Tecnologia não é sinônimo de progresso, por Suzana Herculano-Houzel

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Parar de pensar acentua as desigualdades

Suzana Herculano-Houzel, Bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).

Folha de São Paulo – 15/11/2024

Estou achando difícil ser um animal da espécie humana ultimamente, quando meu vício profissional é pensar o tempo todo em como chegamos aqui: somos fruto de uma sequência de oportunidades amplificadas exponencialmente por um truque tecnológico, o pré-processamento do que comemos, que colocou mais calorias em nossas bocas, mais neurônios em nosso cérebro, e mais tempo em nossas mãos.

A história sobre como alcançamos a biologia que temos, radicalmente transformada pela primeira tecnologia que nossos antepassados criaram, que foi o uso de pedras lapidadas na forma de ferramentas para modificar o que comiam, é a história da evolução biológica da nossa espécie.

A história sobre como nos tornamos os humanos que somos hoje é outra coisa: uma história de progresso. Evolução é apenas mudança ao longo do tempo, nem para pior, nem para melhor. Progresso, agora sim, é mudança que melhora a situação: que traz mais possibilidades, que abre portas, que gera complexidade que torna a vida mais interessante.

Na visão panorâmica da história da humanidade, progresso tem sido o produto do uso de mais e mais novas tecnologias, que geram oportunidades até então inexistentes e mudam a maneira de fazer e pensar. Cordas e machados, depois barro, cimento, concreto e aço transformaram onde vivemos; barro, depois papel e tinta, e então computadores e agora a internet mudaram como estendemos nossos pensamentos e memórias a repositórios externos que podemos consultar à vontade.

Mas esse tempo todo, cabia a nós, humanos, pensar. Juntar coisa com coisa e virar ideias na cabeça, com um problema em mente, até elas fazerem sentido. Usar a tecnologia não como um fim, mas como um meio. As tecnologias armazenavam e traziam informação —mas tornar informação em conhecimento sempre dependeu de humanos usarem a tal informação para melhorar sua vida. O progresso da humanidade não está simplesmente em dispor de mais informação, mas em transformá-la em conhecimento, acumulado e mantido vivo conforme geração após geração aprende a pensar, sintetizar, usar e transmitir.

Donde minha dificuldade, que vem de olhar ao redor e ver minha espécie fazendo muita, mas muita força para automatizar e terceirizar a geração de conhecimento, efetivamente excluindo-se da história. É sério que nós construímos toda uma riqueza de conhecimentos e civilizações diferentes para então gerarmos uma maneira de tornar o cérebro e a experiência humana… obsoletos?

Estou falando, é claro, da tecnologia dita “inteligência artificial” e do seu uso para direcionar a experiência humana. Já escrevi aqui que tecnologias que são apenas algoritmos repetitivos, mesmo que produzam à força de muito treino algo que é indistinguível de linguagem, não têm nada de inteligente, pois inteligência é flexibilidade. Tecnologias não são inteligentes; o uso que fazemos delas é que pode ou não ser.

Mas pior do que confundir algoritmo e automação com inteligência é pensar que todo e qualquer uso dessas tecnologias é inteligente e inevitavelmente traz progresso. Não é, e não traz. A história mostra que automação, sozinha, só enche os bolsos da elite que detém o poder, enquanto acentua a desigualdade.

Meu medo é que a humanidade, encantada com o brinquedo novo, não nota que ele rouba suas oportunidades para parar, pensar, e aprender, e se faz cada vez mais à mercê de uma elite pensante cada vez menor e mais rica.

 

 

Vitória de Trump significa rejeição do liberalismo clássico e inaugura nova era nos EUA e no mundo, por Fukuyama

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Resta saber se republicanos conseguirá cumprir promessas autoritárias e aprofundar degradação das instituições.

Francis Fukuyama, Filósofo e economista americano, é professor da Universidade Stanford e autor dos livros ‘O Fim da História e o Último Homem’ e ‘Liberalism and Its Discontents’ [O Mal-Estar no Liberalismo, em tradução livre].

Folha de São Paulo – 12/11/2024

A vitória esmagadora de Donald Trump e do Partido Republicano no último dia 5 levará a grandes mudanças em áreas importantes na política dos Estados Unidos, desde a imigração até a Ucrânia. Mas o significado da eleição vai muito além dessas questões específicas e representa uma rejeição decisiva dos eleitores americanos al liberalismo e à maneira particular como a compreensão de uma “sociedade livre” evoluiu desde os anos 1980.

Quando Trump foi eleito pela primeira vez em 2016, era fácil acreditar que esse evento era uma aberração. Ele estava concorrendo contra uma oponente fraca que não o levava a sério e, de qualquer frma, Trump não venceu no voto popular. Quando Biden conquistou a Casa Branca quatro anos depois, parecia que as coisas tinham voltado ao normal após uma desastrosa Presidência de um mandato só.

Após a votação do dia 5, agora parece que a anomalia foi a Presidência de Biden, e que Trump está inaugurando uma nova era na política dos EUA e talvez no mundo como um todo. Os americanos votaram nele com pleito conhecimento de quem Trump era e o que ele representava. Não só ele ganhou a maioria dos votos e todos os estados-pêndulo mas os republicanos retomaram o Senado e parecem que vão manter a maioria da Câmara dos Representantes. Dada a sua já existente dominância na Suprema Corte, eles agora estão prontos para controlar todos os Três Poderes do governo.

Mas qual é a natureza desta nova fase da história americana?

O liberalismo clássico é uma doutrina construída em torno do respeito pela dignidade dos indivíduos por meio de um Estado de Direito que protege seus direitos e de controles constitucionais sobre a capacidade do Estado de interferir nesses direitos.

Mas, ao longo do último meio século, esse impulso básico sofreu duas grandes distorções. A primeira foi a ascensão do neoliberalismo, uma doutrina econômica que canonizou os mercados e reduziu a capacidade dos governos de proteger aqueles prejudicados por mudanças econômicas. O mundo ficou muito mais rico ao todo, enquanto a classe trabalhadora perdeu empregos e oportunidades. O poder se deslocou dos lugares onde nasceu a Revolução Industrial para a Ásia e outras partes do mundo em desenvolvimento.

A segunda distorção foi a ascensão do identitarismo ou do que se poderia chamar de liberalismo “woke” (forma como é chamado o discurso de pautas identitárias nos EUA), em que a preocupação progressista com a classe trabalhadora foi substituída por proteções direcionadas para um conjunto mais restrito de grupos marginalizados: minorias raciais, imigrantes, minorias sexuais e afins. O poder do Estado foi cada vez mais usado não a serviço da justiça imparcial, mas sim para promover resultados sociais específicos para esses grupos.

Enquanto isso, os mercados de trabalho estavam mudando para uma economia da informação. Em um mundo em que a maioria dos trabalhadores se senta em frente a uma tela de computador em vez de levantar objetos pesados do chão da fábrica, as mulheres têm uma posição mais igualitária. Isso transformou o poder dentro das famílias e levou a percepção de uma celebração aparentemente constante das conquistas femininas.

A ascensão desses entendimentos distorcidos a respeito do que é o liberalismo impulsionou uma grande mudança na base social do poder político. A classe trabalhadora sentiu que os partidos políticos de esquerda não estavam mais defendendo seus interesses e começou a votar em partidos de direita.

