A economia alemã, por Flávio Aguiar.

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De gigante robusto a criança-problema

Flávio Aguiar – A Terra é Redonda – 14/10/2024

Recentemente Christoph Swonke, economista, pesquisador e ligado ao Deutsche Zentral-Genossenschafts Bank, conhecido como DZ-Bank, declarou que a Alemanha tornou-se “a nova criança-problema entre os países europeus”. Ou seja: para ele, a economia alemã está deixando de ser o carro-chefe da economia europeia, para atravancá-la com seus problemas internos.

O que está acontecendo?

Na quarta-feira da semana passada, 9 de outubro, o ministro da Economia e vice-chanceler do governo alemão, Robert Habeck, do Partido Verde, declarou que pelo segundo ano consecutivo a economia do país iria se retrair. Em 2023 ela encolheu 0,3%. Agora a previsão é de que em 2024 ela encolha mais 0,2%.

Diante da situação interna adversa, com aumento do custo da energia, dos alimentos, queda no consumo, falta de investimentos, empresas alemãs estão se voltando para o exterior em busca de socorro, às custas de seus ativos. A Deutsche Bahn, empresa ferroviária alemã e outrora uma das meninas-dos-olhos do transporte europeu, enfrenta dificuldades de caixa e desempenho. Em consequência, decidiu vender sua subsidiária de cargas, a rentável Schenker, para a dinamarquesa DSV, por 14 bilhões de euros (cerca de R$ 85 bi), a fim de equilibrar seu caixa.

O Comerzbank, segundo maior banco privado do país, vendeu parte de seus ativos para o banco italiano Unicredit. Este manifestou interesse em adquirir todo o banco alemão, e o Banco Central Europeu já deu luz verde para esta possível transação.

Outras empresas estão pensando em buscar locações mais atraentes. A indústria química BASF decidiu investir 10 bilhões de euros para montar uma unidade na China.

Os proprietários suíços da empresa Techem, do setor energético, considerada de médio porte, pensam vendê-la para a norte-americana TPG.

A tradicional Volkswagen anunciou que pretende fechar unidades de produção, em parte devido à concorrência dos carros chineses, e rompeu um acordo salarial com o sindicato de trabalhadores que durava 30 anos, protegendo empregos e salários.

Um problema suplementar surgiu com a decisão alemã de romper parcial e temporariamente com o chamado acordo de Shengen, restabelecendo o controle policial de passaportes e veículos em suas fronteiras terrestres. Empresários cujas empresas localizam-se perto da fronteira com a Polônia e empregam trabalhadores deste país dizem estar apreensivos pela dificuldade de circulação que isto provoca.

Como a Alemanha ainda é a maior economia do continente, e a principal importadora e exportadora de produtos, seus problemas internos atingem toda a Europa. O clima geral é de apreensão e expectativa negativa para os próximos tempos.

Para amenizar a situação o ministro Robert Habeck previu que a Alemanha voltará a crescer a partir do próximo ano, anunciando a adoção de medidas desburocratizantes na relação entre governo e empresas e a busca de um novo programa de geração de energia elétrica considerado climaticamente neutro.

Mas as dificuldades não são pequenas. Desde 1980 sucessivos governos anunciam a intenção de desburocratizar a rotina daquela relação, com resultados considerados insatisfatórios.

Além disto, o clima geral dos mercados mundiais de comércio, finanças e investimentos produtivos também é de apreensão e cautela, devido à guerra na Ucrânia e aos confrontos no Oriente Médio, com a ação armada de Israel se expandindo na região.

Por fim, mas não menos importante, grupos ecológicos manifestam grave preocupação diante das, crescentes resistências, por parte de empresários do setor industrial e de produtores agrícolas, em relação às iniciativas verdes, consideradas pouco rentáveis e prejudiciais diante da concorrência estrangeira. A Alemanha e a Europa como um todo podem passar de líderes no setor a novas crianças-problemas no que toca a preservação do planeta.

*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo)

De Gaza ao Líbano — um mundo de impunidade, por Paulo Sérgio Pinheiro

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Paulo Sérgio Pinheiro – A Terra é Redonda – 23/10/2024

Diversos conflitos armados recentes têm desintegrado completamente os sistemas de proteção da população civil

Uma perturbadora erosão gradual e constante das normas universais do direito internacional tem ocorrido nas últimas décadas. Diversos conflitos armados recentes têm desintegrado completamente os sistemas de proteção da população civil.

No mais grave e longevo desses conflitos, o Estado de Israel, à guisa de se defender do Hamas, em um ano destruiu na Faixa de Gaza todas as escolas, hospitais, universidades, mesquitas, igrejas, arquivos, museus. Cerca de 1,9 milhão de habitantes foram deslocados de suas casas. Quase 2% da população foi morta pelos bombardeios israelenses — 60% dessas 42 mil vítimas são crianças, mulheres e idosos a partir de 60 anos.

No final do mês de setembro, a escalada de ataques, iniciada em 8 de outubro de 2023 entre Israel e o grupo não estatal armado libanês Hezbollah, se agravou. Em 27 de setembro último, sem aviso prévio, Israel lançou mais de 80 bombas de 2.000 libras num bairro no sul de Beirute, destruindo seis prédios de apartamentos e resultando na morte do secretário-geral do Hezbollah, Hassan Nasrallah.

Seguiram-se 1.700 bombardeios no Líbano, inclusive, recentemente, no centro de Beirute. No total, 1,2 milhão de pessoas foram deslocadas, 2.083 mortas e 10 mil feridas desde outubro passado, a maioria nas últimas três semanas. Israel atacou soldados da Força Interina das Nações Unidas no Líbano (Unifil) sob protestos de 40 países, inclusive do Brasil.

Tudo antes da morte do líder do Hezbollah, considerada pelos EUA como “medida de justiça”, parece ultrapassado. Mas, para as vítimas, o passado recente continua sendo o presente. Como foram as explosões em 17 e 18 de setembro no Líbano, e também na Síria, em pagers e walkie-talkies, atribuídas a Israel — visando o Hezbollah, mas que atingiram 3.500 libaneses, com 42 mortes. Perderam ambos os olhos 300 pessoas e, 500, uma das vistas. Houve registros de lesões graves na cintura e no rosto das vítimas, além de mãos amputadas.

Os ataques, a quem estava de posse dos dispositivos visados, violaram o direito internacional dos direitos humanos e humanitário, avaliou o alto-comissário de direitos humanos da ONU, Volker Turk. Apesar disso, as potências ocidentais que apoiam Israel não condenaram esses ataques. As reações da mídia internacional foram de um fascínio indecente, com o feito considerado “inovador” e “audacioso”.

Era de se esperar que os ataques de Israel contra o Líbano gerassem protestos aqui, visto o Brasil ter a maior comunidade de libaneses e descendentes fora do país do Oriente Médio — entre 7 e 10 milhões de pessoas.

Ledo engano. Diante desses horrores, as entidades da sociedade civil brasileira não se manifestaram. Caladas durante um ano quanto ao genocídio em curso em Gaza — cuja plausibilidade foi constatada pela Corte Internacional de Justiça —, guardam um obsequioso silêncio sobre a desesperadora situação no Líbano.

Mas uma vez nos salva desse constrangimento internacional o governo brasileiro, que condenou com veemência os ataques aos pagers e denunciou as operações militares de Israel no sul do Líbano como violação ao direito internacional, à Carta da ONU e a resoluções do Conselho de Segurança.

Acontecimentos como os ocorridos em Gaza, no Líbano e em diferentes partes do mundo solapam a aplicabilidade universal de normas e mecanismos internacionais decisivos para a proteção das populações civis.

Urge que a sociedade civil brasileira se dê conta, como há dias disse António Guterres, secretário-geral da ONU, do “mundo de impunidade” que ameaça os fundamentos da lei internacional.

*Paulo Sérgio Pinheiro é Professor Émerito da FFLCH (USP) e da Unicamp; ex-ministro dos Direitos Humanos. Autor, entre outros livros, de Estratégias da ilusão: a revolução mundial e o Brasil, 1922-1935 (Companhia das Letras).

 

Precariedade: a barbárie assume seu protagonismo, por Jacob Carlos Lima.

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No Brasil industrial, ela foi vista por décadas como nódoa, condição passageira a ser superada. Nos tempos de Bolsonaro e Guedes, virou “solução”: evita que se fale em desemprego e alivia o empregador do “fardo” tributário. O que está por trás deste retrocesso?

Jacob Carlos Lima, no Boletim Lua Nova – 27/05/2024

A informalidade, vista por muito tempo como sinônimo de atraso econômico e pobreza urbana, volta à tona, agora com chancela presidencial, menos como sinônimo da modernidade do capitalismo flexível, mais como opção (ou falta de) entre empregos e direitos. Nada a se espantar com declarações desse tipo num quadro em que a barbárie é vista como solução; assistimos diariamente sua implementação com o beneplácito da sociedade de “bem”, representada por nossas instituições que, cada vez mais, representam menos.

Mas o que é esse informal declarado agora como modelo a ser seguido pelo mercado de trabalho?

Num artigo publicado há duas décadas, Luis Machado da Silva (2002) questionava o uso do termo “informal” para se referir a empregos não regulamentados, pois esse teria perdido seu caráter explicativo. Num quadro de expansão neoliberal, o termo “empregabilidade” poderia substituí-lo, assim como, acrescentamos, o de empreendedor individual poderia substituir também o de trabalhador autônomo que estava sendo reconfigurado.

O conceito de informalidade tem sido utilizado desde os anos 1970, tendo como ponto de partida estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) realizado no Quênia em 1972. No Brasil, substituiu o conceito de marginalidade social, empregado anteriormente para explicar aqueles que sobreviviam de expedientes na cidade, fora de qualquer regulamentação oficial, e eram marcados pela vulnerabilidade representada pela exclusão de qualquer benefício social.  Machado da Silva, de certa forma, antecipou o conceito em sua dissertação de mestrado defendida em 1971, na qual discutia mercados de trabalho metropolitanos.

