Os rumos do Banco Central, por Paulo Nogueira Batista Júnior

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Paulo Nogueira Batista Júnior – A Terra è Redonda – 16/05/2025

A conta dos juros altos: ricos lucram, pobres sofrem, e o governo pode perder em 2026

Gabriel Galípolo e os demais indicados pelo presidente Lula para o comando do Banco Central ainda não disseram a que vieram. São economistas competentes e, pelo que se sabe, de orientação econômica menos ortodoxa. Mas até agora pouco mudou – talvez nada. Visto de fora, é como se o Banco Central continuasse a ser presidido por Roberto Campos Neto – com a diferença de que o governo agora não tem mais o bode expiatório.

Não quero exagerar, entretanto. A visão de fora pode não captar mudanças ocultas, em gestação. E a verdade é que pouco tempo se passou desde a saída do presidente anterior. Pode-se supor que Gabriel Galípolo e os novos diretores ainda estejam tomando pé da situação. Afinal, como ignorar que o Banco Central é uma instituição grande e complexa? Não se dá cavalo-de-pau num transatlântico. Vamos então dar o benefício da dúvida a Galípolo e cia.

Para entender a situação do comando do Banco Central neste momento é fundamental ter em conta, entre outros fatores, o seguinte fato básico: a política econômica obedece em alguma medida à influência do ciclo político. A perspectiva de eleições influencia inevitavelmente a condução da política econômica, inclusive a monetária.

Do ponto de vista do governo brasileiro, faz sentido praticar políticas monetária e fiscal razoavelmente apertadas entre o final de 2024 e meados de 2025, de forma a conter um pouco a inflação, para em seguida relaxar a política econômica, no final de 2025 e início de 2026, ajudando a criar um clima mais propicio à reeleição de Lula (ou à eleição de quem ele resolver indicar em seu lugar). Isso significaria começar a reduzir a taxa básica de juro nos próximos meses.

Um economista ortodoxo discordará e dirá certamente que o Banco Central tem autonomia em relação ao governo e não deve subordinar a seus objetivos político-eleitorais. Isso é teoria, entretanto. Na prática, os bancos centrais quase nunca são totalmente autônomos em relação ao poder político. Acabam refletindo em alguma medida, de forma não declarada, a orientação geral do governo pelo qual os seus dirigentes foram indicados.

Evidentemente, o mandato do Banco Central requer obediência às metas de inflação estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional. Ora, a inflação e as expectativas de inflação estão “desancoradas”, isto é, superam o centro da meta (3%). A política monetária deve então, argumenta-se, fazer a inflação convergir para a meta (ou, pelo menos, situá-la dentro do intervalo previso no regime de metas).

Porém, um risco central, sempre presente, é que alcançar a meta de inflação pode cobrar um preço proibitivo dos pontos de vista social e político. De que adiantaria colocar a inflação no centro da meta e entregar o país de mão beijada para a direita ou a ultra direita em 2026? Quando se considera o baixíssimo nível da oposição, tanto a bolsonarista, como a direita tradicional, a perspectiva é aterradora.

Parte do problema que estamos enfrentando, leitor ou leitora, está na definição da meta de inflação – 3% com intervalo de 1,5 ponto percentual para cima ou para baixo. Estabelecer metas ambiciosas como essa contribui para forçar o Banco Central a praticar juros muito elevados.

O responsável por essa definição, recorde-se en passant, foi o presidente do Banco Central Ilan Goldfajn no governo Temer, uma das várias figurinhas carimbadas que exerceram esse cargo ao longo das décadas recentes. Na época, o argumento “científico” era que a Colômbia e o Chile tinham meta de 3%. Por que não o Brasil? – argumentavam Ilan Goldfajn e seus asseclas. Como dizia Brizola, a elite brasileira é um lixo.

O governo Lula deveria ter revisto a meta de inflação logo no seu início em 2023, como parecia querer o próprio Presidente da República. Diversos economistas, inclusive eu mesmo, argumentaram que seria conveniente elevar o cento da meta para 3,5% ou 4%, aumentando ao mesmo tempo o intervalo entre o piso e o teto da banda de 1,5 para 2 pontos percentuais. O teto para a meta ficaria em 5,5% ou 6%, o que permitiria absorver choques de oferta sem praticar juros exorbitantes. Manteve-se, entretanto, a meta ambiciosa, com as consequências que estamos vendo.

Não há dúvida de que uma taxa básica de juro elevada pode ajudar no combate à inflação. Como? Primeiramente, porque tende a gerar apreciação do real, favorecendo o controle dos preços dos bens e serviços comerciáveis internacionalmente. Em segundo lugar, porque derruba o nível de atividade e de emprego, comprimindo os preços dos bens e serviços transacionados domesticamente.

O problema, como se sabe, é que a redução ou desaceleração da atividade econômica, ao afetar o emprego e a renda, provoca deterioração do quadro social e prejudica o governo do ponto de vista político. Além disso, tende a reduzir a arrecadação tributária, piorando o resultado primário das contas públicas.

Ainda mais importante do ponto de vista das finanças governamentais: a taxa básica de juro aumenta direta ou indiretamente o custo da dívida, que é majoritariamente interna. A despesa líquida de juros do setor público consolidado já supera os 8% do PIB! O propalado crescimento do déficit e da dívida do governo tem muito mais a ver com essa carga de juros do que com o déficit primário (que está em torno de 0,6% do PIB) – contrariamente ao que sustentam ou insinuam os economistas da Faria Lima e a mídia tradicional.

Não se pode esquecer, além disso, que os juros altos concentram a renda nacional. Não é por acaso que a turma da bufunfa defende uma política monetária apertada. Quem embolsa os juros pagos pelo governo? Os ricos e super-ricos com elevada poupança financeira aplicada em títulos públicos. O Banco Central está desfazendo, pelo menos em parte, o considerável progresso feito em termos de distribuição de renda pelo governo Lula em 2023 e 2024.

Um último ponto, nem sempre notado: a taxa de juro exorbitante coloca dinheiro nas mãos daqueles que têm meios de remeter recursos para o exterior quando bem entenderem. Com a liberdade que se concedeu mandar dinheiro para fora, a turma da bufunfa faz o que bem entende, entrando e saindo do país quando lhe convém – um legado da desastrosa gestão Fernando Henrique Cardoso, que promoveu a liberalização prematura da conta de capitais. Algo que a China, por exemplo, jamais fez.

Depois do último aumento da Selic, a taxa real de juros ex ante se aproxima de 10%! Preciso dizer mais? Por todos esses motivos econômicos, sociais e políticos, Gabriel Galípolo e cia. não podem demorar a reduzir os juros.

Paulo Nogueira Batista Jr. é economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS. Autor, entre outros livros, de Estilhaços (Contracorrente)

Novos Mercados

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Neste momento de grandes transformações econômicas, sociais, políticas e culturais na sociedade internacional, percebemos uma reorganização da estrutura da economia internacional, novos mercados crescem cotidianamente, novos concorrentes surgem diuturnamente, novas estratégias econômicas e produtivas ganham relevância no sistema econômico, exigindo governos ágeis, flexíveis e competentes, demandando profissionais altamente qualificados, empresas rápidas e dinâmicas, além de consumidores conscientes de seus interesses cotidianos, uma verdadeira revolução.

Neste cenário de agitações e conflitos comerciais, percebemos uma reorganização dos parceiros econômicos, as nações percebem as incertezas que crescem todos os dias, suas estratégias se perdem neste ambiente de instabilidade, acordos assinados são descumpridos, discursos inflamados geram graves constrangimentos diplomáticos, levando os países a repensarem seus acordos comerciais, buscando novos horizontes, reestruturando seu parque produtivo e fortalecendo sua estrutura financeira, como forma de encarar os novos desafios da economia internacional.

Vivemos numa sociedade altamente competitiva, dominada pelo individualismo e pelo imediatismo, onde os valores da concorrência dominam o ambiente econômico e produtivo, exigindo dos governos, dos indivíduos e das organizações uma adaptação constante, neste cenário, percebemos que os valores do compartilhamento, da solidariedade e da tolerância perdem espaço numa sociedade centrada em valores materiais.

Neste ambiente, percebemos que as trocas econômicas e produtivas estão crescendo como forma de satisfazer as necessidades das nações e de seus povos, novos atores do comércio internacional estão transformando a sociedade global, a ascensão dos países asiáticos está revolucionando os valores, os costumes e os comportamentos, exigindo uma reflexão menos materialista, afinal estes atores trazem outros valores culturais, como o misticismo e a valorização do espiritualismo. Estas mudanças em curso na sociedade internacional estão diretamente ligadas ao crescimento das economias asiáticas, dotadas de valores e culturas milenares e, desta forma, estão revitalizando a sociedade global e trazendo novos desafios para a sociedade global.

Diante deste novo cenário global, marcado por grandes desafios e, ao mesmo tempo, marcados por novas oportunidades as nações precisam fortalecer suas estruturas produtivas, investindo fortemente em educação, capacitando os professores, garantindo melhores condições de trabalho e remuneração dignas e decentes, afinal, mesmo sabendo que o mundo se transforma rapidamente e a tecnologia ganhando uma relevância pouco vista na sociedade mundial, a melhora da qualificação da mão de obra é um dos maiores desafios para as nações na contemporaneidade. Sem investimentos em pesquisa e desenvolvimento científico e tecnológico, vamos continuar sendo consumidores de produtos industrializados e fornecedores de produtos primários de baixo valor agregado, perpetuando uma situação de dependência externa, pobreza crescente e perspectivas futuras sombrias.

