O novo fordismo educacional, por Álvaro Machado Dias.

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Educação é campo privilegiado para IAs especializadas, que estão mudando o setor

Álvaro Machado Dias, Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind.

Folha de São Paulo, 15/06/2025

Quando a vida é encarada como competição, a adaptabilidade torna-se o valor mais elevado. Surge assim a intuição de que os comportamentos improdutivos devem ser diligentemente eliminados, justificando a cinta e a velha palmatória para além do prazer de ferir e humilhar.

Porém, evidências acumuladas mostram que o reforçamento é bem mais eficiente do que a punição. Este princípio levou à abolição dos castigos físicos na escola —o que na prática marcou o surgimento da educação contemporânea— e também à explosão da inteligência artificial, que é programada para perseguir recompensas (matemáticas) como um bandeirante.

A convergência metodológica faz da educação um campo privilegiado para IAs especializadas, que estão mudando o setor com promessas de turbinar o aprendizado e substituir o uso desonesto dos chatbots nas lições de casa por aplicações curriculares. Nos Estados Unidos, já há escolas alegando possuir tecnologias que ensinam em duas horas o que antes tomava um dia inteiro.

Esta é a teoria; a prática revela uma divergência nada trivial de incentivos. Bons professores catalisam o desenvolvimento de modelos de entendimento e sociabilidade, assinalando o valor intrínseco destas dimensões existenciais e dando ênfase à necessidade de se esforçar para aprender. Já bons assistentes pedagógicos reforçam seu próprio uso, que é condição necessária para que sigam instruindo a turma e cobrando mensalidade.

A prerrogativa para reforçar o próprio uso é nunca frustrar o aluno, o que na prática significa jamais pôr em xeque seu papel de cliente, que deve receber elogios a cada ação e, sobretudo, pode se angustiar se a resposta à tarefa não for logo regurgitada. O caso é idêntico ao das IAs terapêuticas, reforçadas para evitar o contraditório, que é simultaneamente o grande vetor da transformação e a grande ameaça à continuidade do plano contratado.

O aprendizado formal envolve a aquisição de novas formas de pensar, o que muitas vezes obriga o aluno a lidar com fatores extrínsecos à noção em foco (como no caso em que precisa imaginar a figura impressa girando no espaço). Assistentes de ensino com IA facilitam este processo pela personalização da demanda conceitual e redução do peso dos fatores extrínsecos, já que usam animações e outros recursos que mitigam a necessidade de malabarismos mentais capazes de dificultar a incorporação do conceito-alvo.

A promessa é de que criariam um papel ainda mais valioso do que o tradicional para o professor, que poderia focar menos a repetição e mais a promoção de convergências interdisciplinares e experiências críticas. Porém, a realidade até aqui tem sido outra. Nela, os alunos que não enxergam um propósito maior na educação se aproveitam da IA; a lição em forma de jogo desvaloriza a leitura; e a evitação do contraditório, inerente à noção do aluno como cliente, reduz o contato com a sua própria fragilidade, reforçando o seu egocentrismo.

Aos poucos, estas ideias vão circulando entre os educadores. O resultado é o surgimento de uma nova dicotomia programática no ensino privado, não mais entre as escolas que cruzaram ou não a fronteira da IA, mas entre as que concebem seu papel de forma criteriosa e as que enxergam na tecnologia a oportunidade para uma nova era de ouro do fordismo educacional.

 

O ‘rei do ovo’ e as Odetes Roitmans da vida real, por Flávia Boggio

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Não é preciso ser sociólogo para entender por que tantos ricos detestam o Bolsa Família

Flávia Boggio, Roteirista. Escreve para programas e séries da Rede Globo.

Folha de São Paulo, 19/06/2025

Interpretada em 1988 por Beatriz Segall e, na nova versão, pela também brilhante Débora Bloch, Odete fez sucesso, entre outras coisas, por representar com fidelidade o rico brasileiro que odeia o país e tem nojo de pobre.

Em entrevista publicada nesta Folha, o “rei do ovo”, como é conhecido o empresário Ricardo Faria, completou o bingo Odete Roitman das lamentações do rico nacional. Reclamou da burocracia, da carga tributária, das leis trabalhistas, da política e, como de praxe, dos programas sociais.

Dono da empresa Global Eggs e uma das pessoas mais ricas do Brasil —com uma fortuna de mais de R$ 17 bilhões—, Faria não pisou em ovos, com o perdão do trocadilho, e desabafou: disse que os brasileiros mais pobres estariam “viciados em Bolsa Família” e que não querem trabalhar.

A dúvida é: como um empresário com um discurso tão 2002, sem apresentar nenhuma evidência, tem uma empresa de sucesso? Provavelmente, o mérito é das galinhas.

Ao contrário do que ele e parte da elite pensam, há inúmeros estudos que descartam a teoria de que o programa social “deixa o trabalhador preguiçoso”. Pelo contrário: quanto mais pessoas beneficiadas pelo Bolsa Família, mais cresce o emprego com carteira assinada. O que elas rejeitam é o trabalho desumano.

Mas não é preciso ser sociólogo para entender por que tantos ricos brasileiros detestam o Bolsa Família. Não é porque acham que ele torna o trabalhador preguiçoso. É porque, com mais pobres desempregados, podem contratá-los pagando menos.

É assim que funciona na Granja Faria, principal empresa do “rei do ovo” no país. Os operadores de produção ganham cerca de R$ 1.670 por mês —14% abaixo da média nacional.

Esse tipo de crítica é comum entre as Odetes Roitmans modernas, que cultivam como hobby —além do golfe e do beach tennis— o hábito de falar mal do Brasil. O que elas não querem que as pessoas percebam é que o maior problema do país são elas mesmas.

