40 anos de incertezas por Marcos Paulo Pereira Filho

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Marcos Paulo Pereira Filho – A Terra é Redonda – 27/03/2025

Com a ascensão dos movimentos de extrema direita, estamos diante de uma crise civilizacional que expressa o fracasso da Nova República de instaurar uma modernização com inclusão social

“Oito horas e danço de blusa amarela / Minha cabeça talvez faça as pazes assim / Quando ouvi a cidade de noite batendo as panelas / Eu pensei que era ela voltando pra / Minha cabeça de noite batendo panelas / Provavelmente não deixa a cidade dormir / Quando vi um bocado de gente descendo as favelas / Eu achei que era o povo que vinha pedir / A cabeça dum homem que olhava as favelas / Minha cabeça rolando no Maracanã / Quando vi a galera aplaudindo de pé as tabelas / Eu jurei que era ela que vinha chegando” (Chico Buarque, Pelas Tabelas).

Introdução

No meio da ebulição dos movimentos autoritários de extrema direita que buscam ejetar o sistema democrático da sociedade brasileira, a Nova República e, portanto, a redemocratização, fizeram seu quadragésimo aniversário nesse mês de março.

Em inúmeros jornais físicos e virtuais, a celebração do período democrático mais longo que o país já conheceu vem carimbado com as análises dos “avanços”, “retrocessos” e “desafios” que o Brasil enfrentou desde a posse de José Sarney. Para além de qualquer compreensão maniqueísta do processo social, é significativo para um país constituído pelo trabalho escravo a organização de uma sociedade de classes lastreada no voto popular.

Do jeitão brasileiro, seus arcaísmos continuaram a se combinar com seus aspectos modernos. Que venha a democracia! Mas parcelada, com anistia aos torturadores “do passado”; Que o povo trabalhe! Mas parcialmente, com metade da força de trabalho afundada na informalidade e nos ilegalismos do cotidiano.

A construção da Nova República, apesar de seus significativos avanços políticos e sociais, se caracteriza, no geral, pelo fracasso da tentativa de resolver os problemas da formação nacional de um país na periferia do capitalismo. A busca pela organização de um Estado nacional fundado na democracia de massas, característico dos países centrais no pós-guerra, foi suspenso pelo arranjo entre proprietários nacionais e as novas lógicas de reprodução do capitalismo globalizado.

O problema da formação nacional

Durante a segunda metade do século XX, parte importante da intelectualidade nacional estava preocupada em buscar compreender as particularidades da formação nacional na periferia do capitalismo. Partindo de um método de comparação com o desenvolvimento das forças produtivas nos países centrais, a dúvida girava em torno do por que não atingimos o nível de sociabilidade capitalista característico desses.

O problema da formação estava posto como resposta ao problema nacional. Desde sua criação como colônia, o país se estabelece pelo uso do trabalho escravo em uma economia agrário-exportadora associada ao desenvolvimento do capitalismo em escala mundial, servindo como produtora de valor que seria realizado externamente, nas metrópoles europeias. Aí, Caio Prado Jr., com seu sentido da colonização, e, posteriormente, Fernando Novais, complementando sua leitura, apresenta as origens do “atraso” brasileiro.

O uso do trabalho cativo no período colonial dificultava a formação de um mercado interno nos moldes clássicos de cisão entre campo e cidade. Se na realidade europeia a utilização do trabalho livre forjou uma sociedade baseada nos princípios da divisão social do trabalho industrial, com a substituição gradual da mais-valia absoluta pela mais-valia relativa, aqui a mão de obra escravizada condenava o país às suas características agrícolas fundamentadas na baixa mecanização do trabalho.

Com as transformações na acumulação capitalista mundial a partir do século XIX e sobretudo durante a primeira metade do século XX, a formação social brasileira passou por transformações que reorganizaram seu tecido produtivo. Se até meados da década de 1930 a produção agrícola voltada para exportação servia para formação das divisas internacionais que realizaria o pagamento das manufaturas importadas, a partir das transformações políticas ocorridas na época, o país inicia um processo modernizador que buscava, ao estimular a produção industrial interna, alcançar os padrões de consumo e infraestrutura da Europa e Estados Unidos.

O desenvolvimentismo, versão latino-americana do desenvolvimento capitalista fordista-keynesiano, foi a chave que impulsionou a modernização periférica no Brasil que buscava superar sua condição de subordinado para administrador do sistema mundial produtor de mercadorias.

Francisco de Oliveira, na década de 1970, no seu ensaio Crítica à razão dualista, entretanto, apresentou como esse período de modernização conservou o caráter periférico da sociedade brasileira. Para ele, o regime de acumulação determinado pela indústria, que intensificou a produção manufatureira no Brasil, pode se realizar exatamente pela associação do “atraso” com o “moderno”, com esse estruturalmente repondo aquele e vice-versa. A reprodução capitalista brasileira se determinaria por uma altíssima concentração de renda e por particularidades em relação ao modelo clássico, europeu, de desenvolvimento capitalista.

Aqui, a regulação dos fatores de produção, notadamente a formação do trabalho assalariado, seriam induzidos pelo Estado ditatorial varguista que buscava impulsionar uma acumulação industrial, formalizando os trabalhadores dentro de uma carta trabalhista e dessa maneira regulando o exército de reserva que permitiria uma dada acumulação. Para além disso, a associação entre produções realizadas pelos trabalhadores para seu autoconsumo levariam a diminuição dos custos da reprodução da sua força de trabalho.

Dentre elas, se caracterizaria a autoconstrução, na qual os operários, mediante mutirões, construíram suas próprias casas, retirando dos custos do salário a necessidade de se acessar a moradia urbana. O padrão de acumulação da indústria também demandava uma agricultura extensiva, que permitiria o rebaixamento dos salários urbanos, pelos custos baixíssimos de reprodução da força de trabalho na agricultura, proporcionando alimentos baratos que seriam consumidos pelos novos proletários. A agricultura, também, serviria como constante exército de reserva, pelas levas de migrantes que se amontoavam na cidade buscando acessar o trabalho industrial. Nesse sentido, para o sociólogo, o capitalismo no Brasil se reproduziria de forma anômala, seria um ornitorrinco, aquele que é moderno, mas não possui as qualidades deste.

A retomada da democracia

Com o esgotamento do modelo desenvolvimentista no começo da década de 1980 e as transformações na economia mundial, o regime ditatorial militar foi substituído, de maneira gradual e tutelada, pelo regime democrático que tinha sido suspenso pelos militares em 1964. Com as mobilizações populares das Diretas Já! e depois dos movimentos sociais durante a escrita da Constituição Cidadã promulgada em 1988, houve uma animação em torno da construção de um Estado de Bem-estar na periferia do capitalismo. Passados quarenta anos desde esse período, o estágio atual que se encontra os arranjos sociais e econômicos do país nos traz reflexões sobre as dificuldades da tentativa de formar uma sociedade coesa em torno dos princípios democráticos e cidadãos.

A Nova República surgiu com políticas adotadas durante o regime civil-militar brasileiro que foram intensificadas nos últimos anos e atualmente se apresentam na forma de crise. Durante a década de 1970, por exemplo, os militares possuíam um projeto de ocupação autoritário da região Norte do país que se revelava estar despreocupada com os processos ecológicos próprios do bioma amazônico e que nos trazem atualmente diversos conflitos fundiários e ecológicos que transformaram a Amazônia em uma região de ilegalidades de todos os tipos: garimpo ilegal, grilagem de terras, extração ilegal de madeira e rota para o tráfico de drogas.

Podemos pensar também nos projetos de transformação do Centro-oeste em uma grande extensão de lavouras de soja que contou com apoio de companhias de colonização, isenções fiscais e pesquisas públicas que serviram para o quadro de reprimarização da economia que nos encontramos atualmente. Nesse sentido, alguns setores de nossa crise atual estão relacionados com a administração territorial, econômica e política dos militares brasileiros.

Mas para além da herança dos militares, existe um cruzamento entre as transformações no capitalismo globalizado e as políticas adotadas durante os governos democráticos que generalizaram o caráter de crise e colapso na qual se encontra o Brasil atualmente.

A crise do trabalho no mundo ocidental, ocasionada pelo processo de desindustrialização causado tanto pela transferência de fábricas para Ásia quanto pela substituição do capital constante pelo capital variável, fez com que parte do trabalho assalariado passasse a transitar entre exército de reserva e população supérflua. Os novos sujeitos monetizados sem dinheiro que começaram a se enclavar nas periferias dos centros urbanos mundiais passaram a ter uma nova socialização que deixou de ser pautada pelos processos de valorização característicos da sociedade industrial – que agora está em crise – para novas formas de trabalho pautados pela desregulamentação dos direitos trabalhistas e sujeitos autônomos.

No caso brasileiro, o processo de desindustrialização alicerçado com a reprimarização da sua economia levou para uma organização produtiva pautada pelo consumo interno e não mais pelas inovações tecnológicas que permitiriam o aumento da capacidade produtiva instalada no país. O crescimento da economia brasileira não se dá a partir do aumento da produtividade da força de trabalho, mas pelos estímulos fiscais que fazem com que se aumente o consumo sem estar combinado com a complexificação produtiva.

