Um keynesiano-estruturalista no tempo da globalização.

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Autor: Entrevista com o economista Luiz Carlos Bresser Pereira.

Véspera da homenagem que esta associação fez a Luiz Carlos Bresser-Pereira em seu IV Encontro Internacional, São Paulo, 21 de agosto de 2012.

a) Por que você resolveu estudar economia?
Em 1955 eu estava começando o terceiro ano de Direito na USP, e, de repente, caiu-me nas mãos os textos dos intelectuais nacionalistas do ISEB sobre a industrialização Brasileira e o pacto desenvolvimentista que Getúlio Vargas estava liderando. Decidi então que não buscaria mais ser juiz de direito; eu seria um economista ou um sociólogo do desenvolvimento. A decisão pela economia aconteceu quando, em 1962, logrei que Antonio Delfim Netto me aceitasse no programa de doutorado da Faculdade de Economia e Administração da USP.

b) Em que momento você teve contato com as ideias de Keynes? Qual foi sua reação a elas?
Eu primeiro me tornei um economista estruturalista e, em seguida, também um keynesiano. Comecei a estudar a história do pensamento econômico em 1959, quando fiz o concurso para a FGV. E continuei a estuda-lo nos Estados Unidos em 1960, quando fiz meu MBA. Ao mesmo tempo que lia meus mestres, Arthur Lewis, Myrdall, eu lia Marx, Keynes, Kalecki e Schumpeter. Primeiro, dei aulas de desenvolvimento econômico, a partir de 1968, e, a partir de 1970, macroeconomia, quando criei o Departamento de Economia na Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas.

c) Que pessoas você considera seus mentores no estudo de economia?
Meus mestres de economia brasileira foram Ignácio Rangel e Celso Furtado; meus mestres de teoria econômica geral, Marx e Keynes.

d) Você se considera um economista Keynesiano ou Pós Keynesiano? Como você se diferencia de Keynesianos como Stiglitz e Krugman?
Eu sou um economista keynesiano-estruturalista. A teoria econômica está dividida em escolas, mas felizmente existe uma Teoria Econômica Básica onde estão os princípios da teoria do desenvolvimento capitalista e da teoria microeconômica clássicas e da macroeconomia keynesiana que estão de alguma forma presentes em um bom texto introdutório de Economia. Stiglitz e Krugman são antes neoclássicos; mas, como aprenderam essa Teoria Econômica Básica e são profundamente inteligentes e criativos, esquecem seus modelos hipotético-dedutivos quando analisam a realidade econômica, e podem ser considerados neokeynesianos. Um verdadeiro keynesiano deve pensar historicamente. Deve construir modelos históricos, não construir castelos matemáticos sem correspondência na realidade. Nos últimos 20 anos eu logrei elaborar uma crítica da teoria econômica neoclássica que me parece original e decisiva. Ao invés de simplesmente afirmar que os modelos neoclássicos não são realistas, eu expliquei por que eles não são nem podem ser realistas. Essas ideias estão no paper, “Os dois métodos e o núcleo duro da teoria econômica” que eu demorei 15 anos para escrever. Eu parto de uma classificação de ciências em metodológicas e substantivas, estas, por sua vez, dividindo-se em ciências naturais e ciências sociais ou históricas. As primeiras usam o método hipotético-dedutivo, porque não tem objeto empírico de estudo; elas ajudam a pensar. Já as ciências substantivas devem usar o método empírico-dedutivo ou histórico-dedutivo se forem ciências sociais como é a economia. A teoria econômica neoclássica ignorou essa distinção e, com os axiomas do homo economicus, das expectativas racionais e dos rendimentos decrescentes, tornou-se uma “ciência” hipotético-dedutiva, cujo critério de verdade não é a aderência à realidade mas uma certa coerência lógica. Ora, uma ciência substantiva que não adere à realidade é uma falsa ciência; é mero exercício lógico-matemática destituído de validade. De acordo com esta minha visão, a microeconomia marshalliana livrada da teoria subjetiva do valor juntamente com a teoria dos jogos não constituem o microfundamento da Economia mas são a base de uma ciência metodológica como é também a Econometria: a Teoria da Tomada de Decisão Econômica. Temos, assim, três ciências complementares, uma substantiva, que analisa os sistemas econômicos – a Economia ou Economia Política –, que usa o método histórico, e duas metodológicas que usam o método hipotético-dedutivo: a Teoria da Tomada de Decisão Econômica e a Econometria.

e) Como sua opção teórica se relaciona com sua visão política do mundo? Por que? Você se considera um socialdemocrata?
Eu sempre me considerei um desenvolvimentista de centro-esquerda. Quero uma sociedade mais desenvolvida e mais justa que caminhe na direção do socialismo no longo prazo Sempre fui, portanto, um socialdemocrata. Mais do que compatíveis, a teoria estruturalista do desenvolvimento e a macroeconomia keynesiana são teorias históricas instrumentais para que alcancemos esses objetivos – para que administremos o capitalismo mais competentemente e com mais justiça que os liberais. Atualmente estou ajudando a construir uma macroeconomia estruturalista do desenvolvimento que une a visão keynesiana e estruturalista.

f) Qual a sua maior contribuição para o desenvolvimento do pensamento keynesiano ou heterodoxo?
Enumero três: (1) o modelo histórico de desenvolvimento, distribuição e progresso técnico com a inversão do modelo clássico de distribuição, eu está em Lucro, Acumulação e Crise (1986); (2) a teoria da inflação inercial, com Yoshiaki Nakano, que está em Inflação e Recessão (1984); e (3) a macroeconomia estruturalista do desenvolvimento, que está em Globalização e Competição (2010).

g) Olhando os seus escritos acadêmicos pode-se perceber uma mudança no foco de interesse entre os anos 1990 e 2000. Com efeito, na década de 1990 você parecia estar mais interessado com questões relacionadas a eficiência na governança do Estado; ao passo que na década de 2000 seu interesse passa a ser a “macroeconomia da estagnação brasileira”. O que motivou essa mudança de foco?
Minha preocupação com o a eficiência do aparelho do Estado decorreu de haver sido nomeado Ministro da Administração Federal e Reforma do Estado (1995-98). Quando, em 1999, voltei para a vida acadêmica, voltei a dedicar-me ao desenvolvimento econômico e à macroeconomia, e as juntei não na “macroeconomia da estagnação brasileira” (esse é apenas o título de um livro meu de 2007 sobre a economia brasileira), mas na macroeconomia estruturalista do desenvolvimento.

h) No ano de 2002, você publicou um paper com o Nakano intitulado “Uma estratégia de desenvolvimento com estabilidade”. Aparentemente esse paper marca a retomada do seu interesse por questões relacionadas ao desenvolvimento econômico, com ênfase na “semi-estagnação brasileira”. A linha de raciocínio ali exposta vai culminar com seu livro “A Macroeconomia da Estagnação”, publicado em 2007. Fale sobre o desenvolvimento de suas ideias entre o paper de 2002 e o livro de 2007.
Depois que, com o uso da teoria da inflação inercial o Brasil logrou estabilizar sua alta inflação inercial eu pensei que se desenvolveria de forma extraordinária. Por isso, fiquei decepcionado com a política econômica do governo Fernando Henrique Cardoso. Nos quatro anos e meio que permaneci em seu governo manifestei sempre ao presidente meu desacordo com a política ortodoxa que estava sendo praticada baseada em altas taxas de juros e taxa de câmbio sobreapreciada. Comecei a fazer minha crítica ainda em 1999, no trabalho, “Incompetência e confidence building por trás de 20 anos de quase-estagnação da América Latina”. Quando, em 2001, meu velho companheiro de estudos e trabalhos, Yoshiaki Nakano, também se desligou do governo, convidei-o para escrever, sucessivamente, dois papers, “Uma estratégia de desenvolvimento com estabilidade” e “Crescimento econômico com poupança externa”. Em seguida eu continuei a trabalhar na crítica da poupança externa e da tese da restrição externa ao mesmo tempo que orientava duas teses de doutorado sobre a taxa de câmbio (de Paulo Gala e de Lauro Gonzales). Em seguida, escrevi um outro modelo fundamental, o da doença holandesa, no qual apareceu o conceito de equilíbrio industrial. Esses desenvolvimentos teóricos foram essenciais para que eu publicasse em 2007 “Macroeconomia da Estagnação”. Terminado o livro, desenvolvi o terceiro modelo da macroeconomia estruturalista do desenvolvimento, o modelo da tendência à sobreapreciação cíclica e crônica da taxa de câmbio que, em seguida, me permitiu escrever o livro teórico para mim fundamental, “Globalização e Competição”.

i) Você é o responsável pela criação do conceito “novo-desenvolvimentismo”. Conte-nos um pouco sobre o processo de criação desse conceito. É verdade que o termo “novo-desenvolvimentismo” foi ideia do Nakano?
Depois de termos escrito os dois papers acima referidos eu fiquei convencido que começávamos a definir uma nova abordagem para o desenvolvimento econômico e a macroeconomia. Disse isso ao Nakano e perguntei que nome poderíamos dar para as novas ideias. Ele sugeriu “novo desenvolvimentismo”. Eu imediatamente aceitei e na quinta edição de meu livro Desenvolvimento e Crise no Brasil (2003)discuti o novo desenvolvimentismo no último capítulo. Só, porém, em 2006 eu teria um artigo que me satisfez sobre o tema: “O novo desenvolvimentismo e a ortodoxia convencional”.

j) Nos últimos anos você tem desenvolvido um novo conceito “a macroeconomia estruturalista do desenvolvimento”. Qual a relação da mesma com o “novo-desenvolvimentismo”? Por que razão você considera a “macroeconomia estruturalista do desenvolvimento” uma nova escola de pensamento econômico?
Sempre defini o novo desenvolvimentismo como uma estratégia nacional de desenvolvimento, como a instituição fundamental para o desenvolvimento econômico; a teoria que justifica esse conjunto de políticas econômicas é a macroeconomia estruturalista do desenvolvimento. Esta macroeconomia não é uma criação apenas minha. Outros economistas têm dela participado. Agora estou escrevendo um livro que deverá se chamar Structuralist Development Macroeconomics and New Developmentalism com você, José Luiz Oreiro, e com Nelson Marconi. São ideias novas. Um conjunto de modelos novos que renovam o estruturalismo e o keynesianismo. Por isso entendo que estamos criando no Brasil uma nova escola de pensamento. Uma escola que já tem participação internacional, como pudemos ver com a aprovação das 10 Theses on New Developmentalism que foi subscrita originalmente, em 2010, por 80 economistas de todo o mundo.

k) Quais são os princípios teóricos fundamentais da “macroeconomia estruturalista do desenvolvimento”? Qual a relação da mesma com o pensamento Keynesiano ou Pós-Keynesiano?
Na macroeconomia estruturalista do desenvolvimento temos três modelos principais: a crítica à política de crescimento com poupança externa e à tese de que os países em desenvolvimento enfrentam uma restrição externa; o modelo da doença holandesa com duas taxas de câmbio de equilíbrio e o conceito de taxa de câmbio de equilíbrio industrial – aquela taxa que torna competitivas as empresas utilizando tecnologia no estado da arte mundial; e o modelo da tendência à sobreapreciação cíclica e crônica da taxa de câmbio. Esses modelos colocam a taxa de câmbio pela primeira vez no centro da teoria do desenvolvimento. Essa é uma teoria keynesiano-estruturalista que analisa países em desenvolvimento de renda média no quadro histórico da globalização. É uma teoria que ao enfrentar problemas novos, em certos casos crítica o pensamento keynesiano e o pensamento estruturalista antigos. Por exemplo, para a macroeconomia estruturalista do desenvolvimento a crônica falta de dólares ou a “restrição externa” deriva muito mais de uma taxa de câmbio cronicamente sobreapreciada e, em consequência, de déficits em conta corrente injustificáveis, do que das elasticidade renda das importações e das exportações.

l) Como você avalia a Associação Keynesiana Brasileira?
Sinto-me honrado em ser um de seus patronos. Seus dirigentes são todos amigos próximos meus. Entendo que ela já está dando uma contribuição importante para o desenvolvimento do pensamento econômico brasileiro.

Há um sentimento mudancista

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Autor: Entrevista com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso – Revista Época – 25/29 de Março de 2013.

Aos 81 anos, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso é uma das cabeças mais privilegiadas do país. As características que o tornaram um dos principais intérpretes do Brasil contemporâneo continuam intactas: arsenal teórico de cientista social, experiência de político e governante, invejável rede de contatos mundo afora e inesgotável curiosidade para perscrutar o que pode vir por aí. FHC foi o escolhido para estrear a série de entrevistas que ÉPOCA começa a fazer, a partir desta semana, com líderes brasileiros. Antenado nos movimentos da política, da economia e da sociedade, no Brasil e no mundo, FHC, ao falar da eleição presidencial, diz que “um sentimento mudancista” começa a ganhar corpo no país, a despeito dos índices de aprovação recordes da presidente Dilma Rousseff. Em meio a críticas à gestão econômica do governo – por tentar reviver o modelo nacional-desenvolvimentista do passado –, FHC afirma que o desafio da oposição nas eleições será dar a esse sentimento um conteúdo e uma mensagem capaz de atingir os eleitores.

ÉPOCA – Como o senhor vê o cenário atual, com Eduardo Campos,
Marina Silva e Aécio Neves praticamente já colocados como candidatos, além da presidente Dilma Rousseff, candidata à reeleição?
Fernando Henrique Cardoso – Estão se desenhando aí quatro candidatos. Provavelmente, segundo turno. Sempre houve segundo turno depois que saí. É provável que haja de novo. Como vai ser, sabe Deus! Falta muito tempo. Porque isso foi precipitado, não entendo. Nunca vi o governo precipitar a eleição.

ÉPOCA – O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva lançou Dilma para abafar, no PT, as expectativas de que ele pudesse ser candidato?
FHC – Ele não precisaria. Fez porque gosta de campanha.

