Caminhos para superar a Grande Distorção, por Ladislau Dowbor

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Quando o sistema financeiro captura a democracia e a tecnologia avança mais rápido que nossa capacidade de governar e planejar o futuro, é a hora de rupturas. O caminho: novo pacto global que conecte economia, política e sustentabilidade

Ladislau Dowbor – OUTRAS PALAVRAS – 14/10/2025

Dificilmente podemos ainda ser chamados de cidadãos. Em vez disso, uma plateia, espectadores de um ritmo acelerado de mudança sobre o qual não temos controle. A lente política que herdamos, socialismo e capitalismo, estado e corporação, esquerda e direita, nos dá uma visão distorcida e trêmula. Adam Smith, Karl Marx, Joseph Schumpeter, J.M. Keynes? Uma nova e poderosa geração de economistas criativos certamente nos fornece imagens atualizadas, mas o denominador comum é que a catástrofe em câmera lenta não é mais lenta, mesmo que a orquestra ainda esteja tocando.

Permitam-me uma visão geral. Em primeiro lugar, a população mundial está prestes a se estabilizar em torno de 9 a 10 bilhões de habitantes na década de 2050, e é para isso que temos que organizar nosso planeta, pensando a longo prazo, com condições de vida razoáveis e sustentáveis para todos. Certamente é possível. Mas ainda estamos em uma absurda corrida de “salve-se quem puder”, lutando por privilégios, chegando ao topo à custa dos outros, saqueando e destruindo recursos não renováveis, poluindo tudo no planeta e enchendo nossas cabeças com idiotices que buscam chamar a atenção. Nosso problema não está nos problemas, mas em nossa persistência em criá-los mesmo vendo as consequências, e nossa impotência para reverter seu aprofundamento. Bem-vindos ao mundo rico, high-tech e autodestrutivo do século XXI. E eu sou um otimista.

Rico? Tomemos o fato básico de que o PIB mundial atingiu US$ 115 trilhões em 2025, o que significa que o que produzimos em bens e serviços equivale a aproximadamente US$ 5.000 por mês para uma família de quatro pessoas. Trago os trilhões enormes para o nível familiar, porque isso nos faz pisar no chão: produzimos o suficiente para todos. Pode-se brincar com esse número, apresentar a renda nacional líquida em vez do produto interno bruto, e também adicionar o enorme capital acumulado que não é contabilizado nas cifras do PIB, mas o fato básico e enorme é que produzimos o suficiente para todos nós termos uma vida confortável e próspera, como Tom Malleson gosta de chamar. Sei que estou me repetindo com esses números, mas é um ponto de referência para qualquer raciocínio sobre nossos desafios estruturais: temos que colocá-los aqui como ponto de partida.

Portanto, a questão não é produzir mais e glorificar as porcentagens de crescimento, mas desacelerar, recuperar o fôlego e olhar mais profundamente para o que estamos produzindo, para quem e com quais consequências ambientais. Bem, a comida que produzimos é suficiente para 12 a 14 bilhões de pessoas, de acordo com a FAO, no entanto temos 750 milhões passando fome, 2,3 bilhões em insegurança alimentar, 150 milhões de crianças menores de cinco anos sofrendo de nanismo, além de 42,8 milhões sofrendo de emagrecimento patológico¹. Cerca de 6 milhões morrem dessas condições todos os anos. Isso não é uma crise repentina, é uma tendência permanente de longo prazo, uma falha estrutural. Fechar os olhos para esta tragédia não significa necessariamente que sejamos bárbaros, como indivíduos, mas certamente significa que ainda estamos em tempos bárbaros como sociedade. MAGA, alguém?

Este artigo não trata de alertar para os nossos dramas; temos a catástrofe das mudanças climáticas, a perda de biodiversidade, a poluição por plástico, produtos químicos em cada curso d’água, a destruição das florestas tropicais, e temos o noticiário da noite mostrando os incêndios, as inundações, a violência. E reuniões intermináveis sobre todas essas questões. Este artigo trata de como estamos desorganizados e de como podemos nos organizar. Participei ativamente da Cúpula Mundial sobre Sustentabilidade de 1992 no Rio de Janeiro, organizando a exposição de tecnologias sustentáveis em São Paulo, um evento paralelo. Isso foi há 33 anos, já sabíamos o que precisava ser feito e tínhamos os meios tecnológicos. Ainda estou lutando por essas questões, esperando que atinjamos 20% dos objetivos de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030. Esta é uma medida de nossas conquistas, esperar por 20% dos objetivos. Com mais de 30 COPs, discutimos todos os anos o quão fundo estamos nos metendo em problemas. Esta é uma medida de quão impotentes somos. Davos, alguém?

Então, temos os meios financeiros, sabemos o que deve ser feito e temos as reuniões. E em 2025, temos um poderoso presidente de um país rico proclamando “Perfure, baby, perfure” e tirando os Estados Unidos das metas da Conferência de Paris novamente, em uma espécie de jogo de ioiô. O problema aqui não é Donald Trump; temos demagogos aos montes para cada eleição em cada país. O problema é que, não obstante os óbvios desafios que enfrentamos, e o fato de que temos os recursos, bem como as medidas passo a passo que devem ser tomadas, estamos elegendo esse tipo de político. Com um presidente eleito tendo 13 bilionários sorridentes atrás dele na cerimônia de posse, o problema está com o demagogo. Significa que o dinheiro no topo está divorciado de contribuir para o bem comum. Significa também que a narrativa fundamental, de que maximizar o lucro é legítimo, independentemente das consequências para a sociedade e para o meio ambiente, assumiu o controle tanto do processo de decisão econômico quanto do político.

É uma tendência destrutiva, ainda assim as pessoas votaram nela, os congressistas votam nela, Wall Street está entusiasmada, temos um mercado em alta, o que significa que o sistema de recompensas e feedback positivo nos empurra corredeira abaixo. Não é um erro social; é um equívoco social, político e econômico. A questão é que esse tipo de deformação sistêmica exige mudança estrutural, e não temos o contrapoder político correspondente. Se fosse apenas os EUA, mas está se fortalecendo em tantos países. Não se trata de esperar a próxima eleição, trata-se do que aconteceu com a eleição, com a democracia em geral, e quão profunda é a mudança estrutural. É essencial chegar às engrenagens motrizes dessa transformação.

Temos todos os dados de que precisamos sobre a dramática desigualdade que progride no mundo. As engrenagens são simples: a maioria das pessoas no mundo tem dificuldade para chegar ao fim do mês, ou está endividada, enquanto as pessoas ricas, uma vez satisfeitas suas amplas necessidades básicas, têm dinheiro para “investir”. E quanto mais dinheiro sobrando você tem para investir, mais rico você fica: este é o efeito bola de neve financeiro, quanto mais dinheiro você tem, mais dinheiro você ganha. E não é um investimento produtivo, mas um investimento financeiro. A Forbes nos dá os números: 3.028 bilionários têm uma fortuna de US$ 16 trilhões, enquanto a metade mais pobre da população, 4,1 bilhões de pessoas, tem uma riqueza total de US$ 5 trilhões. Era inevitável que esse nível de poder econômico no topo gerasse o correspondente poder político.

A mudança curiosamente chamada Citizens United na Constituição americana, em 2010, permitindo que dinheiro corporativo financie eleições, é uma deformação estrutural do que ainda chamamos de democracia. Não é simplesmente um problema; é uma falha estrutural em nossa capacidade de resolver problemas. Isso é muito mais do que o poder dos ricos, a plutocracia. É uma deformação do processo decisório no topo. As maiores corporações de gestão de ativos detinham US$ 50 trilhões em 2022, aproximadamente metade do PIB mundial. A BlackRock sozinha, em 2025, gerencia US$ 12 trilhões. Apenas como lembrete, o orçamento federal dos EUA é de US$ 6 trilhões. Essas plataformas enormes capturam dinheiro de todo o mundo, em uma rede de dinheiro virtual, e Larry Fink não tem escolha a não ser maximizar os retornos sobre esses investimentos financeiros. O mesmo vale para UBS, JP Morgan, State Street, Vanguard, Fidelity e afins.

Tantas fortunas ao redor do mundo dependem desse sistema extrativista, capitalismo extrativista como tem sido chamado, que ele se tornou poderoso demais para ser movido. O gigantesco sistema de especulação financeira em escala mundial detém aproximadamente seis vezes o valor do PIB mundial, mais de US$ 600 trilhões, apenas em derivativos. Dinheiro demais e interesses demais estão entrelaçados nessa teia de interesses para que o sistema se mova. As mensagens anuais excessivamente adocicadas de Larry Fink, para “investidores” ao redor do mundo, são o equivalente financeiro da mensagem “perfure, baby, perfure” para as corporações de petróleo e gás. Os gestores não são estúpidos; estão perfeitamente cientes das consequências, até afirmam aderir aos princípios ESG, mas estão presos na teia, e o fato de que também ficam tão ricos não ajuda. Estamos enfrentando uma falha estrutural.

Isso vai muito além do que chamávamos de capitalismo, quando enriquecer também significava que você produzia algo útil. E com o dinheiro virtual, apenas um número em computadores, percorrendo o mundo em frações de segundo, perdemos completamente o controle: os bancos centrais são basicamente instituições nacionais, enquanto o dinheiro é global. E não temos regulação internacional, as instituições de Bretton Woods datam de 80 anos atrás e são impotentes, o BIS (Banco de Compensações Internacionais) apenas dá alguns conselhos e informações sobre derivativos pendentes. A facilidade com que as plataformas financeiras – acho que este é o nome apropriado para essas instituições, já que são essencialmente uma rede de gestão de dinheiro em nuvem – transferem recursos gigantescos no espaço global criou uma falha sistêmica naquilo que antes era um sistema financeiro a serviço do investimento produtivo, transformando nossas poupanças em produção, bens e serviços.

Uma questão essencial é que o sistema de maximização financeira em escala mundial de dinheiro virtual – “cloud-money” (dinheiro em nuvem) é um nome apropriado nos escritos de Yanis Varoufakis – naturalmente transforma a lógica das mais diferentes áreas de atividade econômica². Peter Phillips nos traz uma apresentação excepcionalmente bem organizada da nova estrutura de poder econômico global que resulta dessa financeirização geral, em seu estudo Titans of Capital³. Os interesses financeiros das 10 maiores plataformas globais de gestão de ativos lhes permitem exercer controle sobre as principais plataformas de mídia social (Alphabet, Meta, Amazon e grupos de alta tecnologia em geral), mas também sobre as principais empresas de tabaco, corporações de petróleo e gás, indústria militar e até mesmo redes de prisões privadas.

