Brasil não está pronto para erradicar miséria, diz pesquisador.

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Folha de São Paulo, 07/03/2011.
Autor: Entrevista com Renato Dagnino, professor titular no Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp.

A seguir, trechos da entrevista concedida à Folha.

Folha – De que maneira a ascensão social ocorrida durante o governo Lula interfere na política de ciência e tecnologia do Brasil?

Renato Dagnino – De uma forma geral, a gente tem que pensar a política técnico-produtiva. Hoje, muitos produtos já não são encontrados no comércio, justamente pela ascensão desse grupo, que tem suas demandas de consumo. Além disso, frequentemente os produtos que demandam não são os que normalmente estão à venda. Existem tipos de produtos que são orientados a outro segmento de consumo. Pensando de uma forma global, o país deveria fazer um esforço para se antecipar a essa demanda e prevenir desequilíbrios.

Demandas de que tipo?

Por exemplo, necessidades básicas: habitação, esgoto, água potável, transporte etc. Toda essa parte que tem a ver com o gasto público, com uma obrigação do Estado. Existe aí forte demanda reprimida. Como vamos resolver esse tipo de problema com as tecnologias disponíveis, que foram pensadas como solução para uma situação totalmente diferente da brasileira? Caso se tente resolver muitos desses problemas com a mesma tecnologia usada nos países desenvolvidos, o custo será astronômico, e o impacto ambiental, desastroso. Além disso, estaremos usando tecnologias que não correspondem à escassez e abundância relativa de fatores. Essas tecnologias, por terem sido desenvolvidas em países avançados, empregam muito menos mão de obra do que poderiam empregar. Por uma razão simples: a mão de obra lá é cara. Aqui, a gente precisa de muita mão de obra, de preferência em coisas que possam ser construídas, desenvolvidas ou implantadas a partir da organização dos próprios trabalhadores, sem a necessidade de grandes empresas.

Por quê?

Quando o governo gasta recursos com empresas, utilizando seu enorme poder de compra para atender a essas necessidades dos cidadãos, uma parte do gasto é lucro da empresa. Há uma ineficiência nesse processo, pois o que chega na classe mais pobre é menos do que poderia chegar. Ou seja, o governo gasta um dinheiro razoável nessa tentativa de amenizar a miséria, mas deixa de aproveitar o seu poder de compra, que é muito grande, para alavancar esse processo.

Falta integração entre políticas sociais e políticas de ciência e tecnologia?

No mundo inteiro, a pesquisa feita na universidade é direcionada para o interesse das empresas. Muito pouco da pesquisa que se faz atende aos interesses do Estado. No Brasil, porém, diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos, por exemplo, nosso gasto com universidades não favorece as empresas. Enquanto lá as empresas investem em pesquisa e contratam 70% dos mestres e doutores, aqui a nossa taxa de aproveitamento fica em torno de 0,07%. O que acontece é que as empresas localizadas no Brasil inovam comprando equipamentos, o que faz sentido, dada a nossa condição de país periférico. Se olharmos para as demandas que têm a ver com o projeto de erradicação da miséria, veremos uma carência enorme de conhecimento técnico-científico. Isso ocorre por várias razões, entre elas, porque as necessidades básicas das populações nos países desenvolvidos foram atendidas há muito tempo. Hoje, a expansão da fronteira do conhecimento está conectada ao interesse das pessoas de mais alta renda. Então, esse conhecimento de que necessitamos não existe, nós temos que produzir. E temos que oferecer soluções tecnicamente perfeitas, ou as melhores possíveis, além de social e ambientalmente adequadas. Esse é desafio que temos pela frente.

Como seria possível fazer a integração entre essas políticas?

É possível utilizar o poder de compra do Estado de uma forma mais coerente com a ideia de inclusão social. A latinha de alumínio é um exemplo. Por que não podemos transformar a latinha em esquadria de alumínio com uma tecnologia social, completando a cadeia da janela de alumínio com a economia solidária? O processo de construção de casas populares poderia ser pensado de forma a unir as pontas, desde a pesquisa, partindo de uma tecnologia simples, capaz de ser utilizada pelas cooperativas, em pequena escala. O programa Minha Casa, Minha Vida poderia ser usado de outra forma. Hoje, quase todos os recursos do programa são alocados em empreiteiras, quando uma parte grande poderia ir para mutirões.

Há alguma diferença entre os governos FHC, Lula e Dilma no que diz respeito às políticas de ciência e tecnologia?

Não. Na verdade, o que os dados disponíveis mostram é que vem diminuindo o gasto percentual das empresas em pesquisa e desenvolvimento. Isso é totalmente esperado. Trata-se de uma questão estrutural. Existem três bons negócios com tecnologia: roubar, copiar ou comprar. Desenvolver, só em último caso.

Se é mais racional que o empresário compre tecnologia, o Estado precisa ter um papel mais ativo?

Não adianta. Se somos um país capitalista, o Estado nunca terá condições de intervir para regular o mercado a ponto de “obrigar” um empresário a fazer algo que ele não queira. Em especial algo como desenvolver tecnologia.

E qual é a solução?

No caso brasileiro, não tem solução, e esse é o problema que o pessoal não entendeu ainda. Costuma-se dizer que o empresário brasileiro é “atrasado”, que falta “clima de inovação”, que ele tem que ser “mais ousado”, mais “empreendedor”. Ora, se tem empresário competente no mundo, é o brasileiro. E digo isso como toda a sinceridade. Basta ver o dinheiro que ganha, a taxa de lucro que tem num país como o Brasil. Agora, o processo de erradicação da miséria é uma oportunidade de ouro. Esse processo desvela uma enorme demanda reprimida por conhecimento. E não só conhecimento desincorporado, mas incorporado em bens, serviços, capacidade produtiva. Costumo dizer que 50% da população brasileira está fora do Brasil. Para fazer um país onde caiba todo o povo brasileiro em termos de consumo, de satisfação de necessidades de todo tipo, é preciso construir outro país do tamanho do que já existe. Não dá para fazer isso sem planejar antes. Está na hora de pensar esse processo de construção do Brasil que a gente quer, e isso não está sendo feito.

Não cabe ao governo o papel de fomentar essa discussão?

No caso da política de ciência e tecnologia, temos uma situação anômala. Em todas as políticas públicas, os atores sentam à mesa com seus projetos. Quando se discute a política salarial ou de emprego, por exemplo, empresários e trabalhadores aparecem claramente em áreas radicalmente opostas. Na ciência e tecnologia, porém, o projeto político não aparece. O que aparece são os mitos: neutralidade, determinismo, a ideia de que ciência e tecnologia sempre são boas e que o problema é o uso que vai se fazer. E há um complicador. Há 50 anos fala-se em participação pública na ciência. É um discurso politicamente correto, mas as pessoas parecem esquecer em que país estão vivendo. Por mais politicamente correto que seja, não posso concordar com isso. Qual a saída? Eu acho que é propor uma discussão dentro da comunidade de pesquisa. Explicitar essa esquizofrenia. A minha expectativa é que haja uma cisão dentro da comunidade de pesquisa, como existe em qualquer outra área quando o projeto político consegue se manifestar. Porque há projetos diferentes, mas hoje eles não se mostram.

Quanto dessa situação é novidade por causa do atual momento social e econômico do país?

Essa situação existe há muito tempo, mas, na medida em que há um dado novo, e esse dado novo obriga a uma expansão da capacidade produtiva, é hora de inovar com qualidade, e não fazer um simples aumento quantitativo da capacidade produtiva. Isso porque, quando se dobra a capacidade produtiva de um determinado sistema, o impacto indesejável do ponto de vista ambiental, cultural etc. pode até quintuplicar.

Desse ponto de vista, o senhor diria que o país está pronto para erradicar a miséria?

Do ponto de vista cognitivo, do ponto de vista de conhecimento científico-tecnológico, o país não está pronto de jeito nenhum.

E para absorver a chamada nova classe média?

Também não. Esse processo terá consequências ambientais e sociais. Acaba desfazendo de um lado o que faz do outro. Os programas compensatórios, como o Bolsa Família, são um caso típico. Sem gerar oportunidade de trabalho e renda para essas pessoas, não se está fazendo muita coisa.

Reportagem da Folha na sexta mostrou que a “porta de saída” do Bolsa Família terá, neste ano, o menor peso no Orçamento desde a criação do programa.

É um absurdo. O cara vai continuar excluído. Não vai passar fome, mas também não vai pertencer à sociedade, porque não terá um papel social. Estamos falando em criar oportunidades de trabalho e renda, o que não é necessariamente emprego.

Como assim?

Não é emprego formal, com carteira assinada. A economia cresce, mas não gera emprego. Aí entram a economia solidária e a tecnologia social, por exemplo. Ao dizer isso, não é preciso pensar em uma sociedade diferente do capitalismo. Podemos falar, de uma maneira pragmática, que a economia solidária e a tecnologia social são condições para tornar efetivo o dinheiro que o governo gasta para tirar as pessoas da miséria. É preciso dar condições para que essas pessoas se sustentem, pois, do contrário, provavelmente vão voltar para a miséria. Dar dinheiro por programas compensatórios é apenas a pontinha de um iceberg. Claro que tem sua importância, mas como vamos cuidar do resto?

Inclusão na era Lula deixa bomba-relógio para Dilma, diz sociólogo.

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Autor: Rudá Ricci – Jornal Folha de São Paulo – 21/02/2011 – Por Uirá Machado/SP

A inclusão social pelo consumo ocorrida no governo Lula trouxe para a presidente Dilma Rousseff uma “espécie de bomba-relógio”, e a disputa sobre o aumento real do salário mínimo é parte desse problema, afirma o sociólogo Rudá Ricci.
Autor do livro “Lulismo – Da Era dos Movimentos Sociais à Ascensão da Nova Classe Média Brasileira”, Ricci avalia que a manutenção desse processo é o “primeiro grande problema” de Dilma, mais progressista no discurso, mas, de prática, “mais conservadora que Lula”.
O sociólogo diz ainda que a presidente se identifica com a classe média tradicional, enquanto Lula é a expressão da nova classe C –segmento que, para Ricci, não aponta para uma nova divisão de classes.
Folha – O primeiro grande embate de Dilma foi com as centrais sindicais. Quanto desse choque é explicado pela ausência de Lula e pelo estilo da presidente?
*Rudá Ricc*i – Trata-se de uma situação das mais complexas. O movimento sindical brasileiro é, quase todo, sindicalismo de resultados. É negociador por natureza, e não contestador. O reajuste do salário mínimo é um aríete visível e popular, mas que será utilizado para negociações mais amplas.
Mas é evidente que o perfil de Dilma, marcado pelo estilo gerencial, influencia nessa relação. Vamos perceber que um gestor público tem que ter jogo de cintura.
A queda de braço em torno do salário mínimo sugere que as centrais sindicais estão retomando pautas antigas?
Não acredito. Minha leitura é que se trata de um movimento de estudo sobre as novas diretrizes governamentais. As centrais sindicais ocuparam um espaço importante no governo, e não apenas uma parceria.
O governo Lula cooptou os movimentos sociais?
Em parte. Diria que se trata de um pacto social não explícito. No que tange ao movimento sindical, orienta-se para a construção de um modelo neocorporativo. Não se trata de uma situação clássica de cooptação, mas da convergência de interesses políticos. Não há ingênuos em nenhum dos lados.
Qual o significado simbólico da votação do mínimo?
Essa votação teve o simbolismo de mostrar quão sólida é a base governista no Congresso. Agora, os blocos parlamentares podem se movimentar com mais segurança.
Foi a ponta do iceberg de um longo processo de negociação dos ajustes do modelo lulista. Será um processo que dará muito trabalho aos operadores políticos do governo.
Já é possível fazer comparações entre Lula e Dilma no que diz respeito ao trato com os movimentos sociais?
Dilma faz um discurso mais progressista, mas adota uma prática mais conservadora que Lula.
Lula é um negociador nato e fala a linguagem da nova classe C, pragmática e, muitas vezes, cínica. Dilma é técnica e ascética como a classe média tradicional.
Não se trata apenas de um líder carismático e outro racional. Trata-se de empatia política, de qual segmento social é liderado.
Mas o Brasil ainda vive uma transição na sua composição social. A classe média tradicional perdeu seu poder de formar opinião num país com mobilidade social enrijecida. Temo que Dilma não tenha “feeling” político para entender esse momento.
Dilma recebe do lulismo alguma herança negativa?
O primeiro grande problema é como conduzirá o financiamento da inclusão social pelo consumo que o lulismo montou. Aí está parte das dificuldades de relacionamento com o mundo do trabalho.
Se a política tributária é regressiva, se a transferência de renda está com seu financiamento no limite e se o lulismo é um pacto pelo estatal-desenvolvimentismo de tipo fordista, conciliando interesses diversos, como resolver a equação?
O aumento do consumo já faz com que 60% da população esteja endividada. Criou-se uma expectativa em relação ao aumento real do salário mínimo para o ano seguinte, salvando parte do orçamento familiar.
Há uma espécie de bomba-relógio a ser desativada. Esta é a herança: a expectativa de lideranças sociais e da classe C, vorazes consumidores.
O sociólogo Jessé Souza argumenta que não é correto falar em “nova classe média”. Como o sr. avalia essa questão?
A série histórica que temos no país e que segue o Critério Brasil [usado em pesquisas de opinião e de mercado para definir classes econômicas] é baseada na estratificação social fundada no poder aquisitivo. Estamos presos, para efeito de análise comparativa, a essa base.
Na análise de Jessé Souza, vejo um duplo equívoco. Primeiro, ele não percebe que se trata de uma transição na composição das classes sociais a partir da forte ascensão social dos últimos anos.
Estamos falando de mudança de ideário e hábitos no interior das classes, em especial da classe C. Isso já ocorreu outras vezes no país.
O segundo equívoco é que os conceitos de “ralé” e “batalhador” são impressionistas e partem de um juízo de valor. Batalhador sempre houve no Brasil. Assusta-me essa vertente conservadora de definir o país a partir do empenho individual.
Mas há diferenças em relação à classe média tradicional?
A nova classe C é desconfiada e tem na família seu porto seguro. Afinal, foi sua família que sofreu a pobreza. O conservadorismo aparece como elemento de negação do passado.
Essa é a expressão cultural da nova classe C, que obviamente se distingue da classe média tradicional. Mas não temos uma nova divisão de classes, apenas uma nova composição em virtude da ascensão social de momento.
Qual o peso da ascensão da nova classe média na sustentação do lulismo?
Total. O discurso de Lula, e até mesmo a sua imagem, cria forte empatia com essa nova classe média. Lula era a afirmação desses hábitos populares que invadem o mundo das elites e chegam ao cargo máximo do poder público. Lula foi e é a expressão maior da ascensão da nova classe C.