ÉPOCA – Por que ninguém tem um projeto alternativo?
FHC – Projeto é uma ideia complicada. O que está aí está se esgotando. Começam a despontar críticas. Há um sentimento mudancista, mas ainda sem dar conteúdo à mudança. Não sei se no povo. Mas entre as pessoas que leem jornal, sim. Inclusive empresários. Para vencer a eleição, tem de chegar embaixo.

ÉPOCA – O povo sente que o desemprego está em baixa, e a renda aumentou. Não há sensação de crise.
FHC – Nem sei se é necessário crise. De vez em quando, as pessoas querem aerar. Querem mudar. Meio irracionalmente. Quando tem uma basezinha que não é irracional, o problema se agudiza. Como você vence a eleição? Numa situação em que o eleitorado é fluido e os partidos não seguram nada, depende do desempenho. Depende da mensagem. Na política, não adianta só ter ideia. Tem de fulanizar. Não adianta sentar aqui três meses com um clube de sábios e escrever um projeto. Tem de tocar nas pessoas. E a pessoa tem de ser capaz, ela mesma, de inspirar isso. Precisa ter alguém que expresse esse sentimento e diga: “Vou fazer isso, me sigam”.

ÉPOCA – Como foi Fernando Henrique num momento e Lula noutro?
FHC – Exatamente. Dilma não precisou. Agora precisa. Não só porque começa a haver cansaço. É porque o mundo está indo muito depressa.

ÉPOCA – O senhor acha que Aécio pode cumprir esse papel?
FHC – Se não achasse, não o teria apoiado.

ÉPOCA – E o Eduardo Campos?
FHC – A pior coisa que pode acontecer no país é não haver alternativa. Ainda que seja contra minha escolha, é preciso haver a possibilidade de mudar. Quanto mais pessoas digam alguma coisa, melhor. Independentemente de ser bom ou mau para meu partido, é melhor para o Brasil. Não sei o que Eduardo fará. Está pintando que será candidato. Se for, acho bom para o país. Porque ele e a Marina dizem coisas. Quem será capaz de galvanizar, veremos. No ponto de partida, Aécio tem uma base maior. Tem apoio em Minas e tem uma estrutura partidária mais ampla que o Eduardo. Veremos o que acontece.

ÉPOCA – O PSDB paulista ficará com Aécio? E José Serra?
FHC – De tudo que ouço do Serra, ele diz que não tem essa pretensão. Nem mesmo de ser presidente do partido. Tenho de acreditar no que ele me diz. O candidato do PSDB será apoiado pelo PSDB de São Paulo. Não tem muita alternativa.

ÉPOCA – O senhor não teme que Serra saia do partido?
FHC – É especulação. Ele nunca me disse isso.

ÉPOCA – Qual será a mensagem de Aécio?
FHC – Não posso falar por ele. Ele é que dará a mensagem.
Aécio transmite uma coisa importante, a contemporaneidade. É jovem. Isso você não fala. Você é.

ÉPOCA – Que mensagem hoje seria inspiradora neste momento mudancista?
FHC – Perguntaram-me uma vez qual seria um bom slogan para o PSDB. Não dá para falar como o Obama: “Yes, we can”. Tem de ser: “Yes, we care”. Nós prestamos atenção a você. Não é que farei mais hospitais. Meu hospital terá cuidado com você. É preciso insistir que o governo olhará para toda essa gente que está melhorando de vida. Isso não é palavra. Tem de ter também imagem e gesto.

ÉPOCA – O governo Lula expandiu os programas sociais de seu governo. Por que o senhor não fez essa expansão?
FHC – Não tínhamos recursos. E atacamos tudo: reforma agrária, educação, saúde. As grandes mudanças estruturais estavam lá.

ÉPOCA – Mas o Bolsa Família virou marca do governo seguinte.
FHC – Sim. Mas aí tem o jogo político. E talvez um pouco de timidez de usar a política social como base da política eleitoral.

ÉPOCA – O senhor se arrepende dessa timidez?
FHC – Não posso dizer que me arrependo. É meu jeito. Dizem que sou vaidoso, arrogante e não sei o quê. Tudo conversa… Na verdade, sempre tive muito acentuado o sentido do que é público, do que é privado, do que é partido.

ÉPOCA – O senhor não reconhece que, além de uma questão eleitoral, havia também um impulso para responder ao anseio social?
FHC – Lula simboliza isso. Ele vem de baixo, é um líder operário. Sem dúvida. Não estou tirando o mérito dele. A César o que é de César. Desde que eu também tenha meu cesarzinho (risos).

ÉPOCA – O que há de errado na economia do país?
FHC – Todo mundo reiterou que, no governo Lula, houve continuidade na política econômica. Até a crise de 2008, sim. Com a crise, a política anticíclica adotada foi correta. Aí o governo pressentiu que havia uma espécie de licença para fazer o que quisesse. E isso se agravou nos anos Dilma, com a volta da ideia de que você pode fechar mais a economia, apoiar certas empresas, promover uma política industrial apoiando certas áreas. Voltamos a uma visão nacional-estatista. A política fiscal foi abandonada, como se fosse uma persistência do que eles chamavam de neoliberalismo. Essa incompreensão do que acontecia no mundo já ocorrera antes. Nos anos 1990, quando se tratava de ajustar a economia para lidar com a globalização, eles entendiam que era uma questão de ideologia, o tal neoliberalismo. Não foi só o PT, mas quase todo mundo, por uma posição mais antiquada que propriamente ideológica. Confundiram uma mudança do sistema produtivo, com novas tecnologias e novos métodos de transporte, com ideologia. Meu governo ajustou a economia brasileira à situação do globo. Agora, também está havendo um equívoco de percepção. Quando houve a crise de 2008, eles disseram: “Então vamos voltar. A crise nos dá o direito de fazer o que nós queríamos ter feito antes”.

ÉPOCA – Voltar para onde?
FHC – Para um Brasil anterior a 1990. Estamos agora na realidade do Ernesto Geisel (presidente brasileiro entre 1974 e 1979). No momento em que o mundo vai sair da crise, o Brasil está voltando nas suas concepções quanto ao desenvolvimento da economia. Isso me preocupa. Novamente, os Estados Unidos sairão na frente, sobretudo com a revolução energética que estão fazendo.

ÉPOCA – Neste momento, Dilma está voltando atrás em algumas políticas e começou com algumas privatizações.
FHC – Pela força das circunstâncias. Ela é capaz de entender o erro. Vê o número e se assusta. Mas aí, quando vai consertar, tem de fazer coisas que não são da alma dela. Então, tem uma inconsistência. Ela não fala que é privatização, nem fala que é concessão. Fala que é PPP (Parceria Público-Privada). Ela até recuperou uma ideia da Idade Média, o lucro justo. Entendo essa reação, o capitalismo é irritante. Qualquer pessoa sente raiva disso aí. Mas essa é a lógica do sistema – tem de acumular mais, senão não cresce. O capitalismo não é justo. Quem tem de ser justo não é o mercado, é o Estado. Se você é neoliberal, deixa por conta do mercado e comete injustiças. Se você não é, usa o Estado para tentar evitar que o capitalista arrase tudo.

ÉPOCA – Por que o brasileiro é tão relutante em reformar o Estado?
FHC – O livro do Raymundo Faoro Os donos do poder diz que isso vem de longe. Claro que Faoro exagera. Fala que tudo é o Estado, a corporação, o privilégio, desde Portugal. Não é bem assim. Há uma luta permanente entre mais e menos Estado. E ganha sempre o lado do mais Estado. De certa maneira, meu período foi quase um ponto fora da curva. A gente estava modernizando o Estado e aceitando algumas regras do mercado. Agora, o Estado ficou mais resistente. Quanto mais você vai para lugares de menor desenvolvimento no Brasil, mais tem Estado. Mas as pessoas não percebem algo também verdadeiro: quando o Estado intervém demais, aumenta a concentração. A concentração de renda, provavelmente, cresceu muito recentemente.

ÉPOCA – Mas há duas maneiras de o Estado intervir. No desenvolvimentismo, ele subsidia empresas e cria estatais. A partir dos anos 1990, o Estado passou a tratar mais de saúde, educação e políticas sociais. Essa mudança é inexorável ou voltaremos ao passado?
FHC – Acho que não. Sabe por quê? No meio dessa mudança, está a democracia. Com a Constituição de 1988, foi desenhado um futuro social-democrata. Nenhum governo pode olhar apenas para a economia. O que tentou resolver só a economia foi o Fernando Collor – e não deu certo. Os governos têm de olhar para os dois lados. Tem de olhar para educação, saúde, reforma agrária. Há uma massa demandante, que tem voto. No fundo, qual a base ideológica do governo Dilma? É o desenvolvimentismo. É crescer o PIB. O meio ambiente atrapalha. A regulação atrapalha. É um pouco a volta do capitalismo selvagem. Ela parece não perceber que o crescimento do PIB não depende só do governo, mas tem ciclos. Infelizmente, tocou a ela um ciclo mau. Como tocou a mim também. Ao Lula, tocou um ciclo bom.

ÉPOCA – Como será esse embate entre essas forças contraditórias?
FHC – A linha de força aponta na direção de que esses elementos de corporativismo perderão força. Levaremos mais tempo para fazer o que poderíamos fazer mais depressa. Mas temos caminhos. Temos uma sociedade forte. Somos mais ricos em termos relativos e mais fortes que nossos irmãos aqui da região. Temos um sistema empresarial vigoroso. A ideologia não prevalece sobre a realidade. Ela atrapalha.

ÉPOCA – O governo Dilma elegeu como prioridade, até para efeito de propaganda, a erradicação da miséria. Mas não é uma vergonha um país como o Brasil ainda ter tantos analfabetos?
FHC – O Brasil vem numa conquista progressiva da redução da miséria. Segundo o (economista) Ricardo Paes de Barros, a virada começou em 1999. Foi resultado da estabilização, em alguma medida da melhoria da educação e de outras políticas. Claro que um pouco disso também é jogo de palavras. Tem muita miséria ainda. Sobretudo, o emprego oferecido é de baixa qualidade. Com a ascensão da China, não houve o cuidado necessário com o desenvolvimento tecnológico e a indústria. Ela passou de 28% do PIB, nos anos 1980, para 20% no meu governo. Agora caiu para 12%. Isso é uma coisa preocupante, pela qualidade do emprego que a manufatura gera, apesar de extração de petróleo, da produção de soja também dependerem de saber.

ÉPOCA – Por que nossa classe política resiste a entender que o valor da economia moderna não está, necessariamente, no produto em si, mas no conhecimento que o gera? Parece que tudo se resolve com mais dinheiro, mais emprego, mais fábrica, mais máquina…
FHC – Tem razão. Pega a indústria do petróleo. Do jeito que estava indo, não ia mal não. Estava criando, também, base tecnológica. A Petrobras tem geólogos, cria gente preparada, exporta tecnologia. A grande revolução agrícola brasileira dependeu de quatro fatores: Embrapa, tecnologia, empresários e mudanças no sistema de financiamento. Estas últimas fui eu que fiz. Foi uma luta danada, para separar a agricultura da dívida do Banco do Brasil. A base foi a capacidade tecnológica da Embrapa para aproveitar solos antes não usados, desenvolver sementes e técnicas de plantio. A ideia de economia primária ou secundária é antiga. Em lugar de se preocupar com os 12% da indústria no PIB, devíamos nos preocupar com o resto. Qual o coeficiente tecnológico da indústria? Essa é a chave da questão. E isso leva à educação de novo. O governo percebeu isso. Criou o programa Ciência sem Fronteiras. Mas, entre perceber e fazer, há uma distância. Há a mania de grandiosidade. Tínhamos nos Estados Unidos, no ano passado, 8.500 bolsistas. O governo disse que vamos passar para 100 mil em quatro anos. Claro que não conseguiremos. Isso é mania de grandeza.

ÉPOCA – Estamos perdendo a oportunidade do pré-sal?
FHC – Para que mudar a lei? Estava funcionando. Para obter mais recursos? Por que o pré-sal é mais fácil de obter? Era só mudar o que a lei permitia quanto à participação. Foi mudada a legislação com o propósito de aumentar o controle do governo sobre tudo. Mudaram para se apropriar politicamente. O Bolsa Escola virou Bolsa Família. Dizem que o PSDB não tem programa. Mas não é isso. O programa do PSDB foi apropriado. Quem não tem programa mais é o PT, porque o programa que eles tinham, de socialismo no século XXI, ética na política, acabou. É de espantar que o Congresso jamais tenha discutido o pré-sal. Quando fiz a quebra do monopólio, houve um debate imenso. Agora, tudo foi feito a frio.

ÉPOCA – Por quê?
FHC – Primeiro, porque a expansão da economia e das políticas sociais anestesiou muita coisa. Segundo, porque o governo Lula tomou, implicitamente, a decisão de não mexer com o Congresso. Ele não precisava do Congresso para praticamente nada. Não fez nenhuma mudança constitucional. Nunca entendi uma coisa: para que uma base de sustentação tão grande? Para não fazer nada? Eu precisava da base porque precisava de três quintos do Congresso para as reformas. O governo Lula só precisava de 51%. Não precisava de mensalão. Foi um erro de cálculo.
E, claro, também havia vontade de domínio, de hegemonia.

ÉPOCA – Mas, politicamente, os petistas foram espertos.
FHC – Fazendo o advogado do diabo, respondo que não sei se foram espertos apenas politicamente.

ÉPOCA – Há alguns anos, o Brasil tinha condições de assumir algum tipo de protagonismo na economia verde. Por que não aproveitamos a oportunidade?
FHC – Não entendemos o que significava essa questão do aquecimento global e da ecologia. O Lula inventou o diesel de etanol. Quando veio o pré-sal, esqueceram tudo. O Lula fingiu que o país tinha conquistado autonomia, botou a mão no petróleo, imitou o Getúlio. Não existe autossuficiência até hoje. Preocupa-me essa facilidade de ver um futuro grandioso e abandonar tudo. Não é assim. Tem de ter método, mais constância.