Um controle similar pelos Titãs é exercido sobre grandes empresas no Brasil, por exemplo, com bancos como Itaú ou Bradesco, empresas de energia, planos de saúde e assim por diante. Essa economia de proprietário ausente, com drenagens internacionais sobre atividades produtivas ou financeiras em todo o mundo, é estruturalmente diferente do capitalismo industrial que conhecíamos, mesmo que o Fórum Econômico Mundial em Davos goste de chamá-lo de Indústria 4.0, significando o mesmo sistema com um passo à frente tecnológico. Não há uma “mão invisível” para regular atividades nessa escala, e o livro de Phillips mostra que os gestores dos principais gigantes financeiros participam simultaneamente do processo de decisão das mais diferentes corporações, gerando políticas globais convergentes.

Quão instável o mundo se tornou, com todas essas riquezas e todas essas tecnologias? Quão frágeis são nossas vidas e a própria natureza neste pequeno planeta. É inescapável que precisamos de um novo Bretton Woods, um Global Green New Deal (Novo Acordo Verde Global) como tem sido chamado, mas parece que temos que esperar até que a catástrofe se aprofunde muito mais para que o mundo crie o impulso político e cultural correspondente para que isso aconteça. Demis Hassabis, ganhador do Nobel, considera que esta revolução digital que estamos vivendo “será 10 vezes maior que a Revolução Industrial e talvez 10 vezes mais rápida”. Mas a política está firmemente presa no século passado. A fratura entre o ritmo tecnológico e a política estagnada está se aprofundando.

A questão básica é que estamos vivendo neste processo acelerado de mudança sistêmica, enquanto nossa capacidade de governança permanece presa no mundo analógico do século passado, nas rivalidades nacionais e na competição destrutiva. O desafio é mobilizar nossas enormes capacidades financeiras, tecnológicas e de rede para nos recolocar nos trilhos. 2050, em termos históricos, é um piscar de olhos⁴.

Trabalho contemporâneo

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A sociedade contemporânea vem vivendo uma verdadeira mutação em todas as áreas e setores, com impactos sobre os setores produtivos, organizações e indivíduos. Nestas transformações cotidianas, motivadas pelo incremento da tecnologia e da inovação, um dos setores mais sensíveis da contemporaneidade é o mundo do trabalho, onde os avanços da tecnologia estão moldando um mundo novo, mais complexo e cheio de desafios e oportunidades.

Especialistas em carreira nos mostram que muitas profissões tendem a desaparecer por completo e, ao mesmo tempo, novas ocupações tendem a ganhar espaço nas organizações, exigindo novas habilidades, novos comportamentos e novos valores. Neste ambiente, marcado por alterações cotidianas, percebemos o crescimento das incertezas, o incremento dos medos e das ansiedades, impulsionando comportamentos extremados e violências generalizadas, além do aumento significativo da depressão e dos suicídios.

Neste ambiente de grandes transformações estruturais, encontramos novas profissões, que exigem novas habilidades e novos comportamentos, onde destacamos especialista em IA e aprendizagem de máquina, especialista em sustentabilidade, analista em inteligência de negócios, analista de segurança da informação, engenharia de Fintech, especialistas em transformação digital, cientistas e analistas de dados, além dos conhecidos youtubers, influenciadores e motoristas de aplicativos, que estão revolucionando a sociedade contemporânea, gerando novas oportunidades e exigindo, da comunidade, a construção de novas estratégias e muita criatividade para empregarem os trabalhadores, evitando que muitos grupos econômicos e sociais fiquem excluídos.

O mundo do trabalho passou por grandes modificações, o século XX foi caracterizado pelos modelos fordista e taylorista, uma sociedade industrial, marcada pela quantidade de trabalhadores, pela disciplina e pelo comando centralizado. No modelo contemporâneo percebemos uma transformação estrutural, os valores são outros, o setor de serviços ganhou espaço da indústria, o setor financeiro, que anteriormente financiava os setores industriais, passou a impor valores, adquirindo empresas e passaram a gerenciar os setores industriais, gerando instabilidades e incertezas, com impactos generalizados sobre o emprego e a empregabilidade, além de exigir da mão-de-obra novas habilidades, novas qualificações e novas capacitações.

A tecnologia contemporânea está alterando estruturalmente as relações trabalhistas, novas ocupações demandam novas habilidades, o desenvolvimento de novas tecnologias e novas formas de comunicação, os relacionamentos profissionais estão em movimento, cada vez mais marcada pelo individualismo e pelo imediatismo que reina na sociedade, onde a competição e a concorrência são as tônicas crescentes da comunidade. Neste cenário de individualismos crescentes, os setores econômicos e produtivos demandam flexibilidades, inteligência emocional, agilidade e empatia, lembrando que muitas destas habilidades demandadas no mundo dos negócios, confrontam cotidianamente com este ambiente de competição e de individualismo exacerbados, mais uma das contradições da sociedade contemporânea.

Neste ambiente, percebemos o crescimento de um sistema que promete liberdade através do desenvolvimento de plataformas e tecnologias digitais mas, ao mesmo tempo, está entregando o controle de algoritmos e transformando o sonho de empreender num verdadeiro pesadelo das jornadas intermináveis, extenuantes e ausência de direitos sociais ou horizontes coletivos, gerando frustrações, endividamentos, ansiedade e depressões constantes. Como diz o filósofo germânico – coreano, Byng Chul Han, na obra A sociedade do cansaço, estamos vivendo a sociedade do desempenho, onde o sonho de ser empresário de si mesmo está se tornando um verdadeiro calvário de endividamento e depressão.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário

A magia da financeirização, por Márcio Pochmann

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Márcio Pochmann – A Terra é Redonda – 14/10/2025

O domínio parasitário das finanças, que esteriliza a economia real em benefício de uma minoria, cavou sepulturas para impérios e ameaça a própria soberania das nações periféricas

A financeirização, entendida como a crescente dominância de agentes, mercados, práticas e narrativas financeiras sobre a economia e a sociedade, tem sido um fenômeno mais evidente na contemporaneidade, embora possua raízes históricas profundas. Trata-se de parte dos ciclos de longa duração do capitalismo que alterna fases de expansão e contração material valorizativa do capital pela produção de mercadorias com a amplificação financeira parasitária dominada pelas finanças em acumulação rentista.

Do ponto de vista histórico, cada ciclo de longa duração tem sido marcado pela existência de um centro dinâmico no interior do sistema capitalista mundial. Assim, por exemplo, a Inglaterra respondeu pela centralidade do ciclo de acumulação de longa duração no período da segunda metade do século XVIII à primeira Guerra Mundial (1914-1918). Após o auge de sua expansão material transcorrido até a Grande Depressão de 1873-1896, a financeirização parasitária terminou marcando o fim do domínio inglês no mundo.

Em seu lugar, um novo ciclo de acumulação centrado nos Estados Unidos percorreu o século XX, cujo auge da expansão material teria se esgotado na década de 1970. Com isso, a financeirização parasitária tendeu a sinalizar cada vez mais o término do domínio mundial centrado nos Estados Unidos.

Em países como o Brasil que se encontra em posição periférica e dependente estrutural do sistema capitalismo mundial, o processo de financeirização adquire contornos especiais. Influência decisiva na sustentação do desenvolvimento diante do bloqueio ao dinamismo produtivo tecnológico, da degeneração da estrutura social, do comprometimento das instituições, entre outras importantes dimensões das esferas pública e privada.

Exemplificação disso encontra-se nos dias de hoje na forma alienante da comunicação dominante a apontar que o problema das finanças públicas no Brasil situa-se nas despesas primárias como saúde, educação e outras. Enquanto o déficit total nas contas públicas em 2025 deve atingir a cerca de 1 trilhão e 40 bilhões de reais, o foco termina sendo os R$ 40 bilhões de despesas primárias.

Dessa forma, os gastos públicos com juros que atingem RS 1 trilhão são escamoteados pela comunicação dominante, enquanto o processo de amplificação financeira parasitária segue praticamente intacto desde o final da década de 1990. Tudo isso porque o avanço das despesas públicas com juros segue enriquecendo o poderoso e minoritário “andar de cima” da população ao passo que a austeridade fiscal voltada aos gastos primários serve mais ao desorganizado e majoritário “andar de baixo” no Brasil profundo.

Em síntese, a dominância da lógica financeira esteriliza recursos públicos com a elevada rentabilidade do setor financeiro e desestimula a produção interna no Brasil por força das altas taxas de juros sobre o endividamento público concomitantemente com o movimento geral da financeirização no centro do capitalismo mundial. Por ser um processo amplo e complexo, suas consequências sobre a decadência nacional têm sido evidentes do período monárquico aos dias de hoje, salvo entre as décadas de 1930 e 1970, quando o Brasil perseguiu o projeto nacional desenvolvimentista.

Quebra da monarquia e República velha

A análise da financeirização no Brasil monárquico e na República velha permite revelar o cenário de constantes desafios econômico-financeiros e sociopolíticos. Por sua posição periférica e dependente estrutural no sistema capitalismo mundial centrado na Inglaterra, o país esteve exposto ao fim do ciclo de acumulação marcado pela expansão financeira parasitária desde a Grande Depressão de 1873-1896.

Em grande medida, as seis décadas de financeirização presente entre os anos de 1870 e 1920 tiveram origem convergente no endividamento público decorrente da Guerra do Paraguai (1864-1870) concomitante com o esgotamento dos cafezais fluminenses. Assim, a expansão financeira na monarquia soldou um conjunto de interesses no “andar de cima” ao reciclar a fortuna do baronato do café em decadência na província do Rio de Janeiro por meio dos títulos públicos que financiavam a dívida pública interna em conexão com banqueiros ingleses.

Também a indenização dos banqueiros na abolição da escravatura procedida pelo maior empréstimo obtido junto a bancos ingleses de todo o período imperial, em 1889, contribuiu para selar o próprio fim da monarquia. Sem conseguir romper com a financeirização herdada do antigo regime, a República Velha avançou fraquejada, pois soldada pelos interesses do antigo e novo baronato cafeicultor, cujo desempenho econômico foi marcado pelo atraso da semi-estagnação na economia primário-exportadora.

Sem alçar uma fase de expansão material que valorizasse suficientemente o capital pela produção de mercadorias, as crises do endividamento prosseguiram diante do descompasso das instituições liberais em relação à realidade social brasileira. Da crise do encilhamento (1890-1881) à política deflacionária ancorada nos empréstimos externos (Funding Loan de 1898) e na defesa da decadente produção de café, seja pelo Convênio de Taubaté (1906), seja pela Caixa de Estabilização (1926), a República Velha terminou também cavando a sua própria sepultura.

