Em busca de maior Autonomia Tecnológica, por Fernando Nogueira da Costa

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A Terra é Redonda – 02/09/2024

Alcançar autonomia tecnológica no Brasil requer uma abordagem multidisciplinar e integrada, envolvendo educação, infraestrutura, políticas públicas, incentivos financeiros e colaboração internacional

A economia brasileira, apesar de ser uma das maiores do mundo (8ª.) e possuir avanços superiores em setores como agricultura, mineração, extração de petróleo e aviação, ainda apresenta lacunas tecnológicas em várias indústrias estratégicas. Nestas áreas, o Brasil depende de multinacionais para atrair investimentos, transferir tecnologia, ou precisa importar produtos e tecnologias avançadas para suprir as demandas do mercado interno.

Por exemplo, em Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), embora o país tenha uma indústria de software crescente e um setor de startups em expansão, ainda depende de multinacionais para o fornecimento de hardware, semicondutores, e tecnologias avançadas de comunicação, como equipamentos para redes 5G. Grande parte dos equipamentos de telecomunicações, componentes eletrônicos e sistemas de computação avançada são importados, com destaque para países como Estados Unidos, China, e Taiwan, dominantes do mercado global de semicondutores.

O Brasil tem uma indústria farmacêutica especializada na produção de medicamentos genéricos, mas ainda dependente de multinacionais para o desenvolvimento de medicamentos inovadores, vacinas, e biotecnologias avançadas. O país importa grande parte dos insumos farmacêuticos ativos (IFAs) e tecnologias para a produção de biomedicamentos. A pandemia de COVID-19 ressaltou essa dependência, quando o Brasil teve de importar vacinas e materiais para sua produção.

A produção de semicondutores é crucial para várias indústrias, incluindo eletrônicos, automotiva e telecomunicações. O Brasil não possui uma indústria relevante de semicondutores e depende de importações para suprir a demanda.

Semicondutores são importados principalmente de países asiáticos dominantes da produção mundial. O Brasil precisa atrair multinacionais ou desenvolver capacidades locais para reduzir essa dependência.

Quanto às Tecnologias de Energia Renovável Avançada, embora o Brasil seja um líder mundial em energia hidrelétrica e tenha uma base crescente de energia eólica e solar, a produção de equipamentos de alta tecnologia para esses setores, como turbinas eólicas e painéis solares de última geração, depende de empresas multinacionais. Equipamentos e tecnologias avançadas, como inversores solares, turbinas de alta eficiência, e tecnologias de armazenamento de energia, são importados de países como Alemanha, China e Estados Unidos.

A Embraer é um destaque na aviação regional, mas o Brasil depende de multinacionais para tecnologias de ponta na Indústria de Defesa Aeroespacial, como sistemas de radar, mísseis, satélites, e aeronaves de combate avançadas. Para desenvolver capacidades mais avançadas, o Brasil precisa importar ou firmar parcerias com empresas de países como Estados Unidos, Israel e Rússia. Têm tecnologias mais avançadas nesses setores.

A indústria automotiva brasileira é de grande porte, mas a produção de veículos elétricos, híbridos e autônomos, requerem tecnologias avançadas. Aqui está em estágio inicial. A maioria das tecnologias relacionadas a baterias de lítio, motores elétricos, e sistemas de inteligência artificial para veículos autônomos são importadas de países como China, Alemanha e Japão.

A nanotecnologia é uma área emergente com aplicações em setores como medicina, eletrônicos e materiais avançados. No entanto, o Brasil não desenvolveu plenamente essa indústria e depende de importações e parcerias para avançar. Equipamentos, materiais e know-how em nanotecnologia são importados, com destaque para parcerias com empresas e instituições de pesquisa de países como Estados Unidos, Japão e Alemanha.

O Brasil tem feito avanços em inteligência artificial, principalmente em setores de serviços e fintechs, mas depende de tecnologias estrangeiras para aplicações mais avançadas em robótica, automação industrial, e inteligência artificial aplicada. A maioria dos sistemas avançados de robótica e plataformas de IA utilizadas em indústrias brasileiras são desenvolvidas por empresas estrangeiras, em geral, dos mesmos países antes citados.

A economia brasileira, apesar de seus avanços em várias indústrias, depende de tecnologias estrangeiras e da presença de multinacionais em setores estratégicos. A importação de produtos e a atração de empresas globais são essenciais para preencher essas lacunas, enquanto o país trabalha para desenvolver suas capacidades tecnológicas e reduzir a dependência externa a longo prazo. Iniciativas de políticas públicas voltadas para inovação, pesquisa e desenvolvimento, assim como parcerias internacionais, serão cruciais para fortalecer a base tecnológica brasileira nessas áreas.

Para o Brasil alcançar certa autonomia tecnológica, é necessário implementar uma série de ações coordenadas e políticas estratégicas desde a formação de capital humano até o desenvolvimento de infraestrutura e fomento à inovação.

A base para qualquer desenvolvimento tecnológico é educação e capacitação de capital humano em quantidade e qualidade. É crucial investir na qualidade da Educação Básica, especialmente em áreas como Matemática e Ciências Exatas, além da alfabetização digital. A Educação Superior também deve ser fortalecida, com ênfase em Engenharia, Ciências da Computação, Biotecnologia, e outras áreas técnicas críticas.

É essencial expandir a formação de pesquisadores, engenheiros e técnicos especializados. Programas de pós-graduação devem ser ampliados e alinhados com as demandas tecnológicas estratégicas do país.

Com o avanço rápido da tecnologia, é necessário promover programas de educação continuada e requalificação profissional para garantir a força de trabalho se manter atualizada e capaz de lidar com novas tecnologias.

O governo deve oferecer incentivos fiscais e subsídios para empresas investirem em Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PD&I), criando um ambiente favorável para a inovação. Políticas públicas (como a Lei do Bem: Lei 11.196/2005) oferecem benefícios fiscais para empresas investidoras em pesquisa.

Cabe promover colaborações entre universidades, centros de pesquisa e o setor privado para desenvolver tecnologias e soluções inovadoras. As Parcerias Público-Privadas (PPPs) ajudam a transformar descobertas científicas em produtos e serviços comercializáveis. Necessita desenvolver e expandir parques tecnológicos, incubadoras e aceleradoras de startups para apoiar a criação e crescimento de empresas de base tecnológica.