As cifras bilionárias advindas das exportações de commodities servem para que o país tenha uma balança comercial superavitária com reservas internacionais que permitam o aumento da importação de certos produtos manufaturados que são demandados pelo aumento do consumo das famílias brasileiras. No tecido produtivo interno, entretanto, não se enxerga a qualificação da força de trabalho como força motriz para o desenvolvimento das suas forças produtivas.

Os governos democráticos percebendo a impossibilidade da superação da crise do trabalho, fizeram um acordo nacional que buscasse impedir com que houvesse uma explosão da miséria ao longo do território nacional. A criação de inúmeros programas de transferência de renda, apesar de sua inegável importância na possibilidade que milhões de brasileiros tenham a mínima dignidade, serviram como administradores da pobreza que mantiveram o caráter periférico da formação social brasileira.

Junto com isso, aqueles que continuaram regularmente no mercado formal de trabalho tem em sua grande maioria no horizonte apenas o setor de vendas que suscita no país quando existe um aumento dos valores dos programas de transferência de renda ou aumento real do salário-mínimo.

Quando analisamos as pesquisas mensais do Novo CAGED podemos observar esse fenômeno de perto. Durante os meses de janeiro e junho de 2024, dos 1,300,065 empregos formais gerados, 716,909 foram no setor de serviços não complexos, isto é, ligados às vendas, com salários que giram em torno de 2,230 reais e que demandam apenas o ensino médio completo.[i] Enquanto que cada mês, na média, 100 mil empregos com apenas o ensino médio completo eram gerados, apenas 5.000 tinham algum curso de graduação. Esses dados mostram como o tecido produtivo brasileiro está organizado em torno do trabalho precarizado que amplia as desigualdades sociais brasileiras.

Castelos de papel

A sociedade brasileira atual apresenta um caráter de crise que pode ser observado de qualquer ângulo econômico, social ou político. A crise do trabalho na sociedade mundial produtora de mercadorias modificou as estruturas produtivas e intensificaram o apartheid social nos países capitalistas. No nosso caso, a tentativa da construção de um Estado social veio de encontro com a petrificação das nossas condições periféricas, agora atualizadas para nova lógica globalizadora que busca desregulamentar qualquer tentativa de mínima proteção social dos trabalhadores e da classe média.

Se durante os governos tucanos e petistas houve uma tentativa frustrada de integração nacional[ii] que ocultaram a lógica de colapso presente em nosso país-ornitorrinco, atualmente, com a ascensão dos movimentos de extrema direita, estamos diante de uma crise civilizacional que expressa o fracasso da Nova República de instaurar uma modernização com inclusão social. Criamos castelos de papel que estão sendo tragados pelos movimentos autoritários que buscam mobilizar a sociedade para a barbárie.

Marcos Paulo Pereira Filho é graduado em geografia pela USP.

 

A financeirização da velhice, por Edson S. Moraes

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Risco de transformar longevidade em negócio é alto; bancos, empresas de assistência e seguradoras já fazem do medo do futuro uma opção lucrativa

Edson S. Moraes, Mestrando em ciências do envelhecimento, é consultor de estratégia e conselheiro empresarial.

Folha de São Paulo, 27/03/2025

O Brasil envelhece rapidamente, e o que deveria ser motivo de celebração se tornou uma preocupação. A longevidade, um dos maiores avanços da humanidade, passou a ser vista como um problema econômico. Em vez de garantir segurança e bem-estar às pessoas idosas, o mercado financeiro as transforma em oportunidades de lucro, explorando sua vulnerabilidade.

A financeirização da velhice ocorre quando serviços essenciais, como saúde, Previdência e moradia, deixam de ser direitos garantidos e se tornam produtos caros. Isso afeta a todos, inclusive os mais jovens, uma vez que o sistema previdenciário enfrenta desafios com a queda na taxa de natalidade e o aumento da expectativa de vida. Se nada for feito, cada aposentado dependerá de um número menor de trabalhadores, levando à promoção de planos privados e crédito consignado. O problema? A grande maioria dos brasileiros não consegue pagar por isso.

As pessoas idosas, que deveriam ser protegidas, tornam-se alvos fáceis. Bancos, seguradoras e empresas de assistência transformam o medo do futuro em um negócio lucrativo. Muitas recorrem a planos de saúde privados por desconfiança no SUS, mas os reajustes constantes as forçam a escolher entre pagar pelo plano ou cobrir despesas básicas.

Para complementar a renda, boa parte opta pelo crédito consignado, que, apesar dos juros abaixo da média de mercado, podem gerar um ciclo de endividamento, especialmente quando usado para ajudar familiares. Já as instituições de Longa Permanência para idosos (Ilpis), popularmente conhecidas como “casas de repouso”, passaram a ser tratadas como negócios lucrativos, tornando-se acessíveis apenas para uma parcela privilegiada da população.

Se essa lógica continuar, será impossível envelhecer com dignidade sem grandes investimentos individuais. Isso reforça a ideia de que a velhice é um problema econômico e não uma conquista social, abrindo espaço para políticas que reduzem direitos e ampliam desigualdades. Precisamos encarar o envelhecimento não como um fardo, mas como um desafio que exige soluções sustentáveis e justas.

Para isso, é essencial fortalecer políticas públicas, garantindo que as pessoas idosas não dependam exclusivamente do setor privado. Melhorar o SUS, ampliar programas sociais e promover a educação financeira desde a juventude são passos fundamentais para evitar dívidas desnecessárias e planejar melhor a velhice. Também é preciso regular o mercado financeiro, impedindo abusos em planos de saúde e crédito consignado, além de garantir a efetividade da Política Nacional de Cuidados, oferecendo uma rede de suporte acessível e de qualidade. O governo já trabalha para implementar essa política, buscando assegurar que o direito ao cuidado seja efetivado de forma justa e igualitária.

Se não enfrentarmos a financeirização da velhice agora, todos pagaremos o preço no futuro. Envelhecer faz parte da vida, e garantir que isso aconteça com dignidade é uma responsabilidade coletiva. O lucro não pode estar acima do direito de envelhecer com segurança. Afinal, se envelhecer é um privilégio, não deveria ser um peso financeiro.

Paraíso Fiscal

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Na sociedade brasileira percebemos o crescimento das discussões referentes a tributação e a reforma tributária, assuntos sempre desconhecidos para a grande maioria da população, principalmente para os mais pobres, atualmente observamos alguns ruídos para que o assunto volte à tona, embora uma pequena parte de abastados e endinheirados usem seus poderes monetários e financeiros para evitar uma discussão estrutural, afinal são eles os grandes ganhadores do sistema tributário nacional.

Somos uma nação marcada por grandes desigualdades sociais, econômicas e políticas, carecemos de uma educação mais consistente, necessitamos de um setor de saúde mais eficiente e serviços públicos mais qualificados para atenderem as demandas cotidianas da sociedade, ainda mais num mundo marcado por grandes transformações tecnológicas e movimentações geopolíticas e econômicas. Todos os cidadãos brasileiros sabem que temos inúmeros problemas estruturais que remontam a nossa independência, existem algumas medidas que devem trazer ganhos maiores para a sociedade e impedir que os indicadores degradantes de renda aumentem crescentemente, neste cenário, faz-se necessário uma verdadeira reforma tributária progressiva, onde os que ganham mais proporcionalmente deveriam pagar mais, evitando que se perpetuem uma situação tributária que se aproxime de um verdadeiro paraíso fiscal.

O sistema tributário é fundamental para alavancar o crescimento econômico, retirando recursos da economia para incrementar os serviços sociais, melhorando a infraestrutura e capacitando os sistemas econômicos e produtivos para gerar empregos de qualidade, melhorando as condições de vida da população e levando a nação ao tão sonhado desenvolvimento econômico.

No Brasil, percebemos uma situação chocante e assustadora, vivemos num país que isenta os grandes milionários e bilionários, donos do capital, isentando-os de pagarem dividendos estrondosos, com altas isenções fiscais e regimes especiais para pagamentos reduzidos e, erroneamente, tributando fortemente o consumo das classes mais empobrecidas e a chamada classe média que respira artificialmente à décadas, uma classe em extinção, empobrecida, dona de empregos precários e marcada pelo endividamento gerado por taxas juros escorchantes, uma das maiores da economia internacional, que remunera os privilégios de uma elite improdutiva, corrupta e que se define, falsamente como nacionalista.

Num momento de possíveis discussões tributárias, críticas crescentes nas questões fiscais, os grupos mais organizados e dotados de grandes recursos monetários usam seus poderes financeiros para perpetuarem seus ganhos escorchantes, fortalecendo suas isenções fiscais e tributárias e preservando seus ganhos num sistema fortemente regressivo e usam seus canais de comunicação para gritar contra os gastos elevados do governo, mas se “esquecem” de suas responsabilidades tributárias e perpetuam um sistema tributário regressivo que patrocina e perpetua uma desigualdade estrutural da sociedade.