A geopolítica global nos mostra o crescimento do Pacífico em detrimento do Atlântico, novos produtores surgem na sociedade mundial, novas tecnologias surgem e nações como o Brasil apresentam grandes vantagens competitivas para se inserirem no comércio internacional. Somos dotados de grande potencial de energia renovável, possuímos espaços geográficos elevados e forte potencial agrícola e mineral, precisamos aproveitar as mudanças no comércio global e mostrar nossas potencialidades, negociar investimentos estrangeiros, exigir transferência de tecnologia, fortalecer nosso comércio exterior, investir fortemente em infraestrutura e logística, além de fortalecer o capital humano, com fortes investimentos em educação, pesquisa, ciência e tecnologia. Tudo isso nos parece urgente e necessário, mas para uma elite atrasada, rentista e imediatista que domina a sociedade brasileira a quinhentos anos, isso seria uma grande revolução.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

O Antropoceno e o pensamento econômico, por Ricardo Abramovay

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Ricardo Abramovay – A Terra é Redonda – 12/05/2025

Considerações sobre o livro recém-lançado de José Eli da Veiga

A utopia que dominou o século XX e desabou como castelo de cartas em 1989 oferecia o inegável conforto intelectual de transformar de forma inapelável e completa as próprias bases sobre as quais se constituíram as sociedades modernas. Era como recomeçar do zero. Sistema de preços, lucro, empresas privadas e o que Karl Marx chamou de “anarquia da produção” seriam substituídos por decisões racionais vindas da inteligência planificadora que, apoiada, em tese, sobre participação social democrática, sinalizaria aos organismos centrais quais seriam as necessidades e os desejos da sociedade.

Esta utopia foi importante inclusive em países democráticos e sua derradeira expressão política foi o governo de “Union Populaire” da França que, sob a presidência de François Mitterrand, em 1981, deu início à estatização dos dez maiores grupos econômicos do país. A ousadia não durou um ano e depois de sua reversão nenhuma força política expressiva, em qualquer lugar do mundo, preconiza o que a esquerda europeia chamava de “nacionalização dos grandes monopólios” como caminho para combater as desigualdades, evitar os desperdícios e usar os recursos materiais e bióticos em benefício da sociedade.

Mas este final melancólico nem de longe suprimiu os valores ético-normativos em que se fundamentou a utopia da esquerda do século XX. Tanto mais que o espetacular aumento da riqueza em todo o mundo, desde o final da Segunda Guerra Mundial, não tardou a revelar seus pés de barro pela destruição em que se assentou de recursos e serviços ecossistêmicos sem os quais o bem-estar e o próprio dinamismo econômico estavam sob risco crescente.

A utopia do século XXI não é e não pode ser conformista e condescendente. Ela mantém e, sobretudo, ela expande o que marcou os projetos de emancipação social do século XX. Sua ênfase é, em primeiro lugar, a expansão das liberdades substantivas dos seres humanos, para empregar a expressão de Amartya Sen, que exerceu influência decisiva sobre os trabalhos vindos dos diversos programas e de diferentes agências das Nações Unidas.

A conquista desta liberdade supõe não apenas direitos humanos, mas exige que se rompa com a noção de que a natureza é apenas um meio, cujo uso ilimitado pode se perenizar, já que sua exaustão será compensada por aquilo que nosso engenho tecnológico é capaz de criar.

Só que em vez de trazer a marca da tomada do Palácio de Inverno ou de uma vitória eleitoral que ponha de cabeça para baixo as regras do jogo, a utopia do século XXI assemelha-se a trocar os pneus do carro com o veículo em movimento. Ela não se propõe a suprimir os pilares da vida social (mercados, empresas, lucros) e sim a ampliar os bens públicos, reduzir ao mínimo as atividades predatórias da saúde humana e do meio ambiente e promover participação social e inovação tecnológica que contribuam para atingir este objetivo.

Nada exprime melhor a utopia do século XXI que os dezessete Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), aprovados pelas Nações Unidas em 2015 e que serão revistos em 2030. E apesar da má reputação de que goza o pensamento econômico como sinônimo daquilo que Thomas Carlyle chamou de ciência sombria, que só conseguiria conceber a sociedade como resultado não antecipado de interesses individuais, transformando, na trilha de Bernard de Mandeville, o egoísmo em virtude social, é exatamente no pensamento econômico que se encontram as fontes mais férteis das quais se alimenta esta utopia.

É o que mostra a impressionante síntese do mais recente volume da trilogia que José Eli da Veiga acaba de publicar, O Antropoceno e o pensamento econômico. O primeiro volume da trilogia (O Antropoceno e a ciência do sistema terra, Ed. 34, 2019) discute uma expressão relativamente recente no âmbito das ciências da terra e da vida: o sistema terra.

O termo tem a ambição de romper com a estreita especialização em que são treinados os pesquisadores das disciplinas que compõem esta área científica diante da urgência de se compreender o fato de que as atividades humanas dos últimos oitenta anos não só provocaram alterações na biosfera, mas se tornaram uma força de natureza geológica, interferindo no comportamento do sistema climático e por aí nos oceanos, na atmosfera e nos solos. Daí a ideia de Antropoceno.

No segundo volume, o Antropoceno e as humanidades (Ed. 34, 2023), a reflexão se volta às ciências do homem e da sociedade e alguns dos mais expressivos pensadores sociais contemporâneos são objeto de reflexão. O livro se apoia em ninguém menos que Charles Darwin para mostrar que, longe da ideia vulgar segundo a qual a evolução biológica pode ser resumida a uma disputa acirrada em que vence o mais forte, a vida (e a vida social) é composta, antes de tudo por processos cooperativos apresentados numa obra decisiva e pouco conhecida do criador da teoria da evolução, The Descent of Man.

E quem imaginou que no terceiro volume, O Antropoceno e o pensamento econômico, a narrativa se concentraria em como os ajustes no sistema de preços podem contribuir a enfrentar aquilo que Sir Nicholas Stern colocou como a mais importante falha de mercado da sociedade atual (as mudanças climáticas), a surpresa será imensa.

Longe de sua imagem caricatural que a vê como a disciplina que estuda a alocação de recursos escassos entre fins alternativos, baseada inteiramente na ideia de que indivíduos racionais e auto interessados relacionam-se uns aos outros a partir da sinalização que os mercados transmitem ao que compram e vendem, a ciência econômica da segunda metade do século XX reserva novidades que o livro de José Eli da Veiga tem a virtude de expor de maneira dinâmica, persuasiva e, como não poderia deixar de ser, polêmica.

A apresentação dos autores mais expressivos do pensamento econômico das últimas seis décadas sobre o Antropoceno gira em torno de duas questões centrais.

A primeira rompe com o dogma básico do pensamento neoclássico expresso por um de seus mais consagrados expoentes, Lionel Robbins, que, referindo-se à relação entre ética e economia, escreveu, em 1932: “infelizmente não parece logicamente possível associar os dois estudos de qualquer outra maneira que não seja a justaposição”.

A reflexão dos economistas que se voltaram a estudar o Antropoceno, ao contrário, coloca a ética no coração da economia. Se a vulnerabilidade da biosfera for abordada sob o ângulo puramente instrumental o resultado será a convicção (que domina o pensamento econômico convencional) de que seu eventual esgotamento pode ser enfrentado por meio de inovações tecnológicas que entregarão para a sociedade os serviços que as atividades humanas acabaram por destruir.

Não surpreende então que, para colocar a natureza como finalidade e não como meio, é necessário fazer aquilo que Lionel Robbins acreditava impossível. A abordagem dos mais importantes economistas sobre o Antropoceno supõe, assim. a contestação das premissas epistemológicas (e, de certa forma, ontológicas) em que a disciplina convencionalmente se apoia.

Não se trata de negar a importância dos mercados, das empresas e do lucro e sim de mostrar que a compreensão da vida econômica se torna mais fértil caso ela se amplie para incluir a cooperação, a solidariedade e os bens públicos e, mais que isso, a importância de um tratamento dos materiais, da energia e dos recursos bióticos de que depende a oferta de bens e serviços com instrumentos que não se resumem ao que o sistema de preços sinaliza.

É nesta reflexão sobre ética que se apoia a discussão central do livro: para que serve, qual o alcance e quais os limites do crescimento econômico? A miragem de uma solução unificada e totalizante para enfrentar a destruição a que vem levando a gigantesca riqueza produzida pela grande aceleração, o decrescimento, é rejeitada não por sua impossibilidade prática ou por não estarem reunidas as forças político-culturais que poderiam levá-las à prática.

O equívoco da proposta de decrescimento está em que ele se tornou, de certa forma, o outro lado da moeda do mito do crescimento. Ele se abstém de estudar a vida social com base no uso dos recursos materiais, energéticos e bióticos e nos serviços de provisão (na alimentação, na mobilidade, na construção, na saúde) a que este uso dá lugar.

Mais importante que saber se a economia cresce ou não é conhecer como se extraem e transformam os recursos voltados à oferta de bens e serviços e se estes bens e serviços contribuem a melhorar ou piorar tanto a vida social como o meio ambiente.

A proposta que decorre desta análise é que é preciso “crescer decrescendo” e “decrescer crescendo”. O aparente paradoxo se explica: por mais importante que seja a virtude do crescimento em criar empregos, arrecadar impostos e estimular inovações, estes atributos serão ofuscados se os bens e serviços em que eles se apoiam forem o tabaco, a destruição dos tecidos urbanos provocada pela massificação dos automóveis individuais (em detrimento dos transportes públicos) e a ampliação do consumo de alimentos ultraprocessados que são vetores da pandemia global de obesidade.

É preciso reduzir ao mínimo estas atividades (decrescer) ampliando aquelas que aumentam a oferta de bens públicos e as que se voltam a regenerar os serviços ecossistêmicos que, até aqui, o crescimento econômico vem destruindo, como as energias renováveis, alimentos de qualidade e o fortalecimento das áreas protegidas (crescer). Em vez de se fixar nesta medida sintética (e, de certa forma, arbitrária) que é o PIB, o fundamental é examinar as bases materiais, energéticas e bióticas da formação da riqueza e seus efeitos reais sobre o bem-estar humano e os serviços ecossistêmicos.

Em suma, a riqueza e a diversidade das correntes de pensamento apresentadas neste livro são antídotos contra o ceticismo dos apologistas do fim do mundo e contra o cinismo dos que insistem em dizer que não há e não haverá força suficiente para mudar a trajetória destrutiva que está levando ao aumento das emissões, à crescente erosão da biodiversidade e a diferentes formas de poluição. Conhecer o pensamento econômico sobre o Antropoceno é certamente um caminho promissor para evitar esta dupla paralisia.

Ricardo Abramovay é professor titular da Cátedra Josué de Castro da Faculdade de Saúde Pública da USP. Autor, entre outros livros, de Infraestrutura para o Desenvolvimento Sustentável (Elefante)

Economistas ainda pensam em crescimento eterno, diz José Eli da Veiga

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Professor da USP defende noção de crescer decrescendo e afirma que COP30 pode ser a mais difícil de todas;

Eduardo Sombini, Doutor em geografia pela Unicamp, é repórter da Ilustríssima.

