Violência e Insegurança

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A sociedade mundial vem passando por muitas transformações nos últimos 30 anos. As estruturas estão sendo todas modificadas, a instabilidade e a insegurança tem se transformado na nova regra social, gerando um aumento da insegurança e da violência entre os indivíduos, entre empresas e entre nações.

Neste ambiente de inúmeras mudanças, a violência e a insegurança crescem de forma acelerada no Brasil, apenas em 2023 mais de 45 mil pessoas foram assassinadas, colocando o Brasil na condição de uma das nações mais violentas do mundo, soma-se a este clima de perturbação, as crises política e econômica, a alta informalidade e a redução da renda agregada, todas estas questões contribuem para este ambiente de desesperança, medo e a degradação social.

A insegurança cresce de forma acelerada, gerando medo e preocupação em todos os indivíduos e famílias. Viver em grandes centros urbanos se transformou em um grande desafio, sair para trabalhar todos os dias pela manhã e retornar no final da tarde é uma conquista que todos almejam. A violência transforma hábitos, costumes e comportamentos, somos escravos destes medos e nos cercamos de produtos para nossa proteção. Os grandes ganhadores deste ambiente de barbárie se refugiam em lucros astronômicos com a venda de armas, munições, blindados e a falsa sensação de segurança.

As violências e as inseguranças crescem em todas as regiões do mundo, atingindo as estruturas econômicas, degradando a lógica política, devastando as questões sociais, deformando as emoções, impondo valores, rechaçando a solidariedade e fortalecendo a concorrência, o lucro imediato, o individualismo e o hedonismo, valores que crescem na sociedade global.

O mundo contemporâneo caminha para o caos e nem mesmo as promessas de prazeres gerados pelas tecnologias estão encantando mais os indivíduos, a Inteligência Artificial nos fascina, mas ao mesmo tempo, nos geram medos e preocupações com seus empregos e sua sobrevivência, o clima está mais próximo de uma guerra de todos contra todos e a paz nos parece, cada vez mais, um projeto distante e inacessível para a grande maioria.

As regras econômicas estão sendo destruídas todos os dias, discursos fanatizados crescem nas redes sociais, as realidades se transformam cotidianamente em narrativas de acordo com seus interesses imediatos e as fake News se espalham em todas as regiões, gerando adoradores, seguidores e defensores de uma realidade paralela, espalhando inverdades, corrompendo a verdade e transformando a sociedade em um verdadeiro cassino global.

Neste ambiente de instabilidades preocupações e medos, os indivíduos se apegam a um arsenal de medicamentos, drogas e terapias alternativas, os agentes da redenção anterior não mais conseguem dar as respostas necessárias. A religião e a família, eixos centrais dos antigos modelos de organização social, antes responsáveis pelas explicações, hoje se restringem a tentar se reconstruir, marcados por denúncias e degradações de todas as naturezas, o mundo contemporâneo está nos levando a reflexões mais íntimas, uma nova organização social é fundamental, centrada no respeito às diversidades e na construção coletiva como instrumento de melhorias sociais, um mundo novo é possível e sua construção é cada vez mais urgente, unamo-nos todos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

 

Como a ditadura do gerencialismo oprime os professores, por Ricardo Normanha

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Categoria enfrenta precarização, desvalorização e ataques políticos coordenados pela extrema direita. Agora, são avaliados por softwares de “gestão de negócios”. Efeitos: profissionais temporários já são maioria na rede estadual

Ricardo Normanha – OUTRAS MÍDIAS – 06/08/2025

No dia 6 de agosto celebra-se o dia dos e das profissionais de educação no Brasil. A comemoração foi estabelecida por lei de 2024 com o propósito de dar visibilidade à categoria e enfatizar a necessidade de sua valorização. O texto da lei é sintético, com apenas dois artigos. Deles não se desdobram outras medidas ou ações que possam, efetivamente, cumprir com o objetivo de reconhecimento dessas trabalhadoras e trabalhadores. A despeito da ausência de caracterização no texto da lei, é fundamental frisar que se trata de um grupo diverso no que se refere às diferentes categorias profissionais: docentes, gestores, profissionais de apoio escolar, agentes de inclusão, merendeiras, cuidadoras, berçaristas. Ressalta-se ainda a predominância feminina no setor – como em outras profissões ligadas ao cuidado —, fator historicamente associado à desvalorização profissional.

Trata-se, portanto, de um momento simbólico, mas não isolado, para refletir sobre os principais desafios cotidianos dessa categoria. Trata-se de uma série de desafios estruturais, agravados por políticas públicas que reforçam as condições precárias de trabalho. É uma tarefa árdua selecionar os principais entre eles, numerá-los e sintetizá-los em um texto curto como este. Mas, mesmo sob o risco de cair em simplificações, vale o esforço para que sirva como elemento de reflexão e, principalmente, para a ação política coletiva.

Desvalorização das carreiras, baixos salários e precarização das condições de trabalho

A precariedade salarial e as condições de trabalho na educação pública são problemas estruturais há décadas. Ainda que os números apresentem um cenário no qual a remuneração de docentes da rede pública seja, ao longo da vida, superior ao de profissionais da rede privada, especialmente em função dos salários oferecidos pela administração federal (Institutos Federais e Universidades), é notório que, em relação a outros setores profissionais, o campo da educação é marcado por grandes distorções no que se refere aos rendimentos e planos de carreira.

Um importante indicador é o Piso Nacional do Magistério, que hoje encontra-se no valor de R$4.867,77 para a jornada de 40 horas semanais. Apesar do último reajuste do piso ter sido acima da inflação, o valor ainda é significativamente baixo. Além disso, muitos estados e municípios não cumprem o piso estabelecido por lei. Segundo o levantamento do Observatório do Piso do Magistério, iniciativa da deputada federal Luciene Cavalcanti (PSOL-SP), mais de 750 municípios do país pagam salários abaixo do piso, sendo 344 só no estado de São Paulo.

A precarização do trabalho docente e de todas e todos os profissionais da educação nas redes públicas é um projeto político de longa data. Diversos estudos evidenciam décadas de deterioração progressiva, especialmente a partir dos anos 1990, quando as reformas neoliberais implementadas pelo PSDB no governo federal — e em vários estados, como São Paulo, governado pelo partido por quase 30 anos — agravaram as condições de trabalho e a qualidade do ensino público. No estado de São Paulo, em especial, são vários os fatores de precarização do trabalho docente e as leis que a impulsionam, mostrando que a rede pública paulista enfrenta carga excessiva, contratos precários e congelamento salarial. A partir dos anos 2000, leis e decretos estaduais “sofisticaram” esse processo, ampliando jornadas, flexibilizando contratos e atrasando reajustes, além de impor controle via avaliações e bonificações. Mais recentemente, conforme aponta a pesquisadora Stephanie Fenseslau, a Reforma do Ensino Médio e a introdução das plataformas digitais tem dado novos contornos à precarização do trabalho dos e das profissionais da educação pública.

Já o Censo Escolar 2024 revela que, pelo terceiro ano consecutivo, os professores temporários são maioria nas redes estaduais de ensino, representando 52% do total de docentes. A situação reflete a falta de políticas de valorização, como planos de carreira e reajustes salariais, que poderiam atrair e reter profissionais concursados. Estados como Bahia, Maranhão e Pará têm os maiores índices de contratações temporárias, ultrapassando 70% do quadro docente. Nesse sentido, a precarização do trabalho docente, marcada por baixos salários e instabilidade, impacta diretamente a qualidade da educação. Apesar de alguns estados alegarem dificuldades orçamentárias para realizar concursos, profissionais da educação defendem que a efetivação é essencial para garantir direitos trabalhistas e melhorar as condições de trabalho e ensino.

Pressão por produtividade, metas e métricas

Outra realidade enfrentada pelos e pelas profissionais da educação pública, em todos os níveis de ensino, é a gestão do trabalho marcada pelos princípios do gerencialismo. A partir da década de 1990, com o avanço do neoliberalismo em meio às transformações do capitalismo global, construiu-se um discurso que procurava diagnosticar e justificar as alegadas falhas do modelo de “regulação política da sociedade“. No campo das reformas do setor público, esse ideário consolidou a lógica da primazia do mercado como o melhor — e único — mecanismo para distribuição de recursos, supostamente capaz de gerar equidade, justiça social e liberdade individual.

Dentro dessa lógica, o modelo da Nova Gestão Pública — que propõe transplantar métodos da iniciativa privada para o governo, visando eficiência operacional, corte de gastos e melhoria na entrega de serviços (tratando cidadãos como consumidores e funcionários públicos como administradores) — levou, entre os anos 1990 e início dos 2000, a profundas transformações na máquina estatal. Essas mudanças resultaram num padrão de administração pública que segregou as funções executivas das atividades essenciais do Estado, tratando-as como esferas independentes, e implementou em todas as esferas do setor público a lógica empresarial.

Na educação, esse fenômeno se expressa de diversas formas, desde a privatização e terceirização de atividades fundamentais até a adoção de formas de gestão do trabalho com base em metas, métricas e produtividade, às quais são atreladas remuneração e bonificações. Em alguns estados, como Paraná e São Paulo, os mecanismos tradicionais de controle e gestão do trabalho estão sendo incrementados com a adoção de ferramentas digitais que aferem, em tempo real, se professores e professoras estão cumprindo as metas estabelecidas e impostas pelas Secretarias de Educação. Uma dessas ferramentas é o Super BI, software utilizado para gestão de negócios, transposto para a educação pública, e que se transformou no novo capataz digital dos trabalhadores e trabalhadoras da educação.

Nesse sentido, a lógica das plataformas digitais na educação introduz um regime de monitoramento permanente de professoras e professores, gestoras e gestores e estudantes, gerando um clima permanente de cobrança e monitoramento. A prática educativa passa a ser mensurada por indicadores de desempenho numéricos, transformando a busca por qualidade pedagógica em mero alcance de metas quantificáveis. Essa dinâmica transfere para indivíduos a responsabilidade pelos resultados de aprendizagem, ignorando as complexas dimensões sociais, econômicas e culturais que impactam a educação. Consequentemente, profissionais da educação e discentes são julgados por sucessos ou fracassos dentro de um sistema que frequentemente falha em prover condições adequadas para uma educação de qualidade e socialmente referenciada.