Relações não duram porque maioria não enxerga o outro como ele é, diz psicólogo

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Autor: Psicólogos Jorge Bucay e Silvia Salinas – FSP 22/09/2010.

Não há receita pronta para um relacionamento dar certo, mas alguns ingredientes podem ajudar. É disso que trata “Amar de olhos abertos”, do psicólogo Jorge Bucay, um dos escritores argentinos mais incensados dos últimos tempos.
Bucay esteve no Brasil para lançar o livro (o primeiro em português), escrito com a colega Silvia Salinas –e a Folha aproveitou para “discutir as relações” com ele.

Folha – O que significa amar de olhos abertos?
Jorge Bucay – Gosto de uma definição que diz que o amor é a simples alegria pela existência do outro. Não é possessão, nem felicidade necessariamente. E por isso “com os olhos abertos”. O amor cego não aceita o outro verdadeiramente como ele é.

Por que tanta gente prefere a intensidade da paixão, mesmo sabendo que é efêmera, a construir algo mais sólido?
É maravilhoso estar apaixonado e muitos preferem a intensidade superficial à profundidade eterna. Mas me pergunto como as pessoas pensam em ficar somente nisso.

Qual o sentido de estar apaixonado perdidamente o tempo todo? Penso que é uma questão de maturidade.
Também tem a ver com a nossa sociedade, que adora emoções intensas. Procuramos correr mais rápido, chegar antes, desfrutar intensamente. A paixão é como uma droga: no seu momento fugaz faz pensar que você é feliz e não precisa de mais nada. Um olhar, uma palavra te levam aos melhores lugares.

Como construir uma relação mais profunda?
Seria bom estar preparado para saber que a paixão acaba. Amadurecer significa também desfrutar das coisas que o amor dá, como compartilhar o silêncio e não um beijo, saber que a pessoa está ali, ainda que não esteja ao meu lado. É preciso abrir os olhos, e isso é uma decisão. Ver o par na sua essência.
Mas primeiro é preciso estar bem consigo mesmo. Não se deve procurar o sentido da própria vida no companheiro ou nos filhos.
Você deve responder a três perguntas básicas nesta ordem: quem sou, aonde vou e com quem. É preciso que eu me conheça antes de te conhecer e que decida meu caminho antes de compartilhá-lo. Senão, é o outro quem vai dizer quem eu sou. E isso é uma carga muito grande.
O livro diz que as relações duram o que têm que durar, sejam semanas, seja uma vida.
Duram enquanto permitem que ambos cresçam. Significa conhecer-se, gostar de si mesmo, conhecer seus recursos e desenvolvê-los. Ao lado da pessoa amada, está a melhor oportunidade para isso. E essa é uma condição para construir um relacionamento. Um casal que não cresce, envelhece. E um casal que envelhece, morre.

O que leva ao fracasso?
Um dos grandes motivos de fracasso é não trocar intensidade por profundidade, viver querendo voltar aos tempos da paixão. Outro ponto de conflito é que as pessoas não conseguem deixar o papel que desempenhavam antes de casar, querem continuar sendo o “filhinho da mamãe”, ou o “caçulinha da casa”. Outro problema é a intolerância, a incapacidade de aceitar as diferenças, as pessoas discutem pelo dinheiro, pela criação dos filhos e, por fim, morrem sufocadas pela rotina.

E como enfrentar esses problemas ou desafios?
É preciso amor, atração e confiança. Comparo esses pilares a uma mesa de três pés. O tampo da mesa seria um projeto comum firme. Se faltar qualquer um desses elementos, a mesa cai. E sobre tudo isso deve-se montar outras coisas, como a capacidade de trabalhar juntos, de rir das mesmas coisas, de ser sexualmente compatíveis, sentir o outro como um apoio nos momentos difíceis. Às vezes a terapia ajuda, às vezes é um bom passaporte para a separação.

Como saber quando a relação chegou ao fim?
Se sinto que estou sempre no mesmo lugar, que me entedio, que não tenho vontade de estar com o outro, se sempre que saímos precisamos sair com outros casais pois não ficamos bem sozinhos, quando piadas como “o idiota do meu marido” ou a “bruxa da minha mulher” se tornam frequentes, algo não está funcionado.

A Ilusão da Alma: Entre a mente e o cérebro

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Autor: Eduardo Giannetti da Fonseca – Jornal Valor Econômico – 13/08/2010

Mais uma obra inquietante do economista e professor do Insper Eduardo Giannetti da Fonseca, uma ampla reflexão sobre mente e cérebro, a neuroeconomia, leitura obrigatória neste momento onde as ciências se inter relacionam com grande intensidade.

“Em ‘Rosencrantz e Guildenstern Estão Mortos’, Tom Stoppard promove dois figurantes de ‘Hamlet’, amigos de infância do príncipe, à condição de protagonistas da cena. A certa altura da peça, Rosencrantz, a bordo de um navio, esboça uma revolta. Ele protesta porque não passa de uma ponta insignificante no grande drama; porque sua vida transcorre à mercê de roteiro que não foi ditado por ele, como uma peça endentada na máquina do mundo. ‘Pois bem, eu vou mostra-lhes’, desafia, ‘eu vou me jogar no mar, isso vai escangalhar as engrenagens.’ Ao que Guildenstern retruca: ‘E se eles estiverem contando com isso?'”
Esse trecho de “A Ilusão da Alma – Biografia de uma Ideia Fixa” pode servir como um aperitivo para as grandes questões – inclusive dos limites do livre arbítrio – que permeiam o mais recente livro de Eduardo Giannetti. Nascido em Belo Horizonte em 1957, de sólida formação acadêmica, com passagem pela Universidade de Cambridge, ele desenvolve uma curiosa carreira como escritor, cada vez mais distante dos temas tradicionalmente tratados na economia. Neste seu sétimo livro para a Companhia das Letras, uma parceria iniciada em 1993 com “Vícios Privados, Benefícios Públicos”, Giannetti se arrisca mais do que em todas suas obras anteriores.
“A Ilusão da Alma” é um livro de ficção, a primeira de Giannetti no gênero, e ele mesmo confessa que isso constituiu um grande desafio, tanto do ponto de vista da linguagem quanto da criação de personagens. Foi o livro que mais lhe deu trabalho, que mais o levou a reescrever trechos inteiros, até que encontrasse uma fórmula que agradasse a ele e seus editores, em que capítulos de ficção “pura”, escritos na primeira pessoa pelo personagem principal, se alternam com os “cadernos de estudos”, em que ele relata sua pesquisa científica sobre a relação entre mente e cérebro.
A ousadia de Giannetti não se restringe à forma do livro, mas também e principalmente ao conteúdo, ao tema central, a ideia de que tudo o que se passa na mente dos homens é apenas o resultado da atividade das células do cérebro, como defende o fisicalismo, uma teoria que ganha adeptos nestes tempos em que os avanços da ciência e da tecnologia permitem que se comece a conhecer – até de uma forma empírica – o funcionamento do cérebro e como as decisões são tomadas. Em vez de simplesmente escrever um livro a respeito dessas hipóteses, levantadas ainda por filósofos gregos e tratada com maior ou menor profundidade por grandes nomes do pensamento, como Karl Marx e Sigmund Freud, além de iluministas franceses, Giannetti preferiu criar uma obra de fantasia a partir da história de um intelectual que, depois de um problema de saúde, começa a estudar as relações entre mente e cérebro.
Nesta sua primeira experiência pelo mundo ficcional, Giannetti manteve um “hábito” salutar dos seus outros livros: “A Ilusão da Alma”, livro de 256 páginas, traz uma bem-vinda seção de notas com as fontes das citações e dos experimentos referidos nos trechos que não são de ficção. Um dos eventos que marcam o lançamento do livro é a participação de Giannetti num dos debates promovidos pela Fronteiras do Pensamento, uma série de palestras que ocorrem em Porto Alegre.
Engajado nos últimos meses na campanha à Presidência da República da senadora Marina Silva (AC), Giannetti escreveu “A Ilusão da Alma” ao longo do ano passado, em Tiradentes, a cidade mineira que elegeu como um refúgio, distante do seu cotidiano de professor do Insper e palestrante. A seguir, os principais trechos da entrevista de Giannetti sobre o livro:

Valor: Quando o senhor começou a escrever este livro?
Eduardo Giannetti: Comecei a pensar este livro há mais de 20 anos. Eu ousei, na minha tese de doutorado de economia, escrever um capítulo sobre um filósofo francês chamado [Julien Offray de] La Mettrie (1709-1751), que escreveu um livro chamado “Homem-Máquina”. Esse assunto da relação entre cérebro e mente sempre me despertou enorme fascínio intelectual. Fiquei com meu radar de pesquisador atento para essa questão, acompanhando os desenvolvimentos da pesquisa em neurociência e, mais recentemente, em neuroeconomia. Eu já estava especulando como seria o entendimento do homem à luz do que se passa no cérebro, sem levar em conta o que se passa nos estados de consciência, nos estados mentais. Com o surgimento da neuroeconomia, com os avanços muito rápidos que têm ocorrido na neurociência, achei que estava na hora de voltar a esse assunto, não porque eu tenha algum resultado experimental, já que não sou pesquisador, mas para tentar entender suas implicações existenciais e éticas.

Valor: Por que o senhor resolveu escrever um livro que é também de ficção?
Giannetti: Mais do que fazer uma discussão sobre a verdade ou falsidade da hipótese de o que se passa na mente ser apenas produto da atividade cerebral, queria entender o que se passa com alguém que resolve trazê-la para sua vida pessoal. Conheço muitos cientistas que se consideram fisicalistas, mas que separam por completo o que acreditam no laboratório do que são na vida pessoal. Queria explorar um pouco o que se passa quando alguém traz essas ideias para o campo da experiência na sua vida pessoal. Daí o tratamento ficcional. Criei um personagem….

