A engenharia do eu na era das redes sociais, por José Alberto Roza

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Reflexões desde o Orkut como fenômeno cultural até as novas formas de existir no mundo hiperconectado atual. Hoje, a tecnologia é integrada ao corpo. E o sujeito é um curador de narrativas e imagens para a apreciação alheia, autopromoção, pertencimento e validação.

Por José Alberto Roza, na Cult – OUTRAS MÍDIAS – 19/09/2025

Do Orkut à hiperconectividade: o nascer da subjetividade digital

Há um eco recorrente nas redes sociais brasileiras: o burburinho sobre a possível volta do Orkut, marcado por nostalgia de uma era digital de comunidades vibrantes e autodescoberta. Para mim, esse tema tem um significado especial. Em 2009, quando o Orkut começava seu declínio frente ao Facebook, ele foi objeto central da minha dissertação de mestrado em Psicologia, que buscava entender as inter-relações adolescentes daquele tempo. Observei ali, mais que dinâmicas de uma rede social, o início de novas formas de existir e se relacionar que hoje são a essência da nossa hiperconectividade, ou dos tempos apressados e hipermodernos
propostos por Lipovetsky.

O Orkut foi, para o Brasil, mais que um site de relacionamentos – foi um fenômeno cultural inédito, reunindo cerca de 35 milhões de usuários e oferecendo aos adolescentes um palco para definir a própria identidade, colecionar validações, expressar sentimentos e pertencer a comunidades. Era uma experimentação em massa da vida mediada por telas, que à época dependia dos computadores de mesa, antes da onipresença dos celulares. Naquele ambiente efervescente, era possível perceber ainda restavam certos limites entre identidade digital e offline, mas já se notava a tendência à fusão. Atualmente, esses limites praticamente desapareceram: o real e o virtual se mesclam de forma quase indissociável, com o “estar conectado” tornando-se condição permanente da subjetividade contemporânea.

Minha pesquisa aconteceu nesse cenário de transição, centrada na adolescência imersa no ciberespaço nascente. Não era uma análise tecnológica, mas sim um esforço para desvendar como a presença crescente das redes e dispositivos poderia reconfigurar a psique humana. O Orkut serviu de laboratório aberto, onde pude testemunhar as primeiras manifestações do que hoje é comum: a ansiedade da desconexão, a curadoria da imagem e a fluidez dos relacionamentos.

A Psicanálise acompanhou-me ao longo dessas duas décadas de mudanças. Três adolescentes, protagonistas da minha pesquisa, forneceram as primeiras pistas das subjetividades emergentes: uma conectada e ansiosa, outra indiferente aos ditames digitais, uma terceira adaptando-se com leveza surpreendente. Suas vozes, angústias e esperanças, revisitadas hoje, convidam a uma reflexão mais humana e psicanalítica sobre nossa relação com o mundo conectado.

Máquina In-corporada: Tecnologia, Corpo e Vínculos

Com o passar dos anos, já era visível que a tecnologia deixava de ser apenas uma ferramenta externa, passando a se integrar ao próprio ser humano. O que antes era um simples artefato se transformava em uma extensão quase orgânica do corpo. Em meus estudos daquele período, propunha-se que a tecnologia não estivesse mais “diante” do homem, mas se situasse “dentro” do corpo contemporâneo. O conceito de “máquina in-corporada” — aprofundado sob o olhar psicanalítico — sugere que o dispositivo, ao ser internalizado, transforma nossa percepção, desejos e corporalidade, dissolvendo fronteiras entre o “eu” e a tecnologia. Ela deixa de ser algo externo e passa a moldar profundamente nossas formas de sentir, relacionar-se e existir.

O imperativo de “estar conectado” deixava de ser mera escolha social e tornava-se o início de uma simbiose. Comunidades, “scraps” e depoimentos operavam como mecanismos de validação e demandavam a curadoria de identidades digitais cada vez mais relevantes que a pessoa offline. Cada atualização e interação era direcionada a um público amplo, exigindo performance contínua e auto-observação intensa, antecipando o ciclo de validação social que hoje nos atravessa.

Além disso, nos últimos anos, a inteligência artificial passou a influenciar fortemente as redes sociais, otimizando a criação de conteúdo e a análise de dados do comportamento dos usuários. Ferramentas automatizadas ajudam desde a sugestão de temas à edição de imagens, moldando novas formas de interação e autoexpressão.

Nos relatos dos jovens, a urgência da conexão digital se manifestava nitidamente. Uma frase emblemática: “Eu tô incomunicável, daí dá desespero, parece que você não faz parte do mundo, sabe?”. Isso revela o medo profundo de exclusão e esquecimento: a tecnologia, que antes era meio, havia sido elevada a condição fundamental de pertencimento, quase uma prótese existencial. Para alguns, desconectar equivalia a perder uma parte de si, uma ameaça à integridade psíquica e social.

Hoje, o smartphone representa o ápice da máquina in-corporada. Nossas “próteses cognitivas” nos acompanham o tempo todo e já não estão restritas ao celular: relógios inteligentes e outros wearables monitoram e notificam em tempo real, tornando-se “extensões biométricas e comunicacionais”. O celular, antes posse, agora compõe um ecossistema de dispositivos que nos mantém constantemente conectados, inclusive em momentos antes reservados à introspecção ou à interação direta. A ansiedade da desconexão, que antes parecia traço isolado de alguns jovens, agora é uma neurose global, conhecida como FOMO (Fear of Missing Out). A vida sem celular soa inimaginável; a falta de internet pode desencadear angústia comparável a grandes perdas.

As consequências psíquicas dessa incorporação ainda estão sendo desvendadas. O tempo se fragmenta em microinterações, induzindo imediatismo. O espaço se desloca prioritariamente para o virtual, enquanto o entorno físico pode perder sentido. A linha entre “eu” físico e digital dissolve-se: autoestima frequentemente atrelada a números de curtidas e seguidores, performance que nunca cessa, e crescente dificuldade de aceitar vulnerabilidades. A máquina in-corporada não é só avanço técnico, mas agente reformador do psiquismo, dos laços sociais e da própria concepção do que é ser humano.

Ilha de Edição e Disfarce: A Curadoria e Performance da Identidade Digital

A profunda integração da tecnologia deu origem à “ilha de edição”, conceito que pode representar o indivíduo como curador de imagens e narrativas cuidadosamente selecionadas para apreciação alheia. Mais que espaço virtual, a ilha de edição é a sala de controle onde cada um edita sua própria presença. O
fenômeno antes restrito às celebridades agora se generalizou: redes sociais transformam todos em editores e promotores da própria imagem, tornando rotineira — e muitas vezes exaustiva — a prática da autopromoção.

Na época do Orkut, esse processo já se desenhava, embora de modo mais rudimentar. Perfis funcionavam como vitrines: exibiam as melhores fotos, textos idealizados e depoimentos estrategicamente selecionados. Os adolescentes, atentos aos mínimos detalhes desses espaços, buscavam pertencimento e validação pelo pertencimento a comunidades e pela curadoria quase instintiva de si mesmos. Esse exercício antecipava o que seria mais tarde necessidade existencial na hiperconectividade: a montagem de uma versão “aprimorada” do eu, em contínua busca por aceitação digital.

A “ilha de edição” é, portanto, um processo dinâmico, impulsionado por feedbacks constantes e novas tendências. Ela exige permanente vigilância sobre a própria performance, submetendo a pessoa a um ciclo de remodelação da identidade guiado pelo olhar externo. Tal liberdade de expressão, paradoxalmente, aprisiona na busca por perfeição, gerando divergência entre realidade e imagem digital, e pode acentuar a fragilidade do eu real por trás da tela.

O conceito de “Paixão do Disfarce”, trabalhado por Fábio Herrmann, torna-se central nesse contexto. O disfarce não é mera enganação, mas um comportamento social necessário: seguimos códigos implícitos de relacionamento, adaptando-nos e experimentando papéis diversos. No ambiente digital, a necessidade de disfarce se intensifica, tornando-se estratégia quase obrigatória para aceitação social. O palco digital potencializa a maleabilidade das identidades: o indivíduo adapta suas subjetividades conforme o ambiente e o público, não como falsidade, mas em resposta às demandas de adaptação e reconhecimento.

Além de aprimorar a exposição, o disfarce digital também serve como proteção diante da constante exposição e da busca por aprovação. Herrmann considera que o “eu” é em si uma “máscara inventada”, trabalhada ao longo da vida — e as redes são o espaço primordial dessa construção e revisão. A circulação da imagem de si torna-se permanente, impulsionada pelo imperativo de pertencer e de manter-se visível, instaurando um ideal de “autenticidade performada” que pode ser insustentável a longo prazo.

