anterior, em 2019, sete milhões de pessoas tinham abandonado os livros, em todos os graus de escolaridade, classe social e faixa etária. Significa que o Brasil perdeu cerca de 1 milhão de leitores por ano. A pesquisa ouviu 5.500 pessoas em 208 municípios.

Cerca de 75% dos entrevistados admitiram que passam mais tempo diante de uma tela do que de uma página impressa. Se isso é consolo, o sujeito fica mais tempo com os olhos a 10 centímetros da tela do que fazendo qualquer outra coisa, como trabalhar, namorar, admirar a paisagem ou não fazer nada. Eu arriscaria que 90% desse tempo diante da tela também não resultam em nada de útil ou objetivo. Não se olha necessariamente para a tela em busca de um dado, uma notícia ou uma informação. Olha-se para a tela, só isso.

O desinteresse pela leitura aumenta à medida que a pessoa cresce e conclui a escola ou a deixa pelo meio. Somente 17% entre os acima de 40 anos disseram que gostam de ler. É terrível porque, quem tem hoje 40 anos, nasceu em 1985 e viveu os últimos anos de um mundo em que a leitura ainda não fora esmagada pelas mídias audiovisuais. O que aconteceu a ele para abandonar um hábito que ainda lhe foi incutido na infância?

Não sei. Só sei que fracassamos.