Desde o início de sua utilização, o conceito de informalidade e trabalho informal foi objeto de críticas e questionamentos, como aliás acontece com grande parte dos conceitos sociológicos. O contexto do surgimento da utilização do termo se deu num momento de crescente regulação das relações capital e trabalho, após a Segunda Guerra Mundial e ao momento do debate sobre desenvolvimento-subdesenvolvimento dos países periféricos capitalistas, tendo como pressuposto a industrialização como sinônimo de modernização.

A insuficiência da industrialização levaria à formação de grandes massas excedentes ou marginais, excluídas do mercado de trabalho regulado, em ocupações de baixa produtividade e renda, na ocupação caótica da cidade e sem qualquer organização política. A dualidade da análise, progressivamente, foi substituída pela discussão do desenvolvimento desigual e combinado, no qual o capitalismo subordina outras formas de produção e de trabalho às necessidades de acumulação. A massa marginal, constituiria a imprecisa informalidade resultante de uma superpopulação excluída do mercado de trabalho regulada, o que explicaria também o baixo custo da força de trabalho na região, dada a abundância da oferta. O “atraso” como parte integrante do moderno, a população excedente refletindo a superposição de formas de acumulação distintas. Até a década de 1980, a informalidade era a representação do subdesenvolvimento, do atraso econômico, da precariedade e vulnerabilidade dos trabalhadores.

A partir daí houve a guinada neoliberal. Um conjunto de situações políticas, econômicas e culturais podem ser elencadas para discutirmos a crise de acumulação da década de 1970 e o início do que vai ser conhecido como capitalismo flexível. O trabalho regulado e com direitos sociais começa a ser visto como custo que encarece a produção e compromete a competitividade das empresas. Aberturas de mercado, desterritorialização da produção, migração em massa, vão se constituir na nova realidade da nova fase da acumulação capitalista, também sinônimo de globalização. O capitalismo flexível pressupõe a redução da intervenção do Estado na regulação econômica e na reprodução social, vistas como inibidora do livre mercado, e das novas necessidades da acumulação capitalista.

Na América Latina, autores como Hernando De Soto (1987), analisando a informalidade no Peru, descartaram a negatividade do conceito como atividade de pobre e para pobre e passaram a discutir o caráter empreendedor presente na economia informal, Assim, o problema não estaria na ausência do Estado, mas na sua presença excessiva. O trabalhador informal latino-americano, por suas estratégias de sobrevivência seria um empreendedor nato, e o Estado deveria eliminar os entraves regulatórios nessa atividade, inibidora da capacidade de iniciativa e criatividade dos indivíduos. A informalidade torna-se sinônimo de empreendedorismo e trabalho flexível.

Outro elemento nessa “reconfiguração” da informalidade resulta do seu aparecimento como problema também em países avançados, nos quais as condições laborais até então vigentes proporcionavam aos trabalhadores segurança, perspectivas de promoção e ascensão social (Sennet, 1999). Alejandro Portes, Manuel Castells, Lauren Benton (1989); Edna Bonacich (1989;1990) e Saskia Sassen (1988) referem-se aos mercados e às sweatshops nos centros das grandes cidades norte-americanas e europeias onde podem ser encontradas grande número de trabalhadores, sem nenhum tipo de vínculo formal no mercado de trabalho. Podem ser trabalhadores por conta própria ou pessoas que produzem bens ou serviços para algum “empreendedor”, em geral mediador entre os trabalhadores e grandes empresas industriais e/ou intermediários em redes de comercialização. É notório o recorte étnico desses segmentos da força de trabalho, que vão sendo substituídos de acordo com a sucessão dos movimentos migratórios, originados em países estrangeiros ou no interior dos próprios países. As indústrias da confecção, do vestuário e de calçados são ramos produtivos em que a constatação de sweatshops e de oficinas com condições precárias de trabalho tem sido recorrente, com predomínio de situações análogas à de trabalho escravo em várias partes do mundo. Em 2002 a OIT incluiu entre os trabalhadores informais aqueles dispensados em função da reestruturação econômica levada a efeito na década anterior e que não mais conseguiram retornar ao mercado de trabalho formal, redefinindo estratégias de sobrevivência agora na informalidade.

A precariedade das condições nesses empreendimentos, tanto na ausência das garantias laborais definidas pelo assalariamento, quanto às condições ambientais, de inserção e permanência do mercado de trabalho, revelam que os valores veiculados pela ideologia do empreendedorismo são uma falácia. A insegurança e vulnerabilidade dos trabalhadores tornam-se a perspectiva a curto, médio e longo prazo.

No Brasil, houve uma redução da informalidade a partir do final da década de 1990 com a estabilização econômica do governo FHC e continuou a se reduzir até 2013, resultante de uma situação econômica favorável, das políticas de formalização do emprego, valorização do salário mínimo e políticas sociais compensatórias dos governos petistas. Mesmo com a maior formalização, a ideologia empreendedora permaneceu como perspectiva de inserção no mercado de trabalho, na manutenção de uma racionalidade neoliberal tal como discutida por Pierre Dardot e Christian Laval (2016). O trabalho por conta própria é uma oportunidade de ocupação, de crescimento individual, aproveitando a capacidade de iniciativa dos indivíduos. O programa Microempreendedor Individual (MEI), criado em 2008, teve o objetivo de formalizar o trabalho informal a partir de uma redução da carga tributária para essa atividade e de uma constatação que este não é provisório como antes era pensado, mas definitivo.

Mesmo no trabalho regular e formalizado, o potencial empreendedor do trabalhador torna-se uma das qualidades valorizadas pelas empresas que buscam trabalhadores jovens, flexíveis e móveis para atender às demandas da produção. O trabalhador empreendedor é flexível e aberto à inovação. Nessa categoria se incluem tantos profissionais altamente qualificados, que prestam serviços na elaboração de projetos, para grandes empresas, quanto trabalhadores de pouca “empregabilidade”. Nestes últimos, podem ser incluídos vendedoras de artigos de beleza, nomeadas como consultoras de grandes empresas produtoras de cosméticos, camelôs e sacoleiros que comercializam produtos variados, dos mais simples aos mais sofisticados, de bugigangas a produtos eletrônicos e de informática.

A comercialização desses produtos intensifica a mobilidade nacional e internacional de trabalhadores, ligando os polos de venda aos polos de consumo de mercadorias explicando a circulação de trabalhadores em mercados de fronteiras, em feiras da madrugada e mercados populares (Pinheiro Machado, 2011; Lima e Rangel, 2019; Lima e Soares, 2002; Veras de Oliveira, 2013).

A informalidade representada por sacoleiros e camelôs, seus representantes mais visíveis, embora ilegal, termina sendo tolerada e em grande parte legitimada com a necessidade da população “se virar”. Aliás, com esse argumento, atribui-se a uma declaração do então presidente Fernando Henrique Cardoso nos anos 1990 que desemprego era coisa de país rico e que no Brasil seu índice era baixo, exatamente porque todo mundo “se virava”. Polos de produção informal por todo país, ao lado de mercados e feiras informais nas grandes cidades tornam-se objeto de repressão e estímulo. Repressão nos processos de fiscalização e regulação do espaço urbano e contra a pirataria. E estímulos com a constituição de shoppings populares e à regulamentação dessas atividades, como forma de aumentar a arrecadação de impostos, além de serem considerados modelos de flexibilidade na produção e do trabalho.

A esse contingente de trabalhadores, ilegais, mas legitimados, soma-se o contrabando em pequena escala (mas não só) que abastece pequenas lojas, formais e informais, e também a comercialização de produtos ilícitos como drogas, produtos roubados, além de serviços variados de suporte que os viabilizam. Esses trabalhadores não reconhecidos como tal, entre eles crianças e jovens, constitui-se num número crescente não mensurável pelas estatísticas oficiais. A rede que a mantém resulta, sem dúvida, da capacidade de seus organizadores de “empreender”, movimentando enormes quantias, que alimentam uma economia subterrânea considerada criminosa, que se espraiam pelas cidades formais e informais com a participação ostensiva de agentes privados e estatais.

A nova onda desregulatória do atual governo retorna ao discurso oficial, mesmo com todos os fracassos anteriores presentes na implementação de políticas neoliberais e suas nefastas consequências sociais. Mais uma vez estamos diante de um “discurso único” no qual as dissonâncias estão fragilizadas e sem saber como reagir. Empregos e direitos tornam-se antônimos. A informalidade surge como desejada, num mar de declarações absurdas.

Informais, precários e vulneráveis, o contingente de trabalhadores nessa situação só cresce. As novas tecnologias informacionais contribuem para sua disseminação inserindo uma nova variável – as plataformas digitais –, informalizando mais e mais ocupações.

Reformas são propostas e redigidas “imparcialmente” por empresários pensando nos seus interesses, e eliminando formas de solidariedade social, propondo capitalizações que, mais uma vez, inviabilizam o presente e o futuro. O informal, o ilegal e o ilícito, cada vez mais se confundem e as fronteiras com o institucionalizado se apagam.

Não tem mais atraso, ou subdesenvolvimento, como fase a ser superada. Com o fim do império da regulação, a barbárie assume seu protagonismo.

Referências bibliográficas:

BONACCIH, Edna. Asian and Latino Immigrants in the Los Angeles Garment Industry: An Explorationship of the Relationshin between Capitalism and Racial Oppression. ISSR Working Papers in the Social Sciences, 1989-90, Vol. 5, Number 13.

DARDOT, Pierre, LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

DE SOTO, Hernando. Economia subterrânea: uma análise da realidade peruana. Rio de Janeiro: Globo, 1987.

HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992.

LIMA, Jacob C., SOARES, Maria José B. Trabalho flexível e o novo informal. Caderno  CRH, Salvador, n. 37, p. 163-180, jul./dez. 2002.

LIMA, Jacob C.; RANGEL, Felipe. Dimensões da nova informalidade no Brasil: considerações sobre o trabalho em polos industriais e no comércio popular. In RODRIGUES, Iram Jacome. Trabalho e ação coletiva no Brasil: contradições, impasses, perspectivas (1978-2018). São Paulo: Annablume, p.15-39,  2019.