Desmonte da Nova República

Surgida na derrota da campanha das Diretas Já, a Nova República buscou se alicerçar na Constituição de 1988 que correspondeu a uma espécie de simbiose entre o ressentimento com o período autoritário e a frágil projeção de futuro. Guardada a devida proporção, parece lembrar a Constituição de 1891 por seu formalismo desconectado da realidade gerada por uma sociedade em mudanças, seja da escravidão para o capitalismo no final do século XIX, seja da industrialização para os serviços hiperconetados da Era Digital desde o final do século XX.

Com isso, a financeirização parasitária emergida da crise da dívida externa passou a moldar a economia e a sociedade desde a década de 1980. A adoção do receituário neoliberal pelo Brasil desde então esteve em sintonia com o fim do ciclo longo de acumulação centrado nos Estados Unidos, marcado pela amplificação financeira sucessora do esgotamento do expansionismo material valorizativo do capital pela produção de mercadorias.

A dominância da lógica financeira, impulsionada por altas taxas de juros e pelo endividamento público, compromete a sustentabilidade do desenvolvimento, bloqueia o dinamismo produtivo tecnológico e produz a degeneração da estrutura social, o enfraquecimento das instituições, as políticas públicas, entre outras dimensões das esferas pública e privada.

A superação dos desafios impostos pela financeirização exige um debate aprofundado e a formulação de um novo projeto nacional que priorize o investimento e a modernização do sistema produtivo, a distribuição da riqueza e constituições de novas instituições comprometidas com o futuro na era digital.

Sem isso, as já quatro décadas que acumulam a dominância financeira paralisante e decadente da nação tenderão a prosseguir. Uma excelente oportunidade para que o seu rompimento ocorra, sendo possível reconstruir outra maioria política em novas bases econômica e social para o segundo quarto do século XXI. Será possível?

Marcio Pochmann, professor titular de economia na Unicamp, é o atual presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Autor, entre outros livros, de Novos horizontes do Brasil na quarta transformação estrutural (Editora da Unicamp).

Referências

ARRIGHI, G. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2003.

BRAGA, J. Financeirização global – O padrão sistêmico de riqueza do capitalismo contemporâneo. In: TAVARES, M.; FIORI, J. Poder e dinheiro: uma economia política da globalização. Petrópolis: Vozes, 1997.

CARNEIRO, R. Financeirização e dinâmica produtiva-tecnológica: uma reflexão. Texto de discussão, 487; IE/Unicamp, 2025.

DOWBOR, L. A era do capital improdutivo. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.

POCHMANN, M. O próximo Brasil. São Paulo: Ideias & Letras, 2025.

SOARES, R. Entre oligarquias. Rio de Janeiro: FGV, 2024.

VIANA, F. Instituições políticas brasileiras. Brasília: Senado Federal, 1999.

As formas contemporâneas de trabalho, por Gustavo Hasselmann

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Gustavo Hasselmann – A Terra é Redonda – 11/10/2025

O mesmo sistema que prometeu liberdade através das plataformas entregou o controle algorítmico total, transformando o sonho do empreendedorismo no pesadelo da jornada interminável sem direitos ou horizonte coletivo

1.

O trabalho é inerente à condição humana. Ele é vital para o homem na vida em sociedade. Ele opera transformações na natureza e na sociedade. Para muitos, impera o adágio popular: o trabalho “dignifica o homem”.

Ao longo de mais de cinco séculos, o trabalho, no ocidente, conviveu com as várias formas de capitalismo: comercial, industrial e financeiro, este último a partir dos anos 70 do século passado.

No capitalismo que vigeu nos 30 anos dourados do ocidente, em que o trabalho se dava, preponderantemente, no chão da fábrica, imperavam os sistemas fordista e taylorista. Principalmente a partir do pós segunda guerra mundial, o trabalho visava a produção em massa de mercadorias, como automóveis, máquinas, eletrodomésticos etc.

Para Michel Foucault, era a época da sociedade disciplinar, em que, nos hospitais, nas escolas, nos presídios, nas fábricas etc., as regras e valores eram impostos de forma cogente em prol do sistema capitalista.

Nesse diapasão, vale citar e transcrever excerto da lavra de Ricardo Antunes: “Se no apogeu do taylorismo -fordismo a força de uma fábrica mensurava-se pelo número de operários – o operário – massa magistralmente representado por Charles Chaplin em tempos modernos – , podemos dizer que, na era da acumulação flexível e da “empresa enxuta”, as empresas que se destacam são aquelas que empregam o menor contingente de força de trabalho, pois com o avanço tecnológico, elas podem aumentar fortemente os seus índices de produtividade”.[1]

Com efeito, nesse período áureo do capitalismo objetivava-se a produção. O sistema financeiro, majoritariamente, estava voltado para financiar a produção em massa. Vigia a regulação do capital e as regras estabelecidas nos acordos de Bretton Woods. O câmbio era fixo e lastreado no dólar e no ouro, o que veio a desaparecer a partir dos anos 70 do século passado, quando o câmbio passou a ser flutuante, com arrimo exclusivamente no dólar.

O filósofo germânico – coreano, Byng Chul Han, em A sociedade do cansaço, assim descreve a passagem da sociedade da produção\disciplinar (período fordista-taylorista ) para a sociedade do desempenho: “A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade do desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais sujeitos da obediência, mas sujeitos de desempenho e produção. São empresários de si mesmos”.[2]

2.

Efetivamente, o trabalho prioritariamente na indústria – com a desregulamentação do capital e o advento das tecnologias, no trabalho e nas fábricas, que geraram um grande desemprego – foi transferido para o setor de serviços e financeiro. Houve um grande processo de desindustrialização, que no Brasil começou a partir dos anos 80 do passado e dura até hoje. O capitalismo produtivo cede espaço à financeirização, leia-se, rentismo, que campeia sob a doutrina neoliberal.

Antonio Negri e Michel Hart – com a saída da hegemonia fabril e o ingresso da predominância do setor de serviços, inclusive digitalizados e plataformizados – empregam o conceito de “fábrica social” para designar estes últimos, onde a produção se entrelaça com as formas de vida no tecido social: “A fim de restabelecer margens de lucro que não podiam mais ser extraídas das fábricas, o capital teve de colocar o terreno social para trabalhar, e o modo de produção teve de ser ainda mais entrelaçado às formas de vida. Enquanto processos industriais automatizados produziam maior número de bens materiais, desenvolveram-se, do lado de fora das fábricas robotizadas, “serviços” produtivos cada vez mais sofisticados e integrados que combinavam tecnologias complexas com ciência fundamental, serviços industriais e serviços humanos. Nessa segunda fase a digitalização tornou-se mais importante que a automação. Com efeito, é essa característica que dissemina por toda a sociedade uma transformação técnica da força de trabalho que já havia se dado na fábrica. Aqui, então, ao fim dessa marcha selvagem, temos a entrada triunfal dos computadores e das redes sociais, que unem a automação das fábricas à digitalização da sociedade, dos modos de produção e das formas de vida: o autômato administra e controla a sociedade por meio de algoritmos”.[3]

Efetivamente, emerge, a partir dos anos 80 do século passado, o trabalho uberizado ou plataformizado, ou melhor, melhor o trabalho na era digital.

Ricardo Antunes, a respeito do trabalho digital, assinala o seguinte: “Uma de suas formulações centrais talvez possa assim ser resumida: em plena era da informatização do trabalho, do mundo maquinal e digital, estamos presenciando o nascimento e ampliação do “cibertariado”, o proletariado que trabalha com informática, com o mundo digital, e que, paralelamente, vivencia uma pragmática moldada cada vez mais pela precarização que muda profundamente a forma de ser do trabalho”.

Com efeito, nesse particular, há que se realçar que o trabalho dos motoristas por aplicativo é por demais precarizado. Eles ganham pouco, trabalham horas intermináveis, sob a direção do aplicativo, têm que custear as despesas de manutenção dos veículos etc. Não têm direitos trabalhistas e previdenciários assegurados.

O governo Lula, para minorar o problema vivenciado por eles, editou o PLP 12\2024, que é muito pífio e inexpressivo no combate a essa exploração, tendo estabelecido, pasmem, o limite de 12 horas para a jornada de trabalho.

De outro lado, nesse diapasão, o STF, contrariando orientação firmada no TST, não vem reconhecendo a relação de emprego entre os motoristas por aplicativo e as empresas de plataforma.

Ademais, esperava-se que o governo Lula 3 revogasse, como ele prometeu em campanha, a reforma trabalhista de Michel Temer, primeiramente, aprofundada no governo Bolsonaro depois. Ela mudou completamente as relações de trabalho no Brasil, aviltando os diretos dos trabalhadores. Criou o trabalho intermitente, em que o trabalhador só recebe o salário quando trabalha e é chamado para tanto, não tendo direitos trabalhistas e previdenciários assegurados.

Concebeu também o trabalho terceirizado, tanto para a atividade meio como para a atividade fim, o que foi chancelado pelo STF. Fez prevalecer o acordado sobre o legislado, em detrimento de direitos anteriormente conquistado, com muito suor, sangue e luta, pela classe trabalhadora. Reduziu a importância tanto do Ministério do Trabalho, como da Justiça do trabalho. Neste último caso, visando reduzir o número de demandas trabalhistas, impôs pesados custos judiciais para os trabalhadores, tais como pagamento de honorários de advogado, custos com perícia etc, etc. De outro lado, dita reforma não baixou o índice de desemprego no país, como prometido pelos Presidentes da República da época, parlamentares de direita e empresários.

3.

Outro aspecto a ser destacado, na esteira do pensamento de Byng Chul Han, é que, na sociedade do desempenho em que vivemos na atualidade reina absoluto o individualismo na vida e no trabalho. O trabalhador, empresário de si mesmo, quer sempre superar o seu concorrente, trabalhando horas intermináveis por dia. Ele também procura “bater metas”.

Com a era digital, ele não tem jornada de trabalho fixa, pois trabalha de forma extenuante dia e noite, através do celular e do computador. Ao mais das vezes, até mesmo nas atividades de entretenimento, ele presta um trabalho adicional e não remunerado para os empresários de plataformas digitais e para as empresas que comercializam produtos e serviços.