Esse aparato de controle e vigilância está intrinsecamente ligado à cultura da quantificação e ao ensino orientado por objetivos mensuráveis — traços fundamentais tanto das plataformas digitais quanto do projeto político que as sustenta. A educação, nesse modelo, se converte em um processo gerencial onde dados e estatísticas substituem a reflexão pedagógica substantiva, e o trabalho pedagógico encontra-se subsumido às ferramentas de controle digital.

Assédio moral e a cruzada contra a educação (e profissionais da educação)

Nos últimos anos, o crescimento da extrema direita em nível global tem chamado a atenção e tornou-se objeto de estudo em diversas áreas. No Brasil, esse fenômeno ganhou força a partir de 2013, influenciando a formulação e execução de políticas públicas, sobretudo na educação. A escolha por focar nas políticas educacionais não é aleatória, pois está ligada a um projeto mais amplo de transformação ideológica mundial. Esse movimento busca questionar e até desmontar os princípios modernos e iluministas, que fundamentam a democracia e a noção de direitos.

Segundo a professora Dirce Djanira Pacheco e Zan, da Faculdade de Educação da Unicamp, o avanço da extrema direta sobre a educação pode ser sintetizado em quatro eixos: 1) a tentativa de controle do pensamento crítico; 2) a intenção de formatação ideológica; 3) a fragilização do Estado (por meio do desinvestimento público e da abertura de espaço para o setor privado); e 4) a influência e interferência de organismos internacionais ligados ao imperialismo.

Iniciativas como o projeto Escola Sem Partido, as inúmeras propostas legislativas que têm como alvo uma suposta “ideologia de gênero”, os programas de Escolas Cívico-Militares e a terceirização e privatização de áreas estratégicas para a educação pública são instrumentos fundamentais para que o consórcio estabelecido entre setores conservadores, fundamentalistas religiosos, extrema direita e o capital financeiro encontrassem nos e nas profissionais de educação o inimigo interno a ser combatido. O mapeamento Educação sob Ataque no Brasil, realizado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, analisou proposições legislativas em todo o Brasil, abrangendo a Câmara dos Deputados, o Senado Federal, as Assembleias Legislativas estaduais e a Câmara Legislativa do Distrito Federal e apontou mais de 200 ataques à educação com repercussão local, regional e nacional em 10 anos de levantamento (2013-2023).

Desde então, a ameaça constante das patrulhas ideológicas da extrema direita tem feito parte do cotidiano daqueles e daquelas que atuam no sentido de construção de práticas pedagógicas emancipatórias. Pais, mães e responsáveis legais, alunas e alunos foram impelidos a se transformarem em delatores. O Movimento Brasil Livre, que abriga em suas fileiras assediadores, pedófilos e até assessores ligados a neonazistas, foi — e ainda é — protagonista dessa cruzada contra a educação e, principalmente, contra os e as profissionais de educação, vide casos recentes em que membros do grupo invadiram universidades públicas para confrontar estudantes e docentes.

Trabalhadores e trabalhadoras da educação e a batalha por direitos 

A análise de alguns dos desafios enfrentados por profissionais da educação pública no Brasil revela um cenário marcado por precarização estrutural, desvalorização sistemática e ataques políticos coordenados. A data simbólica de 6 de agosto, embora importante para visibilizar a categoria, não se traduz em políticas efetivas de reconhecimento, especialmente para uma força de trabalho majoritariamente feminina, que sustenta o sistema público em condições adversas.

Nesse sentido, três eixos críticos emergem com urgência:

  1. degradação das condições materiais, expressa em salários aviltantes (com descumprimento do já rebaixado Piso Nacional), terceirização e crescente flexibilização contratual, expressa pelo número de profissionais em contratos temporários e precários e reformas administrativas que intensificam a exploração;
  2. ofensiva ideológica da extrema direita, que transforma escolas e universidades em campos de batalha, criminaliza o pensamento crítico através de projetos como o Escola Sem Partido e instrumentaliza o fundamentalismo religioso para desmontar conquistas democráticas;
  3. ditadura do gerencialismo, que substitui o projeto pedagógico por metas quantitativas, converte plataformas digitais em ferramentas de vigilância, individualizando fracassos estruturais, aprofundando desigualdades históricas.

Tais desafios não são apenas conjunturais, mas fruto de um projeto político neoliberal — e ultraliberal — em curso desde os anos 1990 e aprofundado na segunda década dos anos 2000, agravado recentemente por reformas como a do Ensino Médio e o processo de financeirização da educação. A resistência exige articulação ampla: da pressão por concursos e planos de carreira à defesa intransigente da educação pública como direito fundamental. Como demonstram as greves docentes e a mobilização contra os ataques conservadores, somente a ação coletiva poderá reverter ou, ao menos, fazer frente a esse cenário, garantindo não apenas melhores condições de trabalho, mas um projeto de educação pública com práticas emancipadoras, antirracistas e antipatriarcais. Sem a valorização radical dos e das profissionais da educação, qualquer projeto de sociedade democrática e justa será uma promessa traída.

Ricardo Normanha é pai, sociólogo, professor e pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Ciências Sociais na Educação da Faculdade de Educação da Unicamp, coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Diferenciação Sociocultural (GEPEDISC), membro do Comitê São Paulo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e do Observatório das Tecnologias e Inteligência Artificial na Educação (Edutecia).

Dependência, marca do capitalismo brasileiro, por Luiz Filgueiras

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Quando se fala de novo em soberania e projeto nacional, vale examinar nossa condição subordinada e periférica. Que padrões ela assumiu, ao longo do tempo, para perdurar. Por que, sem rompê-la, não haverá nem democracia, nem nação

Luiz Filgueiras – OUTRAS PALAVRAS – 06/08/2025

Introdução

A atual condição dependente dos países periféricos, no contexto do sistema capitalista mundial, é resultado de um processo histórico que remete a três circunstâncias: 1. Esses países foram colônias no período mercantilista (séculos XVI-XVIII), quando a chamada “acumulação primitiva” criou as pré-condições para a constituição do capitalismo na Europa; 2. Posteriormente, no século XIX (pós-1ª Revolução Industrial), já como países politicamente independentes, passaram a fazer parte, de forma subordinada, da divisão internacional do trabalho configurada pelo capital e sob a dominação da Inglaterra; e 3. Nessa condição, constituíram-se, a partir de então, como um capitalismo singular, distinto do capitalismo dos países centrais (imperialistas), mas a ele articulado e dele dependente – evidenciando a natureza desigual e combinada do desenvolvimento do capitalismo.

Por outro lado, essa singularidade expressa a circunstância de que as leis gerais (tendenciais) de desenvolvimento do capitalismo (em geral) se realizam de formas distintas no centro e na periferia, pois sofrem mediações histórico-sociais diferentes, levando à constituição de duas espécies de capitalismo, que se diferenciam em suas respectivas estruturas e dinâmicas. O confronto entre essas formações econômico sociais distintas, marcado por relações internacionais assimétricas entre elas, opõe Estados nacionais (dominantes e dominados) com diferentes níveis de desenvolvimento capitalista e poder econômico, político e militar.

A contemporaneidade defasada, que caracteriza os países periféricos, manteve o caráter dependente de seu capitalismo. Expressa-se em uma assimetria estrutural nas relações estabelecidas com os países centrais. Embora se modifique ao longo do tempo, permanece sob o comando e a hegemonia desses. Ou seja, mudam-se as formas de dependência e das relações internacionais, conforme a fase (etapa) de desenvolvimento do sistema capitalista mundial – associada ao desenvolvimento do capitalismo dos países pioneiros e, posteriormente, imperialistas. Mas a condição subordinada da periferia, mesmo daquela parte que conseguiu se industrializar, mantém-se e até se aprofunda.

Sob a ótica da Teoria Marxista da Dependência, o capitalismo dependente dos países periféricos, cujo desenvolvimento subordina-se à acumulação capitalista mundial, é marcado por duas desigualdades:

  1. Na esfera internacional, de forma estrutural, há uma “troca desigual” no comércio de mercadorias entre países periféricos (produtores-exportadores de produtos, primários ou manufaturados, de menor intensidade tecnológica,) e países imperialistas (produtores-exportadores de produtos com maior intensidade tecnológica), que beneficia estes últimos em termos de valor. Com isso, verifica-se, de forma ininterrupta, uma transferência de excedente, dos países de capitalismo dependente para os países imperialistas. Mais especificamente, as burguesias dos primeiros cedem às burguesias dos segundos parte do mais-valor extraído de sua classe trabalhadora.
  2. Para compensar a perda de mais-valor para o imperialismo, as burguesias periféricas, no âmbito interno de seus respectivos Estados e economias nacionais, viabilizam-se lucrativamente através da superexploração do trabalhador, possibilitada por outra troca desigual; desta feita a que ocorre na compra e venda da força de trabalho. Mais claramente, os capitalistas na periferia não pagam ao trabalhador o valor de sua força de trabalho, tal como definido por Marx, isto é, o valor correspondente a todos os bens e serviços necessários à sua subsistência e de sua família. E/ou prolongam a jornada de trabalho e/ou intensificam o processo de trabalho, comprometendo a vida útil da força produtiva do trabalho e reduzindo o tempo de vida do trabalhador.

Em suma, a superexploração da força de trabalho na periferia do capitalismo se viabiliza diretamente pelo não pagamento do real valor da força de trabalho e/ou pelo maior desgaste de seu uso – seja através do prolongamento da jornada de trabalho, seja pela maior intensidade no ritmo do processo de trabalho.

Ao longo do tempo, o desenvolvimento do sistema capitalista mundial manteve, na essência, essas duas desigualdades que caracterizam o capitalismo dependente – em que pese o extraordinário avanço científico-tecnológico alcançado. Mas as formas de superexploração passaram a se expressar em novos tipos de relações capital-trabalho (terceirização, uberização etc.), o mesmo ocorrendo com as formas de transferência de excedentes para além da troca desigual no comércio (remessas de lucros e dividendos de investimentos estrangeiros diretos, pagamentos de juros derivados do capital fictício e variados tipos de renda associadas a patentes, ao conhecimento etc.)

Dependência e Padrões de Desenvolvimento Capitalista

As distintas formas de superexploração da força de trabalho e de transferência de excedentes (da periferia para o centro) definiram, em cada momento histórico do desenvolvimento do sistema capitalista mundial, a natureza da dependência dos países periféricos e, portanto, a estrutura e dinâmica do capitalismo dependente em cada período. No Brasil, em particular, pode-se identificar, a partir da segunda metade do século XIX, a prevalência de três formas de dependência sucessivas, associadas a distintos Padrões de Desenvolvimento Capitalista (PDC)1.