MACHADO DA SILVA, Luís A. Mercados Metropolitanos de Trabalho Manual (dissertação). Rio de Janeiro, Museu Nacional – UFRJ, 1971.

MACHADO DA SILVA, Luis. A. Da Informalidade à Empregabilidade (Reorganizando a Dominação no Mundo do Trabalho). Cadernos do CRH (UFBA), Salvador, v. 37, n.37, p. 81-109, 2002.

NUN, José Luis. O futuro do emprego e a tese da massa marginal.  Novo Estudos Cebrap, nº 56, p.43-62, março de 2000.

PINHEIRO MACHADO, Rosana, Made in China. São Paulo: Anpocs/Hucitec, 2011.

PORTES, A., CASTELLS, M., BENTON, L.A. The Informal Economy. Studies in Advanced and Less Developed Countries. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1989.

SASSEN, Saskia. New York City’s Informal Economy.   ISSR Working Papers Volume 4, Number 9/1988

SENNET, Richard. A corrosão do caráter. Rio de Janeiro: Record, 2009.

VERAS DE OLIVEIRA, Roberto. O Polo de confecções do Agreste Pernambucano: elementos para uma visão panorâmica. In: VERAS DE OLIVEIRA, R., SANTANA, M.A. (org.) Trabalho em territórios produtivos reconfigurados no Brasil. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2013.

 

A falácia das “metodologias ativas” por  Márcio Alessandro de Oliveira.

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 Márcio Alessandro de Oliveira – 23/10/2024 – A Terra é Redonda

A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida

Este ano, tive o desprazer de deparar com um critério desagradável no edital de um Instituto Federal (IF), localizado no Nordeste: exigia o uso de “metodologias ativas”. Detesto-as.

Nem vou explorar o fato de que “metodologias” se tornou um jargão pedantesco dos pedagogos, muitos dos quais nunca lecionaram, embora insistam em vigiar o trabalho docente sob o signo da gestão, marca do neoliberalismo. Este, como sabemos, considera a escola como empresa e o aluno como cliente – e o cliente, é claro, tem sempre razão.

O cliente tem de gostar do produto mercantil em forma de “aula”, e é exatamente por isso que as falácias escolanovistas e construtivistas há uns cem anos estão sustentando, “cientificamente”, as tais “metodologias” ativas, que supostamente dão motivação inesgotável ao aluno, quer ele seja suficientemente inteligente e empenhado nos estudos que tem de fazer em casa, quer não. Entretanto, para o viés “progressista” da pedagogia, a culpa de qualquer fracasso só pode estar nos procedimentos de ensino, que, por pedantismo, os pedagogos chamam de “metodologias”.

Sempre uso a locução procedimentos de ensino por considerá-la mais precisa, ainda que a precisão seja uma consequência de sua abrangência. Contudo, mesmo se eu usasse a palavra metodologias, que tem sido usada de modo cada vez mais leviano ao ponto de ficar vazia de significado real, continuaria cabendo a seguinte pergunta: Quando foram criadas as metodologias “passivas”? Em quais disciplinas e em quais níveis elas são aplicáveis? Por que insistem em demonizar o ensino tradicional?

O ensino que a pedagogia demonizou eu divido nas seguintes etapas: revisão do conteúdo da aula anterior; lançamento de conteúdo; explicação e exemplificação do conteúdo novo; fixação da matéria por meio da avaliação formativa; dúvidas dos alunos.

O esquema acima permite a indução, a dedução, a analogia e a maiêutica, e está de acordo com a didática tradicional e conteudística, centrada que é na análise dos dados. Estes, no ensino, compõem a matéria, ao passo que, na pesquisa, compõem o corpus. Esta é a única semelhança entre o ensino e a pesquisa: os procedimentos de estudo giram em torno dos dados, de modo que são inseparáveis o ensino e a pesquisa. Contudo, são práticas muito distintas. Todo bom professor é um bom pesquisador. Daí a facilidade de concluir que o “argumento” de que o pesquisador não sabe dar aula é uma falácia.

Trata-se de um ressentimento contra os verdadeiros acadêmicos, que valorizam a organização dos dados e a clareza, o que não exclui uma dose de vocabulário técnico-científico nem o esforço do aluno. Estes dois últimos atributos a pedagogia moderna rechaça, embora os mesmos defensores das “metodologias ativas” (que, como integrantes de uma seita totalitária, não aceitam críticas aos seus dogmas) reprovem sem dó os alunos que não mostram aptidão para o mestrado ou doutorado. (Existem, é claro, pessoas aptas que são reprovadas por outros motivos. Um deles é o fato de não bajularem os professores do programa de pós-graduação, apesar de eu mesmo nunca ter presenciado isso no meu tempo de mestrando.)

O passo a passo de cinco fases também está de acordo com a premissa de que o aluno nunca fica passivo por assumir o que o linguista Mikhail Bakhtin considerava como sendo a atitude responsiva-ativa. Enquanto o receptor da mensagem recebe o texto, ele fica imaginando réplicas ou dúvidas, desde que ele preste atenção. Sendo assim, não posso aceitar a pressuposição da existência de metodologias “ativas”. Ocorre que é insustentável o conceito de metodologias “ativas”, porquanto nunca tenham existido as metodologias “passivas”.

Além disso, temos de levar em conta a origem do meu passo a passo, que é a didática de Herbart, descrita da seguinte forma: “esse ensino tradicional estruturou-se por meio de um método pedagógico, que é o método expositivo, que todos conhecem, todos passaram por ele, e muitos estão passando ainda, cuja matriz teórica pode ser identificada nos cinco passos formais de Herbart. Esses passos, que são o passo da preparação, da apresentação, da comparação e assimilação, da generalização e, por último, da aplicação, correspondem ao esquema do método científico indutivo, tal como fora formulado por Bacon, método que podemos esquematizar em três momentos fundamentais: a observação, a generalização e a confirmação. Trata-se, portanto, daquele mesmo método formulado no interior do movimento filosófico do empirismo, que foi a base do desenvolvimento da ciência moderna” [SAVIANI, 2021, p. 35-6].

Ao fragmento acima devemos adicionar outro: “se os alunos fizeram corretamente os exercícios, eles assimilaram o conhecimento anterior, então eu posso passar para o novo. Se eles não fizeram corretamente, então eu preciso dar novos exercícios, é preciso que a aprendizagem se prolongue um pouco mais, que o ensino atente para as razões dessa demora” [SAVIANI, 2021, p. 37].

Ademais, para o Sr. Luckesi, “o método pode ser entendido dentro de uma concepção teórica ou de uma compreensão técnica. O autor compreende Metodologia como a concepção segundo a qual a realidade é abordada. Esta é uma concepção teórica do método. Porém, afirma que há uma compreensão técnica do método que também atravessa o conteúdo, visto que “são modos técnicos de agir que estão dentro do conteúdo que se ensina” (p. 138). Exemplo: o modo de extrair raiz quadrada (Matemática) ou o modo de proceder numa análise sintática (Língua Portuguesa). Tanto uma quanto a outra perpassam os conteúdos tratados nas diferentes disciplinas curriculares” [GRUMBACH e SANTOS, 2012, p. 33].

Com efeito: “Todo conhecimento é atravessado por uma metodologia e é possível descobrir no próprio conteúdo exposto o método com o qual ele foi construído [LUCKESI, 1995, p. 138 apud GRUMBACH e SANTOS, 2012, p. 34]”.

Por que tantos acadêmicos defendem as metodologias “ativas”? Por que insistem em defender essa ficção pedagógica na educação básica e até no ensino superior? Posso listar alguns fatores.

Antes de tudo, a universidade, mesmo que seja pública, continua sendo um aparelho ideológico de Estado. Uma vez que o Estado fica na mão do mercado, o meio acadêmico se torna um capitão do mato do neoliberalismo, cujo eixo “moral” e cujo eixo epistemológico são o individualismo extremo, ligado ao empreendedorismo. É ela (a universidade) que, dentro do neoliberalismo, tem força equivalente ao poder que a Igreja Católica tinha na Idade Média, conforme um dos arrazoados do sociólogo Jessé Souza.

Sem o aval “científico” da universidade, não seria possível uma pedagogia que rebaixasse o professor, e, de fato, ela o rebaixa com a regularidade do sol. Basta ver o assédio moral que os docentes sofrem nas escolas municipais e estaduais. Na rede estadual do Espírito Santo, por exemplo, há uma portaria que impõe vigilância na sala de aula e uma lista de descritores a serem aplicados pelo professor, que é tratado como se fosse funcionário de uma lanchonete de franquia. Se o professor não acatar esse despautério, responderá por isso. Também responderá se não usar tecnologias ultrapassadas, compradas com o dinheiro público. Esse gosto por tecnologia, que é usada como se fosse um fim, e não um meio, é herança do tecnicismo, tendência pedagógica implantada no Brasil no tempo da ditadura militar.

As verbas para as “pesquisas” da pedagogia moderna estão condicionadas a linhas de pesquisa que não melhoram o ensino nem a vida profissional dos docentes, porém é certo que reforçam a “inclusão” escolar num país com esgoto a céu aberto, conforme a cartilha do Banco Mundial.

Outro fator da desonestidade intelectual dos doutores que defendem a baboseira em forma de “metodologia ativa” é a necessidade de tornar “lúdico” e “atraente” o ensino para que o aluno fique na escola, mesmo que ele não estude. É graças a essa pseudoinclusão que políticos e burocratas incompetentes e incultos conseguem se promover. “Assim”, escreve a sueca Inger Enkvist (2021, p. 83), “os políticos arruinaram a escola pública enquanto se faziam passar por seus defensores”. Não importa a altíssima temperatura das salas de aula, não importa a falta de ventilador, não importa a falta de erudição, não importa a falta de bibliotecas bem equipadas e protegidas por bibliotecários (profissionais raros): o que importa é que o professor dê motivação aos alunos, mesmo que a saúde mental dele esteja em frangalhos. E ai do professor que não usar os outros “espaços pedagógicos” da escola para agradar aos “líderes” de turma, que vigiam o professor tanto quanto os filhos vigiam os pais no romance 1984, de George Orwell.