Outra forma de trabalho atual, cujo desfecho sobre a sua legalidade ou constitucionalidade pende de julgamento do STF, é a pejotização. Nesta relação laboral os trabalhadores são tratados como empresas, tendo CNPJ e tudo mais. Ao que tudo indica, se o STF reconhecer a validade desse tipo de contratação, assistiremos ao fim do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho.

Desse modo, para arrematar, como o capital precisa do trabalho, e sempre vai precisar, para sobreviver, embora a precarização deste, fazemos votos de que um trabalho mais humanizado, num futuro bem próximo, venha a existir no país e no sul global.

Só que vejo isso não acontecer, nem mesmo nas sociais democracias fortes do ocidente, muito menos no sul global. Antevejo, pois, como utopia, o advento do socialismo como solução para esses e outros problemas vivenciados pela humanidade nessa quadra.

Gustavo Hasselmann é procurador do município de Salvador.

Notas

[1] Ricardo Antunes. Capitalismo pandêmico, editora Boitempo, pag. 94.

[2] Byng Chul Han. A sociedade do cansaço, editora Vozes, pag. 23.

[3] Antonio Negri e Michel Hart. A organização multitudinária do comum. São Paulo, Politeia, 2018, p. 152.

[4] Ricardo Antunes, Capitalismo pandêmico, pag. 125.

As corporações querem professores-robôs, por Leher e Moreira da Silva

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Está em curso nova fase de precarização dos docentes. Ensino à distância, via plataformas, permitiu exploração massiva: turmas de centenas de alunos, controle algorítmico e roubo de tempo livre. Leia 1º texto de série sobre redução da jornada

Robert Leher e Amanda Moreira da Silva – OUTRAS PALAVRAS – 09/10/2025

Em parceria com o Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit) da Unicamp, Outras Palavras inicia uma série de textos que abordará a redução da jornada de trabalho no Brasil. Essa agenda histórica ganhou novo fôlego no ano passado, quando trabalhadores foram às ruas, em diferentes ocasiões, com um lema contundente: “Há vida além do trabalho”. Ela mostrou enorme potencial de mobilização – não só de trabalhadores, mas também de suas famílias – e deu uma chacoalhada nos sindicatos e partidos progressistas, instando-os a se renovar, a reencantar o mundo do trabalho diante da precarização – mais que de empregos, da vida.  Dois exemplos concretos ilustram essa força: a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da deputada Erika Hilton (Psol-SP) e o recente plebiscito popular pelo fim da escala 6×1, que reuniu mais de 1,5 milhão de assinaturas, evidenciando o forte apelo da causa.

Este artigo de abertura da série, cujo título original é Mercantilização financeirizada da educação, ensino superior a distância e jornadas de trabalho jamais vistas, expõe a engrenagem perversa da financeirização da educação e seus impactos sobre o trabalho docente no Ensino Superior privado. O ponto central é a explosão do ensino a distância (EaD) a partir de 2017, que ocorreu paralelamente à redução das matrículas presenciais. Trata-se de um lucrativo projeto de massificação do EaD, conduzido por corporações educacionais listadas na Bolsa de Valores e com ramificações em todo o país.

Os autores revelam dados que ilustram essa disparidade: professores, sem autonomia nas trocas e construção de saberes com os alunos, são reféns das plataformas e “enquanto nos cursos presenciais das instituições públicas a relação é de 12 estudantes por docente, nas privadas presenciais salta para 1:52 e, no EaD privado, chega a 1:168”. Nesse contexto, a “hora-aula” transformou-se na unidade básica de uma exploração sem precedentes. O trabalho, fragmentado por plataformas digitais, nunca tem fim. O controle algorítmico e a lógica do “tempo abstrato” invadem a vida privada, forjando uma subjetividade neoliberal digitalizada. Diante disso, a luta clássica pela redução da jornada de trabalho depara-se com uma nova realidade: a do cronômetro do capital que nunca para. (Rôney Rodrigues)

Introdução

O artigo examina o trabalho docente no Ensino Superior privado-mercantil, destacando o trabalho nos cursos a distância, ensino digital e ensino virtual, todos eles profundamente afetados pela intensificação e pela expropriação do trabalho. Atuam no Ensino Superior 328 mil docentes que atendem aproximadamente dez milhões de estudantes, sendo 79,3% nas instituições privadas. Entretanto, a rede pública, com apenas 20,7% das matrículas, possui 54% dos docentes em atividade no Ensino Superior, conforme o Censo do Ensino Superior de 2023 (Brasil, 2024). Em virtude das singularidades da forma de intensificação do tempo de trabalho na educação mercantilizada e financeirizada, notadamente na modalidade de cursos a distância, o tema é crucial para o debate político da redução da jornada de trabalho.

Em virtude da escala da intensificação do tempo de exploração do trabalho nas corporações educacionais, a luta pelo fim da jornada 6X1 e a discussão relativa ao tempo de trabalho assumem importância fulcral. Conhecer e explicar a exacerbação da jornada laboral no setor da Educação Superior privada-mercantil permite aprofundar a discussão sobre a jornada de trabalho, especialmente no contexto da plataformização e da financeirização da educação, tema que abrange, a rigor, toda a Educação. Este segmento de trabalhadores passa a vivenciar jornadas reais de trabalho jamais vistas na educação.

No caso do Ensino Superior, especialmente o privado-mercantil, os processos de exploração incidem diretamente sobre as condições de controle do tempo pelo trabalhador. A remuneração docente não se dá apenas pelos contratos de trabalho, mas, também, como em outras categorias, por meio de tarefas realizadas, no caso, aulas, correções de estudos, orientações, elaboração de materiais pedagógicos para uso (e incorporação sub-remunerada) nos sistemas de ensino e nas plataformas de trabalho das corporações. Desse modo, a consigna “existe vida após o trabalho” que orienta as lutas pelo fim da escala 6 x 1 não pode deixar de abarcar o labor de uma das categorias mais exploradas e que possuem as jornadas mais intensificadas, como a dos docentes das instituições privadas mercantis, especialmente aqueles que atuam na EaD. Como em milhões de outros trabalhadores, o tempo de trabalho não é expresso e regulado apenas na forma de jornada diária e semanal de trabalho.

A rápida expansão, nos últimos 15 anos, da economia de plataformas e do trabalho digital tem gerado desafios para a compreensão do mundo do trabalho no setor da educação mercantilizada. Nesse campo há um esforço crescente de pesquisas que têm contribuído para compreender o funcionamento das plataformas digitais e identificar suas conexões com as relações de trabalho, como as de Abílio, Amorim e Grohmann (2021); Antunes (2023); Fuchs (2014); Huws (2014); Machado e Zanoni (2022), Sagrado, Da Matta e Gil (2023), Scholz (2016).

A plataformização do trabalho e, particularmente, do trabalho docente, se caracteriza pela forte heterogeneidade, combinando, de diferentes formas, gestão algorítmica, intensificação, gamificação e controle de todo processo pedagógico. É notório o processo de precarização do trabalho docente no Ensino Superior e na Educação Básica (Silva, 2020). A plataformização do trabalho docente reproduz com novas características a heteronomia cultural própria do “capitalismo dependente” (Fernandes, 1981) que tem como bases as expropriações e brutais níveis de exploração, tema abordado por Marini (2000) em sua discussão sobre a “superexploração do trabalho”.

A reconfiguração do trabalho docente impulsionada pelas corporações educacionais estruturadas como sociedades anônimas e com ações nas bolsas de valores possui como foco principal a jornada de trabalho, combinando a sua intensificação (Dal Rosso, 2008) por meio da subordinação real do trabalho ao capital e por novas formas de controle do tempo (Thompson, 2011) dos professores através das plataformas digitais. A introdução dessas tecnologias intensifica a carga de trabalho docente e reforça os mecanismos de controle externo e, o que é crucial, de autocontrole interno contidos nas tecnologias digitais gerando uma “subjetividade neoliberal digitalizada” (Sagrado, Da Matta, Gil, 2023). Por isso, a problemática do controle do tempo de trabalho pela classe trabalhadora compõe a nervura central do presente artigo.

O artigo dedica uma seção para caracterizar o tema do tempo de trabalho como o fulcro das lutas de classes, abordando, em diálogo com E. P. Thompson, o significado das lutas pelo tempo; a seguir, caracteriza a relação entre a plataformização e a financeirização diante da mercantilização financeirizada na EaD, na terceira seção, a caracterização da intensificação da jornada em patamar inédito na História da Educação, realçando o problema da expropriação do trabalho. Nas conclusões, a partir da análise realizada, foram elaboradas proposições para fortalecer a luta contra a ofensiva do capital sobre o tempo que impossibilita a existência de uma vida plena de sentido imbricada aos processos de trabalho.

Tempo de trabalho, tempo a serviço da exploração, tempo como luta de classes na Educação

Leher (1998) ressalta que mesmo antes de Marx ter analisado o segredo da mercadoria, inúmeros movimentos proletários já haviam compreendido que, por trás da instituição da jornada de trabalho, estava uma forma do patrão aumentar a exploração do trabalho. Como assinalado por Thompson (2011), a luta pelo tempo está na própria origem da classe trabalhadora como classe que se forja em luta contra a burguesia. O autor faz um fascinante estudo do processo de internalização do tempo por parte das classes operárias inglesas, no qual argumenta que, nas sociedades camponesas, de pescadores e nas pequenas indústrias, o tempo era orientado para tarefas que, em grande parte, possuíam sentido como valores de uso. Este processo – que nada tem de homogêneo – levou, historicamente, após muitos embates e lutas, os trabalhadores pobres a interiorizar uma determinada disciplina de tempo.

Contudo, na Inglaterra, o país de capitalismo mais avançado no Século XIX, os trabalhadores resistiram à imposição do tempo burguês. A luta pelo dia livre “Saint Monday” motivou embates memoráveis e, como expresso na luta pelo fim da Jornada 6×1 segue impulsionando no Brasil as lutas do presente. Hobsbawm (1987) registra que a primeira manifestação internacional dos trabalhadores teve o tempo como bandeira: “O Primeiro de Maio foi planejado como uma única manifestação simultânea internacional pela jornada legal de oito horas de trabalho” (Hobsbawn, 1987, p. 112 apud Leher, 1998). O feriado do Dia do Trabalhador foi estabelecido pela luta dos trabalhadores: foi através da participação pública que o 1o de Maio se tornou um feriado tanto no sentido ritual, quanto no sentido festivo.

