As duas faces do capitalismo, por Tadeu Valadares

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Tadeu Valadares – A Terra é Redonda – 08/09/2025

Anotações sobre soberania ameaçada, ordem mundial em transição e tarifaço trumpiano contra o Brasil e o mundo

Numa tentativa de vincular os três temas, começarei pelo círculo mais amplo: a ideia de soberania e sua relação com o capitalismo histórico. Em seguida passarei ao segundo círculo, o da ordem mundial em plena crise de transição. Só então analisarei o tarifaço de Donald Trump contra o Brasil e o mundo.

1.

Com relação à soberania, crucial sublinhar que essa noção e as práticas dela derivadas são tão antigas quanto o capitalismo histórico, ambos nascidos na Europa do século 13. Desde então, mas sobretudo a partir do século 16, a soberania se elabora e refina no âmbito do direito internacional público, sempre em constante parceria com o desenvolvimento do capitalismo, o que nada tem de circunstancial ou acidental.

De fato, essas trocas entre um modo de produção e uma concepção de mundo jurídico-política foram decisivas para que a transição do feudalismo para o protocapitalismo e daí para o capitalismo propriamente dito se haja tornado história. Bem sabemos, o capitalismo pleno só se estruturou no plano político com as revoluções burguesas do século 18, a americana e a francesa. No plano econômico, com a primeira revolução industrial, ocorrida na virada do 18 para o 19.

O capitalismo obviamente assumiu várias encarnações desde o século 16. O mesmo ocorreu com a noção, ideia ou conceito de soberania, assim como as práticas estatais e sociais derivadas. O leque dessas transformações internas ao registro jurídico-político da soberania pode ser concebido de maneira simplificada como se originando no absolutismo de Bodin e Hobbes, passando pelo democratismo de Rousseau e desaguando nas sofisticadas formulações de direito internacional público construídas desde o término da segunda guerra mundial.

Hoje, o capitalismo é mundial, dominante, bifronte. Capitalismo com duas faces. Uma delas, a que remete à predominância das finanças, isto é, ao capitalismo financeiro ‘ocidental’ às voltas com graves problemas de reprodução e expansão. A outra emerge como poderoso capitalismo de estado centrado na dimensão produtiva, na produção de mercadorias tangíveis, regime não apenas ou maiormente fixado nas finanças, na financeirização, na criação do que é intangível. Esse dinâmico capitalismo de estado também atende pelo simpático nome de ‘socialismo à maneira chinesa’.

Grosso modo, sua trajetória, em especial desde o início do século, é simplesmente espetacular. Não há memória de que algo similar haja acontecido desde quando o capitalismo se tornou mundo. Mencionar a espetacularidade da ascensão chinesa é sublinhar que vivemos todos, em termos de ordem mundial, uma época de crise que também é tempo de transição de hegemonia. Algo que tomará seu tempo longo para se completar, mas que conforma a realidade que se tornou nosso cotidiano. O que hoje é flagrante há muito está em construção, em particular se nos damos conta da trajetória da ordem criada em Bretton Woods (1944) e São Francisco (1945), de seus altos e baixos.

Essa ordem se encontra em processo de desfazimento desde mais ou menos 50 anos. Seu mais recente avatar, ele próprio uma forma de adaptação da ordem originária às mudanças ocorridas em termos planetários, é o que o Ocidente chama de ‘ordem internacional baseada em regras’. Assinalável: o período que os historiadores liberais e conservadores denominam ‘os trinta gloriosos’ é passado encerrado. Noutras palavras, desde meados dos anos 70 a variante ‘ocidental’ de capitalismo declina.

Donald Trump e o trumpismo surgem como imensa surpresa porque, desesperados com o declínio incessante, partiram para o escandaloso antes inimaginável: o criador abandonou a criatura à sua sorte. Desse abandono resulta que 2025 se tornou desde 20 de janeiro passado sinônimo de ‘annus horribilis’. Instaurou-se um tempo de prodígios no significado bíblico, diriam uns. Outros afirmariam que vivemos tempos interessantes. Interessantes no significado que essa expressão tem para os chineses. Tempos interessantes, tempos muito negativos para o Ocidente expandido.

2.

Nesse contexto, como pensar o tarifaço imposto ao Brasil? Fomos sancionados com a tarifa mais alta, 50%, mas analiticamente decisivo é destacar que o tarifaço não é contra o Brasil, é contra o mundo. Dos 192 países com os quais os Estados Unidos interagem na Assembleia Geral da ONU, dessa demonstração de autoritarismo primário apenas 8 escaparam. Não sei seus nomes. Provavelmente são microestados que se situam na periferia da periferia do sistema.

Outro dado relevante: as tarifas aplicadas a 184 estados formam uma espécie de escada com 12 degraus. Na base, a tarifa mínima, 10%. No ápice, a tarifa de 50% aplicada até agora tão somente ao Brasil e à Índia. Entre o degrau 10% e o degrau 50% há tarifas de 15%, 18%, 19%, 20%, 25%, 30%, 35%, 39%, 40% e 41%. No degrau dos 10% se amontoam 98 países, entre eles o Reino Unido, Cuba e Rússia; no degrau dos 15%, 62 padecem, 27 deles pertencentes à União Europeia; no de 19% estão apenas 5 países: Camboja, Indonésia, Malásia, Paquistão e Filipinas.

A tarifa de 20% é imposta tão somente a Bangladesh e Sri Lanka. A de 25% vale para Brunei, Cazaquistão, Moldova e Tunísia. A de 30% contempla apenas três estados: Argélia, Líbia e África do Sul. De ressaltar que essa tarifa deveria ser aplicada à China. Se concebermos a tarifa de 35% como uma espécie de divisor de águas, olhando para o alto da escada teremos o seguinte quadro: a tarifa de 35% só vale para a Sérvia; a de 39%, apenas para a Suíça; a de 40%, para Laos e Mianmar. A de 41%, para a Síria. No mais alto, a que compartilhamos com os indianos, 50%.

Lida superficialmente, essa escada proclama que Donald Trump, o trumpismo e o governo americano se puseram em conflito comercial com o mundo. Mas na verdade esse conflito não se reduz à dimensão tarifária nem é simplesmente comercial. Funciona como elemento estratégico, relevante e até mesmo decisivo como pressão geopolítica. Pesa negativamente, em grau extremo, sobre o futuro imediato da política internacional. Não deixa de ser, em sua brutalidade, uma das manifestações mais escancaradas da ‘húbris’ americana.

Assombroso: em meio a sua persistente decadência relativa, Washington se ilude e pensa ter poder suficiente para parar o grande jogo de poder planetário, o da transição de hegemonia. Pensa que pode refazer o baralho, redistribuir as cartas e dar início a uma nova era. Em sua desmedida, pretende criar enigmática ordem planetária no seio da qual exerça hegemonia absoluta, algo absolutamente contraditório porque é ordem unidimensional, pura coerção, zero consenso. Portanto, a ordem impossível é caos como projeto.

Cristalino: inviável conformá-la; impossível sustentar o projeto. No curto prazo essa ‘grande estratégia’ depende totalmente de Donald Trump fazer seu sucessor e manter o controle de ao menos uma das casas do congresso. No longo prazo, os Estados Unidos, como resultado das tensões e fraturas internas antigas, e da belicosidade tarifária e de outras ordens, ambas turbinadas pelo governo de Donald Trump, arriscam mergulharem difusa anarquia interno-externa. Crise completa.

3.

Agora sim, vejamos o que nos mostra o tarifaço de 50% a nós imposto. O gesto tresloucado ao menos sinaliza que: (a) não havia déficit comercial dos Estados Unidos conosco que pudesse servir de base para a aplicação das medidas autoritariamente adotadas; (b) Donald Trump na verdade e sem o saber nos impôs algo tipicamente russo-imperial. Baixou um ukase. Recorreu ao estilo absolutista que os Romanov empregavam para submeter povos que integravam o império tsarista; e (c) as exigências constantes da Ordem executiva e da carta a Lula são de impossível aceitação pelo Brasil. Aceitá-las nos reduziria à situação colonial que foi a nossa até 1822.

Tanto a Ordem quanto a carta são explícitas. Ambas sublinham que se o Brasil se curvar a Donald Trump estaria talvez quem sabe disposto a rever as medidas imperialmente impostas. Até o Brasil se curvar, as práticas e as ações do governo brasileiro ‘ameaçam a segurança nacional dos Estados Unidos’. Nunca havia me dado conta de quão poderosos somos.

Ambos os textos à brutalidade agregam insulto: se o Brasil se alinhar suficientemente – sublinhar o suficientemente – aos Estados Unidos no relativo a segurança nacional, assuntos econômicos e temas de política externa, Donald Trump poderá modificar sua posição. Em suma, o que Washington espera de nós é uma variante pós-moderna da servidão voluntária decifrada por Etienne de la Boétie 500 anos atrás. No desnorteamento engendrado por sua decadência, a república imperial exige sejamos voluntariamente servis.