ÉPOCA – Falta uma estratégia para nós?
FHC – Não temos nenhuma. Apostamos, mesmo na política externa, em alvos que não eram os principais. O governo disse: “Vamos ter uma cadeira no Conselho de Segurança”. Só que não haveria mudança. Vamos fazer diplomacia Sul-Sul? Tudo bem. Mas e o resto? E a América Latina? Perdemos espaço no mundo. A gente tem de pensar como será o mundo daqui a 20 anos. Os americanos fazem isso a toda hora, e os chineses devem fazer igual. Levam a sério e fazem escolhas.

ÉPOCA – Qual deveria ser a estratégia do Brasil?
FHC – É difícil imaginar, assim, de repente. Num mundo globalizado, dificilmente você poderá ter a posição de autarquia, de fazer tudo, como nosso passado. Nossa economia ainda é fechada. Vamos abrir mais? E o que vamos preservar? Será que não dava para repensar nossa estratégia pelo menos na América do Sul? Vamos abrir e não ter medo da competição?

ÉPOCA – O Mercosul foi uma roubada?
FHC – Tornou-se isso, mas não era inicialmente. Não avançou. Também não ousamos. Quando veio a Alca, ficamos todos com medo. Eu inclusive, porque o Brasil não sabia o que queria. Quando os americanos desistiram, fingimos que não queríamos. Mas eles é que não queriam mais. Fizeram acordos bilaterais com todo mundo, menos com a gente. Hoje, não temos nada.

ÉPOCA – É uma questão de definir claramente: teremos menos indústria e mais agronegócio?
FHC – Nosso problema, não só na indústria, é passar da quantidade para a qualidade. O grande X da questão é a educação. É o “software”. Porque o “software” é mais difícil que o “hardware”. Dominamos o “hardware”, mas não o “software”. O X da questão é como ser mais competitivo, ter mais qualidade. É preciso melhorar a produção. Tem de investir mais na educação, na ciência, na tecnologia. O mundo moderno é do conhecimento e da inovação. Nunca entendi por que nós nunca discutimos, a sério, o que se ensina no Brasil. E quanto tempo se leva para ensinar. Ou para aprender. Uma aula antes levava 50 minutos. A criança agora se concentra em sete. Quando vai para a aula, ela não aguenta. Está errada a criança ou está errado o modo de ensinar? Foi um erro de cálculo”

ÉPOCA – A equação americana mistura um ambiente favorável a negócios, conhecimento e capital. Nosso problema já foi o capital. Agora está em criar o ambiente favorável a negócios e conhecimento…
FHC – E entender que esse ambiente precisa de regras. Agora estão mudando a regra dos portos. Mudam do dia para a noite com medida provisória. Não deve ser esse o processo de mudança. O Estado tem de regular. Mas não pode mudar a regra do jogo a toda hora. Isso gera instabilidade. Não temos uma cultura de longo prazo. Tem um aperto qualquer, o governo fica nervoso, a presidente fica aflita e muda as regras.

ÉPOCA – O senhor disse que o segredo da prosperidade americana está nas universidades. Quão distantes estamos desse modelo?
FHC – Muito. Aqui, você tem ilhas não corporativas. E instituições como a Fapesp e, até certo ponto, o CNPq. Mas é uma confusão. O tempo todo, a universidade brigava comigo porque não tenho mentalidade corporativa. Vetei a criação de universidades onde não era necessário, apenas para dar emprego. Dei mais atenção ao ensino fundamental. Não adianta criar mais do mesmo. Tem de melhorar. Em várias partes, houve mudanças boas no sistema educacional primário e secundário. Mas os sindicatos são contra. Aqui em São Paulo, foi criado um modelo em que, dependendo do desempenho dos alunos, a escola, no conjunto, ganha mais. O sindicato é contra, porque não quer distinguir pelo mérito.

ÉPOCA – Como implantar a meritocracia?
FHC – Só brigando muito. É até curioso: o PT nasceu contra o corporativismo. Lula dizia que a verdadeira anistia do trabalhador era acabar com a CLT. Mas criou uma tremenda burocracia sustentada pelo governo. É fascinante ver como, em vez de mudar a cultura dominante, ele foi absorvido por ela. No clientelismo, no corporativismo, no jogo da política.

ÉPOCA – O senhor disse que o PT se apropriou do discurso e das políticas do PSDB. Como o PSDB deve se colocar daqui para diante?
FHC – Vamos fazer melhor. É da quantidade para a qualidade. Tem de assegurar, para essa gente que está subindo, mais.

ÉPOCA – Como se faz para essa mensagem chegar ao eleitor?
FHC – Pergunte aos políticos. Estou aposentado.

ÉPOCA – Que diferenças o senhor vê entre seu modo de lidar com a política quando presidente e o do PT?
FHC – Eu tinha um propósito: fazer reformas. Meu objetivo era esse. Você tem de fazer escolhas. Fiz a escolha, fiquei com o PFL. Não era suficiente. Forcei o PMDB a entrar. Mas escolhi quem do PMDB eu iria nomear. No segundo mandato, quando você perde força, tem de entrar mais nas negociações com os partidos.

ÉPOCA – O senhor questionou por que o PT queria uma base tão grande. Não havia uma paranoia de que o governo fosse derrubado?
FHC – A paranoia vem com o desejo de hegemonia. Para eles, as elites vão derrubar, a imprensa vai derrubar. O tempo todo eles estão tomando o Palácio de Inverno. É patético.

Senso prático de Dilma supera ideologia

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Autor: Entrevista Com o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva – Valor Econômico -27/03/2013

Lula: “Se alguém tiver um produto brasileiro e tiver vergonha de vender, me dê que eu vendo. Não tenho nenhuma vergonha de continuar fazendo isso”
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu o Valor num hotel na zona sul de São Paulo depois do seminário “Novos Desafios da Sociedade”, promovido pelo jornal. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: Como está sua saúde?
Luiz Inácio Lula da Silva: Agora estou bem. Há um ano vou à fisioterapia todos os dias às 6h da manhã. Minha perna agora está 100%. Estou com 84 quilos. É 12 a menos do que já pesei mas é oito a mais do que cheguei a ter. Não tem mais câncer, mas a garganta leva um bom tempo para sarar. A fonoaudióloga diz que é como se fosse a erupção de um vulcão. Tem uma pele diferenciada na garganta que leva tempo para cicatrizar. Quando falo dá muita canseira na voz. Já tenho 67 anos. Não é mais a garganta de uma pessoa de 30 anos.

Valor: O senhor deixou de fumar e beber?
Lula: Não dá mais porque irrita a garganta.

Valor: Dois anos e três meses depois do início do governo Dilma, qual foi seu maior acerto e principal erro?
Lula: Quando deixei a Presidência, tinha vontade de dar minha contribuição para a Dilma não me metendo nas coisas dela. E acho que consegui fazer isso quando viajei 36 vezes depois de deixar o governo. Fiquei um ano imobilizado por causa do câncer. Estou voltando agora por uma coisa mais partidária. Sinceramente acho que no meu governo eu deixei muita coisa para fazer. Por isso foi importante eleger a Dilma, para ela dar continuidade e fazer coisas novas. O Brasil nunca esteve em tão boas mãos como agora. Nunca esse país teve uma pessoa que chegou na Presidência tão preparada como a Dilma. Tudo estava na cabeça dela, diferentemente de quando eu cheguei, de quando chegou Fernando Henrique Cardoso. Você conhece as coisas muito mais teóricas do que práticas. E ela conhecia por dentro. Por isso que estou muito otimista com o sucesso da Dilma e ela está sendo aquilo que eu esperava dela. Foi um grande acerto. Tinha obsessão de fazer o sucessor. Eu achava que o governante que não faz a sucessão é incompetente.

Valor: A presidente baixou os juros, desonerou a economia, reduziu tarifas de energia e apreciou o câmbio. Ainda assim não se nota entusiasmo empresarial por seu governo ou sua reeleição. A que o senhor atribui a insatisfação? Teme-se que esse governo não tenha uma política anti-inflacionária tão firme ou é pela avaliação de que o governo Dilma seja intervencionista?
Lula: Não creio que haja má vontade dos empresários com a presidente. Passamos por algumas dificuldades em 2011 e 2012 em função das políticas de contração para evitar a volta da inflação. Foi preciso diminuir um pouco o crédito e aí complicou um pouco, mas Dilma tem feito a coisa certa. Agora tem conversado mais com setores empresariais. Acho que os empresários brasileiros, e eu vivi isso oito anos assim como Fernando Henrique também viveu, precisam compreender que uma economia vai ter sempre altos e baixos. Não é todo dia que a orquestra vai estar sempre harmônica. O importante é não perder de vista o horizonte final. O Brasil está recebendo US$ 65 bilhões de
investimento direto. Então não dá para se ter qualquer descrença no Brasil nesse momento. Nunca os empresários brasileiros tiveram tanto acesso a crédito com um juro tão baixo. Vamos supor que a Dilma não tivesse a mesma disposição para conversar que eu tinha. Por razões dela, sei lá. O dado concreto é que, de uns tempos para cá, a Dilma tem colocado na agenda reuniões com empresários e partidos políticos.

Valor: Os empresários acham que ela é ideológica demais…
Lula: O que é importante é que ela não perde suas convicções ideológicas, mas não perde o senso prático para governar o país. Ela não vai governar o país com ideologia. Se alguém ainda aposta no fracasso da Dilma, pode começar a quebrar a cara. Ela tem convicção do que quer. Esses dias liguei para ela e disse para tomar cuidado para não passar dos 100%. Porque há espaço para ela crescer. Vai acontecer muito mais coisa nesse país ainda. Não adianta torcer para não ter sucesso. Não há hipótese de o Brasil não dar certo.

Valor: A queixa é de que tudo que eles [os empresários] precisam têm que falar com a presidente porque os ministros não têm autonomia para decidir, ela não delega. É isso?
Lula: Se isso foi verdade, já acabou. Sinto, nos últimos meses, que a Dilma tem feito muito mais reuniões. Tem soldado muito mais o governo. A pesquisa mostra que o governo vem crescendo e vai chegar perto dela nas pesquisas. E os ajustes vão acontecendo. É a primeira vez que a gente tem uma mulher. O papel dela não é tão fácil quanto o meu porque 99% das pessoas que recebia eram homens, e homem fala coisa que mulher não pode falar, conta piada. Não há hábito do homem ainda perceber a mulher num cargo mais importante. Mas os homens vão ter que se acostumar. Uma mulher não pode se soltar numa reunião onde só tenha homem. Então acho que as pessoas têm que aprender a gostar das outras pessoas como elas são. A Dilma é assim e é assim que ela é boa para o Brasil. A mesma coisa é a Graça [Foster]. É uma mulher muito respeitada também. Não brinca nem é alegre, mas cada um tem seu jeito de ser.

Valor: Seu governo viabilizou projetos essenciais para o rumo que a economia pernambucana tomou, como o polo petroquímico e a fábrica da Fiat. A pré-candidatura Eduardo Campos, que agrega adversários fidagais de seu governo, como Jarbas Vasconcelos e Roberto Freire, e anima até José Serra, é uma traição?
Lula: Não. Minha relação de amizade com Eduardo Campos e com a família dele, que passa pela mãe, pelo avô e pelos filhos, é inabalável, independentemente de qualquer problema eleitoral. Eu não misturo minha relação de amizade com as divergências políticas. Segundo, acho muito cedo pra falar da candidatura Eduardo. Ele é um jovem de 40 e poucos anos. Termina seu mandato no governo de Pernambuco muito bem avaliado. Me parece que não tem vontade de ser senador da República nem deputado. O que é que ele vai ser? Possivelmente esteja pensando em ser candidato para ocupar espaço na política brasileira, tão necessitada de novas lideranças. Se tirar o Eduardo, tem a Marina que não tem nem partido político, tem o Aécio que me parece com mais dificuldades de decolar. Então é normal que ele se apresente e viaje pelo Brasil e debata. Ainda pretendo conversar com ele. A Dilma já conversou e mantém uma boa relação com ele.
“Ainda é cedo para falar de Eduardo candidato, mas se ele for não é da minha índole tentar demover candidaturas”

Valor: O Fernando Henrique teve como candidato um ministro e o senhor também. O senhor acha que ainda é possível demover Eduardo Campos com a proposta de que ele se torne um ministro importante no governo Dilma e depois seu candidato? É possível se comprometer com quatro anos de antecedência?
Lula: Somente Dilma é quem pode dizer isso. Não tenho procuração nem do Rui Falcão [presidente do PT] nem da Dilma para negociar qualquer coisa. Vou manter minha relação de amizade com Eduardo Campos e minha relação política com ele. Até agora não tem nada que me faça enxergá-lo de maneira diferente da que enxergava um ano atrás. Se ele for candidato vamos ter que saber como tratar essa candidatura. O Brasil comporta tantos candidatos. Já tive o PSB fazendo campanha contra mim. O Garotinho foi candidato contra mim. O Ciro também. E nem por isso tive qualquer problema de amizade com eles. Candidaturas como a do Eduardo e da Marina só engrandecem o processo democrático brasileiro. O que é importante é que não estou vendo ninguém de direita na disputa.

Valor: Já que o senhor tem uma relação tão forte de amizade com ele, vai pedir para Eduardo Campos não se candidatar?
Lula: Não faz parte da minha índole pedir para as pessoas não se candidatarem porque pediram muito para eu não ser. Se eu não fosse candidato eu não teria ganho. Precisei perder três eleições para virar presidente. Eu não pedirei para não ser candidato nem para ele nem para ninguém. A Marina conviveu comigo 30 anos no PT, foi minha ministra o tempo que ela quis, saiu porque quis e várias pessoas pediram para eu falar com ela para não ser candidata e eu disse: “Não falo”. Acho bom para a democracia. E precisamos de mais lideranças. O que acho grave é que os tucanos estão sem liderança. Acho que Serra se desgastou. Poderia não ter sido candidato em 2012. Eu avisei: não seja candidato a prefeito que não vai dar certo. Poderia estar preservado para mais uma. Mas Serra quer ser candidato a tudo, até síndico do prédio acho que ele está concorrendo agora. E o Aécio não tem a performance que as pessoas esperavam dele.