Um objetivo chave é ampliar e modernizar a infraestrutura de telecomunicações, garantindo acesso universal à internet de alta velocidade e expandindo as redes de fibra óptica, 5G e outras tecnologias de comunicação essenciais. Investir na criação e modernização de centros de pesquisa e laboratórios com infraestrutura avançada propicia apoiar pesquisas em áreas estratégicas, como biotecnologia, nanotecnologia, inteligência artificial, e energia renovável.

A Nova Indústria Brasil, isto é, a política de reindustrialização), é norteada por metas aspiracionais relacionadas a cada uma de suas seis missões.

1 – A garantia da segurança alimentar e nutricional dos brasileiros passa pelo fortalecimento das cadeias agroindustriais (missão 1).

2 – Na área da saúde (missão 2), a meta é ampliar a participação da produção no país de 42% para 70% das necessidades nacionais em medicamentos, vacinas, equipamentos e dispositivos médicos.

3 – Para melhoria do bem-estar das pessoas nas cidades (missão 3), investirá em infraestrutura, saneamento, moradia e mobilidade sustentáveis.

4 – Para tornar a indústria mais moderna e disruptiva, há a meta de transformar digitalmente (missão 4) 90% do total das empresas industriais brasileiras (hoje são 23,5%) digitalizadas e triplicar a participação da produção nacional nos segmentos de novas tecnologias.

5 – Entre as metas estabelecidas com foco na bieconomia, descarbonização e transição e segurança energéticas (missão 5) está a de ampliar em 50% a participação dos biocombustíveis na matriz energética de transportes — atualmente os combustíveis verdes representam 21,4% dessa matriz.

6 – Por fim, na área da defesa (missão 6), pretende-se alcançar autonomia na produção de 50% das tecnologias críticas de maneira a fortalecer a soberania nacional.

Em síntese, alcançar autonomia tecnológica no Brasil requer uma abordagem multidisciplinar e integrada, envolvendo educação, infraestrutura, políticas públicas, incentivos financeiros e colaboração internacional. A construção de um ambiente favorável à inovação, combinado com o desenvolvimento de capacidades internas em áreas estratégicas, permitirá ao país não apenas reduzir sua dependência de tecnologias estrangeiras, mas também posicionar-se como um líder global em setores chave.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP)

Informação não é conhecimento, e IA é a tecnologia mais poderosa da história, diz Yuval Harari

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Em entrevista à Folha sobre seu novo livro que aborda o assunto, autor de ‘Sapiens’ defende que ferramenta seja regulada como carros e remédios
Patrícia Campos Mello – Folha de São Paulo – 03/09/2024

São Paulo – O israelense Yuval Noan Harari, um dos autores mais populares da atualidade, alerta para um futuro aterrador em seu novo livro, “Nexus: Uma Breve História das Redes de Informação, da Idade da Pedra à inteligência artificial”, cujo lançamento mundial ocorre nesta terça-feira (3).

Segundo ele, a humanidade está pisando no acelerador do desenvolvimento da inteligência artificial, mas não sabe como freá-la.

“A IA é a tecnologia mais poderosa já criada pela humanidade, porque é a primeira que pode tomar decisões: uma bomba atômica não pode decidir quem atacar, nem pode inventar novas bombas ou novas estratégias militares. Uma IA, ao contrário, pode decidir sozinha atacar um alvo específico e pode inventar novas bombas”, diz à Folha o historiador, que vendeu 45 milhões de exemplares com “Sapiens”, “Homo Deus” e “21 Lições para o Século 21″.

Para Harari, o primeiro passo é concordar que precisamos regular a IA da mesma forma que regulamos produtos, medicamentos e carros”. Leia a seguir a entrevista, feita por e-mail.

Por que o sr. decidiu escrever um livro sobre tecnologia e inteligência artificial?
Este não é um livro apenas sobre IA. Ele explora a história das redes de informação desde a Idade da Pedra. A ideia é ter uma perspectiva histórica sobre a revolução da IA estudando o impacto das revoluções de informação anteriores.

Por exemplo, como a invenção do livro levou à Bíblia e ao cristianismo. Como a invenção da imprensa levou a uma onda de teorias da conspiração, caça às bruxas e guerras religiosas na Europa do século 16. E como os soviéticos usaram a tecnologia da informação moderna para criar sua polícia secreta.

O objetivo é entender a interação entre tecnologia e seres humanos. Especialistas em IA acham difícil entender como uma nova tecnologia influenciará a religião, a cultura e a política. Especialistas em computação tendem a ter visões ingênuas sobre a história.

Quando a internet surgiu, os gigantes da tecnologia prometeram que ela espalharia a verdade e a liberdade e levaria à queda de ditadores e ao fortalecimento da democracia. Isso não aconteceu.
Hoje temos a tecnologia de informação mais sofisticada da história, mas as pessoas estão perdendo a capacidade de conversar umas com as outras. Democracias em todo o mundo estão sendo minadas. Um conhecimento da história pode nos ajudar a entender o porquê.

Hoje, há uma quantidade recorde de informações em circulação, e a tecnologia nunca foi tão avançada. Mesmo assim, a humanidade nunca esteve tão próxima do autoextermínio por causa do aquecimento global e das guerras. Os luditas [trabalhadores têxteis que se opunham à introdução de novas máquinas durante a Revolução Industrial] estavam corretos?

Informação não é conhecimento. A maior parte da informação é lixo. Conhecimento é um tipo raro e caro de informação.

Por exemplo, é fácil inventar uma fake news atraente —você simplesmente escreve o que quiser.

Mas é difícil escrever uma reportagem verdadeira, porque pesquisar e apurar é caro. E a notícia verdadeira que você produz provavelmente atrairá menos atenção do que a fake news, porque a verdade tende a ser complicada, e as pessoas não gostam de histórias complicadas.

Podemos comparar informação com comida. Há cem anos, a comida era escassa. Então os humanos comiam qualquer coisa que encontrassem, gostavam especialmente de comida com muita gordura e açúcar. Hoje, a comida é abundante, e somos inundados por “comida lixo”, artificialmente rica em gordura e açúcar. Se as pessoas comem muito lixo, ficam doentes.