Folha de São Paulo, 10/05/2025

Nem abandonar a ideia de crescimento econômico nem confiar nela cegamente.

José Eli da Veiga, professor sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP, recorre a essa dupla negativa para sintetizar sua análise em “O Antropoceno e o Pensamento Econômico” (Editora 34), terceiro volume de sua trilogia sobre as ciências e as humanidades em um período de crise climática e transformação acelerada do planeta pela sociedade.

No livro, o intelectual revisita escolas e pensadores à margem do mainstream da economia para sustentar que a disciplina não acompanhou o avanço da fronteira do conhecimento e ainda passa ao largo, por exemplo, da teoria da evolução e da física moderna.

Em razão disso, Veiga argumenta, o pensamento econômico ignora os fluxos de energia e matéria envolvidos no processo de produção, o que faz com que economistas concebam um crescimento eterno e não se preocupem com as condições de vida das gerações futuras.

Na entrevista, o pesquisador fala sobre as ideias de crescer decrescendo e decrescer crescendo, um caminho do meio entre manter o modelo atual e as propostas de decrescimento da economia.

Veiga também discute o impasse em fóruns multilaterais dedicados à crise ambiental, como as COPs. Para ele, negociações entre as corporações e os governos responsáveis pela maior parte das emissões de gases do efeito estufa teriam mais resultado que encontros anuais com a participação de mais de uma centena de países.

Leia abaixo os trechos principais da entrevista.

O pensamento econômico hoje

Existe uma corrente muito secundária, vista pelos economistas como uma coisa heterodoxa e estranha, a economia evolucionária. Tem uma muito forte, a economia institucional. Tem uma bem sólida, mas que não é muito reconhecida, a economia ecológica. Mas, se você perguntar como uma inteligência artificial classifica as várias correntes da economia, o risco é que nem apareçam essas que eu citei.

Porque as principais são aquelas que, no fundo, formam o currículo tradicional de um curso de economia: macro, micro, história do pensamento econômico, um pouco de história econômica. A formação de um economista é mais ou menos essa.

Será que uma humanidade —a economia não é uma ciência— precisa ser compatível com a física e com a biologia, para não falar de química e geociências? Minha tendência é dizer que é errado ser incompatível.

Tem ramos da economia que avançaram muito, principalmente aqueles afeitos à modelização matemática, mas a economia ainda hoje é absolutamente prisioneira da mecânica clássica e, principalmente, da ideia de equilíbrio. Ignora totalmente a termodinâmica, para começar. Você chega a conclusões muito diferentes a respeito de como pode ser o desenvolvimento se levar em conta ou não a termodinâmica.

O conceito de entropia

Uma das primeiras coisas com que um estudante de economia se defronta é um diagrama do fluxo circular, que explica como funciona o chamado sistema econômico. Não entra nada nem sai nada desse sistema. Ele ignora a entrada de energia —nós somos uma dádiva do Sol— e, principalmente, todos os resíduos, do outro lado, além da entropia.

O que interessa para um economista na questão da entropia? Quando se usa energia —e nós não fizemos outra coisa que procurar fontes de energia que nos dessem cada vez mais produtividade—, parte dessa energia se dissipa. Permanentemente, estamos perdendo uma boa parte da energia que mobilizamos.

A rigor, a longo prazo, você não pode pensar em crescimento econômico. Você tem que pensar que o futuro da humanidade ou o desenvolvimento vão ter que prescindir do crescimento. Essa é uma conclusão que choca um economista ortodoxo, tradicional. Para eles, é subentendido que o crescimento é uma coisa eterna.

A economia e a ética

A dicotomia entre a economia como ética e uma economia mais logística, que a gente normalmente chama de o lado engenheiro da economia, é bem antiga. Houve tentativas teóricas de dizer que a economia devia se limitar só a esse aspecto logístico e não entrar em nenhum tipo de consideração ética. Evidentemente, isso não é uma coisa que foi seguida pelos economistas, mesmo por economistas que eu classificaria como ortodoxos. Uma parte deles, ao contrário, é bem ligada em considerações éticas.

Para nós, isso é muito importante porque o aquecimento global —para não falar de todos os outros prejuízos ao meio ambiente que a gente vem causando pelo menos há uns 80 anos de forma muito intensa– coloca em questão as condições de vida das próximas gerações. Esse é um dilema ético para nós.

Resultados frustrantes das COPs

Uma das coisas chocantes é notar que a questão da camada de ozônio, que era complicadíssima, teve um arranjo de cooperação internacional que deu muito resultado. Por quê? Como foi o formato?

No início, só se juntaram os que mais eram responsáveis pelo assunto. Eram poucos países que tinham as empresas que faziam o estrago. A partir disso, paulatinamente, foram ganhando adesões à convenção. É difícil encontrar, pelo menos na área ambiental, outra convenção ou outro tratado que tenha tido tanto sucesso.

Quando, em 1988, se criou o IPCC, houve muita pressa, porque a Rio-92 estava marcada e ia ser uma coisa muito importante. Mais importante que mera pressa, havia a conjuntura internacional geopolítica desse período. Ainda se vivia muito daquele entusiasmo e otimismo que surgiu a partir da queda da União Soviética. Hoje, olhando com a facilidade de estar distante disso, parece uma coisa infantil imaginar que você poderia fazer uma assembleia anual de todos os países do mundo e chegar a algum tipo de decisão.

A Convenção do Clima criou uma arena para que houvesse disputas políticas das mais variadas. No início, era sempre o Sul querendo dizer que a culpa era do Norte e que eles tinham que pagar. Depois, foram encontrando algumas saídas e, no famoso Acordo de Paris de 2015, a ideia é que cada país vai determinar ele mesmo qual é a contribuição que pode dar. Isso foi um grande avanço.

Neutralidade de carbono

No meio disso, com um grupo de Oxford liderando, cientistas começaram a levantar a ideia de que existem emissões que podem ser, de certa forma, abatidas —quando, por exemplo, uma área desmatada é restaurada— e isso levou à ideia de compensação de carbono.

Foi um tremendo desserviço. Quer dizer, tinha um lado bom e um lado ruim. O lado bom é que muitas empresas que olhavam para a questão do aquecimento global e viam sempre como um sacrifício ter que reduzir emissões, de repente, falaram: “Bom, vamos também poder abater aquilo que a gente faz de positivo”. Isso deu um certo incentivo para que elas não simplesmente banissem a ideia do aquecimento global.

Por outro lado, as empresas que mais emitem acharam o máximo. “Comprar uns créditos de carbono do pessoal que restaura na Amazônia, se a gente for muito pressionado, senão vamos continuar emitindo”. O resultado? É só olhar o que aconteceu.

Do Acordo de Paris para cá, as emissões de CO2 equivalente não pararam de aumentar, em um ritmo que é difícil imaginar se seria diferente. O impacto dos créditos de carbono nem começou a fazer cócegas por enquanto. Conheço muitos colegas que acreditam que, por volta de 2050, haja neutralidade de carbono –quer dizer, que o aquecimento global vai continuar, mas que as emissões estariam sendo mais ou menos integralmente abatidas por esses descontos.

Quando olho os números, acho que o máximo que se pode dizer é que talvez seja um problema que tenha solução neste século, mas não vai ser desse jeito, com essa convenção.

Um novo modelo para as COPs

Do meu ponto de vista, o que pode melhor acontecer é que, em algum momento, esse mesmo sistema de COPs descubra que é preciso reconsiderar a própria convenção. Hoje, a gente sabe que 80% das emissões saem de 57 empresas que estão em 34 países.

Se você juntasse esses 34 países em vez de juntar mais de cem uma vez por ano, eles não demorariam para encontrar uma maneira de se comprometer com um esquema de redução. Por exemplo, o chamado “cap and trade”: você fixa uma meta de redução das emissões para o ano que vem e as empresas que tiverem conseguido atingir essa meta recebem créditos que poderão ser vendidos para aquelas que ainda não conseguiram. Um esquema desse tipo é o que funciona no mercado de carbono europeu.

Aos poucos, você teria muito mais resultados se o arranjo fosse só com esses 34 países ou essas 57 empresas —ou a parte deles que topasse. Se a convenção não fosse abolida, as COPs poderiam começar a ser reunidas de cinco em cinco anos. É um desperdício de tudo, de dinheiro, de energia. Essas COPs são uma coisa assustadora.

Expectativas para a COP30

Do ponto de vista das negociações diplomáticas, acho que vai ser praticamente mais do mesmo. Sempre aparece alguma coisa que você pode usar para dizer que foi um avanço, mas, no frigir dos ovos, não vai ter nada de significativo nesse plano.

Só que surgiu uma novidade muito importante. No discurso do Lula na Assembleia Geral da ONU, ele fez a sugestão de que nós fizéssemos um balanço ético global.

A ideia é que o balanço seja feito a partir do momento em que todos os países apresentem os seus compromissos nacionalmente determinados, os NDCs, e pouquíssimos países, por enquanto, apresentaram. Vai ficar muito em cima da COP, em novembro, que se terá esse conjunto e se poderá começar a fazer esse balanço.

Não vai ser exatamente na COP, mas, com isso, a COP poderá ter desencadeado na sociedade civil uma dinâmica que ainda não existe: a sociedade civil mundial se mobilizar em torno desse balanço ético global e isso gerar uma forma de maior responsabilização e pressão sobre o conjunto dos países. Se eu não estiver muito enganado, vai acontecer algo de muito positivo, mas meio que fora da COP em si, que virou uma espécie de feira anual de lobistas.

Não vai ser muito diferente desta vez —e com conflitos. Tem tanta gente na Amazônia e tantas tendências da sociedade civil muito mobilizadas em torno disso que é provável que seja, de todas as 30, a mais difícil de conduzir.

Crescer decrescendo

Considero essa ideia uma espécie de ovo de Colombo, porque fica um debate entre os decrescentistas e aqueles que dizem: “Olha a fórmula que funcionou até hoje. Você terá população em queda, educação e inovações institucionais e tecnológicas continuando. Os problemas ambientais meio que se resolvem pelos preços. Não tem que ficar discutindo se tem que ter ou não crescimento. Quanto mais crescer, melhor”.