Assim, o Partido Democrata perdeu o contato com sua base da classe trabalhadora e se tornou um partido dominado por profissionais urbanos escolarizados. Os trabalhadores escolheram votar nos republicanos. Na Europa, eleitores do partido comunista na França e na Itália desertaram para Marine Le Pen e Giorgia Meloni.

Todos esses grupos estavam insatisfeitos com um sistema de livre comércio que eliminou seus meios de subsistência, ao mesmo tempo em que criou uma nova classe de super-ricos, e também estavam insatisfeitos com partidos progressistas que aparentemente se importavam mais com estrangeiros e o meio ambiente do que com sua própria condição econômica.

Essas grandes mudanças sociológicas foram refletidas nos padrões de votação na terça-feira. A vitória republicana foi construída em torno de eleitores brancos da classe trabalhadora, mas Trump conseguiu atrair significativamente mais eleitores negros e hispânicos em comparação com a eleição de 2020. Isso foi especialmente verdadeiro para os homens dentro desses grupos. Para eles, a classe importava mais do que raça ou etnia. Não há razão particular para que um latino da classe trabalhadora, por exemplo, deva se sentir particularmente atraído por um liberalismo woke que favorece imigrantes recentes e se concentra em avançar os interesses das mulheres.

Também está claro que a grande maioria dos eleitores da classe trabalhadora simplesmente não se importava com a ameaça à ordem liberal, tanto doméstica quanto internacional, representada por Trump.

Donald Trump não quer apenas reverter o neoliberalismo e o liberalismo woke, mas é uma grande ameaça ao próprio liberalismo clássico. Essa ameaça é visível em várias questões políticas; uma nova Presidência de Trump não se parecerá em nada com seu primeiro mandato. A verdadeira questão neste ponto não é se suas intenções são malignas, mas sim sua capacidade de verdadeiramente cumprir o que ameaça.

Muitos eleitores simplesmente não levam sua retórica a sério, enquanto republicanos tradicionais argumentam que os freios e contrapesos do sistema americano o impedirão de fazer o pior. Isso é um erro: devemos levar suas intenções declaradas muito a sério.

Trump é um protecionista autoproclamado, que diz que tarifa é a palavra mais bonita da língua inglesa. Ele propôs tarifas de 10% ou 20% contra todos os bens produzidos no exterior, por nações amigas ou inimigas, e não precisa do aval do Congresso para fazê-lo.

Como um grande número de economistas apontou, esse nível de protecionismo terá efeitos extremamente negativos sobre a inflação, produtividade e emprego. Será extremamente prejudicial para as cadeias de suprimentos, o que levará os produtores domésticos a solicitar isenções. Isso então proporciona a oportunidade para altos níveis de corrupção e favoritismo, à medida que as empresas correm para agradar o presidente.

Tarifas nesse nível também convidam a retaliações igualmente massivas por outros países, criando uma situação em que o comércio (e, portanto, a renda) colapsa. Talvez Trump recue diante disso; ele também pode responder como a ex-presidente argentina Cristina Kirchner, corrompendo a agência estatística que reporta as más notícias econômicas.

Com relação à imigração, Trump não quer mais simplesmente fechar a fronteira; ele quer deportar o máximo possível dos 11 milhões de imigrantes em situação irregular lá no país. Essa é uma tarefa administrativa tão grande que exigirá anos de investimento na infraestrutura necessária para realizá-la — centros de detenção, agentes de controle de imigração, tribunais e assim por diante.

Terá efeitos devastadores em vários setores que dependem da mão de obra imigrante, particularmente construção civil e agricultura. Também será enormemente desafiador em termos morais, à medida que pais são separados de seus filhos americanos, e criaria o cenário para um conflito civil, já que muitos dos imigrantes vivem em jurisdições democratas que farão o que puderem para impedir que Trump consiga o que quer.

Com relação ao Estado de Direito, Trump se concentrou, durante a campanha, em buscar vingança pelas injustiças que acredita ter sofrido nas mãos de seus adversários. Ele prometeu usar o sistema de justiça para perseguir de Liz Cheney e Joe Biden ao ex-presidente do Estado-Maior Mark Milley e Barack Obama. Ele quer silenciar críticos da mídia retirando suas concessões ou impondo penalidades.

Se Trump terá o poder de fazer qualquer uma dessas coisas é incerto: o sistema judicial foi uma das barreiras mais resilientes aos seus excessos durante o primeiro mandato. Mas os republicanos têm trabalhado consistentemente para inserir juízes trumpistas no sistema, como a juíza Aileen Cannon na Flórida, que rejeitou o forte caso dos documentos confidenciais contra Trump.

Algumas das mudanças mais importantes virão na política externa e na natureza da ordem internacional. A Ucrânia é de longe a maior perdedora; sua luta militar contra a Rússia estava enfraquecendo mesmo antes da eleição, e Trump pode forçá-la a se render nos termos da Rússia ao reter armas, como a Câmara Republicana fez por seis meses no inverno passado.

Trump ameaçou reservadamente sair da Otan, mas mesmo que não o faça, ele pode enfraquecer gravemente a aliança ao não cumprir sua garantia de defesa mútua do Artigo 5. Não há líderes europeus que possam substituir os Estados Unidos como líder da aliança, então sua futura capacidade de enfrentar a Rússia e a China está em grave perigo. Pelo contrário, a vitória de Trump inspirará outros populistas europeus, como a Alternativa para a Alemanha e a Reunião Nacional na França.

Aliados e amigos dos EUA no Leste Asiático não estão em posição melhor. Embora Trump tenha falado duramente sobre a China, ele também admira muito Xi Jinping por suas características autocráticas e pode estar disposto a fazer um acordo com ele sobre Taiwan. Trump parece avesso por natureza ao uso do poder militar e é facilmente manipulado, mas uma exceção pode ser o Oriente Médio , onde ele provavelmente apoiará completamente as guerras de Benjamin Netanyahu contra o Hamas, o Hezbollah e o Irã.

Há fortes razões para pensar que Trump será muito mais eficaz em cumprir essa agenda do que foi durante seu primeiro mandato. Ele e os republicanos reconheceram que a implementação de políticas depende da equipe. Quando foi eleito pela primeira vez em 2016, ele não entrou no cargo cercado por um grupo de assessores leais; em vez disso, teve que contar com republicanos do establishment.

Em muitos casos, eles bloquearam ou retardaram suas ordens. No final de seu mandato, ele emitiu uma ordem executiva que retiraria todas as proteções de estabilidade dos servidores federais e permitiria que ele demitisse qualquer burocrata que quisesse. Um renascimento dessa medida está no cerne dos planos para um segundo mandato de Trump, e os conservadores têm estado ocupados compilando listas de potenciais funcionários cuja principal qualificação é a lealdade pessoal a Trump. É por isso que ele tem mais chances de executar seus planos desta vez.

Antes da eleição, críticos, incluindo Kamala Harris, acusaram Trump de ser um fascista. Isso foi equivocado na medida em que ele não estava prestes a implementar um regime totalitário nos EUA. Em vez disso, haveria uma decadência gradual das instituições liberais, assim como ocorreu na Hungria após o retorno de Viktor Orbán ao poder em 2010.