Valor: Quem é o adversário mais difícil da presidente: Aécio, Marina ou Eduardo?
Lula: Não tem adversário fácil. O que acho é que Dilma vai chegar na eleição muito confortável. Se a gente trabalhar com seriedade, humildade e respeitando nossos adversários e a economia estiver bem, com a inflação controlada e o emprego crescendo, acho que certamente a Dilma tem ampla chance de ganhar no primeiro turno.

Valor: Como vai ser sua atuação na campanha de 2014? Vai atuar mais nos bastidores, na montagem das alianças, ou vai subir em palanque em todos os Estados?
Lula: Eu quero palanque.

Valor: Vai subir em Pernambuco e pedir votos para Dilma?
Lula: Vou. Vou lá, vou em Garanhuns, vou no Rio, São Paulo, na Paraíba, em Roraima…

Valor: Seus médicos já liberaram?
Lula: Já. Se eu não puder eu levo um cartaz dela na mão (risos). Não tem problema. Acho que ela vai montar uma coordenação política no partido e eu não sou de trabalhar bastidores. Eu quero viajar o país.

Valor: Nem às costuras de alianças o senhor vai se dedicar?
Lula: Não precisa ser eu. O PT costura.

Valor: Quais são as alianças mais difíceis? Como resolver o problema do Rio?
Lula: No Rio tem uma coisa engraçada porque nós temos o Pezão, que é uma figura por quem eu tenho um carinho excepcional. Nesses oito anos aprendi a gostar muito do Pezão, um parceiro excepcional. E tem o Lindbergh.
Vai que precisam de um velhinho para fazer as coisas [em 2018] mas não é da minha vontade, já dei minha contribuição”

Valor: Ele disse que vai fazer o que o senhor mandar…
Lula: Não é bem assim. Eu não posso tirar dele o direito de ser candidato. Ele é um jovem talentoso, um encantador de serpentes, como diriam alguns, com uma inteligência acima da média, com uma vontade de trabalhar, como poucas vezes vi na vida. Ele quer ser. Cabe ao partido sempre tratar com carinho, porque nós temos que ter sempre como prioridade o projeto nacional. Ou seja: a primeira coisa é a eleição da Dilma. Não podemos permitir que a eleição da Dilma corra qualquer risco. Não podemos truncar nossa aliança com o PMDB. Acho que o PT trabalha muito com isso e que Lindbergh pode ser candidato sem causar problema. Acho que o Rio vai ter três ou quatro candidaturas e ele, certamente, vai ser uma candidatura forte. Obviamente Pezão será um candidato forte, apoiado pelo governador e pela prefeitura. Na minha cabeça o projeto principal é garantir a reeleição de Dilma. É isso que vai mudar o Brasil.

Valor: Aqui em São Paulo o candidato é o Padilha?
Lula: Olha, acho que a gente não tem definição de candidato ainda. Você tem Aloizio Mercadante, que na última eleição teve 35% dos votos, portanto ele tem performance razoável. Tem o Padilha, que é uma liderança emergente no PT, que está em um ministério importante. Tem a Marta que eu penso que não vai querer ser candidata desta vez. Tem outras figuras novas como o Luiz Marinho, que diz que não quer ser candidato. Tem o José Eduardo Cardozo, que vira e mexe alguém diz que vai ser candidato e você pode construir aliança com outros partidos políticos. Para nós a manutenção da aliança com o PMDB aqui em São Paulo é importante.

Valor: Isso passa até pelo PT aceitar um candidato do PMDB?
Lula: Se tiver um candidato palatável, sim. Nós nunca tivemos tanta chance de ganhar a eleição em São Paulo como agora. A minha tese é a mesma da eleição de Fernando Haddad. Ou seja, alguém que se apresente com capacidade de fazer uma aliança política além dos limites do PT, além dos limites da esquerda. Como é cedo ainda, temos um ano para ver isso. Eu fico olhando as pessoas, vendo o que cada um está fazendo. E pretendo, se o partido quiser me ouvir, dar um palpite.

Valor: Em 2012, em São Paulo, o senhor defendeu a renovação do partido, com um candidato novo. Essa fórmula será mantida para o governo do Estado?
Lula: Hoje temos condições de ver cientificamente qual é o candidato que o povo espera. Por exemplo, quando Haddad foi candidato a prefeito, eu nunca tive qualquer preocupação. Todas as pesquisas que a gente trabalhava, as qualitativas que a gente fazia, toda elas mostravam que o povo queria um candidato como ele. Então era só encontrar um jeito de desmontar o Russomanno, que em algum lugar da periferia se parecia com o candidato do PT. Na época eu não podia nem fazer campanha direito. Estava com a garganta inchada. Eu subia no caminhão para fazer discurso sem poder falar, mas era necessário convencer as pessoas de que o candidato do PT era o Haddad, não era o Russomanno. Quando isso engrenou, o resto foi mais tranquilo. Para o governo do Estado é a mesma coisa. Não é quem sai melhor na pesquisa no começo. É quem pode atender os anseios e a expectativa da sociedade.

Valor: E quem pode?
Lula: Não sei. Temos que ter muito critério na escolha. A escolha não pode ser em função só da necessidade da pessoa, de ela querer ser. Tem que ser em função daquilo que é importante para construir um leque de aliança maior. Temos que costurar aliança, temos que trazer o PTB, manter o Kassab na aliança e o PMDB. Precisamos quebrar esse hegemonismo dos tucanos aqui em São Paulo, porque eles juntam todo mundo contra o PT. Precisamos quebrar isso. Acho que temos todas as condições.

Valor: Desde que deixou a Presidência, o senhor tem sido até mais alvejado que a presidente. Foi acusado de tentar manter a chefe do gabinete da Presidência da República em São Paulo. Agora foi acusado de ter suas viagens financiadas por empreiteiras. Como o senhor recebe essas críticas e como as responde?
Lula: Quando as coisas são feitas de muito baixo nível, quando parecem mais um jogo rasteiro, eu não me dou nem ao luxo de ler nem de responder. Porque tudo o que o Maquiavel quer é que ele plante uma sacanagem e você morda a sacanagem. É que nem apelido: se eu coloco um apelido na pessoa e a pessoa fica nervosa e começa a xingar, pegou o apelido. Se ela não liga, não pegou o apelido. Tenho 67 anos de idade. Já fiz tudo o que um ser humano poderia fazer nesse país. O que faz um presidente da República? Como é que viaja um Clinton? A serviço de quem? Pago por quem? Fernando Henrique Cardoso? Ou você acha que alguém viaja de graça para fazer palestra para empresários lá fora? Algumas pessoas são mais bem remuneradas do que outras. E eu falo sinceramente: nunca pensei que eu fosse tão bem remunerado para fazer palestra. Sou um debatedor caro. E tem pouca gente com autoridade de ganhar dinheiro como eu, em função do governo bem-sucedido que fiz neste país. Contam-se nos dedos quantos presidentes podem falar das boas experiências administrativas como eu. Quando era presidente, fazia questão de viajar para qualquer país do mundo e levar empresários, porque achava que o presidente pode fazer protocolos, assinar acordo de intenções, mas quem executa a concretude daquilo são os empresários. Viajo para vender confiança. Adoro fazer debate para mostrar que o Brasil vai dar certo. Compre no Brasil porque o país pode fazer as coisas. Esse é o meu lema. Se alguém tiver um produto brasileiro e tiver vergonha de vender, me dê que eu vendo. Não tenho nenhuma vergonha de continuar fazendo isso. Se for preciso vender carne, linguiça, carvão, faço com maior prazer. Só não me peça para falar mal do Brasil que eu não faço isso. Esse é o papel de um político que tem credibilidade. Foi assim que ganhei a Olimpíada, a Copa do Mundo. Quando Bush veio para cá e fomos a Guarulhos, disse a ele que era para tirarmos fotografia enchendo um carro de etanol. Tinham dois carros, um da Ford e um da GM, e ele falou: “Eu não posso fazer merchandising”. Eu disse: “Pois eu faço das duas”. Da Ford e da GM. E o Bush tirou foto com chapéu da Petrobras. Sem querer ele fez merchandising da Petrobras. Você sabe que eu fico com pena de ver uma figura de 82 anos como o Fernando Henrique Cardoso viajar falando que o Brasil não vai dar certo. Fico com pena.

Valor: O senhor acha que São Paulo corre risco de perder a abertura da Copa porque o Banco do Brasil não vai liberar dinheiro sem garantias?
Lula: Sinceramente não acredito que as pessoas que fizeram o sacrifício para chegar onde chegaram vão se permitir morrer na praia agora. A verdade é que o Corinthians precisa de um estádio de futebol independentemente de Copa do Mundo. São Paulo não pode ficar fora da Copa. Acho que seria um prejuízo enorme do ponto de vista político e simbólico o Estado mais importante da Federação, com os times mais importantes da Federação – com respeito ao Flamengo – esteja fora da Copa do Mundo. É impensável. Eles que tratem de arranjar uma solução.

Valor: O senhor voltará à política em 2018?
Lula: Não volto porque não saí.

Valor: Voltará a se candidatar?
Lula: Não. Estarei com 72 anos. Está na hora de ficar quieto, contando experiência. Mas meu medo é falar isso e ler na manchete. Não sei das circunstâncias políticas. Vai saber o que vai acontecer nesse país, vai que de repente eles precisam de um velhinho para fazer as coisas. Não é da minha vontade. Acho que já dei minha contribuição. Mas em política a gente não descarta nada.

Valor: Que análise o senhor faz do julgamento do mensalão?
Lula: Não vou falar por uma questão de respeito ao Poder Judiciário. O partido fez uma nota que eu concordo. Vou esperar os embargos infringentes. Quando tiver a decisão final vou dar minha opinião como cidadão. Por enquanto vou aguardar o tribunal. Não é correto, não é prudente que um ex-presidente fique dizendo “Ah, gostei de tal votação”, “Tal juiz é bom”. Não vou fazer juízo de valor das pessoas. Quando terminar a votação, quando não tiver mais recursos vou dizer para você o que é que eu penso do mensalão.

Consumidor “irracional” pode arruinar a economia, diz Nobel

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FSP/02/08/2012
Autor: Daniel Kahneman – Psicólogo – Nobel de Economia em 2002