No entanto, quando você para para pensar em termos práticos, tem coisas que não podem mais crescer e tem outras que são promissoras e que precisam ter espaço para crescer. Não se trata de dizer, para quem está com a responsabilidade da política econômica, que deva pisar no acelerador ou no freio do crescimento. Ao contrário.

Tudo o que emite e queima energia fóssil demais, o ideal é que decresça. As energias renováveis precisam crescer. Estou falando do terreno da energia, mas você pode encontrar exemplos em todos os terrenos. É permanente esse caminho do meio.

Tem uma ideia que eu procuro ressaltar no fim do livro: o fundamental é desacoplar. Este é o verbo-chave da mensagem que a gente pode tirar de uma análise sobre o Antropoceno. Desacoplar, fundamentalmente, significa que tenho que procurar ao máximo possível estimular as atividades que usem menos energias fósseis e que, portanto, emitam menos. Não é o único desacoplamento, mas é o principal.

A viabilidade política da ideia

Na conjuntura atual, diria que é uma inviabilidade. O principal sinal disso é o Trump, mas não está sendo assim na China e a União Europeia está na vanguarda. Para construir a ideia, não posso condicioná-lo ao fato de a agenda ser ou não ser realista.

Se não for, eu estiver errado e essa conjuntura extremamente negativa perdurar, pior para vocês que estarão vivos [risos].

O futuro da universidade, por Simon Schartzman

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A incerteza sobre o futuro da universidade é a incerteza crescente sobre esta ideia difusa, que reflete a incerteza sobre o futuro do País

Simon Schartzman – O Estado de São Paulo – 09/05/2025

Não deve ter sido por acaso que, na mesma semana, fui convidado para dois seminários sobre o mesmo tema, o futuro da universidade. A primeira coisa que digo sobre isso é que “a universidade” não existe, o que existe são milhares de instituições diferentes, desde grandes universidades com pesquisa, cursos de pós-graduação e milhares de estudantes, geralmente públicas, até gigantescas empresas com centenas de milhares de estudantes em cursos à distância, passando por um sem-número de pequenas faculdades isoladas com cursos noturnos em educação, administração ou saúde. Existem as públicas, gratuitas e financiadas pelo governo federal e alguns Estados, e as privadas, algumas religiosas ou de orientação comunitária, e a grande maioria com fins de lucro. Estamos falando de quê?

Mas existe também, na cabeça das pessoas, uma ideia difusa de “universidade” como um lugar para onde os jovens vão no início da vida adulta, aprofundam seus conhecimentos, vivem a cultura da juventude, criam redes de relacionamento que vão levar para toda a vida e adquirem uma profissão que vai lhes dar um lugar seguro e muito mais rentável do que o de seus pais, se de famílias mais pobres, ou semelhante ao deles, se de famílias mais ricas e educadas. Quando milhões de jovens, todo ano, se inscrevem no Enem, é essa ideia que estão perseguindo, embora saibam que poucos conseguirão a nota necessária para entrar numa carreira de prestígio em uma boa universidade. Quando, depois, muitos dos que sobraram se inscrevem em cursos baratos a distância, em que é mais fácil conseguir um diploma, é ainda a ilusão das carreiras universitárias que perseguem, embora a maioria acabe abandonando os cursos ou só consiga um trabalho precário e mal pago.

A incerteza sobre o futuro da universidade é a incerteza crescente sobre esta ideia difusa, que reflete a incerteza sobre o futuro do País. Apesar das imensas desigualdades, predominava no Brasil até recentemente a sensação de que as coisas iam melhorar para todos, que amanhã seria melhor do que hoje, que a vida de nossos filhos seria melhor do que a nossa. Essa sensação vinha da grande mobilidade econômica e social que durou, com altos e baixos, até dez anos atrás e que se interrompeu com a crise econômica e a desilusão com governos, partidos políticos e instituições. Investir a longo prazo numa carreira, esquentar a cadeira aprofundando conhecimentos, construir uma reputação profissional pelo trabalho sério e responsável, tudo isso perde sentido quando comparado com a fascinação do estrelismo prometido pelos meios de comunicação, o enriquecimento pela tacada de um grande negócio ou os números corretos na Mega Sena e as certezas simples de entender disseminadas pelos influenciadores da internet.

O que mais se ouve, conversando com professores universitários, é como os estudantes de hoje são apáticos, mal cumprem as obrigações escolares e são muito mais ligados às suas redes de internet do que ao que dizem seus professores.

Pesquisas mostram que um terço dos jovens, no Brasil, gostaria de mudar para outro país. Existem, hoje, mais de 4 milhões de brasileiros no exterior, comparado com 3 milhões há dez anos e menos de 1 milhão no ano 2000.

A incerteza, no entanto, vai além da estagnação do País e da apatia da juventude. A ideia de que as universidades, primeiro as públicas, depois as privadas, se aproximariam do modelo tradicional, e que seriam acessíveis a todos, está cada vez mais distante, com 80% das matrículas em instituições privadas e mais da metade em cursos a distância. Instituições públicas mal conseguem recursos para pagar salários a seus professores e manter os prédios que ocupam. Poucas conseguem manter pesquisa e programas de pós-graduação de qualidade, e a distância entre a pesquisa brasileira e a dos países de ponta só aumenta. No setor privado, o espaço das instituições comunitárias e religiosas, criadas com a intenção de influenciar a sociedade com seus valores, vem diminuindo, na concorrência com os grandes conglomerados de ensino que dificilmente vão além de cursos empacotados nas profissões sociais mais simples e baratas de ministrar. E, com os novíssimos recursos da inteligência artificial, ninguém sabe mais o que, como e para que ensinar.

As instituições de ensino superior, em suas diversas formas e com todas as suas dificuldades, não vão desaparecer, porque o mundo depende cada vez mais de conhecimentos e competências, e a capacitação intelectual e profissional continuará sendo a grande porta de entrada para a vida dos países, instituições e pessoas. Elas precisam, no entanto, se reinventar. Essa reinvenção passa por novos tipos e cursos e carreiras, novas formas de ensinar, novas maneiras de buscar recursos e novos e mais relevantes temas para pesquisar. Para isso, elas contam com um recurso precioso, que é o capital intelectual de seus professores e a tradição de autonomia e audácia intelectual que muitas vezes acabaram perdendo, pelo peso da rotina, da burocracia ou dos resultados de curto prazo. É por aí que passa o futuro, se ele não trouxer mais desilusões.

Leão XIV, por Leonardo Boff

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Leonardo Boff – A Terra é Redonda –

Do Peru ao Vaticano, a jornada do Papa Leão XIV — e a missão impossível de desocidentalizar uma Igreja que insiste em vestir as roupas do Império Romano

Confesso que fiquei surpreso com a nomeação do Cardeal norte-americano-peruano Robert Prevost ao supremo pontificado da Igreja. Isso por ignorância minha. Depois, ao informar-me melhor, vendo youtubes e falas dele no meio do povo, de pé em plena inundação de uma cidade peruana e seu cuidado especial para com os indígenas (a maioria dos peruanos) me dei conta de que ele realmente pode ser a garantia da continuidade do legado do Papa Francisco.

Não terá o carisma do último Papa, mas será ele mesmo, mais contido e tímido, mas muito coerente com suas posições sociais, inclusive críticas face ao presidente Donald Trump e ao seu vice. Não sem razão que o Papa Francisco o chamou de sua diocese de pobres no Peru e o convocou para uma função importante na administração do Vaticano.

Leão XIV viveu grande parte de sua vida fora dos EUA, por muitos anos como missionário e depois como bispo no Peru, onde certamente colheu farta experiência de outra cultura e da situação social pobre da maioria da população. Explicitamente confessou que se identificou com aquele povo a ponto de naturalizar-se peruano.

Sua primeira fala ao público foi contra minhas expectativas iniciais. Foi um discurso piedoso e feito para o interno da Igreja. Nunca ocorreu a palavra pobre, menos ainda libertação, ameaças à vida e o clamor ecológico. O tema forte foi a paz especialmente “desarmada e desarmante”, suave crítica ao que está ocorrendo nos dias de hoje de forma dramática como a guerra na Ucrânia e o genocídio, a céu aberto, de milhares de inocentes crianças e civis na Faixa de Gaza. Pareceria que tudo isso não estivesse na consciência do novo Papa. Mas estimo que tudo isso voltará em breve, pois tais tragédias foram tão fortes nos discursos do Papa Francisco, seu grande amigo, que ainda devem ressoar nos ouvidos do novo Papa.

O Papa Francisco como jesuíta possuía um raro senso de política e do exercício do poder, pelo famoso “discernimento do espírito”, categoria central da espiritualidade inaciana. Minha pressuposição é que ele viu no Cardeal Robert Prevost um possível sucessor seu. Não pertencia à velha e já decadente cristandade europeia, vinha do Grande Sul, com a experiência pastoral e teológica madurada na periferia da Igreja, no caso do Peru, onde com Gustavo Gutiérrez, nasceu e se desenvolveu a teologia da libertação.

Seguramente, com sua maneira suave e seu caráter afeito a escutar e a dialogar, levará avante os desafios assumidos e as inovações enfrentadas pelo Papa Francisco, o que não é o caso de aqui enumerá-las.

Mas terá outros desafios, no meu ponto de vista, nunca tomados a sério pelas intervenções dos papas anteriores: como desocidentalizar e despatriarcalizar a Igreja Católica face à nova fase da humanidade. Ela se caracteriza pela planetização da humanidade (não só em sentido econômico, agora perturbada por Donald Trump) que, de fato está ocorrendo a passos cada vez mais rápidos em termos políticos, sociais, tecnológicos, filosóficos e espirituais. Nesse processo acelerado, a Igreja Católica em sua institucionalidade e na forma como se estruturou hierarquicamente, comparece como uma criação do Ocidente. Isso é inegável.

Por detrás de tudo, está o clássico direito romano, o poder dos imperadores com seus símbolos, ritos e forma de exercício do poder centralizado numa autoridade máxima, o Papa, “com o poder ordinário, máximo, pleno, imediato e universal” (cânon 331), atributos que, na verdade, caberiam somente a Deus. Acresce ainda sua infalibilidade em assuntos de fé e moral. Mais longe não se poderia ir. O Papa Francisco conscientemente se afastou deste paradigma e começou a inaugurar outro modelo de Igreja simples e pobre e em saída para o mundo.