Essa decadência já começou, e Trump causou danos substanciais. Ele aprofundou uma polarização já significativa e transformou os EUA de uma sociedade de alta confiança para uma de baixa confiança; ele demonizou o governo e enfraqueceu a crença de que ele representa os interesses coletivos dos americanos; ele tornou o discurso político mais grosseiro e deu permissão para expressões abertas de intolerância e misoginia; e ele convenceu a maioria dos republicanos de que seu antecessor foi um presidente ilegítimo que fraudou a eleição de 2020.

A amplitude da vitória republicana, estendendo-se da Presidência ao Senado e provavelmente à Câmara dos Representantes também, será interpretada como um forte mandato político confirmando essas ideias e permitindo que Trump aja como quiser. Só podemos esperar que algumas das barreiras institucionais restantes sigam de pé. Mas pode ser que as coisas tenham de piorar muito antes de melhorarem.

 

Incertezas crescentes

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A sociedade mundial vem passando por grandes alterações econômicas e produtivas, com impactos generalizados sobre todas as regiões, alterando comportamentos arraigados, alterando a agenda das comunidades, com o incremento de desenvolvimentos científico e tecnológico que transformaram os  modelos de negócios, reconfigurando o mercado de trabalho, aumentando as exigências para todos os trabalhadores, movimentando as estruturas políticas e democráticas dos Estados Nacionais e gerando novos desafios para toda a comunidade global.

Diante destes desafios contemporâneos que agitam a sociedade internacional, percebemos ventos de mais protecionismos dentro das comunidades locais, nações que pregavam enfaticamente o livre comércio, que eram árduos defensores de mais concorrência como forma de alavancar o crescimento econômico e estimulavam a diminuição do Estado na economia estão revendo princípios e valores que eram vistos como intocáveis.

Neste cenário, percebemos o crescimento de políticas protecionistas para proteger suas estruturas econômicas e produtivas, com fortes investimentos subsidiados pelos governos nacionais, além do incremento de tarifas de importação para reduzir a entrada de produtos estrangeiros, desta forma, garantem a sobrevida de setores nacionais que perderam espaço no comércio global e foram substituídos por concorrentes estrangeiros mais eficientes, mas produtivos e detentores de tecnologias mais modernas e mais sofisticadas.

Com a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, percebemos o renascimento de um discurso fortemente protecionista e messiânico, centrado nos interesses norte-americanos, com forte teor protecionista e imediatista, com o incremento de políticas anti-imigração e de deportação em massa, além da intensificação do conflito comercial entre EUA e China, reversão de políticas adotados no governo atual que estimulavam os conflitos militares em curso na sociedade mundial e o afastamento dos tratados internacionais, principalmente os vinculados ao Meio Ambiente.

Internamente, percebemos que o novo governo Donald Trump deve adotar políticas protecionistas para fortalecer estados e regiões inteiras que foram fortemente desindustrializadas nos momentos de ascensão da chamada globalização. Estados que sempre se caracterizaram por forte desenvolvimento industrial, pela pujança econômica, por uma classe média consolidada e que perderam a capacidade de competição global, levando uma massa gigantesca de empresas nacionais a fecharem suas unidades locais e abrirem filiais em outras regiões, notadamente na Ásia, onde a mão de obra era mais barata, mais abundante, com os custos de produção imensamente menores.

O protecionismo estadunidense pode gerar graves constrangimentos internos e externos, deportar imigrantes, sobretaxar produtos estrangeiros, adotar políticas agressivas contra os interesses de empresas chinesas e pressionar empresas transnacionais para incrementar novos investimentos internos, tais políticas podem gerar graves constrangimentos inflacionários, levando as Autoridades Monetários ao incremento das taxas de juros e levando nações a desequilíbrios nas contas externas.

Vivemos momentos de grandes incertezas e instabilidades. Depois dos problemas ambientais, dos desequilíbrios energéticos, das guerras fratricidas que crescem em escalas ascendentes, dos desajustes do mercado de trabalho, das desesperanças que crescem em todas as regiões do globo, percebemos que mais desequilíbrios e intolerâncias crescem todos os momentos na comunidade global. A eleição nos Estados Unidos nos traz uma grande lição, a melhora econômica e os bons indicadores da economia são insuficientes para garantir a manutenção do poder…abram os olhos!

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Qual fantasia subjaz à reeleição de Trump? por Vera Iaconelli

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Os americanos votaram e o fizeram sabendo qual produto estavam comprando

Vera Iaconelli, Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “Manifesto Antimaternalista” e “Felicidade Ordinária”. É doutora em psicologia pela USP

Folha de São Paulo – 12/11/2024

Embora ninguém pudesse afirmar de antemão que a gata Harris estava morta dentro da caixa, a notícia de sua derrota foi recebida com surpreendente conformismo. A que se deve tal reação, ou a falta dela? A reeleição de Trump implicou uma escolha que não foi feita às cegas, que não se justifica apenas pelas fake news e na qual a narrativa de outsider não existe mais. Os americanos votaram e o fizeram sabendo qual produto estavam comprando. Como bem resumiu Oliver Stuenkel, haveria quatro “is” envolvidos nessa escolha: inflação, imigração, instabilidade global e insegurança masculina. Além dos bilhões de dólares investidos na campanha, claro.

Mais do que se debruçar sobre a infindável —e imprescindível— investigação das razões pelas quais essa figura execrável foi reeleita para governar o país mais poderoso da atualidade, há que se pensar também sobre a desrazão, tema crucial da psicanálise. Embora hoje tenhamos que conviver com o ultraje de ver associado ao nome da psicanálise as palavras “positiva”, “evangélica”, “de direita”, “certificada” ou ainda “certificada pelo MEC”, nosso trabalho é de outra ordem.

O analista convive com uma rotina nada glamourosa de escutar a repetição da queixa do paciente, por vezes, ao longo de anos. Alguns sintomas podem até ceder, mas a mudança da posição do sujeito diante da vida, que o leva a um sofrimento insistente, requer um trabalho mais radical. Não raro, o paciente troca de trabalho, sexo, marido/esposa ou casa sem que isso o faça sair da posição que o mantém numa existência miserável.

O prazer inconfesso que se obtém com a repetição de certos padrões de comportamento está recalcado sob a queixa. Daí a importância de ajudá-lo a reconhecer sua parte naquilo do qual se queixa. O analista não tem a pretensão de modificar a escolha do paciente, mas de fazê-lo assumir sobre que bases se dá essa escolha. A atitude aqui é ética, de responsabilização, e não moral, de dever a ser cumprido.

A escolha por Trump —o exterminador do futuro das mulheres, dos negros, dos pobres e, por fim, do próprio planeta— se revela como renovação na aposta na objetificação do outro, a quem, a depender da posição relativa na escala social, poderemos continuar explorando. Trata-se, enfim, da renovação da aposta capitalista em sua versão turbinada, neoliberal. Algo como: sofro, mas não me privo de fazer o outro sofrer, alucinando a possibilidade de um dia estar na posição mais alta da hierarquia social. Aquela na qual roubar, abusar, matar não seriam atos passíveis de responsabilização. Lembremos da pilha de condenações ligadas ao candidato em questão.