Para completar a exposição desse delírio do ‘hegemon’ declinante, na Sessão 2, letra b, da Ordem executiva damos com grave ameaça explícita: se o governo do Brasil retaliar contra os Estados Unidos em resposta às medidas adotadas, elas serão modificadas ‘para assegurar a eficácia das ações nela contempladas’. E para que não restem dúvidas, o governo americano ainda tem o desplante de explicar tintim por tintim: ‘Por exemplo, se o Governo do Brasil retaliar, aumentando tarifas sobre exportações de produtos americanos, eu (no caso, ele, Donald Trump) aumentarei as tarifas no montante correspondente’.

4.

Diante dessa agressão ao Brasil, dessa ameaça à nossa soberania, dessa insana vontade de poder que no plano institucional e também no político-eleitoral quer impor ao executivo e ao STF um veredito que só cabe à nossa mais alta corte, o governo de coalizão vem reagindo como esperado.

No fundo, Lula sabe que no essencial a manobra americana quer incidir decisivamente nos resultados das eleições do ano que vem, aproveitando-se da fragilidade histórica que marca a democracia brasileira e do peso aumentado do extremismo neofascista desde o início da década passada. Ano que vem seremos submetidos a outro teste crucial. De seu resultado dependerá se o Brasil permanecerá ou não fragilmente democrático.

Diante do desafio lançado por Washington, o governo vem agindo bem, sabedor de que não há como negociar porque a plataforma que os Estados Unidos nos oferecem é sinônimo de absoluta sujeição. No plano bilateral estrito, refiro-me ao relacionamento Brasília-Washington, pouco ou quase nada a fazer. Mas em outros planos o governo se mostra ativo: busca aproximação com os BRICs e com outros grupos e países que, todos atacados pelos Estados Unidos, ainda que em graus variáveis, reagem desviando comércio e tudo o mais que se possa para parceiros confiáveis.

No plano interno, o governo vem conseguindo, como indica o ‘Brasil Soberano’, conferir um caráter socialdemocrata, frágil como a nossa democracia, ao esforço voltado para proteger o nível de emprego e, num primeiro momento, priorizar a pequena e a média empresa. Do ponto de vista político-eleitoral, o governo e seus apoiadores procuram mobilizar a sociedade em geral, o povo como totalidade, com vistas a eleitoralmente derrotar o antipovo nas vindouras eleições.

O essencial no curto prazo do atual ciclo eleitoral é bater nas urnas a direita neofascista e seu leque de sócios na barbárie, no atraso ou numa modernização que apenas extrai recursos da base da sociedade para seus píncaros. Essa, a direita que, no caso brasileiro, é voluntária e apaixonadamente servil a Washington.

Difícil que o governo possa ir muito além. Para se ir além, o que fazer é historicamente bem conhecido, por impossível ou improvável que seja sua concretização imediata: há que pressionar o governo nas ruas com manifestações gigantescas. Caso isso venha a ocorrer, o que começou na dimensão relativamente pequena que é a do ‘Brasil Soberano’ poderá se transmutar em algo que, séculos de distância mediante, remete à vontade geral explicitada por Jean-Jacques Rousseau: a soberania é do povo e só do povo. É intransferível ou não é soberania.

Tadeu Valadares é embaixador aposentado.

Imediatez – o estilo do capitalismo tardio demais, por Rita Von Hunty

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Rita Von Hunty – A Terra é Redonda – 01/09/2025

Prefácio à edição brasileira, recém-lançada, do livro de Anna Kornbluh.

O potencial explicativo dos conceitos

Qualquer pessoa que já tenha tentado pensar a aceleração da experiência no tempo presente ou explicar a diminuição das nossas capacidades de romper com um horizonte muito estreito de imaginação política (das nossas possibilidades) de futuro vai se beneficiar grandemente da leitura deste livro.

A tarefa de refletir o presente costuma ser árdua, ainda mais quando isso ao que chamamos “presente” parece ter sido reconfigurado em algo mais ou menos intransponível. [1] Este ensaio crítico de Anna Kornbluh merece tanto reconhecimento quanto urgência na leitura. Um de seus feitos é esquematizar, com precisão e didatismo, um quadro desse estágio de acumulação capitalista em que – a autora joga de forma bem-humorada – teríamos migrado do capitalismo tardio para o capitalismo tardio demais, ou “tarde demais”.

O jogo de palavras parece revelar, no entanto, a consolidação de uma perspectiva mais ou menos cínica [2] daqueles setores políticos que, de acordo com sua trajetória e compromisso histórico, deveriam zelar por um futuro capaz de “superar” [3] as limitações e as contradições do presentismo no qual parecemos aprisionados, em vez de se contentarem em ser os administradores oficiais das crises capitalistas e do colapso climático.

A autora opta por capturar tal perspectiva tanto nas formas artísticas do presente quanto nos traços subjetivos daqueles agentes que compõem as paisagens dos mercados de arte, bem como os circuitos de produção de conteúdo nas plataformas de streaming, o mercado editorial e a própria produção acadêmica.

A “imediatez” à qual a autora se refere carrega consigo não apenas um significado etimológico de “sem mediação” mas também um diagnóstico do estreitamento de nossas capacidades de significação das experiências. Nesta obra, a mediação assume a posição de uma categoria teórica central, e pode ser abreviadamente compreendida em três dimensões: processual, estético-cultural e político-social.

Enquanto processo, a mediação é aquilo que estrutura e relaciona elementos, permitindo sua complexificação ou síntese; é o espaço de postergação, adiamento e elaboração dos efeitos da experiência. Enquanto função estética e cultural, a mediação corresponde à transformação da experiência em signos, símbolos, narrativas, imagens etc.

Já em sua função política e social, a mediação é a própria forma por meio da qual as instituições (Estados, sindicatos, escolas) organizam a vida pública. Sem a mediação, portanto, perdemos as capacidades de nos distanciarmos dos acontecimentos, de dar a eles formas que evitem neles nossa imersão, a intensidade e a instantaneidade que se tornaram “naturais” para os modos de vida do século XXI.

O objeto de análise da autora emerge através da crítica cultural de viés materialista que relaciona fenômenos contemporâneos (por exemplo, as “exposições imersivas” de Van Goghou a performance de “presença pura” de Marina Abramović) com os novos padrões de produção, consumo e circulação de produtos e serviços artísticos (as NFTs são exemplos desconcertantes disso). Kornbluh produz uma sólida e sofisticada argumentação com um vasto referencial teórico que se estende da Antiguidade até a crítica dos movimentos “pós-críticos”. Utilizando-se do pensamento de autores como Raymond Williams e Frederic Jameson, a autora revigora tanto o impulso dialético quanto a crítica negativa para insistir que a mediação não é um obstáculo à verdade, mas seu próprio meio de produção.

Assim, esta obra nos permite relacionar infraestrutura e superestrutura de forma cristalina. Anna Kornbluh reconstrói os elos de mediação que ligam o avanço da informalidade sobre a força de trabalho global – que tem empurrado centenas de milhões de trabalhadores para a chamada gig economy e erodido múltiplas facetas do mundo do trabalho (como os direitos trabalhistas, a justiça do trabalho, as jornadas etc.) – às suas cristalizações culturais nas formas de hiperconectividade, proliferação de “autoidentidades” e multiplicação de discursos ultraindividualistas, que por sua vez podem ser novamente rastreadas nos esvaziamentos institucionais, bem como nos colapsos de modos de vida coletivos/comuns que poderiam fazer frente ao colapso ambiental.

Este é o movimento e o cenário que Anna Kornbluh busca historicizar. Extraindo das categorias materiais seu nível máximo de abstração na esfera cultural, a autora mantém vivo o que havia de melhor na tradição que nos ajudou a perceber nas formas culturais os conteúdos sócio-históricos decantados e seus possíveis desdobramentos futuros. [4]

Frente à desintegração das nossas próprias capacidades de imaginar e construir outros futuros, Anna Kornbluh nos convoca a restaurar a mediação como combate à atopia temporal que nossa clausura no presentismo trouxe consigo. Tal forma de restauração se manifesta nas artes que exigem atenção prolongada, na teoria crítica que recusa o imediatismo empático e nas formas coletivas que podem produzir transformações estruturais nas sociedades.

A recusa ética e política ao “capitalismo de imediatez” aparece como fissura no tecido discursivo da catástrofe e do colapso que tenta nos impedir de ver que, embora pareça “tarde demais”, o tempo de agir é sempre o nosso tempo de vida.

*Rita Von Hunty é ator, YouTuber e drag queen. Graduada em Letras pela Universidade de São Paulo (USP).

Anna Kornbluh. Imediatez: ou o estilo do capitalismo tardio demais. Tradução: Nélio Schneider. São Paulo, Boitempo, 272 págs.

Notas

[1] Ver François Hartog, Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo (trad. Andrea Souza de Menezes et al., Belo Horizonte, Autêntica, 2013).

[2] Sobre esta noção de um “cinismo” de esquerda, há duas obras recentemente publicadas por intelectuais brasileiros acerca da questão: Heribaldo Maia e Jones Manoel, Cinismo e a morte da esquerda brasileira. (São Paulo, Ruptura, 2025); e Vladimir Safatle, A esquerda que não teme dizer seu nome: um novo livro (São Paulo, Planeta, 2025).