Não é de surpreender que os pedagogos sejam contra o ensino conteudístico e transmissivo: eles não têm conteúdo para transmitir: sua ladainha é desprovida de substância: é um catecismo do nada. Se realmente acreditassem no poder transformador da educação, acreditariam no esforço do aluno e no ensino baseado em conhecimento acadêmico, e não em atividades práticas que exigem corte e colagem de papel ou desenhos de matinho e florzinha. Tratam todos os alunos como se fossem crianças, independentemente do nível do ensino e da modalidade.

No caso da educação linguística, tudo se resume a uma visão superficial das tipologias ou tipos textuais (que são cinco) e a gêneros textuais (que são praticamente ilimitados). Ao aluno são oferecidos textos ruins, que falam de redes sociais e outros temas que são do gosto do mercado. Os pedagogos adoram isso, porque não percebem que estão acentuando a formação de consumidores para a indústria cultural, eivada de senso comum e adolescentes falsos de séries televisivas da Nickelodeon.

Isso tudo, porém, é condizente com a visão intelectualmente desonesta dos sectaristas das “metodologias ativas”. Com efeito: um professor que tenha feito uma formação aligeirada é a justificativa perfeita para ele receber um baixo salário. Ele pode ser um agente de “inclusão” social, um “facilitador” do aprendizado, mas nunca poderá ser autoridade na matéria que leciona, a menos que queira correr o risco de ser tachado de tirano. Quem não se dobra aos dogmas dos sectaristas é perseguido a ponto de responder a um PAD (Processo Administrativo Disciplinar).

O professor não leciona propriamente: o aluno faz “atividades” para ficar “ativo”, mas não faz uma aventura intelectual, que esse tipo de exercício exige esforço e condições que os gestores não oferecem ou por incompetência, ou por má vontade. Ora, se o aluno tem de fazer “atividades” preenchendo papel em nome de avaliações externas, o professor não tem de ser um modelo de como pensa e age um intelectual.

Apesar de tudo, estou convencido de que, muito embora seja impossível começar a inclusão só pela escola num país onde alunos mal têm o que comer em casa – e defender o oposto disso seria tão absurdo quanto dizer que cobrar mensalidades dos alunos “ricos” das universidades públicas seria uma forma de igualdade e inclusão –, é fato que os países que não seguiram a pedagogia moderna, cheia de ineptos projetos, metodologias “ativas” e outras tolices que interessam tão só ao empresariado, conseguiram mais igualdade e inclusão do que os que adotaram a pedagogia moderna.

Quem mais precisa de ensino tradicional é justamente quem é pobre. A Suécia é um exemplo do que a pedagogia moderna faz: lá, o totalitarismo se consolidou, e isso porque o sistema escolar tornou burros os seus cidadãos. Esses são os efeitos danosos do escolanovismo e do construtivismo, correntes anticientíficas ignoradas por muitos professores, acostumados que estão com o “status” de peões do ensino. Se, no passado, todos tivessem se rebelado contra as falácias de Carl Rogers, expoente da linha não-diretiva e do fato óbvio de que o aprendizado acontece no cérebro do aluno, talvez tivessem conseguido exorcizar também o fantasma de John Dewey. Ambos os autores estão obsoletos, e, no entanto, suas teses “científicas” continuam se sobrepondo aos professores, que ignoram as referências com as quais poderiam combater as falácias dos cientistas das arábias.

Eu disse que somos vigiados. Isso acontece há décadas! “Entre nosso corpo e nossa sexualidade”, escreve Marilena Chauí (2018, p. 113-14), “interpõe-se a fala do sexólogo, entre nosso trabalho e nossa obra, interpõe-se a fala do técnico, entre nós como trabalhadores e o patronato, interpõe-se o especialista das ‘relações humanas’, entre a mãe e a criança, interpõe-se a fala do pediatra e da nutricionista, entre nós e a natureza, a fala do ecologista, entre nós e nossa classe, a fala do sociólogo e do politólogo, entre nós e nossa alma, a fala do psicólogo (muitas vezes para negar que tenhamos alma, isto é, consciência). E entre nós e nossos alunos, a fala do pedagogo”.

Mas há mais: Vejamos o que diz a sueca Inger Enkvist (2020, p. 275-6): “[] os pedagogos não funcionam de maneira científica nem democrática, mas como uma seita com uma fé especial que não questiona as bases de sua crença. Autoproclamados especialistas do ensino, apresentam-se como uma instância superior aos demais professores que “apenas” ensinam suas matérias. A primeira fase foi a doutrinação dos professores para justificar a presença dos pedagogos. Como não são responsáveis por ensino algum, sua presença constitui um tipo de parasitismo nos sistemas educacionais []. Como é típico das seitas, desprezam os demais. Os pedagogos são os bons, os que sabem a verdade, e introduziram uma nova linguagem para os iniciados. Além de uma crença e de uma linguagem própria, uma seita também precisa de dinheiro, e nesse caso os membros do grupo souberam instalar-se dentro das estruturas do serviço público, e viver do dinheiro do contribuinte”.

Muitos pedagogos, sem que nunca tenham lecionado, num total desrespeito ao Artigo 67 da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), tornam-se diretores escolares… perdão: tornam-se gestores escolares – e o gestor, conforme o que aponta Marilena Chauí, é análogo ao gângster dentro do neoliberalismo. Isso é tão absurdo quanto colocar na direção de um hospital um não-médico ou um médico que nunca tenha clinicado. Também há os que se tornam supervisores ou inspetores, que são capitães do mato.

Precisamos nos insurgir contra a pedagogia moderna: devemos fazer debates públicos fundamentados na verdade, e a verdade é que não funcionam as tais “metodologias ativas”: são um fracasso vergonhoso, e isso tem de ser exposto nos simpósios e nas outras comunicações realizadas em eventos acadêmicos, mesmo que isso acabe ferindo a vaidade dos doutores das arábias que veneram o Lattes.

Outro passo importante é impugnar os editais que digam que o professor tem de ser avaliado em função do uso das tais “metodologias” ativas. Por lei, cada um de nós, professores, tem direito a diferentes concepções pedagógicas, e a que eu adotei é tradicional. Não posso ser obrigado a distorcer anos de conhecimento acadêmico só porque os próprios acadêmicos querem selecionar pessoas que compactuem com as tolices deles.

Em agosto de 2024, fiquei em segundo lugar na prova objetiva do concurso de um Instituto Federal, localizado no Sudeste. Depois descobri que fui desclassificado na prova didática: tirei 48 numa escala de 0 a 100. A menos que a banca aceite o meu recurso, todo o tempo e todo o dinheiro investido em viagens e hospedagens terão sido em vão. Não posso afirmar que o fato de eu ter inserido no cabeçalho do plano de aula os excertos de Saviani e o conceito de Bakhtin para fundamentar as oposições que naquele documento eu faço às “metodologias ativas” me prejudicou, até porque o barema não apresentava o uso de tais “metodologias” como critério de avaliação da prova didática, mas a subjetividade dos avaliadores, a julgar pelo currículo deles, está eivada de tolices pedagógicas do jaez das “atividades”.

Curiosamente, apesar de todo o “progressismo”, a banca exigira conhecimentos que estão na gramática de Evanildo Bechara, um autor que, para muitos, é extremamente conservador. As questões objetivas também tinham exigido conhecimentos que só poderiam ser acumulados por um professor cujo perfil fosse acadêmico, embora um bom professor pudesse fracassar naquela etapa: caíram questões sobre o pensamento de autores cujos livros não foram mencionados no edital, que nem sequer continha bibliografia.

Permanece a minha sugestão: temos de nos insurgir contra as falácias pedagógicas. Isso quer dizer que temos de fazer um movimento de baixo para cima, de modo que seja atingido o meio acadêmico: é ele que dá o aval “científico” a toda a barbárie que nós, professores, sofremos, e que é até mais perigosa do que a do tempo da ditadura militar brasileira ou do que a da “Revolução” Cultural da China. Esta última perseguiu abertamente professores e outros intelectuais.

Não devemos sentir medo: na democracia, é salutar a contestação; na ciência, só pode haver verdade quando questionamos os pressupostos e os métodos, ou seja: o conhecimento só é confiável quando a epistemologia e o paradigma são contestados e testados. A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida.

*Márcio Alessandro de Oliveira é mestre em Estudos Literários pela UERJ e professor da rede estadual do Espírito Santo.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: Estética da Criação Verbal. Tradução feita a partir do francês por Maria Emsantina Galvão G. Pereira. 2ª ed. SP: Martins Fontes, 1997.

CARNEIRO, Moaci Alves. LDB fácil: leitura crítico-compreensiva, artigo a artigo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.

CHAUÍ, Marilena. O que é ser educador hoje? Da arte à ciência: a morte do educador. In: Em defesa da educação pública, gratuita e democrática. Organização de Homero Santiago. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. ENKVIST, Inger. O complexo ofício de ser professor. Tradução de Ricardo Harada. 1ª ed. Campinas, SP: Editora Kírion, 2021.

______. A boa e a má educação: exemplos internacionais” (tradução de Felipe Denardi. São Paulo: Kírion, 2020.

ORWEL, George. 1984. Trad. Alexandre Hubner e Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

Parece revolução, mas é só neoliberalismo: o professor universitário em meio às cruzadas autoritárias da direita e da esquerda. In: Piauí (Folha de São Paulo). Jan. 2021. Disponível em: <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/parece-revolucao-mas-e-soneoliberalismo/>.

SANTOS, Ana Lúcia Cardoso; GRUMBACH, Gilda Maria. Didática para Licenciatura: Subsídios para a Prática de Ensino (volumes 1º e 2º). Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2012.

SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. Campinas, SP: Autores Associados, 2021.

SOUZA, Jessé. A elite do atraso. Rio de Janeiro: Leya, 2017.

______. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. 2ª ed. Rio de Janeiro: Leya, 2018.

 

A Rota da Seda

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Na sociedade contemporânea encontramos grandes confrontos em curso na comunidade internacional, além dos conflitos militares que movimentam variadas regiões, gerando destruições generalizadas, o aumento das mortes e devastação na infraestrutura, além disso, encontramos o crescimento dos confrontos comerciais, retaliações, protecionismos e a busca constante pela liderança global, onde destacamos os embates entre os Estados Unidos e a China.

Neste cenário marcado por grandes confrontos estratégicos, destacamos as movimentações geopolíticas em curso na economia mundial. Desde 2013, o governo chinês, liderado por Xi Jinping propôs a construção da Nova Rota da Seda com grandes investimentos para desenvolver novas rotas comerciais terrestres e marítimas ao redor do mundo, impulsionando as estruturas produtivas globais, gerando novos empregos e fomentando todas as regiões do mundo.

Desde o lançamento, a Nova Rota da Seda expandiu-se para mais de 147 países com adesão de nações africanas, da Oceania e da América Latina, consumindo mais de US$ 2 trilhões de projetos de investimentos produtivos, movimentando variados setores econômicos e políticos, alavancando ferrovias, portos, estradas, aeroportos, oleodutos, gasodutos, parques industriais, entre outros investimentos, gerando novos modelos de negócios, renovando horizontes, abrindo novas oportunidades de crescimento econômico e produtivo.

Dentre as nações da América Latina encontramos ao menos 20 nações que aderiram a iniciativa chinesa, se integrando aos investimentos produtivos da Rota da Seda, levando os países participantes e o governo chinês a pressionarem para a entrada do Brasil nesta iniciativa ambiciosa, garantindo grandes vantagens políticas, melhoras sociais substanciais e retornos econômicos estratégicos.

A Nova Rota da Seda, iniciativa chinesa marcada por grandes investimentos produtivos, busca estimular o crescimento do comércio, o aumento da cooperação econômica e o desenvolvimento de infraestrutura nos países ao longo das rotas. Apesar das críticas sobre as dívidas geradas, seus defensores argumentam que se trata de uma ferramenta de desenvolvimento econômico.

Ao analisar o caso brasileiro, percebemos visões diferentes, alguns diplomatas acreditam que a entrada do Brasil na Nova Rota da Seda seria um grande ganho político para a China e auxiliaria na reestruturação da infraestrutura nacional, incluindo projetos de ferrovias e outros setores estratégicos para garantir ganhos de produtividade e dinamismo para competir numa economia globalizada. No entanto, há divergências entre diplomatas brasileiros sobre a adesão, alguns acreditam que o Brasil já recebe investimentos chineses significativos, reduzindo nossa autonomia econômica e aumentando a desnacionalização dos setores produtivos.

Existem pesquisas do Banco Mundial que mostram que os investimentos da Nova Rota da Seda têm diminuído os custos do comércio mundial, garantindo o incremento das trocas internacionais e garantindo o crescimento das rotas comerciais, as nações que conseguiram se preparar anteriormente, com fortes investimentos em estruturas produtivas, aumento dos dispêndios em educação, ciência e tecnologia, podem garantir grandes retornos no crescimento do comércio global.

No caso do Brasil, a entrada na Nova Rota da Seda deve ser vista como uma decisão estratégica, aderir pode trazer vantagens desde que tenhamos maiores ganhos econômicos e produtivos, além de ambicionar a transferência de tecnologias, novos investimentos estratégicos que reduzam os custos nacionais, contribuindo para atrair novos parceiros comerciais, alavancando o desenvolvimento econômico e reduzindo as gritantes desigualdades sociais que nos caracterizam historicamente.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

 

Por que as economias crescem? por Bernardo Guimarães.

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Direitos de propriedade afetam desenvolvimento econômico. E liberdade política? Não temos certeza

Bernardo Guimarães, Doutor em economia por Yale, foi professor da London School of Economics (2004-2010) e é professor titular da FGV EESP

Folha de São Paulo – 23/10/2024

Por que uns países são tão mais ricos que outros? Por que em algumas décadas algumas economias crescem muito enquanto outras ficam estagnadas?

Em 1993, Douglass North ganhou o Prêmio Nobel pelos seus trabalhos com dados históricos que apontavam para o papel das instituições políticas no desenvolvimento econômico. Em resumo, ele concluía que leis e instituições que garantiam os direitos de propriedade e o cumprimento de contratos, protegendo os investidores do governo e de outras pessoas, estimulavam investimentos e inovações, e o crescimento econômico aparecia como consequência.

Na semana passada, Acemoglu, Johnson e Robinson ganharam o Prêmio Nobel por seus trabalhos sobre instituições, aprofundando e expandindo os achados de North. Por exemplo, em um artigo publicado em 2005, Acemoglu e Johnson usaram análise estatística e dados históricos para concluir que instituições que protegem pessoas da expropriação por governos são mais importantes que instituições que permitem contratos entre as pessoas.

Os vários trabalhos nessa área levaram os autores a uma visão sobre os caminhos que países devem trilhar para a prosperidade. Essa visão foi trazida para o público geral no livro “Porque as Nações Fracassam”, de Acemoglu e Robinson, publicado em 2012. O livro enfatiza a importância de instituições inclusivas, que promoveriam inovação, prosperidade para muitos e liberdades políticas.

Poucos dias depois do anúncio do Prêmio Nobel, saiu a notícia de que o crescimento da economia chinesa poderia ficar abaixo de 5% no ano de 2024. Analistas tratam essa notícia com um tom negativo. Com exceção de 2020 (Covid) e 2022, 2024 deve trazer a menor taxa de crescimento da economia do país desde os anos 1990.

Desde meados do século passado, vários países asiáticos tiveram enorme crescimento econômico. Coreia do Sul, Taiwan e Singapura são exemplos usuais, juntamente com a China, cuja renda por habitante era parecida com a da Etiópia em 1980 e hoje já é bem maior que a do Brasil.

Acemoglu e Robinson argumentam no livro que o crescimento chinês não deve ser sustentável no longo prazo. O sistema político chinês concentra o poder nas mãos de uma pequena elite política, os líderes do Partido Comunista, e isso deve reduzir a possibilidade de inovações e crescimento de longo prazo.

Desde 2012, quando o livro de Acemoglu e Robinson foi publicado, a economia da China quase dobrou de tamanho. A economia brasileira, por outro lado, mal saiu do lugar –neste ano vamos comemorar o crescimento de 3%. Pode ser que eles estejam certos, mas esse longo prazo está demorando para chegar.

Como em geral acontece, algumas prescrições do livro são mais bem ancoradas na evidência que outras. Faz sentido, pois os autores devem mostrar ao mundo suas visões e conclusões. Mas se há bastante evidência ligando proteção de direitos de propriedade ao desenvolvimento econômico, temos menos segurança sobre o efeito de liberdade política no crescimento do PIB.

 

Raízes da letargia neoliberal nas escolas, por Ednei de Genaro.

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 Sob o mito de “eficiência”, avaliações individuais, feedbacks e competição arruinam a saúde mental de professores. Porém, esse sistema é naturalizado e gera autoculpa. O Ensino deve matar esse zumbi gerencial que visa impor o realismo da precarização

Ednei de Genaro – OUTRAS MÍDIAS – 17/10/2024

Em 2009, Mark Fisher publicou um livro seminal — Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo — para a compreensão e atualização, no contexto do século XXI, da “lógica cultural do capitalismo tardio”, tal como Fredric Jameson preconizou, em 1991, em Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio.

Mark Fisher foi professor em instituições públicas de ensino na Inglaterra, lecionando em universidades e em programas de “educação continuada” (futher education), oferecidos a qualquer pessoa maior de 16 anos que deseje realizar cursos diversos de aperfeiçoamento ou obtenção de novas habilidades de trabalho; ou seja, no mais das vezes, um programa de especialização e de reciclagem da classe trabalhadora do país. Em sua referida obra, tais experiências enquanto profissional da educação mobilizam exemplos diversos e emblemáticos da cultura contemporânea.

Levando em conta isso, buscarei aqui recuperar as fecundidades e sofisticações das respostas de Mark Fisher sobre o estado psicossocial realista capitalista, tendo em vista, bem particularmente, as questões e problemas referentes à escola pública, onde parece ser mais fácil imaginar o fim das escolas públicas do que o fim do gerencialismo de autoculpabilização dentro delas.

Sobre os processos diversos de neoliberalização e mercantilização do ensino, quem ainda procura pensar nisso? De outro modo, como podemos nos desembrutecer acerca dessa “coisa inominável”, sem nenhuma lei transcendente, sem limites, infinitamente plástica, que é o capitalismo? Perguntas em tom retórico, em primeira instância, para lembrar a situação atual de desengajamento e a deflação depressiva decorrentes da normalização das crises — tendo em Mark Fisher a obra literária distópica Filhos da Esperança, de P. D. James ([1992] 2013), e a adaptação cinematográfica homônima, de Alfonso Cuarón, como icônicas da ascensão do ultra-autoritarismo e ultracapitalismo, de destruição massiva dos espaços públicos, algo já presente entre nós, mas com consumação em um futuro próximo.

Uma situação, enfim, que se metamorfoseia sobretudo em posicionamentos de mundo hedonistas niilistas, escreve Mark Fisher, de modo que o aprendizado de convicções políticas e atitudes é substituído pelo desengajamento e pela observação voyeurística do mundo (Fisher, 2020, p. 13). O realismo capitalista é “[…] análogo à perspectiva deflacionária de um depressivo, que acredita que qualquer estado positivo, qualquer esperança, é uma perigosa ilusão” (Idem, p. 14).