Valor: O personagem é bastante polêmico, já que ele vai gradualmente aceitando a teoria fisicalista e é dominado pela ideia do predomínio das funções cerebrais sobre a mente.
Giannetti: Tenho uma relação muito ambígua com ele. Aconteceu uma coisa curiosa. Enquanto ainda estava escrevendo o livro, mostrei para amigos, para cientistas, para pessoas do mundo da literatura, família. Quando alguém atacava o personagem, minha disposição era de defendê-lo, e mostrar que ele podia estar mais certo do que se imaginava inicialmente. Mas se alguém o defendia, como alguns colegas faziam, inclusive uma amiga, cientista, que mora nos Estados Unidos: “Ah, então você é um dos nossos…” Então eu falei: “Espera aí, não sou meu personagem”. Minha relação com o personagem é exatamente assim: se alguém começa a defender as ideias dele, tenho vontade de criticar, mas se alguém começa a criticar suas ideias, tenho vontade de defender. De uma coisa tenho certeza: o avanço dessa linha de pesquisa vai dar cada vez mais plausibilidade para a conjectura fisicalista. Tudo o que vem se descobrindo e quanto mais avançam os conhecimentos sobre a relação entre o cérebro e a mente, mais se reforça… Quando La Mettrie escreveu o “Homem-Máquina”, lá no século XVIII, o nível de conhecimento sobre o cérebro estava muito próximo de zero, e ele já vislumbrou essa possibilidade, apenas com base no conhecimento que tinha como médico. Ele era filósofo e médico, e tratava de muitas pessoas que tinham, na guerra, sofrido lesões e ele via sequelas, as consequências, e acabou, num gesto de grande ousadia intelectual, lá no Iluminismo europeu, fazendo a primeira formulação completa e moderna do fisicalismo.

Valor: E o que mudou desde então?
Giannetti: De lá para cá, principalmente nos últimos 30 anos, começamos a ter resultados experimentais muito mais sólidos e a posição do La Mettrie parece hoje muito menos excêntrica e muito menos deslocada do que na sua época. O assunto está sendo discutido há 2.500 anos. Os gregos já discutam isto. A grande novidade é que, de 20, 30 anos para cá, começamos a ter resultados experimentais e técnicas de visualização do cérebro que permitem avançar progressivamente no entendimento cada vez mais detalhado da relação entre o que se passa em nossa experiência interna, subjetiva, e o que está se passando objetivamente no cérebro.

Valor: O senhor disse que sofreu críticas de alguns que já leram o livro. Por quê?
Giannetti: Algumas pessoas ficavam ofendidas com o pensamento desse personagem, achando que eu pensava assim também. E comentaram: “Não, mas isso aqui é o fim da ética, é o fim de qualquer humanismo, é um absurdo”. Como se fosse ofensivo você apresentar uma possibilidade de pensamento diferente do senso comum – que é de fato muito perturbadora. Tanto que meu personagem preferiria não acreditar nela. Ele estranha muito que outro personagem, o médico e amigo dele, seja um fisicalista e não se preocupe com as implicações que isso tem para a condição humana e para o entendimento que ele tem dele mesmo. Meu personagem principal, esse professor, começa a trazer para o campo da sua existência, das suas relações pessoais e da maneira como ele se entende, toda a perturbação que decorre dessa possibilidade realmente perturbadora sobre o que é o bicho homem. O La Mettrie foi perseguido em vários países europeus. Foi talvez o autor mais perseguido do Iluminismo, por ter ousado escrever esse livro. Isto me atraiu muito. Sempre gostei de autores perseguidos.

Valor: Essa perseguição atingiu outras pessoas, além do La Mettrie?
Giannetti: O editor dele foi preso. La Mettrie chegou a ser expulso da Holanda, que era o país mais arejado e mais tolerante da Europa e aí foi acolhido na Prússia, porque o imperador tinha uma corte de intelectuais perseguidos na Europa, inclusive o [escritor francês iluminista François-Marie Arouet] Voltaire. La Mettrie foi acolhido na corte, mas passou a ser perseguido até lá, na corte do Frederico II, e talvez tenha morrido de envenenamento. Ele foi o único autor do Iluminismo que teve contra si todas as religiões. [O escritor e filósofo francês Denis] Diderot, que o admirava muito, não tinha coragem de se referir a ele nominalmente, porque era perseguição na certa. E o Diderot era um fisicalista, ele é um dos “ghost-writers” de um livro importante, mas muito inferior ao do La Mettrie, que é o “Sistema da Natureza”, assinado pelo barão D’Holbach.

Valor: E hoje, intelectuais, cientistas, filósofos defendem o fisicalismo?
Giannetti: Francis Crick , o grande descobridor do DNA, era um fisicalista. Para ele, crenças religiosas são eventos neurológicos de pessoas com certa propensão epilética no lobo temporal direito. É curioso que Hipócrates, o médico grego, um dos descobridores do fato de que a vida mental está situada no cérebro e seu melhor enunciado dessa descoberta é quando rejeita a crença de que a epilepsia seria uma doença sagrada, seria algum tipo de punição divina imposta a pecadores ou pessoas condenadas. Contestando essa ideia, ele diz que tudo o que ocorre na experiência interna do sujeito no fundo está situado no cérebro. Agora, 2.500 anos depois, a própria experiência religiosa, do divino e de certa propensão mística, é explicada por alguns como sendo algum tipo de disfunção cerebral. [O cientista defensor do ateísmo] Richard Dawkins se propõe participar de uma experiência com estimulação elétrica para ver se ele passava por uma experiência mística…

Valor: Aqui no Brasil, quem são os cientistas ou outras pessoas que defendem essa tese?
Giannetti: Conheço médicos, neurocientistas fisicalistas – não vou citar nomes – e esta é uma hipótese de trabalho para eles. Eles têm que entender tudo o que ocorre no mundo a partir de variáveis publicamente observáveis e mensuráveis. Roger Sperry , neurobiologista, diz que 99,9% dos pesquisadores do cérebro são fisicalistas. Eles não consideram a possibilidade de que estados mentais têm poder causal, isso é descartado como uma premissa. O estado mental não explica nada, é um subproduto inócuo de outras ocorrências cerebrais. É um pouco aquela imagem de um contemporâneo do [cientista Charles] Darwin: “A mente está para o cérebro assim como o apitar da panela de pressão está para o seu mecanismo de funcionamento”. A gente tem a ideia de que a água ferve porque apitou, mas na verdade é porque a água ferveu que a panela apitou. Estamos radicalmente enganados sobre o que está acontecendo conosco.

Valor: Darwin pode ser considerado um fisicalista?
Giannetti: Ele não se pronunciou abertamente sobre o assunto, mas nos cadernos de pesquisa, nos quais fazia anotações meio esparsas, há alguns fragmentos que são fisicalistas. E no fundo isso é recolocar o ser humano integralmente de volta à natureza. O ser humano não tem nada de tão especial, como se acostumou a acreditar, que o diferencie metafisicamente do resto da natureza como conhecemos. Somos parte integrante desse processo, mais complexo, mais sofisticado e possivelmente com mais autoengano.

Valor: Mesmo diante de reações tão negativas que essa tese fisicalista tem gerado, o senhor escreveu um livro em que o personagem principal também é um intelectual, também nasceu em Minas…
Giannetti: Torce pelo Cruzeiro, o que não é o meu caso, teve um tumor cerebral… E considera tudo o que aconteceu com ele altamente perturbador. Ele não está feliz com isso. E preferiria acreditar no contrário. E termina o livro com uma frase: ‘Refute-me se for capaz’.

Valor: Esta é sua mensagem, seu recado para o leitor?
Giannetti: Se essa teoria nos incomoda tanto, então o que é a verdade? E a outra questão é a seguinte: e se a verdade for a loucura? E se essa busca de conhecimento estritamente científico sobre o ser humano nos levar à perda de qualquer possibilidade de sentido e de autonomia? Como vamos lidar com isso? O que é que prevalece: a verdade a qualquer custo ou a sanidade mental, embora iludida?

Valor: Seu livro, cujo tema é uma preocupação e uma fonte de interesse há mais de 20 anos, é uma provocação também?
Giannetti: Não, eu precisava escrever sobre essas teorias, é uma coisa que me preocupa muito, como ser humano. E se tenho uma única pretensão com esse livro é levar o leitor a um momento de estranhamento radical e ao vislumbre da possibilidade de que ele, como cada um de nós, esteja totalmente enganado sobre o que nos faz quem somos.

Valor: Uma provocação ou um desafio?
Giannetti: Um convite para que nos conheçamos de maneira muito mais profunda e radical do que até agora possamos ter imaginado. Já não acreditamos neste mundo natural, encantado, povoado por deuses e forças mágicas, espíritos e vontades, mas vivemos ainda no escuro, em grande medida, com relação a nós mesmos, e muita coisa do que está se passando conosco, inclusive coisas perniciosas que fazemos uns aos outros, podem vir de causas que desconhecemos.

Valor: E as questões éticas que podem ser levantadas a partir do fisicalismo?
Giannetti: Existe uma questão que acho muito interessante também, que são as possibilidades de manipulação tecnológica, de estados mentais por intervenção cerebral, que abrange toda a farmacopeia, a farmacologia. Hoje, existem experimentos para tentar mudar as preferências de uma pessoa com estimulação magnética do cérebro. Por exemplo, o obeso quer parar de ter desejo por um certo tipo de alimento. É uma questão de tempo, vamos ter uma terapia neural para esse problema. Ou para melhorar a memória. E aí vão levantar questões éticas. Até que ponto se pode interferir dessa forma sem mudar a pessoa? Há um ponto a partir do qual você deixa de ser quem você é. Tenho razoável convicção de que esse livro aponta para determinada direção que as coisas tomarão no século XXI. Há hoje um caminho do conhecimento que vislumbro como sendo forte e que tende a ficar cada vez mais dominante na cultura. Nosso entendimento de nós mesmos vai ficar cada vez mais marcado pelas pesquisas. E até onde vai isso? Meu personagem levou até o fim. Ele está se antecipando e conjecturando, como La Mettrie já tinha feito de maneira muito mais ousada lá no século XVIII. Agora, outra curiosidade – Karl Marx escreveu sua tese de doutorado sobre isso.

Valor: Marx também?
Giannetti: A tese de doutorado de Marx é uma comparação entre as filosofias da natureza dos filósofos gregos Demócrito e Epicuro, que eram dois fisicalistas, dois materialistas antigos. Demócrito tem um papel central no meu trabalho. Faço um contraponto entre Sócrates e Demócrito. Eles são atomistas, o mundo é feito por átomos em desenvolvimento. Por que Marx foi pegar Epicuro? Epicuro é um pós-aristotélico que segue Demócrito, mas não aceita a perda da liberdade implícita no atomismo radical de Demócrito. Ele diz que, no caso do homem, os átomos não seguem uma linha contínua, mas sofrem um pequeno desvio. E que é por causa desse desvio dos átomos no caso específico do homem que temos autonomia, temos alguma liberdade de escolha, não somos seres totalmente determinados por leis independentes da nossa vontade. Epicuro foi o grande herói juvenil de Marx. Ele queria ser um materialista, mas com espaço para alguma autonomia de afirmação soberana do homem. Tanto que Marx termina a tese de doutorado dele com uma frase – pena que eu não citei no livro: “A autoconsciência humana é a única divindade, não reconheço nenhuma outra divindade no universo senão essa prerrogativa exclusiva do homem, da autoconsciência, que nos confere alguma autonomia na ação”.

Valor: Marx abordou essas questões nos seus livros, além da tese de doutorado?
Giannetti: Ele só volta muito rapidamente a esse assunto em “A Sagrada Família”, que é um livro juvenil, em que fala algo sobre os materialistas mecanicistas franceses, entre eles La Mettrie e o barão D’Holbach. Hoje em dia, parece que as ideias defendidas por Demócrito e La Mettrie, por tudo o que vai se descobrindo na ciência moderna e na neurociência, estão ganhando força, não tem a menor dúvida. Eu me pergunto muito o que Marx e [o pai da psicanálise Sigmund] Freud fariam à luz desses resultados da neurociência. Os dois tiveram, no início dos seus estudos, essa preocupação sobre as relações entre a mente e o cérebro. Porque o Freud também, antes de embarcar na psicanálise, escreveu um trabalho, que não chegou a publicar, mas que era um projeto de psicologia científica, que é uma abordagem fisicalista. Mas na época deles, o que se sabia sobre o cérebro era perto de nada. Existiam muitos tabus e havia restrições até para dissecar o cérebro de um morto. Hoje em dia, você visualiza o que se passa no cérebro no momento da escolha, no momento da tomada de decisão. E podem ser consideradas técnicas rudimentares, essas técnicas vão avançar ainda muito, estamos engatinhando nessa coisa. O que meu personagem faz é especular fortemente sobre o caminho que o conhecimento pode tomar dentro dessa linha de investigação. É um tema que eu acho que merece reflexão. Mas não estou abraçando essa linha de pensamento.