[3] Faço referência ao uso marxiano de Aufheben que coaduna tanto a negação de algo quanto a conservação e elevação de outras partes do mesmo algo que fora negado.

[4] Ver Theodor W. Adorno, Aesthetic Theory (trad. Robert Hullot-Kentor,  Mineápolis, University of Minnesota Press, 1997), p. 139.

SUS faz 35 anos como marco democrático e com desafios à frente, por Luana Lisboa

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Saúde como dever do Estado só foi consolidada com a Lei 8.080, de 1990

Uma das maiores políticas públicas do país, sistema é uma construção permanente, dizem especialistas.

Luana Lisboa – Folha de São Paulo – 06/09/2025

Até 1988, a saúde não era considerada pelo Brasil como um direito básico. Foi apenas com a Constituição Cidadã, promulgada após o fim do regime militar, que tornou-se um dever do Estado, consolidado com a criação formal do SUS (Sistema Único de Saúde) com a Lei 8.080, de 1990.

Desde então, a política pública se consolidou como uma das maiores do Brasil, o maior sistema de saúde gratuito do mundo e um marco na democracia brasileira, ainda que com seus gargalos e um quadro de desafios a serem enfrentados. Como resultado, ao longo de 35 anos, o sistema alcançou o aumento da expectativa de vida no país, o maior programa de transplante de órgão do mundo e um exemplo na contenção de epidemias como a de Aids, segundo especialistas.

Para marcar a data, a Folha inicia nesta sexta-feira (5) a publicação da série SUS, 35, com cinco reportagens especiais que marcam os 35 anos do sistema público de saúde

As bases para a universalização da saúde começaram nos anos 1900, quando o presidente Rodrigues Alves designou o médico Oswaldo Cruz para organizar a saúde pública no Rio de Janeiro, então capital e centro comercial do Brasil. Teve início um movimento sanitarista para erradicar doenças infecciosas, como a febre amarela, episódio reconhecido nos livros de história pela “Revolta da Vacina”.

A criação da legislação trabalhista pelo então presidente Getúlio Vargas também ajudou a solidificar o alicerce, uma vez que, depois disso, o direito à saúde passou a estar atrelado à Previdência Social. “Fora disso, a pessoa pagava ou não tinha direito a nada”, afirma o médico Luiz Antonio Santini, professor da UFF (Universidade Federal Fluminense), autor do livro “SUS: Uma biografia” e ex-diretor do Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social), extinto em 1993.

O Inamps era o sistema responsável pela prestação de serviços de saúde à população com carteira assinada e seus dependentes. Quem não tinha acesso, ou seja, a maior parte dos brasileiros na época, era atendido por estabelecimentos filantrópicos e hospitais de caridade.

Foi durante os vindos de 1980 que a saúde tornou-se uma questão central, impulsionada pelo processo de redemocratização e pelo movimento da Reforma Sanitária. Um dos momentos-chave na luta política foi a Conferência Nacional de Saúde, de 1986, que reuniu em torno de 5.000 pessoas em Brasília e deu origem ao texto, posteriormente aprovado na Constituinte, do artigo 195 da Constituição, que estabelece a saúde como direito.

Nessa década, teve início a epidemia de Aids (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) e foi criado o Programa Nacional de DSTs (doenças sexualmente transmissíveis) e Aids pelo Ministério da Saúde, que estabeleceu também uma base para o futuro SUS. Quando criado, o sistema assumiu a coordenação da epidemia, até então regada pela desinformação, tornando posteriormente o Brasil referência no combate à doença.

A técnica de enfermagem Conceição Macedo, 82, lembra bem como era antes. Foi ela a responsável pela criação de uma organização que dava apoio a famílias e crianças soropositivas em Salvador, no início dos anos 1980.

Tudo começou quando, um dia, oferecia alimentação a um paciente no Hospital Geral Roberto Santos, referência de entidade pública na capital baiana. Ela o encontrou chorando porque a família estava sem moradia. Havia perdido a casa e tudo que tinha, comprando medicações para tratar de doenças oportunistas, ainda sem saber que tinha HIV.

Conceição prometeu visitar a família naquela noite. Encontrou seis crianças e a mãe em uma calçada e tentou alugar um quarto para hospedá-las em um casarão no Pelourinho. A mãe, no entanto, estava doente e, ao levá-la ao hospital, descobriu que era soropositiva. Depois da sua morte, Conceição passou a cuidar das crianças.

A notícia se espalhou pela cidade, e, pouco tempo depois, o quarto ficou pequeno. Ela acolhia cerca de 30 famílias debaixo de um viaduto. No hospital e mesmo na rua, passou a sofrer preconceito. Na época, não se sabia como ocorria a transmissão.

Com o tempo, passou a ter ajuda de padres de uma igreja próxima e fundou a organização ainda em funcionamento, a Instituição Assistencial Beneficente Conceição Macedo. Hoje comemora o fato de que é mais difícil crianças nascerem com o vírus e pacientes morrerem pela doença, já que a medicação é largamente disponibilizada pelo SUS.

Junto a ela, trabalhou por muito tempo o agora aposentado José Mário Conceição, 67. Paciente longínquo do sistema público, fez mais de 20 procedimentos cirúrgicos ao longo da vida após ficar tetraplégico quando era adolescente e hoje anda com a ajuda de muletas.

Desde junho deste ano, ele faz tratamento oncológico em um hospital público em Salvador, e exibe com orgulho a sua primeira carteira do SUS, obtida à época da criação do sistema: “Esse aqui é o maior plano de saúde do Brasil.”

Limitações do SUS

Se por um lado comemora-se a existência da saúde como política pública, por outro, ainda existem pontos que merecem atenção.

Posto à prova durante a pandemia da Covid, o SUS atende mais de 70% da população brasileira. A sobrecarga resulta em problemas como longos tempos de espera e dificuldade de acesso a especialistas, agravados pela escassez de recursos.

Como toda política pública, o SUS ainda é permeado pela política, e depende dos nomes eleitos para a implementação, diz o médico sanitarista Gastão Wagner, professor de saúde coletiva da Faculdade de Medicina da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

No entanto, ainda é uma das políticas públicas cuja política partidária interfere menos que as demais, avalia. “Não temos no SUS o que aconteceu no INSS agora, por exemplo. As falcatruas são pontuais e estão geralmente ligadas à terceirização”, afirma.

Para ele, seguir o planejamento público é uma forma de melhorar o sistema, o que relaciona-se ao problema de subfinanciamento já conhecido pelas gestões federais, estaduais e municipais.

“O SUS tem um financiamento deficitário, e estamos com um problema recente de que o orçamento está quase 60% ligado às emendas parlamentares, que não seguem os planejamentos e as programações municipal, federal e estadual, e isso leva o SUS a ter filas desiguais em cada região”, acrescenta.

Entre as prioridades, é preciso, por exemplo, maior dedicação à atenção primária e à área de saúde mental, questão que tem crescido nos últimos anos. “A cobertura da atenção primária, equipes de saúde família, hoje é 56%, e tem que chegar a 80%. Isso depende do orçamento, de contratação, da capacitação de profissionais de saúde depois da graduação. Ou seja, precisa de um investimento integrado e o planejamento tem que ser técnico-sanitário.”

Para os especialistas, é importante entender que o SUS não é uma obra acabada e que um de seus pilares é a participação popular.

“O SUS é uma construção permanente. O que é definitivo no SUS é a questão do direito à saúde. Agora, as mudanças para ajustar esse direito vão ser permanentes. A sociedade é dinâmica, as pessoas e as necessidades mudam, mas também as tecnologias mudam”, diz Santini.

 

 

A violência de Estado organiza o crime no Brasil, por Guilherme Pimentel

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Megaoperação não disparou um tiro nem vimos corpos pelo chão; quem lucra com o ilícito vive em bairros nobres e dispõe de ampla rede de proteção

Guilherme Pimentel, Advogado, é coordenador técnico da Rede de Atenção a Pessoas Afetadas pela Violência de Estado (Raave) e ex-ouvidor da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.

Folha de São Paulo, 05/09/2025

A maior operação contra o crime organizado da história do Brasil ocorreu em São Paulo e atingiu setores da elite econômica nacional. No mercado financeiro, estima-se que foram lavados R$ 30 bilhões do Primeiro Comando da Capital.

Sem disparar um tiro, não vimos corpos no chão nem rostos estampados nos jornais. Quem lucra com o crime vive em bairros nobres e possui uma ampla rede de proteção: dos 14 mandados de prisão, apenas 6 foram cumpridos. O diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, fala em suspeita de vazamento. Nos bastidores, especula-se que instituições estaduais tenham avisado os alvos da operação antes de ela acontecer.

A pesquisa do Latinobarómetro de 2020 sobre facções na América Latina, publicada recentemente pela Universidade de Cambridge, derruba mitos da segurança pública: o punitivismo, a guerra às drogas e a superlotação carcerária alimentam as organizações que o Estado afirma combater. A presença de facções nos territórios não decorre de abandono, mas de logística eficiente e economia pujante. Afinal, abandono não faz chegar armas e munições em lugar nenhum.