O mesmo vale para a informação, que é o alimento da mente. Estamos inundados por muita informação lixo. A informação lixo é artificialmente cheia de ganância, ódio e medo —coisas que atraem nossa atenção. Toda essa informação lixo deixa nossas mentes e sociedades doentes. Precisamos de uma dieta de informação.

O sr. chama de conceito ingênuo de informação a ideia de que quanto mais informação, melhor, e que as melhores ideias e a verdade prevalecerão naturalmente. Mas também rejeita a ideia de o governo atuar como um Ministério da Verdade. Qual é o meio-termo?

Devemos partir do pressuposto de que todos são falíveis. As corporações são falíveis, assim como o governo. Portanto, nunca devemos dar autoridade absoluta a uma única entidade.

O poder de regular a tecnologia da informação deve ser distribuído entre o governo, as corporações, os tribunais, a mídia, a academia e as ONGs. Isso é complicado, mas a complexidade é uma característica da democracia. A ditadura é simples —uma única pessoa manda em tudo e nunca admite nenhum erro. A democracia é complicada —muitas pessoas conversando e corrigindo os erros uns dos outros.

O primeiro passo crucial, no entanto, é concordar que precisamos regular a tecnologia da informação da mesma forma que regulamos produtos, medicamentos e carros.

Quando uma empresa automobilística decide produzir um novo modelo de carro, ela investe uma parte significativa de seu orçamento em segurança. Se uma empresa automobilística negligência a segurança, os clientes podem processá-la em busca de indenizações, e o governo pode impedi-la de vender seus carros.

Existem muitas leis que limitam aonde os carros podem ir, quem pode dirigir e a velocidade que podem atingir. Exatamente os mesmos padrões devem ser aplicados aos algoritmos.

Em um ensaio de junho de 2023, o bilionário Marc Andreessen disse que a inteligência artificial não destruirá o mundo; na verdade, pode salvá-lo. Faz sentido?

Andreessen está certo ao dizer que a IA pode melhorar muito nossas vidas. Ela pode criar o melhor sistema de saúde da história e ajudar a prevenir o colapso ecológico. Mas não devemos ignorar suas ameaças.

É a tecnologia mais poderosa já criada pela humanidade porque é a primeira que pode tomar decisões. Uma bomba atômica não pode decidir quem atacar nem pode inventar novas bombas ou estratégias militares. Uma IA, ao contrário, pode decidir sozinha atacar um alvo específico e pode inventar novas bombas, estratégias e até novas IAs.

A coisa mais importante a saber sobre a IA é que ela não é uma ferramenta em nossas mãos —é um agente autônomo, fazendo coisas que não esperávamos. O que acontecerá conosco quando milhões de agentes não humanos começarem a tomar decisões sobre nós e a criar coisas novas —de novos medicamentos a novas armas, de novos textos religiosos a novos tipos de dinheiro?

No livro, o sr. menciona várias vezes o ex-presidente Jair Bolsonaro como exemplo de líder populista que usou a informação como arma. Por que lhe pareceu importante incluí-lo?

Muitos livros sobre a revolução da IA focam demais os Estados Unidos e ignoram o resto do mundo.

Mas alguns dos piores efeitos da IA podem ser sentidos em lugares como o Brasil antes dos EUA. Vimos isso anteriormente na história, por exemplo, com a Revolução Industrial.

O senhor fala sobre o perigo de a IA, sem mecanismos de autocorreção, ser usada por líderes autoritários. Qual seria o cenário no Brasil, com um líder autoritário governando com a ajuda da IA?

Um grande perigo é a criação de regimes de vigilância total.

Ao longo da história, ditadores quiseram monitorar toda a população 24 horas por dia para garantir que todos estavam obedecendo às suas ordens e ninguém estava resistindo ou mantendo opiniões dissidentes. No entanto, até agora os ditadores não conseguiam fazer isso.

Primeiro, faltavam espiões suficientes. Por exemplo, a ditadura militar no Brasil nos anos 1970 não conseguia seguir 100 milhões de cidadãos brasileiros 24 horas por dia. Isso teria exigido 200 milhões de agentes da polícia secreta (porque até mesmo os agentes do DOI-Codi precisavam dormir às vezes).

Em segundo lugar, a ditadura não tinha analistas suficientes. Se todos os dias os espiões coletassem informações sobre 100 milhões de brasileiros, de onde o regime poderia obter analistas suficientes para processar todas essas informações?

Com a IA, um futuro ditador não precisaria de milhões de agentes humanos para espionar todo mundo. Smartphones, computadores, câmeras, microfones e drones poderiam fazer isso. Nem precisaria de milhões de analistas humanos. A IA poderia processar a enorme quantidade de informações e punir qualquer dissidência.

Isso já está acontecendo em algumas partes do mundo. No Irã, por exemplo, existem leis rígidas que obrigam as mulheres a usarem o hijab sempre que saem de casa. Anteriormente, era difícil fazer cumprir essas leis. Mas o regime iraniano agora usa IA. Mesmo que uma mulher dirija seu próprio carro sem hijab, as câmeras de reconhecimento facial identificam esse crime.

Quais são os mecanismos de autocorreção essenciais para garantir que a IA seja segura?
Precisamos criar instituições que possam identificar rapidamente problemas e reagir a eles.

Serão novas instituições regulatórias que atrairão alguns dos maiores talentos e serão financiadas por um imposto sobre os lucros dos gigantes de tecnologia.

Criar apenas uma instituição regulatória será perigoso, porque ela terá poder demais. Precisamos aderir ao princípio democrático da divisão de poder.

Há entusiastas da IA que nos dizem que não precisamos dessas instituições no momento.

Regulamentações retardariam o desenvolvimento e talvez dessem vantagem a competidores em outros países. Eles dizem que, no futuro, se descobrirmos que a IA é perigosa, podemos focar nossos esforços na segurança. Mas isso é insano.

Quando você aprende a dirigir um carro, a primeira coisa que ensinam é como brecar. Só depois de saber como usar os freios é que ensinam como apertar o acelerador. Isso também se aplica à IA.