O psicólogo israelense-americano Daniel Kahneman, 78, ganhou o Nobel de Economia em 2002 por décadas de trabalho em uma matéria na qual é pioneiro, a economia comportamental.
No ano passado, ele lançou “Thinking, Fast and slow”, best-seller instantâneo, que chega às livrarias brasileiras este fim de semana como “Rápido e devagar: duas formas de pensar” (ed. Objetiva). Nele, o Nobel explica diversos conceitos de autoengano, de confiança excessiva e defende um “paternalismo libertário”, aonde empresas e governos deveriam cutucar, alertar cidadãos e consumidores a tomar as melhores decisões para si.
No livro, o professor de Princeton também descreve o sistema 1 do pensamento(o rápido), a intuição, automático, que decide se você gosta de uma pessoa logo após conhecê-la, com associações instantâneas, e o sistema 2 (devagar), que representa a razão, o autocontrole e a inteligência.
Abaixo, trechos da entrevista que ele concedeu à Folha.
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Folha – O senhor fez uma pesquisa com vários diretores financeiros [CFOs] de grandes empresas, em que eles deveriam prever o retorno das ações no índice da Standard & Poor’s no ano seguinte. Em 67% dos casos, eles erraram. A intuição dos experts não conta?
Daniel Kahneman – Fazer previsões em ambientes imprevisíveis é impossível. Ou, como eu chamo, uma ilusão.
Intuitivamente, é claro que gostamos de investir com “especialistas”, mesmo que as estatísticas comprovem que um programa de computador tenha o mesmo resultado. O mercado das ações é inerentemente imprevisível.
Se o mundo das finanças fosse previsível, todos tirariam as mesmas vantagens e os riscos e as recompensas desapareceriam.
Ser muito informado, ter a informação média de um leitor do “New York Times”, pode ajudar suas apostas só no curto prazo.
Em Wall Street, a maioria ignorou os resultados da pesquisa. Se você se considera um especialista, você têm uma superconfiança em seu conhecimento. Mas é um sentimento subjetivo.
Essa confiança excessiva e o sistema 2 preguiçoso ajudaram a ampliar a crise hipotecária e financeira nos EUA?
Todos queriam tirar vantagem do crédito, mas sem ler as letras miúdas. Sei que o governo Obama anda estudando como mudar as regras para que contratos sejam mais compreensíveis, de leitura mais fácil. Os gastos em cartões de crédito são sempre padronizados e dificultam muito a comparação entre empresas. Estas adoram deixar qualquer comparação impossível.
Sempre discuti a necessidade de se proteger as pessoas de suas próprias escolhas. Hoje, é bem difícil dizer que elas não precisam de proteção.
Quando pessoas desinformadas perdem seu dinheiro, elas podem arruinar a economia mundial, então decisões irracionais têm efeitos muito maiores quando combinados com a racionalidade de agentes corruptos dentro do sistema e a regulação e supervisão um tanto ausentes no sistema financeiro.
No Brasil, muitas pessoas com inédito acesso a crédito já estão se endividando mais do que podem. Como “cutucá-las”?
As pessoas se endividam mais quando pagam com cartão do que quando pagam com dinheiro. Com as cédulas, tudo é mais racional, palpável. Muitos americanos não calculam os juros que estão pagando e que vão pagar no futuro. Não sabem o total do que vão pagar, e imagino que aconteça o mesmo no Brasil. As empresas gostam de esconder em letras miudinhas essas informações.
As autoridades brasileiras deveriam, além de usar regras contra o empréstimo predatório, exigir contratos e contas de cartões mais claros, que as taxas de juros fiquem mais expostas.
Nos EUA, até os democratas suspeitam de qualquer interferência do governo. Como elas encaram esses cutucões?
As pessoas mantêm a sua liberdade, quem quiser cometer erros, vai poder cometê-los, mas permite-se que eles consigam fazer a decisão mais correta para seus interesses. Republicanos e democratas aprovaram programas parecidos para facilitar quem aceita descontos direto do salário para planos de pensão.
Em vez de ter que assinar e optar por um plano de poupança na folha de pagamento, as pessoas seriam inscritas automaticamente na dedução, tendo que assinar ou optar para sair dele se assim quiserem.
Algum governo já transformou essas descobertas em política pública?
O Reino Unido foi um passo adiante e o governo do David Cameron, que é conservador, criou uma “Unidade de Insights [sacadas] Comportamentais” em Downing Street [residência do primeiro-ministro]. Já falei algumas vezes lá e dei minhas ideias.
Uma coisa que eles já fizeram é de informar a sonegadores e a contribuintes como um todo qual a porcentagem de pessoas naquela cidade ou região que estão com o pagamento em dia de seus impostos.
É um cutucão, trabalha com a psicologia social. “Se todo mundo está pagando, eu também preciso pagar”. Mantêm a liberdade, mas atua na maneira como você vê os seus pares. As campanhas contra lixo na rua em Nova York e no Texas apelam para esse mesmo sentimento de que os outros estão observando você.
Uma pesquisa sua já concluiu que ter uma renda anual de US$ 75 mil seria o mínimo para a felicidade. Mas se seus vizinhos e amigos ganharem mais que isso?
Nossa pesquisa chegou à conclusão que, com um renda de US$ 75 mil, a felicidade emocional é possível. Abaixo disso, uma doença, uma separação, um problema podem se tornar muito mais graves. A partir desse valor, não há muitas mudanças, mas abaixo dele, tudo fica mais difícil e instável. A inveja não está presente todo o tempo no jeito com que avaliamos nossa vida e nossa satisfação.
Latinoamericanos e brasileiros em particular sempre se saem bem nesses rankings internacionais sobre felicidade, com renda bem inferior.
Acho que há um erro comum nessas pesquisas. Os latinoamericanos sempre respondem enfaticamente o quanto são felizes, quando perguntados se são felizes, mas o mesmo acontece quando questionados sobre tristeza e infelicidade. Os resultados são sempre extremos. Talvez os latinoamericanos expressem muito mais suas emoções do que em outras partes do mundo, sejam positivas ou negativas.
Ainda sobre intuição, o sr. fala dos enganos no planejamento de obras públicas. O sr. cita o novo parlamento de Edinburgo, que custaria US$ 50 millhões em 1997, valor que saltou para US$ 550 milhões, quando completado em 2004.
Todas as grandes obras recentes, de museus a estádios de futebol, acabam estourando os orçamentos porque seus planejadores não são pagos para ser pessimistas. Seus planos só contemplam o melhor cenário possível. É natural, até porque querem que seus projetos sejam aprovados, mas é o que eu chamo de falácia do planejamento. Nós ignoramos a possibilidade do imprevisto, ao menos que tenha ocorrido recentemente algum, e depois exageramos a possibilidade de que volte a ocorrer.
Dá para se melhorar a intuição?
O sistema 1 não é fácil de mudar, funciona a partir da memória automática. Ele incorpora a memória da pessoa. Se ela tiver lido mais, estudado mais, for mais sofisticada, o sistema 1 terá essas mesmas vantagens. Mudanças de atitude em um país ou mesmo em uma vizinhança, afetarão o sistema 1.
As decisões das pessoas a longo prazo têm mudado muito em tempos de incerteza e crise nos países desenvolvidos e de desaceleração nos emergentes?
As pessoas fazem decisões sempre pensando no curto prazo. Essa é a norma, o futuro é distante demais. Inclusive quanto a planos de poupança e aposentadoria. A crise afeta as decisões do presente apenas.

Proteger indústria e ajudar setores é política míope.

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Autor: MARIANA CARNEIRO – Folha de São Paulo

EDMAR BACHA, ECONOMISTA

Economista afirma que focar apenas as vendas no mercado interno é pensar pequeno

O economista Edmar Bacha, um dos formuladores do Plano Real
Depois de se dedicar a debates como o combate à inflação, o economista Edmar Bacha, 70, quer saber por que a indústria brasileira está encolhendo.
Um dos formuladores do Plano Real, Bacha reuniu 35 especialistas para ir além da explicação câmbio & juros, que, segundo diz, não são o problema verdadeiro.
O resultado será publicado no livro “Desindustrialização: O Que Fazer?”, organizado com a também economista Mônica de Bolle. Nesta entrevista, Bacha antecipa à Folha parte do diagnóstico sobre a desindustrizalização.

Quando o Brasil começou a se desindustrializar?
De 1980 até 2004/2005, houve um processo paulatino de perda da participação da indústria no PIB. E isso não preocupa.
Porque, quando se comparava o Brasil com outros países, a participação da indústria era muito maior. Havia um excesso de indústria. O que discutimos é o que ocorre a partir de 2005, com especial preocupação a partir de 2010.

O que mudou?
A partir de 2005, o Brasil foi beneficiado por uma enorme entrada de dólares, provinda da melhoria dos preços das commodities que o Brasil exporta e de uma entrada muito forte de capitais. É uma grande bonança externa. E o efeito colateral dessa bonança é a desindustrialização.

É como uma doença?
Eu não acho que, necessariamente, seja uma doença. Você apenas alterou o padrão de produção da economia. Não tem ninguém doente. Veja o Brasil de hoje. A mão de obra está muito bem, superempregada e com salários muito altos, como nunca teve. Só quem não está empregando é a indústria. A indústria realmente vai mal, mas o Brasil vai muito bem.
Mas economistas sustentam que o crescimento está travado porque o setor industrial está em crise.
A economia está em pleno emprego. Por que a popularidade da Dilma está tão alta? Do ponto de vista do bem-estar, as pessoas estão muito bem. Há um problema que a economia não cresce. Mas o estrangulamento do crescimento ocorre porque os investimentos dos setores competitivos estão travados.

Que setores poderiam crescer e estão parados?
A construção civil, todo o complexo agromineroindustrial. Mas esses setores dependem muito de infraestrutura, e o que ocorre é que estamos travados por falta de infraestrutura, por falta de mão de obra qualificada.
Não vale a pena o governo tentar recuperar a indústria?
Não através do protecionismo, do crédito subsidiado, nem de medidas pontuais.
Estamos falando de recuperar a capacidade de concorrer e de termos uma indústria produtiva. Afora imposto, e de fato os impostos são extremamente elevados, uma das maiores travas para recriar a indústria é a política do conteúdo nacional.
O governo, em vez de resolver, está ampliando. Eu sou a favor de acabar com a política de conteúdo nacional.
Mas o governo diz querer incentivar produtores locais.
É uma política míope, que resolve o problema localizado à custa de criar danos maiores para a economia.
No pré-sal, por exemplo, a consequência dessa política, será que a gente não vai chegar ao pré-sal. Pergunta ao Carlos Ghosn, da Renault, por que ele não produz carro de boa qualidade no Brasil.
Tendo que comprar tudo aqui dentro não dá. Protegem a indústria de componentes para criar o que chamam de “densificação da estrutura produtiva”. O que é preciso é se integrar às cadeias produtivas internacionais.

Como?
Não tem que fazer todas as partes do produto aqui. O comércio internacional é crescentemente intrafirmas -multinacionais exportando para elas mesmas-, intrassetorial -exporta-se seda e importa-se algodão- e intraproduto -cada componente é feito num local e a montagem é feita noutro.
É assim que a Ásia está se estruturando e é assim que o México está crescendo.

Qual o efeito para o Brasil?
Aqui, esse suposto nacionalismo fez com o Brasil se tornasse o país mais colonizado do mundo. A participação de multinacionais no PIB é extraordinariamente elevada. E por que elas não exportam? Porque é caro produzir aqui. E por que é caro? Porque têm que comprar tudo aqui dentro, não podem se integrar mundialmente, não podem fazer o que fazem na China. A gente não deixa.
Mas a China também paga salários mais baixos.
A indústria concorre com a natureza, e ela é pródiga. Portanto, nosso ponto de partida é mais alto. Somos como nos EUA. Eles sempre foram um país de salários elevados, têm agricultura e mineração pujante e conseguiram desenvolver sua indústria.
Mas eles também estão buscando retomar as indústrias que perderam.
A desindustrialização não é só brasileira. O mundo inteiro, exceto a China, está se desindustrializando. É como se de repente descobrissem a existência de Marte. A China é como se fosse Marte. Estava fechada, com um terço da população mundial, e agora se abriu. Temos que arrumar um lugar para ela.

Mas, se é um fenômeno mundial, por que o Brasil deveria atuar? E como teria êxito?
Não estamos dizendo para deixar a indústria cair. No Brasil, há um problema específico, a participação da indústria no PIB está caindo mais do que em outros países. Não é que não tenhamos que nos mexer. Ao contrário. Isso é um problema, mas o que está sendo feito é errado.
Temos sugestões, e uma delas é mudar a estrutura de importação, diminuindo os impostos para a compra de bens de capital e componentes. Tornar as indústrias mais produtivas para que se integrem à cadeia mundial, em vez de olharem apenas para o mercado interno. As avaliações sobre o problema são muito chã, é o câmbio, é não sei mais o quê…

Então não é câmbio valorizado e juros altos?
As pessoas acham que mexendo nisso vão resolver o problema. Isso é um equívoco. É preciso entender como isso ocorreu. Não é um monte de gente malévola que apreciou o câmbio e botou os juros na lua.
Mas, ao focar juros e câmbio, perde-se a dimensão dos problemas reais e substantivos, que provocam a perda de competitividade.

Quais são esses problemas?
Quando houve a bonança, não teve jeito, houve muito ingresso de capital e o câmbio apreciou. O que fazer? Pôr uma barreira e não deixar entrar nenhum tostão? Fazer igual a Cristina Kirchner? Vai dizer isso para as empresas que precisam de capital e estão lançando ações.
Se existe uma bonança, vamos saber administrá-la. Frequentemente ela é tão boa que as pessoas deixam de fazer o dever de casa. E, quando acabam, só tem um buraco lá.
Economistas do governo afirmam que a bonança permitiu a emergência da classe C.
Poderia ter sido melhor. Mas eu não sou contra isso e não acho que o modelo foi apenas consumista. O investimento cresceu neste período. Mas também é fato que a reação à crise a partir de 2008 só aumentou o consumo.

A reação à crise agravou a desindustrialização?
A desindustrialização não veio porque as pessoas consumiram. Se, em vez de consumir, tivéssemos investido, importaríamos mais ainda. Não acho que veio daí.
As pessoas dizem que o investimento está fraco porque a indústria está fraca. Mas foi justamente quando a indústria enfraqueceu que o investimento aumentou, entre 2005 e em 2011, quando passou de 15% para 20% do PIB.

Qual é a sua explicação?
A indústria é só 15% do PIB. E os outros 85%, que vão muito bem? O Eike Batista deve ter investido.
Então, quais são os problemas reais da indústria?
A indústria é excessivamente tributada no Brasil, comparada com as indústrias estrangeiras. Isso é um problema. Outro é que a indústria tem pouca flexibilidade de comprar insumos de fora por causa dessa política de requisito nacional e das altas tarifas cobradas na entrada de bens de capital e insumos.

O governo está tentando manter um modelo de indústria que não funciona mais?
Eles têm uma mentalidade que talvez coubesse em 1950 e que já foi exagerado em 1970. Hoje é um absurdo. Querem pensar em indústria no país em função desse mercadinho interno que a gente tem, que é só 3% do PIB mundial.
É também pensar pequeno a estratégia de curto prazo. Ficar tentando resolver o problema de cada setor, um a um.
Está com problema o setor de componentes da indústria automobilística? Azar.

O governo não deveria salvar certos setores, como têxteis e calçados?
Existem muitas indústrias de tecidos no Brasil que vão bem. Muitos dizem: a indústria de calçados vai acabar. Mas nesse grupo tem uma empresa chamada Alpargatas [fabricante das Havaianas]. Há muitas empresas que dão a volta por cima. O processo de criação destrutiva é a maneira pela qual o capitalismo se desenvolve e permite a incorporação de novas formas de fazer as coisas.
Essa política protecionista, de escolha de vencedores, constrange a capacidade produtiva a ficar aqui dentro, nesse rame-rame. É preciso olhar além da avenida Paulista [em alusão à Fiesp].

Indiano prega ‘capitalismo consciente’ contra a crise.

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Autor: Rajendra Sisodia entrevistado por Eleonora Lucena

Criar uma rede harmônica entre clientes, trabalhadores, fornecedores. Pensar no objetivo maior da empresa. Com essas linhas, o indiano Rajendra Sisodia, 53, defende a implantação do “capitalismo consciente” nas empresas.
Professor de marketing e negócios da Universidade de Bentley (Boston, EUA), ele virou guru de empresários como Abilio Diniz. Para Sisodia, a ideia “pode soar romântica, mas é bem prática”.