Ao absorver toda contraposição, ao usurpar o tempo livre e ao anular qualquer atitude alternativa e independente, o capitalismo contemporâneo funciona “sem um exterior”. Do rock ao hip hop, passando pelo atual ideal gangster — para citar as exemplificações culturais marcantes de Fisher — a busca é de autenticidade e… conformação à guerra hobbesiana de todos contra todos, condicionando a produção da cultura, da educação e do trabalho. “Cair na real” significa hoje a construção de competências e friezas para o distanciamento cínico, longe assim do crítico e destinado à práxis. A ironia anticapitalista, presente agora até em filmes da Disney, “[…] mais alimenta do que ameaça o realismo capitalista” (Idem, p. 25-6).

É precisamente nestas posturas que as formas ideológicas capitalistas se reavivam. Sobre isso, segue um trecho da obra Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia, de Slavoj Žižek (1992), conforme citado por Mark Fisher: “O distanciamento cínico é só uma maneira […] de fechar os olhos para o poder estrutural da fantasia ideológica: mesmo quando não levamos as coisas a sério, mesmo quando mantemos um distanciamento irônico, nós as continuamos fazendo” (Žižek apud Fisher, 2020, p. 26).

A fantasia ideológica cínica é complementada pela inviabilidade do desempenho de uma crítica moral do capitalismo, tornada inócua, uma vez que “pobreza, fome e guerra podem ser apresentadas como aspectos incontornáveis da realidade” (Fisher, 2020, p. 35), somente reforçam o realismo capitalista, de modo que a reativação da crítica/práxis, propõe Mark Fisher, exige uma inflexão, explicitando a burocracia, que “em vez desaparecer, mudou sua forma” (p. 38) e a resultante disso, o problema de saúde mental, isto é, “o caso paradigmático de como o capitalismo realista opera” (Idem, p. 36-7), enquanto as duas aporias, por excelência, do capitalismo contemporâneo, que ensejam transtornos e aborrecimentos na população em geral, e nos expedientes das escolas públicas, de maneira muito representativa.

A abolição do otium e a transformação da escola em espaços constituintes e integrados ao negotium é um problema enraizado na própria gênese das escolas públicas na modernidade. Fato que assinalou o paradoxo de sua origem no mesmo ato de destruição do seu sentido autêntico, ou seja, da escola (scholé) como o lugar do tempo livre, de retiro, do repouso; em outras palavras, do tempo disponível à ocupação intelectual, aos estudos científicos diversos, à filosofia e à política. A dimensão do negotium em ambiente escolar se transfigurou e agravou com o modelo neoliberal introjetado no nível psicossocial das vivências e relações públicas.

Segue a resposta de Mark Fisher ao mito da descentralização como fim da burocracia, prescrevendo a própria definição do modelo neoliberal de gestão escolar: “O fato que medidas burocráticas tenham se intensificado sob governos neoliberais que se apresentam como antiburocrático e antiestalinista pode, a princípio, parecer um mistério. No entanto, viu-se, na prática, proliferar uma nova forma de burocracia — uma burocracia de ‘objetivos’, dos ‘resultados esperados’, das ‘declarações de princípio’ — ao mesmo tempo em que ganha força a retórica neoliberal sobre o fim do comando vertical e centralizado. Pode parecer que essa volta da burocracia é algo assim como um retorno do reprimido, ironicamente reemergindo no coração de um sistema que jurou destruí-lo. Mas seu triunfo no neoliberalismo é bem mais que um atavismo ou uma anomalia” (Fisher, 2020, p. 72).

Nem atavismo e nem anomalia sociais, mas, sim, uma ordem constituída: o “stalinismo de mercado”. De forma sutil, a burocracia reemerge com novas técnicas e se intensifica. “A avaliação periódica dá lugar a uma avaliação permanente e onipresente, que não pode deixar de gerar uma ansiedade perpétua” (Idem, p. 87), ao impor “[…] à força a responsabilidade ética individual que a estrutura empresarial desvia” (Idem, p. 116).

Assim, a metabolização simbólica das classes sociais se manifesta: a responsabilidade recai em relação às tarefas e processos dos indivíduos, a despeito da estrutura social ou da instituição, alterando, pois, a própria lógica de visibilidade e estruturação dos papéis sociais, com base em dois clichês dominantes: culpar a estrutura é apenas desculpa invocada pelos fracos — o “choro dos fracos”; cada indivíduo deve dar o máximo de si para se tornar aquilo que aspira a si — o “voluntarismo mágico”, sendo estes clichês, como escreve Fisher, “[…] a ideologia dominante e a religião não oficial da sociedade capitalista contemporânea […]” (Idem, p. 140), que esculpem a mentalidade capitalista.

Os mecanismos individuais de avaliação e autoculpabilização são a chave para se gerir, conservar e desresponsabilizar a ordem institucional, mantendo seus vícios e defeitos, inclusive nos “espaços de lazer e tempo livre”, as escolas. Tudo se conserva, engolindo todos na epidemia da cultura de auditorias internas e externas, por ranqueamentos, classificações e titulações infinitas de produtividade, alimentados por dados, informações e processos compostos e insertado nos sistemas enquanto o âmago do trabalho educacional. O delírio psicológico burocrático é tanto uma violência à saúde mental dos profissionais de educação quanto a destruição de espaços coletivos e deliberativos, como colegiados de instituições de ensino, que se transformam em reuniões de feedbacks, e de espaços formativos, que se tornam treinamentos.

O gerencialismo de autoculpabilização é a perda do sentido de gerência coletiva. A descentralização e a competição entre os pares são meios para o controle e a despotencialização do coletivo subordinado. A precarização do educador, por meio de contratos temporários e sobrecarga de trabalho, arremata a condição de informalidade causal e autoritarismo silencioso que pairam sobre as cabeças dos trabalhadores.

Em resumo, uma trapaça. “As metas rapidamente deixam de ser um meio para avaliar e tornam-se a finalidade em si” (Idem, p. 77), a fim de que continuamente se repita o universo quantitativo de “valorização dos símbolos dos resultados, em detrimento do resultado efetivo” (p. 76). Lógicas falaciosas que coadunam com o espírito do capitalismo financeiro e de influência em redes sociais, pois o valor gerado no mercado de ações e de monetizações depende menos do que um perfil ou uma empresa “realmente faz” e muito mais das percepções, visualizações e expectativas performáticas futuras (Idem, p. 77).

A ilusão de muitos que entram nas funções de gerência, com grandes esperanças, é precisamente de que eles, os indivíduos, podem mudar as coisas, que não vão repetir o que seus gerentes fizeram, que as coisas serão diferentes desta vez. Mas basta prestar atenção a qualquer um que tenha sido promovido a um cargo gerencial para perceber que não demora muito tempo para que a petrificação cinza do poder comece a engoli-lo. É aqui que a estrutura é palpável: pode-se praticamente vê-la absorvendo e tomando conta das pessoas, ouvir os juízos moribundos/mortificantes da estrutura sendo vocalizados através delas. (Idem, p. 115-6).

A incerteza ontológica e a lógica falaciosa do gerencialismo de autoculpabilização são estratégias de adaptação e ruína da saúde mental dos educadores. Em termos deleuzianos e kafkianos, isto é, nas condições atuais de poder cibernético e distribuído das sociedades de controle, as aflições, os problemas e dilemas coletivos, tratados como assuntos individuais, são submetidos a uma “postergação indefinida”: o processo se prolonga, sem fim; as aflições, problemas e dilemas nunca se resolvem; pelo contrário, são resguardos por “policiamentos internos” e atarefamentos exaustivos, que agora se levam para casa.

Uma experiência de poder dominante que liquida a ideia de ponto central de comando. Um sistema que se quer sem “operadora central”, como previu Kafka (2005), em O processo. Em última instância, em caso de altercação sobre o poder e a responsabilidade, o procedimento geral é de denegação e anunciação de um “grande outro”: “o superior que cuida disso, desculpa”. No máximo, a responsabilidade recairá sobre “[…] os indivíduos patológicos, aqueles que ‘abusam do sistema’, e não o próprio sistema” (Idem, p. 116).

Ademais, escreve Mark Fisher, “os professores se encontram hoje sob a intolerável pressão de mediar a subjetividade pós-letrada do consumidor no capitalismo tardio e as demandas do regime disciplinar (passar nos exames e coisas do tipo)” (Idem, p. 49). Como se fossem um dos últimos representantes do poder panóptico, os professores, entre muros, carteiras e cadeiras, derivam seu público, composto por “desenraizados” e flexíveis, impacientes e dispersos, buliçosos pela ausência e pelo hedonismo permissivo dos pais, desde muito cedo ansiando em ser também como os seus célebres “empreendedores online” da cultura, vistos e comentados pelas redes sociais.

A “letargia hedônica” presente hoje nos jovens designa o ponto máximo de dissolução da cultura na economia cibernetizada, de controles automáticos sobre cognições e ambientes de trabalho/lazer. Em última instância, a programação massiva de modelos assincrônicos de educação a distância demarca o fim das instituições escolares.

Os sofrimentos e a paralisia psíquica dos professores são deliberadamente cultivados e tratados como “fatos naturais” e privados. As deteriorações da psique, da cultura, da educação e do trabalho têm obviamente razões para existir: permitir a submissão fatalista das pessoas. Ora, o descontentamento privatizado, a sorte de pelo menos ter um emprego e a aceitação de que as coisas vão piorar são propositados e explicam historicamente a destruição do “estado bem-estar social” a partir da ascensão do discurso neoliberal contra a classe trabalhadora.

Na Inglaterra, país de origem das primeiras experiências políticas neoliberais, uma das medidas inaugurais foi a abolição do leite nas escolas públicas, em 1971, no momento em que Margareth Thatcher era secretária de educação… Contudo, o neoliberalismo hoje não passa de um zumbi.

O neoliberalismo perdeu a iniciativa, e persiste inercialmente, desmorto, como um zumbi. Podemos ver agora que, embora o neoliberalismo fosse necessariamente “realista capitalista”, o realismo capitalista não precisa ser neoliberal. Para se salvar, o capitalismo poderia voltar a um modelo social-democrata ou a um autoritarismo do tipo que se vê no filme Filhos da esperança. Sem uma alternativa crível e coerente ao capitalismo, o realismo capitalista continuará a governar o inconsciente político-econômico. (Idem, p. 130).