Valor: Não está tornando isso uma causa?
Giannetti: Uma causa? Não.

Mulher é mais feliz quando reconhece diferenças de gênero

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Autor: Susan Pinker – Universidade de McGill/Montreal – Canadá

Professora da Universidade McGill, de Montréal, a canadense Susan Pinker, que acaba de lançar no Brasil o livro “O paradoxo sexual” (Editora Record), segue a mesma linha de pesquisa que seu irmão Steven. Ambos buscam entender a mente humana no contexto da evolução. Em entrevista à Folha, ela conta por que sente pena de Lawrence Summers, reitor da Universidade Harvard que perdeu o cargo acusado de machismo.

FOLHA – Seu livro fala sobre mulheres em empregos com bons salários, mas que as afastavam dos filhos, tornando-as infelizes. Por que elas quiseram anonimato?
SUSAN PINKER – Acho que as mulheres que fazem essa escolha ainda estão envergonhadas de não estar agindo como homens. Mas não podemos esperar isso delas. Elas não são homens.
FOLHA – Como assim?
PINKER – Existe a expectativa, no Ocidente, de que mulheres devem voltar a trabalhar normalmente quando seus filhos ainda são pequenos sem que se sintam mal por isso. Mas essa angústia tem razões biológicas. Se você der liberdade de escolha, mulheres vão querer trabalhar menos enquanto seus filhos forem novos. Na América do Norte e na Europa, entre as empresas que oferecem aos seus funcionários trabalhos em meio período, 89% dos que aceitam são mulheres. Isso oferece às mulheres mais tempo não só para os seus filhos, mas para seus outros interesses.
FOLHA – Ganhar um salário menor é o preço que as mulheres pagam para satisfazer seus sentimentos?
PINKER – Sim. Fui entrevistada por uma jornalista na Holanda, onde há leis que dizem que, se você quer trabalhar só meio período, não pode ser demitido. A maioria das mulheres na Holanda não trabalham o dia inteiro, tendo filhos ou não. Essa jornalista trabalhava só quatro dias por semana. Ela dedicava as sextas para tocar piano, e achava que não seria feliz sem isso. Então não se trata apenas de cuidar dos filhos, mas também de ter uma vida mais equilibrada. Para as mulheres, a vida não é apenas trabalho, salário e promoções, ao contrário do que pensam muitos homens, que acham que tudo isso vale a pena quando compram um novo carro. Incomoda a muitos deles pensar que outras pessoas estão ganhando mais dinheiro, que moram em um lugar mais legal. São mais competitivos, gostam mais de assumir riscos. Não todos, mas eu diria que 75% dos homens são assim.
FOLHA – Ou seja, não é regra.
PINKER – Eu sempre deixo claro que cada pessoa é um indivíduo único. Ciência é estatística, pessoas são únicas. Então, quando você estuda ciência, está analisando probabilidades. Sempre existirão exceções. Compare com a altura. Em geral, homens são mais altos, mas existem várias mulheres mais altas do que muitos homens.
FOLHA – Mas ainda existe muita resistência à ideia de que as diferenças entre os gêneros não são apenas socialmente construídas.
PINKER – As mulheres foram discriminadas por tanto tempo que as pessoas têm uma aversão à ideia de que existe uma diferença natural, biológica. Acham que falar sobre diferenças é voltar a pensar como antigamente, quando, na verdade, não tem nada a ver com discriminação. É bobo ignorar as evidências científicas porque você tem medo do que elas vão dizer.
FOLHA – Mas pode soar como “acabou a festa, todas de volta para a cozinha, os afazeres domésticos”…
PINKER – Estou muito longe dessa mensagem. O que acontece de bom quando as mulheres aceitam que existem diferenças biológicas naturais é que elas se sentem muito menos isoladas com seus sentimentos. Se ignoramos as diferenças, estamos forçando mulheres a assumir cargos e trabalhos nos quais boa parte delas não serão felizes, talvez como executivas ou engenheiras. Muitas mulheres me disseram: “Graças a Deus você fez esse livro. Eu achava inaceitável aquilo que eu sentia”. É difícil para elas gostar de trabalhar com pessoas, mas saber que empregos assim não são tão bem pagos quanto os que envolvem lidar com “coisas”, como engenharia. A maioria das mulheres gosta de trabalhos como assistência social, pedagogia, profissões na área de saúde, mas salários nessas áreas costumam ser menores.
FOLHA – Mas, se as mulheres gostam de áreas que pagam menos, não há nada a fazer, então?
PINKER – Precisamos remunerar melhor as mulheres pelos trabalhos que elas preferem. Ou seja, começarmos a pagar aos professores tanto quanto pagamos aos engenheiros. Muitas mulheres esperam que as suas conquistas sejam reconhecidas sem que tenham de pedir aumentos. E, por isso, têm menos chances de ver os seus salários subindo. Se eu sou um chefe e recebo um homem em meu escritório dizendo “veja o que estou fazendo, eu mereço um salário maior”, tenho mais propensão a oferecer um aumento a ele do que a outra pessoa que faz o seu trabalho sem reclamar.
FOLHA – O que a sra. pensava sobre as diferenças de gênero quando era jovem? Leu Simone de Beauvoir?
PINKER – Sim, claro, como todo mundo naquela época. Estamos em um ponto alto do movimento feminista. Quando eu estava na universidade, no final dos anos 1970 e começo dos 1980, a expectativa era que homens e mulheres fossem idênticos, que nós deveríamos fazer as mesmas coisas, trabalhar a mesma quantidade de horas, no mesmo tipo de emprego, ter o mesmo tipo de vínculo emocional com o trabalho doméstico e com as outras pessoas. Eu acreditava muito nisso, li todos os livros das principais feministas. Foi só quando eu fui trabalhar e quando meus filhos nasceram que percebi que havia um buraco entre a minha abordagem intelectual do assunto e os meus sentimentos.
FOLHA – Então deveríamos agora esquecer “O Segundo Sexo” [livro de Simone de Beauvoir, de 1949, marco do feminismo]?
PINKER – “O Segundo Sexo” era interessante em sua época, mas está ultrapassado. A ciência avançou muito desde então. Não tínhamos ressonância magnética nem o mapeamento do genoma humano, não sabíamos metade do que sabemos hoje. Hoje estamos entendendo como os hormônios afetam os comportamento humano.
FOLHA – Como foi a experiência da sra. em um kibutz?
PINKER – Eu tinha 19 anos e fiquei um ano num kibutz porque eu era socialista. Era um lugar interessante para perder noções irrealistas. Existiam trabalhos que a maioria das mulheres não queriam fazer, que exigiam muito esforço físico ou eram perigosos. Existia uma divisão natural de trabalhos por sexo, ainda que os kibutzim tivessem sido planejados para que isso não existisse.
FOLHA – Quando Summers perdeu o cargo em Harvard após dizer que a falta de mulheres em ciência é questão de aptidão, o que a sra. pensou?
PINKER – Foi assustador, porque eu tinha acabado de decidir escrever o meu livro quando vi o que aconteceu a esse pobre homem. Ele foi atacado simplesmente por comentar as evidências que a maioria das pessoas que trabalham com biologia e antropologia evolutiva vêm dizendo há anos.

Pessimismo com os Estados Unidos e com o mundo contemporâneo.

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Autor: Maria da Conceição Tavares – Professora da UFRJ e da Unicamp – Valor Econômico – 06/11/2009.

Fiel ao seu estilo questionador e arrebatado, a economista Maria da Conceição Tavares continua contestando as apostas dos mercados financeiros. “A crise não acabou”,
alerta a decana dos economistas brasileiros e representante da tradição crítica do pensamento econômico latino-americano, no melhor estilo de Celso Furtado.

“Com a subida das bolsas, fica todo mundo no oba-oba e parece que passou. O mau sintoma é justamente a bolsa ter refluído, os bancos terem voltado a ganhar dinheiro. Isso é simplesmente aparência.”

Conceição, como é sempre chamada, fala com ceticismo sobre as perspectivas da economia americana. “O Estado está tendo de sustentar como um Hércules todo um sistema falido, mas não consegue fazer as coisas mudarem de rumo, não tem se mostrado ativo. Está fraco e isso é ruim.”
A seu ver, o governo Obama não está tendo apoio suficiente para fazer as mudanças necessárias. “Não dá para fazer reforma da saúde porque os laboratórios e os seguros de saúde não querem. Não dá para fazer reforma financeira porque os bancos não querem. Como é uma sociedade de lobby pesado, fica difícil reformar.”

Os Estados Unidos não têm, aparentemente, uma “saída boa”, diz. Para ela, todas as indicações de estagnação mais longa estão presentes na economia americana, o que coloca a liderança do país sobre a economia mundial em xeque. “Eles não têm mais liderança nenhuma. Têm peso político, diplomático e militar. Mas isso não é liderança. É império. Não têm como resolver seus problemas [financeiros e militares], nem conseguem avançar. São um império congelado.”

Conceição se diz pela primeira vez otimista com o Brasil de Lula. “Ele é um gênio político.” Mas adverte que o problema básico da economia brasileira, no momento, é o câmbio. “O Brasil não pode continuar engolindo dólares.”

Conceição tem 55 anos de Brasil. Chegou em fevereiro de 1954, casada com o engenheiro português Pedro Soares. A filha Laura nasceria meses depois. Naturalizou-se em 1957. Seu segundo marido, Antonio Carlos Macedo, professor de ciências biológicas da UFRJ, é o pai de Bruno, 44 anos. É amistoso seu relacionamento com os ex-maridos.

Portuguesa de Anadia, nascida em 24 de abril de 1930, formada em matemática em Lisboa, Conceição conta que optou pela economia influenciada por três clássicos do pensamento econômico brasileiro: Celso Furtado (1920-2004), Caio Prado Jr. (1907-1990) e Ignácio Rangel (1908-1994) – que a despertou para as questões relacionadas ao capital financeiro. “Eles marcaram profundamente minhas ideias.”

Na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Conceição foi aluna de Octávio Gouvêa de Bulhões (1906-1990) e Roberto Campos (1917-2001). Escreveu centenas de artigos e vários livros, dos quais o clássico dos clássicos é “Auge e Declínio do Processo de Substituição de Importações no Brasil – Da Substituição de Importações ao Capitalismo Financeiro”, de 1972. O texto original foi escrito no fim dos anos 1960, quando chefiava o escritório da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) no Brasil. Na época da ditadura militar, autoexilou-se no Chile, depois de escapar da prisão graças à intervenção de Mario Henrique Simonsen, seu ex-aluno, ministro do governo Geisel.

Teve rápida passagem pelo MDB, então partido de oposição à ditadura militar. Em 1994, foi eleita deputada federal pelo PT do Rio de Janeiro, ao qual continua filiada. Aposentou-se como catedrática do Instituto de Economia da UFRJ, onde é professora emérita, e da Universidade de Campinas (Unicamp). Mas permanece ativa, dando cursos de economia internacional no Instituto Rio Branco e aulas na pós-graduação da UFRJ.

No momento, Conceição trabalha num ensaio sobre a América do Sul para um livro que José Luís Fiori, também professor na UFRJ, ex-aluno, a quem conhece desde o exílio, pretende lançar em 2010 sobre questões econômicas, financeiras e sociais da região, temas aos quais sempre esteve ligada.

Mesmo com problemas de bronquite por causa do cigarro – quando deputada, operou um nódulo benigno no pulmão – Conceição ainda consome dois maços por dia. Não tem intenção de parar. Diz que morrerá se deixar de fumar. “Para minha idade, estou ótima”, avalia a economista de palavra sempre apaixonada, que pretende comemorar seus 80 anos, em 2010, com os dois filhos, dois netos e os muitos amigos e admiradores.

Valor: Quais lições podemos tirar da crise ?
Maria da Conceição Tavares: A crise ainda não passou e não deu as lições . Nos Estados Unidos já tem um pessoal dizendo que o gasto fiscal é muito, que isso acaba dando inflação e tem que parar. Se parar o gasto fiscal, como é a única componente ativa que vem sendo acionada pelo governo Obama, as coisas não vão melhorar. Todos os sintomas estão ainda muito embaralhados. E aí sobe a Bolsa de Valores, porque houve uma pequena bolha e o pessoal já começa a dar vivas . O desemprego também não terminou, e há muita capacidade ociosa. Então, todas as indicações que apontam para uma estagnação mais longa estão lá presentes. Não houve nenhuma mudança estrutural até agora para reverter a crise.