A política pública mais duradoura da nossa história é a produção de violência contra a maioria da população. O Brasil a exerce de forma direta, por agentes públicos, e indireta, fomentando um mercado criminal. Facções não nasceram nas periferias, mas em presídios, batalhões, delegacias e palácios.

O Estado, enquanto extermina a população negra e periférica, organiza a economia da violência e promove um necromercado de armas e segurança privada. A “ordem” imposta por facções é efeito da repressão oficial, uma terceirização da violência, conveniente para produzir lucros e, ao mesmo tempo, absolver o próprio Estado, simulando sua “ausência” das cenas do crime.

A violência estatal eleva os valores de corrupção e aquece o mercado de armas. Os discursos que enaltecem a letalidade policial escondem queimas de arquivo e favorecimentos a determinados grupos.

São as agências de segurança que matam ou encarceram chefes de quadrilhas, gerando substituições convenientes. A miséria fornece mão de obra descartável, sem direitos. Rachas estimulados por agentes públicos intensificam disputas e competitividade no mercado criminal. É capitalismo selvagem: trabalho barato, sem regulação ou proteção.

As raízes são históricas. Desde a colonização, o Estado se organiza como produtor sistemático de violência: do extermínio indígena e da escravidão ao encarceramento em massa e às chacinas, sem políticas de memória, verdade, justiça e reparação. Essa continuidade explica por que o Brasil lidera o ranking latino-americano de “governança criminosa”: 26% da população —cerca de 61 milhões de pessoas— vivem sob regras impostas por facções.

O modelo de gestão social armada age diretamente por agentes públicos ou terceiriza sua ação ao crime organizado. Seus lucros irrigam a indústria bélica e os próprios aparelhos estatais. Não é a ausência do Estado que gera o crime organizado, mas sua presença violenta, que preserva privilégios coloniais e transforma o sangue da população negra e pobre em recurso econômico a serviço do lucro de poucos.

Enquanto não desmontarmos essa máquina, seguiremos alimentando aquilo que fingimos combater. A dicotomia entre violência de Estado e violência criminal é falsa: combater o crime exige menos violência e mais controle nas agências de justiça e segurança, além de respeito aos direitos humanos —única forma de frear o crime e o derramamento de sangue no Brasil.

Desigualdades crescentes

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Num mundo marcado por grandes transformações estruturais, onde os modelos de negócios estão sendo alterados rapidamente, onde o mundo do trabalho se movimenta constantemente e os trabalhadores precisam se reinventar cotidianamente como forma de angariar, ou manter, um emprego decente e garantir as mínimas condições de sobrevivência.

Vivemos num país marcado por grandes desigualdades em todas as áreas e setores, marcados por uma história de explorações constantes, externa e interna, constituído como nação “independente” pelas mãos de trabalhadores escravizados, humilhados e degradados e, em contrapartida, por uma elite imediatista, individualista e entreguista, que vangloria os produtos estrangeiros, que paga fortunas para desfilar em cidades internacionais, tirando fotos para mostrar seu sucesso e se exime da sua responsabilidade diante da desigualdade crescente, apoiando a exploração de nações estrangeiras e batendo palma para aqueles que vendem a soberania nacional e acreditam serem verdadeiros patriotas e nacionalistas.

O Brasil se caracteriza por inúmeras contradições, somos vistos como uma das maiores economia do mundo, detemos setores produtivos dotados de grande tecnologia e, ao mesmo tempo, somos uma das nações mais desiguais do mundo, onde quase cinquenta milhões de pessoas não possuem saneamento básico, uma nação marcada por um educação deficiente e incapaz de preparar os cidadãos para os desafios do mundo digital e marcado por elevado desenvolvimento tecnológico, desta forma, estamos perpetuando uma desigualdade estrutural, onde os sonhos mais íntimos e pessoais se concentram na sobrevivência imediata e sem espaços sólidos para a construção de novos horizontes, desta forma, percebemos o crescimento da violência urbana, da pobreza generalizada, da corrupção crescente e o incremento de pessoas vivendo nas ruas.

Recentemente conseguimos retirar o país do mapa da fome da Organização das Nações Unidas (ONU), um feito que deveria ser elogiado e comentado pela mídia nacional e pelos formadores de opinião, mas infelizmente, muitos ignoraram o assunto para não elogiar as políticas adotadas, desta forma deixam de informar a população e mostrar as medidas que trouxeram melhoras na condição de vida da população. Para colher os frutos positivos da retirada do mapa da fome da ONU foram necessárias uma atuação maior do governo federal, a recuperação de políticas públicas degradadas anteriormente, além do crescimento econômico que ultrapassou os 3% do produto interno bruto, além da redução do desemprego e a melhora da renda dos trabalhadores.

Vivemos num país onde, em 2024, os 10% mais ricos da população brasileira detinham 39,8% da massa de rendimentos, enquanto os 70% mais pobres ficavam com 33,4%. Dados vergonhosos para um país como o nosso, dotado de grandes riquezas e forte potencial de desenvolvimento, mas exigiria uma discussão mais séria, menos falatórios, discursos inflamados e mais medidas estruturais imediatas.

Sabemos que são muitas as iniciativas necessárias e imprescindíveis, além de urgentes, para vislumbrarmos uma melhora das desigualdades estruturais da sociedade brasileira, dentre elas, precisamos alavancar a educação nacional, fortalecer a carreira docente, aumentar os investimentos em pesquisa, ciência e tecnologia, sem estas medidas vamos perpetuar nosso atraso e nossa subserviência de nações estrangeiras. Neste cenário, percebemos que estamos caminhando no sentido contrário, nossa educação vem sendo degradada cotidianamente, os professores chamados de mestres, são ridicularizados, suas condições de trabalho são péssimas e seus salários estão sendo arrochados há décadas, desta forma, estimulamos o crescimento da ignorância, da subserviência e a desesperança.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

 

 

Inspiradora maturidade democrática, por Maria Hermínia Tavares

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Julgamento põe em uso lei que dota a democracia de proteção contra seus inimigos radicais

Maria Hermínia Tavares, Professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, é pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Folha de São Paulo, 04/09/2025

Às vezes é necessário um observador externo para nos dar a exata dimensão de acontecimentos que, mesmo quando os sabemos importantes, tendemos a tratar como assunto doméstico. Disso é exemplo o texto de capa da revista britânica “The Economist” sobre o julgamento de Bolsonaro, “Brazil offers America a lesson in democratic maturity” (Brasil fornece à América uma lição de maturidade democrática), publicada na edição de 28/8.

Concorde-se ou não com a interpretação ali oferecida, a publicação em si mostra a importância internacional da responsabilização judicial de autoridades acusadas de atentar contra a ordem democrática.

De fato, em muitos países do Ocidente, o sistema representativo está sob pressão do populismo autoritário. Ali onde este se apropriou das alavancas do governo e nele foi capaz de permanecer –ou regressar pelo voto–, vem corroendo por dentro as instituições que alicerçam o sistema de liberdades. Os Estados Unidos sob Trump são o mais recente e calamitoso exemplo, pela crueza e rapidez da destruição promovida. Por isso mesmo, o que aqui se decidir terá repercussões além-fronteiras: servirá de exemplo.

Os crimes em julgamento no Supremo fazem parte de um conjunto particular de atentados à democracia: os autogolpes, ou seja, aqueles que têm por objetivo manter, pela força, o incumbente no poder. Desde 1945 há registros de perto de 50 tentativas ao redor do mundo. Dadas as muitas vantagens de quem arquiteta a permanência, são maioria os autogolpes que dão certo. Incumbentes tem mais informação, recursos políticos e, não menos importante, tropas. No Brasil republicano, fértil em quarteladas, tivemos apenas dois exemplos: um bem-sucedido e outro, agora, fracassado.

Êxito teve o autogolpe de 10 de novembro de 1937, com o qual Getúlio Vargas, com apoio militar, estabeleceu o Estado Novo e mudou para sempre a história do país, na economia e na política. O tempo e os acontecimentos posteriores se encarregaram de amenizar a imagem daqueles quase oito anos cruéis.

Para lembrar os maus tempos em que o Brasil flertou com o fascismo, vale a leitura, com dor e sabor, de “Trincheira Tropical”, livro recente do colega colunista Ruy Castro.

A fracassada tentativa tupiniquim de autogolpe começou a ser julgada pela Primeira Turma do STF. O rito legal, que certamente não seria concedido aos democratas se os conspiradores houvessem vencido, põe em uso a Lei de Defesa do Estado Democrático Direito, nascida em 2021 da ideia de dotar a democracia representativa de proteção institucional contra seus inimigos.

Assim, o julgamento da trama golpista é um passo importante para delimitar o campo da disputa política legítima, punindo aqueles que tentaram ostensivamente quebrar suas regras. Além do mais, julgar os golpistas ajuda a enfrentar o desafio bem mais complicado de isolar politicamente a extrema direita que apostou e apoiou a quebra da ordem. Minoria importante na opinião pública, chegou onde chegou pela legitimidade que, desde 2018, lhe conferiram outras forças que compõem o campo antipetista.