A sociedade internacional está passando por grandes transformações, uma verdadeira mutação está em curso no mundo contemporâneo, neste momento esperamos medidas efetivas, consistentes e urgentes para avivar a esperança da coletividade, precisamos rever privilégios crescentes para poucos privilegiados, reduzir penduricalhos daqueles que se acreditem iluminados, além de taxar grupos que pouco pagam, concentrar isenções para grupos que trazem ganhos substanciais para a sociedade, criando parâmetros racionais e evitando interferências políticas, neste momento precisamos ter a coragem para favorecer a grande maioria da população em detrimento dos interesses mesquinhos e imediatistas que sempre extraíram recursos nacionais e canalizaram investimentos para os verdadeiros paraísos fiscais, garantindo a pecha de um dos países mais desiguais da comunidade internacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

 

 

Economia: o financismo segue no comando, por Paulo Kliass

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Governo acerta ao mudar Imposto de Renda mas país sofre, na mesma semana, três choques em sentido contrário: a nova alta da taxa Selic, a informação de que a despsa de juros cresceu 32% em um ano e um empréstimo consignado a gosto dos banqueiros;

Paulo Kliass, Doutor em Economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas e Gestão Governamental do governo federal.

OUTRS PALAVRAS – 25/03/2025

As notícias divulgadas ao longo do mês de março a respeito da política econômica infelizmente confirmam uma tendência que já vinha se manifestando antes mesmo da posse de Lula, em 1º de janeiro de 2023. Caminhando na direção contrária das expectativas geradas pela importante vitória em outubro de 2022 na disputa eleitoral contra Jair Bolsonaro, a delegação conferida a Fernando Haddad para conduzir a economia tem se revelado um desastre.

O Ministro da Fazenda parece ter incorporado o espírito do bom mocismo desde o início de sua missão, sempre em articulação com os interesses da Febraban e das instituições do sistema financeiro. Assim foi com a sugestão de que não fosse simplesmente revogado o teto de gastos, que havia sido introduzido por Michel Temer lá atrás em 2016. Haddad propôs a Lula que a emenda constitucional da austeridade absoluta só tivesse sua vigência interrompida quando o Congresso Nacional aprovasse uma lei complementar tratando do Novo Arcabouço Fiscal. E aí estamos sofrendo com as amarras da Lei Complementar nº 200/2023.

Além disso, Haddad conseguiu transformar sua obsessão com a redução das despesas orçamentárias em estratégia central do governo, colocando obstáculos para a retomada de políticas públicas nos níveis necessários para a maioria da população e impedindo a construção de um programa de desenvolvimento social, econômico e ambiental para o País. A meta de zerar o déficit primário e a tentativa de obter até mesmo saldo positivo nas contas públicas compromete qualquer projeto de mudar a qualidade do processo de crescimento da economia.

No que se refere à política monetária, a segunda reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) sob a presidência de Gabriel Galípolo sacramentou um novo aumento de 1% na SELIC. Sob a desculpa de ser obrigado a obedecer a “guidance” recomendada por Roberto Campos Neto em sua despedida do cargo, a nova direção do Banco Central (BC) nada mais faz do que dar continuidade ao arrocho da gestão anterior. O ex-Secretário Executivo de Haddad mantém, no comando do BC, o ritmo de elevação da taxa oficial de juros. Com a elevação para 14,25%, o país segue oferecendo aos operadores do financismo global uma das maiores rentabilidades reais no planeta.

Juros na estratosfera!

A decisão do Copom nada mais significa do que referendar os desejos da elite do sistema financeiro, que se manifesta semanalmente por meio da pesquisa Focus realizada pelo próprio BC. A enquete é realizada junto a pouco mais de uma centena de dirigentes de instituições do universo das finanças e funciona como uma espécie de profecia autorrealizada. O Copom sempre justifica suas decisões de promover elevações descabidas na Selic com base na necessidade de atender às expectativas do chamado “mercado”. Ocorre que tais informações são obtidas neste seleto grupo de empresários, cujo perfil pertence exclusivamente ao universo do parasitismo rentista.

Outra informação divulgada pelo BC refere-se ao volume de despesas realizadas pelo governo com o pagamento de juros da dívida pública. Por se tratar de gasto financeiro, ele é classificado como “não primário”. Assim não existe limite, corte ou contingenciamento para tais despesas. Ao contrário do esforço fiscal para reduzir as rubricas orçamentárias que recebem o carimbo de primárias, o dispêndio com o pagamento de juros tem crescido de forma sistemática e em valores e percentagens muito acima das demais despesas.

O ano de 2024 foi encerrado com um volume de gastos de R$ 950 bilhões a esse título. Com a divulgação dos dados relativos a janeiro de 2025, o total dos últimos 12 meses sofreu uma pequena redução para R$ 910 bi. De qualquer maneira, o total dos juros pagos cresceu 32% na comparação com 2023. Trata-se da rubrica do Orçamento que recebeu o maior aumento de um exercício para outro. Curiosamente, em nenhum momento se menciona nas declarações oficiais a necessidade de reduzir esse tipo de gasto para ajudar na responsabilidade fiscal. Todo o foco do ajuste permanece sobre contas de natureza social, a exemplo de saúde, previdência social, educação, assistência social, salários de servidores, segurança pública e outras.

Outro aspecto que confirma a hipótese de que o financismo segue no comando da agenda política econômica do governo pode ser identificado na recente divulgação do modelo de crédito consignado para os trabalhadores com carteira assinada. Ao se inspirar na prática já existente para os aposentados e pensionistas do INSS e para os servidores públicos, a equipe de Haddad construiu uma proposta também para os assalariados no regime da CLT. Com a desculpa de um elevado grau de endividamento existente no interior da maioria das famílias brasileiras, o sistema mantém o grau de dependência e vinculação dos indivíduos em relação ao sistema bancário e financeiro.

Crédito consignado: armadilha do financismo.

De acordo com o modelo proposto, será possível que os endividados deste novo universo negociem novos empréstimos com taxas de juros de juros mais baixas. Afinal, a proposta do Ministério da Fazenda oferece como garantia de eventual inadimplência os recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Assim, trata-se da mais completa deturpação dos propósitos iniciais do referido fundo. Ele foi concebido para operar como financiador da habitação para população de baixa renda e para atuar como refúgio temporário para os trabalhadores que tenham sido demitidos de seus empregos.

Apesar do flagrante baixo risco envolvido, o governo se recusou em estabelecer um teto para os juros a serem aplicados aos empréstimos desta nova modalidade. Assim, segue-se o mesmo modelito de favorecimento dos bancos, uma vez que a prática espoliadora também se verifica em empréstimo de risco ainda mais reduzido, quase inexistente. Esse é o caso de aposentados e servidores públicos, quando os bancos cobram um spread injustificável para tais modalidade.

Enfim, trata-se apenas de três exemplos recentes que comprovam a importância que o governo confere para as demandas do sistema financeiro quando da definição das políticas públicas no domínio da economia.

Celso Amorim diz que Trump é o interesse ‘nu e cru’ e que Brasil tem que se reorganizar

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Ex-chanceler e assessor especial de Lula, ele afirma que mundo passa por uma das maiores mudanças desde a queda do muro de Berlim e que país tem o desafio de não virar colônia

Folha de São Paulo, 23/03/2025

Desafiando a ordem mundial até então vigente e renegando a condição de superpotência, o atual presidente defende exclusivamente os interesses de seu país, “de forma deslavada”, e é preciso se reorganizar diante de novos desafios.

Questionado se Trump poderia aderir à tese bolsonarista de que o Brasil vive sob uma ditadura judicial, Amorim afirma que Jair Bolsonaro (PL) “ficou pequeno diante das grandes questões do mundo” e que o presidente norte-americano respeita o poder, e não quem “fica lá querendo adular”.

TRUMP

O mundo parece estar mudando de maneira célere. A governança pós-Segunda Guerra Mundial passa por um desmonte. O secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, diz que não é mais normal termos uma potência unipolar e que rumamos para um mundo multipolar. Como o Brasil se insere neste novo contexto?
Nós estamos vivendo, de certa maneira, a hora da verdade.

Os EUA e a Rússia foram os principais vitoriosos [da Segunda Guerra], mas os EUA tinham muito mais influência. E construíram um mundo à imagem e semelhança do que desejavam —com diferenças com a União Soviética e, depois, com a China.

Na letra, essa era a ordem internacional vigente.

Havia conflitos. Mas, de alguma maneira, havia uma defesa dessas regras internacionais.

O primeiro grande abalo nessa ordem foi a queda do muro de Berlim [em 1989] e a dissolução da União Soviética, algo que ninguém imaginava que poderia acontecer.

O mundo também muda de forma inesperada.

A minha geração passou por duas transformações estruturais imensas. A primeira foi o fim da União Soviética. E agora temos outra enorme mudança, imensa, com os americanos renegando a ordem que eles mesmos criaram.