Quanto ao argumento de que investir em segurança daria vantagem a competidores —isso é um absurdo. Se seus concorrentes desenvolverem um carro sem freios, isso significa que você também deve desenvolver um carro tão perigoso?

RAIO-X | Yuval Noah Harari, 48
Nascido em Israel, é professor na Universidade Hebraica em Jerusalém e pesquisador na Universidade de Cambridge. Formado em história militar e medieval na Universidade Hebraica, tem doutorado pela Universidade de Oxford. Autor dos best-sellers mundiais “Sapiens – Uma Breve História da Humanidade”, “Homo Deus – Uma Breve História do Amanhã” e “21 Lições para o Século 21”, traduzidos para 65 idiomas.

Extrema direita fabrica mito do passado glorioso para avançar agenda reacionária, por Ana Luiza Albuquerque

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Estratégia usada pelo nazismo e fascismo italiano é reeditada no século 21 por movimentos populistas e pela ultradireita

Ana Luiza Albuquerque, Repórter de Política, é mestre em Jornalismo Político pela universidade Columbia (EUA) e autora do podcast Autoritários.

Folha de São Paulo, 01/09/2024

[RESUMO] A fabricação do mito de um passado glorioso, estratégia utilizada nas experiências fascistas do século 20, é reeditada no século 21 pela extrema direita e pela direita populista, com o mesmo intuito de implementar valores reacionários e fustigar o modelo de Estado de Direito liberal. No Brasil, percebe-se isso no movimento bolsonarista e na construção de um passado compartilhado judaico-cristão.

“Ele é o leão da tribo de Judá”, cantava a senhora com a mão direita ao alto e a mão esquerda no microfone. O animal aparecia no manto que ela carregava nos ombros, junto às bandeiras de Israel e do Brasil. “Oh, esperança de Israel”, a mulher repetia, entoando os versos de uma canção carimbada nos cultos evangélicos.

Naquele domingo, a reunião não era religiosa. O canto da senhora enchia a esvaziada casa de eventos que abrigou a convenção municipal do PRTB em São Paulo, confirmando a pré-candidatura do influenciador, empresário e ex-coach Pablo Marçal à prefeitura da capital.

Sem o apoio do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), Marçal ativou símbolos caros para a direita bolsonarista: Deus, família e os perigos do comunismo, das drogas e da “ideologia de gênero”. Israel foi mais um deles.

Cinco meses antes, as bandeiras do país judaico haviam tomado as ruas da avenida Paulista, no centro da cidade, em manifestação em defesa de Bolsonaro. Do alto do carro de som, a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro (PL) pregou que política e religião devem, sim, se misturar, e anunciou que o povo brasileiro é cristão.

Terminou seu discurso com um recado ao Senhor: “Que tua verdadeira shalom esteja dentro dos muros de Israel. Nós abençoamos o Brasil. Nós abençoamos Israel. Em nome de Jesus, amém”.

Lá embaixo, na avenida, três senhoras envoltas pela bandeira do país judaico gravaram uma entrevista que viralizaria nas redes. Questionadas por qual motivo usavam o adereço, uma delas respondeu: “Porque somos cristãs, assim como Israel”.

A defesa fervorosa de Israel é reflexo da construção de uma gramática judaico-cristã, com o estabelecimento de uma origem em comum —um passado de glória compartilhado. É o que afirma Michel Gherman, professor de sociologia na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e autor do livro “O Não Judeu Judeu: A Tentativa de Colonização do Judaísmo pelo Bolsonarismo”.

A história mostra que movimentos fascistas se empenharam na construção do mito de um passado vitorioso para fortalecer a identidade nacional, alavancar valores reacionários e promover mudanças alinhadas com esses valores. No século 21, a extrema direita e a direita populista seguem a mesma estratégia –um de seus instrumentos é a adoração a Israel.

Segundo o professor, a construção deste mito ajuda a ativar alguns símbolos importantes para movimentos reacionários. Primeiro, a imaginada civilização judaico-cristã se afasta dos vínculos com a África. “É o Oriente Médio que se vê como europeu”, diz.

Além disso, as referências aos reinos de Salomão e Davi exploram a violência como um elemento positivo, de resistência e reação ao inimigo. “Salomão e Davi como símbolos fundamentais da conquista e da expansão”, afirma Gherman.

Ele também menciona o vínculo deste mito com o empreendedorismo, considerando que o reino é independente do Estado. “Tem uma leitura ultraliberal, no sentido da ausência do estado. Tem a presença do rei, que é o representante de Deus.”

Mas se engana quem pensa que esse movimento de adoração a Israel é religioso, afirma Gherman. “Você pertence a uma comunidade política que já foi de vencedores. A religião é um detalhe. Não é um discurso religioso. É um discurso de pertencimento a um lugar que tem que ser resgatado”, diz.

“A questão do reino de Salomão não é religiosa. É militar, política, expansionista. É um erro a gente achar que está falando de religião. A gente está falando de política.”

Em 1922, no mesmo ano em que se tornou primeiro-ministro da Itália, Benito Mussolini discursava no congresso fascista em Nápoles: “Nós criamos o nosso mito. O mito é uma fé, uma paixão. Não precisa ser uma realidade. E a esse mito, a essa grandeza, nós subordinamos tudo”.

Dois anos depois, na Alemanha, o principal ideólogo do nacional socialismo, Alfred Rosenberg, escrevia: “A compreensão e o respeito pelo nosso próprio passado mitológico e pela nossa própria história constituirão a primeira condição para ancorar mais firmemente a próxima geração no solo da pátria original da Europa”.

As duas falas são lembradas no primeiro capítulo do livro “Como Funciona o Fascismo”, de Jason Stanley, professor de filosofia na Universidade Yale (EUA). Nele, o autor argumenta que o fascismo tem um objetivo claro ao invocar o mito de um passado puro, que foi tragicamente destruído pelos progressistas, pelo liberalismo e pelo globalismo. É na criação desse sentimento de nostalgia que os fascistas vão tentar realizar seus ideais no tempo em que vivem.

“A cultura fascista está centrada em torno de alguns mitos, e o maior deles é o de um passado patriarcal, no qual a nação era ótima, e que agora está sendo destruído pelo liberalismo. Está sendo destruído pelo feminismo, pelas pessoas LGBTQ. [Grupos] que desafiam as bases dessa nação e dessa civilização”, diz Stanley à Folha.