Circunscrevê-la a seu tamanho real seria mais um exemplo de inspiradora maturidade democrática.

 

A transformação do Brasil, por Márcio Pochman

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Márcio Pochman – A Terraé Redonda – 01/09/2025

A maior presença no comércio externo brasileiro nos países do Oriente e Sul Global encontra-se diretamente conectada à emergência dinâmica da estrutura produtiva mais localizada no interior do país, o que já parece apontar para a marcha do oeste do país.

1.

A parcela da população brasileira que estará adulta no ano de 2050 já nasceu, tendo quase 4/5 dela nascida em famílias pobres. Sem a presença do Estado dinâmico e ofertante de serviços universais de qualidade, o risco do segundo quarto do século XXI não atender tanto aos melhores anseios atuais como ao horizonte de expectativas superiores do amanhã para o conjunto dos brasileiros.

No segundo quarto do século passado, por exemplo, a crise do setor agroexportador deflagrada pela grande Depressão de 1929 foi superada por reformas constitutivas do Estado moderno, o que permitiu avançar na constituição de uma nova sociedade urbana e industrial. Em vez da regressão às atividades pré-capitalistas, o projeto de industrialização e urbanização nacional tornou o Brasil líder mundial no crescimento econômico, com ampla oferta de empregos e a difusão do assalariamento com direitos sociais e trabalhistas jamais experimentadas até então.

Antes que o projeto de industrialização nacional viesse a se completar, possibilitando a estruturação do mercado de trabalho, com a superação da economia de subsistência e da informalidade, a inflexão neoliberal colocou o Brasil em outro rumo. A partir de 1990, as reformas liberalizantes e enfraquecedoras do papel do Estado avançaram concomitante com a imposição da ruína na sociedade industrial.

Não obstante a importância da retomada do setor exportador, fortemente influenciado pelo segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (1975-1979), a trajetória estagnacionista na renda per capita retornou. Mais de três décadas depois, a participação do Brasil no PIB mundial é 2/5 menor do que era nos anos de 1980, com sinais inequívocos de regressão às atividades pré-capitalistas.

Atualmente, a economia de subsistência e popular oferta duas vezes mais postos de trabalho que o verificado no último quinto do século passado. Somente as ocupações vinculadas às atividades tipicamente capitalista reduziram em quase 30% a participação no emprego do total da força de trabalho do país.

Ao longo do tempo, a desestruturação do mercado de trabalho prevalece. Ademais da estagnação na taxa de assalariamento em relação ao total da força de trabalho, com decréscimo relativo das ocupações de classe média, o desemprego aberto tem sido contínuo.

O legado de atraso econômico imposto pelo receituário neoliberal se destaca tanto pelo estancamento da produtividade do trabalho como pelo declínio da taxa de lucro em vários setores produtivos que ainda resistem a se manter ativos diante da abertura econômica e financeira. No contínuo cenário de moeda valorizada e de altas taxas de juros reais, a inflação se mantém moderada, assim como o excedente exportador, mesmo diante da trajetória relativamente estagnacionista da renda per capita.

2.

Mas para o segundo quarto do século XXI, o aparecimento de novos elementos de mudança estrutural parece conferir novas perspectivas aos dilemas nacionais. Diante do processo transição profunda e acelerada para a Era digital, três deles aparecem inquestionáveis ao Brasil.

A começar pelo desenlace do deslocamento do centro dinâmico do Ocidente para o Oriente e do Norte Global para os países do Sul Global. Nas últimas duas décadas, por exemplo, o Brasil diversificou os seus parceiros comerciais, o que permitiu que países do Norte Global como os Estados Unidos, por exemplo, que respondiam por 24,5% do total das exportações brasileiras, em 2000, diminuíssem para 12% do total, em 2024.

A maior presença no comércio externo brasileiro nos países do Oriente e Sul Global encontra-se diretamente conectada ao segundo elemento de mudança estrutural do Brasil no segundo quarto do século XXI. Trata-se do curso das transformações geoeconômicas que aponta para a emergência dinâmica da estrutura produtiva mais localizada no interior do país, o que já parece apontar para a marcha do oeste do país.

O prolongado processo de desindustrialização terminou por esvaziar a centralidade produtiva das regiões litorâneas, outrora extremamente dinâmicas e atrativas de ocupações e renda. Considerando a proximidade do espaço territorial do centro-oeste e norte do Brasil com os países sul-americanos, o deslocamento geoeconômico tem sido impulsionado pelo protagonismo do setor exportador, bem como pelo conjunto de iniciativas infraestruturais nas vias de integração comercial com as nações de saída para o Oceano Pacífico.

Neste sentido, a inédita experiência nacional de assumir a condição bioceânica enquanto projeto estratégico de conexão entre os oceanos Atlântico e Pacífico pode equivaler – guardada a devida proporção – ao salto econômico verificado no século 19 pelos Estados Unidos durante a integração bioceânica proporcionada pela chamada “Marcha para o Oeste”.

O terceiro elemento de mudança estrutural reside na inflexão da trajetória demográfica nacional. Isso porque nos últimos duzentos anos, por exemplo, a população brasileira apresentou uma contínua trajetória de crescimento rápido. No século XIX, o número de brasileiros foi multiplicado por cinco vezes e, no século passado, a multiplicação foi por dez vezes, o que significou a necessidade do comprometimento acelerado de recursos públicos em atenção à expansão demográfica.

As projeções atuais apontam para o Brasil do ano de 2100 com população bem menor a do ano 2000. A partir da década de 2040, a população deve estagnar e começar a decrescer em termos absolutos diante da queda nas taxas de fecundidade, cuja longevidade populacional concentra crescentemente maior parcela de brasileiros acima de 60 anos de idade.

Neste novo cenário ao Brasil deste segundo quarto do século XXI, urge rever o papel do Estado. Outro tipo de atenção por parte da gestão governamental, com a implementação de políticas públicas preditivas que permitem se antecipar ao curso dos problemas, bem como aproveitar as oportunidades que se apresentam enquanto elementos de mudança estrutural da nação.

Em síntese, o segundo quarto do século XXI impõe uma nova agenda nacional de projeto ao Brasil.

O receituário neoliberal nada tem a dizer sobre o futuro da nação, pois prisioneiro exclusivo dos interesses curtoprazistas e improdutivos dominantes somente ofertam a estagnação da renda per capita, o congelamento da produtividade com queda na taxa de lucro de várias atividades econômicas e a regressão aos segmentos pré-capitalistas.

Sem a retomada do planejamento nacional, o futuro parece estar distante, tomado, pois, pelo destino a seguir dominante desde a década de 1990.

Marcio Pochmann, professor titular de economia na Unicamp, é o atual presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Autor, entre outros livros, de Novos horizontes do Brasil na quarta transformação estrutural (Ed. Unicamp).

Capitalismo e a “morte por desespero”, por Ricardo Queiroz Pinheiro.

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Ricardo Queiroz Pinheiro, bibliotecário, gestor público e doutorando em Ciências Humanas e Sociais (UFABC). Atua em biblioteca pública há 29 anos.

OUTRAS PALAVRAS – 01/09/2025

Na onda de overdoses, suicídios e alcoolismo, sintomas do vazio. Trabalhadores jogados à instabilidade vivem a corrosão lenta da vida cotidiana – quanto falta para virar tragédia? Richard Sennet já apontava: o desamparo vem travestido de “liberdade”

O capitalismo não cobra só no nosso bolso. Cobra na pele, na cabeça e no vazio que se abre quando o futuro deixa de ser promessa e se converte em ameaça. Ele se introjeta diariamente em nossas subjetividades. Essa dimensão, tão sentida na militância e no cotidiano, é a que mais me importa. Amigos que caem, vidas esquecidas, biografias tristes diante das quais temos quase nenhum recurso para oferecer solidariedade. Porque não se trata de estatísticas sobre desemprego ou crescimento, mas da corrosão lenta da vida cotidiana, das marcas invisíveis que se acumulam até virar tragédia.

Foi nesse terreno que Richard Sennett me ajudou a dar nome a algo que muitos já sentiam no corpo. Na obra, do fim dos anos 1990, Sennet falou em “corrosão do caráter”, não inventou uma metáfora elegante: registrou a experiência de um mundo em que a carreira com início, meio e fim desaparecia. O trabalhador passava a viver como peça descartável, sempre forçado a se adaptar, a se reinventar, a correr atrás de empregos fragmentados e instáveis. Essa flexibilidade, vendida como liberdade, deixava no lugar apenas ansiedade e desamparo.

Há alguns dias tive contato com uma resenha do livro “Deaths of Despair and the Future of Capitalism”, de Angus Deaton e Anne Case. Os dois trouxeram outro sinal dessa mesma devastação. Ao estudarem a onda de overdoses, suicídios e doenças ligadas ao álcool entre a população trabalhadora nos Estados Unidos, falaram em “mortes por desespero”. De novo, não se tratava de incompetência individual, como as bíblias liberais gostam de tratar, mas de uma resposta brutal ao colapso de perspectivas. Aquele que perde o trabalho estável, a possibilidade de sustentar a família, a confiança num amanhã melhor, muitas vezes perde também a própria vida.