Na mesma entrevista, Ricardo Faria se declara um homem que “trabalha duro” e que não herdou nada. É filho de um médico e uma engenheira, fez intercâmbio nos Estados Unidos aos 15 anos e estudou em Harvard. Mais uma vez, com o perdão do trocadilho: “meritocracia, meu ovo”.

 

 

O impacto do Bolsa Família na saúde dos brasileiros, por Drauzio Varela

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Vivemos num país com uma das mais perversas distribuições de renda do mundo

Dráuzio Varela, Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

Folha de São Paulo, 19/06/2025

Se a justificativa que você encontra para condenar o Bolsa Família é a de uma platitude do tipo “está errado distribuir o peixe, o certo é ensinar a pescar”, preste atenção. O Foreign, Commonwealth & Development Office e o Medical Research Council, órgãos do governo britânico, e a instituição filantrópica Wellcome Trust, organizações da maior respeitabilidade, patrocinaram um estudo que acaba de ser publicado na prestigiosa revista médica The Lancet.

Nele, foi avaliado o impacto do Bolsa Família na saúde dos brasileiros nos 20 anos que se passaram desde a sua criação, em 2004.

Atualmente, o programa atinge mais de 20 milhões de famílias e cerca de 55 milhões de pessoas

Estudos anteriores tinham demonstrado que o programa reduzira em 18% a mortalidade total das mulheres, além de diminuir a mortalidade infantil, a materna e os óbitos por causas específicas como HIV, Aids e tuberculose, especificamente entre as pessoas mais vulneráveis.

Não havia, porém, avaliação de sua relação com o número de internações hospitalares e com a mortalidade geral por faixa etária. A publicação da Lancet mostra, pela primeira vez, um estudo com abrangência analítica adequada para avaliar o impacto do Bolsa Família na mortalidade e nas hospitalizações em três grupos etários: abaixo de cinco anos, de cinco a 69 anos e com 70 anos ou mais.

Os principais achados foram:

1) Nos 20 anos analisados, a mortalidade geral dos beneficiários caiu 18%, queda que ocorreu em todas as faixas etárias.

2) Nesse período, o programa evitou 8,2 milhões de internações hospitalares e 713 mil mortes, em números arredondados.

3) A mortalidade infantil diminuiu 33%. Ou seja, de cada três mortes de crianças com menos de cinco anos que ocorreriam sem o Bolsa Família, uma foi evitada.

4) A hospitalização de mulheres e homens com 70 anos ou mais caiu pela metade.

O Bolsa Família é considerado pelas organizações internacionais um programa de transferência de renda condicional, uma vez que impõe a observância de contrapartidas para ter acesso a ele: frequência das crianças na escola, manter em dia a caderneta de vacinações e as consultas do pré-natal.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) caracterizou com três “C” os principais desafios socioeconômicos impostos a diversos países nos últimos anos: Covid, clima e conflitos. A conjunção desses fatores adversos provocou aumento da pobreza e piora dos indicadores educacionais na maior parte do mundo.

O aumento da dívida pública consequente a esses agravos levou à adoção de medidas de austeridade fiscal, com cortes de orçamento que reduziram investimentos em medidas de proteção social e de acesso aos cuidados com a saúde pelo mundo inteiro.

Em 2024, o investimento no Bolsa Família foi de R$ 218,5 bilhões. Cada beneficiário custa, em média, aos cofres do governo federal, aproximadamente R$ 684.

Convenhamos que não é um custo proibitivo: ao todo, representa apenas 0,4% do PIB brasileiro. Por outro lado, cada R$ 1 investido faz girar R$ 2,40 no consumo dessas famílias.

É difícil calcular quanto o SUS economizou com as internações evitadas no decorrer desses 20 anos. Além da inflação no período, os valores médios pagos por internação são muito variáveis. As diárias hospitalares vão de R$ 300 a R$ 800, no caso dos problemas clínicos mais simples, e de R$ 5.000 a mais de R$ 15 mil nos casos de alta complexidade.

De qualquer forma, o dinheiro economizado com internações e os ganhos de produtividade dos que não precisaram ir para o hospital e dos que não perderam a vida têm de ser descontados do investimento anual do programa.

Existem os que se queixam de que o programa gera acomodação dos beneficiários, que deixam de trabalhar para viver das benesses do governo. É provável que seja verdade, mas vamos atacar essa questão somente quando soubermos quantificá-los.

Quantos são? Onde vivem? Quais são as características socioeconômicas desse grupo específico?

Enquanto não formos capazes de obter dados confiáveis, ficaremos discutindo opiniões sem base em evidências, conversas de redes sociais e palpites de botequim que não ajudam em nada.

Vivemos num país com recursos naturais invejáveis para o resto do mundo, grande número de profissionais bem treinados, alguns dos quais com pós-graduação nas melhores universidades do Brasil e do mundo, mas ao mesmo tempo com uma das mais perversas distribuições de renda do mundo.

Um país em que o 1% mais rico da população ganha 39,2 vezes o que ganham os 40% mais pobres, segundo o IBGE, nunca estará entre os mais desenvolvidos nem terá paz nas ruas.

 

Criança não trabalha, por Bianca Santana

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Quantos dos presentes trocados no Dia dos Namorados foram produzidos por trabalho infantil?

Bianca Santana, Doutora em ciência da informação, mestra em educação e jornalista. Autora de “Quando me Descobri Negra”.