O professor defende que o nazismo estava fundamentado no que hoje se chama de teoria da Grande Substituição – a ideia conspiratória de que existe um plano das elites globais para substituir cidadãos brancos por imigrantes não brancos.

“[Para os nazistas] A Alemanha era ótima, mas então foi humilhada pela Primeira Guerra Mundial, e eles passaram a ser humilhados pela imigração. [A ideia nazista era que] Os judeus fizeram com que a Alemanha perdesse a Primeira Guerra. Que eles eram traidores que tinham esfaqueado a Alemanha pelas costas. E que passaram a abrir as fronteiras para trazer imigrantes e derrubar a raça branca, a raça ariana. [Para os nazistas] Então você precisava que Hitler parasse a destruição da nação”, afirma Stanley.

Se no século 20 o fascismo acusava os judeus de terem destruído o passado de glória, nos tempos atuais ganha corpo entre a extrema direita um filossemitismo deturpado, que submete os judeus a um determinado passado mítico.

“O que acontecia no fascismo histórico é que tinha um grupo muito importante na Europa que não tinha passado, ou que o passado era não europeu. Um passado desconhecido, de traição, de não reconhecimento do verdadeiro Deus”, diz Gherman.

Hoje, o professor continua, o passado ideal para a extrema direita não é mais, como no século 20, referente aos bárbaros arianos ou ao Império Romano. “A novidade é um elemento fundamentador desse passado: o reino de Salomão, o reino de Judá.”

Agora, ele argumenta, cria-se a ideia de um passado compartilhado, uma origem comum entre cristãos e judeus em um reino glorioso, de grandes conquistas, anterior a Cristo, no território israelense.

“Em vez de você perseguir um judeu sem passado, o que você faz agora é impor aos judeus um passado: o passado do reino. Os judeus existem para dar à luz a esse passado do reino de Salomão”, diz Gherman. “Esse modelo de passado vai ser compartilhado por todos da extrema direita. É isso que eu chamo de judeu imaginário.”

Apesar da construção desse passado comum com os cristãos, nem todo judeu agrada ao grupo, afirma o professor. Apenas aquele visto como descendente do reino.

“Você nunca vai ver, por exemplo, nas lógicas desse judeu imaginário, o judeu moderno. Nunca vai ver um judeu secular, um judeu progressista”, diz. “Não é que eles deixaram de ser antissemitas.

Eles refundam o antissemitismo, que passa a ser vinculado a um tipo de judeu e não a todos os judeus.”

Gherman faz uma analogia para explicar por que é efetiva a construção do passado mítico pela extrema direita. “Eu sempre brinco com a ideia de que todo mundo que vai fazer visita a vidas passadas acaba descobrindo que era rainha, rei, descendente de um grande assessor do rei.

Ninguém é simplesmente um operário, um camponês”, diz. “É mais ou menos isso que a extrema direita vende, que você é descendente de uma raça gloriosa.”

O professor lembra que a moeda do fascismo para reunir seguidores era vender a ideia do pertencimento a um grupo que foi soberano no passado. “Se eu pudesse resumir o que a extrema direita pensa em relação ao presente, passado e futuro, é essa ideia de que no passado você tinha alguma coisa muito importante. E que o progresso e a expansão dos direitos destituíram você dessa importância.”

O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, é um dos líderes da extrema direita mundial que entenderam e se aproveitam da utilidade do mito do passado glorioso.

Ele frequentemente se refere à bacia dos Cárpatos como uma terra de origem comum de todos os húngaros, dissolvida com o Tratado de Trianon, firmado após a derrota na Primeira Guerra. Mais de 100 anos depois, Orbán insufla na população o ressentimento com o tratado, que, segundo o governo, fez com que a Hungria perdesse dois terços de seu território e 3 milhões de habitantes.

Assim, o país sai como vítima de grandes potências do Ocidente. No passado, dos vencedores da guerra; hoje, da União Europeia, que alerta para o desmonte da democracia húngara e, por isso, é desafiada por Orbán.

As referências à bacia original do povo húngaro e às ameaças enfrentadas ao longo dos séculos sobre o território servem como sustentação para o nacionalismo cristão, ideologia que norteia as práticas do governo. Desde que assumiu em 2010 com uma maioria de dois terços do Parlamento, Orbán aprovou uma série de leis antiimigração e construiu um muro na fronteira com a Sérvia em 2015.

Em discurso em 2021, por exemplo, o primeiro-ministro afirmou que a missão dos húngaros por séculos foi defender a bacia dos Cárpatos contra a ocupação do Império Otomano, a superpotência muçulmana que durou mais de 500 anos.

Na ocasião, Orbán defendeu que a proteção do território e do cristianismo diante da ascensão do mundo muçulmano na Idade Média, da ocupação nazista, da ocupação soviética e da natureza anticristã dos anos de comunismo na Hungria se transformou em uma grande missão de importância nacional e europeia.

László Kövér, um deputado húngaro aliado do primeiro-ministro, foi mais direto ao relacionar o passado mítico com a defesa atual da ideologia nacionalista cristã. Segundo a Radio Free Europe, ao comparar o êxodo populacional pós-Trianon com a crise migratória contemporânea na Europa, Kover afirmou que houve um intercâmbio populacional planejado disfarçado de migração ilegal —acenando para a teoria conspiratória da Grande Substituição.

“Em 1920, nós, húngaros, fomos atacados por potências europeias e grupos de interesse fora da bacia dos Cárpatos. Mas, hoje em dia, potências estrangeiras e grupos de interesse fora do continente estão atacando e destruindo a Europa…. O que é isso, se não a Europa marchando em direção ao seu próprio Trianon?”, disse ele.

Assim como fez a gestão Bolsonaro, com a qual firmou estreitos laços, o governo Orbán também adota uma visão sobre o gênero ligada a um passado patriarcal, prática central nas experiências fascistas.

No livro “Como Funciona o Fascismo”, o professor Jason Stanley argumenta que a defesa do passado patriarcal também representa a defesa do conceito de hierarquia, necessário para a manutenção da própria forma de governo autoritária.