Desde a queda de Berlim até agora, os EUA atuavam como uma potência praticamente incontrastável. O que mudou?
Havia, de certa maneira, a aceitação de que os EUA eram a única potência remanescente. Mas eles procuravam, sempre que possível, conduzir [as políticas internacionais] pelo multilateralismo.

Faziam isso pela ONU. Quando não dava certo, faziam pela Otan. Raramente agiam sozinhos nos grandes problemas internacionais.

O Trump atual não quer saber [dessas estruturas multilaterais]. Ele não esconde o autointeresse.

É uma atitude de absoluta franqueza. Não há hipocrisia. Ele quer a Groenlândia não porque é bom para a paz, mas por causa do minério do país. Diz isso a propósito da Ucrânia também.

Eu acho que o Trump olha para a extensão imensa da Rússia, um país que tem 12 fusos horários, e imagina as possibilidades de investimento. Não quer ficar totalmente brigado com a Rússia.

Em sua declaração, Marco Rubio disse “não queremos uma Rússia que seja totalmente dependente da China. E também não queremos que eles fiquem inimigos a ponto de ameaçar com uma guerra nuclear”. É uma declaração surpreendentemente sensata.

Por que o senhor diz que chegou a hora da verdade?
Porque é o interesse nu e cru, que não é disfarçado. E isso pode até servir para alguma coisa positiva

Na conversa com [o presidente da Ucrânia, Volodimir] Zelenski [no fim de fevereiro, na Casa Branca], que foi muito rude, Trump disse uma coisa interessante: “Ele [Zelenski] quer a vitória. Eu quero a paz”. E é verdade também.

Trump fala em desnuclearização. E não faz isso porque é bonzinho. Faz porque sabe que o custo para manter a paridade [de armamentos] com a Rússia é enorme. Para diminuir o gasto militar, ele tem que ter paz, primeiro com a Rússia, depois com a China.

O multilateralismo tem um pouco de teatro, e Trump está acabando com ele?
O [francês François de] La Rochefoucauld dizia que a hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude. Ela às vezes vale a pena, porque é civilizatória.

Quando há soluções compatíveis com as regras, a situação sempre melhora. Os EUA acabavam aceitando as regras. Não vejo isso acontecer com o Trump.

É a verdade nua e crua.
É a verdade nua e crua. Ele não faz parecer que defende a Ucrânia porque defende a democracia no mundo, o que era discutível: os EUA defendiam a democracia quando interessava.

Essa política, digamos assim, um pouco missionária [dos EUA] não existe mais. Ele [Trump] vai defender os interesses dos EUA de maneira deslavada, e nós temos que nos reorganizar diante disso.

EUROPA

Como a Europa também está sendo obrigada a fazer?
Os europeus estão desorientados. Eles se acostumaram a viver sob o guarda-chuva americano moral, militar e econômico. Quando de repente chega um presidente americano e diz “eu vou cuidar do meu interesse, vocês que se virem”, eles ficam totalmente perplexos, impactados.

A Europa, se fosse esperta e menos apegada a certos conceitos, assinava  o acordo Mercosul-União Europeia. Seria importante. Mostraria que ela ainda tem uma presença no mundo, que atua independentemente.

O Brasil sempre teve a pretensão de ser a ponte entre o Ocidente e o sul global, e agora isso está virando de ponta-cabeça. Como fica o país nesse novo contexto?
O Sul Global não virou de ponta cabeça. O Sul Global está se fortalecendo.

O senhor acredita que os EUA vão mesmo renegar o seu papel de única potência mundial?
A percepção de que eles não são mais a única potência é correta. É um fato. A China já ultrapassou os EUA em muitas questões, no PIB, no poder de compra, até em número de estudantes que fazem doutorado.

MUNDO MULTIPOLAR

E o Brasil agora?
Nós temos que aprender a viver nesse mundo multipolar. Brasil, Índia, não somos todos iguais. A gente tem que saber jogar com alianças variáveis, temos que ser capazes de ter amizades com vários países

É difícil porque existe muita diversidade, mas nós temos que fortalecer a América do Sul. E, ao mesmo tempo, nos relacionarmos de maneira inteligente com as superpotências —que são duas do ponto de vista econômico [EUA e China] e três do ponto de vista militar [as duas e mais a Rússia]. Em seguida vem a Europa. Temos que saber jogar com isso.

Há analistas que acreditam que Donald Trump, dos EUA, Xi Jinping, da China,  e Vladimir Putin, da Rússia, vão se entender e dividir o mundo, embora muitas partes dele não caibam nessa divisão. O senhor acha que isso vai acontecer?
Eu não posso dizer que essa é a visão do presidente Trump, porque eu não sei. Ele não falou isso. Mas às vezes dá a impressão de que é isso.

[Nesse contexto] O Brasil pode ser uma potência grande, que será mais forte se estiver unida com a América do Sul. Mas o Brasil fez uma opção de não ter arma nuclear, então isso, de certa maneira, muda…

Nos enfraquece?
Eu não sei se nos enfraquece porque podemos ter mais meios de negociar.

Por que a China não lançou sozinha a proposta de seis pontos pela paz na Ucrânia? Porque ela precisa do soft power, que o Brasil tem, e muito. É um país pacífico, que tem fronteiras com dez países e está há 150 anos sem guerra. Eu não quero valorizar demais o soft power, mas ele dá credibilidade.

Nós temos que ter uma relação muito forte com a China.

Mas já temos, não?
Sim, mas ela tem que se fortalecer. Temos que jogar com as três [superpotências]. E com a Europa. Se ela se associa à América do Sul, já seremos uma massa maior de países.

Está claro que a Europa, por exemplo, vai ter que se reinventar…
[interrompendo] A Europa vai ter que se libertar da obsessão de que vai ser invadida pela Rússia. Eu até entendo que a Polônia, os países ali fronteiriços [tenham essa preocupação]. Mas quando eu vejo dizerem que a Rússia tem um DNA expansionista, eu penso: foi Napoleão que invadiu a Rússia [em 1812], ou foi o contrário?

E a França tem a força da dissuasão da bomba nuclear, certo?
[O general e ex-presidente da França Charles] De Gaulle não tinha essa obsessão, e na época dele a União Soviética era muito mais forte.

Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, o que sempre criticamos, muitos [países] disseram “vamos destruir a Rússia”.É impensável. E seria desastroso. A Rússia unificada é também um fator de estabilidade para o mundo e para a Europa.

BRASIL NO MUNDO

O senhor diz que o fortalecimento da América do Sul é importante, mas o continente hoje está dividido. Argentina e Venezuela, por exemplo, estão distantes do Brasil.
Eu concordo. Sempre digo que o primeiro mandato [de Lula, em 2002] era um mundo de oportunidades. Agora, é um mundo de desafios.

É claro que há casos extremos [de comportamentos de países] que fogem a qualquer regra. Mas acho que, a médio prazo, a maioria dos países da América do Sul vai voltar a se unir.

Na votação da OEA [Organização dos Estados Americanos], o candidato [à presidência da entidade] que foi lá tirar fotografia com o presidente Trump, por exemplo, não foi aceito [foi derrotado na eleição].

A gente não pode ficar… o meu temor com relação aos EUA não é que eles vão invadir [algum país do continente sul-americano]. [É com o fato de que] Os trumpistas falam muito em Western Hemisphere [Hemisfério Ocidental]. A visão deles é a de que “aqui é nosso”.

Essas coisas não ficavam tão claras antes do Trump?
Não. Porque os democratas eram mais educados. Muitos deles são nossos amigos, tiveram um papel importante aqui na transição [do governo Bolsonaro para o de Lula], a gente sabe disso.

Mas o nosso grande desafio, resumindo, qual é?
O nosso grande desafio é, nessa divisão do mundo, não ser colônia de ninguém.

O senhor não acha que deveríamos fazer um esforço maior de aproximação com Trump? Vê possibilidade de ele aderir à tese bolsonarista de que vivemos sob uma ditadura judicial?
Trump está com o foco em outras questões. Eu acho que agora, com as tarifas [de importação que o governo norte-americano está impondo ao Brasil], a gente vai ter que falar um pouco mais com o governo dele. Vamos ter que agir da maneira normal, que é a da reciprocidade.

Mas o Brasil tem força para isso? A reciprocidade não pode trazer mais prejuízos do que benefícios para o Brasil?
Acho que não.

Você não pode dar um tiro no pé, colocar taxa em um produto essencial para o país, como o carvão siderúrgico, por exemplo. Mas há áreas no setor de serviços, de propriedade intelectual, de remessa de lucros, que, se o Brasil morder, eles vão pensar duas vezes antes de botar tarifa contra nós.

BOLSONARISMO

O ministro Alexandre de Moraes tem afirmado que a soberania brasileira corre risco pelo fato de as big techs estarem partindo para o tudo ou nada, desrespeitando inclusive a jurisdição de outros países que não os EUA. O senhor concorda com ele?
O Alexandre de Moraes está fazendo um trabalho muito importante.