Apesar da resistência, os capitalistas tiveram vitórias expressivas. Enquanto as primeiras gerações de trabalhadores ingleses lutaram contra o relógio, isto é, contra as horas (de trabalho) em si mesmas, as gerações seguintes, admitindo o controle da jornada de trabalho, lutaram pela redução legal das horas de trabalho. Com isso, assinala Thompson (2011), a classe operária inglesa expressou a sua aceitação da organização da sociedade em termos de tempo abstrato (Leher, 1998), porém inserindo-o nas lutas de classes, posição discutida de modo original por Marx na Associação Internacional dos Trabalhadores. Como demonstrado empírica e teoricamente por Marx (2014) e Engels (2010), as lutas contra o aumento das jornadas, a intensificação e a expropriação do trabalho conformam uma situação de sofrimento laboral das classes trabalhadoras e, por conseguinte, devem compor uma nervura axial da estratégia de luta contra o morticínio do capital.

O tempo abstrato, precisamente o tempo de exploração do trabalho, possui imensas particularidades na educação. Nas lutas históricas das classes trabalhadoras, a garantia do acesso real das crianças, dos jovens e dos adultos à educação foi compreendida como uma dimensão da estratégia de ‘fazimento’ das classes trabalhadoras. E o trabalho de ensinar, nesses contextos, não se confunde com o tempo sob o jugo do capital. Para além do debate entre trabalho produtivo e improdutivo no âmbito do serviço público, em períodos em que as escolas estão auto-organizadas e dirigidas por educadores e estudantes a vivência do tempo é outra. Em processos revolucionários da segunda metade do Século XX, como a Revolução Cubana (1959), ou a Revolução dos Cravos (1974), a questão da jornada de trabalho docente foi percebida e mensurada pelos trabalhadores de modo totalmente distinto do tempo imposto nas fábricas estruturadas com base no maquinismo. A possibilidade de compartilhar experiências de educação de crianças, jovens e adultos, assim como os círculos de discussões e as práticas de teatro, música etc., tornavam o tempo na escola uma experiência plena de sentido (Varela et Al., 2022).

Essas experiências seguem práticas como as das escolas do campo do MST, em que o tempo igualmente não é uma forma de subordinação, intensificação e controle do trabalho, mas de compromisso com a Educação Popular. O trabalho não alienado não pode ser mensurado pelo cronômetro. No entanto, o trabalho não alienado é compreendido pelo estado maior da burguesia como um trabalho subversivo que precisa ser suprimido. Por isso, sempre as políticas que objetivam extirpar a soberania popular sobre os assuntos públicos incidem sobre o controle do tempo.

Com efeito, as ações da burguesia se deram no sentido de impor outra lógica de trabalho nas escolas, objetivando torná-las instituições afastadas do controle e da soberania popular. O próprio estado maior do capital logo compreendeu que o intento dos trabalhadores, expressos originalmente na Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), de que a defesa da Escola Pública não equivale a nomear o Estado (e os governos) como educadores do povo, levaria a uma perda dos meios de subordinação da educação ao capital. Por isso, a expropriação do conhecimento e a intensificação do trabalho docente tornaram-se objetivos estratégicos. No período de ascenso do neoliberalismo uma das manifestações mais explícitas desse propósito do capital pode ser encontrada na proposição de Labarca, consultor da CEPAL no contexto de implantação da neoliberalização da educação pública latino-americana nos anos 1990:

Os docentes deixam de ser os principais depositários do conhecimento e passam a ser consultores metodológicos e animadores de grupos de trabalho. Esta estratégia obriga a reformular os objetivos da educação. O desenvolvimento de competências-chave […] substitui a sólida formação disciplinar até então visada. O uso de novas tecnologias educativas leva ao apagamento dos limites entre as disciplinas, redefinindo ao mesmo tempo a função, a formação e o aperfeiçoamento dos docentes (Labarca, 1995, p. 175).

O processo de expropriação do conhecimento dos docentes é indissociável das contrarreformas que objetivam impor uma nova escala de subordinação real do trabalho ao capital, o que requer mudanças na composição orgânica do capital, via-de-regra pela exacerbação das tecnologias. E será por esta via que as corporações educacionais financeirizadas irão impor uma nova ordem de grandeza na escala da exploração do trabalho dos docentes que atuam na EaD.

Conforme é possível depreender da análise dos Censos do Ensino Superior do INEP, o crescimento exponencial das matrículas em EaD entre 2017 e 2023 é proporcional ao decréscimo das matrículas presenciais, o que confirma a opção do setor privado-mercantil pela massificação por meio desta modalidade. Na segunda coluna fica evidente que a expansão se dá no setor privado, liderada pelas corporações (Bielschowsky, 2020). O que frequentemente não é observado é o fato de que o crescimento dos ingressantes, matrículas e cursos na modalidade EaD das corporações não foi acompanhado pelo crescimento do número de professores. Em 2017, ingressaram 1,17 milhão de estudantes, em 2,1 mil cursos (o que já indicava a amplitude de tipos de cursos) somando então 1,8 milhão de estudantes; em 2023, ingressaram 2,94 milhões apenas nas instituições com fins lucrativos, agora em 10,5 mil cursos, totalizando 4,26 milhões de matrículas a maioria delas nas dez maiores corporações. Neste período, os docentes do setor privado (incluindo as ditas sem fins lucrativos) foram substancialmente reduzidos, passando de 186 mil (2017) para 150 mil (2023), situação agravada na modalidade a distância.

Enquanto nos cursos presenciais das instituições públicas o número de estudantes por docente é de 1:12, nas privadas presenciais é de 1:52 e nas privadas em EaD de 1:168. Analisando mais detidamente a intensificação do trabalho nas maiores corporações financeirizadas, é necessário destacar uma instituição privada-mercantil que oferta seus cursos perto de 100% em EaD. Esta corporação, não nomeada nos dados do Censo do Ensino Superior de 2023 (Brasil, 2024) possui 709 mil estudantes e escassíssimos 326 docentes, o que corresponde a 1 docente para 2,2 mil estudantes; outra instituição, também basicamente a distância, possui 771 mil estudantes (764 mil a distância) e igualmente irrisórios 524 docentes. Uma grande instituição pública, por sua vez, possui 62 mil estudantes, todos presenciais, e 5.597 professores (Brasil, 2024). O panorama do trabalho nas corporações que atuam na modalidade de cursos a distância é de inédita intensificação da jornada de trabalho, conformando um quadro adoecedor. Não pode haver dúvida de que a escala da exploração foi alterada.

Relação entre a plataformização e a financeirização na educação superior privada-mercantil

A rápida expansão das plataformas digitais nos holdings educacionais é impulsionada por uma lógica de hiperprodutividade para a maximização do lucro característica do capitalismo de hoje. A dinâmica dos circuitos capital, comércio de dinheiro e processos de extração de Mais-Valor foi redimensionada, e está transformando radicalmente o trabalho docente, aumentando sua jornada regulada e, ainda mais, o tempo de trabalho efetivamente realizado. Ademais, a mudança na composição orgânica gera novas formas de controle algorítmico, por meio de descritores de competência elaborados em conformidade com a pedagogia do capital. Essa combinação de fatores reconfigura a jornada de trabalho dos professores e está em conexão com a intrínseca relação entre a plataformização do trabalho no setor da educação superior privada-mercantil e o processo de financeirização da economia, exacerbando, em novos patamares, a exploração efetiva do trabalho.

A plataformização é, ao mesmo tempo, materialização e consequência de um processo histórico que mistura capitalismo rentista, ideologia do Vale do Silício, extração contínua de dados e gestão neoliberal. Uma das bases está na crescente responsabilização individual dos trabalhadores por tudo que envolve o trabalho, circunstância que Wendy Brown chama de “cidadania sacrificial”. Assim, os trabalhadores são obrigados a fazer a gestão das próprias sobrevivências com toda a sorte de vulnerabilidades, tendo de escutar que isso é um “privilégio”. Já os dados e metadados transformados em capital, somados à convergência de capital, auxiliam a dar forma às distintas possibilidades de extração do valor das plataformas, dependentes das mais variadas configurações de trabalho vivo (Grohmann, 2021, p. 14).

A plataformização é uma noção em movimento que compartilha um sentido comum de precariedade do trabalho e de triunfo de um modelo de negócio assimétrico, típico do capitalismo financeiro e com formas renovadas de exploração do trabalho (Fuchs, 2014; Huws, 2014; Scholz, 2016), como informalização, baixas remunerações, intensificação do trabalho, perda da identificação e insegurança generalizada para o trabalhador e generalização do modo de vida periférico (Abílio, 2020). Essas plataformas são catalisadoras das tendências e processos de transformações no mundo do trabalho, das quais derivam novas configurações organizacionais, novos tipos de controle, subordinação e terceirização do trabalho, e que também se associam às políticas neoliberais e ao processo de financeirização.

As plataformas podem também ter o poder de influenciar ou estipular diferentes aspectos do trabalho, seja por meio de regras explícitas ou por meio de estímulos e desestímulos via algoritmos – que possuem objetivos bem definidos voltados à otimização da plataforma para ganhar participação no mercado e/ou voltados à maximização do lucro. Podem fazer parte desses aspectos a remuneração (valores e condições), a jornada de trabalho (horas e horário), o modo de realização do trabalho, o modo de relação com as partes envolvidas, a forma de direcionamento do trabalho, a localidade de onde o trabalho deve ser realizada, o nível de liberdade para recusa, os sistemas de avaliação, entre outros (Machado e Zanoni, 2022, p. 57).

Ludmila Abílio (2020) argumenta que compreender as plataformas requer analisar suas inter-relações com a financeirização, que é um elemento central na compreensão da lógica por trás da expansão das plataformas digitais de trabalho, influenciando as estratégias das empresas, a organização do trabalho e as condições para os trabalhadores docentes que atuam nesse novo cenário.

Aspectos da realidade do trabalho intensificado na EaD

A base principal da exploração exacerbada e da intensificação do trabalho dos docentes que atuam em EaD é o regime de hora-aula, retomando, em novos padrões, as relações precárias de trabalho no setor mercantil. Em uma série de reportagens de autoria de Domenici, a Agência Pública mergulhou na situação laboral dos trabalhadores da Laureate, notadamente dos que atuavam em cursos de EaD. Os depoimentos de docentes com nomes fictícios, explicita a dura realidade do trabalho nessas corporações: “A palavra que melhor define meu momento é desespero”, conta Horácio*, professor da Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo, do grupo Laureate, referindo-se à redução de 75% das suas horas de trabalho no atual semestre letivo, situação dramática considerando ser seu único emprego. Não há salário, apenas tarefas, no caso, horas-aula. Enzo*, professor de outra universidade do grupo Laureate, a FMU, passou de 21 horas semanais no último semestre para apenas 3 horas. Ele diz que a maioria dos professores está nessa situação. “Nós estamos recebendo em média R$500,00 por mês.” Muitos docentes foram informados da demissão por um pop-up na tela do computador, ao acessarem o sistema.