Isso não tem nada a ver com o Jesus histórico, pobre, pregador de um sonho absoluto, o Reino de Deus e severo crítico a todo o poder. Mas foi o que ocorreu: com a erosão do Império romano, os cristãos, feitos Igreja, com alto senso de moralidade, assumiram a reordenação do império romano que atravessou séculos. Mas isso é criação da cultura ocidental.

A mensagem originária de Jesus, seu evangelho, não se exaure nem se identifica com esse tipo de encarnação, pois a mensagem de Jesus é de abertura total a Deus como Abba (paizinho querido), ilimitada misericórdia, o amor incondicional até aos inimigos, a compaixão pelos caídos nas estradas da vida e a vida como serviço aos demais. O atual Papa Leão XIV não ficará imune a este desafio. Queremos ver e apoiar a sua coragem e fortaleza para enfrentar os tradicionalistas e dar passos na referida direção.

Um grande, imenso desafio para qualquer Papa, é relativizar essa forma de organizar o cristianismo para que possa ganhar novos rostos nas várias culturas humanas. O Papa Francisco deu largos passos nesta direção. O atual novo Papa acenou para este diálogo em sua fala inaugural. Enquanto não se caminhe firmemente nesta desocidentalização, para muitos países o cristianismo será sempre coisa do Ocidente. Foi cúmplice da colonização de África, das Américas e da Ásia e assim ainda é visto assim pelas inteligências dos países que foram colonizados.

Outro desafio não menor consiste na despatriarcalização da Igreja. Ele já foi referido acima. Na direção da Igreja só existem homens e estes celibatários e ordenados no sacramento da Ordem (padre a Papa). O fator patriarcal é visível na negação às mulheres ao sacramento da Ordem. Elas compõem, de longe, a maioria dos fiéis e são as mães e as irmãs da outra metade, dos homens da Igreja e da humanidade. Essa exclusão machista fere o corpo eclesial e coloca em xeque a universalidade da Igreja. Enquanto não se abre a possibilidade às mulheres, como ocorreu em quase todas as igrejas, de acederem ao sacerdócio ela mostra seu arraigado patriarcalismo e sua marca de um Ocidente cada vez mais um Acidente na história universal.

Junto a isso a manutenção obrigatória do celibato (feito lei) faz com que o caráter patriarcal ainda se radicalize mais e favoreça o antifeminismo que se nota em estratos da hierarquia eclesiástica. Como é apenas uma lei humana e histórica e não divina, nada obsta que seja abolida e se permita o celibato opcional.

Estes e muitos outros desafios deverá o novo Papa enfrentar, pois cresce mais e mais na consciência dos fiéis o sentido evangélico de participação (a sinodalidade) e da igualdade em dignidade e direitos de todos os seres humanos, homens e mulheres. Por que na Igreja Católica deveria ser diferente?

Estas reflexões pretendem ser um desafio permanente a ser enfrentado por quem foi escolhido para o mais alto serviço de animação da fé e de direção dos caminhos da comunidade cristã como a figura do Papa. Chegará o tempo em que a força destas mudanças se fará tão exigente que ela ocorrerá. Então será uma nova primavera da Igreja que se tornará tanto mais universal quanto mais assumirá questões universais e dará a sua contribuição para respostas humanizadoras.

Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Eclesiogênese: a reinvenção da Igreja (Record).

Para que servem os economistas? por Manfred Back & Luiz Gonzaga Belluzzo

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Manfred Back & Luiz Gonzaga Belluzzo – A Terra é Redonda – 09/05/2025

Ao longo do século XIX a economia tomou como paradigma a imponente construção da mecânica clássica e como paradigma moral o utilitarismo da filosofia radical do final do século XVIII

Começamos com uma afirmação que, certamente, vai desfiar desagrados aos cultores da ciência sombria. A história do pensamento econômico nos oferece o espetáculo da naturalização da economia. A economia tem que se apresentar como uma esfera autônoma da vida humana e social em que prevalecem leis naturais, às quais os indivíduos deveriam se submeter.

Da infância smithiana à maturidade caquética das expectativas racionais, os conflitos de concepção e de método assolaram a trajetória intelectual da ciência sombria. Nos momentos de controvérsia aguçada, os príncipes e sacerdotes da ciência econômica convocam os quatro cavaleiros da ortodoxia – naturalismo, individualismo, racionalismo e equilíbrio – para espaldeirar a turba dissidente.

Leis naturais, as que possuem a mesma forma das leis da física. De Adam Smith para frente, este movimento de aproximação do paradigma da física se torna crescente. Havia, não só um ambiente intelectual que favorecia essa aproximação, como a dimensão econômica, ao mesmo tempo, vai se tornando cada vez mais importante, e cada vez mais separada das demais.

Ao longo do século XIX, a economia tomou como paradigma a imponente construção da mecânica clássica e como paradigma moral o utilitarismo da filosofia radical do final do século XVIII. O homo economicus, dotado de conhecimento perfeito, busca maximizar sua utilidade ou os seus ganhos diante das restrições de recursos que lhe são impostas pela natureza ou pelo estado da técnica.

Essa metafísica da corrente dominante supõe uma ontologia do econômico que postula certa concepção do modo de ser, uma visão da estrutura e das conexões da sociedade. Para esse paradigma, a sociedade, onde se desenvolve a ação econômica, é constituída mediante a agregação dos indivíduos racionais.

Tais premissas da economia repetidas todo o santo dia, não passam de retórica travestida de ciência. A tal racionalidade é fabricada através de crenças e dogmas, maquiados por números, equações e funções algébricas. Bufando modelos econométricos aos quatro ventos do planeta, como se fossem a pedra fundamental de um conhecimento único, incontestável como a santíssima Trindade. Um estilo rococó de se expressar, que se reproduz na eternidade dos cursos de economia! Nivelando a estatística a matemática! Um dialeto algébrico que poucos entendem! É feito para não entender!

O importante para esses sofistas alfanuméricos não é entender e estudar as relações econômicas, mas transformar uma suposta realidade estática em um jogo de causa-efeito, e pronto! Um dos dez mandamentos recebidos por Lucas, não o apóstolo, mas o ícone das expectativas racionais, a moeda é neutra.

No modelo “equilibrista” que organiza a sociedade habitada por indivíduos racionais, utilitaristas, proprietários de mercadorias e dos fatores de produção, a moeda só é necessária formalmente como moeda de conta e meio de troca. A moeda é neutra e determina o nível geral de preços sem qualquer efeito de longo prazo sobre a economia de intercâmbio de mercadorias, cujos valores relativos são mensurados pela utilidade marginal dos agentes. Também é nesse espaço de mensuração que são tomadas as “decisões de produção” dos indivíduos proprietários do capital e do trabalho

Essa forma tem seu código próprio, misture algumas equações e dados, e algumas previsões, e para dar credibilidade, imponha força divina nas palavras.

Aí, pela graça divina, os argumentos não podem ser contestados, ao contrário, são paparicados e mimados. E reverenciados como deuses, “Deus” não se dúvida, nem se contesta, é questão de fé e crença! Assim como a Cúria Romana, o que falam é lei! Um dos dez mandamentos entregue a Moisés no monte Sinai, dizia: Não tomarás em vão o nome do Senhor, o teu Deus, pois o Senhor não deixará impune quem tomar o seu nome em vão.

Nos mandamentos dos economistas: Não tomarás em vão o nome do equilíbrio, o teu “Deus”, pois o senhor academia quem tomar posse da realidade em vão seja na utilidade marginal, na produtividade dos fatores. Não darás falso testemunho econométrico. Honra a forma, o método, a burocracia, como se fossem, teu pai e mãe.

Se você perguntar, perante uma plateia, aos sábios da crematística como produzo um pão e vendo no mercado? Espere, meu caro, preciso construir um modelo econométrico do mercado de pães! Segundo nossas expectativas análises quantitativas, ceteris paribus, o mercado crescerá 20% até 2035, estimamos um mercado mundial desse produto na ordem de 7 bilhões de dólares, se prepare, para exportar! O Brasil será um dos maiores exportadores de pães em 2035, se resolver o problema fiscal, acabar com os aposentados, e congelar o salário-mínimo.

Eu perguntaria: como é viver com um salário-mínimo mensalmente, para pagar aluguel, vestir e comer? Não faça pergunta difícil e pertinente com a vida diária das pessoas. Você não entende nada!

Afinal, para que serve os economistas?

Robert Skidelsky, biográfo de John Maynard Keynes, nos ofereceu a leitura do livro O que há de errado com a economia?: “A economia não é progressiva, no sentido de, digamos, da física. O progresso na economia consiste principalmente em maior formalização, em vez da descoberta de novas verdades. Nenhuma verdade na economia, uma vez proclamada, foi refutada. Isso argumenta muito fortemente para não consignar alternativas ao mainstream atual para a lata de lixo de falácias explodidas”.

Em terceiro lugar, a economia não é uma ciência natural, mas uma ciência social (Keynes a chamou de ciência moral). Na física, a interação dos corpos é fixada por leis físicas, mas na economia é fixada pelo contexto, valores e normas sociais, que são parâmetros variáveis. Como a economia não tem verdades universais, ela não tem mais direito do que a sociologia ou a história de reivindicar uma super teoria ou metametodologia, com ensino catequético.

“Porque o objetivo de uma economia não é apenas gerar empregos para que as pessoas possam sobreviver. É elevar o padrão de vida de todos e garantir que a prosperidade seja compartilhada”. (William Lazonick, especialista em corporações empresariais americanas).

Manfred Back é graduado em economia pela PUC –SP e mestre em administração pública pela FGV-SP.

Luiz Gonzaga Belluzzoeconomista, é Professor Emérito da Unicamp. Autor entre outros livros, de O tempo de Keynes nos tempos do capitalismo (Contracorrente).

Crise e Oportunidade

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A sociedade internacional vive momentos de grandes mutações em todas as áreas e setores, todos os dias surgem novas tecnologias, alterações de modelos de negócios, movimentações disruptivas, transformações estruturais no mercado de trabalho, mudanças no comportamento dos consumidores e o crescimento sistemático da concorrência entre os atores econômicos, exigindo maior profissionalização de toda a cadeia produtiva, além de novos instrumentos educacionais que surgem todos os dias, tudo isso contribui para percebermos que vivemos numa sociedade instável e em crescente transformação.