Lembra como o grave caso da exploração de trabalhadores da Foxconn, fornecedora da Apple, prejudicou a imagem da companhia norte-americana. Ele conversou com a Folha por telefone.
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Folha – O que é o capitalismo consciente?
Rajendra Sisodia – É uma abordagem um pouco diferente da tradicional, que diz que o capitalismo é apenas sobre fazer dinheiro e ter lucros. É um conceito com propósitos mais profundos. Por que o seu negócio existe? O que o seu negócio está fazendo para o mundo ficar melhor? Grandes companhias têm grandes propósitos.
Como isso se traduz para empregados, clientes, fornecedores?
É preciso reconhecer que há interdependência nos negócios. Todos os negócios têm fornecedores, clientes, empregados, comunidades, mas tendem a vê-los de forma separada, como forma de meios para um fim. O negócio consciente tentar reconhecer essa interligação. Se os empregados estão bem, felizes, geralmente os clientes também estão bem. Se os fornecedores não são bons parceiros, no longo prazo a empresa não será capaz de produzir bons produtos. Se qualquer uma dessas partes está infeliz ou está sendo maltratada, ao logo do tempo isso pode destruir o negócio inteiro.
O que o sr. diz para as lideranças empresariais?
Precisamos de líderes empresariais que se importem com o propósito do negócio e com o impacto que ele causa nas pessoas. Que sejam dirigidos não tanto pelo poder ou pelo dinheiro. Líderes conscientes devem motivar, inspirar e desenvolver as pessoas. Eles são realmente apaixonados pelo propósito do negócio, não colocam os empregados no último nível de importância. É preciso ter a cultura do amor, da preocupação, da confiança e da transparência e da autenticidade. Uma cultura sustentável a longo prazo.
Como esse conceito interfere nos resultados das companhias?
É simplesmente a melhor maneira de fazer negócios. As pesquisas mostram que as empresas que adotam essa linha têm mais sucesso ao longo do tempo. Porque criam grande valor para os seus clientes, os empregados são altamente engajados no trabalho, altamente produtivos. No longo prazo, o desempenho da companhia tende a ser muito melhor.
Que lições tirar da atual crise capitalista? O que deu errado?
É ganância. O setor financeiro perdeu o sentido do seu propósito, que é prover investimentos para produção. 0 Simplesmente entraram numa especulação para fazer dinheiro para eles mesmos, sem agregar valor para a sociedade, para os clientes etc. Quando se separa a criação de valor do fazer dinheiro há problemas. Eles estavam ganhando dinheiro baseados na ignorância das outras pessoas, tentando tirar vantagem delas.
O que a crise pode mudar para os negócios?
O que queremos com o capitalismo consciente é que os empresários mudem de mentalidade e pensem nos seus negócios de uma forma diferente. A cada 10, 15 anos temos uma crise. Isso nos faz pensar o que foi feito de errado, pensar alternativas. Há muita discussão sobre o que precisa ser mudado no sistema. No Brasil e na Índia, empresas estão tentando seguir o modelo norte-americano. Mas os americanos estão se dando conta de que o seu modelo não funciona tão bem.
Essa ideia do capitalismo consciente não pode ser tachada de romântica, já que o capitalismo é movido a lucro?
Sim, muitas pessoas pensam assim. Mas é uma ideia muito prática. As companhias que agem assim são mais bem-sucedidas na média. Elas estão fazendo dinheiro e lucros. Há um paradoxo. Se a empresa persegue o lucro como o primeiro objetivo, faz coisas que machucam sua habilidade de fazer negócios e ter lucros ao longo do tempo. Se ela quer maximizar os seus lucros e adota uma orientação de curto prazo espremendo os seus empregados, cortando benefícios, vai também espremer os seus fornecedores. Tudo isso pode prejudicar o negócio no longo prazo. Se a empresa tem os piores fornecedores, ou fornecedores de má qualidade, a qualidade não vai ser alta. Se os empregados não estão engajados e motivados, a qualidade também não vai ser alta. E os clientes também não vão ficar satisfeitos. As pessoas querem ser felizes. E são felizes quando fazem coisas que têm significado para elas.
Como o sr. analisa por exemplo o caso da Apple/Foxconn?
Companhias como a Apple e outras tiveram um comportamento distante dos fornecedores. Diziam algo como: não sabemos como vocês estão fazendo, mas é isso que queremos; o que nos importa é o produto e o preço. O que eles estão reconhecendo agora, com toda essa publicidade negativa para a Apple e para a Foxconn é que isso pode ser perigoso para eles no futuro. Funcionários cometem suicídio, têm péssimas condições de trabalho. A Apple está se movendo agora para criar mais transparência na sua cadeia de fornecedores, assegurando que as condições de trabalhão sejam adequadas.
Mas isso não provocará aumento nos custos?
Sim, provavelmente os custos vão aumentar e talvez eles devam aumentar. Os custos devem refletir os custos de fazer negócios. Custos justos devem ser absorvidos. Talvez devamos pagar 10% a mais sobre produtos eletrônicos apenas para refletir o justo custo. As companhias que operam assim têm funcionários que se tornam mais produtivos e mais engajados no seu trabalho.
Como combinar essa filosofia com a ação dos sindicatos?
Se já existe um sindicato, a empresa deve tentar ter relação com ele. Se não há sindicato e se a empresa trata os seus funcionários muito bem, eles não vão sentir vontade de entrar num sindicato, não vão precisar de um.
O seu trabalho então é atuar para esvaziar os sindicatos?
Não. Se fizermos nosso trabalho como executivos e tratarmos as pessoas muito bem, eles não sentirão a necessidade de sindicatos. Os sindicatos estão competindo pelos corações e mentes dos empregados. E se o executivo faz um trabalho ruim, os empregados irão querer se sindicalizar. Se os empregados têm melhores condições de trabalho e melhores salários, melhores benefícios, eles não vão querer se sindicalizar. Os sindicatos muitas vezes tendem a provocar a divisão entre empregados e empresas.
Mas não há necessariamente uma divisão entre eles? Não há luta de classes?
É uma forma antiga de pensar sobre negócios. É o pensamento marxista. Não existe luta entre trabalhadores e empregadores. Não é tudo sobre dinheiro. Eles tentam criar algo e fazer algo com significado no mundo, criar valor que todos dividem. E precisam trabalhar juntos em harmonia.
Mas não há uma oposição entre essas duas partes, já que uns querem lucros e outros, salários?
Não. De onde vêm os salários? Vêm de um negócio que é capaz de ser lucrativo. Se um negócio não é lucrativo, não é capaz de pagar bem. O que acontece em algumas companhias é que os empregados se juntam aos sindicatos, negociam e conseguem dinheiro. Mas depois os negócios não podem sobreviver e competir. É claro que há investidores que são muito gananciosos e querem todo o dinheiro e espremem empregados e fornecedores, poluem o ambiente etc. Isso também prejudica os negócios, pois pensam apenas nos seus próprios interesses. É como um câncer, que pode começar em qualquer lugar do corpo e pode destruir o corpo inteiro, destruir a companhia inteira. É preciso manter a harmonia no negócio. O negocio é sobre criar mais valor. Assim há mais para dividir.
Quem o sr. citaria como um grande empreendedor na história?
Não temos no mundo dos negócios líderes que combinem visão e liderança forte. Na política há Lincoln, Gandhi, Mandela. A maioria dos líderes de negócios não traz essa inspiração. Jack Welch operou um pouco assim, mas trazendo muito medo e estresse. Steve Jobs era um brilhante empreendedor, mas como ser humano era uma pessoa muito difícil. Não tratava as pessoas muito bem. Era um gênio em algumas coisas: criatividade, inovação, design de produtos, interface com clientes. Mas tinha uma personalidade muito difícil para tratar com pessoas. Não se preocupava com esse tipo de coisa [Foxconn] com os fornecedores. Queria criar produtos bonitos, com menor custo, competir. Era agressivo, focado, mas faltava essa dimensão humana. Ninguém é perfeito.
Qual é o seu autor predileto?
Peter Drucker. Falou de várias dessas coisas antes de todos. Estava à frente de seu tempo. É o mais influente e brilhante de todos os tempos.
Depois do fordismo e do toyotismo, o que vem por aí?
Quando uma companhia passa a ser dirigida pelos números, começa a focar nos lucros e na fatia de mercado, ela começa a sofrer. A Toyota, até há alguns anos, não falava de fatia de mercado, de ser número um. Era focada em qualidade, em eficiência, em confiabilidade, em ser boa para o planeta. Era, de longe, a mais bem-sucedida montadora do mundo. Mas há alguns anos começaram a focar em fatia de mercado, em conquistar fatias das outras e começaram a colocar muita pressão em cima dos executivos para que eles conseguissem cumprir as metas. Então começamos a ver a queda na qualidade e os problemas de segurança. Por isso existem esses enormes recalls. A Mercedes-Benz também teve problemas assim. Quando se dão alguns objetivos numéricos para os executivos, eles serão atingidos. Mas eles podem fazer coisas que são prejudiciais no longo prazo.
Mas as metas não servem de estímulo?
Sim, mas é preciso não estabelecer objetivos e metas tão difíceis. Anos atrás, a Ford estabeleceu o objetivo de ser a número um em vendas de carros nos EUA. No final do ano, os executivos estavam vendendo os carros por preços abaixo do custo, apenas para ter a fatia de mercado. Estavam agindo em função de uma meta de vendas, não em fazer um grande carro.

Crise financeira mostra regime em beco sem saída.

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Autor: Economista François Chesnais, professor Emérito Universidade de Paris 13 – Entrevista à Eleonora de Lucena – FSP.

A crise financeira não tem final à vista. O modelo de crescimento baseado em endividamento, seguido nos países ricos, está num beco sem saída. E o calcado em exportações de insumos –como o do Brasil– pode não funcionar por muito tempo.
A análise é do economista marxista francês François Chesnais, 77, professor emérito da Universidade de Paris 13 e autor de “A Mundialização do Capital” (1996) e organizador de “A Finança Mundializada” (2005).
Para ele, os protestos em Londres, no Chile e no Orienta Médio são expressão “de uma doença mundial criada pelo caminho tomado pelo neoliberalismo e pela dominação das finanças”. Numa época de valorização do consumismo, são “reações ao extraordinário abismo social”, afirma.

Folha – Qual a natureza da crise atual?
François Chesnais – O momento atual é um novo episódio na crise mundial. Ela começou há cinco anos, teve seu ponto mais crítico em setembro de 2008, com a quebra do Lehmann Brothers, e não tem um final à vista. Foi prenunciada pela crise asiática (1997-1998) e, no campo das finanças, pela quase quebra do Long Term Capital Management, no início da crise financeira russa. Eventos-chave nos anos 2000 e 2001 lançaram as bases para a eclosão da crise: o crash da Nasdaq, a resposta norte-americana ao 11 de Setembro, as guerras no Iraque e no Afeganistão, muito custosas política e financeiramente, e a entrada da China na Organização Mundial do Comércio.

Quais são as causas?
O funcionamento da economia mundial desde o início dos anos 2000 se baseou em dois pilares: o regime de crescimento guiado pela dívida, adotado pelos EUA e pela Europa, e o regime de crescimento orientado por exportações globais, no qual a China é a principal base industrial, e o Brasil, a Argentina e a Indonésia são os provedores-chave de recursos naturais. A crise representa o beco sem saída, o impasse absoluto do regime guiado pela dívida. O segundo pilar está levemente melhor, mas o crescimento baseado em exportações globais não poderá funcionar por muito tempo sem uma forte demanda externa, especialmente dos EUA e da União Europeia.

Por que há tensão nos mercados?
Os investidores financeiros estão extremamente preocupados. Há a perspectiva de um segundo mergulho da economia dos EUA, uma crise em forma de “W” nas economias avançadas. Outro risco é a vulnerabilidade do sistema bancário europeu, na zona do euro e também no Reino Unido. Há também o perigo de que o lento crescimento faça com que empréstimos públicos e privados sejam cada vez mais difíceis de serem recuperados.

Qual a situação na Europa?
Na União Europeia, desde abril de 2010, tem havido um contínuo fluxo de dinheiro público para alguns governos e para os bancos. Isso tem sido acoplado a políticas de austeridade muito drásticas em alguns países, que os arrastou à recessão (-4% na Grécia). Com isso, fica impossível o repagamento da dívida soberana. Provoca a quebra de empresas, além de levar os sistemas bancários na Grécia, na Itália e na Espanha para uma cada vez maior proximidade do colapso. Isso ameaça bancos nos países do coração da zona do euro, especialmente na França.

A situação dos bancos é preocupante?
Os eventos nas Bolsas estão sendo subordinados a situações bancárias críticas. Em 2008, a ameaça às finanças globais veio dos bancos de investimento dos EUA e das grandes seguradoras. O próximo episódio financeiro maior acontecerá quando um segmento do sistema bancário da Europa entrar em colapso na Grécia, Espanha ou Itália. A atual turbulência nas Bolsas é a expressão do pânico do investidor, que tenta antecipar esse tipo de evento. Seu principal efeito é contribuir para a efetiva ocorrência de um desastre em algum lugar. Isso afeta o comportamento do consumidor de renda mais alta e desencoraja investimentos da classe média.

Nos seus livros, o sr. descreve os detalhes do avanço das finanças. Como avalia o atual momento na história do capitalismo?
É possível traçar paralelos com o passado. Mas em nenhum período anterior foram tão elevados a quantidade de ações e títulos, os ganhos dos rentistas e nem foi tão grande a quantidade em circulação do que eu chamo de “capital monetário elevado à enézima potência”. Nunca os lucros financeiros foram tão altos em comparação com a atividade produtiva. Há as consequências da globalização neoliberal contemporânea. Nunca as finanças foram tão desreguladas. Nunca a capacidade dos governos de recuperar o controle sobre as finanças foi tão fraca. A extrema fraqueza da liderança política é uma consequência direta disso. Mas há uma nova dimensão da história do capitalismo.

Qual é?
Essa nova dimensão é a crise ambiental, começando com as mudanças climáticas, que se desenvolve em paralelo à ascensão das finanças e de sua crise. Por isso, entramos nas piores condições possíveis numa era em que a civilização –como a concebemos, no Ocidente e no Oriente– está patinando. Nossa era é uma em que as enormes e concentradas forças econômicas estão sendo chamadas a agir em tempos de crise, o que Naomi Klein chama de “a doutrina do choque”: setores poderosos da sociedade não apenas protegem eles mesmos, mas usam catástrofes para ampliar sua dominação. A forma como o furacão Katrina foi tratado em Nova Orleans mostra que isso vale para grandes eventos ambientais. Alguma coisa muito perturbadora ocorreu silenciosamente na França e, imagino, em outros lugares: a “luta contra a mudança climática” foi substituída pela “adaptação à mudança climática”.