Embora a guilhotina tenha feito seu papel, nunca superamos inteiramente o sonho monarquista, no qual o presidente-rei paira incólume sobre os pobres mortais. Como acabar com esse jogo perverso se não conseguimos abrir mão da esperança de um dia ser nossa vez de brincar de todo-poderoso?

Psicanalistas se orientam pelo que repete incessantemente na clínica porque é a partir da identificação da repetição que se pode localizar a fantasia inconsciente que nos move. No caso de Trump, a fantasia é de delírio de grandeza e de gozar impunemente. Temos nosso exemplar no Brasil, que não deveria sequer voltar às capas desse jornal.

Direita vai bem, Bolsonaro vai mal e Trump não pode salvá-lo, por Christian Lynch

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Nova configuração de poder emerge no Brasil, com controle do centrão e conservadorismo mais pragmático que radical

Christian Lynch, Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), editor da revista Insight Inteligência, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa

Folha de São Paulo – 11/11/2024

[RESUMO] O domínio do centrão nas eleições deste ano, sustenta o autor, aponta que o sistema político brasileiro, depois de um período de forte instabilidade e polarização extrema, passa por um processo de reequilíbrio, marcado por um presidencialismo de coalizão fraco e níveis menores de radicalidade ideológica. Partidos de centro-direita têm interesse em manter a inelegibilidade de Bolsonaro, e a esquerda, sem novos líderes, depende cada vez mais de Lula.

Os resultados das eleições municipais deste ano confirmam que o sistema político brasileiro passa por um processo de reequilíbrio em torno de novas bases ideológicas e de governabilidade. Bases distintas daquelas que definiram o período de estabilização do regime democrático entre os anos 1990 e 2010, assentadas sobre um eixo ideológico de centro-esquerda e do presidencialismo de coalizão forte ou imperial como modelo de governabilidade, que levava a reboque o chamado centrão.

Há cerca de dez anos, o eixo ideológico começou a se deslocar para a centro-direita, sustentado por partidos de centro-direita e direita, que deixaram a periferia do sistema para se tornar seu núcleo de estabilidade e controle. O modelo de governabilidade, perdido ou desarranjado durante aqueles anos de transição, parece agora se estabilizar na forma de um presidencialismo de coalizão fraco ou, conforme seus críticos, um “parlamentarismo bastardo”.

Essas mudanças decorrem de uma crise de legitimidade do sistema representativo, que estalou nas jornadas de 2013, se aprofundou com o impeachment de Dilma Rousseff (PT) em 2015 e culminou, em 2018, na eleição de Jair Bolsonaro (à época no PSL). Crise gerada pela emergência de uma nova direita que não se percebia no sistema político da República de 1988 e o hostilizava.

Embora Bolsonaro representasse a nova direita radical, que canalizava o ressentimento popular contra o sistema e o suposto establishment, o centrão renovado pela mesma eleição se adaptou à nova conjuntura, assumindo uma postura conservadora pragmática e reforçando seu papel como pilar de estabilidade. Passou a agir para limitar tanto as prerrogativas da Presidência quanto do STF.

Tudo aponta para uma tendência em direção a um novo equilíbrio sistêmico e ao afrouxamento da polarização para níveis menores de radicalidade.

A Constituição de 1988 foi concebida em um contexto progressista, em que havia um consenso de que o país deveria se afastar das práticas autoritárias da ditadura militar e se comprometer com um projeto de inclusão social e liberdades públicas. Esse espírito se refletiu nas primeiras décadas de democracia, em que o eixo ideológico predominante esteve à esquerda, sustentado por uma Constituição com fortes valores social-democratas.

Entre os anos 1990 e 2010, o sistema político se estabilizou em torno do chamado presidencialismo de coalizão, um arranjo em que o presidente, mesmo minoritário no Congresso, usava seu vasto poder sobre o Orçamento e a máquina governamental para construir maiorias legislativas e garantir a governabilidade.

Esse modelo se consolidou a partir do Plano Real, que gerou estabilidade econômica e legitimidade para Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Tanto ele quanto Lula e Dilma Rousseff, seus sucessores, governaram formando coalizões com partidos mais conservadores que se alinhavam pragmaticamente ao governo em troca de cargos e influência.

Era esse um presidencialismo forte ou imperial, marcado pelo poder de agenda do chefe de Estado na definição de políticas progressistas, voltadas para promover um ambiente de maior liberdade política, civil e econômica, mas também maior igualdade social, racial e de gênero.

No entanto, a partir dos anos 2010, o consenso progressista começou a dar sinais de desgaste. O contexto político e social havia mudado: a sociedade brasileira, transformada por décadas de políticas sociais e de inclusão, se tornou mais complexa e polarizada. Em paralelo, denúncias de corrupção e o colapso do modelo de presidencialismo alimentaram uma crise de legitimidade.

As manifestações de 2013 expressaram o descontentamento generalizado com a classe política e marcaram o início de um período de grande instabilidade. Bancado pela PGR (Procuradoria-Geral da República) e pelo STF, a “revolução judiciarista” pautou a Operação Lava Jato, derrubou Dilma Rousseff, quase derrubou Michel Temer (MDB), além de prender e condenar dezenas de figuras do establishment a título de purgá-lo da corrupção.

Esse processo abriu espaço para que o centrão reagisse em busca de sobrevivência. Para alcançar esse fim, precisaria deixar de ser apenas um grupo de apoio pragmático e passasse a atuar de forma mais autônoma e ativa, buscando consolidar sua hegemonia.

Nesse contexto, o centrão se adaptou para sobreviver e fortalecer sua influência. Até então, seus partidos haviam operado pragmaticamente, compondo com presidentes de diversos espectros políticos. Entretanto, após o impeachment de Dilma e com a ascensão de figuras mais conservadoras, assumiu sua posição conservadora sem perder o pragmatismo, perseguindo primazia sobre os demais Poderes.

Na impossibilidade de aprovar o semipresidencialismo, esse processo culminou em uma nova forma de presidencialismo de coalizão, agora fraco, menos centralizado na Presidência e mais ancorado no Legislativo. Uma espécie de parlamentarismo bastardo.

Por meio de estratégias como o uso de emendas parlamentares (como as emendas Pix e o orçamento secreto), o centrão passou a controlar a distribuição de recursos e fortalecer suas bases locais, garantindo seu domínio sobre a política nacional, o que contribuiu para a vitória de seus candidatos na última eleição municipal e fortaleceu sua influência. Essa apropriação do Orçamento e da máquina pública se tornou um mecanismo de autossustentação, tornando tais partidos cada vez mais independentes do presidente, seja ele de direita ou de esquerda.

O resultado foi um conservadorismo inercial que garante estabilidade ao sistema político ao custo de fazê-lo rodar muito mais lentamente.

As ideologias passaram a ocupar um lugar mais central na organização e na definição das identidades políticas do centrão. Seu conservadorismo sempre existiu, mas estava adormecido pelo consenso progressista. Findo este, saiu da incubadora.

Mas se trata de um conservadorismo moderado, mais pragmático que doutrinário, voltado principalmente para a proteção dos mecanismos de sua autorreprodução com pouca interferência do governo e do Judiciário. Daí a defesa daquilo que eufemisticamente chamam de prerrogativas do Congresso.