Nessas novas mutações que passa a economia global, percebemos alterações constantes no comércio internacional, o surgimento de novos atores globais, aumento da integração entre regiões, novos conflitos entre nações hegemônicas, guerras tarifárias, aumento do protecionismo e o incremento dos subsídios, gerando incertezas em toda a economia mundial, impactando sobre as estruturas produtivas nacionais, estimulando ou desestimulando os investimentos produtivos, a geração de emprego e a renda agregada.

Neste momento de crises constantes na economia internacional, cada sociedade precisa construir novos espaços para a sua inserção na economia internacional, redesenhando seu comércio exterior, investindo em setores fundamentais para fortalecer a estrutura econômica e repensar os parceiros comerciais, aproveitando os espaços que surgem nos conflitos globais de países que lutam pela hegemonia, usando instrumentos de política industrial para atrair grandes corporações e variados conglomerados econômicos e além disso, é imprescindível preparar toda a cadeia produtiva, aumentando os investimentos na educação, atraindo pesquisadores renomados que buscam novas oportunidades no mercado internacional, contribuindo para fomentar a pesquisa científica e as bases tecnológicas.

Neste cenário de grandes incertezas na sociedade global, é fundamental atrairmos novos conglomerados econômicos e setores produtivos de ponta, dotados de grande potencial e alta complexidade, para alcançarmos este intuito é importante melhorarmos a infraestrutura, investindo fortemente em logística, reduzindo a burocracia que emperra os investimentos produtivos, diminuindo os impostos que reduzem a competitividade da estrutura produtiva, reduzindo as taxas de juros que desestimulam os investimentos produtivos e melhorando, com urgência, o capital humano nacional que, na era da inteligência artificial que está transformando a sociedade global, encontramos quase 30% dos brasileiros incapazes de compreender texto e nem fazer contas simples.

Somos uma nação dotada de grandes vantagens competitivas, temos uma gama elevada de energias sustentáveis, não temos conflitos militares e hostilidades com nenhum dos nossos vizinhos, nosso país detém grande contingente de terras e clima propício, somos detentores de minérios estratégicos para a economia do século XXI e, importante destacar, que neste ambiente de conflitos hegemônicos, nosso país consegue conversar soberanamente com todas as nações do globo, somos respeitados e todos reconhecem nosso potencial, precisamos apenas confiarmos em nós mesmos, deixando de lado discussões mesquinhas e irresponsáveis e construirmos um projeto de país, com autonomia econômica e independência política.

Estamos num momento de crises e imensas oportunidades, lembremos do período da pandemia, onde os setores mais empreendedores e dotados de grande potencial de inovação viram na crise sanitária uma grande oportunidade para se reinventar e aumentarem seus ganhos monetários, agora, aqueles que não compreenderam o imenso potencial das transformações contemporâneas, perderam espaço na sociedade. Vivemos num momento parecido, turbulento e marcado por grandes instabilidades e neste instante as decisões estratégicas definirão o futuro da nossa nação.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor universitário. 

Redes sociais e o partido digital de massas, entrevista com Bruna Della Torre

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Pesquisadora explora a hipótese de uma indústria cultural digital – entre a vitrine narcisista e a extração de dados. Uma falsa esfera pública que, nas mãos das Big Techs, favorece a ultradireita. Poderá a esquerda se organizar fora desses espaços?

Bruna Della Torre, no Blog da Boitempo – Outras Mídias – 30/04/2025

A entrevista abaixo foi preparada para a mesa redonda “América Latina: linhas de conflito na luta pela democracia”, de que participou a pesquisadora Bruna Della Torre ao lado de Silke Pfeiffer (Brot für die Welt), Pablo de Marinis (Universidad de Buenos Aires) e Jennie Dador Tozzini (ex-diretora executiva da Coordenação Nacional de Direitos Humanos – Peru). O debate fez parte da programação de um evento chamado “Democracia e autoritarismo: desdobramentos autocráticos, análises e contra-estratégias”, que ocorreu em 26 de abril em Frankfurt e foi organizado pela Associação Democracia Transnacional, em cooperação com as seguintes instituições: Instituto de Pesquisa Social; Brot für die Welt; Offenes Haus der Kulturen; mehr als wählen e. V.; World Design Capital 2026; Frankfurter Rundschau e Feira do Livro de Frankfurt. As perguntas são de Silke Pfeiffer e as respostas são de Bruna Della Torre

Depois de superar a ditadura militar nos anos 80, seu país sofreu recentemente uma experiência autoritária muito forte sob o regime de Jair Bolsonaro. Em sua pesquisa, você está investigando a influência da internet e especialmente das mídias sociais na política. Como funciona a propaganda digital da extrema direita e que efeitos está tendo?

Obrigada pela pergunta, Silke, é um prazer estar aqui com vocês neste prédio que Max Horkheimer presenteou aos estudantes para que tivessem um espaço autônomo para promover sua própria formação política (algo inimaginável na universidade hoje em dia). Entre 2021 e 2024, empreendi uma pesquisa motivada pela inquietação que me causou o rumo político do Brasil após a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Aquela eleição foi importante porque produziu, como você mesma disse, um processo de ruptura com a Nova República. Bolsonaro venceu exaltando o passado da ditadura militar e o torturador da ex-presidenta Dilma Rousseff. Durante esse período, analisei como a infraestrutura digital favoreceu formas renovadas de organização neofascista. Investiguei a propaganda dessa extrema direita nas redes ao longo desses anos, especialmente no Instagram, Telegram, TikTok e YouTube. Minha atenção se concentrou principalmente no próprio presidente Jair Bolsonaro e seus filhos Eduardo, Flávio e Carlos (políticos profissionais), mas também em grandes influenciadores de extrema direita. Parte dessa pesquisa também se concentrou na questão de gênero. Investiguei diversas formas de propaganda antifeminista, especialmente a produzida por influenciadoras, pastoras e pela esposa do presidente.
Concretamente, interessa-me explorar a hipótese de que a indústria cultural digital — isto é, o complexo de redes sociais, plataformas e dispositivos tecnológicos — opera hoje como uma nova forma de organização política que substituiu, em muitos casos, o partido de massas na articulação da extrema direita. Ou seja, a indústria cultural digital, tal como hoje configurada, não é simplesmente um meio de comunicação… mas uma forma de organização política do neofascismo. As redes não são apenas o lugar da propaganda, mas da própria política.

De fato, a indústria cultural (como o rádio e o cinema) já havia sido um dos principais instrumentos do fascismo histórico; porém, não chegou a substituir a importância do partido. O desenvolvimento mais recente das forças produtivas modificou substancialmente esse equilíbrio. As redes sociais possuem hoje uma capilaridade social que nenhuma outra organização jamais sonhou alcançar. As campanhas eleitorais hoje se desenvolvem quase exclusivamente por meio delas. O partido de massas foi substituído por uma nova forma: o partido digital de massas, uma estrutura que combina verticalidade — conectando diretamente o líder aos seus seguidores, da propaganda governamental às milícias digitais — e horizontalidade — articulando grupos marginais que antes estavam isolados e gerando nas pessoas (muitas vezes excluídas da política) uma falsa sensação de participação ativa. Nada disso é exatamente novo, mas é importante destacar. No Brasil, muitos influenciadores foram eleitos deputados. O que se observa é que, com esse tipo de propaganda, não há mais uma diferenciação clara entre um agitador de extrema direita e um político — essa mudança é muito importante. A direita está conseguindo o que a esquerda, em muitos casos, não conseguiu: mobilizar pessoas das redes para as ruas em questão de minutos, organizando não apenas manifestações, mas até tentativas de golpe político. Os episódios do Capitólio nos EUA e da invasão do Congresso e do Supremo Tribunal Federal no Brasil por parte de neofascistas são apenas duas manifestações de um potencial muito maior.

Em geral, o que observei nessa propaganda é o que temos visto, em termos de conteúdo, em toda a extrema direita: um discurso contra a chamada “ideologia de gênero” — que inclui um forte e influente movimento antifeminista —, o reforço do racismo estrutural presente na sociedade brasileira, o negacionismo, uma retórica neoliberal favorável às plataformas digitais e à livre circulação de armas, e uma particularidade brasileira que, a meu ver, consiste no reforço da lógica religiosa muito apocalíptica, especialmente das igrejas evangélicas, cuja propaganda é ostensiva nessas redes.

No entanto, em geral, nada disso é verdadeiramente novo. Contém muitos elementos do chamado fascismo histórico. Há bodes expiatórios (o Partido dos Trabalhadores, as feministas, os receptores de benefícios sociais que “não trabalham”); há promessas de que as frustrações e ressentimentos atuais serão eliminados por determinadas políticas; há empoderamento dos seus seguidores, há um constante recurso a agravos econômicos, morais, culturais e políticos; há uma produção sistemática de desconfiança e paranoia generalizada; há uma mobilização dos complexos de dependência das pessoas e uma produção de ansiedade social e psíquica generalizada. O exemplo mais ilustrativo desse fenômeno foi um meme que teve impacto considerável na eleição de Bolsonaro: uma imagem de uma mamadeira com um bico em forma de pênis, amplamente difundida nas redes sociais, acompanhada da afirmação de que o Partido dos Trabalhadores planejava instaurar uma “ditadura gay” no Brasil. Essa propaganda opera em uma complexa rede de inter-relações que torna insuficiente estudar apenas o capitalismo. Ela contém elementos políticos, econômicos, psíquicos, sociais, de gênero, entre outros. O que realmente muda é sua escala e seu alcance. Isso, sim, é novo. E trata-se de uma mudança quantitativa que traz consigo consequências políticas qualitativas. Funciona mobilizando todas essas questões que enumerei anteriormente, mas funciona, acima de tudo, porque é extensiva e ostensiva.

Recentemente você disse em uma entrevista que está tentando decifrar a propaganda digital da extrema direita para “desenvolver estratégias para neutralizá-la, impedi-la ou criar uma brigada contra incêndios.” Como você visualiza tal estratégia? E como vê a esquerda e/ou as organizações da sociedade civil / movimentos sociais reagindo frente a esses desenvolvimentos?