Nesse quadro, o sofrimento laboral e o estresse são evidentemente exacerbados. Cabe registrar que o estudo das condições laborais dos trabalhadores em EaD é dificultada pela individualização das tarefas demandadas pela corporação e pelo assédio que impede a presença de sindicatos de professores nessas organizações. Em virtude da relação entre o número de estudantes e o de docentes, que, nessas instituições podem chegar a 2,2 mil estudantes por docente, a Laureate instaurou robôs para corrigir os trabalhos dos estudantes sem que estes soubessem da situação (Domenici, 2020a). Mesmo nas aulas síncronas, as turmas normalmente possuem 250 a 350 estudantes, inviabilizando as interações ensino e aprendizagem. Um dos principais articuladores das denúncias sobre as condições de trabalho, Gabriel Teixeira, organizador da Rede de Educadores do Ensino Superior em Luta, destaca que eles criaram uma Plataforma de Apoio Psicológico para Profissionais da Educação e receberam 300 inscrições em apenas cinco horas (Domenici, 2020b). Conforme Gemelli e Closs (2023), o principal indicador de precarização para os entrevistados, aferido por um survey realizado pelos autores, é a contratação com jornada ou definição de horas-aula muito abaixo das tarefas realizadas, corroborando a existência de intensificação do trabalho.

Esse cenário apresentado tende a se agravar com a complexificação da Inteligência Artificial. Funções como atendimento aos alunos por meio de monitoria ou tutoria nos polos de EaD, funções já altamente exploradas, podem ser amplamente substituídas por tutorias exclusivamente virtuais (Júnior e Schlesener, 2024).

“Os últimos avanços da Khan Academy3, incluem o ChatGPT-4 da OpenAI, que criou a figura do Khanmigo: um tutor de IA que conversa com estudantes em linguagem natural, recriando a experiência de um(a) professor(a) humano(a)” (Sagrado, Da Matta e Gil, 2023, p. 87, Tradução Nossa). Essas plataformas permitem também a implementação de assistentes que atuam junto aos professores, sob a alegação de facilitar o trabalho docente.

Delegar às plataformas, por meio de assistentes virtuais, atividades como a sumarização de pontos de um texto para serem usados em aulas, elaboração de sínteses, criação de questões para trabalhos e avaliações, sugestões de temas e exemplos, correção de atividades e, como já mencionado anteriormente, o atendimento e interação com os alunos, podem endossar argumentos para reduzir o já escasso tempo de trabalho remunerado destinado aos professores para atividades fora da sala de aula (Júnior e Schlesener, 2024, p. 150).

Inexiste publicidade sobre as condições de trabalho nos 47 mil polos de EaD, 46% deles terceirizados, ou seja, desvinculados das instituições que formalmente os instauraram. Todo um complexo de relações de trabalho precarizadas move a reprodução do capital nessas organizações que, simultaneamente, promovem um apartheid formativo, afetando, inclusive, os formadores dos novos docentes, propagando a segregação da formação dos 47 milhões de crianças e jovens que cursam a Educação Básica.

Considerações finais

Diante da mudança na composição orgânica do capital, do mercado de ações, da dissociação entre propriedade do capital e a direção dos negócios e, ainda, da conversão dos grupos educacionais em sociedades anônimas, há um redimensionamento, em níveis inéditos, da jornada de trabalho dos professores. A intensificação do trabalho no âmbito da jornada regulada e remunerada envolve estratégias sutis e menos visíveis de exploração, como o número de estudantes com os quais o sujeito docente trabalha que, como visto, pode ser mais de 160 vezes a razão encontrada nos cursos presenciais das instituições públicas.

A necessária consigna “Pelo fim da jornada 6X1” que consubstancia a Proposta de Emenda à Constituição – PEC no 8/2025 reduz a jornada semanal para 36h a serem distribuídas de modo a assegurar três dias de descanso. Entretanto, será necessário buscar formas de coibir a intensificação do trabalho “dentro da jornada regular”, pois, sem isso, os três dias de descanso seguirão sendo três dias de trabalho adicional não remunerado – afinal, um docente plataformizado que possui centenas e até milhares de estudantes dificilmente poderá ignorar demandas legítimas dos estudantes por um mínimo de conexão com seus professores. Será necessário incorporar na regulamentação da referida PEC o problema dos precarizados plataformizados. Os milhares de tutores e monitores, grande parte deles terceirizados, que atuam nos polos e mesmo no atendimento cotidiano aos cinco milhões de estudantes que estudam na modalidade EaD, com a nova legislação poderão ter uma referência de direito à uma vida fora do trabalho alienado e explorado, o que favorece a organização e as lutas. No entanto, como não se trata do tempo linear da jornada de trabalho, mas de uma inteira mudança no manejo do tempo pelo capital, a resistência e as lutas requerem um ambiente de crítica às formas de exploração no âmbito das plataformas e dos sistemas de ensino. O estranhamento dessas formas sub-reptícias de exploração é estratégico e somente ganhará força política nas lutas de classes se forem movimentos de amplas frações das classes trabalhadoras igualmente expropriadas e exploradas.

Conforme destacado, a primeira manifestação internacional dos trabalhadores teve o tempo como bandeira, um aspecto que nunca saiu de cena. No Século XXI, a luta pela abolição da escala 6×1 no Brasil unificou de modo original segmentos expressivos da classe trabalhadora, ganhou amplo apoio da sociedade e se tornou um objetivo central do Primeiro de Maio de 2025, que reuniu milhares de pessoas nas ruas em torno da pauta. Além disso, dias antes também houve uma importante manifestação, a greve nacional dos entregadores, conhecido como o “breque dos apps”, caracterizada como a maior mobilização nacional dos entregadores desde 2020. De fato, em 2020, pela primeira vez, esses trabalhadores fizeram uma greve contra as condições de trabalho impostas pelas plataformas. Partindo destes exemplos recentes é possível propugnar que há movimentos originais surgindo a partir das novas facetas da superexploração, incluindo a criação de sindicatos e associações que representam os trabalhadores mais precarizados.

Está evidente que é necessário ousadia estratégica para retomar a constituição de organizações autônomas dos trabalhadores, com pautas que sejam capazes de unificar as lutas em curso nos movimentos contestatórios. Afinal, a história é, de distintas formas, a história da luta de classes. As possibilidades de resistência estão abertas no Século XXI. O trabalho é sempre um elemento vivo e o tempo condensa os grandes embates e lutas da sociedade, gerando conflitos e oposições permanentes.

O contexto atual, marcado, entre outros aspectos, pela ampliação das formas de contratação precárias, pelas tentativas de esfacelamento dos coletivos de lutas e pelas políticas de cerceamento à liberdade de cátedra das professoras e professores nas instituições educacionais, exigem amplo debate, permanente reflexão e resistências em direção à defesa dos direitos sociais que, no capitalismo dependente, necessitam ser fortemente universalizados Urge, no Brasil, lutas pela desmercantilização radical da Educação. Isso requer urgentemente proibir a massificação do Ensino Superior a distância, tema que deve ser tratado como exceção para situações específicas; é imperioso proibir grupos educacionais com a participação de fundos de investimentos, organizados como sociedades anônimas e com ações nas bolsas; as lutas precisam combater o uso do fundo público que alavancou esses holdings, assegurando o princípio de verbas públicas exclusivamente para as instituições públicas. A partir dessas bases, articular a luta em prol da consigna “existe vida após o trabalho”, assegurando, em todo país, nas instituições públicas e privadas, da Educação Básica e da Educação Superior, o regime de dedicação exclusiva como padrão básico para o exercício do Magistério, objetivando forjar uma educação a altura dos desafios do tempo histórico.

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Brasil precisa descobrir os assassinatos, por Luiz Francisco Carvalho Filho

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Luiz Francisco Carvalho Filho, Advogado criminal, é autor de “Newton” e “Nada mais foi dito nem perguntado”

Folha de São Paulo, 11/10/2025

São mais de 44 mil assassinatos, o mais grave dos crimes, em 2024. O número está em queda desde pelo menos 2012, mas não há motivo para comemorar. O problema brasileiro é gigantesco.

Monitoramento do Instituto da Paz registra uma média estável, entre 35% e 44%, de casos esclarecidos nos últimos nove anos. A média mundial é 63%.

A divulgação da pesquisa “Onde Mora a Impunidade” (em 2023, 36% dos homicídios foram esclarecidos) coincidiu com mais um intrigante assassinato em novelinha da Globo, e não faltaram referências. Quem matou Odete Roitman? “Na vida real”, diz o Sou da Paz, “as chances de essa pergunta ser respondida são bem pequenas”.

O desfecho da trama sem a identificação do autor e do motivo do crime poderia frustrar os telespectadores, mas não estaria distante da realidade.

Matar premeditadamente sempre foi complexo. Antigamente, locais ermos. Agora, lugares sem vigilância de smart cam. A esperteza sempre foi capaz de proteger assassinos, transferir culpas, incriminar falsamente bandidos ou inocentes, confundir autoridades. Com a inteligência artificial, a capacidade de enganar e despistar parece infinita.

O impacto do crime de morte no meio social é dramático. O assassinato é instrumento de poder no âmbito do crime organizado. Assim como o sentimento de impunidade, o efeito colateral do homicídio praticado por agentes policiais (6.243 em 2024) corrói gravemente a credibilidade do poder público.

Sucateamento da Polícia Civil por governadores de todos as linhas ideológicas, despreparo dos agentes, corrupção, falta de vontade política, falta de meios e recursos, falta de inteligência, falta de acesso a banco de dados, desrespeito a protocolos, ineficiência processual, tudo ajuda a explicar os números desalentadores.

O Atlas da Violência revela que entre 2013 e 2023 mais de 135 mil mortes não tiveram a intencionalidade identificada. Os “homicídios ocultos” nas estatísticas proliferam em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia —responsáveis por 66,4% das chamadas MVCI (Mortes Violentas por Causa Indeterminada).

O Brasil ainda não tem um indicador nacional de esclarecimento de homicídios. O Sou da Paz criou o seu indicador para estimular a criação de uma métrica oficial. Os dados que recolhe do Ministério Público e dos Tribunais de Justiça, via Lei de Acesso à Informação, afetados pela falta de padronização, são incompletos e insuficientes, sobretudo em relação a marcadores de gênero, raça e faixa etária de vítimas.