A crise de legitimidade vivida pela democracia brasileira e, em paralelo, o avanço da nova direita na década passada deram força política, em estilo abertamente populista, a ideologias radicais que antes estavam à margem, como o reacionarismo e o libertarianismo. A social-democracia identificada com o PT entrou em crise.

No entanto, o pacto pragmático do liberalismo democrático centrista com o conservadorismo tradicional da direita moderada tem garantido que o sistema permaneça estável, coibindo o avanço de pautas progressistas, ora decadentes, mas, também e principalmente, o avanço do populismo autoritário.

Essa relação entre ideologia e pragmatismo se revela na ambiguidade de líderes da direita do centrão, como Ciro Nogueira (PP) e Valdemar Costa Neto (PL). Querem o estoque eleitoral do populismo radical, mas submetendo-o à disciplina partidária tradicional e, assim, podando seus efeitos antissistêmicos.

Mesma ambiguidade visível em Tarsício de Freitas (Republicanos), que representa no governo de São Paulo o impossível “bolsonarismo moderado”, com que busca atrair eleitores de centro-direita acenando periodicamente para o radicalismo. Na centro-direita, Gilberto Kassab (PSD) segura Tarcísio com a mão direita e Lula com a esquerda, estabelecendo as alianças amplas que elegeram o maior número de prefeitos neste ano.

A direita brasileira está consolidada, e seu sucesso cria novos problemas. O maior reside na oposição entre moderados ou sistêmicos, identificados, de um lado, com Kassab e Eduardo Paes (PSD), e radicais antissistêmicos, como Bolsonaro e Pablo Marçal (PRTB).

A liderança de Bolsonaro, inelegível e sem expectativa de poder, está francamente decadente. Egoísta e inábil, o ex-presidente confia sempre e unicamente na sua camarilha de bajuladores e pretende submeter toda a direita ao seu objetivo particular de fugir da cadeia por meio de uma anistia que reverta sua inelegibilidade ou lhe permita lançar à Presidência um candidato subserviente.

Por essas e outras razões, com toda a sua ambiguidade, a própria direita moderada centrônica o percebe como um estorvo e não vê a hora de se livrar dele definitivamente. Prefere gente como Tarcísio e Ronaldo Caiado (União Brasil), este em rota de colisão com Bolsonaro.

A decadência de Bolsonaro se dá também no campo da direita radical. Aparentemente, a apologia da tortura, da ditadura e do golpe militar saíram de moda. Nesse contexto, a figura de Marçal emergiu como um populista neoliberal, camaleão que busca capitalizar o sentimento anti-establishment de gerações mais novas, mais preocupadas com enriquecimento rápido e que veem a religião como terapêutica para problemas pessoais e familiares.

Em termos eleitorais, Bolsonaro também se engajou pessoalmente em campanhas municipais, não só contra a esquerda, mas contra gente da própria direita, e saiu derrotado em quase todas. Muitas igrejas evangélicas também já desinvestem do radicalismo, pregando a despartidarização da religião ou mudando de lado.

Em outras palavras: a direita vai bem, Bolsonaro vai mal. A direita populista, a despeito de sua força eleitoral e histrionismo, continua longe de ameaçar os centrônicos. A eles interessa manter a inelegibilidade de Bolsonaro, fingindo ajudá-lo a escapar quando, na verdade, mais o aproximam do abismo. Mas também lhes interessa a inelegibilidade de Marçal.

Ao mesmo tempo, é improvável que a própria Justiça Eleitoral declare a inelegibilidade de Tarcísio pela declaração que fez a respeito de Guilherme Boulos (PSOL) no dia do segundo turno. Tarcísio pode dar suas “bolsonaradas” à vontade: o sistema o percebe como um dos seus.

Já a esquerda, que historicamente liderou o processo de redemocratização, enfrenta uma situação complexa. Com seu declínio e a falta de renovação de suas lideranças, o PT perdeu o protagonismo e depende cada vez mais da figura de Lula para se manter relevante.

Se Bolsonaro não consegue ser maior que a direita, Lula consegue ser maior que a esquerda. Ele se reinventou como piloto de uma frente democrática ou ampla e se comportou assim nas eleições, se afastando o tanto quanto possível da imagem de partidário.

Em outras palavras: a esquerda vai mal, mas Lula vai relativamente bem. Ao mesmo tempo que a esquerda se torna cada vez mais “lulodependente”, o presidente se vê obrigado a se mover cada vez mais para o centro para preservar e aumentar seu arco de alianças. Enquanto o governo vai se tornando cada vez menos de esquerda, a fissura entre os socialistas se aprofunda. Alguns acham que falta pragmatismo, outros acham ser preciso recuperar as bandeiras históricas do socialismo.

O retorno de Donald Trump à Presidência dos EUA, um reacionário golpista, condenado criminalmente e movido pelo desejo de vingança e de escapar da cadeia, põe a democracia americana em uma posição frágil. Sua influência direta sobre o Brasil, contudo, encontra limites importantes.

Primeiro, o Brasil não enfrenta uma crise de decadência geopolítica ou de imigração para catalisar o tipo de ressentimento e identidade nacionalista que Trump mobiliza.

Segundo, o sistema político brasileiro, embora tenha falhas, possui mecanismos institucionais que oferecem resistência a investidas autoritárias, como a independência do STF e um sistema constitucional mais recente e adaptado às necessidades de uma sociedade democrática.

O sistema bipartidário, que permite que todos os setores conservadores se aglutinem em torno de um radical como Trump, tampouco existe no Brasil. Bolsonaro não consegue ascendência nem sequer sobre Valdemar Costa Neto. Além disso, o centrão não possui interesse em uma ruptura autoritária que abale o equilíbrio de poder do qual depende para manter influência e controle sobre o governo.

Assim, apesar de uma possível pressão da internacional reacionária liderada por Trump e das tentativas de importar mais uma vez sua retórica e seu messianismo, nada indica que ele abalará o atual modelo de governabilidade de tendência conservadora, mas pragmática do Brasil. Bolsonaro, que tentou sempre emular Trump, está cada vez mais isolado.

Da mesma forma, nenhuma das alternativas conservadoras à Presidência se mostra disposta a romper o presidencialismo de coalizão fraco. Aparentemente, querem todas ser apenas um Michel Temer com votos. Nem a Justiça Eleitoral, nem o governo, nem o STF parecem dispostos a anistiar Bolsonaro para que ele volte a se candidatar.

Nesse quadro, o que Trump poderá efetivamente fazer de útil para Bolsonaro? Bolsonaro quer, claro, explorar em benefício de sua anistia a tese delirante de que Trump mandará fuzileiros navais prenderem Alexandre de Moraes.

Trump estará ocupado redesenhando as instituições e a sociedade norte-americana à sua feição. Está interessado em reduzir a presença militar dos EUA no mundo, não em aumentá-la. Se precisar de um bajulador sul-americano, já tem à mão um Milei para posar ao seu lado. Mais provável são tuítes destemperados apoiados por Elon Musk ou a concessão de asilo diplomático na calada da noite.

As eleições municipais de 2024, ao consolidar o controle do centrão e do conservadorismo pragmático sobre a política local, indicam que o Brasil está caminhando para uma nova configuração de poder. Esse processo de normalização do sistema, que agora gira em torno da centro-direita, sugere que a polarização política extrema dos últimos anos pode estar cedendo lugar para uma moderação pragmática.