Vou começar respondendo a essa pergunta a partir de uma abordagem teórica, para contar que uma das ideias que inspiraram minha pesquisa foram justamente os estudos sobre a propaganda autoritária realizados por Leo Löwenthal e Norbert Gutermann, publicados no livro Profetas do engano: um estudo das técnicas dos agitadores americanos. Esses estudos tinham uma intenção prática. Max Horkheimer, então diretor do Instituto de Pesquisa Social, dizia-se interessado em criar uma espécie de manual contra a propaganda fascista, uma tentativa que acabou não se concretizando. E quando comecei esta pesquisa, minha ideia era, de certa forma, parecida. Do ponto de vista acadêmico, ainda é, e acredito que não se pode pensar em nenhuma estratégia eficaz contra a extrema direita sem compreender como ela funciona.

Mas hoje sou muito mais cética quanto a soluções puramente educativas, por assim dizer. Primeiro, porque existem duas dificuldades intrínsecas. A primeira é que muita gente não entende que não basta desmentir os agitadores de extrema direita ou fazer campanhas contra “fake news”. É muito difícil contestar esses agitadores na base do conteúdo do que dizem, não só porque seu discurso é um “discurso salsinha” — composto de uma junção fragmentária de vários ingredientes heterogêneos entre si, como dizia Theodor W. Adorno — mas porque, na realidade, esses agitadores não falam de fora, mas geralmente surgem do próprio seio de seu público-alvo: falam de dentro das camadas fascistizadas (ou ao menos conseguem transmitir essa impressão aos seus seguidores). Um exemplo: quando Bolsonaro perdeu apoio entre as mulheres devido ao seu machismo, surgiram diversas influenciadoras mulheres nas redes e a própria esposa de Bolsonaro passou a participar ativamente da propaganda antifeminista. Hoje ela é a figura da extrema direita mais bem posicionada nas pesquisas de intenção de voto para as próximas eleições, dada a magnitude de seu papel no fenômeno do pinkwashing  dentro do bolsonarismo. Atualmente, Trump também escolheu como vice-presidente uma figura que, embora não represente necessariamente esse grupo, vem do chamado “cinturão da ferrugem” e, em sua autobiografia e no filme baseado nela, fala sobre o sofrimento da classe trabalhadora branca.

A segunda dificuldade é imaginar que o principal objetivo do agitador seja conquistar a adesão moral ou intelectual de sua audiência. Se seguirmos essa linha de análise, não entenderemos por que alguém como Trump — que declarou publicamente que gostaria de namorar a própria filha — pode ser visto como defensor da família. Como Gutermann afirma, essa propaganda funciona mais como um lubrificante para a violência: não se trata realmente de proteger a família, mas de viabilizar outros discursos, como a violência contra mulheres ou a população LGBTQIA+. Quando Bolsonaro fala de liberdade de expressão, está, na realidade, legitimando discursos que no Brasil constituem crimes, como o racismo. Ele legitima e autoriza essas atitudes violentas. E muitas pessoas se sentem agradecidas, pois possuem um ressentimento profundo por não poder expressar livremente esse racismo em um país que viveu quase quinhentos anos de escravidão.

Finalmente, há o problema da escala. As redes sociais são, assim como o capital financeiro, em certa medida incontroláveis. E nelas a direita domina o meio muito melhor que nós. Mais ainda: para usar uma ideia de Adorno, a venda de uma ideia política como se fosse uma mercadoria — como faz a extrema direita — ocorre hoje em um ambiente monetizado como nunca antes na história. As Big Tech remuneram a agitação de extrema direita. Isso transforma nossa luta não apenas em uma luta ideológica, mas também econômica. Como sempre, eles contam com o respaldo do grande capital. É complexo. Acredito que uma parte da esquerda, especialmente no Brasil, já se deu conta disso, mas isso não ocorre em outras partes do mundo. As redes sociais ainda são percebidas como uma tecnologia neutra.

O que penso que é a única estratégia válida neste momento seria algo como “abra-te sésamo: queremos sair do mundo digital”. Nossa estratégia deve se orientar para o restabelecimento de vínculos sociais e políticos fora das redes. E, por fim, uma nota materialista, talvez a mais importante: Horkheimer advertia que os agitadores têm um público diferente em tempos de crise econômica. Em tempos de crise, há muito mais espaço para mobilizar o descontentamento em múltiplas direções. Portanto, compreender e transformar o sistema em que vivemos é essencial.

Que influência têm os desenvolvimentos internacionais (Trump e Big Tech nos EUA)?

Hoje, as Big Tech são uma das forças sociais — ou antissociais, se preferirmos — mais poderosas que existem. Há pouco tempo, elas teriam sido classificadas como rackets  (organizações mafiosas). O problema do capitalismo monopolista que estamos experimentando é que ele implica uma concentração de poder enorme — por isso, um dos seus riscos é o neofascismo, ou o autoritarismo, se quisermos empregar um termo mais brando. Poderíamos dizer que não é possível compreender esse fenômeno sem articular economia e política… O capitalismo monopolista tende a concentrar dinheiro e capital, o que, no mundo capitalista em que vivemos, implica uma concentração de poder. Este é o ambiente perfeito para o surgimento de um novo fascismo. Estamos vivendo agora, como fica claro com Trump, sob o neofascismo de plataforma — uma tendência que só se fortalece.

O que acontece com as plataformas é que elas estão demonstrando o quão poderosas são diante das velhas soberanias nacionais ou mesmo diante de blocos como a União Europeia. E agora as Big Tech chegaram ao governo de um dos países mais poderosos do mundo — talvez o mais poderoso. A pressão que estão exercendo sobre a Europa é brutal. Não vejo isso apenas como algo negativo — embora evidentemente o seja —, mas acredito que a posição da Europa já mudou e terá que mudar ainda mais nos próximos anos. A sinofobia, por exemplo, que é muito forte aqui na Alemanha e em outros países, também vai se transformar com a necessidade de negociar com a China. Assim, aquilo que se conhece como “Ocidente” vai se transformar com Trump.

Por outro lado, a vitória de Trump nos Estados Unidos vai empoderar profundamente as direitas europeias — já estamos vendo isso na relação entre Musk e a AfD, e com a visita de J.D. Vance à Alemanha. Agora a Europa terá que demonstrar ao mundo quão fortes são suas democracias. Acho que precisamos reconhecer que a extrema direita está organizada internacionalmente — muito mais do que nós. E isso é um problema, porque historicamente os internacionalistas sempre fomos nós. E apesar dos discursos sobre tarifas e protecionismo, a direita estadunidense está exportando um modelo de governo para muitos outros países.

Mas, para dizer algo em um tom mais otimista — se é que este mundo ainda permite algum tipo de otimismo —, vale lembrar que o Brasil se tornou agora um caso-laboratório — por enquanto — também no que diz respeito à contenção do fascismo, e acredito que isso poderá servir de exemplo para a Europa. Embora Bolsonaro não tenha sido julgado nem sancionado por sua atuação como presidente durante a pandemia de Covid-19, como deveria ter sido, ele foi finalmente declarado inelegível por oito anos por abuso de poder político e econômico nas celebrações do Bicentenário da Independência. Atualmente, também é formalmente acusado em um processo judicial que investiga seu papel na incitação ao episódio de 8 de janeiro, no qual uma multidão invadiu as sedes dos Três Poderes em Brasília. Espero que esse tipo de política leve a Europa a estudar e buscar apoio naqueles lugares que estão conseguindo conter a extrema direita. Líderes como Trump não deveriam poder se candidatar a eleições. E a AfD, com suas propostas racistas e neonazistas, também deveria ser proscrita. Pensar que permitir que movimentos de extrema direita cheguem ao poder é um ato democrático é uma ilusão. Trata-se de uma interpretação extremamente superficial do que significa democracia, e acredito que esta é a lição que a Europa precisa aprender agora se não quiser seguir o mesmo caminho dos Estados Unidos. É claro que isso não é suficiente e temos que derrotar o fascismo no corpo social, porém, devido à força mercantil e política desse movimento, precisamos usar todas as ferramentas que temos, principalmente as jurídicas e institucionais.

As redes sociais não são lugares contraditórios que também abrigam a esquerda?

Acredito que a pergunta sobre o caráter contraditório das redes sociais e sobre como deveríamos ocupá-las é uma das que mais ouço quando falo sobre o tema. Confesso que tenho um ceticismo profundo quanto à possibilidade de que alguma mudança parta da esquerda dentro dessas redes — ceteris paribus, ou seja, tal como elas existem hoje. Embora pareçam constituir uma nova esfera pública, convém lembrar que, na realidade, se tratam de grandes monopólios capitalistas baseados na publicidade — daí a analogia com o que Adorno e Horkheimer chamaram de indústria cultural que guia minha pesquisa. São sistemas fechados, cujo funcionamento desconhecemos e que não estão sob nosso controle, mas sob o controle de algoritmos definidos por essa elite que hoje vemos vinculada a figuras como Trump: Elon Musk, Mark Zuckerberg… apenas para mencionar dois dos Broligarcas.

Mas as redes sociais não têm absolutamente nada de público. São uma mistura de prisão — totalmente baseada na vigilância — e shopping center. E não sei se seria possível, nem sequer desejável, tentarmos disputar um shopping center. Não é porque as redes são digitais que elas não funcionam como uma espécie de shopping. Ainda mais quando, como mostraram diversas pesquisas, hoje mais da metade de nossas interações na internet ocorrem com bots. Imaginemos a quantidade de energia e tempo que precisaríamos investir, como esquerda, para tentar nos tornar hegemônicos nesses espaços. Ou aceitamos a mesma lógica e colocamos nossos próprios bots  para interagir com os deles, ou consumimos toda a nossa energia nessa tarefa.

A indústria cultural hoje não é apenas um espaço, é um processo, uma forma social, se quisermos, que favorece objetiva e subjetivamente a extrema direita. É uma ferramenta de produção de comportamentos, de extração de dados, de trabalho e de imaginação política.

Uma alternativa mais interessante — creio eu — seria, em primeiro lugar, compreender a fundo o fenômeno com que estamos lidando e nos reorganizar coletivamente fora desses espaços. Hoje existe um fetichismo muito forte em torno da tecnologia, mas não devemos esquecer que todas as revoluções do século XX foram feitas sem redes sociais. Precisamos expandir nossa imaginação política além dos limites que o capitalismo impõe. Essa sempre foi a tarefa da esquerda e da teoria crítica: imaginar e agir para além do existente.