Quando coloco lado a lado essas leituras, não as enxergo como teorias distantes, nem como análises restritas à classe média branca dos Estados Unidos. Vejo nelas chaves para compreender o que enfrentamos aqui também. A precarização do trabalho, a fragilidade dos serviços públicos e a dissolução dos vínculos comunitários abrem espaço para o vazio existencial e para a autodestruição. São duas faces de um mesmo processo: o capitalismo flexível mina tanto a identidade quanto o corpo, arranca o sentido da vida e o substitui pela insegurança permanente, pelo medo que submete e aprisiona. Trata-se de um fenômeno estrutural, que atravessa fronteiras, se inscreve no cotidiano de milhões e pode ser afirmado como um fenômeno interclasses.

É por isso que insistir nesse debate não é luxo, tampouco ornamento acadêmico. É questão de sobrevivência, núcleo da luta de classes. Uma sociedade que toma o crescimento econômico como sinônimo de progresso aceita, de antemão, a normalização da ansiedade, da doença e da morte evitável. O verdadeiro padrão de vida se mede naquilo que garante dignidade, pertencimento, consciência e horizonte para quem trabalha e resiste.

Esse é o chamado que nos interessa nas análises de Sennett e Deaton/Case: recolocar o preço humano no centro da política. Sem isso, a vida se desfaz em corrosão e desespero. Com isso, há chance de reconstruir um mundo em que o trabalho não seja uma sentença inapelável e em que o futuro não seja motivo de medo, desesperança e morte violenta.

“Corrosão do Caráter” de Richard Sennett (sobre o qual já falei antes), você consegue facilmente em sebos e livrarias. Já o outro título, “Deaths of Despair and the Future of Capitalism” de Angus Deaton e Ane Case, ainda não foi traduzido aqui.

A privatização da previdência; por José Menezes Gomes

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José Menezes Gomes – A Terra é Redonda – 19/08/2025

A privatização da previdência, longe de ser uma solução, revela-se um mecanismo perverso que submete o futuro dos trabalhadores à volatilidade do capital financeiro, aprofunda a exploração de classe e destrói a solidariedade intergeracional, escancarando a transformação do Estado em um mero gestor da barbárie social

1.

A privatização da seguridade social (saúde, previdência e assistência) ocorreu justamente no momento de aprofundamento da crise capitalista (crise mexicana 1995, crise asiática 1997, crise russa 1998, crise argentina 2001, crise da economia.com (2000), crise de 2008 e suas várias etapas. Essa crise resulta da queda da taxa de lucro nos setores industriais desde os anos 1980.

Tal fato, deslocou capital para áreas que até então estavam ocupadas pelo Estado, onde existiu o Estado de bem-estar social. A privatização de serviços públicos e as reformas do Estado visavam criar uma nova institucionalidade que permitisse o capital privado atuar de forma mais rentável vendendo novos produtos (saúde privada, educação privada, previdência privada, segurança privada, etc.).

A privatização da previdência teve sua primeira experiência no continente com o golpe militar no Chile em 1973, que permitiu aos Chicagos boys aplicarem suas políticas neoliberais. Entretanto, esse processo teve seu grande impulso nos anos 1980, justamente nos países que vivenciaram o Estado de bem-estar e tiveram apoio de setores ligados a esquerda com a ideia de que os trabalhadores ao aplicarem seus recursos num fundo de pensão significaria a constituição de um capitalismo em que teriam capital de longo prazo, onde poderiam ter participação nos conselhos de administração das empresas, onde esses teriam participação nos destinos das empresas, o que poderia representar uma nova forma de organizar a sociedade.

Todavia, o que a realidade mostrou é que este processo de privatização da previdência foi acompanhado pela restauração capitalista nos países do bloco soviético, desde 1991 que adotaram políticas neoliberais. Neste mesmo ano a crise capitalista deu sinal com a recessão americana. Depois desta crise se manifestar na periferia do capitalismo ela se descola para o epicentro capitalista.

Com isso a isso ela ocorre em 2000 e seguida de 2008, quado os fundos de pensão se tornam cada vez mais arriscados. Somente em 2008, os fundos de pensão, nos EUA, perderam U$ 4 trilhões nas suas aplicações nas bolsas. Vale lembrar que os fundos de pensão estadunidense foram grandemente beneficiados quando a taxa de juros do Banco Central dos EUA (FED) subiu de 5% para 20% em 1979.

2.

No Brasil, a realidade acabou mostrando que esses fundos acabaram deslocando grande parte dos seus recursos para os títulos da dívida pública em função da política de juros altos praticada pelo Banco Central. Desta forma os recursos dos fundos de pensão passaram a ser aplicados cada vez mais em títulos públicos, devido os ganhos vindos dos juros altos para rolagem da dívida pública. Com isso maior seriam os rendimentos destes títulos e maior possibilidade para o pagamento das aposentadorias e pensões no futuro.

Aqui se estabeleceu um dilema entre o futuro para previdência privada e o presente para os servidores públicos, já que quanto mais se elevava os juros maior era o endividamento do Estado nas várias esferas e maior a necessidade de se fazer o ajuste fiscal para que sobrasse dinheiro para o pagamento da dívida pública.

Para se fazer esse ajuste fiscal, para pagar essa dívida que crescia foram criados desde 1994, o Fundo de estabilização fiscal, a Lei de responsabilidade fiscal (LRF), a Desvinculação de Recursos da União (DRU), a Lei de teto de gastos e agora o arcabouço fiscal. Essas transformações ocorridas permitiram o que chamo de “Estado gestor da barbárie”, já que este dá continuidade a uma política tributária regressiva, faz renúncia fiscal de R$ 500 bilhões, privatiza quase todas as estatais usando dinheiro estatal subsidiado do BNDES, abre nova etapa de endividamento interno e externos dos estados e tenta impor uma reforma administrativa onde a precarização do trabalho, OSs e PPPs se aprofundam.

Em outras palavras, um Estado submetido ao sistema da dívida que pratica políticas de austeridade que aprofunda a barbárie social. Dentro disso resta a pergunta: Para que serve o Estado nacional?

A privatização da seguridade social, em especial da previdência, acabou submetendo os trabalhadores a outra dimensão de rentismo e ao mesmo tempo significou uma nova dimensão de colaboração de classes, já que esses fundos a medida que possuem volumes gigantescos de recursos aplicados em ações passam a compor os conselhos de administração das grandes empresas.

Desta forma essas empresas geridas pelos capitalistas clássicos e os representantes dos fundos continuam a ter como objetivo obter o máximo de mais valia. Ou seja, aplicam a precarização do trabalho para assegurar mais dividendos para que no futuro possam pagar as pensões e aposentadorias. Com isso os trabalhadores do Banco do Brasil, via Previ, passaram a controlar a Vale, via Valepar e com isso passaram indiretamente a ser cúmplices do aumento da exploração dos trabalhadores da Vale.

Por outro lado, os trabalhadores da Vale, via seu Fundo de Pensão, passaram a ter ações do Banco do Brasil e com isso ser cúmplices da precarização do trabalho dos trabalhadores do Banco do Brasil. Isso implicou no fim da solidariedade dentro da classe trabalhadora. Tudo isso só foi possível quando se destruiu o regime de repartição simples, onde uma geração financiava a outra, não tendo necessidade de se constituir um fundo para ser aplicado seja em ações ou em títulos públicos, acabando com a solidariedade entre as gerações.

3.

Tudo isso, porém, resultou da desorganização política da esquerda mundial que passou pela perda da identidade de classe e incorporação do ideário neoliberal e abandono das bandeiras históricas da classe trabalhadora.

O momento atual, em que se tenta mais uma nova contrarreforma da previdência temos uma crise da previdência privada, já que depende cada vez mais do mercado financeiro, que amplifica seus riscos quanto mais se aprofunda a crise capitalista. Enquanto isso, os planos de saúde vivem um momento em que grande parte dos médicos credenciados abandonam esses planos, que cobram cada vez mais caro e reduz ainda mais os serviços.

Os servidores públicos novos, nas três esferas, exceto militares, estão submetidos aos regimes próprios, que no caso dos estados e municípios, se submeteram ao regime de capitalização, que dependem cada vez mais do mercado e estão submetidos a suas incertezas.

A crise do Banco Máster revela como a busca por aplicação de maior retorno pelos regimes próprios pode levar a investimento de maior risco como aconteceu recentemente, acarretando perdas para vários regimes próprios.

Essas perdas nos regimes próprios podem ameaçar o pagamento futuro das aposentadorias. Já as perdas ocorridas nos grandes fundos de pensão como PREVI, PETROS e correios podem levar aos participantes a ter que aumentar a contribuição para recomposição dos valores perdidos. O caso mais grave ocorreu com o PETROS, dos Funcionários e aposentados da Petrobras que vão pagar por 18 anos uma conta de R$ 14 bilhões por perdas registradas.