De 2009 a 2024, foram os autoritarismos fascistas e neoreacionários que se desenvolveram no mundo todo, inclusive no Brasil, inclusive dentro das escolas públicas, com os projetos cívico-militares, entregando uma compleição moribunda às democracias e as faces mais violentas do zumbi neoliberal, ao escancarar a subordinação do Estado ao capital e ao manter monopólios e oligopólios como antimercados e espaços de articulação fascistas… Afinal, questiona Mark Fisher, como elaborar estratégias políticas para matar este zumbi? Como “[…] desenvolver alternativas às políticas existentes, mantê-las vivas e disponíveis até que o politicamente impossível se torne politicamente inevitável”? (p. 142).

Um novo anticapitalismo, “[…] não necessariamente ligado a velhas tradições e linguagens […]” (Idem, p. 130), é possível, antes de tudo, a partir da rejeição das estratégicas que não funcionam, por exemplo: estratégias horizontalistas, de ação direta sem ações indiretas, devem ser rejeitadas. “Só a esquerda horizontalista acredita na retórica da obsolescência do Estado” (Idem, p. 148), que, pensando bem, faz deleitar o capital com a sua popularidade e inocuidade, pois aparecem como “[…] ruídos carnavalescos para o realismo capitalista” (Idem, p. 27). Por sua vez, “no caso dos professores talvez a tática das greves devesse ser abandonada, porque prejudicam apenas estudantes e membros da comunidade” (Idem, p. 131-2).

Onde se empenhar, afinal? Segue um trecho da resposta de Mark Fisher: “Se o neoliberalismo conseguiu triunfar ao incorporar os desejos da classe trabalhadora pós-1968, uma nova esquerda poderia começar agindo sobre os desejos que o neoliberalismo gerou, mas que não foi capaz de satisfazer. Por exemplo, a esquerda deveria argumentar que pode entregar o que o neoliberalismo falhou em fazer: uma redução massiva da burocracia. O que se faz necessário é travar uma nova batalha em torno do trabalho e de seu controle; uma afirmação da autonomia do trabalhador (em oposição ao controle gerencial) juntamente com a rejeição de certos tipos de trabalho (com a auditoria excessiva que se tornou uma característica tão central do trabalho no pós-fordismo). Esta é uma luta que pode ser vencida — mas apenas por meio da composição de um novo sujeito político”.

Esse novo sujeito não surgirá, pois, sem um enfoque nos elementos estruturais e nas falhas que produzem os efeitos negativos do neoliberalismo, algo que sensibilizaria e mobilizaria novamente as populações para as pautas de esquerda, a fim de que estratégias parlamentares, no seio Estado, resultem em mudanças estruturais da situação. Não obstante, na atual conjuntura brasileira, na última década, tal sensibilização e mobilização foram bem-sucedidas pela coordenação de grupos, recursos e desejos para as pautas de (extrema) direita, a partir do aproveitamento massivo das comunidades online solipsistas — “redes interpassivas de mentes semelhantes que confirmam, ao invés de desafiar, os pressupostos e preconceitos de cada um” (Idem, p. 126).

Na “guerra cultural” que se tornou a política contemporânea, o futuro das escolas públicas — e das instituições de ensino, em geral — depende imensamente da mudança de estratégias e de novos ventos na política. No Brasil, a precarização do trabalho, o gerencialismo de autoculpabilização e o modelo cívico-militar, que silenciam e dessolam a saúde mental dos professores e alunos, são prioridades na luta política progressista nas escolas públicas.

Ednei de Genaro é professor do curso de educação na Universidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT), Campus Tangará da Serra.

Referências

Fisher, Mark. Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.

James, P. D. Filhos da esperança. São Paulo: Editora Aleph, 2023.

Jameson, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1997.

Kafka, Franz. O processo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

Žižek, Slavoj. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

 

Isenções, exceções e a erosão da base do imposto, por Cecília Machado.

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É possível reduzir nossas desigualdades removendo, não ampliando, as exceções na forma com tributamos a renda

Cecilia Machado, Economista-chefe do Banco BoCom BBM, é doutora em economia pela Universidade Columbia

Folha de São Paulo, 22/10/2024

Existem alguns bons motivos para que os trabalhadores de baixa renda paguem menos imposto que os demais. Um imposto sobre a renda gera distorções, por exemplo, desincentivos ao trabalho. Intuitivamente, é como se as pessoas recebessem um salário menor, já que uma parte do que é ganho não fica com elas. Considerando que os trabalhadores de baixa renda são mais sensíveis a essa perda, um regime de tributação progressiva —cuja alíquota cresce com a renda— desfaz parte dessa ineficiência, além de contribuir para redistribuir renda dos mais ricos para os mais pobres.

No Brasil, a progressividade do Imposto de Renda está presente em alíquotas que variam de 0% a 27,5%, com isenção para trabalhadores que ganham até dois salários mínimos. É nesse sentido que o aumento do limite de isenções até R$ 5.000 pode gerar mais progressividade. Mas ampliar a isenção também traz inúmeros outros desafios, o que apenas uma reformulação muito mais profunda na forma como tributamos a renda poderá endereçar.

Afinal, o que significa ganhar R$ 5.000 no Brasil? Por incrível que pareça, esse valor é a realidade quase absoluta do nosso mercado de trabalho. Cerca de 85% da população ocupada recebe salários de até R$ 5.000. Pouco menos de 70% recebem até dois salários mínimos. E metade da população ocupada recebe até R$ 1.600 (PnadC 2023). O aumento da isenção permite diferenciar os mais altos salários, mas também passa a tratar de forma igual trabalhadores que são muito diferentes, como os que recebem R$ 1.600 e R$ 5.000.

A expressiva erosão da base tributária em resposta ao aumento do limite de isenção reflete o desafio de redistribuir através de um imposto sobre a renda, considerando a enorme desigualdade que ainda persiste no mercado de trabalho e a possibilidade de evasão de tributos, seja em razão da existência de arranjos de trabalho informais, seja por causa da existência de regimes especiais que dão saída para aqueles que permanecem na base tributária.

Os exemplos são inúmeros. Trabalhadores denominados empreendedores pagam menos imposto através do MEI. Trabalhadores que viram pequenas empresas se beneficiam de regimes como o Simples. E os que são sócios ou acionistas ganham tratamento diferenciado com os lucros e dividendos.

O fato é que as pessoas respondem aos incentivos gerados pelas isenções e exceções, e o resultado é um sistema de tributação de renda com baixo poder arrecadatório e pouca capacidade redistributiva. No Brasil, a arrecadação com o imposto sobre a renda corresponde a apenas 2,4% do PIB e a cerca de 10% da arrecadação do governo federal. Em perspectiva comparada, destoamos de diversos países desenvolvidos que estabeleceram no imposto sobre a renda a principal fonte de receita do governo e o mais importante instrumento de redistribuição.

Há um amplo espaço para tornar o sistema tributário brasileiro mais justo, mas corrigir os problemas existentes através de uma nova rodada de exceção não parece ser a melhor forma de fazê-lo. As exceções não apenas reduzem o potencial redistributivo do imposto mas também geram distorções, modificando substancialmente a forma como os recursos são alocados na economia. Nesse sentido, é possível reduzir nossas desigualdades removendo —não ampliando— as exceções na forma com tributamos a renda.

Estaria a juventude desencantada com as esquerdas? por Pedro Marin

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Ela não tem um passado de avanços sociais para mirar. Votou, pela primeira vez, nas eras Temer e Bolsonaro. Viveu o desmonte do Estado. Se parte dela vira à direita é porque o horizonte tornou-se “vencer por conta própria”. E “arcabouço fiscal” só alimenta a angústia…

Pedro Marin – Revista Opera – 21/10/2024

A esquerda enfrenta um enigma: por que os jovens viram à direita? A questão já ressoava à sombra da popularidade de figuras como Milei, na Argentina, Bukele, em El Salvador, e em alguma medida Trump, nos Estados Unidos. Também já havia aparecido com a ascensão de vultos como o deputado federal Nikolas Ferreira (PL). Mas o terror parece ter se cristalizado, ou ao menos o problema apareceu com mais clareza, com o primeiro turno das eleições municipais de São Paulo, em que Pablo Marçal (PRTB) por pouco não foi para o segundo turno, se consolidando, de qualquer forma, como concorrente a líder da extrema-direita brasileira – e tudo com um apoio amplo entre jovens pobres de São Paulo.

De frente pra esfinge, a esquerda lança suas hipóteses: seriam as redes sociais? O celular? Os efeitos da pandemia? A supremacia do consumismo globalizado? O que é que explica que a juventude, outrora símbolo da rebeldia, esteja se voltando à direita? A esfinge não dá respostas definitivas, nem eu pretendo fazê-lo. Mas convém lembrar de algo primordial: o tempo passa.

Não repito o axioma para fixar outro enigma: é que o Brasil tem, de acordo com o último censo do IBGE, 29,8 milhões de habitantes entre 15 e 24 anos. Tomando o topo da pirâmide – aqueles que têm 24 anos –, haveremos de considerar que estes, quando puderam votar pela primeira vez, aos 16, tinham Michel Temer como presidente, e chegaram à maioridade com a eleição de Bolsonaro. Além destes, há outros 13,6 milhões entre 10 e 14 anos, que em breve passarão a formar suas visões políticas. Todo esse contingente não experimentou os governos petistas. A cena política que muitos deles conheceram na adolescência era recheada de militares; quando começavam a trabalhar ou pensavam em procurar um emprego, batiam-se com o pico da desregulamentação trabalhista e das políticas antissindicais; e quanto às políticas sociais, o que encontravam era um teto de gastos, com seus cortes na saúde, educação, habitação, etc. Em resumo: uma boa parte dos jovens que hoje viram à direita, ao contrário das gerações anteriores, não experimentaram sequer as restritas políticas sociais dos governos petistas, ao menos não “por conta própria”.