  1. Padrão Primário-Exportador

Entre 1850 e 1930, o período do Padrão Primário-Exportador, caracterizou-se pela dependência comercial-financeira. A transferência de excedentes era realizada através da troca desigual e do pagamento de empréstimos tomados ao capital financeiro inglês (juros e amortizações) – relacionados à infraestrutura da produção-beneficiamento-exportação de café (máquinas, equipamentos e transporte) e ao processo de modernização dos dois centros urbanos principais (Rio de Janeiro e São Paulo).

Nesse período, o bloco no poder foi constituído sob a hegemonia política da grande burguesia cafeeira, tendo também como participantes as demais oligarquias regionais, a burguesia comercial (importadora-exportadora) e o capital financeiro e de serviço inglês. Essa composição configurou um Estado que, ao longo do desenvolvimento desse padrão – primeiro alicerçado no trabalho escravo e no pequeno produtor rural (proprietário ou não, subordinado ao latifúndio e ao capital comercial) e depois com base no trabalho assalariado desregulado – cumpriu duas funções fundamentais: defesa e garantia da propriedade privada (terra e escravo) e execução de uma política cambial e de estoques reguladores de defesa dos preços do café e dos lucros dos cafeicultores. Adicionalmente, o seu financiamento se fazia através da tributação das exportações de café e de empréstimos tomados ao capital financeiro inglês.

O grande capital cafeeiro (produtor-exportador-financiador) estruturava esse padrão de desenvolvimento, caracterizado pela produção-exportação de produtos primários e a importação de produtos manufaturados, estabelecendo e conduzindo suas relações com os pequenos e médios produtores de café, o capital comercial importador e o capital financeiro e empresas de serviço público inglês. A dinâmica econômica do país era determinada de fora para dentro, dependente da demanda das economias centrais e das flutuações dos preços no mercado mundial. Desse modo, o mercado interno, de reduzida dimensão, tinha a sua dinâmica determinada pelas rendas das atividades exportadoras.

A segunda crise geral do capitalismo (1929-33) inviabilizou a continuação desse padrão de desenvolvimento insustentável, que já estava em seu momento terminal, sofrendo com a reiterada superprodução cafeeira, cujo excesso o mercado mundial já não absorvia, exigindo do Estado ações cada vez mais custosas de defesa dos lucros do grande capital cafeeiro: empréstimos e desvalorizações cambiais que encareciam as importações, elevavam os preços internos e fragilizavam as finanças públicas. A Revolução de 1930 expressou, do ponto de vista político, a impossibilidade de continuação dessa ordem e começou a encaminhar o país para um novo padrão de desenvolvimento que, aos poucos, trouxe para o centro da dinâmica econômica a industrialização.

  1. Padrão de Substituição de Importações

O período seguinte (1930-1990), de vigência do Padrão de Substituição de Importações, caracterizou-se pela dependência comercial-tecnológica-financeira, associada a uma industrialização inicialmente de caráter nacional (capitais privados e estatais) mas que, na sequência (a partir da 2ª metade da década de 1950), passou a ter como centro dinâmico o capital estrangeiro, através dos investimentos diretos das multinacionais dos países centrais, em especial no setor de bens de consumo duráveis. À transferência de excedentes através da troca desigual, vieram somar-se, assumindo papel principal, a remessa de lucros, royalties e dividendos das multinacionais e o pagamento de juros e amortizações de empréstimos estrangeiros relacionados ao financiamento do processo de industrialização dependente.

Nesse novo Padrão de Desenvolvimento, o bloco no poder se modificou, com a grande burguesia industrial (em especial aquela associada ao capital estrangeiro) assumindo a posição hegemônica na condução do Estado – que passou a estar no centro da acumulação, através do planejamento e financiamento, da constituição de empresas estatais, da criação de infraestrutura e na execução de políticas industrial e agrícola, além da regulação do mercado de trabalho. Essas novas funções do Estado determinaram, e ao mesmo tempo expressaram, uma condição de certa autonomia relativa frente aos conflitos imediatos entre as classes sociais e suas frações.

Mas essa nova situação não significou uma ruptura total com a ordem anterior; os grandes proprietários e produtores rurais continuaram a fazer parte do bloco no poder agora sob nova direção, o que consolidou a estrutura agrária anterior e inviabilizou qualquer tentativa de realização de uma reforma agrária – ou, mesmo, a extensão da legislação trabalhista à agropecuária (até a Constituição de 1988). Em contrapartida, a política de modernização conservadora executada pelo Estado, após o golpe de Estado de 1964 e implantação da Ditadura Militar, difundiu as relações capitalistas na agricultura, levando à constituição dos complexos agroindustriais – o que soldou, cada vez mais, os interesses do grande capital (industrial e financeiro) e da propriedade fundiária.

Nesse novo cenário, a natureza da dependência se modificou: a relação orgânica da burguesia brasileira com o capital internacional (situado no centro da acumulação) trouxe para dentro da dinâmica econômico social e política do país os interesses desse capital, que se fundiram às instituições do Estado (parlamento, judiciário e executivo) e da sociedade civil (destacadamente a grande mídia corporativa).

O aprofundamento da industrialização tardia, elemento fundamental do novo padrão, alterou a dinâmica econômica, ao internalizar a indústria de bens de consumo duráveis e parte do setor de bens de capital. O mercado interno se expandiu e foi unificado nacionalmente, passando a ocupar papel central no processo de acumulação e implicando uma relativa autonomia em relação à dinâmica econômica internacional. Mas o processo de industrialização, associado ao capital estrangeiro, transferiu o centro de decisão (tecnologia e financiamento) para fora do país.

Esse padrão, que teve o seu auge na década de 1970, entrou em colapso a partir da década de 1980, com a conhecida crise da dívida externa, que alcançou todos os países da periferia do capitalismo. O novo regime mundial de acumulação sob dominação financeira, constituído a partir dos países centrais, e a nova estratégia das multinacionais de operar através das cadeias produtivas de valor, inviabilizaram o financiamento externo da acumulação interna e bloquearam a continuação da industrialização do país em direção a setores de maior intensidade tecnológica – contemporâneos da 3ª Revolução Tecnológica. A disputa entre as distintas frações da burguesia abriu uma crise de hegemonia, que só foi se resolver ao final da década com a vitória da burguesia associada e a incorporação do país (o último na América Latina) à nova ordem neoliberal sob o domínio das finanças.

  1. Padrão Liberal-Periférico

A partir dos anos 1990, com a constituição do Padrão Liberal-Periférico, a dependência assumiu a sua forma atual, tecnológica-financeira-de conhecimento: que abarca todas as formas de transferências de excedentes anteriores, acrescentando duas novas formas, que passaram a ser predominantes desde então: os rendimentos do capital financeiro internacional derivados das aplicações em títulos da dívida pública e da compra e venda de ações na Bolsa de Valores, e o pagamento de rendas associados ao uso das mercadorias-conhecimento produzidas e monopolizadas pelas Big Techs dos EUA.

O bloco no poder sofreu uma mudança decisiva. A burguesia industrial tradicional foi deslocada pelo capital financeiro (nacional e internacional), que passou a ocupar a condição de liderança na condução do Estado, coadjuvado pelo agronegócio e os grandes grupos econômicos nacionais produtores/exportadores de commodities agrícolas e industriais. A importância dessas frações do capital se explicitou principalmente a partir da crise cambial que eclodiu no início de 1999, com o fim da âncora cambial do Plano Real e o início de um novo Regime de Política Macroeconômica (metas de inflação, superávits fiscais primários e câmbio flutuante).

Posteriormente, durante os governos Lula, esse tripé macroeconômico foi flexibilizado, em um contexto de forte melhoria das contas externas do país (balanço de pagamentos), propiciada pela demanda da China por commodities. Como resultado, mesmo dando-se continuação ao Padrão Liberal-Periférico, obteve-se maior crescimento da economia, redução do desemprego e da pobreza, pequena melhora na distribuição de renda (dos rendimentos do trabalho), acúmulo de reservas cambiais e redução da dívida externa líquida, diminuição da relação dívida pública/PIB etc.

No entanto, independentemente do Regime de Política Macroeconômica vigente (âncora cambial, tripé macroeconômico rígido ou flexibilizado), o Padrão Liberal-Periférico se manteve, determinando e condicionando, desde o início dos anos 1990, as políticas públicas (econômicas e sociais) adotadas pelos sucessivos governos – conforme os interesses do capital financeiro e do agronegócio. Destacando-se, especialmente, as reformas neoliberais (Previdência e Trabalhista), as privatizações, a abertura comercial-financeira, as políticas monetárias (taxas de juros elevadas e sempre acima dos padrões internacionais, garantidas por um Banco Central “independente”) e fiscal (ajustes fiscais reiterados e, mais recentemente, com o “teto de gastos” e o “arcabouço fiscal”, de forma permanente).

Nesse novo padrão, sob a dominância financeira, o país vem sofrendo um processo de reprimarização e desindustrialização precoce, com a indústria manufatureira perdendo participação no PIB e no total de empregos existentes. Essa situação se refletiu na inserção do país na divisão internacional do trabalho: as exportações de commodities agrícolas e industriais assumiram a liderança do comércio exterior, enquanto as importações passaram a se concentrar em produtos da 3ª e 4ª revoluções tecnológicas – em particular as tecnologias de informação e comunicação. Além disso, a abertura financeira articulou a dívida pública com o mercado financeiro internacional, transformando-se em um instrumento de chantagem permanente das finanças contra os sucessivos governos. Nessas circunstâncias, o país aumentou estruturalmente a sua vulnerabilidade externa (comercial e financeira), que pode variar conjunturalmente com o ciclo econômico mundial.

A hegemonia financeira impactou fortemente o Estado e as relações capital-trabalho. A articulação do primeiro com o processo de acumulação foi redefinida, com a redução drástica de sua participação na esfera produtiva e na oferta dos serviços públicos, em virtude das privatizações. O mesmo ocorrendo com a sua capacidade de planejar e executar políticas macroeconômicas e setoriais. O mercado de trabalho sofreu um processo continuado de desestruturação, tendo o trabalho assalariado (explícito ou disfarçado) crescentemente desregulado/precarizado, com a criação de novos tipos de relação (“uberização do trabalho”) e a informalidade em permanente expansão (agora rebatizada ideologicamente como “empreendedorismo).