Conexão versus Vínculo: Relações, Mal-estar e Cultura Digital

A incorporação tecnológica não impactou apenas o modo como nos apresentamos, mas reformulou profundamente as formas de nos relacionarmos. A passagem do século XX para a era digital abriu espaço à “conexão”, que suplantou o vínculo como modelo dominante das interações. Profundidade e permanência foram substituídas pela instantaneidade e funcionalidade, alterando inclusive o significado dos próprios termos: “amigos” e “relacionamentos” passaram a dar lugar a “conexões”, “seguidores” e “contatos”. Essa incorporação pode ser pensada a partir Sherry Turkle, que analisa a fusão entre os dois mundos desde “Alone Together” e outros escritos sobre “vida nas telas”.

O padrão de descartabilidade, antes restrito ao ambiente virtual, agora influencia expectativas sobre relações offline, tornando o compromisso menos valorizado. Bloqueio, unfollow ou ghosting são práticas comuns, evidenciando a preferência por conveniência e menor exposição à vulnerabilidade. Relações caracterizadas pela busca de satisfação imediata, alimentadas pela ilusão de infinitas possibilidades, promovem impermanência e evitam investimento emocional profundo — menos investimento, menos insegurança.

Paradoxalmente, tal hiperconectividade intensifica a solidão: o volume de interações não garante qualidade, e a constante disponibilidade raramente se traduz em apoio significativo. A superficialidade dos contatos — mediada por telas, sem entonação ou contato humano direto — resulta em vazio relacional e dificulta a construção de laços autênticos. O resultado é uma solidão mascarada por notificações e conversas instantâneas, que estimula um ciclo vicioso de mais conexões em busca de preenchimento.

O espaço social também é redefinido: fronteiras entre físico e virtual se diluem, com conversas migrando para aplicativos e redes, onde predominam trocas utilitárias sobre o aprofundamento do diálogo. O custo da praticidade é ignorar recursos essenciais da comunicação — voz, olhar, presença corpórea— tornando o outro mais facilmente descartável e adaptável à nossa própria “edição” digital.

Essa lógica algorítmica permite hoje uma personalização cada vez maior das experiências digitais, aproximando conteúdos e pessoas segundo interesse compartilhados. Ainda que essa segmentação prometa conexões mais genuínas, ela reforça tanto comunidades quanto bolhas de convivência limitadas.

O fenômeno pode ser compreendido a partir dos pressupostos freudianos sobre o “mal-estar na civilização”. Freud observa que as exigências, normas e interdições culturais sempre entram em conflito com os desejos e impulsos individuais, gerando tensões constantes entre desejo, frustração e adaptação. Na era digital, essa dinâmica se potencializa: as redes sociais promovem uma promessa de felicidade e reconhecimento coletivo, que é rapidamente frustrada pela comparação contínua, busca de aprovação imediata e exposição a padrões inalcançáveis de sucesso e felicidade.

Esse fenômeno expande a repressão, já apontada por Freud como um dos “preços” da civilização: reprime-se, nas redes, não apenas o inaceitável socialmente, mas também tudo aquilo que diverge do ideal de felicidade e produtividade incessantes. Essa constante exposição e necessidade de validação levam muitos ao sofrimento psíquico, ansiedade e até quadros depressivos. O sujeito, submetido à aprovação social medida por curtidas, seguidores e comentários, muitas vezes renuncia aos próprios desejos e necessidades para se encaixar nas demandas externas.

Freud, ademais, definiu o desamparo psíquico como uma condição universal humana. Na contemporaneidade digital, esse sentimento é radicalizado: vivemos conectados, em permanente exposição, na fronteira cada vez mais difusa entre realidade e virtualidade. O excesso de estímulos, os “laços” frágeis e transitórios e o imperativo de pertencimento ampliam tanto a experiência de solidão quanto o desamparo, potencializando o mal-estar e a sensação de insuficiência diante dos padrões impostos pelas plataformas sociais.

Bauman aponta que essa liquidez dos vínculos —relações rápidas e potentes, porém frágeis e prontas para o descarte — é amplificada pelas mídias digitais. Goffman, por sua vez, poderia entender as redes como palcos de encenações múltiplas, onde a gestão da impressão se torna exaustiva e central.

Assim, o mal-estar na civilização adquire contornos digitais: as novas formas de sofrimento emergem do choque entre o ideal de plenitude produzido pela cultura das redes e a impossibilidade de sua realização concreta. O sintoma social contemporâneo manifesta-se no ciclo de performance, ansiedade, solidão e busca incessante por reconhecimento.

A era digital exige reflexão: ampliar conexões não significa qualidade relacional. A valorização da superfície em detrimento da profundidade, o medo constante de perder o lugar no ciclo de visibilidade digital, e o predomínio do disfarce como instrumento de relação impõem desafios inéditos à saúde mental e à construção do eu. O desafio hoje é cultivar vínculos genuínos num universo que estimula a circulação veloz de imagens e a performance exaustiva, afetando perigosamente aquilo que realmente somos.

O Eco Digital na Psique e Caminhos para (Re)Humanização

A profunda remodelação de nosso psiquismo pelas “máquinas in-corporadas” e “ilhas de edição” produz efeitos complexos na saúde mental. O ideal de performance ininterrupta nas redes sociais, sustentado pelo desejo de validação, impõe ansiedade crescente, dependência de aprovação externa e um ciclo de autocrítica e comparação constante. O eu digital, ao buscar aceitação, pode se aprisionar em narrativas editadas, minando espontaneidade e autenticidade.

Neste ambiente de hiperconectividade, a solidão se manifesta paradoxalmente: ampliam-se as possibilidades de comunicação, mas a qualidade das interações se dilui. Relações intermediadas por telas — sem contato direto, sem o corpo, sem a tridimensionalidade das trocas — facilitam vínculos frágeis e dificultam o suporte emocional real, agravando a sensação de desamparo e o medo do esquecimento ou do isolamento. Pesquisas recentes apontam que essa “neurose de ansiedade digital” apresenta sintomas próprios: preocupação crônica com avaliação social, medo constante de exclusão e manutenção de uma vigilância inquieta sobre a própria imagem digital.

Recentemente, os vídeos curtos e dinâmicos tornaram-se o formato dominante, favorecendo a busca por engajamento emocional imediato. Plataformas priorizam conteúdos visuais rápidos, ampliando tanto o potencial criativo quanto a superficialidade das trocas. Comparar-se continuamente a vidas editadas intensifica sentimentos de inadequação, especialmente entre jovens, cuja identidade está em construção e que buscam aprovação para consolidar autoestima e autovalor. O tédio, antes estímulo para criatividade e reflexão, se torna experiência aversiva — combatida com mais estímulos digitais, reforçando o ciclo de superficialidade e fuga da própria interioridade.

Diante desse quadro, a (re)humanização da experiência digital é imperativa. A Psicanálise propõe autoconhecimento crítico: podemos reconhecer a “ilha de edição” e o papel do disfarce como construções sociais, e não verdades sobre o eu; estabelecer limites de uso, cultivar interações presenciais, valorizar vínculos autênticos e a escuta mútua. O autocuidado digital, que inclui o “detox”, a contemplação do presente e a priorização da vida “não editada”, é cada vez mais essencial para o bem-estar psíquico.

A liberdade na era digital exige agência. O desafio não está em negar a tecnologia, mas utilizá-la como aliada, não como ditadora de nossa subjetividade. Cabe-nos buscar autenticidade e profundidade nos vínculos, discernir entre performance e verdade e encontrar espaços de silêncio para que a psique floresça além do algoritmo e do ruído. Mesmo diante da predominância da edição e da performance digital, cresce o discurso da valorização da autenticidade. Os usuários e influenciadores buscam se mostrar ‘reais’, expondo vulnerabilidades e cotidiano, numa tentativa de criar laços mais sinceros e diferenciados no meio virtual. Neste cenário, uma engenharia do eu consciente e crítica é essencial: optar pela qualidade do vínculo em vez da quantidade de conexões, reconhecer limites, acolher vulnerabilidades e cultivar a riqueza de experiências reais — restaurando, assim, o valor do humano diante da máquina e das imagens.

Os males da desindustrialização, por Marcio Pochmann

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 Marcio Pochmann – A Terra é Redonda – 16/09/2025

O abandono da industrialização madura condenou o país a uma reprimarização da economia, fragmentando o tecido social e espalhando a pobreza urbana para o interior. O fim da metropolização industrial não significou desenvolvimento, mas a multiplicação de favelas em novos polos de commodities, onde a riqueza exportadora convive com a informalidade e a violência organizada

De forma prematura, o processo de industrialização nacional promovido pela Revolução de 1930 foi interrompido pelas regressivas reformas neoliberais instaladas a partir de 1990. Com isso, as características principais da sociedade urbana e industrial – ainda incompleta – que havia sucedido o longevo e primitivo agrarismo há cem anos passou a dar lugar a outra estrutura social dos serviços hiperconectada por tecnologias de informação e comunicação.