“Em uma sociedade fascista, o líder da nação é análogo ao pai na família patriarcal tradicional.

O líder é o pai de sua nação, e sua força e seu poder são a fonte de sua autoridade legal, assim como a força e o poder do pai de família no patriarcado devem ser a fonte de sua autoridade moral máxima sobre seus filhos e esposa”, escreve o professor. “Ao representar o passado da nação como um passado com uma estrutura familiar patriarcal, a política fascista conecta a nostalgia a uma estrutura autoritária hierárquica organizadora central.”

Na Constituição aprovada a toque de caixa depois que Orbán chegou ao poder, o Parlamento governista determinou que o casamento é a união de um homem com uma mulher, e que a família é a base da sobrevivência de uma nação.

Em setembro de 2022, o governo Orbán baixou um decreto obrigando mulheres grávidas que buscam aborto a primeiro obter relatório de um médico dizendo que elas foram confrontadas de forma clara com sinais de vida do feto —ou seja, que ouviram o batimento cardíaco.

O governo também aprovou políticas públicas para encorajar as famílias heterossexuais a terem filhos.

Se no nazismo mulheres eram estimuladas a procriar para aumentar o que se entendia como a população ariana, na Hungria de Orbán esse incentivo se dá em meio à crise demográfica do país e receios de que os imigrantes possam substituir os brancos europeus como maioria da população.

“[A ideia da extrema direita é que] imigrantes estão vindo e tornando o país não branco, no caso dos Estados Unidos, e não ariano, no caso da Alemanha [nazista]. Então as mulheres precisam ter mais bebês para restaurar a nação”, afirma Stanley.

Os acenos ao passado glorioso funcionam especialmente em um momento global de crise democrática, com os percalços das democracias liberais e capitalistas que, encaradas como o modelo político ideal e definitivo após a queda do Muro de Berlim, hoje não conseguem responder aos anseios de boa parte dos cidadãos.

“Grande parte da população em países democráticos está pessimista em relação ao futuro”, afirma à Folha Benjamin Teitelbaum, autor de “Guerra Pela Eternidade: O Retorno do Tradicionalismo e a Ascensão da Direita Populista”. “Cada vez mais eles rejeitam a promessa da democracia liberal de que a vida vai melhorar, de que a passagem do tempo equivale a uma vida melhor. Muita gente não acredita mais nisso. Então é poderoso, politicamente, usar esse sentimento.”

É desse sentimento que nasce o slogan do ex-presidente Donald Trump, o “Make America Great Again” (na tradução livre, algo como “Torne a América Grande Novamente”). “Essa frase pertence a uma visão reacionária do passado. É notável por quão pouco ela diz. A frase não diz o que é tão bom sobre a América. Não há conteúdo para o conceito de grandeza. O que importa é a filosofia do tempo que está embutida nessas quatro palavras”, diz o autor.

Conselheiro número 1 de Trump, Steve Bannon tem uma visão singular sobre o passado, na qual Teitelbaum mergulhou para escrever seu livro. Após mais de 20 horas de gravação com Bannon, ele afirma que o estrategista político, como também Olavo de Carvalho, o guru do bolsonarismo, é um seguidor do tradicionalismo.

Assim como os fascistas, os tradicionalistas condenam o presente. Há, porém, uma cisão importante entre os dois movimentos. Enquanto os primeiros acreditam que poderiam recuperar o passado e criar uma nova realidade ainda superior, os segundos avaliam que nada será melhor do que já foi.

“[Para os tradicionalistas] O caminho para retornar ao que era tão bom sobre o passado é por meio da destruição. Não é uma ideologia de criação, de futurismo. É mais sobre deixar a modernidade se esgotar, tentando derrubar todas as instituições da modernidade com a crença de que no seu lugar o passado dourado vai ressurgir”, afirma Teitelbaum.

Outro movimento de franja de exaltação do passado é o localismo —uma visão antiglobalista, antiliberal e nostálgica que defende que as pessoas deveriam voltar a viver em comunidades pequenas e unidas, centradas nas famílias. Entre seus defensores, estão o escritor conservador e católico Rod Dreher, que vive na Hungria e é um grande entusiasta de Orbán, e o professor, também católico, Patrick Deneen, autor do livro “Por que o Liberalismo Fracassou”.

Os dois já foram citados como influências intelectuais pelo senador J. D. Vance, escolhido para a vice de Trump, novamente em busca da Presidência.

A extrema direita e a direita populista sofreram reveses nos últimos anos, com derrotas importantes, como a de Trump em 2020 e a de Bolsonaro em 2022.

A vertente populista, porém, segue em cena —em junho, a ultradireita nacionalista teve avanços significativos no Parlamento Europeu e, no mês seguinte, assombrou a eleição na França, embora não tenha vencido. Em novembro, Trump tentará voltar à cadeira presidencial. Não só o presente ainda continuará em disputa: o passado também.

Por que tributar as bigs techs? por Adriana Fernandes

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Gigantes de tecnologia pagam tributo no Brasil, mas há um lado da capacidade econômica delas que não é tributado

Adriana Fernandes – Folha de São Paulo – 31/08/2024

O governo Lula tem pela frente um desafio enorme, mas absolutamente necessário, para conseguir que o Congresso Nacional aprove a taxação das big techs.

As gigantes de tecnologia pagam tributo no Brasil? Pagam. Mas há um lado da capacidade econômica dessas empresas que não é tributado.

Com a polarização política no Brasil em torno dos serviços prestados por algumas dessas big techs, o debate tributário tem sido deixado de lado. Não deveria.

A rota começou a mudar com a decisão do ministro Fernando Haddad (Fazenda) de vencer a primeira etapa dessa batalha ao decidir encaminhar ainda neste semestre um projeto para taxar as big techs, informação revelada por esta Folha e depois confirmada pelo secretário Dario Durigan, o número 2 do Ministério da Fazenda.

Durigan diz que há maturidade para fazer essa tributação e sinaliza que a elaboração do modelo de tributação está em fase avançada.

Muitos países já estão enfrentando os desafios de taxar essas companhias, que, segundo o fisco brasileiro, usam artifícios para fugir da tributação.