As implicações sociais e políticas do capitalismo dependente2

A observação da história da América Latina evidencia, de forma inequívoca, a natureza limitada e frágil da democracia nos países dependentes, nos quais as classes dominantes estão articuladas organicamente ao imperialismo e com este presente e atuando no interior de suas respectivas sociedades e instituições (Executivo, Legislativo, Judiciário, grande mídia corporativa etc.). A oposição entre democracia e desigualdade/superexploração do trabalho sempre está no centro da disputa política, marcando, de um modo ou de outro, as sucessivas conjunturas. A ampliação e o avanço da democracia necessitam da redução da desigualdade, e essa redução demanda o aprofundamento da democracia; ambas se condicionando mutuamente.

A América Latina, tal como a aldeia de Macondo do romance de Gabriel Garcia Marques, Cem anos de Solidão, sofre de uma espécie de “eterno retorno”, mas este não se faz sempre nas mesmas circunstâncias e de modo exatamente igual. As formas de dependência, e seus respectivos padrões de desenvolvimento, alteraram-se ao longo do tempo, condicionados pelas mudanças estruturais do capitalismo no plano mundial – impulsionadas desde os países imperialistas. O “eterno retorno” se expressa, em todos os seus países, na incapacidade de superação da dependência, na existência de burguesias antinacionais associadas ao imperialismo, na inserção subordinada na divisão internacional do trabalho, na reprodução de velhas e novas formas de superexploração do trabalho, na manutenção de enormes desigualdades e concentração de renda, de riqueza e da propriedade e, por fim, em uma grande instabilidade política administrada por uma democracia com grandes limitações e que, no limite, desemboca em regimes ditatoriais.

No Brasil, em particular, essas desigualdades remetem a uma formação econômico-social assentada por quase quatro séculos na violência do trabalho escravo e, posteriormente, a partir do final do século XIX, na superexploração do trabalhador livre – facilitada pela concentração da propriedade fundiária (rural e urbana), pela existência permanente de um enorme exército industrial de reserva, por uma grande informalidade do mercado de trabalho e por uma cultura fortemente autoritária-paternalista na relação capital-trabalho.

Nessas circunstâncias, a enorme concentração de renda e da riqueza tornou-se uma marca histórica, estrutural, do capitalismo dependente brasileiro, assim como a existência de uma burguesia que, ao longo de seu desenvolvimento, foi aprofundando e estreitando a sua articulação, de forma subordinada, com o imperialismo – cujos interesses, ao longo do processo de desenvolvimento do capitalismo, foram cada vez mais internalizando-se no país. Uma burguesia que não conseguiu construir uma “nação completa” e que, por isso, se vê obrigada pelos seus interesses e os do imperialismo a recorrer reiteradamente a governos autoritários e, no limite, a ditaduras – com a implementação de sucessivos golpes de Estado. Em suma, uma burguesia incapaz de construir uma hegemonia política (dominação-consentimento), em razão da contradição permanente (estrutural) presente em todas as sociedades capitalistas, mas aguçada na periferia do capitalismo, entre desigualdade e democracia. O resultado dessa contradição se expressa na existência de uma democracia sempre instável, restrita e desidratada.

Na história do país, o golpe civil-militar de 1964, com a instalação de uma ditadura que durou 21 anos, e, mais recentemente, o novo tipo de golpe parlamentar-jurídico-midiático de 2016, que depôs a Presidente Dilma Rousseff3, ocorreram ambos quando da tentativa de as forças populares enfrentarem a concentração de renda e da riqueza – apesar de suas circunstâncias históricas terem sido muito diferentes. Agora, no terceiro Governo Lula, como nos seus dois governos anteriores e nos de Dilma, as tensões entre democracia e desigualdade voltam a se manifestar de forma aguda – colocando em xeque, de novo, a capacidade de implementar o seu programa, em especial o combate às desigualdades no plano estrutural.

Para a Teoria Marxista da Dependência, a questão central dos países de capitalismo dependente é de que eles não conseguiram constituir burguesias nacionais autônomas em relação ao imperialismo, que fossem condutoras de projetos de nação e incorporassem de fato, mesmo que parcialmente, as classes dominadas. Daí a constatação de Caio Prado Jr., especificamente para o Brasil, mas que penso valer para toda a América Latina: estamos diante de “nações incompletas”. A necessidade de superexploração, com a concentração da renda e da riqueza em níveis elevadíssimos, que garanta as remessas de excedentes para o imperialismo e, ao mesmo tempo, a acumulação de capital para as burguesias nativas, não permite levar a cabo um projeto nacional capitalista soberano – tal como fizeram os atuais países imperialistas nos séculos XVIII e XIX, nos momentos iniciais do desenvolvimento capitalista e, mais recentemente, de forma retardatária, a Coreia do Sul e a China.

Essa é a base objetiva da incapacidade, ou enorme dificuldade, das burguesias periféricas exercerem sua hegemonia (dominação e consentimento) e, por isso, terem de apelar para regimes e governos autoritários, no limite ditaduras. E até, em última instância, requisitarem a interferência político-militar direta do imperialismo. A instabilidade política e a fragilidade das democracias são marcas incontestáveis dos países periféricos, em particular os latino-americanos.

1 O conceito de PDC aqui considerado, diferentemente do conceito de Modelo Econômico, abarca todas as dimensões do desenvolvimento: econômica, social e política, tendo no conceito de “bloco no poder” o seu determinante fundamental, pois este unifica todas essas dimensões. Uma explicação detalhada de sua definição e significado pode ser encontrada, entre outros trabalhos, em FILGUEIRAS, L.  A natureza do atual padrão de desenvolvimento brasileiro e o processo de desindustrialização. In: CASTRO, I. S. B. Novas interpretações desenvolvimentistas. Rio de Janeiro: E-papers: Centro Internacional Celso Furtado, 2013, p. 371-450.

2 Essa última seção foi retirada, de forma resumida, do texto “Capitalismo Dependente e o Terceiro Governo Lula” (Filgueiras, 2023).

3 Para uma discussão sobre a natureza do “novo tipo de golpe” ver o livro de 2016 organizado por Jinkings, Doria e Cleto: Porque gritamos golpe: para entender o impeachment e a crise. E para a relação entre Estado de Exceção e neoliberalismo consultar Valim (2017).

A inteligência subordinada, por João dos Reis Silva Júnior

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João dos Reis Silva Júnior – A Terra é Redonda – 03/08/2025

O artigo de Claudinei Luiz Chitolina, publicado em 31 de julho de 2024 no site A Terra é Redonda, propõe uma reflexão inadiável sobre os impactos da Inteligência artificial nas esferas social, educacional e subjetiva da sociedade brasileira.

Longe de qualquer neutralidade contemplativa, o texto se inscreve com vigor no campo das disputas contemporâneas ao denunciar a ubiquidade da automação algorítmica e convocar o leitor a encarar os limites éticos, políticos e civilizatórios impostos pela racionalidade técnica. Esta contribuição, em espírito dialógico, busca expandir, desdobrar e tensionar os argumentos de Claudinei Chitolina, amparada por uma análise ancorada nas categorias de dependência estrutural, financeirização da vida e dominação tecnocrática da razão instrumental.

Desde suas primeiras linhas, o texto recusa a concepção reducionista da Inteligência artificial como mera ferramenta neutra cujo impacto dependeria exclusivamente de seu uso. A ênfase na variável da intenção humana ignora o cerne da questão: a técnica não é instrumento passivo, mas forma histórica de dominação.

Como demonstram Nancy Fraser (2022) e Leda Paulani (2021), a tecnologia digital contemporânea integra um projeto de captura que subordina tempo, saber e vida à lógica expansiva do capital fictício. A Inteligência artificial, nesse quadro, opera como instância ativa de disciplinamento social e reconfiguração das subjetividades.

No Brasil, país marcado pela condição estrutural de dependência, pensar a Inteligência artificial exige reconhecer que sua implementação não escapa às assimetrias históricas. Como ensinou Ruy Mauro Marini (2005), a dependência não é fase superável, mas lógica reprodutiva. Os modelos de linguagem, algoritmos e bases de dados são importados de estruturas epistêmicas do Norte global, reiterando a subalternidade cognitiva sob o disfarce da inovação técnica. A modernização aparece como atualização da exclusão.

Desse processo emerge o que se pode denominar colonialismo algorítmico. Importam-se tecnologias e, com elas, lógicas decisórias que não apenas ignoram, mas deslegitimam os repertórios locais de sentido. Como assinala Eleutério Prado (2022), o saber se converte em ativo intangível – forma de capital que circula por sua promessa reputacional e expectativa de valorização simbólica. A pesquisa transforma-se em mercadoria moldada às exigências dos mercados de métricas, ranqueamentos e algoritmos de avaliação.

2.

O capital simbólico, na acepção de Pierre Bourdieu, sofre mutação profunda: transmuta-se em capital reputacional. Seu valor passa a ser determinado por visibilidade digital, produtividade quantificada e reconhecimento indexado. A universidade, submetida a esses critérios, perde a capacidade de autorreflexão. A avaliação interna cede lugar a avaliações automatizadas, e a Inteligência artificial, longe de servir, governa.

As repercussões sobre o trabalho docente são brutais. O professor é reconfigurado como gestor de si, imerso em um regime de autovigilância contínua. O relatório do ANDES-SN (2023) indica que mais de 60% dos docentes sofrem com sintomas de exaustão. Como observa Byung-Chul Han (2022), a dominação contemporânea já não se impõe por coerção, mas por liberdade monitorada e internalizada.

O paradoxo é gritante: a Inteligência artificial, apresentada como solução para o cansaço docente, reforça o regime performativo. Delegando tarefas repetitivas às plataformas, transfere-se também a exigência de disponibilidade permanente. No ensino básico, os efeitos são ainda mais cruéis. O INEP (2023) revela que a carência de infraestrutura torna a introdução da Inteligência artificial um simulacro de inclusão. Onde faltam condições materiais, a Inteligência artificial aprofunda a exclusão e normaliza a precariedade como se fosse inovação.

Leda Paulani (2021) denomina esse processo de verticalização simbólica. A elite projeta os sistemas; a base executa, sem voz nem mediação. A “inclusão digital” converte-se em subordinação algorítmica. Os estudantes das periferias têm acesso a diagnósticos padronizados, enquanto os filhos da elite exploram ferramentas criativas. A Inteligência artificial, nesses termos, classifica – e classificar, nesse contexto, é sentenciar.

Nas universidades, o padrão se repete. Decisões relativas a financiamento, progressão e avaliação passam a ser mediadas por sistemas que privilegiam o quantificável. As humanidades, os saberes lentos, os territórios de dissenso e conflito são depreciados. A Inteligência artificial não promove democratização: ela normatiza, homogeneíza, enquadra.