Os americanos sempre tiveram a visão da extraterritorialidade da lei americana. Mas agora eles têm a possibilidade técnica para [efetivar] isso.

E as big techs estão no coração dos EUA. A posse de Trump, com os donos de diversas delas, como Elon Musk, mostrou isso, não?
Em algum momento pode haver algum choque. São egos muito grandes ali. Eu acho que vai acabar havendo uma diferença entre as big techs, que têm um interesse puramente econômico, e a política.

Há avaliações, inclusive no Supremo Tribunal Federal (STF), de que os bolsonaristas estão pegando carona em uma briga maior, que é a das big techs contra o nosso Judiciário. O senhor concorda com elas?
O Bolsonaro ficou pequeno diante das grandes questões do mundo hoje.

Há alguns anos, certamente ter um governo de extrema-direita no Brasil era importante. Hoje é um pouco diferente.

[Sobre as big techs] Elas estão mais ou menos entendendo que o jogo é complexo, que o Brasil não vai abrir mão de sua soberania. Se quiserem atuar aqui, têm que ser de acordo com as nossas regras, que não são arbitrárias. São para todos, são para proteger os cidadãos. A Europa tem uma visão parecida com a nossa.

O senhor acha que para o Trump tanto faz se o presidente é Bolsonaro ou Lula?
Eu não sei se tanto faz. Mas hoje em dia não tem mais sentido você dizer “sou contra ele porque ele é comunista”. Não tem mais isso. É o interesse [que prevalece]. Essa coisa muito ideológica do bolsonarismo eu acho que talvez se esvazie.

Trump respeita o poder. Pessoas que são capazes de agir. Ele acaba de dizer que gosta do Putin. E pode até não gostar, mas ele respeita o Putin. Respeita o Xi Jinping.

Agora, se ficar lá querendo adular, como [fizeram] o Zelenski e alguns europeus, ele não respeita.

 

Reforma do Imposto de Renda é boa, por Celso Rocha de Barros

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Quem ganha muito bem vai ter que se sacrificar um pouco para ajudar a professora e o PM

Celso Rocha de Barros, Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra) e autor de “PT, uma História”

Levou 40 anos, mas a democracia brasileira finalmente produziu uma proposta para tornar o Imposto de Renda mais justo.

Na semana passada, o governo Lula divulgou sua proposta de reforma de Imposto de Renda. É um passo moderadíssimo, cautelosíssimo, mas na direção certa.

A reforma deu isenção completa de Imposto de Renda para quem ganha menos que R$ 5.000 por mês. Entre R$ 5.000 e R$ 7.000 por mês, o cidadão também vai ter desconto, maior se estiver perto do cinco, menor se estiver perto do sete.

A isenção atinge a classe social mais debatida pelos analistas políticos nos últimos anos: quem já escapou da vulnerabilidade extrema, mas ainda está longe do padrão de consumo da classe média “tradicional”. É muita gente: o governo estima que a reforma beneficiará cerca de 10 milhões de pessoas.

Como tudo tem um preço, o governo calcula que vai deixar de arrecadar R$ 25,84 bilhões por ano com a mudança. Para compensar esse rombo, o governo vai aumentar o Imposto de Renda dos ricos.

Para isentar os 10 milhões, vai aumentar o imposto de cerca de 140 mil brasileiros, duas vezes o público da final do Campeonato Carioca que deu o título de 2025 ao Mengão. Essa turma paga, hoje em dia, uma alíquota média de Imposto de Renda de 2,5%.

Quando Haddad anunciou a reforma no ano passado, naquele pronunciamento que tanto furdunço gerou, o plano era mais ambicioso: fazer com que quem ganhasse mais que R$ 50 mil por mês fosse obrigado a pagar ao menos 10% de Imposto de Renda.

Isto é, Haddad queria que os ricos pagassem pelo menos a mesma porcentagem que um policial militar paga hoje em dia (nas contas do governo, 9,8%).

A proposta foi responsável por parte do aumento do dólar na época. Afinal, o motivo dos ricos pagarem tão pouco Imposto de Renda é que muitos investimentos disponíveis no mercado financeiro são isentos (LCA, LCI, dividendos etc.). Se houver uma alíquota mínima para os ricos, ao menos parte dessa renda será tributada, o que tornaria esses investimentos menos atrativos. Na dúvida, o pessoal correu para o dólar (e lá encontraram o Trump, mas isso é outra história).

Na nova proposta, vários desses investimentos continuarão isentos. E o governo agora só vai exigir que o sujeito pague a mesma alíquota do PM se ele ganhar mais que R$ 100 mil por mês. Entre R$ 50 mil e R$ 100 mil haverá uma alíquota mínima, mas ela começará bem pequena e crescerá conforme a renda chegue perto dos R$ 100 mil.

Todo mundo sabe que isso é certo. A proposta de tornar os impostos brasileiros mais progressivos estava até no programa da Arena, o partido que apoiava a ditadura militar. Mas ninguém tinha feito até agora.

Segundo Guilherme Klein, do Núcleo de Pesquisa sobre Macroeconomia das Desigualdades (Made) da USP, atualmente, os impostos brasileiros são progressivos –isto é, quem ganha mais paga uma alíquota maior– até o 1% mais rico, quem ganha mais que R$ 30 mil por mês. Daí em diante, tornam-se regressivos: quanto mais rico o rico for, menor a alíquota.

A reforma não elimina essa regressividade no topo, mas deve reduzi-la consideravelmente.

Enfim, um pessoal que ganha muito bem vai ter que se sacrificar um pouco para ajudar a professora e o PM. Eu acho bom.

 

Pé-de-meia reduz 25% do problema da evasão escolar, por Laura Muller Machado

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Proposta brasileira está em linha com os resultados mundiais, mas pode ser fortalecida com melhoria na educação

Laura Muller Machado, Mestre em Economia Aplicada pela USP, é professora do Insper e foi secretária de Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo

Folha de São Paulo, 22/03/2025

O Pé-de-Meia, a partir de um incentivo financeiro-educacional mensal e de uma poupança condicionada para os jovens, tem como objetivo promover a permanência e a conclusão escolar de alunos matriculados no ensino médio público. O programa prevê o pagamento de uma bolsa de estudos com menos de meio salário-mínimo per capita a inscritos no cadastro único.

Os pagamentos são de 10 parcelas mensais de incentivo de R$ 200, que podem ser sacados em qualquer momento desde que comprovada a frequência de 80%, além de três depósitos de R$ 1.000 ao final de cada ano concluído, que só poderão ser retirados da poupança após a conclusão do ano letivo. Os valores chegam a até R$ 9.200 por aluno ao longo do ensino médio, desde que o estudante frequente e seja aprovado em todas as etapas.

Sabemos, a partir do estudo “Consequências da violação do direito à educação”, de Ricardo Paes de Barros, que os jovens que não concluem a educação básica irão incorrer em uma perda de R$ 395 mil ao longo da vida toda devido a perdas, não apenas envolvendo remuneração, mas também longevidade, externalidades econômicas e episódios de violência.

Isso quer dizer que, a cada cinco jovens que não evadem, deixamos de perder R$ 2 milhões. O custo da não conclusão da educação básica é muito alto, tanto para quem deixa a escola como para toda a sociedade brasileira.

Espera-se que uma bolsa de estudo seja um instrumento mais eficaz quando a razão para a evasão é a falta de renda para frequentar a escola, e menos eficaz em casos nos quais o jovem tem condições, mas não percebe a escola como um investimento produtivo para seu tempo.

Uma bolsa de estudo deve ter mais impacto quando o motivo da evasão é a pobreza e a necessidade de trabalhar do que a baixa qualidade da educação oferecida. O Pé-de-Meia será um bom instrumento para combater a evasão por motivo de ausência de recursos financeiros. Mas para ser mais impactante, o programa precisa de um complemento: a educação de qualidade.

A partir de dados da Pnad e do Inep de 2019, o Centro de Evidências da Educação Integral do Insper desenvolveu um simulador, uma avaliação ex-ante, para estimar seu impacto. O resultado mostra que, considerando todas as séries, a taxa de evasão no ensino médio para os beneficiários do programa sem o Pé-de-Meia é da ordem de 28%, enquanto com o Pé-de-Meia, de 21%, uma redução de 7 pontos percentuais. Portanto, o programa é capaz de equacionar um quarto da evasão.

Muitos países têm programas como o brasileiro. Foram publicados em torno de 104 estudos sobre esses incentivos educacionais ao redor do mundo. A literatura aponta para um impacto de redução de evasão de 2 a 9 pontos percentuais em programas similares. Portanto, a proposta brasileira está em linha com os resultados mundiais.

Apesar de promissor, fica evidente que a bolsa não é a solução completa do combate à evasão, um dos maiores desafios do ensino médio. Em especial, a ciência indica que o programa será enriquecido quanto mais robusto for a educação.  No Canadá, por exemplo, o incentivo equivalente é disponibilizado em conjunto com um plano de aperfeiçoamento de educação na escola beneficiada.