O secretário da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, há alguns meses, declarou à Folha que essa não seria uma discussão “se o Brasil quer ou não fazer”, mas uma necessidade de essas empresas pagarem por aqui um mínimo em relação aos seus resultados. “Temos de entrar nessa”, disse.

A forma mais simples de fazer essa cobrança é taxando as receitas das vendas, não o seu lucro, principalmente nos casos em que algumas delas, como a rede X (antigo Twitter), não têm representação no Brasil.

A Cide é o tributo federal que deverá ser usado para fazer a cobrança. Além de vantagens operacionais, por ser mais simples, o governo não precisará dividir o valor arrecadado com estados e municípios, como ocorre quando há aumento do Imposto de Renda ou IPI.

Da mesma forma que o governo Lula se movimenta para encaminhar o projeto, as big techs também já estão no Congresso fazendo lobby para barrar a investida tributária.

Elas temem que o Brasil adote várias frentes de taxação e buscam evitar em conversas com o governo que isso ocorra. Em público, seguem dizendo que não há nada a ser tributado, além do que já pagam.

Se a taxação não for aprovada neste ano, o debate no Congresso vai continuar no ano que vem, porque entrou de vez na pauta econômica do Ministério da Fazenda.

Na reta final do ano, após as eleições municipais, o governo quer negociar as medidas de alta de tributo (CSLL e JPC), que foram enviadas nesta sexta-feira (30) para o Congresso com o projeto de Orçamento de 2025, além do imposto mínimo global, que garante a cobrança de uma alíquota efetiva de 15% sobre o lucro das multinacionais. A taxação das big techs e o envio da reforma da renda estão também nessa agenda.

Não parece um tempo crível para aprovar tantas medidas de aumento de tributos ao mesmo tempo.

Mas Haddad e sua equipe vão seguindo com a estratégia de avançar, recuar e insistir de novo com medidas de recomposição da base tributária do país.

O político Haddad, ex-prefeito e presidenciável, não gosta de ser citado como Taxadd pelos críticos. Mas o ministro da Fazenda parece dar de ombros para o apelido ao sinalizar que não vai abandonar a sua estratégia.

Castells: por que o Ocidente não deve bulir com a China

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Lá, a flexibilidade da empresa privada combina-se com forte coordenação do Estado e seus bancos; e a inovação tecnológica alimenta serviços públicos avançados. Lá, não há democracia liberal, mas ampla coesão da sociedade. Enfrentar este país seria trágico

Manuel Castells – OUTRAS PALAVRAS – 19/08/2024

Hangzhou continua balançando às margens de seu belo lago, que se tornou um destino preferido para luas de mel. Antigo centro do comércio de seda facilitado pelo majestoso rio que a atravessa, tem uma significativa história cultural e política, que continua se renovando. Mas a cidade que conheci em 1987 desapareceu. Em seu lugar surgiu uma metrópole de 12 milhões de pessoas, um nó global do setor de comércio pela internet. Ali está a Alibaba, a maior empresa de e-commerce do mundo em número de usuários, maior que a Amazon, com 220 mil trabalhadores e tecnologia de ponta, baseada na nuvem e desenvolvida por seus engenheiros.

Em torno dessa companhia proliferaram empresas auxiliares e de serviços. Juntas, formam um complexo industrial altamente competitivo, com modelo de negócio próprio, baseado em combinar plataformas de entrega a domicílio com a conexão entre fornecedores, seus clientes e empresas financeiras que investiram em todos os mercados.

O fundador da Alibaba, o lendário inovador Jack Ma, tentou criar um império financeiro mediante oferta de ações no mercado internacional sem permissão de Pequim. Foi aí que percebeu que o capitalismo chinês não é como os outros; então, aposentou-se e vive em Tóquio.

Mas onde parece haver ser restrições ao crescimento empresarial está, na verdade, um fator de solidez da economia chinesa. Pois, após várias crises bancárias devidas a operações especulativas, o governo vigia de perto os movimentos do mercado para evitar que sejam ultrapassados limites razoáveis na ambição de expandir o capital sobre bases pouco sólidas.

De fato a China, indiscutivelmente o milagre econômico do século XXI, não é capitalista, mas desenvolveu um híbrido entre a competitividade de suas empresas no mercado global – necessariamente capitalista – e um sistema financeiro interno e serviços públicos geridos pelo Estado. A isso se acrescenta uma visão estratégica sobre onde devem estar os investimentos e os desenvolvimentos tecnológicos em um mundo em plena digitalização, que tem sua máxima expressão na China com o celular como gestor absoluto de toda a vida cotidiana e robôs, desenhados por estudantes, que entregam a comida.

No entanto, a verdadeira força da China reside na coesão social de sua sociedade, ancorada na família, que resiste aos impactos do desemprego juvenil e das aposentadorias insuficientes.

Junto à estabilidade proporcionada por um Partido Comunista onipresente, legitimado por uma ideologia nacionalista frente ao estrangeiro e que estrutura a sociedade. De democracia, nem sinal, mas nunca existiu na China, e a grande maioria das pessoas valoriza, acima de tudo, seu bem-estar material e sua estabilidade.

A sombra inquietante é que a China se sinta ameaçada pelos Estados Unidos e se prepare para a guerra comercial e para a outra. Enfrentar essa China, coesa, desenvolvida e tecnologicamente avançada, seria um gravíssimo erro histórico.

Crescimento Econômico

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A economia brasileira se caracterizou como a nação que mais cresceu economicamente no período entre 1900-1980, gerando uma verdadeira transformação na estrutura produtiva e grandes movimentações sociais e políticas, passando de um país atrasado, eminentemente rural, exportador de produtos primários de baixo valor agregado, com uma população marcada por grande analfabetismo e desprovido de saneamento básico e poucas políticas públicas, para uma nação industrializada, fortemente urbana, com redução do analfabetismo e a construção de inúmeras políticas públicas que contribuíram para a redução da pobreza e da desigualdade.

O crescimento econômico prescinde de uma grande capacidade de planejamento e organização da sociedade, integrando setores, atraindo atores econômico e social, além de um consenso entre os grupos detentores dos poderes políticos, consolidando instituições, utilizando uma constante integração entre governo, mercado e trabalhadores, vislumbrando uma melhoria substancial da qualidade de vida e do bem-estar da sociedade.