Valor: Como fica, então, o papel do Estado neste momento?
Conceição: O Estado americano está fraco. Não está ativo. E está botando o dinheiro todo em cima dos bancos e também em cima do seguro social, do desemprego que subiu muito. Todo o sistema falido, ele sustentando, feito um Hércules, e não está fazendo essa coisa tomar rumo. É um estado fraco, desse ponto de vista. E isso é ruim, porque denota que o governo americano não tem realmente força. Não tem apoio, nem na sociedade, que é dilapidada pelo neoliberalismo, nem no “establishment”. Então, não dá para fazer a reforma da saúde porque os laboratórios e os seguros-saúde não querem. Não dá para fazer reforma financeira porque os bancos não querem. Como é uma sociedade de lobby pesado, não tem como reformar. E não tem mecanismos de demanda efetiva do lado do setor privado para aumentar o emprego. O que não é bom.

Valor: Isso significa que a liderança dos Estados Unidos sobre a economia mundial está em xeque?
Conceição: Está. Não tem mais liderança nenhuma. Eles têm peso político, diplomático e militar. Mas isso não é liderança. É império. Eles têm um poder imperial sustentado num poder militar e financeiro. A iniciativa diplomática e militar só visa manter com mão de ferro o que já conquistaram. Mas não têm como resolver os problemas, nem avançar . Os Estados Unidos não podem tomar iniciativa militar em mais lugar nenhum. Primeiro, quem vai pagar e, depois, quem vai dar o apoio? É o império congelado.

Valor: Essa fraqueza americana pode arrastar o mundo para onde?
Conceição: É uma fraqueza sistêmica. O sistema era todo estruturado por eles. Como estão débeis, o sistema fica com um peso morto muito grande. Só tem possibilidade de sair quem tem dimensão para sair, como os BRICs. O que vão fazer o México, a Argentina, o Chile? São todos atrelados à economia mundial. Quem está puxando o comércio é a Ásia. A Alemanha não está puxando mais nada. Se a Europa e os Estados Unidos puxam para baixo, só sobra a Ásia.

Valor: E a China, especificamente?
Conceição: Os chineses estão tentando substituir os americanos nos investimentos em matérias-primas que eles precisam. Estao investindo em toda parte. Em petróleo, em infraestrutura na África. Aqui na América Latina estão vindo para tudo. Siderurgia, portos. Estão fazendo um movimento de expansão não pelo comércio apenas, mas principalmente via investimento direto. Isso é que é novidade. Sobretudo na África. Coitados dos africanos. Saem de um imperialismo e entram em outro.

Valor: A China teria a liderança?
Conceição: O mundo caminha para uma multipolaridade.

Valor: Então, nesse mundo a China pode vir a ser uma liderança ?
Conceição: Aí entra outra questão. Como se resolve o nó do entrelaçamento entre China e Estados Unidos? É uma simbiose. A China tem resolvido não ser agressiva com os Estados Unidos. Do ponto de vista diplomático e militar, tem estado “low profile”. Não está dizendo que os Estados Unidos são um “tigre de papel”, como na época do Mao. É consenso em Pequim que não é para enfrentar os Estados Unidos. Mas eles têm que resolver esse impasse. O que fazem? Compram ativos dos Estados Unidos? Foi o que o Japão fez e se deu mal. E é claro que eles viram o Japão fazer isso e não vão fazer. Então, estão vindo pela periferia. Que é o correto. O Japão saiu da periferia para investir nos Estados Unidos, disparado. Os chineses não estão fazendo isso. Eles têm participação daqueles fundos soberanos em várias coisas. No Citi, por exemplo. Fazem essas aplicações para sustentar os dólares que têm, para ter alguma aplicação.

Valor: China e Estados Unidos vão se pôr de acordo para garantir uma saída da crise?
Conceição: Difícil. Não vejo nenhuma semelhança de estrutura política e ideológica. São muito dessemelhantes. Se não vão se pôr de acordo, como vai ser? A China abre mão crescentemente do mercado americano e aumenta o mercado no resto do mundo. Ela pode fazer isso. Os Estados Unidos vão fazer o quê? Estão no mundo inteiro, mas são uma potência comercial declinante.

Valor: Vão se voltar para o mercado interno?
Conceição: É o que deveriam fazer, como prometeu Obama, mas aí têm que resolver primeiro a situação da regulação do sistema bancário, das empresas e do desemprego.

Valor: Qual o papel dos BRICs na recuperação da economia global?
Conceição: Vão ter papel importante, porque têm peso específico. Não podem estabelecer uma política comum, porque são estruturas diferentes. Somos uma economia mista, a China é estatal, a Rússia era tudo privado, quebrou tudo, e está em processo de reconstrução pelo Estado. O Brasil não é potência militar, mas tem tomado muitas iniciativas na política externa e vai bem na crise.

Valor: Ben Bernanke, presidente do Fed, anunciou que pode aumentar os juros.
Conceição: Coisa sem pé nem cabeça. A dívida externa e a dívida pública deles, gigantescas, vão ficar caríssimas. Eles estão querendo fazer isso porque estão com medo da inflação. Inflação de demanda não é, porque não tem demanda efetiva. Inflação de custos de matéria-prima também não é, pois não está tendo nenhuma explosão de matéria-prima. Acho que o Bernanke está com medo é de que rejeitem a dívida pública. Ninguém está querendo comprar aqueles papéis [títulos do Tesouro]. Uma forma de atrair investidores seria subir os juros. Mas tudo isso são perfumarias. Não vai para lugar nenhum. A raiz do problema seria a reforma do sistema bancário.

Valor: O que mais, além dessa reforma, o governo americano teria que fazer?
Conceição: Reforçar o papel do Estado e fazer um ajuste global que teria que ser negociado com a China. Os dois países teriam que acertar um acordo na área comercial. Mas não há negociação entre os dois. Os Estados Unidos não têm aparentemente uma saída boa. O Obama está falando no vazio. É por isso que os conservadores prenunciam um golpe.

Valor: Existe esse risco?
Conceição: O primeiro risco que existe é que o matem. Esse é um risco clássico nos Estados Unidos. E existe o risco de ele não se reeleger. Fico com muita pena. Ele seguramente não é o cara. Parecia, mas não é.

Valor: Como as dificuldades vividas pelo Estado americano podem impactar o mundo?
Conceição: Vai depender do resto do mundo. Vamos tentar esquecer um pouco os Estados Unidos. Temos que buscar construir outras lideranças. O ideal é que houvesse um acordo mínimo entre todos os grandes, para aliviar a crise e resolver o problema global. Bastava o G-20, bastavam os 20 se porem de acordo. Mas não há acordo.

Valor: E o dólar?
Conceição: Não dá ainda para tirar o dólar [de seu papel de moeda de reserva internacional]. O dólar está fraco. Os países, em geral, se pudessem, saiam do dólar. Está ruim acumular reservas em dólar. O problema é com os que já estão acumulados, como os BRICs, sobretudo a China.

Valor: O que a China vai fazer com US$ 2 trilhões de reservas?
Conceição: Está empacada. E os títulos americanos que ela detém servem de lastro às reservas. Ela não tem como vendê-los no mercado. Está com um mico na mão. É um patrimônio morto. Não tem o que fazer com as reservas. É como se tivesse no cofre, de um lado, o patrimônio futuro, de fábricas, de realizações etc. e, do outro, um montão de estrume que não pode jogar fora.

Valor: O que pode vir daí ?
Conceição: Prevejo uma coisa arrastada, prolongada, com crises que vêm uma atrás da outra, uma bolha disso, uma bolha daquilo.

Valor: Qual a próxima bolha?
Conceição: A bolsa. Já temos uma aí montada, é a bolsa, que voltou a subir. O pessoal está investindo pesado. Mas isso mostra que o sistema está frágil, ao contrário do que julgam, não é um bom sinal. É um mau sinal. Aqui, no Brasil, por exemplo, na Bovespa, o grosso do dinheiro que está vindo de fora pra cá é pra bolsa. Não é para investimento direto no sentido autêntico da palavra. Direto, vieram US$ 11 bilhões e para a bolsa vieram US$ 17 bilhões, este ano.

Valor: Qual seria a consequência dessa bolha?
Conceição: Volta de novo a afundar. Aí vem nova bolha. Se o mercado de commodities estiver melhor, vão fazer bolha de commodities. Podem fazer outra vez bolha em cima do petróleo. Acho que vamos de bolha em bolha.

Valor: Então, a crise não acabou….
Conceição: É uma falsa euforia. Provavelmente o governo americano vai ter que parar de ajudar o setor privado, pois o déficit fiscal já está em 17% do PIB. Como já socorreram no limite, já gastaram trilhões de dólares, na próxima crise não vão poder socorrer. Foi o que aconteceu no decorrer da crise de 1929. Em 1931 e 1932, nada mudou. Só ocorreu mudança no sistema financeiro depois, quando teve outra crise bancária, em 1933. Na primeira crise ninguém se deu conta, pois despejaram toneladas de dólares em cima dos bancos. Como agora.

Valor: A história pode se repetir?
Conceição: A crise atual começou em 2007 com os empréstimos “subprime”. Em 2008 foi o auge. E agora, neste segundo semestre, está com ares de que se vai respirar. Em 2010 pode haver uma recuperação, mas em 2011 ninguém sabe o que pode acontecer.

Valor: Como o Brasil ficaria com uma reforma bancária nos Estados Unidos?
Conceição: O Brasil tem um sistema financeiro público e privado. E os bancos privados não entraram em crise. Já tinham entrado em crise com o Fernando Henrique. Aí limparam e não deixaram de manter o controle. Não temos um sistema financeiro que opera “à la livre”. Não existe isso. Temos regulação. Nosso problema básico é o câmbio. Tem que dar um jeito. A coisa cambial vai mudar no próximo governo. Não teremos mais esse presidente no Banco Central, e nem Dilma, nem Serra estão a favor dessa política cambial.

Valor: Obama disse que o cara é o Lula…
Conceição: É. O Lula, um gênio político, mistura de Vargas e JK, uma liderança do povo brasileiro que tem uma sorte danada, ademais de ser muito competente. Tem que ter competência e sorte. As coisas têm que estar a favor.

Valor: Como é sua avaliação do governo Lula?
Conceição: Muito boa. Esta é a minha avaliação e de 70% da população. Na verdade, só a classe média dita ilustrada e a grande imprensa são contra. Contra também não sei o quê. Caiu a inflação. Portanto, mantiveram a política econômica dura que diziam que não iam manter, mas mantiveram. Contra meu ponto de vista. Perdi a parada, mas fico contente que tenha perdido, porque naquela altura ia ser complicado. Como estava tudo fora do lugar, era muito ousado fazer uma política alternativa no início do primeiro mandato. Do ponto de vista da política macro, eles começaram a fazer coisas no segundo mandato. Mas não creio que vão terminar. Fizeram o correto na infraestrutura, contemplando obras nas regiões Norte e Nordeste, como a ferrovia Transnordestina, a Norte-Sul, a transposição do rio São Francisco e portos. O PAC é uma seleção de projetos muito pesada e muito boa, de que não convém desviar. Também acertaram na política social, com o Bolsa Família. O governo Lula está tocando três coisas importantes: crescimento, distribuição de renda e incorporação social. E ainda por cima fez uma política externa independente. Por que acha que ganhamos a Olimpíada? [a escolha do Rio de Janeiro para sede dos jogos, em 2016]. Porque passamos a ter prestígio de fato lá fora.

Valor: Como vê a questão ambiental no mundo e no Brasil, às vésperas da reunião de Copenhague?
Conceição: Para variar, os Estados Unidos não assinam meta nenhuma. O país de Obama, digo, o Departamento de Estado, não assina nada. O problema ambiental está complicado e complexo. No Brasil, independente do desmatamento da Amazônia, a floresta vai sofrer com o aquecimento global. Mas a coisa da Amazônia, no nosso caso, é importante e é difícil. Mas não somos decisivos para o aquecimento global. Decisivos são os Estados Unidos e a China.