Sem dúvida, estamos todos gratos e animados com a bolsa de estudos para os mais vulneráveis poderem estudar. No entanto, sabemos que o Pé-de-Meia poderia alcançar resultados maiores e ser mais potente em um cenário de melhoria da qualidade da educação.

 

Adeus ao mundo eurocêntrico? Entrevista com Walden Bello

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Um pensador destacado do altermundismo sustenta: o poder do Ocidente nunca foi tão frágil. É possível esperar um novo Sul Global? Por que a China é muito diferente da antiga URSS? Que esperar dela numa nova ordem mundial?

Walden Bello, entrevistado a Néstor Restivo, em Tektónicos 

Tradução: Antonio Martins – OUTRAS PALAVRAS – 13/09/2024

A primeira vez que encontrei Walden Bello foi no verão de 2001, em Porto Alegre. Por ocasião do primeiro Fórum Social Mundial (FSM), há mais de duas décadas, esse sociólogo das Filipinas, ex-membro do parlamento de seu país viajou para o sul do Brasil como tantos ativistas, líderes e acadêmicos ou pesquisadores que esperavam que esse fórum, e os que o seguiram por vários anos, se consolidasse como uma tribuna internacionalista de resistência ao neoliberalismo – então em seu momento de expansão – e, ao mesmo tempo, uma plataforma para ideias alternativas. Bello, pouco conhecido na América do Sul, já era presença importante nos movimentos “altermundistas”. Dirigia uma rede de organizações sul-asiáticas denominada Focus on the Global South, cujo nome me chamou atenção.

O termo “Sul Global” apareceu pela primeira vez em 1969, quando o professor e ativista norte-americano Carl Oglesby escreveu um artigo sobre a Guerra do Vietnã no qual mencionou a “dominação do Norte sobre o Sul Global” — causa, segundo ele, de uma “ordem social intolerável”.

“Certamente não fomos os inventores nem os pioneiros em falar do ‘Sul Global’””, diz Walden Bello na Casa de las Madres de Plaza de Mayo, no inverno de 2024 em Buenos Aires, uma cidade que ele está visitando pela primeira vez. Ele conta que a Focus on the Global South foi estabelecida em Bangkok, Tailândia, em 1995, acrescentando: “de qualquer forma, adotamos esse nome, sintonizando-nos no momento certo com o que estava começando a acontecer no mundo”.

Walden Bello visitou à capital argentina (e não deixou de observar com perplexidade tudo o que emerge do governo de Javier Milei) a convite do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO) e da Fundação para a Pesquisa Social e Política (FISYP). Palestrou sobre o “Impacto e oportunidades da crise da hegemonia dos EUA” e conversou com a Tektónikos sobre esse tema.

O que o Sul Global significa para você hoje?

– O que chamamos de países em desenvolvimento, subdesenvolvidos ou colonizados costumava ser chamado de “Terceiro Mundo”. Mas a União Soviética e a Europa Oriental entraram em colapso, entre 1989 e 91. Isso pôs fim à ideia de que havia um “segundo mundo”, um mundo comunista. Ficou difícil manter estes termos. Então, o termo Sul Global, que já havia sido inventado, ressurgiu como uma ideia na década de 1990, sob a premissa de reivindicar o fim de sua dominação.

Quais foram os principais desafios — e quais ainda são agora — nesse novo mundo em formação?

Continuam a ser o fim da dominação econômica e política dos Estados Unidos e de suas potências aliadas no Ocidente. São forças estruturais que dominaram o mundo por 500 anos, um cenário que, no entanto, está sendo questionado neste século XXI. Isso se dá principalmente por causa do surgimento de um grande ator como a China. Isso criou algum espaço para que o Sul Global pudesse se distanciar do Ocidente, tramar seu próprio desenvolvimento, ensaiar políticas autônomas – e não continuar a ser dominado por uma força ocidental liderada pelos Estados Unidos. A disputa da União Soviética com os EUA abriu espaço de manobra para o Terceiro Mundo. Mas a diferença é que agora a China possibilita outro cenário: é uma grande potência econômica e política de uma forma que a URSS não era – ou era apenas militarmente, mas não em outros níveis. Em outras palavras, agora a China tem grandes recursos econômicos e pode cooperar muito melhor com o mundo em desenvolvimento. Essas são condições muito diferentes daquelas da Guerra Fria.

Qual é o papel do BRICS?

É uma nova formação importante, hoje já com 10 países que se juntaram ao chamado BRICS+. Isso significa que não apenas os quatro e depois cinco fundadores do início (Brasil, Rússia, Índia, China e depois África do Sul), mas agora o dobro de nações (Egito, Irã, Etiópia, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos se juntaram desde 2024). Além disso, outros países querem aderir. Em outras palavras, agora temos um nível maior de recursos que podem ser usados para o desenvolvimento do Sul Global. Em segundo lugar, e talvez o mais importante, temos a China novamente, não apenas como uma potência econômica, mas oferecendo um modelo bem-sucedido de desenvolvimento liderado pelo Estado, em contraste com o que o FMI ou o Banco Mundial vêm defendendo há décadas, com seu foco no mercado como condutor. E, em terceiro lugar, o peso político dos BRICS é muito importante para fornecer recursos, espaço e margem de manobra, além de crédito para o Sul Global. Os BRICS também oferecem diversidade, pois em muitos aspectos os parceiros são diferentes uns dos outros (Brasil da Arábia Saudita ou Rússia do Irã etc.). Ainda assim, o importante é que o grupo agora ampliado não pode mais, devido ao seu tamanho e peso, ser dominado pelas potências ocidentais.

E quanto ao papel da China em particular, sendo a mais poderosa desse grupo?

É claro que a China lidera o grupo, é a principal fornecedora de recursos e impulsionadora dos bancos de desenvolvimento que estão sendo criados nesse ambiente, dos fundos de contingência, que têm formatos e exigências diferentes dos esquemas do FMI (o que mostra uma alternativa em potencial à ordem multilateral existente). A liderança da China é muito interessante. Pequim forneceu uma quantidade impressionante de recursos aos países do Sul Global e é um modelo, insisto nisso, em que o Estado controla as forças de mercado. Cada vez mais países estão olhando para isso como uma alternativa às economias orientadas pelo mercado. E, por fim, há o peso político e militar da China, embora ainda seja muito menor do que o dos EUA. A China tem muito cuidado para não se apresentar como um substituto dos EUA e disse explicitamente que bancos como o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) ou o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB) não querem substituir o sistema de Bretton Woods. Entretanto, os EUA afirmam que a China é uma potência revisionista e ambiciosa, que quer ser a número um, substituir tudo, não se integrar ao capitalismo e que representa um desafio. Na verdade, essa é uma tentativa de justificar o primeiro objetivo dos EUA, que é conter a China com uma postura muito agressiva, presente em especial no governo Biden, que está saindo.

A guerra interna imperial

O Ocidente está inevitavelmente entrando em guerra ou há setores que querem negociar algum tipo de transição?

Acho que a Europa está sendo arrastada pelos EUA nesse objetivo de conter a China. Ela foi fortemente influenciada e isso levou à expansão da OTAN para o leste e para a Ásia. Por meios econômicos, diplomáticos e militares, os EUA têm procurado conter a China durante todos esses anos e o Partido Democrata (PD) deu sinais muito claros aos seus militares de que é isso que eles querem em relação à China. O número de missões e bases dos comandos militares dos EUA no Pacífico foi aumentado e as forças armadas receberam sinal verde para isso. O comandante da Força Aérea, Mike Minihan, chegou a ser citado como tendo falado sobre a possibilidade de entrar em guerra contra a China em 2025.

A posição da extrema direita e do Partido Republicano em geral nos Estados Unidos é menos clara, você não acha?

Vamos examinar isso com atenção. A candidata democrata Kamala Harris e os líderes democratas gostariam de manter o papel do “livre comércio”, a hegemonia dos EUA, o uso de órgãos multilaterais que controlam e o fluxo “livre” de capital. Mas basicamente essa é a velha ordem. O presidente Biden e outros disseram que os EUA são os únicos capazes de preservar tudo isso, as instituições do domínio ocidental em seu conjunto, etc. Eles também acreditam que o desafiante republicano, Donald Trump, não faria isso. Com relação a Trump, acho que ele não está tão interessado em expandir o poder econômico dos EUA no Sul Global — nem no fluxo de capitais, nem na promoção de uma economia global ou transfronteiriça. Pense que, em seu primeiro governo, uma das ações imediatas de seu governo, em janeiro de 2017, foi retirar-se da Parceria Transpacífica (TPP). Isso é muito diferente do que o Partido Democrata quer. A mesma coisa aconteceu com a forma diferente de lidar com a ocupação do Afeganistão durante a mudança de governo de Trump para Biden. Acho que Trump está basicamente interessado em trazer o capital de volta para os EUA, o chamado reshoring, porque ele acusa as corporações de levar empregos para fora do país. Toda essa ideia de colocar os “Estados Unidos em primeiro lugar” é seu ponto de apoio. E seus apoiadores odeiam as grandes empresas de tecnologia do Vale do Silício e de Wall Street. Embora o próprio Trump seja obviamente um grande capitalista, ele explora esses sentimentos contra o grande capital. Entretanto, sua ideia não é tanto expandir os EUA, mas priorizar o mercado doméstico.