Concomitante com a ruína da sociedade industrial, o fenômeno da metropolização, outrora promovida pela dinâmica da industrialização mais concentrada nas cidades litorâneas, terminou sendo embargado. Com o esvaziamento da importância da indústria, os empregos de qualidade e maior remuneração foram sucedidos por ocupações nos serviços associados, em geral, mais à circulação do que a produção, estimulando o inédito processo da desmetropolização nas regiões litorâneas.

Simultaneamente, a retomada do modelo econômico primário exportador passou a promover – mais distante da convencional rede urbana nacional – a emergência de enclaves nos espaços urbanos no interior do país face à expansão da renda nos negócios, em geral, voltados ao comércio exterior. Dessa forma, o fenômeno da urbanização periférica do capitalismo que estava praticamente concentrado nas antigas metrópoles litorâneas brasileiras passou rapidamente a ser interiorizado com outro tipo de dinâmica urbana em cidades de médio porte.

Os males da desindustrialização

O declínio da atividade industrial no conjunto da economia brasileira compreende, em geral, o processo antecipado da desindustrialização desde o final do século 20. Nos países do Norte Global com a industrialização considerada madura, a queda relativa da atividade industrial aconteceu em grande medida após o pleno atendimento da demanda populacional por bens manufaturados, favorecendo o maior deslocamento do consumo para serviços mediados pela elevação da renda per capita menos desigual.

No Brasil, contudo, a desindustrialização terminou ocorrendo precocemente, sem que o país tivesse ainda atingido o nível de industrialização madura. Assim, uma parcela significativa da população ficou distante do acesso pleno aos bens manufaturados, simultaneamente à estagnação relativa da renda per capita e à repartição desigual da riqueza sustentada no processo fictício da financeirização.

No ano de 2024, por exemplo, o setor industrial representou a metade da participação que havia sido registrada, em 1985, no Produto Interno Bruto nacional. No mesmo período de tempo, tanto a parcela do emprego industrial em relação ao total do emprego formal decaiu 44% como avançou parte dos postos de trabalhos mais qualificados na indústria foram substituídos pelos de serviços, em geral de menor produtividade e contida capacidade de geração de riqueza e desenvolvimento tecnológico.

Assim, o antigo projeto de avançar na direção nacional de uma economia complexa e diversificada foi sendo gradualmente superado pelo novo perfil da especialização produtiva ancorado em certo dinamismo regional assentado em commodities para exportação. Com a geração da renda exportadora, o Brasil passou a ter melhores condições de financiar o acesso aos bens e serviços de maior valor agregado por meio das importações, reposicionando-se na Divisão Internacional do Trabalho1.

A desmetropolização litorânea

A metropolização marca o processo de industrialização nacional concomitante com o enorme êxodo rural acontecido ao longo do século XX. Sem a realização da reforma agrária, comum nos países do Norte Global, o Brasil assistiu – concentrado no tempo – ao brutal deslocamento da população do campo no interior do país para poucas cidades litorâneos providas de intenso crescimento econômico industrial.

A cidade do Rio de Janeiro que até 1960 era a capital federal e economicamente uma das mais dinâmicas do país serve de exemplo da expansão desordenada ocorrida nos centros urbanos com base produtiva industrial. Entre os anos de 1950 e 1980, a intensa expansão populacional do município do Rio de Janeiro registrou o aumento de moradores em favelas que passou de 7,2% para 12,1% do total da população.2

Algo diferente da realidade das favelas que surgiram no final do século XIX no Brasil, quando muitos libertos sem recursos e excluídos de políticas públicas se deslocaram para áreas pouco povoadas, mais afastadas e precárias dos centros urbanos. A primeira favela brasileira teria surgido no ano de 1897 na cidade do Rio de Janeiro, em pleno Morro da Providência, com a chegada dos ex-combatentes da Guerra de Canudos (1897-1897) que lutaram na expectativa de receber uma moradia.

Uma especificidade da urbanização brasileira transcorrida durante o ciclo da industrialização nacional deveu-se, em geral, à ausência do planejamento nas cidades que diante da migração desenfreada produziu enorme desigualdade na ocupação do espaço urbano, sobretudo concentrado nas regiões litorâneas. De certa forma, a antiga pobreza rural terminou sendo transferida parcialmente para as grandes cidades, concomitante com o aparecimento de favelas em paralelo à ampliação da riqueza produzida pelo crescimento industrial do país.3

Toda essa transformação estrutural da sociedade brasileira imposta pela urbanização até a década de 1980 esteve submetida à elevação dos ganhos de produtividade do trabalho. Com isso, parte importante da pobreza advinda do campo foi sendo superada por empregos com salário superior ao nível de subsistência, sobretudo no segmento industrial.

Mas com a desindustrialização posta em marcha pelas reformas neoliberais regressivas desde 1990, a desmetropolização passou a se processar enquanto processo inverso da metropolização. Isso porque correspondeu ao afastamento da população, empresas e investimentos centrado nas grandes metrópoles na faixa litorânea para cidades de médio porte, seja em regiões metropolitanas, seja no interior do país.

Com a estagnação da produtividade do trabalho, especialmente nos antigos centros industriais do país, as grandes cidades litorâneas deixaram de ser atrativas à migração como anteriormente. Mesmo assim as favelas continuaram a se reproduzir com a presença de múltiplas gerações de moradores com antepassados, ainda que assistidos por avanços de urbanização.

Conforme revelado pelo Censo Demográfico de 2022, a população brasileira aumentou, diferentemente do conjunto dos residentes nas metrópoles litorâneas. As 27 capitais brasileiras mantiveram a participação no total da população entre os anos de 2010 e 2022, por exemplo, enquanto entre os censos demográficos de 1872 e 1980 foram as cidades com maior concentração de habitantes.

Os municípios de São Paulo e do Rio de Janeiro, as duas cidades mais populosas do país, exemplificam o processo da desmetropolização em regiões litorâneas. No ano de 2022, por exemplo, os dois municípios juntos responderam por 8,7% do total da população do país, enquanto em 1991 representavam 10,3%. Somente em 2025, quase 38% dos 5.571 municípios brasileiros tiveram redução no número de habitantes em relação ao ano de 2024.

Favelização no interior do país

O fenômeno da favelização ocorrido durante a urbanização processada no ciclo da industrialização nacional entre as décadas de 1930 e 1980 deixou de ser mais recentemente um problema exclusivo das metrópoles próximas da costa atlântica do país. Com a desindustrialização e a desmetropolização, a favelização tem avançado para algumas cidades do interior, compreendendo, por exemplo, os municípios que enriqueceram assentados, em geral, no modelo econômico primário-exportador.

Sejam estados com desindustrialização mais avançada como em São Paulo, exemplificado pelas cidades abastadas na produção sucroalcooleira (Ribeirão Preto e Sertãozinho), e no Rio de Janeiro, nas regiões petroleira (Macaé e Rio das Ostras) e da turística serrana (Petrópolis e Teresópolis), sejam estados com baixo graus de industrialização como nas regiões do Norte (Amazônia e Pará) e do Centro-Oeste (Distrito Federal e Goiás), a favelização da população no interior cresceu.4

A partir da década de 1990, justamente quando se tornou mais evidente no país a contenção do crescimento demográfico e a desaceleração da urbanização, ganhou impulso a parcela da população residindo em domicílios definidos como favela que saltou de 6,1 milhões (3,3% da população total), em 1991, para 16,4 milhões de pessoas (8,1% da população total), em 2022. Ainda que a comparação populacional não seja adequada diante de alterações metodológicas, percebe-se a aceleração tanto da quantidade de municípios com registros de população favelada, multiplicada por 3,1 vezes (de 209 para 656 cidades), como do número de favelas que passou de 2,7 mil para 12,3 mil (4,6 vezes maior).

De um lado, o Brasil segue concentrando população favelada nas metrópoles litorâneas diante do esvaziamento econômico provocado pela desindustrialização, violência e elevado custo da vida. Assim, a informalidade ocupacional em decréscimo nos antigos centros industriais passou a recuperar espaço urbano, tendo o destino das massas sobrantes aos novos requisitos do capitalismo rentista exposto a disputas entre o importantíssimo conjunto governamental dos programas de transferência de renda e o salto organizativo do banditismo social e/ou fanatismo religioso (sistema jagunço urbano).

De outro lado, as concentrações urbanas mais favelizadas revelam o deslocamento demográfico para municípios do interior que guardam alguma dinamicidade econômica a atrair população que vem, por exemplo, da floresta para se acumular ao longo de grandes rios da Amazônia. Também o fenômeno da favelização em cidades médias do interior do país que decorre do processo vinculado à dominância do modelo econômico primário-exportador.