Folha de São Paulo, 16/06/2025

O 12 de junho, Dia dos Namorados no Brasil, é também Dia Mundial de Erradicação do Trabalho Infantil. Segundo a Organização Internacional do Trabalho e a Unicef, 138 milhões de crianças trabalharam em 2024.

O ouro, a prata e a pedra da joia presenteada podem ser frutos de mineração ilegal, que degrada territórios e explora crianças na África. A roupa, a pelúcia, o enfeite podem ter sido fabricados por mãos infantis na Ásia.

Mesmo que a responsabilidade pela erradicação do trabalho infantil seja dos Estados, não podemos seguir fingindo que as escolhas individuais não têm conexão com o todo.

Recentemente, participei de um “Sempre um Papo” no Sesc Pinheiros, em São Paulo, com Ricardo Abramovay e Semayat Oliveira, sobre consumo consciente e o futuro das cidades. Ali, ficou evidente a necessidade de políticas públicas de estruturação de um sistema econômico mais ético. A conversa está disponível online para quem se interessar por ela.

Responsabilizar indivíduos não é a resposta para o tamanho do desafio de colocar pessoas e a natureza no centro das escolhas políticas. E, mesmo que pareça, não há contradição com a perspectiva feminista de que no nosso cotidiano é preciso considerar as condições de produção daquilo que usamos, vestimos e comemos.

Cito Silvia Federici na publicação da SOF (Sempreviva Organização Feminista) “Feminismo, economia e política: debates para a construção da igualdade e autonomia das Mulheres”, organizado por Renata Moreno: “(…) precisamos superar o estado de negação constante e de irresponsabilidade em relação às consequências de nossas ações, resultado das estruturas destrutivas sobre as quais se organiza a divisão social do trabalho dentro do capitalismo. Sem isto, a produção da nossa vida se transforma, inevitavelmente, na produção da morte para outros.”

Se o consumo consciente é importante para atender nossas necessidades básicas do cotidiano, quando nem sempre é a opção mais barata ou mais fácil comprar comida orgânica do pequeno produtor, ele se torna imperativo ao presentear. A escolha por agradar alguém pode vir acompanhada da premissa de fazer o dinheiro circular na economia local, entre quem se dedica a produzir comida, cosméticos, biojoias, artesanato que respeita as pessoas e a natureza.

O relatório “Trabalho Infantil: Estimativas Globais 2024, tendências e o caminho a seguir”, lançado no último 11 de junho pela OIT e a Unicef, traz recomendações para os Estados erradicarem o trabalho infantil: investimento em proteção social para famílias vulneráveis, fortalecimento dos sistemas de proteção infantil para identificar, prevenir e responder às crianças em risco, acesso universal à educação da qualidade, garantia de trabalho decente para adultos e jovens, leis e responsabilidade empresarial para acabar com a exploração e proteger as crianças em todas as cadeias de suprimentos.

É preciso denunciar, cobrar, votar pela erradicação do trabalho infantil. Mas não faz mal considerar, individualmente, a cadeia produtiva do que consumimos. Para que o presente a quem amamos esteja carregado de vida, não de violência e morte.

 

 

O PL da Devastação e a miopia climática, por Oscar Vilhena Vieira

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Se aprovado, projeto deveria ser vetado pelo presidente

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023).

Folha de São Paulo, 14/06/2025

Na contramão dos esforços para conter e mitigar a crise climática, o Congresso Nacional está prestes a aprovar o PL 2159/21, que implodirá importantes mecanismos de proteção socioambiental estabelecidos pela Constituição de 1988 que vêm sendo implementados ao longo das últimas décadas.

Para atender aos interesses imediatos e à ganância de alguns setores da economia, o Parlamento comprometerá os interesses gerais de toda a comunidade, assim como o próprio desenvolvimento sustentável da economia brasileira, que tem na preservação ambiental e na biodiversidade a sua maior vantagem competitiva.

Como há muito alertou David Hume, os homens comumente se deixam seduzir por tentações presentes, ainda que irrelevantes, em detrimento daqueles interesses que lhe são verdadeiramente importantes, mas mais longínquos, sendo essa uma fraqueza “incurável na natureza humana”.

Com a aproximação da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 30), que se realizará em Belém, setores predatórios da economia brasileira têm mobilizado suas bancadas no Congresso Nacional para promover um verdadeiro atentado contra o bem-estar das futuras gerações. O festival de agressões ao meio ambiente, à biodiversidade e aos direitos fundamentais dos povos tradicionais tem como peça central o chamado PL da Devastação.

Conforme nota técnica emitida pelo Observatório do Clima, o objetivo central do projeto, em vias de aprovação na Câmara dos Deputados, é ampliar as hipóteses de isenção de licenças ambientais, priorizando o autolicenciamento, inclusive para projetos com potencial poluidor. Isso reduzirá a capacidade de prevenir desastres ambientais, devastação florestal e degradação ambiental, além de fragilizar os mecanismos de fiscalização e punição daqueles que agridem o meio ambiente.

O projeto, se aprovado, também violará os direitos indígenas, quilombolas e das populações tradicionais, na medida em que restringiu a participação de diversas agências e autoridades responsáveis pela proteção dessas populações no processo de licenciamento, além de deixar desprotegidas as áreas ainda não demarcadas. Preocupação esta que foi expressa pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos em mensagem endereçada ao Congresso.

Mesmo aqueles que defendem reformas no processo de licenciamento ambiental, como o presidente do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), Raul Jungmann, alertam para os riscos de “arrebentar os mecanismos de controle e fiscalização do meio ambiente”.