O dilema dos regimes próprios dos estados fica mais claro pelos desvios e perdas reveladas pela CPI do RIOPREVIDENCIA. O regime próprio de Alagoas, o AL Previdência acabou criando um fundo garantidor a partir das 304 escolas públicas do Estado, significando a privatização dos prédios das escolas públicas, além do envolvimento da empresa estatal não dependente Alagoas ativos S/A em esquema de securitização.

4.

Como estou orientando uma tese de uma aluna que investiga esses dois regimes próprios estou acompanhando as atas de reuniões do conselho consultivo do Al Previdência. Nestas atas posso observar que as reuniões deste Conselho sempre começam com a leitura do boletim Focus, que é elaborado pelos rentistas e as decisões de investimento deste regime sempre depende deste economista contratado e do que indica esse boletim. Em outras palavras, a independência do Banco Central e a elevação da taxa de juros, alegando combater a inflação, mas que na verdade permite que numa taxa básica de 15% e inflação de 5% permitem que o comprador de títulos tenha um ganho real de aproximadamente 10%.

Com essa política monetária temos um crescente aumento dívida pública que em seguida vai exigir um novo ajuste fiscal e um novo ataque aos servidores públicos como a proposta de reforma administrativa e da previdência. Neste processo os servidores públicos estão colocados como responsáveis pelo aumento das despesas públicas, encobrindo o verdadeiro responsável pelo aumento desses gastos: a dívida pública, a política de juros altos, a renúncia fiscal crescente.

O grande desafio que temos no momento é o crescimento da bancada BBBB (Bancos, Bíblia, Boi e Bíblica) que usa a pauta moral para se eleger e que em seguida produzem a retirada dos direitos sociais e reafirma a austeridade fiscal e a política de juros altos. Curiosamente dentro desta bancada temos uma aliança invisível entre os mais ricos, que querem privatizar tudo e os mais pobres que fazem base das igrejas neopentecostais, impulsionados pela teologia da prosperidade e teologia do domínio.

Aqui os mais pobres e que necessitam de políticas sociais são os que dão votos naqueles que são os mais ricos e também os que mais recebem recursos do Estado via BNDES, renuncias fiscais, perdão de dívidas e apoio dos órgãos estatais aos seus empreendimentos privados.

Para darmos continuidade a luta contra a reforma administrativa e da previdência temos que construir a unidade entre os trabalhadores do setor privado e do setor público destacando que o principal determinante dos gastos públicos é a dívida pública. Nesta direção precisamos esclarecer junto à população que grande parte da dívida federal é dívida dos estados e que na sua maioria é dívida resultante da conversão das dívidas privadas das burguesias regionais junto aos bancos estaduais.

Sendo assim, temos que denunciar que entre os deputados e senadores que estão votando as contrarreformas temos uma grande parte que se beneficiou dos bancos estaduais no seu enriquecimento privado. Auditar as dívidas estaduais é parte fundamental para o diálogo com a maior parte da população que tanto precisa da ampliação dos direitos sociais.

José Menezes Gomes é professor de economia na Universidade Federal de Alagoas (UFAL).

Economia e democracia num mundo em crise, por Leda Paulani

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Leda Paulani – A Terra é Redonda – 23/08/2025

A perspectiva para a democracia é sombria, pois ela continua a gerar seu próprio oposto: um sistema econômico baseado na desigualdade estrutural mina seus alicerces e alimenta anseios por autoritarismo, como mostram as feridas do passado que ressurgem

1.

Quero, em primeiro lugar, agradecer o convite que me foi feito para estar, em tão honrosa companhia, [1] na mesa de encerramento deste evento.

Seus organizadores, que, com justa razão comemoram os cinco anos de existência do Made – este Centro de Pesquisas em Macroeconomia das Desigualdades que tão milagrosamente nasce e sobrevive numa escola tão conservadora como esta – me pedem que fale sobre as “perspectivas da economia e da democracia num mundo em crise”.

Mas, neste mundo em crise, acossado por ameaças e flagelos de natureza vária, do imponderável da inteligência artificial à anomia social, do imperialismo explícito ao inaceitável genocídio, da catástrofe climática ao perigo nuclear, não é possível falar em democracia sem falar simultaneamente em seu antípoda, o fascismo, ou neofascismo, e seu cortejo de crenças e práticas autoritárias que hoje nos assombra.

E que, no entanto, como mostra o filósofo alemão Theodor Adorno, não é uma deformação que possa ser depurada de um organismo saudável; é um traço latente e profundo da modernidade burguesa, e isso tem tudo a ver com economia, e com desigualdade.

Em seus escritos e intervenções dos anos 1960 do século passado, o conhecido filósofo ponderou que a democracia, enquanto continuasse a trair suas promessas, permaneceria gerando ressentimentos e despertando anseios por soluções extrassistêmicas. Em palestra de 1967, Theodor Adorno fala, em Viena, a convite de estudantes austríacos, preocupados que estavam então com o crescimento e fortalecimento, na Alemanha, no seio de uma democracia aparentemente consolidada, de um novo partido neonazista, e isso em pleno capitalismo pacificado dos “anos dourados”.

Ele afirma então que os movimentos fascistas são “como feridas, são cicatrizes de uma democracia que ainda não faz justiça a seu próprio conceito”. E pouco depois acrescenta que a relação desses movimentos com a economia é uma “relação estrutural”, pois o processo irrefreável de concentração de capital aumenta permanentemente a desigualdade e a pauperização, degradando camadas sociais antes mais ou menos bem postadas na hierarquia social capitalista e produzindo assim uma sociedade continuadamente melindrada e repressiva.

Theodor Adorno não podia prever o levante neoliberal iniciado nos anos 1980, tampouco quão gritantemente verdadeiras se tornariam suas palavras. Ao potencial demolidor dos anseios democráticos inerente à acumulação de capital enfatizado pelo pensador alemão, o levante das elites, com o totalitarismo da razão e dos princípios liberais que daí resultou, agregou-lhe elemento ainda mais pernicioso, pois normalizou a iniquidade social, destronando os valores que sustentam a luta pela democracia.

Depois de quase meio século de políticas que só fizeram aumentar a desigualdade mundo afora, com a democracia reiteradamente traindo suas promessas, o resultado é o que vemos: as cicatrizes tornaram-se feridas abertas, com a ascensão indiscriminada, no centro e nas periferias do sistema, de grupos, movimentos e governos de perfil e vocação fascistas.

E é assim que assistimos hoje, abatidos e inertes, ao retorno de doutrinas e teses que pensávamos pertencerem ao passado, como o supremacismo branco, a crítica ao fato de as mulheres votarem, a defesa da homofobia e os ataques reiterados à cultura, para não falar do negacionismo climático e do negacionismo científico em geral.

2.

Ora, se o que coloca em xeque a democracia é a reiterada produção sistêmica de desigualdades, é preciso, em primeiro lugar, averiguar qual é o estatuto que a igualdade ocupa no capitalismo. Para começar, deveríamos indagar se a preocupação com a desigualdade faz sentido em outras formações históricas.

As perguntas sobre ela (sua dimensão, suas causas, seus desdobramentos) fariam sentido no mundo feudal, desigual por definição, ou na antiguidade clássica, movida pelo trabalho escravo, ou no comunismo primitivo, onde giraria em falso qualquer colocação do tipo igualdade x desigualdade?

É evidente que as citadas questões só fazem sentido na e para a sociedade moderna, porque é nela que a igualdade está pressuposta. Basta lembrarmos aqui, para não ter que ir muito longe, do grito de guerra da Revolução Francesa. Mas, quando dizemos que no capitalismo a igualdade está pressuposta, este termo deve ser entendido de modo rigoroso. Dialeticamente, o que está pressuposto é exatamente aquilo “que não está posto” e esse “não estar posto” pode se dar em dois sentidos diferentes, ou por duas razões diferentes: pode se tratar de algo ainda não posto, ou de algo que está posto como negado.

No caso da igualdade, poderíamos dizer que ela está pressuposta nos dois sentidos. No sentido de algo que é posto como negado, a igualdade está pressuposta porque, ainda que fenomenicamente, no âmbito do mercado, ela exista (uma das leis da circulação simples diz que valor se troca por valor igual, ou não poderíamos colocar os sinais de igual nas equações de troca: 1 litro de leite = 2 pãezinhos, ou 1 litro de leite = R$ 5,00), ainda que a igualdade exista, portanto, fenomenicamente, Marx nos mostra que ela se interverte em desigualdade, ou seja, se nega, quando a força de trabalho assume, ela própria, a forma de mercadoria e entra no lado esquerdo da equação.

Essa igualdade presente no plano da circulação e, pois, no plano dos valores/preços das mercadorias implica uma igualdade também presente, e da mesma maneira negada, no plano dos agentes da troca: temos, em ambos os lados de uma transação, iguais proprietários de mercadorias, que trocam obedecendo tão somente seu livre arbítrio, mas, para alguns deles, a força de trabalho é sua única mercadoria, o que vai introduzir de partida, nessa relação de iguais, uma desigualdade imanente.