Ao concentrar riqueza do comércio externo estimula localmente ocupações em atividades vinculadas ao comércio e serviços em geral. Dessa forma estimula a formação de quase enclaves locais que parecem repetir o passado da urbanização desigual ocorrida no passado sem planejamento nas regiões litorâneas, porém, agora, submetida à presença do novo sistema jagunço.

Marcio Pochmann, professor titular de economia na Unicamp, é o atual presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Autor, entre outros livros, de Novos horizontes do Brasil na quarta transformação estrutural (Editora da Unicamp).

Notas

  1. ARAUJO, E.; FEIJÓ, C. Industrialização e desindustrialização no Brasil.Curitiba: Appris, 2024; POCHMANN, M. Brasil sem industrialização: a herança renunciada. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2016; SAMPAIO, D. Desindustrialização e desenvolvimento regional (1985-2015). In: MONTEIRO NETO, A. et al. (orgs.) Desenvolvimento regional no Brasil: políticas, estratégias e perspectivasRio de Janeiro: Ipea, 2017.
  2. GUIMARÃES, A. As favelas do Distrito Federal e o Recenseamento de 1950. Revista Brasileira de Estatística. ano 14, n.55, jul./set., 1953; COSTA, V. Expansão e quantificação de favelas no município do Rio de Janeiro nas últimas décadas. Rio de Janeiro: Ippur/Ufrj, 1992.
  3. DA MATA, D. et alFavelas e dinâmica das cidades brasileiras. In: CARVALHO, A. et al. (orgs.) Ensaios sobre economia regional e urbana. Brasília: Ipea, 2007; SANTOS, M.  A urbanização brasileira. São Paulo: Editora HUCITEC, 1993; POCHMANN, M. A desmetropolização regressiva do Brasil. Outras palavras, 2022.
  4. PEQUENO, R. Expansão da favelização no Brasil.Observatório das Metrópoles, 2024; FREITAS, A. Favelas rurais e favelas urbanas no Brasil. Revista Políticas Públicas & Cidades, 13 (2), 2024; PÁDUA, J. Favelização na cidade média do agronegócio. Porto Alegre: UFRGS, 2020.

35 anos: o sistema que queremos e que precisamos ter, por Guimarães, Costa & Fernandes

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O SUS que almejamos e necessitamos passa inevitavelmente pela ampliação da Medicina de Família e Comunidade

Por Fabiano Guimarães, Brenda Costa e Arthur Fernandes

O Estado de São Paulo, 19/09/2025.

Em 2025, o Sistema Único de Saúde (SUS), um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde pública do mundo, celebra 35 anos de existência. Fundamentado a partir do artigo 196 da Constituição federal de 1988, o SUS é um pilar da cidadania brasileira, garantindo acesso integral à saúde, da prevenção e da atenção primária ao tratamento de alta complexidade, como câncer e transplantes, para milhões de pessoas, servindo como modelo e inspiração global por sua universalidade e abrangência, que contrastam com modelos fragmentados e de alto custo em outras nações.

Nessas três décadas e meia, o SUS impulsionou avanços notáveis: a drástica redução da mortalidade infantil, a erradicação da poliomielite e um calendário vacinal robusto e atualizado são testemunhos de sua eficácia e resiliência. Mais do que inspirar sistemas de saúde globais, o SUS alcança os locais mais remotos e as populações mais vulneráveis, oferecendo cuidado essencial sem custo direto ao paciente, um contraste marcante com a realidade de muitos países, onde o acesso à saúde é determinado pela capacidade de pagamento.

Mesmo com ampla atuação em diversas frentes, o SUS ainda está em processo de avanço em muitas áreas, principalmente na Atenção Primária à Saúde (APS) e no programa Estratégia Saúde da Família (ESF). Ambos são o ponto inicial de contato da população com o sistema, por meio das mais de 44 mil Unidades Básicas de Saúde espalhadas pelo País. Enquanto você lê este artigo, profissionais das mais de 50 mil equipes da ESF estão atuando nos mais diversos territórios do Brasil.

E qual seria o SUS que queremos e precisamos dentro da perspectiva real e futura da população brasileira? O SUS que almejamos e necessitamos, à luz das crescentes demandas futuras da população, como o envelhecimento demográfico e o aumento das doenças crônicas, passa inevitavelmente pela ampliação da Medicina de Família e Comunidade (MFC). Experiências bem-sucedidas em países como Canadá, Holanda e Reino Unido demonstram que investir massivamente na atenção integral e coordenada eleva a qualidade de vida da população e otimiza os recursos do sistema, gerando eficiência e sustentabilidade.

Na APS, o indivíduo é atendido de forma holística, considerando não apenas a doença, mas o contexto social, econômico e familiar do paciente, sendo encaminhado a especialistas apenas quando estritamente necessário. A presença de médicos e médicas de família e comunidade acessíveis, atuando como o profissional de referência para cada cidadão, é uma estratégia de saúde pública comprovadamente eficaz e custo-efetiva. Essa abordagem, alinhada às melhores práticas internacionais, é capaz de transformar o panorama da saúde no Brasil ao promover a saúde, prevenir doenças e gerenciar condições crônicas de forma mais eficiente.

A Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) corrobora: o investimento robusto na APS não só reduz custos operacionais, mas eleva a qualidade de vida e a eficiência global do sistema de saúde.

Ao centralizar os cuidados num único especialista que atua com a abordagem centrada na pessoa, o SUS oferta os princípios de longitudinalidade e integralidade. O acompanhamento ao longo da vida faz com que aquele médico ou médica conheça a pessoa com todos os seus determinantes sociais, inserida em seu contexto familiar e comunitário, e como tudo isso afeta a sua saúde, produzindo melhores tratamentos e prevenindo doenças, reduzindo excesso de exames e intervenções desnecessárias, promovendo assim uma economia ao sistema.

O SUS que existe já é grande, robusto e funcional, mas pode melhorar e estamos caminhando para isso. Novas políticas públicas estão sendo implementadas, assim como outras estão em discussão. Que o Sistema Único de Saúde, patrimônio do povo brasileiro, continue sua trajetória de sucesso, assegurando saúde e dignidade a todos. Vida longa ao SUS!

Fabiano Guimarães, Médico de família e comunidade, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, mestre em Saúde da Família Profsaude/UFJF, preceptor da Residência em Medicina de Família e Comunidade do HC-UFMG, é professor da Graduação em Medicina na Unifenas-BH

Brenda Costa, Médica de Família e Comunidade, diretora de Comunicação da Sbmfc, doutoranda em Saúde Pública na ENSP/Fiocruz, professora no departamento de Medicina Integral, Familiar e Comunitária, é preceptora do programa de residência em Medicina de Família e Comunidade da UERJ

Arthur Fernandes, Médico de família e comunidade, diretor do Departamento de Comunicação da Sbmfc, mestre em Cuidados Paliativos e Paliativista, preceptor da Residência em Medicina de Família e Comunidade da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF), é referência técnica distrital em MFC da SES-DF

Polarizações crescentes

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Vivemos numa comunidade internacional marcada por grandes confrontos políticos, discussões econômicas e desajustes sociais, com impactos generalizados para todos os indivíduos, empresas e governos nacionais, gerando constrangimentos para todos os setores sociais, conflitos bélicos e militares, crescimento tecnológico inimaginável e dificuldades crescentes de relacionamento interpessoal, além de grandes desequilíbrios emocionais e espirituais.

Neste ambiente de tantos desequilíbrios percebemos o aumento sistemático da polarização em todas as esferas e setores da comunidade global, cientistas renomados, responsáveis por pesquisas relevantes, se sentem ameaçados e perseguidos por movimentos negacionistas que renegam descobertas científicas importantes para a comunidade mundial, gerando incertezas, medos e instabilidades na população, contribuindo para a divulgação do pânico, da confusão e do descrédito das pesquisas científicas.

No front político, percebemos o incremento da polarização, embora percebamos que a discussão faz parte da lógica política para a construção dos ideais democráticos, os debates nos parlamentos são imprescindíveis, as conversações são fundamentais entre os atores sociais, políticos e econômicos para defenderem ideias e pensamentos com o intuito de fortalecer os laços sociais, aumentar e consolidar os consensos sociais, vislumbrando um bem-estar na comunidade. Infelizmente, as polarizações crescentes, em todas as regiões do mundo, nos trazem confrontos físicos, agressões constantes, violências verbais, cancelamentos, represálias e inverdades, que contribuem para a fragilização dos ideais democráticos, levando a sociedade a perder tempos preciosos com discussões estéreis e inapropriadas, onde cada grupo defende seus interesses imediatos.