Além dos impactos sobre o meio ambiente e as populações que protegem nossas florestas, o PL 2159 também ameaça o regime de chuvas e a segurança hídrica, indispensáveis para o sucesso do agronegócio e da própria estabilidade da vida em grandes conglomerados urbanos. Se aprovado, promoverá ainda uma enorme insegurança jurídica, provocando uma explosão de litigiosidade. Pior, esse litígio ocorrerá depois que o estrago já tiver ocorrido.

Trata-se de um projeto de lei eivado de inconstitucionalidades e que não trará nenhum benefício à sociedade brasileira. Como as pérfidas agressões à ministra Marina Silva por parte de alguns senadores, esse projeto é uma expressão da irresponsabilidade e do descaso de muitos parlamentares com as futuras gerações.

Por todos esses motivos, o PL 2159 não deveria ser aprovado. Se for aprovado, deveria ser vetado pelo presidente. Se sancionado, deveria ser declarado, em seu cerne, inconstitucional.

 

O eterno espírito das universidades, por Muniz Sodré

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Aos trancos e barrancos, as instituições de ensino erguem-se como bastiões de defesa contra o avanço do neofascismo

Muniz Sodré, Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”.

Folha de São Paulo, 15/06/2025

O ataque de Trump às universidades americanas, maioria no rol das melhores do mundo, é sintoma forte do neofascismo transnacional. Não foi adiante no período de Bolsonaro, mas exerce controle total na Hungria de Orban. Pode ser característica de toda autocracia, porém tem mais a ver com fascismo do que com nazismo ou stalinismo, apesar do sinistro parentesco entre os três.

Suscita-se uma hipótese de vingança pessoal de Trump contra as altas instituições de ensino, de onde provém a elite dirigente dos EUA. Não só oito presidentes foram formados na Ivy League, núcleo de excelência universitária, assim como professores, economistas e cientistas, sempre nas pautas do Prêmio Nobel. Obama graduou-se em Harvard. Trump, embora proveniente da Ivy League (onde nunca foi benquisto), é produto de show televisivo. Respira e transpira banalidades, mas soube navegar no vácuo de credibilidade do elitismo: desde Truman, o povo americano descobriu que seus líderes eram grandes mentirosos. A verdade sobre as guerras inúteis do Vietnã e do Iraque não foi revelada aos jovens por governos, mas pela imprensa e pelas universidades.

O neofascismo trumpista constrói-se na mentira aberta, sem descambar no neonazismo. É que o nazismo como programa político “tinha uma teoria do racismo e do arianismo, uma noção precisa da entartete Kunst, a ‘arte degenerada’, uma filosofia da vontade de potência e do Übermensch. O nazismo era decididamente anticristão e neopagão” (Umberto Eco, “Fascismo Eterno”). O fascismo, ao contrário, sem bases filosóficas nem controle ideológico real, articulava-se emocionalmente em torno de arquétipos tradicionais. Houve só um nazismo, mas vários os fascismos.

Duas características do velho fascismo permitem identificar o novo: oposição ao avanço do conhecimento e ação irracional do chefe. Em Trump, o açodamento da guerra comercial e ameaças de conquistas territoriais. Depois, universidades como alvos de alegações infundadas, dentre as quais o antissemitismo. Ele finge desconhecer participação de judeus nas manifestações contra o massacre em Gaza e agora a própria revolta interna em Israel.

Na realidade, o ambiente universitário no mundo todo é conservador. Não exatamente de direita, mas de valores universalistas derivados de um sistema de ideias. Isso comporta uma diferenciação estrutural, processo pelo qual a estrutura de ensino se abre ao surgimento de institutos e laboratórios. Para tanto é imprescindível o avanço do saber, logo, liberdade de pesquisa e opiniões. Manifestações estudantis e docentes são o epifenômeno desse espírito libertário, sujeito ao debate.

Nenhuma comunidade de saber é possível num sistema educativo à distância nem em universidades-empresas. Isso não significa que o conhecimento esteja restrito às universidades. Mas, entre nós, as instituições públicas são fontes de ensino aliadas à produção de conhecimento. Vivem na corda bamba de orçamentos mesquinhos e cortes drásticos, em meio à farra de emendas parlamentares sem prestação pública de contas. Ainda assim, ascendem, como acaba de acontecer com a UFRJ no ranking das melhores. Aos trancos e barrancos, aqui e no mundo, a universidade ergue-se como bastião de defesa contra a metástase progressiva do neofascismo.

Insistindo no atraso

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A sociedade internacional vem passando por momentos nebulosos marcados por guerras fratricidas, conflitos políticos, degradação de regimes democráticos, devastação do meio ambiente, pobreza generalizada, fortalecimento em excesso do capital financeiro, devastação do mundo do trabalho, crescimento exagerado do poder político das grandes empresas de tecnologias, aumento do negacionismo e aversão ao pensamento científico, neste cenário, encontramos o incremento da desesperança, do crescimento da ansiedade dos indivíduos, depressão e a degradação da saúde mental dos trabalhadores, estamos num momento difícil da humanidade que exige lideranças conscientes dos desafios da sociedade contemporânea.

A sociedade contemporânea traz grandes desafios para todas as nações, as transformações tecnológicas exigem das empresas grande flexibilidade para compreenderem os anseios dos consumidores e se atualizar constantemente, evitando que outros atores econômicos e produtivos ganhem espaço neste ambiente, cada vez mais competitivo, instável e volátil. Aos indivíduos, os desafios não são menores, as mutações no mundo do trabalho exigem novas habilidades comportamentais que não são ensinadas nos modelos educacionais dominantes, gerando preocupações crescentes, medos e ressentimentos que culminam em fortes desgastes emocionais e afetivos, gerando ansiedades, depressões crescentes e degradação da saúde mental, esse último vem ganhando espaço no noticiário das mídias tradicionais e nas empresas com discursos superficiais, cheio de pompa e marcados pela superficialidade.