Valor: A exploração do petróleo das camadas do pré-sal pode impactar as boas intenções ambientais do Brasil?
Conceição: Começamos com a ideia do verde, o álcool combustível, mas, agora que veio o pré-sal, ninguém fala mais nisso. Agora, tudo vai depender do próximo governo.

O caráter cíclico da intervenção como parte de um processo político

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Autor: Luiz Carlos Bresser Pereira – FGV – Valor Econômico – 09/10/2009

Luiz Carlos Bresser-Pereira, professor da Fundação Getúlio Vargas, defende o modelo proposto pelo governo para a exploração do petróleo no pré-sal como única forma de neutralizar os riscos da “doença holandesa” – conceito econômico com o qual se tenta explicar a aparente relação entre a exploração de recursos naturais, a elevação da renda de um país, a valorização da moeda e o declínio do setor manufatureiro, como aconteceu na Holanda nos anos 1960, depois da descoberta de grandes jazidas de gás natural no Mar do Norte. Ex-ministro da Fazenda no governo José Sarney, da Administração e Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia no primeiro e segundo mandatos de Fernando Henrique Cardoso, respectivamente, Bresser considera que os setores tipicamente monopolistas devem ser alvo, senão de controle direto do Estado, de um grau de regulação muito grande. Não vê, porém, nenhuma incompatibilidade entre interesses de Estado e da iniciativa privada, que, em sua opinião, podem, e mesmo devem, ser confluentes.

A seguir, trechos da entrevista que Bresser-Pereira concedeu ao Valor.

Valor: O modelo proposto pelo governo para a exploração do pré-sal conflita com os interesses do setor privado?
Luiz Carlos Bresser-Pereira: A ideia de que existe um conflito entre Estado e mercado é parte de uma agenda neoliberal. E uma tolice. Quando escrevi “O caráter cíclico da intervenção estatal”, em 1989, isso ainda não estava tão claro. Em 2005, no artigo “Assalto ao Estado e ao mercado”, essas ideias ganharam forma. Sugiro que o neoliberalismo foi um assalto ao Estado e ao mercado. Diferentemente do liberalismo, que surgiu do interesse de uma classe média burguesa contra a aristocracia militar, os “terratenientes” e o Estado autocrático, o neoliberalismo é uma ideologia dos ricos contra os pobres, contra os trabalhadores e contra o Estado democrático. Quando o Estado começa a intervir na produção de bens e serviços, é possível que conflite com o mercado. Mas o que se observa do Estado atualmente é que isso só acontece na fase inicial, que Marx chamava de acumulação primitiva do capital e não caracteriza uma situação de conflito: interessa muito aos empresários e à sociedade iniciar seu processo de desenvolvimento.

Valor: Há, então, compatibilidade de interesses?
Bresser-Pereira: Em todos os países capitalistas, o desenvolvimento do mercado e do Estado se dá em paralelo. O Estado pode aumentar sua participação na renda por meio da carga tributária. Quanto mais desenvolvido um país, maior a carga tributária, porque maior é a demanda de solidariedade na sociedade, do ponto de vista dos gastos sociais, culturais e científicos. Para se legitimar as democracias modernas, é preciso um Estado que garanta um grau de solidariedade ou de igualdade na sociedade.

Valor: De que maneira o Estado se desincumbe dessa tarefa? E a qual Estado, formalmente falando, o sr. se refere?
Bresser-Pereira: A última ideia a que cheguei a respeito do assunto – e esse é um tema sobre o qual não se tem conclusão nunca – foi em relação à regulação. Naqueles dois “papers” deixo claro que o papel fundamental de coordenar uma sociedade capitalista cabe ao Estado. O Estado, para mim é, em primeiro lugar, a ordem jurídica, a Constituição. E, depois, a organização, o sistema constitucional legal e a administração pública, o aparelho que garante essa ordem jurídica. O papel fundamental de coordenação de toda a sociedade cabe ao Estado. Mas, na parte econômica, esse papel também é exercido por uma instituição chamada mercado, que está longe de ser perfeita, mas é maravilhosa. Sem mercado não teríamos a menor condição de desenvolver economias complexas como a que temos hoje. Esse mercado precisa ser regulado pelo Estado. Não existe mercado sem regulação. Até para constituí-lo é preciso regular. Mas pode-se pensar o seguinte: na medida em que uma sociedade se desenvolve e se torna mais complexa, mais agentes econômicos participam do mercado e mais perfeita será a concorrência. Isso é uma tolice imensa. Quanto mais complexa a sociedade se torna, mais necessária é a regulação. Veja-se o exemplo da crise do ano passado. Portanto, quanto maior o grau de desenvolvimento do país, maior será a demanda de igualdade e maior será o papel do Estado na área social e maior será a regulação. A ideia é que a regulação é fundamental e fortalece o mercado, ao invés de enfraquecê-lo. O neoliberalismo foi um assalto ao Estado e ao mercado porque desmoralizou o mercado. Não deixou que o mercado funcionasse bem.

Valor: O sr. segue defendendo o caráter cíclico da intervenção estatal?
Bresser-Pereira: Não tenho dúvidas quanto a isso, mas esse grau de regulação, ou de intervenção, aumenta e diminui por meio de um processo político. Em certo momento, aumenta porque é bem-sucedido. É função fundamental do Estado fazer investimentos em infraestrutura. Os setores tipicamente monopolistas devem ser alvo, senão de controle direto, de um grau de regulação muito grande. Assim, num certo período, o Estado aumenta a regulação e o investimento público em certos setores. Depois disso, a sociedade começa a protestar. Sempre teremos pessoas mais liberais e mais protecionistas. É preciso um equilíbrio. Em 1989, eu já previa o colapso do neoliberalismo e a retomada do liberalismo. O Brasil não está mais na fase de acumulação primitiva, o setor privado já tem capacidade de investir em todos os setores – e me refiro ao setor privado nacional. Acho que essa história de que o setor privado nacional e o estrangeiro são a mesma coisa é uma loucura. É “non-sense”. São diferentes.

Valor: Por que se deve fazer essa distinção?
Bresser-Pereira: É claro que, nos anos 2000, o Estado não vai investir em siderurgia, em petroquímica, áreas em que o setor privado tem capacidade de investimento. Mas isso não significa que o Estado não deva investir em infraestrutura e, especialmente, que não tenha total controle sobre a mineração, particularmente sobre a mineração de petróleo. Pode chamar isso de nacionalista. Sou nacionalista, graças a Deus, como todos os americanos que conheço são nacionalistas, e todos os franceses e todos os suecos. Aqui no Brasil, encontro um monte de gente que não é nacionalista. Nesses países não encontro ninguém. Todos acreditam que o papel do governo é defender o trabalho, o capital e o conhecimento nacionais. E, para isso, deve usar sua própria cabeça e não a de seus concorrentes mais ricos. Isso, para mim, é o nacionalismo.

Valor: E por que o controle sobre a mineração?
Bresser-Pereira: As atividades puramente monopolistas devem ficar com o Estado ou com uma regulação e controle social muito grande. Distribuição de energia elétrica na cidade de São Paulo, por exemplo: não tem concorrência. Ou é do Estado ou tem que ser muito bem regulado, muito bem controlado, os lucros têm que ser transparentes e os bônus dos diretores, conhecidos. Estão exercendo uma atividade que o mercado não controla. No caso da mineração, não. O petróleo é competitivo e a mineração de ferro é competitiva.

Valor: Por que se recomenda atenção especial do Estado se existe essa competitividade?
Bresser-Pereira: Porque tem uma coisa chamada rendas ricardianas. Houve um grande economista inglês, David Ricardo, que descobriu, lá por 1800 e poucos, uma coisa chamada renda da terra, que é o aluguel que os proprietários das terras mais férteis recebem por serem proprietários, quando o preço do bem é determinado pelas terras menos férteis. O que ele imaginava – pensando, é claro, num Estado nacional – é que, à medida que a população vai crescendo, amplia a área de ocupação de terra. Primeiro, ocupa as terras mais férteis. Depois, as menos férteis e aí a produtividade cai. Produzir nessas terras custa mais, mas existe demanda. Então, o preço é determinado pela terra mais improdutiva. Se fosse assim, o arrendador das terras mais férteis teria um lucro danado, não fosse o fato de ele ser obrigado a pagar essa diferença ao proprietário da terra. Isso é a renda ricardiana.

Valor: A ideia da renda ricardiana está na base do projeto da partilha do governo Lula?
Bresser-Pereira: Sem dúvida, e estou muito feliz que isso tenha acontecido, porque eu expliquei que a doença holandesa é consequência de rendas ricardianas. Quando não há especulação, o preço do petróleo é determinado pelo custo de sua produção nos países que produzem com menor eficiência. O diferencial disso, que é uma enorme renda, é renda – e não lucro – que alguém tem que capturar. Como é que o país vai capturar essa renda? Não vai deixar que fique para a Shell ou para a Esso ou qualquer outra empresa privada. Há ainda um segundo problema: como é que vai capturar essa renda de maneira que não prejudique o resto da economia ou, ao contrário, que favoreça a economia? É possível capturar essa renda por meio de imposto e distribuir para a sociedade e aí todo o dinheiro entra junto com o imposto e a taxa de câmbio se aprecia muito e aí inviabiliza tudo. A alternativa é criar o fundo soberano: a taxa de câmbio não se aprecia – porque é a renda ricardiana que causa a doença holandesa -, a indústria se desenvolve e o país internaliza aos poucos os rendimentos desse fundo. A doença holandesa é uma imensa falha de mercado. O Estado precisa intervir. Essas ideias estavam esquecidas. Os economistas convencionais se esqueceram da doença holandesa e passaram a falar mal dos recursos naturais, da corrupção que resultava na partilha do imposto que se cobrava das empresas produtoras de petróleo. O fato é que esta é uma questão política – ou, melhor ainda , moral. Esquecem-se do aspecto econômico. O problema moral deve ser tratado pelo Código Penal. É preciso impedir que a taxa de câmbio se aprecie, para que as indústrias boas e competentes continuem competitivas. Não podem ser expulsas do mercado porque nós agora temos petróleo. Apresentei essas ideias em 2005, num primeiro artigo que resultou num debate nacional. Quando o Lula lançou o projeto, falou em doença holandesa. Ou seja: eles estão levando em conta o problema da doença holandesa, o que acho admirável, e estão conscientes de uma coisa que a teoria convencional disfarça com essa história de reduzir o problema à corrupção e esquecer o resto.

Valor: O projeto do pré-sal é, então, a política correta para evitar a doença holandesa?
Bresser-Pereira: Para neutralizar a doença holandesa, é muito melhor um esquema de partilha do que um sistema de “royalties”, mas precisa de uma empresa estatal, a Petro-Sal, e precisa de um fundo soberano. As três coisas.
Meu entendimento é que o dinheiro vai para o fundo e só os rendimentos desse fundo é que devem entrar no Brasil. Se colocar aqui o dinheiro todo, valoriza o dólar de qualquer forma. Tem que deixar lá fora. Hoje, uma coisa importante para o Brasil é estimular as empresas brasileiras a investir lá fora. Isso é tirar dólar. Temos dólar sobrando, ienes, euros. Estão nos inundando. Querem nos afogar em poupança externa. (CI)

Redução do papel do Estado na economia sempre foi mito

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Autor: Linda Weiss, professora da Universidade de Sydney (Austrália)

Para especialista em desenvolvimento, Linda Weiss, da Universidade de Sydney (Austrália), compras militares dos EUA são maior exemplo de política industrial que gerou inovação tecnológica
A PESAR de todas as manchetes sobre a volta do Estado à economia, ele nunca se retirou, e os EUA são o maior exemplo disso, afirma Linda Weiss, especialista em desenvolvimento e professora do Departamento de Governo e Relações Internacionais da Universidade de Sydney (Austrália). Weiss cita especificamente a política de inovação tecnológica americana, organizada por meio de encomendas da área militar do governo, como exemplo do que chama de “ativismo estatal” que nunca diminuiu nas economias mais ricas.

Weiss afirma que a China está adaptando o modelo americano para começar a produzir tecnologias próprias, e sugere que o Brasil estude o exemplo.
Ela deu entrevista à Folha depois de participar, no Rio de Janeiro, de seminário no Instituto de Economia da UFRJ sobre Reposicionamentos Estratégicos, Políticas e Inovação em Tempo de Crise. Abaixo, os principais trechos.