Certamente, todas as hipóteses lançadas à esfinge têm também sua parcela de culpa. Mas cada uma das hipóteses revela também, por sua parte, ausências: à liberalidade das redes sociais poderíamos opor a democratização da mídia, se tal coisa houvesse sido feita; à ampla popularização do celular, uma reforma educacional efetiva, uma política séria de estímulo à leitura, ou mesmo uma política de desenvolvimento tecnológico que casasse a inserção digital com a popularização dos computadores pessoais (cujo uso tem efeitos bastante diversos daqueles do celular, via real de acesso da maioria da população brasileira à internet); frente os lamentos quanto aos efeitos da pandemia, poderíamos nos perguntar o que estavam fazendo nossos partidos de esquerda enquanto Bolsonaro aplicava sua política genocida – protestavam contra o presidente ou protestavam contra os que protestavam? –; sobre a profusão do consumismo em escala global, deveríamos questionar o que nossas organizações e governos ofereceram como alternativa de sociabilidade, se houve algum tipo de política de nacionalização da produção desses produtos que tantos desejam, ou mesmo uma política cultural ampla que buscasse disputar tais desejos. Parece, portanto, que na ânsia de buscar respostas para explicar o comportamento da juventude, deixamos de lado os pressupostos mais simples: que esta juventude não viveu o melhor que a centro-esquerda pôde entregar; que o melhor que o petismo pôde entregar esfarelou-se como de um dia para o outro; e que aqueles que lideram a esquerda hoje sequer agem no sentido de entregar algo decisivamente melhor. O mais grave: que mesmo após a eleição de Lula em 2022, o melhor que se entrega é um melhorismo rebaixado; afinal, se comemora a criação de empregos de baixíssima qualidade como se estivéssemos testemunhando um crescimento chinês; o arcabouço fiscal de Haddad só se diferencia essencialmente do teto de Temer por sua maior aplicabilidade; os militares que invadiram a cena política em 2016 têm um ministro para chamar de seu dentro do governo Lula (um ministro que inclusive se orgulho disso); as reformas e as privatizações que avançaram ferozmente a partir de 2016 não foram desfeitas nem enfrentadas pelo atual governo. Se é verdade que os governos petistas até 2016, mesmo com todos seus limites, se diferenciavam das administrações Temer e Bolsonaro, também é verdade que o atual governo, até o momento, não se diferencia tanto destas; e tudo o que o jovem conheceu em primeira mão na política brasileira, mais uma vez, é isso.

O niilismo que afeta o Brasil, e particularmente sua juventude, deve ser tomado por inteiro: na ausência de algo que de antemão organize sua perspectiva de futuro, o homem toma o destino nas mãos, conferindo ele mesmo sentido à própria vida. Os que, como eu, foram jovens ao longo dos governos petistas, viviam, apesar de todos os poréns, uma sensação geral de que os governos organizavam um futuro. A melhoria das condições de vida presentes, somada às políticas de ampliação do ensino básico e superior, faziam crer que era possível ascender por meios habituais, como o estudo e o trabalho; e essa ascensão, mesmo que limitada e desorganizada – abrindo caminho para perspectivas individualistas (a famosa premissa de que milhões melhoraram de vida “por esforço próprio”) –, estava intrinsecamente ligada ao Estado.

A dilapidação do Estado a partir do ajuste fiscal do último governo Dilma e dos governos subsequentes de Temer e Bolsonaro criou uma geração de jovens que não experimentou tal clima: jovens que nasceram e cresceram sob a acertada suposição de que estavam sozinhos, e que seu futuro só poderia ser diferente por meios excepcionais: por uma jogada de sorte, por uma ideia genial ou um esforço descomunal no campo do “empreendedorismo”, etc. Não será tão difícil compreender o porquê este jovem, mesmo que pobre, tão facilmente tenha a percepção de que o Estado e a política só servem para atrapalhá-lo.

Voltando ao niilismo: os mais velhos podem buscar algum sentido no passado; e os mais jovens? Num País em que objetivamente a escassez define as maiorias e a riqueza é o que confere, mais do que a percepção da vitória, a realização dos direitos, o que se pode esperar da juventude? Vários jogam nas roletas, outros voltam-se ao crime, tantos jazem mortos, muitos viram à direita, a maioria sobrevive como pode em meio às opções anteriores, todos sonhando conquistar os direitos inscritos na Constituição pelo único meio que objetivamente é possível: enriquecer. Não há nada de incompreensível nisso tudo: jogam o jogo do mundo que conheceram e conhecem. Um jogo em que os que têm a coragem de ser bandidos têm o justo reconhecimento, e em que as mentiras de coachs ou pastores não são medidas pelo seu valor moral, mas pela sua utilidade prática – embora falsas, são úteis, ao contrário dos resmungos sobre “o que é possível fazer”; aquelas mobilizam as vontades, estes paralisam.

Os “heróis” de um ambiente tão desregulado, sem horizonte de futuro e em que o Estado, em meio às privatizações, cada vez faz menos, e em meio às reformas e ajustes, cada vez faz pior (a saúde e a educação são áreas evidentes) serão quais? Seria Marçal e congêneres tão inexplicáveis assim? Que outro ambiente o governo está oferecendo para que outros “heróis” possam aparecer? É verdade que essa dilapidação do Estado avançou por sobre o petismo: mas é hoje enfrentada de forma decidida por ele?

Parte da juventude vira à direita não por convicção de que lá se encontra uma alternativa; mas por não ver alternativa a não ser esta. O discurso individualista, em que as únicas entidades gregárias viáveis são a família ou a igreja, e no qual é necessário “vencer por contra própria” se populariza porque, no Brasil pós-2016, ele é absolutamente verdadeiro.

Caberia a um governo como o de Lula torná-lo falso. É verdade que em 2023, sob a PEC da Transição, aumentos nos investimentos em educação e programas como o Pé-de-Meia foram sinais, ainda que tímidos, neste sentido, mas a tendência de cortes para a manutenção do “arcabouço fiscal”, já demonstrada neste ano (em abril foram 4 bi cortados; agora, em outubro, já se discute um novo amplo pacote de cortes), tende a tornar o terceiro governo Lula uma reprise do que os jovens já viram. Por que optariam decididamente por ele em 2026?

​​Pedro Marin é fundador e editor-chefe da Revista Opera. É editor de Opinião de Opera Mundi, autor de “Aproximações sucessivas – O Partido Fardado nos governos Bolsonaro e Lula III”, “Golpe é Guerra – Teses para enterrar 2016”, e co-autor de “Carta no Coturno – a volta do Partido Fardado no Brasil”.

 

Nobel de Economia: uma lente para entender os desafios do Brasil, por Deborah Bizarria

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É evidente como nossas instituições com frequência são usadas para atender a grupos específicos

Deborah Bizarria, Economista pela UFPE, estudou economia comportamental na Warwick University (Reino Unido); evangélica e coordenadora de Políticas Públicas do Livres.

Folha de São Paulo, 21/10/2024

A concessão do Prêmio Nobel de Economia de 2024 a Daron Acemoglu, Simon Johnson e James A. Robinson destaca a importância das instituições na prosperidade das nações. Seus trabalhos mostram que instituições inclusivas —que promovem direitos de propriedade, Estado de Direito e oportunidades— são essenciais para o desenvolvimento econômico. Essa premiação nos oferece a oportunidade de refletir sobre os obstáculos que o Brasil enfrenta devido à captura institucional por interesses privados.

O arcabouço teórico dos laureados aborda por que algumas sociedades permanecem presas a instituições extrativas e a dificuldade de transformá-las. Instituições extrativas beneficiam uma pequena elite em detrimento da maioria, limitando o crescimento econômico ao restringir direitos políticos, corroer o Estado de Direito e concentrar recursos e poder. Isso cria uma armadilha que retarda o progresso econômico.

Independentemente das críticas e limitações apontadas por outros estudiosos, uma contribuição significativa dos laureados foi popularizar o debate sobre a qualidade das “regras do jogo” além dos círculos acadêmicos. Seus livros, especialmente “Porque as Nações Fracassam”, conseguiram “furar a bolha” econômica, sendo discutidos tanto por especialistas quanto pelo público em geral. O “Corredor Estreito” e “Poder e Progresso” também têm gerado debates, ainda que em menor grau.

No Brasil, é evidente como nossas instituições com frequência são usadas para atender a grupos específicos. A elite do funcionalismo público utiliza mecanismos legais para garantir salários desconectados da realidade, ultrapassando o teto constitucional. Enquanto a maioria dos servidores recebe remunerações modestas, uma pequena parcela acumula benefícios que distorcem a equidade salarial e drenam recursos que poderiam ser destinados a áreas essenciais.

Essa captura do Estado também se manifesta na alocação de recursos em setores como as indústrias naval e automobilística. Governos sucessivos investem pesadamente em subsídios e desonerações tributárias para essas áreas, sem retorno social proporcional. Essa abordagem privilegia grupos bem conectados ao poder, em vez de fortalecer as instituições que poderiam melhorar o ambiente de negócios e promover um crescimento mais inclusivo.

A preferência por projetos grandiosos, em vez de reformar as estruturas institucionais, reflete a falta de foco nas reformas necessárias para promover eficiência econômica. Enquanto isso, pouco se discute sobre a regulação econômica, a qualidade da gestão educacional e a necessidade de maior segurança jurídica. Essa estratégia perpetua a desigualdade e compromete o potencial de inovação e empreendedorismo do país.

Para reverter esse cenário, é fundamental que a sociedade civil se envolva em reformas institucionais que eliminem privilégios e direcionem recursos públicos para investimentos que realmente beneficiem a população. Fortalecer a democracia, promover a transparência e responsabilizar os tomadores de decisão são passos essenciais. A premiação desses economistas nos leva a repensar nossas prioridades: em vez de investir em setores que favorecem poucos, devemos criar um arcabouço institucional que promova inclusão social e geração de riqueza.