Neste cenário, as grandes nações estão aumentando seus investimentos em pesquisa e tecnologia, reestruturando seus modelos educacionais, aumentando os dispêndios em infraestrutura, investindo na melhora do capital humano e atraindo recursos para alavancar o desenvolvimento nacional, assim como foi feito nas nações asiáticas, tais como a Coréia do Sul, Taiwan, Indonésia, Singapura, Vietnã, China, Malásia, Japão, Índia, dentre outros. E, no Brasil, uma nação dotada de grande capacidade produtiva, empreendedorismo natural, recursos naturais pouco vistos na sociedade global, fonte inestimável de energia, mas, infelizmente, estimula-se cotidianamente, discussões secundárias, brigas entre poderes, uns querendo mostrar mais força política e capacidade de influência, deixando de lado as demandas da comunidade e fomentando agenda de grupos endinheirados com seus interesses particulares, vivemos numa sociedade marcada por conversas baseadas em futricas e intrigas, desconversando sobre os desafios nacionais, tais como a degradação da educação, aumento da pobreza urbana e o aumento da vulnerabilidade social, da insegurança e o incremento da malversação dos recursos públicos.

Enquanto as nações que crescem rapidamente no cenário internacional e se destacaram no cenário global entram na competição mundial com fortes investimentos nos seres humanos, defendendo as riquezas naturais, investindo no aumento do valor agregado dos produtos exportados, canalizando grandes recursos para desenvolver uma ciência sólida e consistente, construindo regulações modernas e se esforçando para desenvolver um aparato jurídico e institucional que preservem as riquezas nacionais, fortalecendo o meio ambiente, mas, infelizmente, percebemos grupos econômicos nacionais atrelados a interesses de conglomerados estrangeiros e políticos entreguistas que degradam o patrimônio nacional, entregando empresas estatais a preços irrisórios, mantendo taxas de juros escorchantes e penhorando a sociedade nacional e condenando as futuras gerações a exclusão e a pobreza generalizada.

Neste momento de incertezas globais, choque de tarifas comerciais e concorrências econômicas crescentes, percebemos a ausência de lideranças nacionais capazes de compreenderem os desafios contemporâneos e, ao mesmo tempo, uma grande quantidade de entreguistas e falsos nacionalistas que degradam o Estado e sobrevivem através de subsídios e isenções tributárias.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

 

Influencers e a sedução do vazio, por Sampaio & Maia

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Há inversão preocupante: muitos seguem quem apenas aparece ou viraliza mais, nem sempre se permitindo fazer do olhar crítico um companheiro

André Sampaio, Pesquisador e professor colaborador da Universidade Federal do Oeste da Bahia; pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP

Dayanne Maia, Cofundadora do escritório Maia Advogados Associados (Fortaleza)

Folha de São Paulo, 15/06/2025

Em “O Segredo do Bonzo”, conto de Machado de Assis, viajantes, em um reino do século 16, observam aglomerações em torno de figuras cujos discursos e ideias se mostravam absurdos e até burlescos; pessoas as seguiam com fé cega, enxergando nelas uma aura especial, em cenários em que mais valia o parecer (e seus holofotes) do que o ser. Em sua costura irônica, a narrativa escancara como o imaginário coletivo pode se curvar perante aparências de referenciais, mesmo que vazios.

Hoje, realidade similar é vista no mundo digital, uma não novidade em que cenas como as da CPI das Bets, no Senado Federal, têm posto em evidência. Como na ficção, multidões seguem figuras públicas, não raras vezes, sem suficiente filtro crítico.

O fenômeno encontra solo fértil na sociedade contemporânea, marcada pelo que o sociólogo Zygmunt Bauman chamou de “modernidade líquida”. Vivemos tempos em que relações e valores, em geral, se tornam voláteis. Nada parece sólido: tudo pode vir a escorrer por entre os dedos, numa imagética que bem poderia ser representada junto aos relógios derretidos de Salvadro Dalí. Nessa conjuntura, referências também se diluem: já não dependem de consistência, mas de visibilidade. O influencer de hoje, frequentemente, é filho do algoritmo, não de substância.

A internet, ao democratizar a comunicação, trouxe ganhos inegáveis, mas também deu à luz essa nova figura social. Para o bem e para o mal, trigo e joio: há criadores de conteúdos que se pautam por ética, com produções de qualidade, nos mais plurais campos de interesses; mas o contrário também é fato. Infelizmente, número elevado de seguidores, likes ou visualizações, por si sós, têm se convertido em quase sinônimo de pertinência, numa inversão preocupante. Muitos seguem quem apenas aparece mais, quem viraliza mais, nem sempre se permitindo fazer do olhar crítico um companheiro —o que retoma, sob novo molde, a lição machadiana às voltas da sedução do vazio.

As consequências desse contexto, cara leitora, caro leitor, não poderiam deixar de ser nocivas. Muitas publicações banalizam conhecimentos, relativizam preocupações éticas, alimentam desinformação e até mesmo promovem discursos de ódio mascarados de liberdade de expressão.

Quando personalidades desse universo põem um alvo em temas como democracia e ciência, por exemplo, ou sugerem enriquecimento fácil com apostas online, disseminam ilusões e falseamentos perigosos em escala massiva. Num espaço onde se tende para a liquidez, a ausência de critérios sólidos para a “creator economy” deixa nossa sociedade à mercê de vozes, muitas vezes, inconsequentes.