Os governos deveriam jogar mais dinheiro nos mercados financeiros?
As políticas fiscais anunciadas ou já decretadas são fortemente pró-cíclicas. Elas acentuam o beco sem saída do regime de crescimento e a incapacidade que a elite dirigente tem de imaginar qualquer outra maneira de reger a economia. Não haverá fim para a crise mundial enquanto os bancos e os investidores financeiros estiverem no comando, fazendo políticas totalmente dirigidas pelos interesses dos rentistas e dando respostas à crise dominadas por tentativas de dar sobrevida ao regime guiado pela dívida.

O que precisaria ser feito para a retomada da crescimento?
Nos EUA e na Europa a recuperação requer o reestabelecimento do poder de compra das classes baixas e médias, a recriação e expansão da capacidade dos Estados de fazer os investimentos sociais e ambientais necessários e o estabelecimento de um sistema monetário internacional estável, não subordinado ao capital financeiro. As condições para isso vão incluir o cancelamento de boa parte da dívida soberana, assim como de boa parte da dívida doméstica; o reestabelecimento de uma taxação correta para a renda das finanças e do capital (um retorno aos níveis de 1970 seria um começo); o reestabelecimento de um verdadeiro controle público do sistema de crédito; um controle restrito dos fluxos de capital e uma luta efetiva contra os paraísos fiscais.

Qual sua visão sobre o poder das agências de classificação de risco?
O poder das agências de classificação de risco apenas espelha o quanto os governos foram colocados nas mãos das finanças. Mostra a extensão da abdicação do poder dos governos, que mudaram as finanças públicas de uma forma baseada em impostos para uma baseda em dívida. Meu livro mais recente, “Les Dettes Illégitimes, Comment les banques ont fait main basse sur les politiques publiques” (2011) [As dívidas ilegítimas, como os bancos fizeram para manipular as políticas públicas, em tradução livre], enfatiza que, em 1980, a dívida pública da França era de 5% do PIB. Mostro que o crescimento é consequência da diminuição dos impostos para os de renda alta, os ricos em patrimônio e lucros, e dos gastos em programas públicos de financiamento custosos, que se tornaram elefantes brancos, como o Rafale que nenhum país comprou.

E o que ocorre agora?
As agências de risco estão pressionando a elite política francesa para aprofundar as políticas de austeridade. Isso no contexto de uma situação de quase recessão –0% de crescimento e desemprego acima de 9%. A recessão mundial de 2008-2009 mostrou a fraqueza da indústria francesa e os efeitos desastrosos do jogo no mercado da União Europeia. O que é necessário é uma política industrial e tecnológica comum, um sistema de intervenção comum. É possível que, nos próximos meses, ocorra na França uma reação popular contra os próximos cortes de orçamento.

As revoltas no Norte da África e no Oriente Médio, o movimento dos “indignados” na Espanha e agora os protestos em Londres têm alguma ligação?
Eu adicionaria à lista as enormes marchas em Tel Aviv, com 200 mil pessoas, e em outras cidades contra a alta nos preços dos alimentos e o desemprego. E também esse extraordinário movimento dos estudantes no Chile. Cada um desses movimentos precisa ser analisado com cuidado. São obviamente expressão de uma doença mundial criada pelo caminho tomado pelo neoliberalismo e pela dominação das finanças.

O que os movimentos têm em comum?
Eles têm em comum o fato de terem sido estimulados pela juventude. Em muitos casos são liderados por jovens líderes que estão emergindo do movimento. São todos reações ao extraordinário abismo social num tempo em que o consumismo é projetado mundialmente pela tecnologia contemporânea e pelas estratégias de mídia. Cada um tem suas idiossincrasias nacionais e suas trajetórias políticas. Em cada caso há uma diferente mistura de um componente fundamental democrático, com conteúdo anticapitalista. Reagem ao fato de a eles ter sido negada a posse de bens que outros da sua mesma geração possuem no seu cotidiano. A crescente percepção da corrupção politico-financeira atiça a indignação e, no caso dos jovens mais pobres, os faz usar os únicos métodos que têm à disposição.

Como os partidos conservadores, social-democratas e a esquerda estão reagindo a essa situação?
Para os partidos conservadores, é sempre sobre “lei e ordem”. Os social-democratas estão em profunda confusão. As forças da esquerda têm sido fortemente puxadas para o jogo institucional. Tomara que a duração, a severidade e os altos riscos da combinação entre as crises econômica e ambiental permitam o renascimento de uma forma de atividade política que comece a realmente desafiar o sistema. Na Europa, foi na Grécia que a mobilização de massa da juventude mostrou o conteúdo político mais profundo. Espero que seja o modelo para outros países.

Exaustão fiscal global está na origem de turbulência

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Autor: Gustavo H. B. Franco – ex-Presidente do Banco Central – Eleonora de Lucena/FSP.

“Teremos uma marcha lenta no Primeiro Mundo em razão da necessidade de corrigir os excessos fiscais. Não há espaço para políticas keynesianas de gasto nem para redução dos juros.” A avaliação é de Gustavo Franco, 55, ex-presidente do Banco Central (governo FHC), para quem a crise pode significar “o fim de uma era de keynesianismo fácil”.
Sócio-fundador da Rio Bravo Investimentos, Franco vê uma “exaustão fiscal global” e advoga a redução dos gastos públicos. “Não vejo bolha nenhuma, muito menos fracasso neoliberal”, diz.

Folha – Qual o impacto da decisão da Standard & Poor’s de rebaixar os EUA?
Gustavo Franco – No primeiro momento é simbólico, pois os EUA continuam AAA em duas outras agências. As determinações estatutárias de fundos de pensão e dos bancos centrais geralmente falam de grau máximo em duas agências. Acho que é um belo “wake up call” [chamada para despertar], pois fica claro que a disciplina que se exige de todos num mundo interconectado também deve ser praticada e cobrada na potência central.

Por que as Bolsas caíram? É, de fato, por causa de temores de recessão ou há outros ingredientes?
Sim, há temores quanto à recessão, sobretudo no hemisfério Norte, mas o que torna as coisas mais preocupantes é a situação fiscal no Primeiro Mundo, onde as dívidas dos governos chegaram a patamares tão altos que a sensação é a de que se esgotou a capacidade desses países fazerem políticas fiscais expansionistas.

Os governos devem colocar mais dinheiro no mercado financeiro? Haverá nova socialização das perdas?
Não é a situação de 2008, não há bancos a salvar. Ao menos por ora, nunca se sabe. A natureza do problema é outra: os países se engasgaram com tanta “socialização das perdas” por cima de “socializações de ganhos” e conquistas sociais e excessos de gasto público em geral.

Se as agências de risco erraram de forma tão dramática em 2008 (não prevendo o colapso do Lehman; qualificando os bancos da Islândia como AAA) e também agora nos cálculos do rebaixamento dos EUA, por que elas seguem tão importantes? Elas vão ser “rebaixadas” por governos e outras instituições?
Essa é uma boa pergunta. Em boa medida, na segunda-feira [hoje] os mercados estarão se perguntando se a Standard & Poor’s está com essa bola toda.
Normalmente as agências reagem defasadamente ao que todo mundo já sabe, padrão que se repete dessa vez. E erram o tempo inteiro, sim e, em muitos casos, no contexto de conflitos de interesse. O Tesouro Americano contesta os cálculos da S&P. Uma das revelações desta segunda vai ser a importância que os mercados atribuem às agências de risco.

Se os títulos dos EUA estão com pior avaliação, qual a opção? Títulos alemães?
Títulos dos EUA.

Estamos entrando num período de recessão mais longo e profundo?
Recessão é uma palavra forte, não é bem isso. Cresce a consciência de que teremos uma marcha lenta no Primeiro Mundo em razão da necessidade de corrigir os excessos fiscais. Não há espaço para políticas keynesianas de gasto nem para redução dos juros, que já estão no chão. De onde vai vir o crescimento?

De onde? O capitalismo não consegue mais fazer crescimento?
Seria errado pensar assim, a julgar pelos quatro séculos de bons serviços que o capitalismo tem com este planeta, e também porque não há alternativa. O desafio será o de direcionar políticas públicas para trabalhar fatores como produtividade, inovação, regulação, ambiente de negócios, infraestrutura e num contexto de economia fiscal, de modo a elevar a confiança da economia privada, de empresas e consumidores.

Se recessão é uma palavra forte, como o sr. definiria a situação atual? Estagnação?
Apenas baixo crescimento, ao menos durante o período de acomodação dos efeitos financeiros e fiscais de crise. Há certa ansiedade nesses países, pois há muito crescimento na Ásia e, em menor escala, no Brasil.

Em termos históricos essa recessão seria comparável à recessão de 29 ou à do final do século 19, que resultou no declínio da Grã-Bretanha e na ascensão dos EUA e da Alemanha?
A crise de 1929 é uma fonte inesgotável de lições, e o presidente do FED [banco central americano], que é um historiador que conhece o assunto, tratou muito bem de evitar os erros daquele tempo, especialmente no terreno da política monetária. Acho meio exagerado falar da decadência dos EUA como potência econômica.

Vivemos o estouro de várias bolhas? Há quem afirme que a crise desses dias é a prova do fracasso neoliberal. É? Não vejo bolha nenhuma, muito menos fracasso neoliberal. É preciso olhar a situação com frieza, sem preconceitos ideológicos: o que estamos vivendo é o esgotamento do crescimento do Estado nas grandes democracias ocidentais, e mais o Japão, onde os níveis de endividamento público ultrapassaram medidas habitualmente aceitas de responsabilidade fiscal.
O mal-estar é causado pelo fato de que há deficits e dívidas enormes. Os gastos públicos têm que cair. Em cada sociedade há um grupo, como o Tea Party, que vai se opor a aumento de impostos. O enredo do impasse americano é global, e, por isso mesmo, foi tão impactante. É uma prévia do que vai ser visto em muitos países. É como se fosse o fim de uma era de keynesianismo fácil, onde tudo sempre se resolve com o gasto público, socializando perdas, ou acomodando sucessivas e inesgotáveis “conquistas”, e coalizões cada vez maiores. Essa paralisação fiscal-financeira do Estado representa novo desafio, talvez início de um novo tempo.

Politicamente, quais serão os efeitos da decisão da S&P e todo o enrosco de Obama com o Congresso? A China já está reclamando.
Acho que o impacto pode até ser positivo, na medida em que mobiliza energias políticas para a busca de soluções. A China é um capítulo à parte, pois não tem os problemas fiscais próprios das democracias ocidentais por uma razão simples e óbvia: não é uma democracia. Para ser, e evitar uma primavera que pode ser tumultuada, teria que alterar muito de suas instituições ligadas ao mercado de trabalho e à seguridade social. O fato é que a China tem sido a fonte de um discurso meio vigarista sobre o “fracasso do modelo liberal” que na verdade é uma velha cantilena sobre a ineficiência da democracia.

Como o sr. avalia a fragilidade de economias como Itália e França? Como está a saúde financeira dos bancos europeus?
O temor alcança todos, e por isso era bom ficarmos nós, aqui no Brasil, bem quietos e prudentes, pois os nossos números fiscais não estão muito diferentes daqueles dos países com problemas. Nesses episódios de elevação da aversão ao risco, os mercados ficam procurando os países e as empresas fragilizados.

A situação dos bancos europeus terá impacto no Brasil?
Se aparecer algum grande problema bancário europeu, certamente terá efeitos por toda parte. Mas hoje não há clareza sobre isso.

Alguns analistas têm receio do excessivo endividamento privado brasileiro no exterior. Uma virada no câmbio poderia colocar empresas sob risco. O sr. compartilha desse temor?
Não compartilho. Acho que o volume não é muito grande, e as empresas sabem fazer hedge. A medida descabida foi o IOF [Imposto sobre Operações Financeiras] sobre derivativos que torna o hedge mais caro para as empresas. O tema do momento é outro: dívida pública. E o que me preocupa no Brasil é o governo achar que tudo está bem nesse terreno, e que o rebaixamento americano seria como uma promoção para nós. Nada mais perigoso.

Qual deve ser o impacto na taxa de juros, no câmbio e no crescimento?
Os impactos sobre o Brasil estão ainda indefinidos. As pressões sobre a Bolsa são meio exageradas e fazem as empresas brasileiras ficarem muito baratas relativamente a seus resultados. A oportunidade para comprar parece-me clara.

O sr. prevê novos rebaixamentos de países pelas agências de risco?
É provável, ao menos pela S&P, pois, ao alterar a classificação do país, geralmente se alteraram as de todas as empresas ali sediadas. Será interessante verificar se esse protocolo será obedecido dessa vez. Parece que a S&P não tinha muita ideia do tamanho da dificuldade que criou para si. E a impressão que tenho é que o próximo assunto é a Europa, pois é onde estão os maiores problemas de dívida soberana.

O que aconteceu nos últimos dias é uma tragédia inesperada ou é algo de dimensão menor? A recuperação vai demorar mais?
A natureza do problema não me parece ser a de um problema agudo, como o pânico bancário provocado por uma sucessão de bancos quebrando como em meados de 2008. Mas de um peso, que dobrou de tamanho em dois anos, que os governos terão que carregar por um bom tempo. É a exaustão fiscal global.
Alguns mais fracos, os Piigs [Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha], estão com dificuldades, e mesmo nos países mais sólidos as pessoas estão debatendo sobre como distribuir o peso e os sacrifícios.
É uma espécie de marcha forçada, onde será preciso algum tempo para diminuir o peso e ajustar as contas, na qual pode acontecer algum incidente, é claro. Os EUA estão fazendo a sua parte. Talvez amanhã [hoje], por curioso que pareça, as pessoas voltem seus olhos para Itália e Espanha. Na verdade, os assuntos das conversas no âmbito do G7 e de bancos centrais da Europa não serão muito relacionados aos EUA, mas à blindagem da Europa.