No campo econômico, percebemos um conflito secular entre ortodoxos e desenvolvimentistas, com visões diferentes do comportamento econômico e da percepção política, um se deliciando com políticas de austeridade, juros altos e arrocho da renda da população mais fragilizada, defendendo a limitação dos gastos públicos e sociais, além de manterem os subsídios para grupos mais abonados da sociedade, muitos deles seus empregadores. De outro lado, percebemos que outros priorizam os investimentos produtivos, a geração de emprego, aumento da renda e salários melhores, sendo vistos, muitas vezes, como populistas e gastadores.

No campo ideológico, percebemos um conflito crescente e assustador, pessoas defendendo pensamentos e ideologias desconhecidas, bradando ideias e teorias conspiratórias supostamente defendidas por intelectuais e, pasmem, autores que não foram lidos e mesmo assim, se arvoram na condição de críticos travestidos de intelectuais e dotados de capacidade reflexiva. Neste cenário, percebemos, na sociedade global, uma visão binária, acreditando que um dos lados é o representante do bem e outros são representantes do mal, uma dualidade medíocre e limitadora da capacidade de reflexão crítica sobre os grandes desafios da comunidade internacional.

A polarização do mundo coloca os indivíduos em um grande conflito existencial, neste cenário ao encontrarmos pessoas com ideias e pensamentos diferentes são taxados de ignorantes e atrasados, limitando a capacidade cognitiva, gerando um conflito de todos contra todos, num momento fundamental para compreendermos os grandes desafios da humanidade. Esta polarização nos coloca em polos contrários, num momento imprescindível para unir forças em prol da humanidade, elencando desafios coletivos, tais como a degradação ambiental, a corrupção generalizada, a pobreza material que assola parte significativa da sociedade mundial, a concentração de riqueza que patrocina uma guerra fratricida entre ricos versus pobres, dentre outros. Será que estamos na hora de acabarmos com essa polarização equivocada e atrasada, que destroem os elos dos seres humanos e leva a sociedade global para uma desagregação civilizacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre e Doutor em Sociologia e Professor universitário

“Dilma foi derrubada pelos donos do PIB”, diz Leonardo Loureiro Nunes

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Economista afirma que um dos principais objetivos do golpe de 2016 foi elevar as margens de lucro de setores cartelizados da economia

Brasil 247 – 13/06/2025

247 – Em entrevista ao jornalista Leonardo Attuch na TV 247, o economista e administrador Leonardo Loureiro Nunes apresentou os principais argumentos de seu recém-lançado livro Dilma contra os donos do PIB (Editora Contracorrente, com prefácio de Luiz Gonzaga Belluzzo), que investiga o papel dos grandes grupos econômicos no golpe parlamentar que resultou no impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016.

Nunes sustenta que a ruptura institucional não se deu por colapso econômico, mas sim pela insatisfação da elite empresarial com políticas públicas que reduziram suas margens de lucro. “Houve uma queda generalizada da taxa de lucro da economia, e é isso que explica a rejeição ao governo Dilma”, afirmou. Segundo ele, Dilma foi “derrubada pelos donos do PIB” — os setores oligopolizados da economia que, ao verem seus lucros comprimidos, se aliaram para romper a institucionalidade democrática.

A tese central: lucros sob ataque

De acordo com o autor, a explicação para o impeachment deve ser buscada menos nas narrativas de crise ou corrupção, e mais na perda de rentabilidade de setores estratégicos da economia. “O que causou a insatisfação foi a queda nas taxas de lucro. Dilma tentou controlar preços estratégicos — como energia, combustíveis, juros e tarifas de concessões — e isso desagradou profundamente os grandes grupos econômicos”, explica.

Nunes argumenta que esses grupos, que ele chama de “donos do PIB”, não se confundem com a base industrial tradicional representada por federações como a Fiesp. São conglomerados atuando em setores como energia, logística, mineração e bancos, com forte interpenetração entre capital produtivo, rentista e internacional. “Hoje não há mais distinção entre capital nacional e internacional. Tudo está entrelaçado.”

Políticas que desagradam o topo

Entre as iniciativas que teriam despertado a ira do mercado financeiro, Nunes lista:

  • MP do Setor Elétrico, que visava baixar os preços da energia renovando concessões amortizadas com tarifas menores. “Muitos fundos de investimento têm posição em empresas de energia. Isso afetou diretamente sua rentabilidade.”
  • Redução dos spreads bancários, por meio do Banco do Brasil e da Caixa, pressionando a margem de lucro do setor financeiro.
  • Política de modicidade tarifária em concessões de infraestrutura, como no PIL (Programa de Investimento em Logística), estabelecendo que vencia o leilão quem oferecesse a menor tarifa.
  • Controle nos preços dos combustíveis e desonerações fiscais, que foram capturadas pelas empresas sem se traduzirem em aumento de investimento ou produção.

Todas essas medidas, segundo o economista, foram tentativas de elevar a competitividade da indústria brasileira, mas acabaram minando o apoio da elite empresarial.

Um projeto burguês sem a burguesia

Para Nunes, há um equívoco histórico recorrente na esquerda brasileira: a crença na existência de uma burguesia nacional desenvolvimentista. “Sou cético em relação à existência de uma burguesia nacional. O Brasil é um país periférico e essa classe empresarial olha apenas para seus interesses imediatos”, afirmou. “O PT tentou fazer um projeto reformista burguês à revelia da burguesia.”

Essa crítica remete à tradição de intelectuais como Florestan Fernandes e Celso Furtado, que analisaram a formação das classes médias e das elites brasileiras como profundamente conservadoras e avessas à mobilidade social ascendente das classes populares.

A classe média e o ressentimento social

Nunes também oferece uma explicação sociológica para o papel da classe média no processo de desestabilização do governo Dilma. “A classe média baixa foi uma das grandes bases do bolsonarismo. O andar de baixo subiu, e ela ficou estagnada. As pessoas são comparativas. E isso gerou ressentimento”, disse. “Programas sociais como o Bolsa Família criaram incômodos em setores que não se viam contemplados por políticas específicas.”

Essa frustração, combinada com o discurso anticorrupção promovido pela mídia e pelo Judiciário, criou um terreno fértil para manifestações e adesão a um projeto autoritário de ruptura institucional.

O legado do golpe e o desafio de Lula

Segundo o autor, o governo de Michel Temer — que sucedeu Dilma após o impeachment — recompôs as taxas de lucro da elite empresarial com medidas regressivas, como a reforma trabalhista, previdenciária e privatizações. “Mesmo com uma economia menos dinâmica, o governo Temer ampliou as margens de lucro.”

Já o presidente Lula, no terceiro mandato, enfrenta restrições herdadas desse processo. “Muito do que foi feito no pós-Dilma foi bem amarrado e impõe limites. A política de preços da Petrobras, por exemplo, engessou a capacidade do governo de atuar”, aponta.

Além disso, Nunes lembra que o Brasil de hoje é outro: polarizado, com instituições abaladas e sob a constante ameaça da extrema direita. “Não dá para esperar os mesmos índices de aprovação de 2010. O governo tenta normalizar a democracia após uma tentativa de golpe de Estado.”

Socialismo na periferia: limites e dilemas

Ao ser questionado sobre uma eventual ruptura socialista, Nunes expressou ceticismo quanto à viabilidade de experiências radicais nos países periféricos. “Não acredito em soluções de ruptura pela periferia do capitalismo. O centro — EUA e Europa — é que teria condições de promover mudanças estruturais.”

Para ele, o desafio da esquerda é formular respostas concretas aos problemas do trabalho, da renda e da desigualdade, sem cair nas armadilhas retóricas da extrema direita, que aponta inimigos fictícios (como imigrantes ou programas sociais), enquanto protege o capital.

Uma obra fundamental

Dilma contra os donos do PIB é resultado de uma tese de doutorado defendida na Universidade Paris 1 – Panthéon-Sorbonne. O livro reúne entrevistas com nomes como Nelson Barbosa, Esther Dweck, Arno Augustin, Luciano Coutinho e outros formuladores da política econômica dos governos do PT. Nunes também ouviu empresários e dirigentes da Fiesp, alguns sob anonimato, que revelaram perplexidade com as consequências políticas do golpe de 2016.

A obra é um marco na análise econômica e política do impeachment, conectando os interesses do topo da pirâmide econômica com a erosão da democracia brasileira. Como disse o próprio autor: “O vice-presidente transformou o impeachment numa eleição indireta para presidente. Se isso não é golpe, não sei o que é.”

Disponível pela Editora Contracorrente, o livro se impõe como leitura essencial para compreender o passado recente e os desafios presentes da democracia no Brasil.

O golpe impune no cerrado, por Marcelo Leite.

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Condenação é pouco para todo o mal que a boçalidade ruralista já causou

Marcelo Leite, Jornalista de ciência e ambiente, autor de “A Ciência Encantada de Jurema” (ed. Fósforo).