O caminho a ser trilhado precisará passar pela construção da noção de efetiva responsabilidade nas ágoras digitais. Todos têm o direito de falar, mas é preciso senso crítico e regulamentação para os usuários, sobretudo para quem ocupa espaços de visibilidade. Do contrário, seguiremos cada vez mais cercados de postagens de qualidade precária ou deletéria, pagando um alto preço, em um tempo em que as redes conferem amplitude de vocalização a uma legião de pessoas que, como no atento dizer de Umberto Eco, “antes só falavam no bar, sem gerar danos à coletividade”.

 

Brutalismo, a fase mais alta do neoliberalismo , por Amador Fernandez-Savater

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Uma reflexão sobre nossa época de crise civilizatória, a partir de Achille Mbembe. Para a extração maior de valor, o sistema precisa dessensibilizar. O método: estimular o virilismo, digitalizar a vida e tornar corpos supérfluos. E se a resistência apoiar-se em culturas não-coloniais?

OUTRAS MÍDIAS, 10/03/2025

Por Amador Fernandez-Savater, no CTXT, traduzido pelo IHU.

“O que é significativo não é o que termina e consagra, mas o que começa, anuncia e prefigura” (Achille Mbembe)

Em que época vivemos? Como descrever nossos tempos? Algo decisivo está em jogo, para o pensamento crítico, nesta questão dos nomes. Os nomes da época. O mapa de nomes orienta estratégias, indica os movimentos do adversário, revela possíveis resistências.

O que estamos enfrentando hoje? Se não sabemos como se chama, como vamos combatê-lo?

O pensador camaronês Achille Mbembe propõe o termo “brutalismo”. Vindo do mundo da arquitetura, onde se refere a um estilo de construção massivo, industrial e altamente poluente, o brutalismo como imagem do mundo contemporâneo nomeia um processo de guerra total contra a matéria.

O diagnóstico de Mbembe não é simplesmente político ou econômico, cultural ou mesmo antropológico, mas civilizacional, cósmico, cosmopolítico. Designa a relação dominante com o que existe. Uma relação de força e extração, de exploração intensiva e predação.

O mundo se tornou uma gigantesca mina a céu aberto. O papel dos poderes contemporâneos, diz Mbembe, é “tornar a extração possível”. Existe uma versão de direita do brutalismo e uma versão progressista, mas ambas administram a mesma empresa de perfuração com intensidades e modalidades diferentes. Dos corpos e territórios, passando pela linguagem e pelo simbólico.

Um novo imperialismo? Sim, mas não mais instaura ou constrói uma civilização de valores, uma nova ideia de Bem ou uma cultura superior, mas sim fratura e fissura os corpos – individuais, coletivos, terrestres – para extrair deles todo tipo de energias até a exaustão, ameaçando assim a “combustão do mundo”.

Mbembe identifica tendências globais que afetam a humanidade como um todo. Mas ele pensa a partir de um lugar específico: a África, sua história, suas feridas e suas resistências. O mundo inteiro está hoje vivenciando um “tornar-se obscuro” no qual a distinção entre seres humanos, coisas e mercadorias tende a desaparecer. O escravizado negro prefigura uma tendência global. Estamos todos em perigo.

Economia libidinal brutalista

Que tipo de ser humano, subjetividades e desejos o brutalismo contemporâneo quer produzir?

De um lado, há o projeto louco de erradicação do inconsciente, “essa imensa reserva de noite com a qual a psicanálise tentava nos reconciliar”. O corpo humano não é apenas um corpo biológico, neuroquímico, mas também uma “matéria onírica” (León Rozitchner) com anseios, fantasia e utopia. O inconsciente é uma casca de banana em todos os planos de controle, inclusive sobre si mesmo. Ela desvia, distorce e complica tudo.

Precisamos erradicar essa dimensão ingovernável, capturar todas as forças e potenciais humanos em redes de dados, mapear toda a matéria até que o mapa substitua o território. O brutalismo visa a digitalização completa do mundo, dissolvendo o inconsciente (que nos torna únicos e irrepetíveis) no algoritmo, no número, no domínio do quantitativo. Abole o mistério que somos, branqueie a noite.

Mas tudo o que isso consegue é dar rédea solta aos impulsos mais obscuros e destrutivos. Por quê? A racionalização geral – digitalização, algoritmização, protocolização – bloqueia as energias afetivas e amorosas, esse poder de Eros que segundo Freud é o único contrapeso possível a Thanatos. O projeto de erradicação do inconsciente leva a uma dessensibilização geral.

O projeto de erradicação do inconsciente leva a uma dessensibilização geral

A indiferença à dor do outro, o prazer de ferir e matar, de ver o sofrimento. Crueldade e sadismo são características-chave dos poderes contemporâneos. Num capítulo particularmente arrepiante, Mbembe fala do “virilismo” contemporâneo. A economia libidinal do brutalismo não envolve mais repressão ou contenção de pulsões, mas sim desenfreamento, desinibição, dessublimação e ausência de limites. Diga tudo, faça tudo, mostre tudo e aproveite.

O virilismo cria uma zona frenética, diz Mbembe, sem nenhum vestígio dos antigos sentimentos de culpa, vergonha ou inibição. Uma figura talvez expresse isso melhor do que qualquer outra: o triunfo da imagem do pai incestuoso nas páginas pornográficas. De volta ao passado: se o assassinato do pai despótico pelas mãos dos filhos significou para Freud a passagem para a civilização, os limites e a lei, o fantasma do pai abusador volta a povoar os desejos mais obscuros da atualidade.