O indicador nacional de esclarecimento de homicídio é ferramenta inestimável para o conhecimento da realidade e para políticas de prevenção e punição de atentados que atingem a vida de famílias e comunidades.

O recente crime contra Luiz Fernando Pacheco, advogado querido e notável, é uma exceção porque, filmados os suspeitos, identificados por reconhecimento facial, a repercussão do caso faz a polícia trabalhar.

O sentimento de segurança conspira contra a privacidade, a intimidade, a liberdade de ir e de estar. Se a erosão dos direitos da personalidade é irreversível, retirar o manto escuro que encobre assassinatos é uma contrapartida obrigatória para o espírito de vigilância extrema que se instala em nossas cidades.

Como surge o indivíduo fascista? por Michel Aires de Souza Dias

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Michel Aires de Souza Dias – A Terra é Redonda – 09/10/2025

A personalidade autoritária floresce onde o eu é fraco e a experiência formativa, deteriorada. Mais que uma patologia individual, é o resultado previsível de uma sociedade que produz sujeitos incapazes de resistir às promessas de poder e pertencimento

1.

Os estudos de Theodor Adorno, na década de 1940, sobre a personalidade autoritária continuam atuais, pois nos oferecem instrumentos teóricos para refletirmos sobre o advento de regimes autoritários nos dias de hoje.

Ao chegar aos Estados Unidos, os frankfurtianos ficaram espantados com o antissemitismo daquele país. Eles descobriram que o fascismo não se restringia ao contexto histórico e político da Europa, não se tratava de um fenômeno isolado, mas estava presente de forma latente na estrutura psíquica dos indivíduos, em uma grande parcela da população norte-americana.

Como observou Costa (2019), ao se exilarem nos Estados Unidos, os pensadores alemães se depararam com um grande preconceito contra judeus, que correspondiam a 3,5% da população nacional. Tratava-se de uma grande contradição para um país que se orgulhava da liberdade e dos princípios democráticos, mas que convivia com um enorme preconceito racial. Essa experiência culminou na seguinte indagação: seria possível um fenômeno análogo ao nazifascismo em um país que se diz democrático, como os Estados Unidos?

O livro A personalidade autoritária é considerado um clássico da psicologia social. Foi um trabalho interdisciplinar, dirigido pela equipe da Universidade de Berkeley, fundamentado em pesquisas empíricas nos Estados Unidos, que usou escalas de atitudes, entrevistas e testes projetivos. Todos esses instrumentos foram usados ao lado de uma teoria social e a uma teoria do inconsciente, procurando entender a psicologia do homem autoritário.

A grande preocupação foi com os indivíduos potencialmente fascistas, que possuíam certa estrutura de personalidade, tornando-se suscetíveis à propaganda antidemocrática. Os pesquisadores descobriram que os indivíduos que apresentam extrema suscetibilidade à propaganda autoritária possuíam características em comum, que formavam uma síndrome. A partir disso foi elaborada uma escala denominada escala F, que buscou avaliar o preconceito etnocêntrico e as disposições latentes, que tornam uma pessoa inclinada ao caráter autoritário.

Nove traços de personalidade mais comuns foram vistos como autoritários: convencionalismo; submissão acrítica; agressividade autoritária; destruição e cinismo; poder e rudeza; superstição e estereotipia; exteriorização; projeção; e obsessão com a sexualidade (ADORNO, 2019).

As pesquisas feitas nos Estados Unidos mostraram que, em alguns indivíduos, o antissemitismo formava um padrão de comportamento antidemocrático. Não se tratava apenas de características psíquicas. Para os pesquisadores, os preconceitos racistas têm uma origem socialmente determinada. Ao serem expostos a determinadas condições sociais, alguns indivíduos responderiam de forma preconceituosa. Desse modo, os estudos encontraram um tipo antropológico autoritário, com um padrão psicológico, determinado por certas condições sociais objetivas (COSTA, 2019).

Como o próprio Theodor Adorno aponta: “Estamos convencidos de que a fonte última do preconceito deve ser buscada em fatores sociais incomparavelmente mais fortes que a ‘psique’ de qualquer indivíduo envolvido” (ADORNO, 2021, p. 352). Significa, portanto, que a psicologia do indivíduo não pode ser hipostasiada, uma vez que os aspectos sociais são fundamentais para a compreensão do caráter autoritário. As convicções econômicas, políticas e sociais de um indivíduo fascista formam um padrão amplo e coerente, desenvolvendo um tipo de mentalidade específica, que expressa certas tendências preconceituosas de sua personalidade.

2.

O que é bastante relevante nas descobertas de Theodor Adorno é que, mesmo com o fim dos regimes totalitários na Europa, os pressupostos sociais objetivos que produziram o nazifascismo ainda estavam presentes. Desse modo, a personalidade fascista não pode ser compreendida apenas como um fenômeno circunscrito a um período histórico particular, mas deve, antes, ser entendida a partir da ordem e organização econômica da realidade, que transformam as pessoas em átomos sociais dessubjetivados.

A superioridade do aparato técnico e econômico exerce enorme pressão sobre os indivíduos. Para sobreviver, eles precisam se adaptar e aceitar as coerções impostas pela realidade. Como Theodor Adorno (1995) avalia, personalidades com características autoritárias, de modo geral, se identificam com instâncias de poder, independentemente de seu conteúdo. Os indivíduos carregam consigo uma identidade fragilizada, que as leva a se identificar com toda espécie de coletivo.

No capitalismo avançado, as pessoas se tornaram objetos de controle, organização e coordenação em larga escala, sendo determinadas por um grande aparato técnico e burocrático. Desse modo, a formação dos indivíduos tornou-se tecnologicamente mediada, sendo estabelecida pela indústria cultural, impossibilitando que eles adquiram autonomia e liberdade de pensamento. Hoje, mesmo com o avanço das tecnologias da informação, onde se reduziu o tempo e o espaço para a circulação da informação e do conhecimento, as pessoas se tornam presas fáceis do discurso ideológico.

Na sociedade tecnológica, as formas de dominação e controle se tornaram cada vez mais interligadas, cada vez mais conectadas. Essas novas tecnologias, como smartphones, tablets, notebooks, celulares, câmeras, vídeo games, inserem-se na mesma lógica de dominação da indústria cultural. Com o processo de globalização, essas novas tecnologias possibilitaram o desenvolvimento de uma nova cultura internacional popular e, em consequência disso, permitiram um maior controle sobre os indivíduos.

Como avalia Rodrigo Duarte (2003), com o processo de globalização, os meios de comunicação de massa vêm passando por enormes transformações. Observa-se uma grande concentração de capitais, de modo que apenas uma dúzia de corporações controla quase toda oferta de mercadorias culturais colocadas à disposição do mercado mundial.

3.

Na avaliação de Theodor Adorno e Max Horkheimer (1985), a produtividade econômica, que poderia ser usada para a construção de um mundo mais justo e igualitário, conferiu ao aparelho técnico e aos grupos sociais que o controlam um poder descomunal sobre o resto da população. Desse modo, a autonomia do indivíduo foi anulada em face dos poderes econômicos. Ele se tornou um átomo social isolado, mediado socialmente, sem consciência da totalidade reificada que o subjuga.

Na esfera da interioridade, a subjetividade foi capturada pelos mecanismos ideológicos da indústria cultural, tornando-se incapaz de desenvolver a consciência crítica da realidade. O resultado disso foi a massificação do indivíduo, que se tornou parte das engrenagens sociais: “Na sua individualização, o indivíduo reflete a lei social estabelecida da exploração” (ADORNO, 2008, p.145).

Na sociedade de massas a racionalidade instrumental se impõe como forma predominante do pensar e agir. Desse modo, o sujeito moderno não se constitui de maneira autônoma. O “eu” (Ich) semiformado pela indústria cultural e pelo aparato técnico é moldado pelas exigências sociais objetivas do capitalismo administrado. Os pensadores frankfurtianos partem do princípio materialista de que o indivíduo é determinado pela totalidade social. A subjetividade não possui uma natureza fixa, acabada, mas é moldada na interação com as estruturas econômicas, políticas e culturais da sociedade.

Nesse sentido, o “eu” se torna fraco e impotente, tornando-se incapaz de resistir às pressões sociais externas. O indivíduo passa a reproduzir os valores impostos de fora, tornando-se psicologicamente vulnerável a manipulação e a sedução autoritária. A falta de autonomia e o conformismo dos indivíduos decorrem, portanto, da forma como a sociedade está organizada. A cultura do consumo e a avalanche de mercadorias impedem uma verdadeira consciência da realidade. A grande consequência disso é que os sujeitos se tornam presas fáceis de instâncias heterônomas. Os mecanismos de controle do mundo administrado determinam a interioridade do indivíduo em seu íntimo, naquilo que deveria constituir o núcleo de sua autonomia. A deterioração da experiência formativa produz sujeitos impotentes, paralisados e incapazes de ação.

Os estudos de Theodor Adorno mostraram que a personalidade autoritária não se define a partir de características psicológicas e, também, não é resultado de ideologias políticas conservadoras, mas ela se desenvolve devido à impotência, à paralisia e à incapacidade do indivíduo de reagir frente à racionalidade opressora do mundo administrado.

No fundo os indivíduos fascistas “dispõem de um eu fraco” (ADORNO, 1995, p. 37). Para o pensador frankfurtiano, o caráter opressor do aparato técnico-industrial – que submete o indivíduo a exigências de eficiência e desempenho previamente estabelecidas – anula qualquer possibilidade de autonomia, liberdade e espontaneidade subjetiva. Na sociedade reificada, as pessoas só podem se afirmar como sujeitos a partir de padrões externos de adaptação, desempenho e eficiência, que são colocados como imperativos para a sobrevivência.

Elas vivem em permanente pressão econômica e instabilidade material, tornando-se debilitadas e ansiosas. Assim, a personalidade autoritária “[…] seria definida muito mais por traços como pensar conforme as dimensões de poder — impotência, paralisia e incapacidade de reagir, comportamento convencional, conformismo, ausência de autorreflexão, enfim, ausência de aptidão à experiência” (ADORNO, 1995, p. 37)

4.

Embora Theodor Adorno expresse um certo pessimismo em relação à cultura de massa, ele acredita que a emancipação é possível. Em sua opinião, os indivíduos propensos à personalidade autoritária podem ganhar consciência da fragilidade de seu ego e podem desenvolver uma resistência frente às tendências fascistas na sociedade. No seu texto, Educação e emancipação, Adorno (1995, p. 119) afirma que “a exigência mais importante da educação é que Auschwitz não se repita”.