FOLHA – A senhora diz que não é possível falar em volta do Estado à economia porque ele nunca foi embora. Pode explicar?
LINDA WEISS – A ideia predominante no debate sobre a globalização e a sua relação com as opções de política econômica é que o Estado foi posto numa camisa de força e recuou da economia.
Fez isso para atrair investimentos num mundo de capitais móveis. O melhor governo é o que reduz impostos e regulações. O Estado atua nas margens da economia, sem presença ativa e muito menos desenvolvimentista. Contesto essa ideia olhando para o que os Estados mais poderosos vêm fazendo.

FOLHA – E quais são os principais exemplos?
WEISS – O primeiro é o paradoxo de que a desregulamentação requer rerregulamentação. Por exemplo, o governo privatiza, mas acaba se tornando muito ativo na arena regulatória, criando agências.
Isso de certo modo aumentou o envolvimento do Estado, sem necessariamente passar pelas autoridades executivas, que têm que responder ao eleitorado.

FOLHA – Mas, no mercado financeiro, houve menos regulamentação, não? WEISS – Houve uma opção por não regulamentar. Foi uma opção movida a razões nacionalistas, porque tanto o Reino Unido quanto os EUA viam o setor financeiro como o que liderava a projeção do seu poder na arena econômica internacional.
Com Wall Street de um lado e a City do outro, para eles fazia sentido ser liberais.
O Japão fez o mesmo, de modo diferente. Ao desregulamentarem o setor financeiro, os burocratas quiseram manter sua presença e escreveram as regras com esse objetivo, sem permitir mais autorregulamentação.
Além disso, há uma forma de ativismo que é a intervenção recorrente do Estado para resgatar o sistema bancário em crises. O que vemos hoje não é excepcional, é parte do padrão da internacionalização das finanças nos últimos 200 anos.

FOLHA – Que outros exemplos a senhora reuniu?
WEISS – Um fundamental é no campo da inovação e da tecnologia. Na OMC (Organização Mundial do Comércio), os Estados líderes escreveram normas que lhes dão margem para promover sua indústria nascente, ao mesmo tempo em que reduziram essa margem para países em desenvolvimento.
As regras da OMC permitem políticas de subsídio à ciência e tecnologia, que é a forma da indústria nascente nas chamadas economias de conhecimento intensivo.
Você vê intervenções muito focadas dos governos dos Estados Unidos, da Europa e do Japão no setor de alta tecnologia, incluindo comunicação e informação, novos materiais, novas energias. São áreas vistas como plataformas de sua prosperidade futura.

FOLHA – Como a senhora compararia o ativismo estatal nos EUA e na Europa com o na Ásia?
WEISS – Eu diria que o ativismo asiático está acima do radar, os países da região não se envergonham de mostrar que têm política industrial. As populações também apoiam o uso do poder do Estado na economia.
No caso dos EUA, não há consenso sobre o ativismo estatal.
Então, ele aparece abaixo do radar. A área que explica de onde vieram as inovações nos EUA, país que é líder em alta tecnologia, é a máquina de encomendas ligada ao setor militar.
Os EUA construíram um sistema formidável de inovação baseado no fato de responderem por 50% dos gastos militares mundiais. Dessa forma existe apoio popular e político, porque a linguagem usada é a da segurança nacional. Esse sistema de encomendas públicas de inovações é tão importante que os europeus agora estão vendo como podem adaptar a seu próprio setor civil. A China está fazendo a mesma coisa.

FOLHA – Como a China está seguindo o exemplo dos EUA?
WEISS – A China, por exemplo, quer desenvolver sua própria indústria de software e está usando encomendas de tecnologia para isso. Ela está definindo o que é uma empresa chinesa com base no “Buy American” [cláusula do pacote de estímulo econômico aprovado nos EUA no início deste ano].
Para o “Buy American”, uma empresa americana tem pelo menos 50% de capital americano, está baseada nos EUA e usa trabalhadores americanos. Essa é a definição que os chineses estão usando em sua estratégia de compras governamentais, com o objetivo de construir sua própria indústria de alta tecnologia. [No Brasil, a emenda constitucional nº 6 acabou em 1995 com a distinção entre empresas de capital nacional e capital estrangeiro].

FOLHA – Apesar do ativismo estatal, o Estado de bem-estar social diminuiu?
WEISS – Quando olhamos os números da OCDE [Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, que reúne cerca de 30 países industrializados], vemos que o Estado previdenciário na verdade cresceu.
O gasto total aumentou em média de 26% para 40% do PIB entre 1965 e 2006. E o componente social desse gasto aumentou de 15% para 22% em 30 anos. Houve reestruturações no destino do dinheiro, mas não declínio.

FOLHA – Mas o Estado como produtor recuou, não?
WEISS – Sim, claro. Mas é enganoso ver isso como enfraquecimento do Estado. Quando os serviços eram públicos, qual era o papel do Estado, afinal?
Mandar contas de luz e gás?
Não era exatamente um ator no sentido do desenvolvimento.

FOLHA – A resistência que vemos hoje nos EUA ao envolvimento estatal com o sistema de saúde não é paradoxal?
WEISS – Esse debate mostra que o sistema político americano não legitima um programa civil de tecnologia. O Programa de Tecnologia Avançada, civil, teve vida curta no governo Clinton [1993-2001] e recentemente perdeu seu orçamento.
É principalmente por meio do setor militar que são criadas estruturas híbridas, agências com função de investimento e que não são nem puramente públicas nem privadas em seu comportamento. Elas fazem essas encomendas de alta tecnologia.

FOLHA – E como os produtos chegam ao mercado civil?
WEISS – Não há uma cerca entre a Defesa e o setor civil. A CIA (Agência Central de Inteligência dos EUA), por exemplo, tem seu próprio fundo de investimento e assume participações em empresas privadas. Financia tecnologia que é usada para objetivos militares, mas também tem que ser viável comercialmente.

FOLHA – Que observações a senhora fez sobre a posição do Brasil nesse debate?
WEISS – Foi interessante ouvir outro dia que a política industrial brasileira tem dois pontos problemáticos: a falta de uma política agressiva para a exportação de manufaturados e a política de compras governamentais, que não teria decolado.

Sugiro trazer o caso americano para debate no Brasil. As compras governamentais são um instrumento poderoso de desenvolvimento. O importante é separar as compras ordinárias, como papel e mobília, das encomendas de tecnologia, de algo que ainda não existe.

Nisso você estabelece uma competição entre quem pode produzir tal coisa e como o Estado pode ajudar. Não é só o governo dizendo como deve ser, mas há uma interação.
De um só programa americano, o Small Business Innovation Research Program, de onde vieram nomes como a Microsoft, centenas de firmas receberam financiamento. Não são somas grandes, poderiam ser US$ 750 mil, por exemplo, para levar a tecnologia da fase da ideia na cabeça ao protótipo.

O programa foi lançado em 1982, quando nos EUA temia-se perder a corrida tecnológica para Japão e Alemanha, e envolve muitas agências governamentais, incluindo o Instituto Nacional de Saúde -que faz encomendas ao setor farmacêutico e de biotecnologia-, a Nasa e a Defesa.

Punir mais só piora crime e agrava a insegurança

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FSP – 31/08/2009.
Autor: Massimo Pavarini – Professor da Universidade de Bolonha/Itália.

“É um pecado , uma ideia louca” a noção de que penas maiores de prisão aumentem a segurança. “Acontece o contrário. Penas maiores produzem mais insegurança”, diz o italiano Massimo Pavarini, 62, professor da Universidade de Bolonha e considerado um dos maiores penalistas da Europa. Ele dá um exemplo: “Quanto mais se castiga um criminoso leve, mais profissional ele será quando voltar ao crime”.

Ligado ao pensamento de esquerda, Massimo Pavarini diz que essa ideia de punir mais teve como origem os EUA de Ronald Reagan, nos anos 80, e difundiu-se pelo mundo “como uma doença”. A eleição de Barack Obama à Presidência dos EUA pode ser um sinal de que esse ideário se esgotou, acredita. Pavarini esteve em São Paulo na última semana para participar do congresso do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), onde deu a seguinte entrevista:

FOLHA – O sr. diz que o direito penal está em crise porque o discurso pró-punição está desacreditado e a ideia de ressocialização não funciona. O que fazer?
MASSIMO PAVARINI – O cárcere parecia um invento bom no final de 1700, quando foi criado, mas hoje não demonstra mais êxito positivo. O que significa êxito positivo? Significa que o Estado moderno pode justificar a pena privativa de liberdade. Sempre se fala que o direito penal tem quatro finalidades:
serve para educar, produzir medo, neutralizar os mais perigosos e tem uma função simbólica, no sentido de falar para as pessoas honestas o que é o bem, o que é o mal e castigar o mal.
Após dois séculos de investigação, todas as pesquisas dizem que não temos provas de que a prisão efetivamente seja capaz de reabilitar. Isso acontece em todos os lugares do mundo.

FOLHA – O que fazer, então?
PAVARINI – As prisões já não produzem suficientemente medo para limitar a criminalidade. Todos os criminólogos são céticos. O direito penal fracassou em todas as suas finalidades. Não conheço nenhum teórico otimista. Isso não significa que não possa haver alternativas. Há um movimento internacional em busca de penas alternativas. O que se imagina é que, se a prisão fracassou, a pena alternativa pode ter êxito punitivo. Há penas alternativas há três décadas e, se alguma pode surtir efeito, foi em algum momento específico, que não pode ser reproduzido em um lugar com história e recursos econômicos diferentes.

FOLHA – Numa conferência, o sr. disse que o Estado neoliberal, que começou na Inglaterra e nos EUA, não pensa mais em ressocializar o preso, mas em neutralizá-lo. Por que morreu a ideia de recuperar o preso?
PAVARINI – Já se sabia que não dá para ressocializar o preso. O problema é outro. Existe uma obra bem famosa dos anos 70, chamada “Nothing Works” [nada funciona]. O livro foi escrito quando [Ronald] Reagan era governador da Califórnia [1967-1975]. Ele criou uma equipe de cientistas, de todas as cores políticas, e deu-lhes um montão de dinheiro. A pergunta era muito simples: você pode mostrar que o modelo de ressocialização dos presos tem um êxito positivo? Os cientistas pesquisaram muito e no final escreveram “nothing works”. A prisão não funciona nos EUA, na Europa nem na América Latina. Nada funciona se você pensa que a prisão pode reabilitar. Não pode. O cárcere tem o papel de neutralizar seletivamente quem comete crimes.

FOLHA – Ele cumpre esse papel?
PAVARINI – Pode cumprir. O problema é que a neutralização do inimigo, a forma como o neoliberal vê o delinquente, significa o fim do Estado de direito. O primeiro problema é que você não sabe quantos são os inimigos. Essa é a loucura.
Os EUA prendem 2,75 milhões todos os dias. Mais de 5% da população vive nas prisões. São 750 presos por 100 mil habitantes. Há ainda os que cumprem penas alternativas. Esses são 5 milhões. Portanto, são 7,5 milhões na América os que estão penalmente controlados. Aqui no Brasil são 300 presos por 100 mil habitantes.

FOLHA – Há teóricos que dizem que nos EUA as prisões se converteram em um sistema de controle social.
PAVARINI – Sim, isso ocorre. O setor carcerário nos EUA é quase tão forte quanto as fábricas de armas. Muitas prisões são privadas. É um bom negócio. O paradoxo dos EUA é que em 75, quando Reagan começa a buscar a Presidência, os EUA tinham 100 presos por 100 mil habitantes. Após 30 anos, a taxa multiplicou-se por oito. Os EUA não tinham uma tradição de prender muito. Prendiam menos do que a Inglaterra.

FOLHA – O senso comum diz que os presos crescem exponencialmente porque aumentou a violência.
PAVARINI – Isso é muito complicado. Se a pergunta é “existe uma relação direta entre aumento da criminalidade e aumento da população presa?”, qualquer criminólogo do mundo, eu creio, vai dizer não. Os EUA não têm uma criminalidade brutal. Ela é comparável à criminalidade europeia. Eles têm um problema específico: o número elevado de casas com armas de fogo curtas. Um assalto vira homicídio.

FOLHA – Por que prendem tanto?
PAVARINI – Os EUA prendem não tanto pelo crime, mas por medo social. Essa é a questão. A origem do medo social é bastante complexa, mas para mim tem uma relação mais forte com a crise do Estado de bem-estar social do que com o aumento da criminalidade. É um problema de inclusão social. Os neoliberais dizem que não dá para incluir todas as pessoas que não têm trabalho, os inválidos, os que estão fora do mercado. Os criminosos são os primeiros dessa categoria. Uma regra que ajudou a aumentar a população carcerária foi retirada do beisebol: três faltas e você está fora. Em direito penal isso significa que após três delitos, que podem ser pequenos, você está preso. Você está fora porque não temos paciência para tratá-lo. Vamos eliminá-lo.