No entanto, essa normalização enfrenta desafios, especialmente no que diz respeito à convivência com o STF, visto por muitos como o último bastião de um sistema democrático e liberal. Há arestas entre o tribunal e o centrão, decorrentes da tentativa de preservar o avanço feito pelo Congresso sobre o Orçamento.

Sabe-se que, no quadro de fraqueza imposta ao governo pelo “parlamentarismo bastardo”, o governo também conta com a maioria do STF como parceiro para restabelecer alguma paridade de armas. É o “judiciarismo de coalizão”, identificado principalmente com o ministro Flávio Dino.

Enfim, tudo indica uma tendência ao reequilíbrio sistêmico em torno do centro-direita e um afrouxamento da radicalização ideológica.

É cedo para discutir as eleições de 2026. Não se sabe se Lula passará o bastão a Fernando Haddad (PT) ou se será candidato à reeleição, opção que parece cada vez mais provável. Nem se sabe para que lado penderia a centro-direita de Kassab, apoiando um candidato como Tarcísio, mais seguro à reeleição em São Paulo, ou Caiado. A reversão da inelegibilidade de Bolsonaro é remota, e Marçal deve ser declarado inelegível pela falsidade assacada contra Boulos durante a campanha em São Paulo.

Do ponto de vista sistêmico, porém, a depender do resultado das eleições de 2026, saberemos se o sistema político absorveu definitivamente, como parece, as tensões subversivas da direita radical ou se sofrerá o ataque de um populista apoiado por cerca de um quarto do eleitorado e, talvez, pela internacional reacionária.

 

Efeito dominó do desmatamento na Amazônia, por Márcia Castro

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Danos acumulados não são revertidos apenas com a redução das taxas anuais

Márcia Castro, Professora de Demografia e Chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard.

Folha de São Paulo – 08/11/2024

Na última quarta-feira (6), o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inep) divulgou dados do desmatamento. De agosto de 2023 a julho de 2024, o desmatamento na amazônia caiu 30,6% comparado ao período anterior.

Um dia depois, dados do Observatório de Clima mostram que o Brasil reduziu em 12% a emissão de gases de efeito estufa em 2023. Na amazônia, as emissões devido ao desmatamento tiveram uma queda de 37%.

Os dois indicadores são positivos e estão relacionados. Mas muito ainda precisa ser feito.

Os efeitos acumulados em função do histórico de desmatamento não são revertidos apenas com a redução das taxas anuais. Além da contínua redução das perdas ambientais, são necessários programas efetivos, de larga escala e sustentáveis de recuperação ambiental.

A equação é simples: menos árvores resultam em menos umidade do ar, o que reduz a potência dos rios voadores, resultando em menos chuvas e, portanto, redução do nível de água dos rios. Esse efeito dominó acelera o processo de mudanças climáticas.

Além disso, afeta a segurança energética do país, já que a energia hidrelétrica, em 2023, responde por 48,6% da capacidade instalada e 60,2% da geração total.

Um estudo da PUC-Rio mostra que 17 das 20 maiores hidrelétricas do Brasil estão na rota dos rios voadores e, portanto, são afetadas pelo desmatamento na amazônia. Destas, apenas oito estão localizadas na amazônia.

Fica claro que os efeitos do desmatamento não respeitam fronteiras. O estudo mostra que o desmatamento na amazônia entre 2002 e 2022 resultou em uma perda de geração de cerca de 3% nas hidrelétricas localizadas na bacia do Paraná.

A redução da geração de energia hidrelétrica em momentos de seca demanda o uso de usinas térmicas que, além de terem um custo maior, são emissoras de gases de efeito estufa, acelerando as mudanças climáticas.

Cabe relembrar que os possíveis efeitos das mudanças ambientais e climáticas na futura capacidade de geração de energia hidrelétrica no Brasil já haviam sido ressaltados no Projeto Brasil 2024 que, infelizmente, foi ignorado.

Os efeitos do desmatamento também são sentidos na saúde. Um estudo recente mostra que, entre 2003 e 2022, a cada aumento de 1% na área mensal desmatada houve, em média, um aumento de 6,3% nos casos de malária na amazônia no mês seguinte ao desmatamento. Esse efeito varia por estado e chega a 10,6% de aumento da malária no Amazonas.

Esses e tantos outros efeitos do desmatamento ressaltam a necessidade da recuperação ambiental.

Imagine que a amazônia é um órgão do corpo humano. Os rios são as artérias. As árvores são as veias. Não é preciso remover todas as árvores ou contaminar todos os rios com o mercúrio usado no garimpo para que amazônia deixe de existir.

A falência do órgão acontece quando o estrago chega a um ponto que compromete o seu funcionamento. Essa é a ideia do ponto de não retorno. Evitá-lo demanda redução do desmatamento e recuperação de áreas degradadas.

Estamos a um ano da COP 30 em Belém. O Brasil pode, deve e precisa assumir o protagonismo na agenda ambiental. Precisa fazê-lo pelo Brasil e pela humanidade. Afinal, após a eleição de Trump, esse protagonismo é de extrema importância.

 

Alunos de Gestão Empresarial da Fatec Catanduva – 2024

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Trump: promessas e perspectivas

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Nesta semana Donald Trump ganhou a eleição para a Presidência dos Estados Unidos, neste percebemos que as nações estão todos alvoroçadas, afinal a presença de Trump na presidência dos EUA gera incertezas e instabilidades de todas as regiões.

Governos nos mais diferentes matizes ideológicos estão preocupados, mas destacamos as nações que mais geram preocupações da sociedade norte-americana, como a China, a Rússia, o Irã, o México, a Coréia do Norte e o México, países que, de uma forma ou outra, ameaçam a liderança estadunidense.

Neste cenário, onde a sociedade estadunidense perde a sua hegemonia global e percebe ainda, o crescimento de novos atores econômicos, políticos e sociais, as reações do governo Donald Trump podem alavancar constrangimentos para a sociedade mundial, como a adoção de fortes políticas protecionistas, limitação da atuação de agências multilaterais, tais como a ONU, a OMC, a OMS, dentre outras, que podem culminar no refluxo da globalização.

Me chamou a atenção na campanha eleitoral, as promessas, que são sempre muito interessantes, muitas delas bastante exóticas e irreais, onde o ganhador ameaçou aumentar a proteção tarifária da economia norte-americana, taxando as importações que geram constrangimentos para a economia e impacta fortemente os trabalhadores, principalmente das regiões industrializadas, essas regiões que antes eram fortes exportadores de produtos industrializados, perderam espaço no comércio global e, suas populações estão perdendo renda, empobrecendo e aumentando a degradação social e levando grande parte da população para votarem em candidatos de extrema-direita.

As tarifas alfandegárias podem reduzir as importações internas e acomodar a produção interna, mas sabemos que as outras nações não vão aceitar passivamente, que podem gerar um conflito comercial, cujos efeitos são assustadores, preocupantes e podem aumentar os confrontos entre as nações.