Ontem, o princípio de realidade (o mandato paterno) nos obrigava a renunciar ou adiar o prazer, para substituí-lo por uma compensação sublimatória. Hoje, exige exatamente o oposto: não adiar, atrasar ou substituir nada, mas acessar o prazer diretamente, literalmente e sem mediação. Consumir (objetos, corpos, experiências, relacionamentos). Da repressão à pressão. Da dessexualização, à hipersexualização. Do pai da proibição ao pai do abuso. A culpa hoje é não ter aproveitado o suficiente.

Colonizar sempre significou brutalizar. A plantação e a colônia são, segundo Mbembe, prefigurações do brutalismo. Sem contenção ou mediação simbólica, pode-se e deve-se absolutamente desfrutar dos outros, convertidos em um mero “harém de objetos” (Franz Fanon). Podemos então entender, libidinalmente, uma chave para a ascensão da nova direita? Eles se apresentam como defensores de uma “liberdade” que é apenas o direito dos fortes de usufruir dos fracos como se fossem objetos descartáveis.

No fundo, como efeito derivado do virilismo, o medo da castração, o pânico genital e o horror ao feminino se espalharam por toda parte. O brutalismo aspira até mesmo a se livrar completamente das mulheres. Onanismo generalizado, sexualidade sem contato, tecnossexualidade, com o cérebro substituindo o falo como órgão privilegiado. O virilismo não seria a última palavra do patriarcado.

Corpos de fronteira

No fim de seu livro As origens do totalitarismo, mais de seiscentas páginas dedicadas ao estudo das condições históricas e sociais que tornaram o nazismo e o stalinismo possíveis, Hannah Arendt surpreendentemente afirma que a única certeza a que chegou é que o totalitarismo nasce em um mundo onde toda a população se tornou supérflua. Os campos de concentração (e mais tarde os campos de extermínio) foram o único lugar que os poderosos encontraram para abrigar os que sobraram.

Como lemos isso hoje, quando nossa era é atravessada pelo mesmo fenômeno de massas errantes? A guerra sempre foi um possível dispositivo para regular o excesso populacional indesejado e o totalitarismo um regime de guerra permanente. O brutalismo contemporâneo, diferentemente do nazismo ou do stalinismo, herda, no entanto, a mesma função. Diante do medo de compartilhar e do pânico da “multiplicação dos outros”, a gestão brutal das migrações.

A guerra sempre foi um possível dispositivo de regulação para o excesso populacional indesejado.

Mbembe chama os seres humanos excedentes de “corpos fronteiriços”. O que é feito com eles? Isolar e confinar, trancar e deportar, deixar morrer. A biopolítica (que cuida da vida para explorá-la) se sobrepõe à necropolítica (que produz e cuida da população supérflua).

O mundo contemporâneo conhece não apenas formas suaves e sedutoras de controle (moda, design, publicidade), mas também métodos de guerra. Hoje, em todos os lugares, os controles, prisões e confinamentos estão se tornando mais rigorosos. Os espaços são divididos e é decidido com autoridade quem pode se mover e quem não pode. Não só a mobilidade dos sujeitos é promovida (de casa, do trabalho, da função), mas também é apoiada, controlada e fixada. Gaza como paradigma de governo.

Enquanto os líderes europeus celebraram recentemente oitenta anos desde a libertação de Auschwitz, os campos estão retornando à sua antiga glória. Campos de internamento, detenção, rebaixamento e separação. Para migrantes, refugiados e requerentes de asilo. Campos, em suma, para estrangeiros. SamosQuiosLesbosIdomeniLampedusaVentimigliaSicíliaSubotica. As rotas migratórias mais mortais do mundo são as europeias: 10 mil pessoas perderam a vida tentando entrar na Espanha no ano passado.

A sangria e a predação também operam na gestão das complexas circulações dos corpos fronteiriços, explica Mbembe, através do controle de conexões, mobilidades e trocas. A guerra contra os migrantes (que importam em movimento) também é um negócio lucrativo e um fator econômico.

Os impulsos imperialistas combinam-se hoje com nostalgia e melancolia. Os antigos conquistadores, envelhecidos e cansados, sentem-se invadidos pelas “raças enérgicas” cheias de vitalidade. O mundo está se tornando pequeno e ameaçado. Essa é a percepção que a extrema direita europeia explora. A pátria não deve mais ser expandida, mas defendida. O estilo afirmativo e entusiasmado de José Antonio se transforma em puro medo e vitimização em Vox.

Utopias da matéria

Como resistir ao brutalismoMbembe não se deixa levar por um exercício de catastrofismo, mas ousa utopizar. O que isto significa?

O pensador camaronês encontra inspiração em Ernst Bloch, o grande pensador da utopia e da esperança do século XX. O que é utopia para Bloch? Nada a ver com o que normalmente pensamos estar associado a esse termo: especulação sobre o futuro, projeção de cenários, modelos perfeitos. Não, a utopia é poder, latência e possibilidade já inscritos no presente.

Diferentemente da crítica convencional, a crítica utópica não apenas traça uma cartografia crítica dos poderes contemporâneos, mas também aponta potencialidades para resistência, para mudança, para outros mundos possíveis. Ela não apenas denuncia, julga ou anula, mas enuncia novas possibilidades, convidando quem escuta a fazê-las nascer, a desdobrá-las. Ela coloca em tensão o que é e o que poderia ser, sendo este último não uma possibilidade abstrata, mas uma força em processo.

Se hoje assistimos a um “devir-negro” do mundo, não poderíamos inspirar-nos na resistência que as culturas africanas sempre opuseram ao seu devir-coisa? O particular se torna universal e a utopia, como queria Walter Benjamin, não está mais no futuro, mas no “salto do tigre para o passado”.