FOLHA – Eliminar é o papel principal das prisões, então?
PAVARINI – É um dos papéis. O direito penal é cada vez mais duro, as sentenças são mais longas, “life sentence” [prisão perpétua] é mais frequente, aplica-se a pena de morte.

FOLHA – Como essa ideia neoliberal funciona onde há muita exclusão?
PAVARINI – Vou dizer algo que parece piada: quando os EUA dizem uma coisa, essa coisa é muito importante. Podem ser coisas brutais, grosseiras, mas quem diz são os EUA. Como imaginar que na Itália e na França, que têm ótimos vinhos, os jovens preferem Coca-Cola?
Não se entende. É o poder dos EUA que explica isso. A ideia de como castigar, porque castigar e quem castigar faz parte de uma visão de mundo. Se a América tem essa visão de mundo, isso se reproduz no mundo.

FOLHA – É por essa razão que cresce o número de presos no mundo?
PAVARINI – Isso é um absurdo.
Dos 180 e poucos países do mundo, não passam de 10, 15 os que têm reduzido o número de presos. Na Itália, temos 100 presos por 100 mil habitantes.
Há 30 anos, porém, eram 25 por 100 mil. Aumentou quatro vezes em três décadas. Isso acontece na Ásia, na África, em países que não se pode comparar com os EUA e a Europa.
Creio que é uma onda do pensamento neoliberal, que se converte em políticas de direito penal mais severo. É engraçado que os EUA, nos anos 50 e 60, eram os mais progressistas em política penal, gastavam um montão de dinheiro com penas alternativas. Mas hoje as pessoas acham que o direito penal que castiga mais tem mais eficiência. Isso é desastroso. Nos EUA, o número de presos cresce também porque há um negócio penitenciário.

FOLHA – O que há de errado com esse tipo de negócio?
PAVARINI – Os EUA têm cerca de 15% dos presos em cárceres privatizados. É uma ótima solução para a empresa que dirige a prisão. Ela sempre vai querer ter um montão de presos, é claro, para ganhar mais dinheiro, e isso nem sempre é a melhor política. É um negócio perverso.
Os empresários financiam lobistas que vão difundir o medo.
É um desastre. Mas pode ser que tudo isso mude. Obama parece ter uma visão oposta à dos neoliberais e já demonstra isso na saúde pública, um tema ligado à inclusão social. O difícil é que não há uma ideia suficientemente forte para se opor ao pensamento neoliberal sobre as penas. A esquerda não tem uma ideia para contrapor. Os políticos sabem que, se não têm um discurso duro contra o crime, eles perdem votos.

FOLHA – No Brasil, os políticos e a população defendem o aumento das penas. Penas maiores significam mais segurança?
PAVARINI – Isso é um pecado, uma ideia louca, absurda. Acontece o contrário. Penas maiores produzem mais insegurança. É claro, um país não pode neutralizar todos os criminosos. Nos EUA, eles podem colocar na prisão o garoto que vende maconha. Prende por um, dois, cinco anos, e ele vai virar um criminoso profissional. Quanto mais se castiga um criminoso leve, mais profissional ele será quando voltar ao crime. Há mais de um século se diz que a prisão é a universidade do crime. É verdade. Mas, se um político diz “vamos buscar trabalho para esse garoto”, ele não ganha nada.

FOLHA – No Estado de São Paulo, o mais rico do país, faltam 55 mil vagas nos presídios e as prisões são muito precárias. Por que um Estado rico tem presídios tão ruins?
PAVARINI – Há uma regra econômica que diz que a prisão, em qualquer lugar do mundo, deve ter uma qualidade de sobrevivência inferior à pior qualidade de vida em liberdade. Como aqui há favelas, as prisões têm de ser piores do que as piores favelas. A prisão tem de oferecer uma diferenciação social entre o pobre bom e o pobre delinquente. Claro que São Paulo poderia oferecer um presídio que é uma universidade, mas isso seria intolerável. O presídio ruim tem função simbólica.

FOLHA – Em São Paulo, o número de presos cresce à razão de 6.000 por mês. Faz sentido construir um presídio novo por mês?
PAVARINI – Mais cárceres significam mais presos. Se você tem mais presídios, você castiga mais. Por isso os países promovem moratórias, decidem não construir mais presídios.

FOLHA – Políticos dizem que mais presídios melhoram a segurança.
PAVARINI – A única coisa que você pode dizer é que mais presídios significa mais população presa. Há milhões de pessoas que delinqúem diariamente, e os presos são uma minoria. O sistema penal é seletivo, não pode castigar todos. As pessoas dizem que o crime não compensa, mas o crime compensa muito. O sistema não tem eficiência para castigar todos.
Quando você aumenta muito a população carcerária, algo precisa ser feito. Na Itália, há cada cada quatro, cinco anos há anistia. Entre os nórdicos, quando um juiz condena um preso, ele precisa saber a quantidade de vagas na prisão. Se não há vaga, outro preso precisa sair. O juiz indica quem sai. Porque é preciso responsabilizar o Poder Judiciário e a polícia pelos presídios. O cárcere tem de ser destinado aos mais perigosos. Uma prisão de merda custa 250 por dia na Itália. Não faz sentido usar algo tão caro para qualquer criminoso.

Nós não vamos pagar nada?

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Autor: Chris Anderson – Editor da revista Wired –

Consumidoras correm para aproveitar promoção em loja nos EUA

Chris Anderson, editor da revista de tecnologia e novas tendências “Wired” e um dos pensadores da internet, é o promotor de dois conceitos muito caros a esse meio. O primeiro é a “teoria da cauda longa”, estratégia de negócio segundo a qual a meta é vender poucas unidades de muitos e variados itens, o que substituiria o popular modelo dos “best-sellers”.

O segundo é o que ele chama de “freeconomics” ou a economia das coisas de graça, alicerçada no fato de que o custo de armazenamento e transmissão de conteúdo digital baixa cada vez mais. De onde vem o dinheiro? Do conceito “freemium”, junção das palavras “free” e “premium”: a maioria consome de graça (“free”), bancada por uma minoria que paga por uma versão de mais qualidade (“premium”).

Ambos os conceitos foram desenvolvidos em artigos, viraram palestras e livros.

O segundo surgiu recentemente em livro nos EUA e chegou neste mês ao Brasil. É “Free – O Futuro dos Preços” (Free – The Future of a Radical Price, no original). Nele, e na entrevista que deu à Folha por telefone, Anderson defende que, sim, diferentemente do que popularizou o economista Milton Friedman (1912-2006), existe almoço de graça -desde que a sobremesa seja bem paga por alguém.

Nos EUA, a versão eletrônica do livro ficou disponível gratuitamente por alguns dias. Agora é vendida por US$ 26,99 [R$ 50], em papel, e US$ 9,99, versão eletrônica -o “audiobook” em inglês continua de graça e pode ser baixado do site do autor, www.thelongtail.com.

No Brasil, só papel e só a dinheiro: R$ 59,90 por 88 páginas. A editora Elsevier já vendeu a primeira tiragem, de 10 mil cópias, prepara a segunda e colocou os três primeiros capítulos de graça em www.elsevier.com.br.

FOLHA – Se a informação quer ser livre/de graça, por que tenho de pagar R$ 59,90 para ler seu livro?
CHRIS ANDERSON – Não tem. Poderia ir ao site e baixar o “audiobook” gratuitamente.

FOLHA – Sim, mas quem quer ler em português, caso da maioria dos leitores brasileiros, tem de desembolsar.
ANDERSON – Cada região tem um editor diferente, cada um tem um enfoque diferente para isso, uma estratégia própria.
Nos EUA, era de graça. No Reino Unido, na Bélgica. A única parte que eu controlo é o “audiobook”. Eu encorajei todos os editores a dar o livro, alguns aceitaram, outros não.

FOLHA – Por que um editor pagaria milhares de dólares pelos direitos de seu livro, outro tanto para traduzir, mais ainda para imprimir e distribuir e finalmente daria de graça aos leitores brasileiros? Faz sentido economicamente?
ANDERSON – O livro trata disso extensivamente, mas sim, eu acredito que, se feita corretamente, essa ação vai levar a mais vendas do livro, não a menos. Você não precisa dar a versão física, pode dar a digital.
E, se você acredita que a versão física é a “premium”, que as pessoas ainda preferem ler em papel por todas as razões óbvias, para manter, fazer anotações, ler na praia, então não precisa temer dar a versão digital de graça, pois será uma forma de marketing, de amostra que vai promover a física.

FOLHA – Em seu livro, o sr. defende que sim, há almoço de graça, no sentido de que há toda uma economia florescendo baseada em dar os produtos, e não vender. Como isso funciona no caso específico da indústria de conteúdo?
ANDERSON – Em primeiro lugar, não há nada de novo aí. O que está mudando é o conceito, que evoluiu de um truque de mercado para um modelo econômico. Essa mudança é impulsionada pela indústria tecnológica. A ideia de conteúdo livre tem cem anos: rádio é de graça, TV aberta é gratuita. O problema é que agora anúncios não são mais suficientes para sustentar o modelo. Daí o que chamo de “freemium”, onde você dá a maior parte de seu conteúdo de graça, mas reserva parte dele, geralmente a melhor parte, para os que pagam.

FOLHA – O sr. cita Brasil e China como a nova fronteira da “freeconomics” e a forte presença de pirataria nos dois países como algo positivo. Como a pirataria pode ser benéfica para uma economia?
ANDERSON – Pirataria é uma palavra mal compreendida. Nem todo o conteúdo distribuído dessa maneira é pirata. Alguns são, outros são “pirateados”, entre aspas, por vontade dos autores, que valorizam a distribuição gratuita. Um dos exemplos que dou é o tecnobrega brasileiro. Não é pirataria, porque os autores autorizam os camelôs a reproduzir e vender os CDs sem lhes pagar nada.
Meu ponto é: conteúdo digital pode ser copiado e distribuído a um custo cada vez mais próximo de zero e, de uma maneira ou de outra, vai ser distribuído. Usar os mesmos canais de distribuição dos piratas será uma decisão de cada artista.
Mas o fato é que essas são as forças motoras da atual economia, são intrínsecas à internet e à era digital e impossíveis de serem contidas. A pirataria não é boa para a economia, mas a distribuição gratuita sim, e os piratas são os primeiros a usá-la.

FOLHA – O sr. diz ter problemas com as palavras “mídia”, “jornalismo” e “noticiário”. Por quê?
ANDERSON – Eu sei o que “mídia profissional”, “jornalismo profissional” e “noticiário profissional” significam. Mas como chamar quando isso é produzido por amadores? A maior parte do que eu leio hoje em dia está on-line e não vem desses canais. Está no Facebook, no MySpace, no Twitter, em blogs. Leio sobre amigos, família, hobbies. O que é isso? Eu não acho que a palavra “jornalismo” descreve o que está acontecendo. Acho que precisamos de novas palavras.

FOLHA – Ao mesmo tempo uma breve visita a sua conta no Twitter revela que o sr. segue o “New York Times”, a revista “New Yorker” e várias outras contas da chamada mídia tradicional. Além disso, seu trabalho principal vem de editar uma revista de papel, a “Wired”. Como o sr. concilia isso?
ANDERSON – Nós vivemos num mundo de hipermídia, onde não temos mais o monopólio sobre a atenção do leitor. Acho que há um papel para a mídia tradicional, mas há também um papel crescente para todo o resto. Nós vivemos em ambos os mundos. Você não vive em ambos os mundos?

FOLHA – Mas o sr. é o evangelista desse novo mundo e edita uma revista do velho mundo. Como concilia os dois?
ANDERSON – Nós usamos o modelo “freemium”. O que está na wired.com é de graça, faturamos um pouco com a publicidade on-line, e isso levanta assinaturas para a revista, que é o nosso “premium”.

FOLHA – Se o sr. me dá o conteúdo de graça on-line, por que eu pagarei por ele na revista?
ANDERSON – Porque não é o mesmo conteúdo, as palavras podem ser as mesmas, mas a revista é mais que palavras, é um pacote visual, com fotos, arte e um conceito de edição. De graça, você não tem o pacote.