O que o sr. recomendará aos clientes? Onde investir? Ouro? Ativos reais?
Depende de cada caso. E o nosso perfil é de investidor de longo prazo, e a receita para esse tipo de investidor é contrária ao comportamento da “manada”. A oportunidade que se apresenta é a de comprar ações de boas empresas que subitamente se tornaram baratas.

Brasil se desindustrializa e canta como cigarra a música da China

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Autor: Wilson Cano – Economista / Entrevista a Eleonora de Lucena FSP

A desindustrialização no Brasil avança. O país está regredindo. Não basta ter uma política industrial. É preciso mexer no câmbio e reduzir muito os juros. O diagnóstico é do economista Wilson Cano, 73.
Nacionalista e admirador de Celso Furtado, Cano tem sua vida acadêmica ligada à história da Unicamp. Doutor e livre-docente em economia, hoje aposentado, ele é professor voluntário na Universidade.
Autor de diversos livros sobre desenvolvimento industrial, Cano está pessimista. Sente falta de empresários com visão estratégica e critica o modelo que “está exterminando o futuro”, diz. Prevê o fim da farra dos altos preços das commodities, já que a China constrói novas fontes de abastecimento. Para ele, o Brasil erra como uma cigarra que canta com música chinesa.

Folha – Está ocorrendo desindustrialização?
Wilson Cano – O termo tem dois sentidos. No primeiro é um fenômeno que se vê com naturalidade: é a diminuição da proporção da renda e do produto gerado pela indústria no PIB geral.
Isso ocorre em sociedades que já atingiram um padrão de produção e de consumo, onde a urbanização é praticamente total e a diversificação de serviços é extraordinária. Nesses locais é normal aceitar que o peso da indústria no PIB esteja reduzido a 20%, como se aplica aos países da Europa Ocidental e aos EUA.
No mau sentido da palavra, desindustrialização significa uma precoce diminuição da presença da indústria num país em que ainda há muita coisa a fazer em termos de industrialização, como é o caso do Brasil.

Como explicar isso?
Nos anos 1980 o peso da indústria de transformação no PIB era de 33%. Hoje é de 16%. Tínhamos toda uma frente por desenvolver: espacial, petroquímica, química fina, informática, eletrônica, fármacos.
Entretanto estamos há 31 anos em crise. Nos 80 veio a crise da dívida. Depois o neoliberalismo com um crescimento medíocre, até 2003.
De 2004 para cá estamos vivendo um processo ilusório, em parte, porque estamos crescendo sem investimento. Estamos crescendo pelo consumo, pelo crédito. E a situação no mercado internacional que é excepcional, com os elevados preços de produtos primários.

O sr. escreveu recentemente que as políticas cambial e de juros podem ser exterminadoras do futuro. Como explica essa afirmação?
A relação manufaturados/exportações totais chegou a atingir 59% e hoje está na casa dos 40%. Se olharmos as estruturas produtivas e exportadoras segundo o grau de intensidade tecnológica estamos regredindo. Estamos na contramão da história econômica.

Há a questão do déficit comercial de produtos industrializados.
Ele é enorme e crescente. Principalmente em dois compartimentos: o automobilístico -que paradoxalmente é o que recebe o maior número de favores do Estado- e setor eletrônico, mostrando claramente as perdas que a nossa indústria vem sofrendo.

Quão grave é o processo?
Tínhamos homens como [Abraham] Kasinski, [José] Mindlin (1914-2010), que eram dois baluartes da indústria de ponta, moderna. Um teve que vender a fábrica para os americanos. O outro vendeu e se transformou em montador de motocicletas em Manaus e acabou vendendo para os chineses.
Há coisas que são irreversíveis. Como quando se destrói segmentos da elite industrial brasileira. Eram homens que sabiam o que significa uma indústria nacional.

Onde está a visão estratégica?
A estratégia deles é ganhar dinheiro lá fora pegando o dinheiro do BNDES para matar boi nos EUA. Os empresários estão preocupados em ganhar dinheiro com dólar barato. Fazem negócio lá fora ou simplesmente aplicam no sistema financeiro. Com essa taxa de juros, quem tem o dinheiro aplica no mercado financeiro sem ter que se preocupar com trabalhador, processo produtivo, imposto.

E o que deve ser feito?
O próprio ministro do Desenvolvimento disse a empresários que não tem jeito. Parece ser um governo conformista. O nacionalismo está meio fora de moda.

Isso compromete o futuro?
Sim, porque estamos cantando como uma cigarra. Estamos cantando com a música chinesa. Cantando por exportar galinha e soja e minério de ferro. Mas isso nunca deu futuro a ninguém. As lideranças aceitam que é muito bom ficar exportando essas coisas, mas esquecem da regressão industrial.

A farra das commodities vai acabar?
A China está abrindo frentes de produção na África e na América Latina para a produção de minério e de petróleo, grãos, carne. Estão buscando novas fontes abastecedoras. A China sabe que não pode continuar crescendo a 10% e pagando o preço que está pagando por essas matérias-primas.

Isso vai resultar em queda no preço das commodities no longo prazo?
Sim, sem dúvida.

O governo deveria controlar mais os capitais externos?
Há várias formas de controle sobre o fluxo internacional de capital. Estamos vendo uma anormalidade com esse dólar. O governo não tem feito muita coisa, porque para fazer alguma coisa teria que alterar profundamente esse modelo econômico.

Mas o país não está menos vulnerável?
Estamos cantando que diminuímos a nossa vulnerabilidade externa porque temos reservas internacionais de U$ 300 bilhões e a dívida externa pública diminuiu. Mas a privada aumentou. Temos reservas, mas temos mais de U$ 350 bilhões de investimento estrangeiro em carteira que podem rapidamente se mobilizar e sair do país.

Quais deveriam ser os principais pontos da política industrial que o governo está preparando?
Investir, inclusive em ciência e tecnologia nos setores de ponta que não conseguimos avançar na passagem dos anos 1980, notadamente fármacos e microeletrônica, em especial chips.
Eliminar a guerra fiscal e reformular a Zona Franca de Manaus. Rever profundamente a nossa política de comércio exterior.

Basta ter uma política industrial se câmbio e juros continuarem como estão?
Com a atual política econômica, nenhuma política industrial terá sentido. Não foi assim com as políticas dos países desenvolvidos, em especial todas as asiáticas.

O sr. fala que é preciso investir, inovar, exportar e financiar tudo isso. Qual sua receita para o governo?
Há que ter vontade política e consciência crítica para alterar o modelo macroeconômico. É preciso baixar os juros, mas para isso não podemos conviver com esse câmbio. É uma camisa de força.

Países desenvolvidos terão anos sem brilho, com crescimento fraco

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Autor: Carmen Reinhart – Economista/ Entrevistada por ÁLVARO FAGUNDES – Folha de São Paulo – 25/04/2011

ECONOMISTA QUE ESTUDOU CRISES APONTA QUE ENTRADA DE CAPITAL EXTERNO PODE SER PERIGOSA A EMERGENTES

A crise global como vimos em 2008 e 2009 chegou ao fim, mas a “sombra” dela ainda vai permanecer por muitos anos.
Uma das consequências é que os países ricos, como os Estados Unidos, deverão ter anos sem brilho, com baixo crescimento.
Essa é a opinião de Carmen Reinhart, uma das mais importantes economistas americanas e autora, ao lado de Kenneth Rogoff, do elogiado livro “Oito Séculos de Delírios Financeiros”, em que analisam diversas crises ao longo do tempo.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

Folha – Nos últimos meses, os mercados, especialmente nos EUA, têm se comportado como se a crise tivesse chegado ao fim. A crise acabou?
Carmen Reinhart – O drama que vimos no fim de 2008 e no início de 2009 chegou ao fim. Não se vê algo algo daquela dimensão muito frequentemente.
Mas uma solução duradoura ainda não foi atingida. As economias avançadas -a maioria das europeias, os EUA e o Japão- têm dívidas pesando sobre suas cabeças.
Você veio do Brasil, sabe que o grande drama da crise da dívida na América Latina foi quando o sistema começou a implodir no início dos anos 1980, mas levou um bom tempo até que fosse resolvido.
Os mercados sobem e descem. Para falar a verdade, os mercados começaram a contar com o ovo antes de a galinha pô-lo, antecipando uma recuperação mais forte do que o que ocorreu realmente.

Os mercados desenvolvidos vão enfrentar o mesmo problema que os latino-americanos nos anos 1980?
Eles não vão, eles estão. Em 2006, dava para imaginar uma conversa envolvendo a reestruturação da dívida de países europeus?
É preciso colocar as coisas sob perspectiva. Não acredito que as condições serão as mesmas, porque os emergentes perderam o acesso aos mercados internacionais de capital de uma maneira que os países desenvolvidos não perderam.
Não tenho dúvida de que, se a Grécia e a Irlanda não tivessem a União Europeia por trás, nós teríamos “default” (calote), reestruturação.
Se nós olharmos quem está comprando os títulos da dívida deles, é o BCE (Banco Central Europeu), e não investidores privados.
Então, quando você me pergunta se a crise já acabou, eu acho que a sombra que ela projetou é grande e que nós ainda não a superamos.

Então, a sra. não vê o desemprego nos Estados Unidos recuando nos próximos dez anos para o nível do fim de 2007, próximo a 5%?
Acho que vai demorar um tempo até voltarmos a 5%. A minha expectativa é de que o desemprego nos EUA permaneça teimosamente alto, acima de 8%.
Para começar, os preços do setor imobiliário estão muito longe da recuperação e o setor de construção é um que exige muita mão de obra.
Eu acho que os EUA e a maioria dos países avançados terão anos sem brilho, com crescimento abaixo da média.
As dívidas das famílias americanas estão perto do seu nível recorde e as empresas financeiras estão altamente endividadas.
Nos EUA, o único setor que está relativamente enxuto é o de empresas não-financeiras, mas, ao mesmo tempo, os planos de investimento delas, quanta gente mais pretendem empregar, dependem da expectativa de como será o consumo.
E isso nos traz de volta à questão das dívidas das famílias.

Voltando à questão fiscal, quais serão as consequências dessa crise na economia real dos Estados Unidos?
Não estamos ainda no nível de uma crise fiscal nos padrões de Portugal, da Grécia e da Irlanda, mas os efeitos serão mentais.
As expectativas das pessoas serão reduzidas, os valores de aposentadorias não serão os entregues em sua plenitude e os impostos também devem subir.

Qual é a sua avaliação sobre a atuação do governo Obama e do Fed [Federal Reserve, o banco central dos EUA]?
Eu acho que o Fed tem atuado de maneira bastante agressiva e rápida, mas ele precisa convencer o mercado e o setor privado de que, quando chegar o momento, também vai agir agressivamente e rapidamente para aumentar os juros.
Sobre a administração Obama, acho que já chegou a hora de apresentar um plano para reduzir a dívida.
Uma coisa é dizer que temos, com a crise, uma situação fora do comum e estímulo é necessário.
Mas é preciso estabelecer uma estratégia para reduzir a dívida. Dizer que a dívida vai se estabilizar em 77% [em 2021] é realmente medíocre.

E quais efeitos os países emergentes devem sofrer?
Ainda não acabou o ciclo de busca por rendimentos maiores nos países emergentes, neste momento de juros baixos nas economias avançadas.
A combinação do desemprego nas economias avançadas e de dívida alta nesses países inclina a política monetária para o afrouxamento e para a manutenção dos juros baixos.
Então acredito que os países emergentes terão provavelmente que continuar a lidar com essa faca de dois gumes que é a enorme entrada de capital estrangeiro.

Por que é uma faca de dois gumes?
Entrada de capital externo, como os brasileiros bem sabem, está geralmente associada à alta da moeda.
A valorização cambial pode ser tolerada até o ponto em que não começa a deteriorar a conta-corrente, o que já começou a ocorrer no Brasil. Ela também só pode ser tolerada enquanto não começa a afetar a capacidade competitiva de um país, especialmente do setor industrial, o que também já ocorre no Brasil.
O problema com a entrada de capital é que ou você não recebe nada ou recebe demais. Eu acho que essas questões de administração do ingresso de capital externo vão perdurar por mais algum tempo nos países emergentes.

Qual é a sua opinião sobre a forma como o Brasil está administrando a entrada de capital externo?
Tenho algumas preocupações. Acho que o Brasil está indo no caminho certo ao aumentar os tributos sobre o capital especulativo, mas temo que, se o país continuar com a intervenção esterilizada [no câmbio] e perpetuar o diferencial de juros, isso é um negócio perigoso.

Por quê?
Porque, com base na minha própria pesquisa, quando você tem políticas que perpetuam o diferencial de juros você tende a dar mais força para esse processo, ou seja, atrair mais capital.

A China está tentando conter a inflação. Quais são os riscos que ela pode trazer para a economia global?
Os riscos que a China traz têm a ver com o seu tamanho, é a segunda maior economia do mundo, e tem grande influência sobre os mercados de commodities.
A China enfrenta algumas questões parecidas com as do Brasil, mas não de maneira tão aguda, porque ela tem mecanismos de controle de capital.
O dilema que eles enfrentam é que, quanto mais tempo eles tentarem impedir a valorização do yuan, mais as pressões inflacionárias durarão e mais serão crônicas.
A China vai ter um período difícil, tentando conter a inflação sem tirar muito do crescimento. Eu preciso acrescentar, porém, que a questão da inflação na China é pior do que os dados oficiais mostram.

E a inflação no mundo? Os preços, especialmente nos emergentes, continuam a subir. É um problema que vai continuar?
Acho que é um problema para os emergentes agora, mas que deve se generalizar.
Porém, até isso ocorrer deve ser um período de longa gestação. A inflação é uma questão para os emergentes, devido à entrada de capital.
Para os desenvolvidos, é uma questão ainda menor, especialmente pela falta de força das suas economias. E é um problema ainda menor para os EUA, porque, ao contrário da libra e do euro, o dólar não teve um enfraquecimento sustentado.