Você está morando na Alemanha. Como você enxerga a AfD hoje?

Seria preciso comentar a relação da AfD com a história política da Alemanha, que é complexa e problemática, mas para ser rápida, vou ficar no tema da propaganda e comentar um pouco como acho que a AfD tem atuado em sua propaganda e por que ela tem sido tão eficaz.

Acredito que a AfD possui uma perícia incomparável no campo da propaganda neofascista. Seus memes, que invadiram o Instagram, e seus vídeos no TikTok têm uma estética muito característica — a propaganda da AfD é coerente e bem organizada. Ela possui uma identidade visual própria. Uma primeira observação sobre a AfD: A AfD parece falar a língua dos jovens e conseguiu tornar o neonazismo algo cool. Não se apresenta como um partido, mas como uma “alternativa”. Ao eliminar a palavra “partido” de seu nome, mostra-se como um movimento independente, com forte apelo entre a juventude. Um clássico do fascismo histórico. Sua campanha foi amplamente conduzida pelas redes sociais. O símbolo do partido se assemelha ao da Nike e simboliza o movimento (para a direita).

A propaganda da AfD tem, evidentemente, suas particularidades locais. É, por assim dizer, mais “social” que a extrema direita brasileira, apesar de defender direitos sociais apenas para os alemães, e não para os imigrantes. Vale dizer que, no Brasil, a direita não defende nenhum direito social e apresenta um discurso neoliberal muito mais explícito.

Também é importante comentar a questão da guerra: aqui, a AfD adotou uma posição contrária à guerra na Ucrânia, responsabilizando os chamados partidos da ordem por seu estopim. Outro ponto muito significativo é a questão climática, que ocupa um lugar central no debate público na Alemanha. Um exemplo de como essa propaganda atua em relação ao tema climático, que é um tema muito importante aqui: ela ativa uma série de ansiedades econômicas, associando a transição energética à desindustrialização e ao enfraquecimento da economia alemã. Em resposta a uma tentativa do governo de limitar a poluição proveniente das atividades agrícolas, o agronegócio se organizou e invadiu Berlim com seus tratores. Neles, podia-se ver hasteada uma bandeira com o lema: Farmers for Future [Agricultores pelo Futuro], uma referência distorcida ao movimento Fridays for Future [Sextas-feiras pelo Futuro], um dos maiores movimentos sociais na Alemanha e na Europa hoje (cuja figura mais representativa é Greta Thunberg). Assim como no Brasil, a propaganda vinculada ao agronegócio tenta ressignificá-lo: em vez de apresentá-lo como um empreendimento capitalista ultraliberal e nocivo à natureza, ele é retratado como um setor da economia que preserva as tradições rurais, alimenta a população e cumpre assim até mesmo uma função social. Com isso, a AfD ganha força também nas zonas rurais e reativa o velho ódio nazista às grandes cidades e ao seu cosmopolitismo (vale lembrar, por exemplo, o desprezo de Hitler por Berlim).

Esse tipo de propaganda, em última instância, também é capaz de ampliar a noção do econômico e fazer com que as pessoas o experienciem na vida cotidiana.

Outro exemplo: há um vídeo em que se enumeram várias razões para não votar na AfD — “se você deseja a guerra, não vote na AfD; se você acredita que homens podem engravidar, não vote na AfD” —, e que termina com uma afirmação absurda: “se você gosta de comer insetos, não vote na AfD”. A afirmação, completamente disparatada, associa a questão climática ao fim do prazer de comer, em uma sociedade em que esse prazer está associado ao consumo de carne (não por acaso, o veganismo é também um dos alvos favoritos da direita). Trata-se de uma tática já utilizada no Brasil por Carlos Bolsonaro. Nota-se que eles estão organizados e compartilham numerosos materiais de propaganda. A ideia é levar ao extremo os cenários de sacrifício exigidos pela crise climática e, com isso, fazer com que as pessoas, por medo de perder seu modo de vida, nem sequer reconheçam o problema. É uma espécie de mobilização reacionária do surrealismo, de tão inverossímeis que são os exemplos.

A Alemanha, embora tenha reduzido suas emissões de CO₂ (em 2024 registrou o nível mais baixo em 70 anos), consumiu em apenas quatro meses de 2024 o que, em termos sustentáveis, deveria ter sido consumido em um ano inteiro. Ao contrário do governo, a AfD não exige sacrifícios de seus eleitores e, além disso, promete recompensas imediatas. Uma política de esquerda deve estar consciente desse problema ao formular um programa que tenha no centro a própria sobrevivência, por mais justa e verdadeira que seja a ameaça climática.

Para terminar, já que estamos discutindo também alternativas, aqui, creio que seria necessário discutir como a esquerda precisa ser novamente o movimento que oferece, para usar uma expressão baudelairiana, uma promessa de felicidade — real, tangível, possível. Enquanto não formos capazes de fazer isso, o futuro será deles.

 

Disputa pela hegemonia no mundo integrado, por Tarso Genro

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Tarso Genro – A Terra é Redonda – 04/05/2025

A disputa hegemônica migrou para o controle digital e a financeirização do Estado, com atores globais e elites locais corroendo a democracia em favor de interesses privados

Os protagonistas da disputa pela hegemonia política e cultural na sociedade capitalista dos anos 1980, então conceituada (Adam Schaff) como “sociedade informática” – hoje já selada como “infodigital” – não tinham em mãos um instrumental tecnológico tão diverso e variado, com a capacidade tão ampla de fazer circular dados, opiniões, recursos, com a velocidade e a precisão tão aproximadas das regras espontâneas do mercado, como no fim deste quarto de século.

Na sociedade industrial contemporânea, a partir do rádio e depois da televisão, já predominavam – embora presentes de forma atenuada – as influências dos novos meios e instrumentos tecnológicos, tanto de sedução para concertos e acordos políticos, como de verificação e disseminação de conflitos políticos, embora tudo isso corresse em tempos mais lentos. As técnicas mais adequadas à propagação de produtos para o mercado (como publicidade) predominavam nesta primeira etapa, embora já difundindo informações para semear novos sentidos para a política, numa sociedade com suas classes tradicionais em diluição.

As informações de interesse público ou simplesmente importantes (em diferentes formatos) eram selecionadas pelos grupos empresariais de comunicação locais e nacionais e disputadas, no seu enquadramento, com os partidos políticos, sindicatos, grupos de “interesse” – grupos de pressão de diversas origens – que compunham, à época, sistemas de relacionamento com fontes visíveis de poder para tentar, com seus movimentos rebeldes ou conservadores, mudar a ordem, melhorá-la ou conservá-la, de acordo com seus interesses imediatos.

Pode ser dito que a disputa, neste momento, era principalmente – ainda que anterior às revoluções tecnológicas em curso – determinada pela verticalidade do poder concentrado e que hoje se dá principalmente pela horizontalidade do poder repartido. No atual ciclo de relação das tecnologias informacionais com a política e com a cultura, todavia, há uma nova concentração de poder: externa à nação, ao Estado-nação, ao município e ao território.

Esta concentração de poder também é verticalizada, contudo movida pelos fluxos em rede, com mensagens na velocidade da luz. A sua transferência de mensagens e dados tem também mais precisão, na sua difusão espacial, não só no que refere à parte que penetra na estrutura de classes que ela quer alcançar, como também no que toca aos lugares do território soberano, que as mensagens querem influenciar.

De outra parte, esta transferência de informações planejadas por estes novos centros de poder, só é passível de ser controlada por estes, até o momento da sua dispersão pelas redes sociais, nas quais o poder de transferir e comunicar se socializa. Ali estão organizados os grupos de ação que dominam tecnologias mais fáceis de serem comandadas, embora muito mais complexas para serem produzidas.

Hoje a disputa pela hegemonia no mundo integrado pela circulação do capital financeiro “legal ou ilegal”, passa, portanto por outros caminhos e ocorre internamente ao Estado, como parcerias público-privadas e pactos de privatização de seus serviços essenciais, que integram – cada vez mais – os grandes conglomerados privados globais nos mandos diretos do poder de Estado.

Estes, que passam a prestar serviços públicos essenciais com um monopólio de fácil lucratividade e direcionado para clientelas cativas, instauram – então – nas instituições sua força imperial. E externamente ao Estado, a disputa pela hegemonia passa igualmente pelos processos eleitorais e pelas mobilizações da sociedade civil, através das alianças políticas para atacar ou defender o Estado social e a democracia.

A relação política reformista e democrática com o Estado, com as redes sociais dispersas e com uma intersecção planejada e centralizada de ações políticas digitais, são os novos espaços de disputa que os partidos, governos sociais-democratas e democrático-republicanos, devem ter como prioridade na disputa pela hegemonia. É preciso considerar que este trabalho, para as classes dominantes e facções neoliberais, é feito pela imprensa tradicional e comercial, de maneira “voluntária” (ou paga), mais (ou menos) espontânea, em favor dos seus interesses privatizantes de natureza selvagem.

Os grupos empresariais e os Estados dos países dominantes, vinculados ao novo sistema-mundo da globalização, também em crise de hegemonia, olham este processo com objetivos claros, simplesmente considerando-os como renovação da abertura de uma nova fronteira de acumulação de capital e também de acumulação de força política.

A primeira, para prepararem-se para as guerras inevitáveis, a segunda, para apoiarem os regimes democráticos apenas nos limites dos seus interesses de acumulação.

Os seus pactos políticos de composição de alianças e os seus contratos financeiros de publicidade refletem, abertamente, a aglutinação sistêmica e a força que têm os líderes partidários “das classes altas” – com ou sem partido – que fazem de cada momento de privatização dos serviços públicos um degrau mais avançado de domínio do poder político. Tal conduta dissolve – lenta e seguramente – as fronteiras do público e do privado, asfixiando a democracia eleitoral com o uso da força destes poderes “de fato”.

Esta interação permite fazer, não só a conversão do Estado social em uma estrutura privada de caráter monopolista para prestar serviços essenciais a alto custo, mas também um processo de intervenção permanente nos processos eleitorais, com a proliferação de privatizações selvagens, leniência acrítica com os governos ímprobos e com os cuidados do ambiente natural, bem como na prevenção de catástrofes, gerando dinheiro vivo – com as privatizações – que servem de oxigênio financeiro para as suas alianças contra as formas consagradas do Estado social de direito.

Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).