Essas resistências passam, como eu as leio, por outra concepção e outra relação com a matéria. De acordo com as culturas africanas pré-coloniais, a matéria é um tecido de relações, é diferença, é mudança. O animismo expressaria isso em um nível espiritual: o mundo é povoado por uma multidão de seres vivos, sujeitos ativos, múltiplas divindades, ancestrais, intercessores.

Ou reparos ou funerais, diz Mbembe. O desafio não é indignar-se nem bater no peito, mas regenerar a matéria ferida. Por exemplo, no caso do debate sobre a descolonização dos museus, não se trata simplesmente de “devolver” objetos roubados aos seus lugares de origem, mas de entender que esses objetos não eram “coisas” (nem ferramentas, nem obras de arte), mas veículos e canais de energia, forças vitais e virtualidades que possibilitavam a metamorfose da matéria. Recria um relacionamento ativo com a memória.

Se a matéria não é um objeto a ser explorado, mas um ecossistema participativo, uma reserva de potenciais, um conjunto de subjetividades, que formas políticas lhe poderiam ser adequadas?

Além da democracia liberal e do nacionalismo vitalista, do solo e do sangue, Mbembe propõe uma “democracia dos vivos” que praticaria o cuidado com todos os habitantes da Terra, humanos e não humanos. Uma economia de “bens comuns” que nos forçaria a abandonar nossas obsessões com apropriação exclusiva. E uma “desfronteiração” do mundo capaz de proteger o direito de todos de sair, de se deslocar e de estar em trânsito. Ser estrangeiro, para si mesmo e para os outros.

A própria matéria se utopiza, disse Ernst Bloch. Não é uma massa passiva que aguarda sua forma vinda de fora, mas tem dentro de si seu próprio movimento, seu próprio princípio ativo e está grávida de futuro. É por isso que o brutalismo declara guerra a ela? O que ela exige de nós é que sejamos “como o fogo na fornalha” que amadurece e realiza seu potencial. Não para forçá-lo ou violá-lo, mas para ouvir e prolongar sua criação.

 

 

Lá vêm os grileiros do orçamento, por Conrado Hubner Mendes

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Extrativistas de dinheiro público não abrem mão de supersalário

Conrado Hubner Mendes, Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade – SBPC.

Folha de São Paulo, 05/06/2025

Fosse apenas autoritária, autocrática e autárquica, a magistocracia não atiçaria tantas emoções primárias. Se só chancelasse violação de direitos de vulneráveis, reprimisse independência judicial e rejeitasse controle, chamaria menos atenção. Mas quis se dedicar também a extrativismo ilegal do orçamento público, espécie de grilagem. Sua face rentista consegue incomodar até nossa sensibilidade pouco republicana.

Magistocratas não são os únicos grileiros no Estado brasileiro. Parlamentares, partidos e setores empresariais adotam técnicas de grilagem orçamentária. A magistocracia só o faz de modo juridicamente mais rocambolesco. Pratica corrupção institucional  com polimento moral. Sem dispensar o acabamento legalista.

A magistocracia tenta exibir abnegação e sofrimento, coragem e competência. Onde vemos corrupção, a magistocracia pede que vejamos virtude e merecimento. Onde vemos cinismo, aponta honra ao mérito. E define o que é “legal” no final. Suas ambições patrimoniais se legalizam num passe de caneta. Não na política democrática, mas a portas fechadas.

O artifício da corrupção institucional tem três truques: 1) multiplicar “auxílios” impropriamente classificados de “indenizatórios” para não só isentar de tributos mas romper o teto; 2) torná-los retroativos a um período inventado (e assim receber no presente o acumulado de um passado juridicamente fabricado); 3) proteger férias de dois meses, além do recesso, para serem vendidas, não usufruídas; criar dias de folga por dias trabalhados, e assim possibilitar vender, não usufruir, dias de folga.

A notícia da semana é que o “PL dos supersalários institucionalizaria R$ 7.1 bi em penduricalhos” e “Judiciário distribuiu ao menos R$ 10,3 bilhões retroativos de janeiro de 2018 a abril de 2025”.

A série “Brasil de Privilégios”, do UOL, resume o último ano:

“Nove em cada 10 juízes no Brasil ganharam mais que os ministros do STF em 2024”; “Penduricalho faz elite do Judiciário ter 35% da renda livre de impostos”; “Juízes já ganham mais em penduricalhos e adicionais do que com o salário”; “Volta de privilégio extinto há duas décadas faz juízes ganharem R$ 1 milhão”. “Vantagens a desembargadores aposentados do TJ-SP sobem 1.488% em 5 anos”; “Os 36 mil supersalários são só uma parte do total”.

É juspornografia com dinheiro público, mas há também com dinheiro privado. O repertório inclui privilégios a parentes advogados, conversão da permissão constitucional para a “docência” em palestras remuneradas e eventos de lobby. E ainda tem a via do assédio judicial: diante da crítica, processam civilmente para obter indenização e criminalmente para ameaçar prisão e gerar silenciamento. Afinal a honra judicial é o bem mais valioso no confuso mercado da liberdade de expressão, gerido por juízes.

A corrupção institucional está radiografada, explicada e divulgada. Não há mais o que apurar sobre a lógica de funcionamento, apenas sobre novas ocorrências. Por dever de ofício, o jornalismo precisa continuar.

Não falta informação, falta ação. A ação precisa entender as razões da inércia e do bloqueio. E iluminar as formas de cumplicidade e intimidação de atores de dentro e de fora do sistema de Justiça. O jornalismo poderia ajudar a nomear os operadores, não estivesse ameaçado de retaliação. E o repórter de demissão.