O capital reputacional, como formulado por Eleutério Prado (2022), converte a universidade em plataforma de performance. A reputação, transformada em mercadoria, passa a ser o ativo mais valioso – não por seu conteúdo, mas por sua capacidade de circulação. O docente é diluído em funções administrativas, privadas de sentido e de escolha. As plataformas antecipam respostas, desqualificam o vínculo, anulam a escuta. O ANDES-SN (2023) aponta: há uma crise de sentido e de pertencimento.

3.

Bernard Stiegler (2009) compreende a técnica como fármaco – simultaneamente remédio e veneno. A Inteligência artificial pode, sim, organizar o cotidiano e aliviar tarefas. Mas, sob o império do capital fictício, ela expropria tempo, afeto e crítica. A governança algorítmica simula autonomia, mas reproduz controle. A planilha substitui o juízo pedagógico. Relatórios do Tesouro Nacional (2024) evidenciam o deslocamento: o financiamento público encolhe, enquanto a cobrança por desempenho cresce exponencialmente.

Ajusta-se, assim, o espaço público aos imperativos do mercado. Fraser (2022) e Paulani (2021) chamam isso de privatização simbólica: o Estado renuncia à garantia de direitos, mas impõe métricas e controles. A Inteligência artificial encena eficiência e mascara a precarização. A justiça epistêmica é silenciada diante do dado automatizado. O que se produz é um epistemicídio operado por algoritmos.

Recusar essa lógica não significa rejeitar a Inteligência artificial em si, mas negá-la como fetiche. Como advertiu Francisco de Oliveira (2003), o Brasil é especialista em criar ornitorrincos institucionais – formas híbridas de modernização e atraso. A Inteligência artificial pode integrar o projeto universitário, desde que submetida à democracia epistêmica e ao juízo crítico da coletividade.

A disputa é política. É preciso reivindicar outros sentidos para inteligência, saber e docência. Não se trata de negar a técnica, mas de redefinir sua finalidade. No Brasil financeirizado e estruturalmente dependente, a IA pode ser mais uma forma de subordinação — e por isso, há que resistir.

Resistir, aqui, é proteger o tempo de pensar. A universidade não deve ser eficiente: deve ser significativa. E isso, nenhuma IA é capaz de calcular. A escolha não é técnica. É política. E como toda escolha política, exige coragem, imaginação e tempo.

João dos Reis Silva Júnior é professor titular do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Autor, entre outros livros, de Educação, sociedade de classes e reformas universitárias (Autores Associados)

Referências

ANDES-SN. Relatório Nacional sobre Condições de Trabalho Docente nas Universidades Públicas. Brasília: Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior, 2023.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

CHITOLINA, Claudinei Luiz. A inteligência artificial e os limites do humano. Periódico Digital, 31 jul. 2024.

FRASER, Nancy. Capitalismo canibal: como o nosso sistema devora a democracia, o cuidado e o planeta – e o que podemos fazer a respeito. São Paulo: Boitempo, 2022.

HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: neoliberalismo e novas técnicas de poder. Petrópolis: Vozes, 2022.

INEP. Censo Escolar da Educação Básica 2023: resultados consolidados. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2023.

LOVINK, Geert. Extrema dependência: crítica das redes sociais em tempos de caos. São Paulo: Ubu, 2023.

MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2005.

OLIVEIRA, Francisco de. O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.

PAULANI, Leda Maria. Capitalismo em desencanto: crônicas do Brasil. São Paulo: Boitempo, 2021.

PRADO, Eleutério F. S. Valor, trabalho e capital fictício: ensaios de crítica da economia política. São Paulo: Outras Expressões, 2022.

STIEGLER, Bernard. Pour une nouvelle critique de l’économie politique. Paris: Galilée, 2009.

TESOURO NACIONAL. Execução Orçamentária da Educação Superior: 2015–2023. Brasília: Ministério da Fazenda, 2024.

A vassalagem antipatriótica, por Luiz Marques

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Luiz Marques – A Terra é Redonda – 05/08/2025

Enquanto o nacionalismo latino-americano celebra liberdade e natureza, o europeu e norte-americano alimentam monarquias e caça a “inimigos internos”. No Brasil, a extrema direita sequestra símbolos pátrios para mascarar sua vassalagem colonial — transformando o verde-amarelo em cortina de fumaça para o entreguismo e o fascismo

Houve época em que os intelectuais cosmopolitas do velho continente viam o nacionalismo como uma patologia, por estar enraizado no medo e no ódio do Outro. As Grandes Guerras da primeira metade do século XX, na Europa, deixaram cicatrizes e lições. Nações que flertam com os ideais nacionalistas tendem à beligerância expansionista. O treinador Felipão descobriu que brincava com fogo ao propor que a população desfraldasse o estandarte nacional na frente de casa, em apoio à seleção de futebol de Portugal; a proposta foi enterrada pela opinião pública para sua surpresa.

Além das razões econômico-financeiras, a União Europeia serve de antídoto aos conflitos hoje. Mas na América Latina o nacionalismo valoriza a independência em face da dominação colonialista, sem a tentação de um expansionismo embora algumas escaramuças em fronteiras. Entre nós, símbolos pátrios não têm conotação bélica. Preparam o espírito para exibições festivas, em vez de invasões.

Os hinos das nações latino-americanas exaltam a liberdade, no idioma legado pelos colonizadores: Oíd, mortales, el grito sagrado / Libertad! Libertad! Libertad! / Oíd el ruido de rotas cadenas / Ved en trono a la noble igualdad // Y los libres del mundo responden / al grand pueblo argentino, salud! (“Ouçam, mortais, o grito sagrado / Liberdade! Liberdade! Liberdade! / Ouçam o som das correntes quebradas / Vejam a nobre igualdade no trono / E os livres do mundo respondem / ao grande povo argentino, um brinde!”). A luta para a fundação da república independente é motivo de admiração.

Ao lado da liberdade e igualdade, também são enaltecidas as belezas naturais que inspiram paixão: “Do que a terra mais garrida / teus risonhos, lindos campos têm mais flores / Nossos bosques têm mais vida / Nossa vida no teu seio mais amores // Brasil, de amor eterno seja símbolo”. O temor e a abominação não costumam figurar nos produtos culturais (poesia, música) das antigas colônias, que reforçam a identidade territorial e a autodeterminação. O patriotismo sinaliza para a maioridade.

O hino britânico foca a figura do monarca. God save our gracious King // Send him victorious / Happy and glorious / Long to reign over us // Oh, Lord, our God arise / Scatter his enemies / And make them fall // Confoud their politics / Frustrate their knavish trics / On Thee our hopes we fix / God save us all (“Deus salve nosso bondoso Rei // Que o faça vitorioso / Feliz e glorioso / Que tenha um longo reinado sobre nós // Oh, Senhor, nosso Deus venha / Dispersar seus inimigos / E fazê-los cair // Confunda sua política / Frustre seus truques fraudulentos / Em Ti depositamos nossa esperança / Deus salve a todos nós”. Não há referência à nação e o povo aparece de coadjuvante.

Já o hino dos Estados Unidos aponta o dedo para inimigos intrínsecos. When our land is illumined / With Liberty’s smile / If a foe from within / Strike a blow at her glory // Down, down with the traitor / That dares to defile / The flag of her stars / And the page of her story (“Quando nossa terra é iluminada / Com o sorriso da Liberdade / Se um inimigo de dentro / Golpear a sua glória // Abaixo, Abaixo o traidor / Que ousa contaminar / A bandeira das estrelas dela / E a página de sua história”). O campo sempre esteve fértil ao macartismo e ao trumpismo. Não importa que as emoções hínicas nasçam de versos medíocres: nos hemisférios Norte e Sul, ser patriota implica doses de sacrifício.

Conforme Benedict Anderson, em Comunidades imaginadas, obra que prioriza o tema da formação do sentimento nacional na criação de Estados nacionais, “hinos são cantados em grandes situações” para estimular a sensação de pertença. Indivíduos compartilham, pela imagem e pela unissonância, a experiência subjetiva da “realização física com o eco da comunidade imaginada”. A nação desse modo passa a ser não apenas uma simples fatalidade histórica, mas o imaginário comum a partir de uma língua que, para impor-se, teve de destruir as línguas originárias ou impingir-lhes o silêncio.

Os falsos patriotas

O bolsonarismo, na alegoria do gesto da arminha, ameaça de morte os opositores de esquerda, “a começar por Fernando Henrique Cardoso”, e também extirpa do vocabulário cotidiano os termos identificados com as batalhas épicas por direitos humanos, justiça social, fraternidade, igualdade, trabalho, sindicato, movimento, feminismo, antirracismo, etc. Estigmas surgem durante o processo de fascistização onde a liberdade perde o sentido público para justificar o desfile do livre mercado, atrás do trio elétrico de falsos patriotas em prol de um status submisso ao Consenso de Washington.

O imaginário comum é reduzido ao desejo dos mais fortes economicamente; não remete à vontade geral de construção dos meios de socialização da liberdade para o conjunto da cidadania. Este é um direito válido somente para os que exercitam o mando nas relações sociais de desigualdade, como o policial numa blitz na periferia, o patrão com o empregado, o motorista de caminhão na estrada ou o cafetão com as prostitutas nas ruas. Liberdade de expressão vira liberdade aos abusos de autoridade.

O ex-presidente adula o setor econômico mais nefasto ao meio ambiente (o agronegócio); se fosse ainda mandatário não aprovaria a demarcação do solo indígena. Políticas impúblicas se convertem em pseudopolíticas públicas. A terra antes garrida abriga agora soja para exportação. Os bosques têm mais mortes de trabalhadores rurais sem posses; do seio mater escorre a mercadoria, não o humanismo. A agricultura familiar que alimenta os conterrâneos é maltratada. Uma lógica colonial-escravista mantém o país na condição subalterna do prosaico posto comercial de conveniências.

O meliante ao descrever que “pintou um clima” ao abordar meninas venezuelanas acompanhado de seguranças, em Brasília, reatualiza o racismo do senhor da casa grande prestes a estuprar a escrava na cozinha, como no romance Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro. Ao alegar que não violenta uma mulher “porque é feia” reitera a tradição sexista do patriarcado. Ao furtar as joias da União reproduz a primitiva ação extrativista da colonização. O antipatriotismo do atraso continua a marcha a ré do neocolonialismo que afasta o Brasil de si mesmo, no mapa-múndi civilizacional.