Folha de São Paulo, 15/09/2025

Sessenta e oito anos cumpridos neste domingo (14) é tempo suficiente para ver de tudo acontecer. Há 52 anos, a morte de Salvador Allende no golpe do Chile, sob as ordens de um Augusto Pinochet que matou 3.000 adversários políticos e é por isso admirado por aprendizes no Brasil.

Há 24 anos, a queda das torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York. Morreram outras 3.000 pessoas, um décimo do que o inelegível defendia matar numa guerra civil brasileira.

Há três dias, o sentenciamento a 27 anos de prisão do presidente que se mandou para os EUA, de onde pretendia assistir pela TV o golpe de seus kids pretos. O mesmo que sustenta lá o filho quinta-coluna conspirando contra o próprio país.

Vinte e sete anos é tempo insuficiente para punir alguém cujas ações e omissões causaram 95 mil dos mais de 700 mil óbitos por Covid sob seu governo. Brasileiros mortos por falta de oxigênio, de quem o covarde fez troça imitando-lhes a asfixia.

Mas justiça não é vingança, pontificam comentaristas com a razão. Cadeia serve para proteger a coletividade, impedindo o criminoso de voltar a delinquir. Sei.

O 11 de setembro marca também o Dia do Cerrado, agonizante sob os golpes do agronegócio que elegeu o condenado e pagou acampamentos, caminhões e ônibus de mínions marchando para a festa da Selma em 8 de janeiro de 2023. Haverá entre eles arrependidos, mas não pelos crimes ambientais continuados.

De 1985 a 2024, segundo o MapBiomas, o desmatamento do cerrado para cultivo de soja saltou de 6.200 km2 a 120 mil km2, incremento de 19 vezes. Em 2021, percorrendo essa savana mais biodiversa do planeta, chocava ver uma bandeira brasileira sequestrada em cada fazenda (patriotismo, o último refúgio dos vilões).

Vilões e também néscios: destruir a cobertura vegetal que regula o ciclo hidrológico perturba o regime de chuvas de que tanto depende a agricultura. Em meio século, desde a década de 1970, a precipitação recuou 21% no cerrado, da média de 680 mm para 539 mm anuais.

De acordo com relatório da Ambiental Média, desde a década de 1970 diminuiu 27% o volume de água nos rios do cerrado, manancial dos pivôs de irrigação que pontilham a paisagem. Os mesmos rios que alimentam 8 das 12 principais bacias hidrográficas do país, a tal de caixa d’água do Brasil, crucial para a geração de eletricidade.

Quarenta anos foram tempo suficiente para derrubar 405 mil km2 do cerrado, mais de um quarto (28,5%) de sua vegetação nativa. Desde o período colonial, a savana brasileira acumula devastação de pelo menos metade da área, vale dizer, uma perda de cerca de 1 milhão de km2, superfície comparável à do Egito.

No governo anterior, houve anos em que o cerrado teve mais desmatamento, em termos percentuais, que a amazônia, bioma que tem o dobro de seu tamanho e concentra as preocupações do mundo. Não as da bancada ruralista que lhe deu sustentação e engrossa o centrão ainda dando as cartas no Congresso, a ponto de aprovar um PL da Destruição.

Vinte e sete anos, à sombra da trevosa história do Brasil, até que não é muito. É tempo suficiente para ver de tudo acontecer, inclusive o pior.

 

Anistia a Bolsonaro jogaria estabilidade democrática no chão, por Leonardo Weller

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Perdão a golpistas é retrocesso que pode nos levar novamente ao chumbo da ditadura

Leonardo Weller, Folha de São Paulo, 14/09/2025

[RESUMO] Conceder indultos a golpistas e conspiradores tem sido uma tradição no Brasil do pós-guerra, o que só incentiva novas tentativas de tomada armada do poder. Se a anistia de 1979 revelou-se depois indispensável para pacificar o país, afinal os militares ainda estavam no poder, repetir agora o perdão judicial a Bolsonaro e demais réus condenaria a uma instabilidade política que já parecia superada, avaliar autor.

Vários políticos de direita defendem uma anistia aos réus envolvidos na trama golpista liderada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. Segundo reportagem da Folha, o grupo inclui cerca de 300 deputados, maioria na Câmara. Por detrás desta reação contra o julgamento do STF está o governador de São Paulo, Tercísio de Freitas (Republicanos), que se move com medo da família Bolsonaro e de olho nas eleições presidenciais do ano que vem.

Do ponto de vista histórico, a anistia não é uma ideia completamente abilolada. O Brasil foi diversas vezes sacudido por tentativas de golpe, cujos conspiradores acabaram sendo anistiados em indultos que, por sua vez, geravam incentivos para novas conspirações. Esta corrente de instabilidade marcou o sistema político do pós-guerra, a primeira experiência democrática brasileira.

Getúlio Vargas se suicidou em 1954 para evitar um golpe montado pela oposição e por setores das Forças Armadas. O vice-presidente Café Filho tomou o poder, mas se ausentou do cargo, dando lugar a Carlos Luz, o presidente da Câmara. Luz se mancomunou com militares com o objetivo de evitar a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek.

O ministro da Guerra, o general Lotti, um legalista, deu um golpe preventivo em Luz para garantir que JK assumisse a Presidência. Mesmo assim, em 1959 os militares pegaram em armas contra JK, já presidente, nas frustradas quarteladas de Jacareacanga e Aragarças.

Ninguém foi condenado pelas tentativas de golpe da década de 1950, e a conspiração só cresceu nas Forças Armadas, culminando em 1964. Os ditadores não mostraram benevolência enquanto estiveram no poder: o regime militar cassou, exilou, prendeu, torturou e assassinou oponentes ao longo de duas décadas.

O general Geisel iniciou um longo processo de abertura ao assumir a Presidência, em 1974. A distensão, contudo, suscitava uma série de questões ao governo. Se deixassem o poder, quem garantiria que os militares não seriam julgados e condenados por seus delitos?

O núcleo do regime tinha medo dos civis. Já os linha-dura, que haviam torturado e matado, tentaram armar um golpe contra Geisel. Como de praxe, os conspiradores saíram impunes, mas nem por isso pararam de explodir bombas e perseguir opositores à revelia do comando militar.

A redemocratização foi viabilizada por um acordo baseado na Lei de Anistia de 1979, que livrou políticos oposicionistas e os criminosos do regime de qualquer punição, apesar de excluir os guerrilheiros condenados pelos tribunais militares. A anistia era uma garantia sobretudo aos ditadores e agentes da repressão, não à oposição que havia seguido o caminho da luta armada.

O oposicionista moderado Tancredo Neves, do MDB, saiu candidato a presidente nas eleições indiretas de 1985, tendo como vice José Sarney, um homem do regime, egresso da Arena. Com apoio de diversos políticos da ditadura, a chapa Tancredo-Sarney bateu Paulo Maluf no Colégio Eleitoral.

A anistia e o novo governo civil deram as garantias necessárias para que os militares voltassem aos quarteis, inclusive os linha-dura, que submergiram na política nacional, ao menos até a vitória de Bolsonaro em 2018.

No livro “Democracia Negociada: Política Partidária no Brasil da Nova República”, Fernando Limongi e eu argumentamos que, sem as conciliações iniciadas na anistia de 1979, a ditadura teria durado mais, possivelmente sob o julgo da linha-dura.

Apesar de ter à época revoltado vários democratas, o arranjo que se concluiu na posse de Sarney foi necessário para a construção de uma democracia sólida e duradoura. Inédito na história do país, o regime em que vivemos não mais permite tentativas impunes de golpe; vem daí a importância do julgamento de Bolsonaro no STF.

Se a anistia era indispensável para pacificar o país há quatro décadas, ela terá agora efeito oposto, capaz de jogar por terra a estabilidade democrática conquistada na Nova República. Os militares estavam no poder em 1979, controlando tanto as armas quanto a caneta com a qual se aprovaria a abertura. Naquela época, ou a oposição negociava, ou seguiríamos em um regime de exceção.

A situação é hoje bem diversa: os militares não estão no poder, e a maior parte da cúpula das Forças Armadas opôs-se ao golpe de Bolsonaro.

Não há mais necessidade de negociar com golpistas. Se políticos de direita emplacarem a anistia, novas tentativas de golpe fatalmente virão, nos condenando ao retorno ao passado, à instabilidade da democracia do pós-guerra ou, pior, ao chumbo da ditadura militar.

 

 

Num mundo de múltiplas crises, precisamos de um Estado forte e inteligente, por Eliane Conceição

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Eliane Barbosa da Conceição, Professora da Unilab-CE e pesquisadora do FGV-CEAPG; doutora em administração de empresas (FGV-SP), mestra em administração geral (Ibmec-RJ) e parceira da Plataforma Justa;

Folha de São Paulo, 13/09/2025.