Já no sentido de algo ainda não posto, a igualdade está pressuposta porque ela pode ser tomada como um vir-a-ser, como algo cuja posição se deve buscar, e/ou como algo que a Modernidade prometeu à humanidade, ainda não entregou, mas poderá – ou nós devemos lutar para – ser entregue. Claro está que, para Karl Marx, a pressuposição da igualdade por conta de sua posição como algo negado é o que prevalece, sendo que a luta que deve ser feita para acabar com o caráter contraditório da igualdade dentro dos limites desse sistema pode ser uma luta inglória.

A percepção do caráter pressuposto da igualdade na sociedade capitalista, ou seja, de seu caráter contraditório de existir não existindo, ou de se colocar como um eterno vir-a-ser, deriva da compreensão da ordem do capital como algo sistêmico, e que, portanto, só pode ser corretamente entendido se o enxergarmos em sua totalidade.

Pensar a questão da desigualdade como mero “problema”, e que, enquanto tal, pode ser resolvido com a aplicação dos remédios corretos, é entendê-la como um acidente, como algo que pode ou não ocorrer, e não como algo que resulta necessariamente da essência desigual do sistema.

3.

E voltamos com isso às preleções de Theodor Adorno e à sua afirmação de que a democracia ainda não fez jus a seu próprio conceito. É verdade que ele denunciou tal violação há quase 60 anos, mas, de lá para cá, o mundo não andou na direção de contradizê-la, antes o inverso. Isto posto, dado este quadro tão pouco alvissareiro, chegamos às perspectivas que se podem traçar, neste momento, para a economia e para a democracia.

A crise enfrentada hoje pelo sistema capitalista, que se tornou pela primeira vez de fato mundial, é resultado da tendência à sobreacumulação que lhe é inerente, a qual despontou com força nos anos 70 do século passado e permanece ainda hoje irresolvida. Foram a financeirização do processo de acumulação, a ascensão da China e o próprio levante neoliberal que possibilitaram sua sobrevida até aqui.

A primeira porque, graças à profusão na emissão de capital fictício, vai permitindo deslocar no tempo, e, nesse sentido, ajudando a “resolver”, a questão das alternativas à valorização do capital (por mais, é claro, que faça isso alavancando o potencial de contradições do sistema).

A segunda porque o gigante asiático representava, até o terceiro quartel do século passado, um continente inteiro à margem do moinho capitalista, configurando desde então uma colossal fonte de demanda efetiva adicional a serviço da acumulação. Por fim, o advento do neoliberalismo, com sua homília cotidiana em torno das benesses das privatizações e dos cortes de gastos públicos, age no mesmo sentido, produzindo uma fonte quase permanente de novos ativos capazes de sustentar o processo.

Mas tudo isso está hoje em xeque. O processo de financeirização levou um golpe severo com a grande crise internacional de 2008. É verdade que, depois de três ou quatro anos de moderação, o processo de emissão de capital fictício retomou com força. De acordo com os últimos dados disponíveis, a relação estoque mundial de ativos financeiros/PIB mundial passou de 2,9 em 2008 para 5,4 em 2021.

De toda forma, como tal processo, por conta da atividade especulativa que a ele se vincula, está inerentemente associado a estouro de bolhas e crises abruptas, ele parece estar mais para problema do que para solução. Por exemplo, algumas cassandras, encontradas, pasmem, no Deutsche Bank, perguntaram recentemente (isso saiu no jornal Financial Times em julho último) se o crescente aumento de empréstimos para financiar a compra de ações não seria um sinal de “intensa euforia”, não perceptível desde 1999 e 2007. [2]

A China, de seu lado, perdeu um pouco do fôlego inicial, ainda que com um desempenho robusto e de modo nenhum próximo a qualquer performance em curso no assim chamado mundo desenvolvido. O gigante asiático, contudo, permanece um enigma: com seu capitalismo potente e exuberante, que empurra a acumulação e serve aos capitais de todo o globo, coordenado e dirigido, porém, pelo partido comunista, fascina e ao mesmo tempo apavora as cabeças pensantes do mundo ocidental.

Por fim, o neoliberalismo. Há um debate intenso sobre o que aconteceu e está acontecendo com o dito-cujo. Morreu, se transformou, está em transição? Essas perguntas, diga-se, fizeram-se à larga quando da crise de 2008, sobretudo por conta das soluções que então apareceram: forte intervenção do Estado, estatização de instituições financeiras, quantitative easing. [3] O neoliberalismo ficou keynesiano?

Mas a verdade é que, depois da crise, mesmo com todos os desdobramentos, a pregação em torno dos princípios e das prescrições liberais redobrou e continuou a espalhar desigualdade – com as exceções de praxe, claro, sob os auspícios de políticas sociais de forte impacto, como aconteceu em alguns períodos no Brasil. Só que, hoje, o neoliberalismo é muito mais reacionário, pois deixou de lado as veleidades progressistas que usou como ornamento durante um bom tempo.

Seja como for, mesmo se os três expedientes estivessem em sua melhor forma, ainda haveria que enfrentar aquele que é talvez o principal problema para um sistema que requer produção sem limites: a questão ambiental. O último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), da ONU, o qual se tornou referência mundial sobre o tema, assevera que o aquecimento global está se acelerando numa velocidade nunca antes vista, ao ponto de podermos atingir, já em 2030, a elevação da temperatura média do globo em 2oC relativamente ao nível pré-industrial, marca essa, não custa lembrar, que o Acordo de Paris, firmado em 2015, tinha por objetivo justamente impedir de atingir em… 2100!

4.

Isto posto, não dá para dizer que podem ser boas as perspectivas da economia. A economia brasileira, por sinal, até que não anda se saindo tão mal, com taxa de juros de 15% e tudo. Mas o contexto geral é muito pouco promissor.

E a democracia? Bem, quanto à democracia, não fosse por todo o obstáculo que representa a própria disseminação e aprofundamento da desigualdade, temos agora, no comando do ainda maior PIB do mundo, uma mistura tóxica de reacionarismo, xenofobia, supremacismo, misoginia, homofobia, ódio à cultura, censura, prepotência e mandonismo imperial, de modo que hoje, sobre os Estados Unidos da América, pode-se dizer qualquer coisa, menos que continue a ser uma democracia.

Mas este não é, como pode parecer, um elemento que simplesmente se adiciona a uma situação já muito complicada. Ele é o resultado mesmo dessa falência sistêmica geral, que arrasta consigo a hegemonia americana.

O sociólogo alemão Wolfgang Streeck afirma que, a despeito da sempre presente exaltação dos valores democráticos pela sociedade de hoje, o mundo moderno só experimentou uma única vez aquilo que se poderia chamar de “capitalismo democrático”, ou seja, um arranjo capaz de conciliar o feitio naturalmente antidemocrático da acumulação capitalista com os anseios de igualdade e respeito pelo ser humano.

O santo responsável pelo milagre teria sido justamente o cenário auspicioso, marcado pelo crescimento econômico forte e persistente, que caracterizou os trinta anos gloriosos iniciados no pós-Segunda Guerra e que precederam a etapa atual, de gestão neoliberal do sistema.

Repetir tal façanha parece, todavia, cada vez mais improvável, e não só porque a roda da história não gira para trás. É sobretudo porque temos um único planeta, finito e limitado, incapaz de acomodar, em suas estreitas balizas, um sistema econômico de vocação infinita, vocação, porém que não age em prol da emancipação humana, mas tão somente em benefício da acumulação infindável de riqueza abstrata.

Qualquer mudança efetiva no sentido de tornar o planeta e o mundo ambiental e socialmente mais habitáveis depende cada vez mais e mais da luta política e do auxílio que a ciência pode prover.

Daí a imensa importância de monitorar as mazelas cotidianamente produzidas, zelar pelas feridas que vão se abrindo. Uma macroeconomia da desigualdade, como propõe o Made, é uma macroeconomia que enobrece a ciência econômica, que a torna digna do nome de ciência, e, mais importante ainda, que joga no time da democracia, tão precisado, como vimos, de craques verdadeiros.

Parece ainda muito longe o dia em que a democracia venha a fazer jus a seu conceito, como reclama Theodor Adorno, mas o Made faz a sua parte. Parabéns, Made, pelos cinco anos! Que muitos mais venham pela frente. Muito obrigada.

Leda Paulani é professora titular sênior da FEA-USP. Autora, entre outros livros, de Modernidade e discurso econômico (Boitempo)

Notas

[1] Fala em evento na FEA-USP, em 22 de agosto, para celebrar cinco anos do Made (Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades). Participavam também da mesa Corina Enrique Rodriguez (Universidade de Buenos Aires), Ramaa Vasudevan (Colorado State University) e Marcos Nobre (IFCH/Unicamp e Cebrap).

[2] Me beneficio aqui de informação encontrada em artigo de Luiz Gonzaga Belluzo e Manfred Back, publicado no site A Terra é Redonda, em 15 de agosto de 2025.

[3]. Política de monetização de ativos financeiros visando injetar liquidez na economia, adotada nos EUA pelo Federal Reserve para enfrentar a crise de 2008.