Outro ponto que devemos destacar neste ambiente, é que, a redução da importação global dos Estados Unidos, como forma de proteger a indústria americana, vai impactar fortemente sobre o consumo interno, com elevação dos preços dos produtos e gerando um incremento da inflação, cujo impacto imediato é a elevação das taxas de juros que tendem a reduzir os investimentos produtivos, diminuindo o crescimento dos empregos e a queda da renda agregada.

O mundo globalizado é muito mais complexo do que as pessoas imaginam, muitas promessas são impossíveis de serem implementadas, desta forma, muitos políticos eleitos perdem a legitimidade, com inúmeras promessas na campanha que são difíceis de serem colocadas em práticas, gerando o descrédito, a desesperança e a repulsa a todos os candidatos, para todos os partidos políticos e para todo o sistema democrático, gerando um verdadeiro retrocesso.

A ascensão de Donald Trump pode motivar uma nova agenda internacional, menos multilateralismo, crescimento da extrema direita, o incremento da turbulência e com a imigração perdendo espaço, já que a promessa de endurecer a entrada de pessoas de outras nações nos Estados Unidos podem contribuir para que o mundo fique, cada vez mais, centrado nas incertezas, nas instabilidades e nas crescentes volatilidades.

 

 

O economista de Donald Trump, por Alessandro Octaviani

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Alessandro Octaviani – A Terra é Redonda – 07/11/2024

É um erro tomar Peter Navarro, um dos raros economistas a quem Trump dá alguma credibilidade, como “excêntrico”, “retrato de um acidente”, ou “desvio, que em breve será arrumado”

Peter Navarro é atualmente diretor do Office of Trade and Manufacturing Policy, do Governo Federal dos EUA, e um dos raros economistas a quem Donald Trump dá alguma credibilidade. [1]

Durante a crise do Covid-19, sua atuação foi ainda mais marcante. Como noticiado, em 2 de abril de 2020, “Donald Trump recorreu (…) à Lei de Produção de Defesa para ajudar as empresas que fabricam respiradores (…). (…) General Electric, Hill-Rom Holdings Inc, Medtronic Plc, Resmed Inc, Royal Philips NV e Vyaire Medical Inc”. [2]

Esse reforço para as empresas nacionais norte-americanas ficou a cargo de Peter Navarro, que se incumbe da missão como um verdadeiro “Falcão Econômico”: “Sobre sua ‘nova autoridade sobre empresas e suas redes mundiais de suprimentos’, ele conta como a usou com a 3M, que tem fábricas na China: ‘A empresa não estava disposta a informar sobre a distribuição das máscaras que produz ao redor do mundo e a fornecê-las ao povo americano. Ela quer agir como uma nação soberana (…). E nesta crise existe apenas um país e apenas um presidente”. [3]

A imprensa noticiou recentemente o movimento jurídico de Donald Trump rumo à tentativa de monopolizar, para os EUA, a exploração mineral na Lua e em outros corpos celestes: “Em meio à pandemia do coronavírus, que já contaminou mais de 360 mil estadunidenses, o presidente dos EUA, Donald Trump, envolve-se em mais uma polêmica após publicar um decreto que dá ao país o direito à exploração dos recursos da Lua, contrariando o acordo feito sobre o satélite natural do planeta Terra. ‘Os americanos devem ter o direito de se envolver em exploração comercial, recuperação e uso de recursos no espaço sideral, de acordo com a lei aplicável. O espaço exterior é um domínio legal e fisicamente único da atividade humana, e os Estados Unidos não o veem como um bem comum global. (…)’, diz o decreto assinado por Trump, que foi rechaçado por Moscou”.[4]

Essa proposta também tem o dedo de Peter Navarro, como se lê em Death by China (escrito em parceria com Greg Autry, para ser uma espécie de programa de ação para o Estado capitalista norte-americano ante o perigo chinês e a ameaça à sua hegemonia global): dentre as proposições concretas para “confrontar o desafio espacial chinês” consta “reivindicar a Lua antes que a China o faça”. [5]

Para Peter Navarro, a China é uma ameaça aos EUA, em razão de sua ascensão industrial capitaneada pelo Estado chinês e suas políticas de cunho mercantilista, protecionista, imperialista, planejadas e agressivas.

Dentre os instrumentos chineses, estariam (i) a formação de uma rede complexa de subsídios ilegais à exportação; (ii) moeda astutamente manipulada e brutalmente desvalorizada; (iii) flagrante falsificação, pirataria e subtração descarada da propriedade intelectual norte-americana; (iv) envolvimento em degradação ambiental significativa; (v) padrões de saúde e segurança do trabalho excessivamente frouxos; (vi) tarifas e quotas de importação ilegais; (vii) fixação de preços e uso de demais práticas predatórias com vistas a expulsar rivais estrangeiros dos principais mercados de recursos para, então, cobrar excessivamente dos consumidores por meio de monopólio de preços; e (viii) impedimento de todos os competidores internacionais de estabelecerem seus negócios em solo chinês. [6]

As cinco partes de Death by China são nomeadas em termos militaristas, “preparando a guerra” (que viria de fato a se instalar alguns anos depois de sua publicação, quando suas formulações revelaram-se adequadas às concepções de Donald Trump): “‘Buyer beware’ on steroids”, “Weapons of job destruction”, “We will bury you, Chinese style”, “A hitchhiker’s guide to the Chinese gulag” e “A survival guide and call to action”.

São elencadas medidas estratégicas a serem modeladas, em caráter amplo e urgente, várias das quais atualmente em pleno curso: (i) evitar os produtos chineses; [7] (ii) desmantelar as armas de destruição de empregos da China; [8] (iii) fixar limites rígidos para a espionagem chinesa e guerra cibernética; [9] (iv) confrontar e combater a crescente ameaça militar chinesa; [10] (v) combater o colonialismo global chinês; [11] (vi) frear as mortes na China pela China; [12] (vii) enfrentar o desafio espacial chinês. [13]

É um erro tomar Peter Navarro ou Donald Trump como “excêntricos”, “retratos de um acidente”, ou “desvios, que em breve serão arrumados”. Eles representam a expressão arraigada do Estado capitalista norte-americano e sua disciplina jurídica, vertidos, sempre, à defesa radical de seus interesses e da manutenção de suas posições de poder.

Não se trata de “excepcionalismo”, mas de “estrutura profunda”, que ecoa a célebre modelagem da “Super 301” – instrumento jurídico dos EUA para punir unilateralmente países que os afetem comercialmente – e a atuação do deputado Richard Gephardt, que propunha a incidência do diploma automaticamente “contra países que tivessem saldos superavitários excessivos em suas balanças comerciais com os EUA. Segundo o projeto, seriam feitas duas exceções: países com dificuldades de balanços de pagamentos e casos em que a ação 301 pudesse significar dano aos interesses econômicos dos EUA. (…) Derrubada por veto do Presidente Reagan, sob a justificativa de que era ‘por demais draconiana para ser efetiva’, a chamada ‘emenda Gephardt’ deu lugar à Super 301, como seu dispositivo substituto”. [14] Substituiu-se a obrigação automática de sancionar outros países pela possibilidade discricionária de atacá-los…

*Alessandro Octaviani é professor de direito econômico da Faculdade de Direito da USP.

Notas

[1] Cf., entre outros, ROGIN, Josh. “How Peter Navarro got his groove back”. The Washington Post. Publicado em 27/02/2018.

[2] Publicado em 2/04/2020.