A falta de empatia com o sofrimento dos humildes; a misoginia; a agressão ao conhecimento e à ciência condensada no estrangulamento financeiro das universidades; a composição ministerial com personagens que odiavam as áreas às quais eram indicadas – educação, saúde, meio ambiente, relações exteriores; não eram um acaso. Eram parte do desmonte do Estado de bem-estar social iniciado em 2003, e interrompido com o impeachment de 2016. A obrigatoriedade do hino nacional em partidas do Brasileirão deve-se à lei de 2016, do golpista Michel Temer. O criminoso volta à cena do crime, para banalizar a realização da cerimônia e arrefecer a indignação cívica que protege a democracia.

A extrema direita sequestra o hino nacional e faz refém o amarelo nas manifestações em favor do regime de exceção autoritário, em substituição do Estado de direito democrático; enquanto uma corrupta CBF vende camisas à classe média forjada na Rede Globo. O nacionalismo carnavalesco não propõe o desenvolvimento autóctone da nação e nem a participação popular como método de governo. Ao contrário, o líder bate continência à bandeira dos EUA. O ridículo só não é maior do que a ignomínia do sabujo do rentismo e do trumpismo que fez da política a negociata da famiglia.

Eduardo Bolsonaro imita o nonsense do chefe do clã, catapultado do esgoto parlamentar a líder do fascismo nativo. Mas a pantomima ruiu com os aspirantes (Tarcísio, Caiado, Ratinho Jr, Zema) à posição de Kingfish (Peixe-rei). A quinta coluna quebrou a cara. A adesão ao tarifaço de Donald Trump teve efeito reverso. Deu visibilidade ao presidente Lula – o defensor da soberania nacional, empresas, empregos contra a arrogância da metrópole imperial. Aumentou o apoio governamental. Escancarou-se a vassalagem antipatriótica do nacionalismo ultradireitista. A demagogia nas redes sociais cedeu à verdade e o cortejo necropolítico flopou na avenida. “Abaixo, abaixo os traidores!”.

Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.

Brasil NÃO é dos brasileiros, por Michael França

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Loteria do nascimento define quem será forasteiro dentro das próprias terras

Michael França, Ciclista, vencedor do Prêmio Jabuti Acadêmico, economista pela USP e pesquisador do Insper. Foi visiting scholar nas universidades de Columbia e Stanford.

Folha de São Paulo, 05/08/2025

Nascer em uma família rica ainda é um dos maiores determinantes para continuar tendo riqueza material no futuro. Não porque essas pessoas, ou ao menos parte delas, não trabalhem duro. Mas porque o jogo da vida começou a pavimentar seus caminhos antes que seus pés tocassem a estrada.

Agora, veja bem. A narrativa de vencer por conta própria é bonita. Todos nós queremos acreditar que, com esforço e dedicação, podemos alcançar nossos objetivos. Essa é uma crença poderosa e necessária. Mas ela não pode alimentar uma mentira reconfortante. Porque, se fecharmos os olhos para o terreno desigual onde tantos brasileiros começam a vida, não estaremos apenas traindo o ideal de justiça. Estaremos adiando o dia em que o Brasil se tornará a grande nação que deveria ser.

O país, como está moldado hoje, é uma fábrica de destruição não só do potencial humano como também de seu próprio povo. Nenhum país consegue crescer de forma sustentada quando sua população está presa em um sistema de castas disfarçado de instituições livres. Nenhuma economia será forte se continuar impedindo que grande parte das capacidades de seu povo se realize.

Meu novo livro busca sintetizar, em uma linguagem acessível, parte desse nosso drama. A obra “A Loteria do Nascimento”, escrita em parceria com o sociólogo Fillipi Nascimento, tem um subtítulo tão provocador quanto a própria obra: “Filha do porteiro termina a universidade, mas não alcança o filho do rico”. O argumento central é que educação não basta. Há uma engrenagem social e econômica hereditária que favorece os mesmos de sempre, sempre. E, se quisermos construir um Brasil à altura de suas promessas, precisamos quebrar essa engrenagem.

Esse livro não é um manifesto contra as elites. Ele é um chamado à consciência. Ele não prega ressentimento. Ele propõe responsabilidade. E isso é o que líderes de verdade fazem. Nós encaramos os fatos com coragem. Nós reconhecemos as falhas do presente, mas trabalhamos por um futuro diferente.

Eu acredito. E acredito com força. Acredito que nossa realidade pode mudar. Mas a mudança só vem quando cada um de nós entende que tem responsabilidades individuais e coletivas. E que não dá mais para aceitar um país onde o destino de milhões está escrito antes mesmo de aprenderem a escrever o próprio nome.

Essa é a nossa missão. Abrir caminhos. Destruir as divisões. Esvaziar as trincheiras que nos separam. Desfazer heranças que aprisionam. Garantir que a determinação seja recompensada, não sufocada. Que a loteria do nascimento não determine o tamanho dos sonhos. Que o Brasil seja mais do que uma promessa para poucos e se torne, de fato, um lar para todos.

E, para isso, não precisamos acender um holofote. Precisamos, apenas, que cada um de nós, onde quer que esteja, acenda a sua pequena luz. E a deixe brilhar.

 

Trump está vencendo? por Samuel Pessoa

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Republicano tem conseguido fechar acordos comerciais favoráveis a ele

Samuel Pessoa, Pesquisador do BTG Pactual e do FGV IBRE e doutor em economia.

Folha de São Paulo, 03/08/2025

Trump tem fechado acordos em que os Estados Unidos impõem uma tarifa de importação e a contraparte não tarifa os americanos. Foi assim com o Japão e com a União Europeia.  É necessário sabermos os detalhes dos acordos, as letras miúdas, mas tudo sugere que há, sim, certa assimetria. Somente com a China parece não haver essa discrepância.

Esse desfecho não é surpreendente. Pela escala da economia americana e por ter um déficit estrutural, a perda de bem-estar resultante de uma guerra comercial é menor para os EUA.

As simulações sugerem que, em uma guerra comercial aberta —todos contra todos—, as perdas dos EUA são bem menores do que as dos demais países. Os EUA perdem em bem-estar o equivalente a 1% do consumo. A América do Sul perde 3%, e a Europa, de 7,5% a 10%. A China perde de 13% a 20%.

Os autores do estudo, publicado no volume 4 (de 2014) do Handbook of International Economics, consideram, em suas simulações, a América do Norte conjuntamente. O estudo é rico o suficiente para considerar competição imperfeita e a existência de cadeias globais de valores, além de heterogeneidade entre as empresas dentro de um mesmo país.

O ponto importante a reter é que os EUA têm um maior poder de barganha. E o está exercendo. É essa a explicação para os acordos com o Japão e a União Europeia.

O maior poder de barganha, no entanto, parece que não tem funcionado para a China. Também esperado. O poder de barganha segue da perda de bem-estar em caso de guerra tarifária aberta. Ora, perda de bem-estar é uma ameaça crível entre democracias. Não é o caso chinês. Xi não terá de enfrentar eleições nos próximos anos. Merkel já havia incorrido no mesmo erro com Putin: vínculos comerciais não moderam ditadores.

Trump também tem sido bem-sucedido em seu empenho em desvalorizar o dólar. A ver os efeitos de longo prazo que colherá. Mas em um primeiro momento ajuda na competitividade da economia, um dos seus objetivos mais importantes.

Então podemos afirmar que Trump está ganhando? Penso que não. Há sinais de que a desaceleração chegou. O crescimento da economia americana no primeiro semestre foi de 0,6%, ou 1,2% se anualizarmos a taxa. A economia antes de Trump crescia a 2,5% a 3%.

Parte da desaceleração é fruto da política monetária que finalmente parece bater na demanda. O crescimento do consumo no primeiro semestre foi de somente 1%, já considerando a taxa anualizada. Antes de Trump, rodava em média a 3%.

De qualquer forma, o choque inflacionário fruto da política tarifária, que começa a aparecer nas estatísticas —de março a junho a inflação ao consumidor acumulada em 12 meses cresceu 0,3 ponto percentual—, atrasará e reduzirá a intensidade do ciclo de queda de juros

Mas o mais importante é que a trumponomics, em prazos maiores, matará a força do crescimento americano das últimas décadas. A taxa de crescimento da produtividade, maior do que na Europa, deverá cair como consequência da desglobalização induzida por Trump. O ataque às universidades somente agravará a longo prazo o desempenho da produtividade americana.

Para a esquerda brasileira, parece-me que sobram duas lições. A primeira é que ninguém ganha quando o presidente da República ataca diretamente o presidente do Banco Central.

Em segundo lugar, vale lembrar todo o ruído e a campanha contra a globalização capitaneada pela esquerda nas últimas décadas. Tanto se pediu que apareceu um líder empenhado em realizar o desejo da esquerda brasileira. Não parece ser positivo para o Brasil ou para o mundo.

 

 

O neoliberalismo morreu? por Eleutério F. S. Prado

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Por Eleutério F. S. Prado – A Terra é Redonda – 04/08/2025

O fascismo substitui a ordem econômica individualista e concorrencial por uma ordem corporativa e cooperativa integral: ao invés de uma ditadura do proletariado, o fascismo cria uma ditadura explícita do capital em que o comando da acumulação está centralizado politicamente

1.

A questão é bem controversa. Segundo Nancy Fraser, o neoliberalismo não morreu; contudo, passou da fase progressista para uma fase reacionária (veja-se a nota Depois do neoliberalismo). Já para Branko Milanovic o mundo está entrando em uma nova era, mas o neoliberalismo não chegou ao fim. Segundo ele, os países ricos adotam agora uma política com dupla face: abandonam a globalização neoliberal internacionalmente, mas continuam a promover um projeto neoliberal internamente (veja-se a nota O que vem depois da globalização?).

Há, contudo, autores que contestam essas teses e que afirmam do neoliberalismo que ele já faleceu. Para eles, o passamento dessa ideologia indutora de práticas políticas em prol do capital, que dominou e moldou o capitalismo a partir dos anos 1980 do século passado, já aconteceu.

Veja-se o que diz, por exemplo, Stavros Mavroudeas num artigo recém-publicado [1]: “Existe ainda hoje uma presunção generalizada de que o neoliberalismo continua sendo o paradigma político-econômico dominante no Ocidente, mas também na maior parte do mundo. Este artigo argumenta que isso não é verdade e que, desde o início do século XXI, ele caiu em desgraça e foi substituído pelo igualmente conservador neokeynesianismo, o qual adota um novo consenso macroeconômico. O sinal fundamental dessa transição é o amplo e crescente intervencionismo econômico estatal, o qual está pontificando até mesmo nos países que eram considerados bastiões do paradigma anterior”.