Será que o trumpismo se posiciona como completamente alheio aos problemas globais?

Eu diria que, em geral, sim, embora obviamente preservando o poder unilateral em questões mundiais. Ele é claramente anti-imigração. Em termos militares, eu o vejo mais comprometido e interessado em ter um país poderoso em si mesmo novamente, não um país de alianças como a OTAN, pois ele não gosta disso. Em resumo, vejo uma perspectiva diferente da dos democratas. Há diferenças reais entre os dois candidatos e os dois projetos. A pergunta que faço é se nós, no Sul Global, devemos escolher uma dessas duas opções. Minha resposta é que não precisamos fazer isso, não temos interesse na ordem liberal ou na ordem “América em primeiro lugar”. Mas precisamos prestar atenção em qual das duas posições prevalece e tentar tirar proveito dessas contradições.

Olhando das Filipinas, qual é o papel do Sudeste Asiático na reconfiguração global em andamento?

Há muitas contradições. O Vietnã e as Filipinas são muito críticos em relação à China pelo mesmo motivo: a disputa de limites no Mar do Sul da China, onde a China assumiu unilateralmente uma posição. É um mar com seis países reivindicantes e a China estabeleceu unilateralmente que 90% dele lhe pertence. Pode-se entender que a razão chinesa não é expansionista, mas defensiva – porque o Sudeste Asiático está muito próximo do núcleo industrial da China (Xangai, Guangzhou, suas áreas adjacentes etc.) e a ideia é que ela precisa proteger ou impedir um ataque dos EUA à sua infraestrutura produtiva. Em um cenário de guerra, isso é fundamental para a China, e os norte-americanos têm muitos ativos militares na área. Isso é compreensível do lado chinês, o que não é compreensível foi seu método unilateral de dizer “isso é nosso e, por ser nosso, vamos desenvolvê-lo de tal maneira”. A China deveria ter negociado isso com os outros países. Então, talvez fosse possível avançar na desmilitarização da área. É por isso, entre outros motivos, que o Vietnã critica a China nesse ponto. O país tem uma política externa independente. Como você sabe, já lutou no passado contra os norte-americanos e os franceses e exerce neutralidade diplomática.

E quanto ao seu país?

As Filipinas são diferentes. São totalmente aliadas militarmente aos EUA com o atual presidente Ferdinand Marcos Jr. Os norte-americanos têm nove bases militares e Marcos não tem nenhum senso de nacionalismo. Ele não se importa, só se preocupa com a fortuna de sua família, seu grupo central de pessoas próximas, a dinastia, seus investimentos milionários nos EUA e em outros países ocidentais, que podem ser facilmente expropriados se ele não fizer o que Washington quer. O governo de Marcos está completamente vendido aos EUA e não tem controle sobre a política de defesa.

E quanto ao cenário global, o restante das nações do Sudeste Asiático?

O restante da ASEAN, a associação que integra todas essas nações, é diversificado, mas a maioria da população tem uma opinião melhor sobre a China do que sobre os Estados Unidos, especialmente na Tailândia, no Camboja, na Indonésia e na Malásia. A maioria prefere a China como parceira aos EUA, de acordo com relatórios recentes. Os únicos dois países que se opõem a isso são, não surpreendentemente pelo que expliquei, embora por motivos diferentes, o Vietnã e as Filipinas. Essa é a situação atual na região, que se tornou decisiva no tabuleiro de xadrez global.

 

A Europa se prepara para a guerra, por Flávio Aguiar

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Flávio Aguiar – A Terra é Redonda – 18/03/2025

Sempre que os países da Europa prepararam-se para uma guerra, a guerra aconteceu. E este continente propiciou as duas guerras que em toda a história humana ganharam o triste título de “mundiais”

Há sinais de fumaça no horizonte de que os países europeus preparam-se para a guerra. Que guerra? Contra a Rússia.

Tomemos a Alemanha como exemplo.

Primeiro exemplo: a Volkswagen, empresa que há quase um século está vinculada à identidade nacional alemã, vai fechar três de suas fábricas, devido à crise econômica que assola o país e o continente. Mas há uma empresa interessada na compra das três. Qual? a Rheinmetall, uma das principais produtoras de armamentos na Alemanha. Por quê? Porque seus diretores prevêem uma margem de lucro considerável, graças ao anúncio, por parte da presidenta da Comissão Europeia, Úrsula von der Leyen, de que a União vai investir 800 bilhões de euros em armamentos para incrementar a defesa do continente.

Exemplo 2: paradoxalmente, o diretor de uma das agências do serviço secreto alemão, Bruno Kahl, do Bundesnachrichtendienst, manifestou, em entrevista à Deutsche Welle, em 03/03/2025, a preocupação com a possibilidade de que a guerra na Ucrânia tenha um “fim rápido”. Por quê? Segundo ele, porque isto liberaria a Rússia para ameaçar o restante da Europa antes de 2029 ou 2030, isto é, antes de que os outros países do continente estejam preparados para enfrentar o “inimigo”. A afirmativa, que provocou indignação em Kiev, mostra que há uma estratégia pensada a respeito da possibilidade e previsão da guerra.

E a indústria da guerra parece ser um dos vetores mais importantes para a recuperação econômica da Alemanha e do continente.

A Alemanha ocupa o quinto lugar entre os maiores exportadores de armas do mundo. São eles, em ordem crescente, segundo o Instituto Internacional de Investigação para a Paz, sediado em Estocolmo: Israel, Coreia do Sul, Espanha, Reino Unido, Alemanha, China, França e Rússia praticamente empatadas, e Estados Unidos.

Há duas enormes discrepâncias entre estes países. Primeira: de Israel à China, o percentual de participação nas exportações mundiais de armas fica em um dígito, de 1 a 5%. Com Rússia e França, o índice dá um salto, para 10,5 e 10,9%, respectivamente, sendo que a França superou a Rússia porque as exportações desta caíram, graças à guerra com a Ucrânia e os aliados que a apoiam.

Com os Estados Unidos, o salto é maior ainda: o índice de sua participação é de 40% do mercado mundial.

Segunda discrepância: nos últimos dez anos o valor destas exportações caiu, em oito dos dez países. As duas grandes exceções são a França e os Estados Unidos. No caso destes, o aumento foi de 24%.

Das 100 maiores empresas g“`privadas de produção de armamentos, 41 são norte-americanas, e 27 europeias, excluindo-se a Rússia, que tem apenas 2 empresas entre elas.

Invertendo-se a perspectiva, verifica-se que o país que mais importa armas no mundo é a Ucrânia, com quase 9% do setor. E seus principais fornecedores são os Estados Unidos, a Alemanha e a Polônia.

Assinale-se uma curiosidade: nenhum país da América Latina figura entre os principais exportadores ou importadores de armas.

Aqueles números acima mostram que, como no passado, infelizmente a guerra ou sua perspectiva permanecem sendo um bom negócio para afastar o fantasma de recessões econômicas para quem produza armas, não para quem suporte seus efeitos.

Como afirmei no começo, há sinais de fumaça no horizonte apontando na direção de uma guerra. Sabe-se que onde há fumaça, há fogo. Sempre que os países da Europa se prepararam para uma guerra, a guerra aconteceu. E este continente propiciou as duas guerras que em toda a história humana ganharam o triste título de “mundiais”.

Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).

 

Paulo Francis anteviu em 1972 cisão nos EUA que levaria a Trump, por Gabriel Trigueiro

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Reportagens compiladas em livro trazem valiosas lições a políticos e eleitores democratas

Gabriel Trigueiro, Doutor em história comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro

Folha de São Paulo, 23/02/2025

Paulo Francis publicou em 1972 o livro “Nixon x McGovern: As Duas Américas”, reunião de reportagens sobre a eleição nos EUA naquela mesmo ano. Lido agora, na volta de Trump à Presidência, a obra soa profética ao antecipar a virada populista na direita americana, a divisão profunda entre as elites culturais e econômicas e a “maioria silenciosa”, a idealização provinciana de uma “América real” e as estratégias de comunicação para descredibilizar as instituições e toda espécie de crítica.

Em 1972, durante as eleições presidenciais dos EUA, a melhor cobertura não foi feita por um americano, mas sim por um brasileiro: o jornalista e crítico cultural Paulo Francis. Em sua obra “Nixon x McGovern: As Duas Américas”, cada capítulo foi escrito durante um momento diferente da campanha, o que deu urgência e dinamismo à sua análise.

Mesmo quem não se interessa em acompanhar a vida política norte-americana pode se divertir com a leitura do livro, já que o texto de Francis é escrito à moda de um thriller político com leveza e ritmo ágil. Seu estilo tinha algo de Bernard Shaw: frases curtas e economia de conectivos, deixando o leitor quase sem fôlego no virar da página.