[3] Publicado em 8/4/2020.

[4] Publicado em 7/4/2020.

[5] NAVARRO, Peter; AUTRY, Greg. Death by China: Cronfronting the Dragon – A Global Call to Action. New Jersey: Pearson FT Press, 2011, p. 257-259.

[6] Ibidem, p. 1-11.

[7] Ibidem, p. 234-239. Algumas das proposições específicas: não comprar produtos “made in China”; leis mais duras contra a China e produtos chineses que prejudiquem os americanos.

[8] Ibidem, p. 239-245. Algumas proposições concretas: enviar emissário secreto à China para avisá-la sobre a intenção americana de estigmatizá-la como manipuladora de moeda; frear o sequestro dos trabalhos de pesquisas e desenvolvimento; proibir as empresas estatais chinesas de comprarem empresas privadas.

[9] Ibidem, p. 245-249. Algumas proposições concretas: penalizar de forma mais séria e agressiva os espiões chineses; declarar os ataques cibernéticos promovidos por Estados nacionais como atos de guerra.

[10] Ibidem, p. 249-252. Exemplos de propostas: reconhecer que os EUA precisam conseguir um maior retorno do complexo industrial militar, em vista da superioridade quantitativa crescente do armamento chinês; evitar uma corrida armamentista com a China, que está numa situação econômica e militar muito mais favorável do que os EUA.

[11] Ibidem, p. 252-255. Propostas: expandir e mensagem dos EUA pelo mundo, como forma de ganhar acesso a mercados e difundir os valores democráticos; substituir o ensino de francês e alemão nas escolas de ensino médio por mandarim, como forma de conhecer o inimigo.

[12] Ibidem, p. 255-257. Algumas proposições concretas: reinstituir os direitos humanos como elemento da política externa americana (os EUA devem continuar a exercer pressão sobre a China a fim de que ela respeite os direitos humanos); realização de investimentos em empresas e moedas de países ricos em recursos, como Austrália e Brasil, que se expandem tanto quanto a China.

[13] Ibidem, p. 257-259. Proposições concretas, como mencionado acima: reivindicar a Lua antes que a China o faça; concessão de bolsas, empréstimos estudantis e subsídios/financiamentos educacionais direcionados de forma desproporcional às áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática.

[14] ARSLANIAN, Regis. O Recurso à Seção 301 da Legislação de Comércio Norte-Americana e a Aplicação de seus Dispositivos Contra oBrasil. Brasília: Instituto Rio Branco, 1994, p. 77.

 

Donald Trump — mais um prego no caixão da democracia liberal, por Luis Felipe Miguel

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Luis Felipe Miguel –  A Terra é Redonda – 07/11/2024

 Do mandato de Donald Trump, pelos sinais apresentados até agora, se pode esperar uma tentativa de orbanização do sistema político estadunidense

Evito fazer projeções bombásticas, mas é difícil resistir no calor no momento: a nova eleição Donald Trump bateu, não digo o último, mas um dos últimos pregos no caixão da democracia liberal tal como ela foi edificada ao longo do século XX.

A vitória de Donald Trump não é exatamente inesperada. O velho farsante alaranjado nunca perdeu o apoio de sua base original — operários e rednecks e empobrecidos, os que se sentem cada vez mais excluídos e sem perspectivas nos Estados Unidos de hoje. E cresceu tanto junto ao dinheiro grosso quanto ao eleitorado negro e latino.

Dos bilionários antes simpáticos aos democratas, Donald Trump ganhou o apoio declarado, a simpatia discreta ou no mínimo a neutralidade. Já entre negros e latinos há um crescente descrédito com o discurso do “neoliberalismo progressista” que é oferecido a eles pelo Partido Democrata.

De fato, o Partido Democrata parece não saber o que oferecer ao eleitorado. Em 2020, Joe Biden obteve uma vitória apertada — em um país mergulhado no caos da primeira gestão de Donald Trump, incluindo uma gestão da pandemia tão criminosa quanto a de Jair Bolsonaro.

Na presidência, ele pareceu julgar que a volta à “normalidade” (isto é, à velha política de sempre) era o que o povo queria. Esforçou-se por melhorar os indicadores econômicos, sem perceber que o efeito eleitoral deles já não era o mesmo.

No começo do mandato, em gesto ousado, Joe Biden apoiou a greve dos trabalhadores da Amazon, que reivindicavam o direito de se sindicalizar. Mas o saldo não foi angariar o apoio do vasto setor de precarizados (aqueles retratados no oscarizado Nomadland) e sim angariar a antipatia dos barões da “nova economia” — reforçado pelas tímidas tentativas de regular as big techs.

Não custa lembrar que Jeff Bezos, da Amazon, determinou que o Washington Post, o jornal do qual também é dono, rompesse a tradição de apoiar candidatos democratas e se declarasse neutro na eleição deste ano.

Quando a incapacidade física e mental de Joe Biden para concorrer à reeleição se tornou evidente demais e — após um longo e desgastante processo — ele teve que ser substituído, a opção por sua vice parecia “natural”, mas nem por isso menos equivocada.

Ela parecia ser a solução mais rápida, capaz de unir o partido. Mas, afora isso, reconhecidamente uma política pouco hábil, má oradora e desprovida de carisma, seu único trunfo era ser uma mulher com ascendência africana e indiana.

Com o apelo identitário se mostrando cada vez mais contraproducente, afastando mais eleitores do que congregava, e tendo que ser colocado em segundo plano, Kamala Harris fez uma campanha errática.

Era a mesma velha política morna, de fazer acenos em múltiplas direções para, no final das contas, manter tudo como está.

Do mandato de Donald Trump, pelos sinais apresentados até agora, se pode esperar uma tentativa de orbanização do sistema político estadunidense. Isto é: seguir os passos de Viktor Orbán, na Hungria, e suprimir todos os controles a seu poder pessoal.

Esse desfecho é o resultado da crise do modelo liberal democrático.

O segredo desse arranjo repousava na capacidade da classe trabalhadora de impor limites ao funcionamento da economia capitalista. Ou seja, as democracias históricas não se definem como um conjunto de regras do jogo abstratas, como frequentemente se apresenta na ciência política, mas como o resultado de uma determinada correlação de forças.

A acomodação da democracia liberal permite, por um lado, que os dominados tenham alguma voz no processo decisório e, por outro, que os dominantes saibam calibrar as concessões necessárias para garantir a reprodução de sua própria dominação.

Um componente necessário nessa equação é, obviamente, a capacidade regulatória do Estado. Outro é sua autonomia relativa em relação aos proprietários, a fim de que possam ser adotadas medidas que os contrariam no curto prazo.

A crise que ora se vê é marcada pela erosão de praticamente todos os pilares desse arranjo. O “populismo de direita” dá respostas a ela — ilusórias, mentirosas, mas ainda assim respostas. O centro e a esquerda eleitoral não chegam nem a isso. E, sem a retomada da capacidade de pressão de uma classe trabalhadora transformada, o modelo da democracia liberal fatalmente vai degringolar para uma oligarquia escancarada, com um frágil verniz eleitoral.

Estamos falando dos Estados Unidos. Mas, como disse Horácio (e Marx gostava de citar): de te fabula narratur.

*Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil (Autêntica)