Como ele chega a essa conclusão? Ora, é preciso prestar atenção ao modo específico como define o neoliberalismo. Como se pode deduzir de sua tese, para ele, o neoliberalismo caracteriza-se por uma crença na eficiência e na eficácia dos mercados e, assim, por uma rejeição in limine da intervenção estatal como forma corrigir e de suplementar o modo – supostamente espontâneo – como funcionam.

Eis como ele adianta essa abordagem: “A tese fundamental [do neoliberalismo] é que os mercados livres alocam recursos de forma eficiente, autocorrigem os seus eventuais desequilíbrios e, assim, tendem a alcançar o bem-estar social ideal. Em contraste, a intervenção e a regulação estatais são encaradas geralmente como disruptivas porque a regulação desfigura os mercados e corrompe a sinalização de preços, porque o investimento público desloca o investimento privado e porque as empresas públicas são tecnologicamente ineficientes”.

2.

O paradigma que tomou o lugar do neoliberalismo vem a ser o neokeynesianismo, que, segundo ele, é ainda conservador e se pauta por políticas que prejudicam os trabalhadores. Se o primeiro se inspirava em doutrinas libertárias propagadas pelas teorias neoclássica e neo-austríaca, o segundo se inspira numa doutrina que denomina de social-liberalismo.

Para justificar a sua tese, Stavros Mavroudeas indica que os governos, a partir da virada do século XX para o XXI e mais especificamente após a crise de 2008, passaram a se utilizar da política fiscal para tentar tirar o sistema econômico do estado de estagnação. Implementaram, ademais, outros modos de intervenção como as políticas industriais e de subsídios a setores específicos. Distribuíram dinheiro para os cidadãos carentes na crise provocada pela pandemia do coronavírus.

Em particular, empregaram de modo intenso uma política monetária ativa que ficou conhecida como relaxamento monetário. Ora, todas essas políticas foram utilizadas sem remorso nos EUA, na China, assim como na Europa, mesmo se elas contrariavam a doutrina neoliberal. Ademais, com a eclosão da crise de 2008 e com o fim do avanço da globalização, as relações interestatais mudaram de padrão: ao invés de serem meramente competitivas, elas se tornaram amplamente conflitantes.

“O esmorecimento da acumulação capitalista em quase todas as principais economias capitalistas levou ao agravamento das rivalidades imperialistas. E isso veio junto com políticas ainda mais intervencionistas. Tanto o primeiro governo Trump, quanto o governo Biden se empenharam em fazer a política industrial (…) visando manter a liderança tecnológica. Não menos importante, o protecionismo voltou com tudo nesse governos (…) já que ele é uma arma importante na condução desses conflitos”.

Se a tese de Stavros Mavroudeas for correta – mais a frente se mostrará como se pode contestá-la – torna-se necessário explicar por que muitos autores sustentam que o neoliberalismo não morreu, que ele se transformou, mas que sua essência persiste sob uma nova aparência.

Ora, ele próprio fornece uma resposta para essa indagação hiperbólica:

“Tem-se de fato uma questão intrigante. Apesar das volumosas evidências em contrário, por que persiste essa visão errônea sobre a persistência da hegemonia neoliberal? (…) Esse fato pode ser atribuído a dois fatores. O primeiro deles diz que o termo é frequentemente usado como leitmotiv [2] e que, por isso, é mal definido, está sujeito a entendimentos muito vagos e problemáticos. O segundo fator (relacionado ao primeiro) vem do abandono da política de classe pela esquerda e de sua subserviência aos conflitos internos da burguesia. Isso produziu amplas coalizões antineoliberais de natureza interclasse e sob hegemonia burguesa, o que essencialmente ajudou a ascensão do neokeynesianismo conservador”.

Veja-se agora que conclusão a que chega esse autor advém do modo como ele próprio define o neoliberalismo e da maneira como raciocina a partir dessa definição. É bem patente que ele pensa ao modo do entendimento e que parte de um fundamento primeiro para construir a sua argumentação.

É de se notar, também, que ele escolhe uma definição estritamente econômica do neoliberalismo; eis que, para ele, essa forma política intervém no sistema econômico estritamente para promover o mercado. Contra essa tese, argumenta-se já aqui que as formas de intervencionismo apontadas não estão em contradição com o neoliberalismo quando este é entendido na perspectiva da apresentação de O capital.

Se pensa assim, é porque julga que a mudança pode ser apreendida apenas política econômica, ou seja, como uma mudança gestada na arena intelectual que se convencionou chamar de “economics”: “O neoliberalismo” – segundo ele – “destronou o keynesianismo após a crise dos anos 1990 e restaurou a teoria neoclássica como a ortodoxia na economia burguesa”.

Ora, a teoria neoclássica em sua versão walrasiana, como ele mesmo também observa, serviu também de base para criar uma versão domesticada do keynesianismo, a qual dominou o pensamento econômico no pós-guerra. A intervenção estatal se tornou uma constante após o fim do liberalismo.

3.

Logo, o fulcro da questão não se encontra aí, ou seja, no modo como se articula e se dispõe a retórica dos economistas que trabalham para a prosperidade – e para as crises – do modo de produção capitalista. O neoliberalismo não pode ser compreendido da perspectiva da política econômica em sentido estrito. Na verdade, ele, assim como o keynesianismo que o precedeu, precisa ser enxergado como política do Estado.

Mais especificamente, é preciso compreender como o Estado se esforçou para “suprimir” a luta de classes nas condições históricas do período que se seguiu ao fim da II Guerra Mundial, após a crise de lucratividade dos anos 1970 e após a crise financeira que eclodiu em 2007-8. Para tanto, é preciso pensar o Estado como uma instância do modo de produção capitalista.

Ora, as classes e o Estado devem ser compreendidos por meio de uma extensão da apresentação dialética do modo de evolver do sistema capitalista tal como está posto sobretudo em O capital. Marx pensa as classes como componentes da estrutura social contraditória do modo de produção. Contudo, elas não aparecem como tais, em seus antagonismos, na circulação de mercadorias. Aí, aparecem disfarçadas pelo modo como se apropriam de parte do valor produzido pelo trabalhador assalariado.

No final do livro III de O capital, ele distingue três grandes classes, a dos proprietários de terra que recebem renda da terra, os proprietários do capital que recebem lucros ou juros, e os proprietários da força de trabalho que recebem salários.

Como se sabe, Marx previu a necessidade de explicar o Estado a partir das relações sociais contraditórias que definem as classes. Na verdade, mostrou-se necessário explicá-lo a partir da contradição entre a aparência e a essência do modo de produção. Na essência desse sistema, tem-se classes e elas se dispõem estruturalmente por meio das contradições que as definem como tais.

Na aparência não existe nem contradição nem antagonismo entre as classes; há apenas contratantes iguais que diferem entre si pelo modo como se inserem nos mercados para “ganhar a vida”, ou seja, para se apropriarem de parte do produto social.

Assim, a luta de classes aparece em primeiro lugar, não como tal, mas como disputa pelo ganho de renda, pela apropriação da porção maior possível do valor gerado na produção capitalista. Se, por exemplo, o salário real aumenta por causa da luta dos trabalhadores, isso diminuirá necessariamente a lucratividade do capital.

Mas ela se mostra plenamente apenas quando a classe trabalhadora passa a contestar a propriedade privada dos meios de produção. Ora, a dinâmica competitiva inerente ao capitalismo, mesmo em sua forma meramente econômica, geraria imediatamente o caos se não fosse contida dentro de certos limites pela atuação do Estado.

O Estado em sua forma clássica, ou seja, liberal, diz Ruy Fausto, “guarda o momento da igualdade dos contratantes”, ou seja, aquilo que se apresenta imediatamente na circulação de mercadorias. Afirma, assim, aquilo que está na aparência do modo de produção, “negando [em consequência] a desigualdade das classes”, ou seja, a sua essência, a verdadeira natureza do modo de produção capitalista. [3]

Assim, o Estado como tal, contraditoriamente, afirma igualdade dos contratantes para que a desigualdade subjacente das posições sociais contraditórias continue existindo.

As formas do Estado e, assim, de sua atuação econômica, social e política – liberalismo, keynesianismo, neoliberalismo, fascismo, iliberalismo etc. – devem ser compreendidas, portanto, nessa perspectiva. Para fazê-lo, é preciso perguntar: como cada uma desses modos de atuação do Estado põe a unidade do sistema – ou seja, dá forma à comunidade ilusória ou nação –, ocultando assim as contradições de classe que, assim, podem subsistir e prosperar levando adiante o próprio modo de produção.

4.

O liberalismo toma o sistema econômico como uma ordem natural, ou seja, como uma ordem instituída que fora criada espontaneamente (ou seja, sem propósito) e que se impõe aos homens como se fosse natureza, para em sequência afirmar a igualdade dos contratantes, zelar pela liberdade econômica e garantir a propriedade privada.

Se o pensamento prático e político liberal está fundado numa suposta igualdade dos contratantes, aqueles que vem depois dele estarão fundados nas meras diferenças entre as classes sociais, tal como aparecem na esfera da circulação de mercadorias.

A social-democracia e o keynesianismo tomam o sistema econômico como uma ordem instituída que pode ser devidamente reformada para conter as crises econômicas e políticas. Reconhecem, assim, as diferenças de classe tal como aparecem, julgando que o Estado precisa regular as relações entre os capitalistas e os trabalhadores para evitar, em última análise, que esses últimos se revoltem e abalem o sistema. Tomando ciência da gravidade das crises e de seu caráter disruptivo, ponderam que o Estado deve minorar o desemprego, acelerar o crescimento econômico evitando as flutuações econômicas.

Já o neoliberalismo toma o sistema econômico como uma ordem moral, [4] ou seja, como uma ordem espontânea criada pelos homens não intencionalmente que deve ser, que precisa continuar existindo. Não a considera, no entanto, como natural tal como o faz o liberalismo já que, em princípio, pode ser regulada, alterada e até mesmo suprimida.

Como julga que essa ordem está na origem da civilização e do progresso alcançado na época moderna, considera que o Estado deve atuar para conservá-la frente aos projetos construtivistas, sejam eles reformistas ou revolucionários que supostamente a corrompem e a destroem. Para os neoliberais é dever do Estado promover a concorrência em todos os âmbitos da sociedade, privatizar os bens públicos, fomentar o empreendedorismo.