Publicado no início dos anos 1970, “Nixon x McGovern” nos dá perspectivas sobre algumas disputas políticas norte-americanas contemporâneas. Os dois principais partidos, Republicano e Democrata, são duas máquinas de arrecadação e propaganda. É nesses termos que devem ser compreendidos.

“Nixon x McGovern” é um livro que anteviu o trumpismo. Traçando a origem de algumas estratégias utilizadas por Donald Trump, especialmente no âmbito da comunicação, encontraremos suas raízes na virada populista que Richard Nixon imprimiu na década de 1970 ao movimento conservador.

Afinal, Nixon foi eleito pelos descontentes com a “contracultura” e “os hippies”, da mesma maneira como o atual presidente dos EUA foi eleito ao se contrapor à “cultura woke” e à “esquerda radical”: termos imprecisos e vagos, mas úteis na elaboração de seu discurso como um “americano comum”. E como construir esse representante da “América real”?

Política populista x política aspiracional

No sucesso da campanha de Nixon para a Presidência americana em 1972, foi proveitoso o conceito de “maioria silenciosa”: uma expressão antiga popularizada com um novo sentido pelo seu redator de discursos, Patrick Buchanan.

Foi vendida a ideia de que qualquer posição crítica aos EUA (normalmente associada à esquerda, intelectuais e a grupos como negros, gays etc.) não representava a “América real”, nem o “americano médio”. Embora pertencesse a um grupo majoritário, esse “americano médio” estaria em silêncio e sem a representatividade institucional adequada. Nixon tinha a pretensão de falar por essa América sem voz.

Esse é um momento de virada nos EUA: a ascensão do populismo, uma corrente antiga no país, mas que desta vez estava adaptada às novas formas de comunicação, e fazia oposição a uma tradição aspiracional e quase aristocrática da política norte-americana. Francis constrói uma radiografia precisa dessa guinada.

Ambas as escolas de pensamento, definindo-as aqui como “populista” e “aspiracional”, existem nos EUA e disputam o poder pelo menos desde a independência do país.

A diferença é que durante o processo eleitoral de 1972 esse negócio ganhou uma roupagem contemporânea, irrigada com grana do “big business”, verba publicitária nababesca e o uso inédito de meios de comunicação como TV e rádio.

A diferença das duas escolas fica mais evidente quando pensamos em John f. Kennedy e Richard Nixon, que disputaram a Casa Branca em 1960. Segundo Francis, o primeiro exibia “a sofisticação da Costa Leste (centro financeiro e intelectual dos EUA), o sotaque Boston e Harvard”. Foi, por definição, um modelo aspiracional da América educada, de sangue azul e dinheiro antigo. No entanto, isso vinha com um custo alto: “o povo admirava Kennedy, mas o sentia acima das respectivas cabeças”.

Já Nixon “é o que inúmeros americanos são e têm vergonha de ser: o careta preconceituoso, aquisitivo, isento de imaginação e ideias, tão inseguro de si próprio que recebe qualquer crítica aos EUA como uma ofensa pessoal”.

No entanto, a cada vez que gente como Nixon ou, hoje em dia, alguém como Trump, se torna o saco de pancadas da classe intelectual, essa ofensa jamais fica circunscrita ao objeto da crítica: o político conservador da vez. Ela é coletivizada.

O ofendido passa a ser agora o grosso da população, que, repare, não se identifica, e jamais se identificou, com códigos de comportamentos cosmopolitas. Até porque são códigos que podem soar arbitrários, elitistas, exagerados e autoritários.

O partido do rei

Hoje a política norte-americana assumiu a seguinte configuração: o Partido Democrata comporta alas socialistas, passa por liberais, liberais-conservadores, até chegar a conservadores moderados. A orientação partidária Democrata é, no fundo, conservadora —não em questões sociais e de costumes, claro, mas no sentido de que ela é refratária a mudanças e tem uma estrutura interna rígida, hierarquizada e comandada por oligarquias e caciques.

O Partido Republicano, em contraste, virou o partido do rei. É composto por gente que acredita, ou finge acreditar, que Donald Trump é uma espécie de imperador que teve o seu “direito de sucessão” usurpado por falsos postulantes, e que agora tem o dever de restaurar as glórias perdidas da antiga América, corrigindo os excessos liberais e constitucionais de uma República em decadência.

Muitos analistas, inclusive eu mesmo nesta Folha, subestimaram a capacidade de adesão radical à ideologia trumpista. O fato é que o Partido Republicano se tornou, pelo menos desde 2016, o que os britânicos do século 17 chamariam de “loyalist” —sua agenda está subordinada à vontade do rei. É como se Trump reiteradamente dissesse: “O partido sou eu”. E todo mundo comprasse a ideia.

Em 1972, Francis declarou: “A diferença entre as convenções democrata e republicana é a democracia para ditadura. Toda a gama de opiniões nos EUA apareceu com os democratas. Louvaminhas a Nixon consumiram tudo na republicana. Esta parecia um congresso do PC stalinista, onde o líder é o ‘deus ex-machina'”. Já estava lá o alerta para esse modo de operar totalitário que Nixon estabelecia dentro do partido.

“Certos animais comem o próprio vômito”

Durante as eleições de 2016, Trump era considerado uma figura política desagregadora, que iria fraturar não apenas o seu partido, mas o próprio movimento conservador. No entanto, tão logo foi eleito, e mesmo após sua derrota de 2020, houve uma reconfiguração de forças: um processo revolucionário envolvendo a máquina Republicana e os intelectuais que a orbitavam, com a pretensão de se tornarem conselheiros e amigos do rei.

Gente como Marco Rúbio, ex-senador pelo Estado da Flórida e atual Secretário de Estado desse segundo mandato presidencial, bem como o próprio vice J.D. Vance —ambos foram quadros políticos e intelectuais que no início se opuseram com veemência à ascensão de Trump, mas que logo em seguida já estavam na fila para lhe bajular.

Acompanhando a eleição de 1972, Francis destacava o adesismo de Nelson Rockefeller a Nixon. “Nelson Rockefeller, a quem Nixon venceu e humilhou em 1960, 1964 e 1968, fez o discurso de saudação ao candidato. Certos animais comem o próprio vômito. Certos humanos também, pelo visto.” Nada de novo sob o sol, repare.

O ataque à “mídia liberal”

Na campanha de Nixon, seu discurso parecia vindo da linguagem publicitária criada para a TV. Francis escreve: “Nixon é um admirador profundo das técnicas de vendas de detergentes, mata-ratos, pastas de dentes, sprays vaginais e outros produtos que infestam o vídeo americano. Constantemente, usa slogans reminiscentes dos ditos em discursos eleitorais”.

Não custa lembrar que Trump obteve fama nacional como figura midiática associada um reality show televisivo, “O aprendiz”. Durante os quase 15 anos em que esteve no ar, aprimorou o tino para uma linguagem que se comunica com públicos amplos e aprendeu o alfabeto das métricas de audiência.

Se Trump observou Nixon com o caderninho de anotações em mãos, certamente notou que seu vice, Spiro Agnew, atacava aquilo que, anos depois, recebeu o apelido entre os conservadores de “liberal media”. E estabeleceu desse modo o tom da maioria dos políticos de direita subsequentes, até que isso culminasse na sua versão mais predatória: o trumpismo. Não custa lembrar da declaração, ainda na primeira coletiva de seu primeiro governo, em 2017, de que a imprensa seria tratada como “o partido de oposição”.

Ataques à imprensa eram uma estratégia de apelo popular, porque eram baseados na ideia de que os comentaristas da TV e os editores desses jornais fossem um bando de intelectuais elitistas, apartados do resto da sociedade e do americano médio em gostos e costumes.

Mas Francis arrematou: “Para um político matuto como Agnew, a linguagem de Times e Post, ou da CBS, deve soar elitista. Certamente é superior ao nível de Jararaca e Ratinho a que ele está habituado”.

Francis percebia que descredibilizar os veículos de jornalismo era uma tática de longo prazo que visava criar desconfiança em qualquer informação apurada e publicada e, portanto, borrar as fronteiras do que são fatos ou apenas narrativas inventadas. Se remete a alguma técnica empregada em 2025, não é mera coincidência.

Alguns nomes da nova direita brasileira gostam de invocar Paulo Francis como um antecedente intelectual e uma genealogia respeitável de seus próprios argumentos e posição política. O Francis a que se referem é o defensor da alta cultura, o antipetista antes de isso ser modinha, o autor que sempre tinha à mão algum deboche sobre a esquerda.

No entanto, a realidade é mais complexa. Foi o sujeito, afinal, que argumentou que “(…) o liberalismo americano, se deseja fazer justiça ao nome, precisa evoluir para uma forma de socialismo, democrática e em outros respeitos compatíveis com as tradições do país”.

Voltando aos EUA, de lá para cá liberais e democratas não parecem ter aprendido muita coisa. Não lhes faria mal ler o livro desse brasileiro escrito no distante ano de 1972, mas com uma ou outra lição valiosa a ensiná-los sobre a política de seu próprio país.