Enquanto o aparato técnico e a indústria cultural fragilizam os indivíduos para ajustá-los cada vez mais ao sistema produtivo, o frankfurtiano propõe a reconstrução da individualidade por meio da experiência formativa, de modo que essa singularidade se torne uma força propulsora de resistência. Nesse contexto, a educação assume o papel de instrumento de conscientização da realidade e das formas de dominação social, ao formar sujeitos esclarecidos, críticos e autônomos. [1]

Michel Aires de Souza Dias é doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP).

Referências

ADORNO, Theodor W. Observações sobre a Personalidade autoritária, de Adorno, Frenkel-Brunswik, Levinson e Sanford. Trans/Form/Ação, Marília, v. 44, n. 2, p. 345-384, Abr./Jun., 2021.

ADORNO, Theodor W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Unesp, 2019.

ADORNO, Theodor W. Minima Moralia: reflexões da vida lesada. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008.

ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimentofragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

COSTA, Virginia H. Ferreira. Apresentação a edição brasileira. In: ADORNO, Theodor W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Unesp, 2019.

DUARTE, Rodrigo. Teoria crítica da indústria cultural. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

Nota

[1] Esse texto é parte do artigo “Neoliberalismo e a produção da subjetividade fascista”, publicado em Aurora: revista de arte, mídia e política, São Paulo, v.17, n.51, p. 63-81, janeiro-abril 2025

 

 

Tributação e Desigualdades

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Vivemos num momento marcado por grandes alterações na sociedade global, neste ambiente percebemos novos modelos econômicos que surgem cotidianamente, novas profissões surgem e modificam o mercado de trabalho e, ao mesmo tempo, profissões consolidadas perdem espaço, exigindo dos trabalhadores transformações no cotidiano, novos conhecimentos, novos valores e novos comportamentos. O desenvolvimento tecnológico vem transformando o dia a dia dos indivíduos, afinal, somos impulsionados por novas plataformas, novos produtos e novos aplicativos, que alteram a comunicação, o entretenimento, os relacionamentos humanos e as relações sociais.

Neste ambiente, marcado por grandes transformações tecnológicas, onde os modelos de convivência social estão sendo alterados e transformados, novos modelos de negócios surgem e destroem os modelos anteriores, gerando, o que o grande economista austríaco Joseph Schumpeter, chamou de destruição criadora, onde empreendedores e inovadores constroem novos modelos produtivos e destroem modelos antigos, inaugurando novas formas de acumulação e contribuindo para a criação de riquezas.

Neste momento, percebemos o surgimento de novas discussões econômicas e sociais, onde aparentes consensos passaram a ser questionados, gerando confrontos de ideias e pensamentos, motivando novos questionamentos e trazendo novas reflexões que organizam a opinião pública, exigindo novas posturas e novos instrumentos de resolução de problemas complexos. Na sociedade brasileira, desde os anos 1990 vivemos uma agenda econômica centrada na austeridade financeira, onde os governos devem ser austeros com os gastos públicos pois estes podem gerar processos inflacionários crônicos, diante disso, deveríamos cortar os repasses públicos, privatizar empresas estatais e abrir a economia nacional, um receituário “moderno” para superarmos nossos atrasos e nossos retrocessos históricos.

Adotamos as medidas “modernizantes” e colhemos uma economia sem setor industrial, dependentes de tecnologias do setor de serviços, comandadas pelos grandes conglomerados estadunidense e asiáticos, além de sermos dominados por um setor agroexportador, marcado por subsídios exagerados e isenções fiscais ilimitadas. Nossas empresas estatais, que eram ineficientes, foram vendidas na bacia das águas para grandes grupos internacionais e, atualmente, fazem parte do portfólio de grandes fundos financeiros globais que dominam a economia mundial, com isso, perdemos nossa autonomia interna, dependendo, cada vez mais, de tecnologias externas e exportamos produtos primários de baixo valor agregado.

Em tempo de transformações econômicas, políticas e sociais, precisamos rever nossa estrutura tributária, afinal somos um dos países mais desiguais da sociedade global, segundo dados do Banco suíço UBS, que analisa a dinâmica da riqueza em 56 nações, o Brasil fica no primeiro lugar, a frente da Rússia, África do Sul, Emirados Unidos, Suécia, Estados Unidos, Índia, Turquia e México e, ao mesmo tempo, nos coloca com o maior número de milionários da América Latina, mais uma estatística que nos envergonha perante a sociedade internacional.

Os motivos desta desigualdade são conhecidos por muitos teóricos, neste espaço gostaria de destacar apenas um dos mais evidentes, a tributação. Muitos dizem que pagamos muitos impostos, mas quem realmente paga imposto no Brasil? Os grandes contribuintes que movimentam a estrutura estatal são os mais pobres e a classe média, os donos do grande capital financeiro pagam muito pouco, patrocinam isenções variadas que garantem seus benefícios tributários, deixando de pagar quase 1trilhão por ano, nada pagam dividendos e usam seu poder político para manter suas benesses. Se estamos num momento de reflexões intensas, está na hora de revermos as desigualdades criadas pelo sistema tributário nacional…

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Doutor em Sociologia

Previsões fracassadas, por Maria Hermínia Tavares

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Maria Hermínia Tavares, Professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, é pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Folha de São Paulo, 09/10/2025

Não foram poucos os analistas a vaticinar que o governo Lula fracassaria, travado pelo “pior Congresso da história do país”. A aprovação na Câmara da reforma do Imposto de Renda — agora a caminho do mesmo Senado que acaba de enterrar a chamada PEC da Blindagem — é um bom momento para avaliar o que tem resultado das relações entre um Executivo em mãos de presidente de centro-esquerda governando com amplíssima coalizão e um Legislativo dominado pela encrencada família das direitas.

Inimagináveis para todos quantos previam o pior, ambas as decisões ensejam repensar as visões dominantes tanto sobre a capacidade do Executivo de implementar sua agenda quanto sobre o Congresso de maioria direitista e empoderado por emendas ao Orçamento e Fundo Partidário.

Não foi pouco, nem desimportante, o que o governo Lula logrou aprovar em pouco mais de dois anos e meio: o novo arcabouço fiscal; a reforma tributária; a taxação de fundos exclusivos; a política de valorização do salário-mínimo; a reoneração parcial dos combustíveis; o novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento); a retomada do Minha Casa, Minha Vida; a política de igualdade salarial entre homens e mulheres; o novo Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais); e o Pé de Meia, que apoia a permanência de estudantes no ensino médio. Todas medidas de inequívoco pedigree progressista.

Continuam em apreciação nas casas legislativas dois projetos de peso: a reforma administrativa e a constitucionalização do Sistema Nacional de Segurança Pública.

É certo que, sob Lula, o Executivo teve menos êxito em aprovar propostas e teve mais vetos derrubados do que em gestões anteriores. Mas nada do obtido teria sido possível se este fosse um governo sem rumo, sem projetos, sem coalizão de governo e sem capacidade de negociar cada proposta com os legisladores, cedendo aqui, perdendo acolá, como é próprio nas democracias.

Da mesma forma, nada seria factível se, como pensa a maioria dos analistas e formadores de opinião, o Congresso —robustecido pelas emendas parlamentares e pelo Fundo Partidário— não passasse de um aglomerado de partidos povoados por picaretas, clientelistas, patrimonialistas ou corruptos em geral, os quais, mesmo quando pareçam acertar, estariam fazendo apenas um jogo de aparências para esconder seus verdadeiros fins.

Essa é uma visão caricatural do Congresso. Os poucos estudos de fôlego sobre a destinação das emendas parlamentares chegam a conclusões mais matizadas sobre seus efeitos: alguns positivos, outros perversos. Por outro lado, não há evidências sólidas de que ministérios e outros órgãos de governo se pautem sempre ­—e apenas— por critérios técnicos não contaminados pelo raciocínio político.

Que a distribuição dos recursos de emendas, a disputa por cargos e o apoio a propostas do governo sejam influenciados por cálculo eleitoral é apenas o esperado nas democracias, onde a competição pelo poder depende das urnas. Aqueles objetivos não impedem —antes esclarecem— as condições para cooperação entre os Poderes. Eis o que permitiu, na contramão das previsões, que a agenda do governo prosperasse.

A epidemia do sofrimento, por Mariliz Pereira Jorge

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Mariliz Pereira Jorge, Jornalista e roteirista

Folha de São Paulo, 08/10/2025

Se você se preocupa com sua saúde mental, não está sozinho. Virou o nosso check-up diário. Dormiu mal? Ansiedade. Não rendeu? Burnout. Mas o que parece modismo é, na verdade, um diagnóstico coletivo, uma questão que segue como o principal temor no país, superando câncer e outras doenças. Em 2024, 54% dos brasileiros já apontavam o tema no topo, tendência que se mantém na nova leva de dados da Ipsos —a média global é de 45%.

O salto é vertiginoso: de 18% em 2018 para o patamar atual. O ponto de virada veio com a pandemia —não só pelo vírus, mas por uma nova realidade: o trabalho invadiu a casa, a solidão virou rotina, empreender é a palavra da década, o sofrimento é o status normal. No meu círculo de amizades, estranho é quem não enfrenta algum grau de depressão, pânico, distúrbios, transtornos. Não deixa de ser sinal de loucura que a conversa sobre medicações, crises e tratamentos seja natural.

O tabu diminuiu porque as doenças mentais são democráticas. As mulheres declaram mais angústia; os homens, ironicamente, aparecem com maior frequência nas estatísticas fatais. E, de lá para cá, nasceu uma nova paisagem emocional: gerações mais jovens chegam à vida adulta mais alertas para o próprio despencar. Talvez por isso, estejam mais dispostas a nomear o que dói.

E o cotidiano só aduba o mal-estar: trabalho que invade a madrugada, renda incerta, boletos em fila, comparação infinita no feed. A conta fecha no corpo: insônia, palpitação, cansaço que não descansa.

Enfrentar essa epidemia de sofrimento exige pactos miúdos (sono, rotina, conversa, menos tela) e pactos coletivos (proteção social, escola que acolhe, empresa que não transforma gente em meta). Para atravessar, menos heroísmo solitário e mais rede: pedir ajuda sem culpa, oferecer ajuda sem julgamento.

Para alguém que, como eu, trata uma depressão há 11 anos, é um alento ver que os transtornos mentais saíram da margem e ganharam nomes, rostos, identificação. Mas, sem política e cuidado, tudo vira uma conversa solitária, um pedido de socorro que fica sem resposta.