Frente a esse quadro, como pensar os extremismos do século XX e do século XXI, os quais tem pelo menos um atributo em comum, o desprezo pela democracia liberal. [5]. Ora, o fascismo histórico surge da falência do liberalismo e da ameaça da revolução socialista.

Para garantir a sobrevivência do capitalismo, substitui a ordem econômica individualista e concorrencial, mas também classista, por uma ordem corporativa e cooperativa integral em que os indivíduos e as classes estão subsumidos como membros de uma comunidade mística formada pelo Estado. Ao invés de uma ditadura do proletariado, o fascismo cria uma ditadura explícita do capital em que o comando da acumulação está centralizado politicamente.

5.

Já o extremismo no século XXI surge da crise do neoliberalismo que se mostra como estagnação econômica e niilismo político generalizado e, assim, como uma deslegitimação implícita do próprio capitalismo. No entanto, ao contrário do fascismo, ele não contraria a racionalidade normativa que se expressa como individualismo, império da forma mercadoria e concorrência, ou seja, ele não deixa de ser neoliberal.

Contudo, mesmo se promove a racionalidade econômica mantendo-se na tradição liberal, ele não se conforma às normas da democracia liberal e se assume às vezes francamente como politicamente iliberal. Por isso, apesar de ser reacionário, não é fascista ou neofascista. [6]

Ora, o neoliberalismo, que ascendeu a partir dos anos 1980 do século passado, buscava legitimidade garantindo prosperidade econômica em geral, mas também acolhendo as demandas progressistas não classistas, tais como aquelas vindas do gênero, da cor da pele, cultura e da nacionalidade.

Ora, essas promessas se frustraram porque as políticas do neoliberalismo são inerentemente viesadas e favoráveis aos capitalistas em geral. Ora, aquele que o sucederá não divergirá dele nas grandes questões de política econômica interna, mesmo se na externa ele vai optar pelo nacionalismo e pelo protecionismo.

Conforme o neoliberalismo progressista perdeu legitimidade, ele abriu espaço para uma forma mais reacionária de neoliberalismo. Eis que o extremismo que vem tentando suceder o primeiro busca se associar à tradição conservadora que se caracteriza pela defesa de uma ordem social hierárquica que consolida formas de desigualdade, não se acanha de restringir a liberdade e de santificar a propriedade.

Daí que busque se legitimar por meio do patriarcalismo, da homofobia, do racismo e da religiosidade reacionária – e até mesmo do supremacismo racial aberto ou disfarçado.

Em suma, ao invés da tese de Stavros Mouvradeas antes apresentada e julgada falsa, fica-se aqui com a tese de Nancy Fraser que distingue um neoliberalismo progressista em crise e um neoliberalismo conservador ou reacionário em ascensão. [7]

Endossa-se aqui, também, a sua avaliação política: em ambos os casos, segundo ela, está-se diante de formas de organização social contraditórias, profundamente predatórias e instáveis.

*Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Da lógica da crítica da economia política (Lutas Anticapital).

Notas

1 Mavroudeas, Stavros – Is neoliberalism still the dominant economic paradigm in the west today? World Marxist Review, 2025, vol. 2, nº 2, pp. 99−110.

2 Leitmotiv é uma palavra do idioma alemão que expressa uma ideia ou fórmula que reaparece de modo constante em obra literária, discurso publicitário ou político, com valor simbólico e para expressar uma preocupação dominante.

3 Fausto, Ruy – Sobre o Estado. In: Marx: Lógica e Política, tomo II. Editora Brasiliense, 1987.

4 Ver Prado, Eleutério F. S. – “(Neo)liberalismo: da ordem natural à ordem moral. Outubro, 2009, nº 18, pp. 149-174.

5 Veja-se esse artigo bem esclarecedor: Cox, Lloyd e O’Connor, Brendon – Trumpism, fascism and neoliberalism. Journal of Social Theory, 2025 (open access journal).

6 Aqueles que usam esses termos não são rigorosos; eis que raciocinam por analogia a partir das relações externas entre os fenômenos e, assim, caem no que Marx denominou de economia vulgar.

7 Fraser, Nancy – Do neoliberalismo progressista a Trump – e além. Política & Sociedade, vol. 17 (40), set. e dez. de 2018.

Uma trupe de hipócritas, por Lygia Maria

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Trump finge que se importa com democracia, bolsonaristas fingem que não admiram ditadura e petistas fingem que defendem liberdade de expressão

Lygia Maria, Mestre em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.

Folha de São Paulo, 04/08/2025

A acepção moderna da palavra “hipócrita” é pejorativa: a pessoa finge possuir virtudes e crenças que não tem ou exige que os outros façam aquilo que ela não faz.

Sua origem é “hupokrités”, usada na Antiguidade grega para designar quem trabalha com interpretação (ator). O termo não era adequado para se referir a oradores e autoridades, já que a arte do disfarce não combina com a honestidade exigida na esfera pública.

O noticiário político na última semana, porém, foi dominado por hipócritas. Virou teatro político.
A começar por Donald Trump, que vestiu a fantasia de cavaleiro da liberdade em defesa da democracia. Dos 69 países sobretaxados na sua cruzada comercial, o Brasil foi o mais impactado porque, segundo o americano, o julgamento de Jair Bolsonaro no Supremo é perseguição ideológica.

Ora, na Venezuela o que mais tem é preso político, mas sua tarifa ficou em 10%, ante 50% no Brasil —e a petroleira Chevron ainda foi liberada para firmar parceria com estatal da ditadura chavista.

A Casa Branca também impôs sanções financeiras a Alexandre de Moraes, ministro do STF. Para isso, valeu-se da Lei Magnitsky, norma aplicada contra graves infrações de direitos humanos que nunca foi usada contra juízes cujas decisões violam a liberdade de expressão —motivo alegado para enquadrar Moraes.

Trata-se de interpretação elástica que só serve para reduzir a credibilidade da Magnitsky.

Se Trump está tão preocupado com direitos humanos, por que não usa a lei contra Nayib Bukele, que desde 2022 governa El Salvador sob estado de exceção e viola liberdades civis? Em vez disso, deporta imigrantes para um megapresídio de Bukele e recebe visita do caudilho no Salão Oval.

Enquanto isso, bolsonaristas aplaudem as medidas, incitadas pela família Bolsonaro, mesmo que o ex-presidente e muitos de seus apoiadores sejam saudosistas da ditadura militar.

Já petistas, que se arvoram a epítome da defesa da democracia e do Estado de Direito, respaldam abusos cometidos por Moraes contra a liberdade de expressão e o devido processo legal.

Um espetáculo de hipocrisia.

 

Bolsonarismo vive sua pior crise, por Camila Rocha

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‘Sonho’ de ex-presidente virou pesadelo, e prisão é questão de tempo

Camila Rocha, Doutora em ciência política pela USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.

Folha de São Paulo, 04/08/2025

Em abril de 2015, Jair Bolsonaro se desfiliou do Partido Progressista (PP) com o “sonho” de se candidatar à Presidência. Dez anos depois, o movimento político que o levou ao poder vive sua pior crise.

A crise possui três frentes. A primeira é institucional. Além de estar inelegível, Bolsonaro aguarda o resultado do julgamento por tentativa de golpe com uma tornozeleira eletrônica. Sua prisão é questão de tempo.

Carla Zambelli, uma de suas apoiadoras mais fiéis, foi abandonada à própria sorte. Presa pela Justiça italiana, aguarda a decisão sobre sua extradição para o Brasil. Caso regresse, deve enfrentar uma pena de dez anos por crimes relacionados à invasão do sistema do Conselho Nacional de Justiça.

Eduardo Bolsonaro, ao tentar salvar o pai, apenas agravou a situação. Caso retorne ao Brasil, deve ser condenado por crimes como obstrução de investigação de organização criminosa e tentativa de abolição violenta do Estado democrático de Direito, entre outros.

Nikolas Ferreira enfrenta um processo judicial que pode torná-lo inelegível. De acordo com denúncia do Ministério Público, o deputado encabeçou, ao lado de Bruno Engler (PL), uma campanha coordenada de desinformação contra o então prefeito e candidato à reeleição em Belo Horizonte, Fuad Jorge Noman Filho, que faleceu pouco tempo depois das eleições.

Ricardo Salles, um dos cinco deputados federais mais votados em 2022, ao lado de Nikolas, Zambelli e Eduardo Bolsonaro, abandonou o PL e foi para o Partido Novo. No entanto, o processo por contrabando de madeira, no qual é réu, foi reaberto e agora tramita no STF sob relatoria de Alexandre de Moraes.

As redes sociais, outra frente em que o bolsonarismo parecia imbatível, não estão rendendo como antes. Narrativas como a “anistia” para Bolsonaro perderam poder de mobilização. E agora o acúmulo de derrotas fragilizou o poder midiático do bolsonarismo.

Incapazes de se posicionar a favor de pautas populares como a defesa da escala 6×1 e a taxação dos super-ricos, a última aposta dos bolsonaristas para tentar animar as bases fracassou de modo retumbante. Segundo pesquisa da Quaest, a aplicação da Lei Magnitsky contra o ministro Alexandre de Moraes (STF) foi criticada em 60% das menções nas redes e aprovada apenas em 28%.

A crise também ocorre nas ruas. O número de bolsonaristas dispostos a ir às ruas vem oscilando para baixo desde o início do ano.

De acordo com estimativas do Monitor do Debate Político no Meio Digital do Cebrap, no dia 25 de fevereiro de 2024, o ato encabeçado por Jair Bolsonaro na avenida Paulista teve um pico de 185 mil pessoas. No dia 6 de abril, no mesmo local, o evento “Anistia Já” reuniu 44 mil pessoas. Meses depois, no dia 29 de junho, compareceram ao último ato apenas 12 mil pessoas.

Em 10 de julho, lideranças de esquerda conseguiram reunir um número maior na avenida Paulista, 15 mil pessoas. Foi a primeira vez que a direita perdeu da esquerda nas ruas desde 2015.

Mas é justamente nas ruas que os bolsonaristas procuram reverter a crise. Neste domingo (3), a estimativa foi de 37,6 mil na Paulista. Encher novamente praças e avenidas brasileiras pode demonstrar que suas bases estão abatidas, mas não mortas.

Resta saber se será suficiente para impactar as eleições de 2026 e impedir que o “sonho” de Bolsonaro vire um pesadelo para todos aqueles que o apoiam.