A Primeira Turma do STF deve concluir nesta semana o julgamento do primeiro núcleo da trama golpista, formado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e sete de seus aliados. Tudo indica que serão condenados a mais de 30 anos de prisão.

A inelegibilidade decretada pelo Tribunal Superior Eleitoral em 2023 já havia praticamente excluído Bolsonaro do pleito de 2026, salvo uma improvável reversão da pena —hipótese ainda acalentada por seus seguidores no Congresso. A condenação iminente no STF, contudo, se confirmada, agrava a situação, afastando de vez qualquer possibilidade de retorno relevante ao cenário político.

Nesse vácuo, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, surge como potencial herdeiro do espólio do, talvez, duplamente inelegível. Em 5 de setembro, celebrou a concessão em São Paulo e exaltou a iniciativa privada, reafirmando a centralidade da agenda de privatizações em sua gestão.

Esse discurso remete aos anos 1980, quando teve início a primeira onda de reformas administrativas, no bojo da crise do capitalismo após os “anos gloriosos” do pós-guerra. Reino Unido e Estados Unidos, sob Thatcher (1979-1990) e Reagan (1981-1989), foram pioneiros em experiências de redução do papel estatal, que logo seriam replicadas em outros países desenvolvidos.

Nos anos 1990, o receituário alcançou a América Latina, impulsionado pelos Estados Unidos e organismos internacionais.

O Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 1997, intitulado “O Estado num mundo em transformação”, recomendava que as reformas administrativas na região se dedicassem a privatizações, descentralização, enxugamento dos quadros e flexibilização na contratação de servidores.

Esse documento ecoava os princípios mais amplos do Consenso de Washington, que também defendia austeridade fiscal e redução do gasto público. Mantendo o núcleo duro inicial e se reorganizando em torno elementos ou narrativas periféricas, as reformas administrativas e fiscais proliferaram nas décadas seguintes, deixando legados bem diferente dos previstos.

Interessante perceber que o relatório de 1997, ao recomendar uma completa alteração do papel assumido pelo Estado no pós-guerra, ressaltava a dificuldade dessa redefinição, uma vez que o “terreno em que se assenta está sempre mudando”.

Hoje resta evidente que o terreno mudou —para pior. As reformas legaram desigualdades, concentração de renda e poder, precarização e enfraquecimento da ação pública. Enquanto a Europa, aprendendo com os erros, reestatiza serviços essenciais, o Brasil ainda insiste no mantra da privatização.

Num mundo de múltiplas crises, precisamos de um Estado forte e inteligente. Isso exige, sim, revisar privilégios imorais de segmentos do alto funcionalismo do Judiciário, Executivo e Legislativo.

Mas, sobretudo, requer valorizar o servidor que está na ponta —professores, médicos, enfermeiros, policiais, assistentes sociais, atendentes— os chamados “burocratas de nível de rua”, na expressão de Michael Lipsky (1980). São eles que garantem a efetividade da ação governamental.

É deles que precisamos falar ao pensar uma reforma administrativa à altura dos desafios do século 21.

“Imortalidades” do Giannetti

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Costumamos dizer que, no parto, a mãe “dá à luz” ao filho, mais exato seria dizer que ela “dá o tempo”, seu primeiro minuto: a luz conquistamos ao longo da vida — sempre em busca de não morrer cedo e de transcender à morte

Correio Braziliense – 25/06/2025

A história do pensamento mostra que os intelectuais brasileiros se dedicam aos problemas do Brasil, enquanto os europeus abordam grandes temas da humanidade. De tempos em tempos, surgem exceções, como Eduardo Giannetti, que eleva nossa contribuição ao debate universal. Em suas obras, já ofereceu reflexões sobre felicidade, ética e racionalidade. Agora, com o livro Imortalidades, Giannetti une beleza literária à sólida base da história do pensamento e da reflexão filosófica, para tratar de assunto essencial à condição humana: a ideia de que a vida possa transcender sua curta duração biológica.

Giannetti adota o estilo de ensaios curtos — 235 ao todo — cada um podendo ser lido independentemente ou em sequência, como um grande romance de ideias em torno da ânsia por imortalidade que caracteriza a única espécie com consciência da própria morte e que não se conforma com esse destino. Retoma anotações acumuladas ao longo de sua vida de leituras, desde muito jovem. Investiga as diversas formas de imortalidade que o ser humano busca incessantemente. Mergulha em mais de 150 obras de 116 autores, incluindo ele próprio, para pensar, especular, compreender e descrever como o desejo de permanência atravessa a história do pensamento, especialmente ocidental, ao longo de milênios.

O autor passa por obras orientais e antigas, como o Épico, de Gilgamesh, de 1.800 anos antes de Cristo, e textos de filósofos gregos de 2.500 anos atrás. Todos com a mesma inquietação: o que havia antes de nós e o que virá depois. A ideia de continuidade após a morte foi, talvez, o gesto de maior arrogância do homo sapiens: atribuir a cada um deles o privilégio que, antes, era reservado apenas aos deuses da mitologia clássica. Mesmo os mais materialistas encontram uma forma de sobrevida nos átomos do corpo que, depois da morte, se dispersam no universo. Não há, talvez, expressão mais materialista do que a ideia bíblica de que “viemos do pó e ao pó voltaremos”.

Costumamos dizer que, no parto, a mãe “dá à luz” o filho, mais exato seria dizer que ela “dá o tempo”, seu primeiro minuto: a luz conquistamos ao longo da vida — sempre em busca de não morrer cedo e de transcender à morte. A arrogância foi punida pelo medo da morte e do pós-morte. Personagens literários que tentaram ultrapassar a fronteira entre a mortalidade dos homens e a imortalidade dos deuses foram punidos com vidas vazias e trabalho insano. Usam a capacidade intelectual para não morrer — seja ampliando os dias de vida do corpo, seja apostando numa outra existência, seja deixando obras para ser lembrado, ainda que por poucas gerações — e se esquecem de viver. Ele ainda reconstrói a história do surgimento desse desejo de imortalidade e das múltiplas formas de buscá-la, e ainda explica como esse conceito foi gradualmente apropriado e transformado pelas religiões que adotaram a ideia de alma individual e imortal, que se desprende do corpo morto e vai para outra dimensão ou reencarna depois em outros corpos.

O livro Imortalidades é um belo e rigoroso estudo sobre a arrogância de querer ser imortal e a consequente tragédia de morrer pelo vazio existencial, inclusive decorrente da ilusão de uma alma eterna. O homo sapiens talvez seja resultado de um erro da evolução natural, ao criar um animal com racionalidade ilimitada, mas incapaz de controlar moralmente seu destino e, inclusive, de aceitar o destino de sua morte definitiva, tratada como fato natural e irreversível. Confundindo viver com produzir e consumir, acaba provocando entropia ecológica e civilizatória e, no limite, o suicídio da espécie.

De certo modo, é isso que ocorre com o ser humano moderno que, ao buscar a imortalidade de cada indivíduo, ameaça a própria espécie com suicídio coletivo. A ânsia neurótica de transformar, cada vez mais rapidamente, pedras, plantas e animais em produtos para serem consumidos, define o homem moderno. O cartão de crédito como a chave da imortalidade.

Em um trabalho de Sísifo, desperdiçando a curta vida com a ilusão de permanência por meio da riqueza material a ser consumida. Ao ponto de, na era do Antropoceno, destruir o equilíbrio ecológico e ameaçar a própria sobrevivência da espécie. Felizmente, graças, especialmente, aos filósofos existencialistas é possível vislumbrar imortalidade em cada minuto de vida vivido plenamente: “Cada minuto eterno enquanto dura”. Entre essas imortalidades transitórias está a leitura de livros que nos inspiram e deslumbram, fazendo-nos imortais enquanto os lemos: sentimento despertado pela leitura de Imortalidades, de Eduardo Giannetti.

Escolha sua Distopia, propõe Luiz Eduardo Soares

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Novo livro do antropólogo é, a um só tempo, intervenção no debate da Segurança Pública e reflexão de fôlego sobre patrimonialismo, máfias e milícias no coração da República. E a respeito de como o negacionismo histórico nos arrasta para a irracionalidade…

Leandro Saraiva – OUTRAS PALAVRAS – 12/09/2025

Os animais, como se sabe, dividem-se em embalsamados, sereias, desenhados com um finíssimo pincel de pelo de camelo, que de longe parecem moscas, e mais alguns tipos. Acredito que as complexidades dessas investigações se estendam aos animais políticos, entre os quais há alguns que muito dificultam os diligentes esforços taxionômicos e taxidérmicos de quem se dedica à estabilização do mundo em catálogos capazes de anestesiar a inquietação da pólis. Luiz Eduardo Soares é um desses seres inemapalháveis. Quem o conhece pelo aspecto frontal de militante da segurança pública, vê apenas a projeção em nível pragmático do estudioso que chegou à secretaria de segurança carioca pelo empenho de pesquisa do contexto social registrado em Violência e política no Rio de Janeiro (1996). Mas quem observa o cruzamento do eixo da ação e do estudo talvez perca de vista uma dimensão filosófica de fundo, que, ao mesmo tempo que desenha equações capazes de dar forma aos problemas, interroga cada termo posto em tela, chamando a atenção para a instabilidade existencial – de poderes, palavras e afetos – dos fenômenos humanos. Um bom nome para o horizonte dessa reflexão seria – como diz o título de outro antigo livro seu, ainda tão atual –, O rigor da indisciplina (1994). E talvez uma outra forma de ver toda a complexidade de vida e morte que Luiz Eduardo, a cada vez, volta a encarar, seja a da narrativa como condição básica da existência. Como são convocados e apresentados os personagens? Como se enredam em tramas que variam entre confrontos e suspenses e mergulhos subjetivos dos quais nem eles próprios conhecem o fundo que lhes contorna a figura? Que vozes comentam e conduzem a jornada? Como os eixos agônicos amarram esses seres em desenlaces ansiados e temidos? Quem acompanha o exercício de alternância entre obras analíticas – como Justiça (2011), Desmilitalizar (2019), O Brasil e seu duplo (2019) ou Dentro da noite feroz (2020) – e as de variadas matizes ficcionalizantes – de O experimento de Avelar (1997), ao recém-lançado O Crânio de Vidro do Selvagem Digital (2025), entremeados por sucessos como Cabeça de Porco (2005) e Elite da Tropa (2006)–, sabe que a origem teatral do autor, no mítico Asdrúbal trouxe o trombone, pulsa na tensão de contrários presentes em tudo que escreve, entre a capacidade de pôr em cena a intensidade de fragmentos dramáticos precisos e o distanciamento reflexivo que revela os andaimes, luzes, sombras, bastidores e espelhos que fazem do encenado uma das infinitas possibilidades da montagem da trama social e existencial.

Escolha sua distopia (ou pense pelo avesso) é assim. Dizer que o livro é multidisciplinar, já que mobiliza sociologia, ciência política, filosofia, antropologia, direito, psicanálise, seria um tipo de miopia reversa, que vê mal por excessiva clareza de definição das bordas da constelação de fenômenos em pauta. O eixo de assuntos que encadeia suas quatro seções – a anatomia do poder miliciano, a história da corrosão das polícias, a sombra de Junho de 2013 e, por fim, o plot twist do potencial pragmático-utópico dos Direitos Humanos – é enganoso em sua linearidade sequencial, já que a cada conjunto de ensaios reunidos em cada seção, ou a cada movimento reflexivo de cada ensaio ou até mesmo a cada peça invocada para o quebra-cabeça de nossa violência histórica, vibram dialeticamente alternativas de entendimento e de forças que sugerem que há sempre uma direção contrária ao que se diz.

Nessa escrita dramático-ensaísta, até o fundamento relativista da antropologia é virado pelo avesso, por uma reflexão filosófica acerca da constituição simétrica e dialógica do sujeito moral, que não pode se furtar de projetar no outro o valor transcendente da dignidade humana universalizada, sob pena de perder a sua própria. Uma hipótese crucial, que vê a sempre repetida irracionalidade das políticas de segurança como denegação do trauma das raízes históricas de nossa violência criminal, nos ajuda a compreender o medo paranóico como um afeto coletivo de fundamento. A análise da trama social inclui uma dimensão agonística e de pathos, iluminando o movimento que liga o passado colonial, escravista e patriarcal, e a força atual do fascismo, mas também indica reversibilidades potenciais, tanto em afirmações vitais da diferença, como as invenções contemporâneas das identidades de gênero, como na afirmação radical dos Direitos Humanos. A vida e o pensamento pelo avesso.

Há por toda parte uma sensibilidade psicanalítica, acompanhada de afinidades eletivas com a boa dramaturgia. Vale o destaque para o explícito contraponto entre a necessidade da regulação jurídica, operada pelo Direito – que por definição estabiliza identidades e causalidades, para emitir juízos de culpa ou inocência – e o uso desconstrutivo da palavra por parte da psicanálise, para quem o sujeito, ser de linguagem, é sempre um campo de virtualidades exploráveis. Os exemplos sugerem que, ao contrário do que pretendia Freud, a psicanálise pode, sim, ser uma visão de mundo, um weltanschauung, com grande rendimento para entendimento da sociedade como algo mais que um código classificatório, ou mesmo uma dinâmica de confrontos – uma rede de ambivalências, não só de conteúdos proposicionais (ideologias expressando lógicas de interesses contraditórios), mas também de afetos e sentidos que tem sempre seus avessos e complementos, que, uma vez explorados, mesmo que de forma especulativa e imaginativa, redefinem a própria identidade dos sujeitos e de suas relações. Talvez se possa chamar de multidimensional esse movimento ensaístico que, por exemplo, para passar em revista empírica e teórica as vicissitudes dos Direitos Humanos, começa por um mergulho em Hamlet como paradigma de hesitação e do caráter abismal da consciência e inconsciência dessa invenção histórica chamada de indivíduo.

Há algo de balanço nesse livro a um só tempo de intervenção do militante da segurança pública e dos Direitos Humanos – pauta crucial no cenário político, nacional e global, encoberto pela sombra do fascismo – e de um trabalho intelectual de longa maturação. São imprescindíveis as sínteses de fôlego sobre a história de patrimonialismos, de renovados coronelismos, novas enxadas e velhos votos, que permitiram a emergência das máfias milicianas, infiltradas até o núcleo da (dita) república. Não menos importante é a complementar dissecação das formas institucionais do funcionamento das polícias e o contraponto das propostas de reforma, das quais o autor tem sido protagonista. E se os mergulhos reflexivos se tornam mais explícitos e densos nos textos das duas seções finais, trata-se apenas de um movimento de concentração, já estão presentes desde o início. Estudo histórico e estrutural, cruzamento de horizontes antropológicos, interrogação filosófica e narração dos dramas sociais e existenciais dão esqueleto, corpo e espírito para uma escrita dialógica e interpelativa que se põe e nos põe na pólis conflagrada.

O ensaio “Visão de túnel: segurança pública, ética e justiça no Brasil”, no qual é exposta a tese do negacionismo histórico como causa da irracionalidade das políticas de segurança, é um exemplo máximo dessa lapidação do pensamento, em clareza multifacetada e iluminadora de ângulos, história, tensões internas e potencialidades negadas e ao mesmo tempo presentes. Luiz Eduardo parte da experiência, tida como iniciática para os policiais cariocas, da “visão de túnel”: a ultra concentração inerente ao combate armado, que abole percepção e juízo para dispor à ação pura, imediata e inevitavelmente letal. Aí, num salto da narração antropológica da experiência do outro para a filosofia, o autor contrapõe o túnel ao universalismo contratualista na versão de Hannah Arendt que afirma ser condição para a civilização a postulação de “uma região além e acima da linha de combate”. O parafuso crítico dá outra volta, e o universalismo implícito, de sabor especulativo kantiano, de Arendt, é posto em questão, convocando como necessidade – pragmática, e não transcendental – a intencionalidade horizontal de ações políticas concretas, como perspectiva de superação do impasse. O modo de colocar o jogo de ponto de vistas em outra região é pôr para jogo a régua da violência de grau zero e a da racionalidade abstrata, interpeladas por outras possibilidades, experiências dialógicas de cidadania e invenções práticas de segurança pública. A partir dessa conexão inesperada, entre a iniciação “caveira”, filosofia e política dos direitos humanos, a visão se multiplica, se exponencia. Primeiro, por uma caracterização do fetichismo da mercadoria como indissociavelmente amalgamado ao monopólio estatal da violência, reunindo dois vetores fundamentais do pensamento ocidental. E, logo, com a especificação da reflexão para o caso brasileiro, com a projeção da visão de túnel na história do nosso capitalismo autoritário. A violência intransitiva e compulsória ganha contexto e função, revelando-se um operador crucial da nossa sociedade, tanto na naturalizada repressão e recorrente eliminação dos setores rebeldes ao arranjo de poder, como na denegação desse trauma brutal constantemente reencenado, expresso em discursos moralizantes obsessivamente repetidos, vazios e mortais, sobre segurança pública – espécie de aleph, ou segredo sujo da nação que nunca supera seu fundamento traumático. A não ser que tenhamos a coragem de olhar o trauma no fundo de nossa noite feroz, deslocando a energia da violência como sintoma para uma energia de construção inaugural da república sempre adiada.

Escolha sua distopia. Ou pense pelo avesso.