O crescimento econômico prescinde da construção e a consolidação do mercado interno como instrumento de desenvolvimento, como destacou o grande economista Celso Furtado, autor do clássico Formação Econômica do Brasil, obra de referência para compreender a formação da história econômica nacional, compreendendo os grandes imbróglios políticos e econômicos que restringem o potencial do desenvolvimento nacional, perpetuando desigualdades e condenando a nação para um papel de subserviência no cenário internacional, como produtor de produtos primários de baixo valor agregado.

Depois dos anos 1980, a economia brasileira perdeu seu dinamismo, estimulando uma acelerada abertura econômica, uma privatização atabalhoada, uma desregulamentação e o abraço do pensamento liberal, acreditando que a abertura econômica, a desnacionalização e a concorrência dos setores produtivos levariam ao desenvolvimento da economia e a redução das desigualdades abissais que caracterizam a sociedade brasileira. O resultado imediato foi uma forte desnacionalização da economia nacional, o aumento do desemprego e da informalidade, além da perda da capacidade de orientar o desenvolvimento econômico, transferindo para o centro do capitalismo mundial as decisões estratégicas do desenvolvimento nacional.

Precisamos resgatar a importância do investimento produtivo para impulsionarmos o crescimento da economia, gerando emprego de qualidade, renda e salários dignos para fomentar as estruturas produtivas, para isso, precisamos fazer um pacto para o desenvolvimento econômico, diminuindo as polarizações que dividem a nação, precisamos reduzir as taxas de juros escorchantes que degradam as estruturas produtivas, endividam as famílias e acabam com as perspectivas de melhorias sociais, gerando ressentimentos e rancores que culminam em políticos oportunistas que visam seus ganhos imediatos e seus asseclas que os financiam.

O crescimento econômico prescinde da circulação de recursos monetários e financeiros, com investimentos maciços em capital humano, com fomento da pesquisa científica e tecnológica, retomando o papel social das instituições, o sentido verdadeiro de coletividade, do planejamento e da busca de um porvir mais esperançosos, mais justo, sem isso, estaremos nos condenando para vivermos no paraíso do rentismo, do parasitismo e do financismo, que incrementam seus ganhos, enchendo seus bolsos, vivendo em ambientes nababescos enquanto a maioria da população sobrevive na degradação, na indignidade e no ressentimento, criando caldos visíveis de grandes violências e exclusão social.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Pior do que está não fica? por Jean Pierre Chauvin

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Por Jean Pierre Chauvin – A Terra é Redonda – 28/08/2024

Tiririca estava errado e sabia disso: pior do que estava ficou. E muito. Não demora o dia em que parte expressiva dos congressistas defenderá o fim do Estado laico

O senso comum brasileiro está bem familiarizado com chavões que denotam certo otimismo compulsório. Rifões como “é melhor pingar do que faltar”; “do chão não passa”; ou “pior do que está não fica” – este, transformado em slogan por um candidato do Paraná há alguns anos – exprimem um modo superficial, porventura ingênuo, de antever as consequências tenebrosas de incertas escolhas.

Seja por leviandade, seja por desilusão com o cenário nacional, o fato é que nos habituamos a conviver com candidatos sem qualquer relevância social, cultural e política, projetados por certas legendas partidárias (e financiados por grandes empresários), com o fito de obter votos graças à sua exposição na assim chamada grande mídia.

Votos irresponsáveis em figuras dessa estirpe já trouxeram consequências nefastas, tanto local quando federalmente. Não seria necessário recordar a fala grotesca de seres inomináveis que zombaram da morte; negaram a ciência; criaram uma lista de inimigos (contrários ao patriotismo de araque); fizeram pactos com facções criminosas; ofenderam pessoas (já vitimadas por variados preconceitos); estimularam violências físicas e simbólicas; articularam máquinas de produzir ódio; divulgaram fake news; participaram de esquemas de corrupção em todas as escalas (das rachadinhas à apropriação indébita de joias); privatizaram empresas lucrativas etc.

Um candidato em campanha para prefeitura da capital paulista, neste ano, reedita parte das estratégias da extrema direita, ao maldizer e disseminar pseudoinformações, sem respaldo em quaisquer dados verificáveis. Não bastassem os ataques infundados aos adversários, desferidos por esse candidato de ocasião, forrado de clichês do universo coaching, parte da imprensa corporativa age em direção parecida ao abrandar as responsabilidades do ex-presidente e daqueles que o tratam como “líder” ou “chefe”.

A despeito disso, neste momento, dezesseis por cento dos entrevistados paulistanos declaram apoio ao sujeito. Como alguém pode levar a sério as mentiras propaladas por um tipo investigado criminalmente (por conta de suas falas sem fundamento) pelo Ministério Público? Como alguém pode acreditar que os apaniguados do bolsonarismo, feito ele, ajam “contra o sistema”?

Tiririca estava errado e sabia disso: pior do que estava ficou. E muito. Não demora o dia em que parte expressiva dos congressistas defenderá o fim do Estado laico e naturalizará as falas delirantes de pseudorreligiosos que vivem às custas da boa-fé de seus fiéis.

*Jean Pierre Chauvin é professor de Cultura e literatura brasileira na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros de Sete Falas: ensaios sobre tipologias discursivas

Cidades são hostis para idosos e economia prateada é balela, diz Alexandre Kalache

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Projeção do IBGE de maioria da população com 60 anos ou mais não é novidade e preparação está atrasada, diz médico

Entrevista de Lucas Lacerda – Fola de São Paulo – 26/08/2024
São Paulo

O médico Alexandre Kalache viu com estranheza o burburinho causado pelos dados de projeção da população do Censo 2022 divulgados na última quinta-feira (22). Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a maior parcela da população brasileira em 2070 será de idosos. “Descobriram a pólvora. Já estou dizendo isso há muitos anos.”

Já em 2050, cerca de um terço da população do Brasil terá mais de 60 anos, diz o especialista, segundo dados do próprio IBGE. As condições atuais de preparação para o envelhecimento em saúde, educação, mobilidade e trabalho, para ele, são ruins.

As cidades são hostis a idosos, diz Kalache, e a economia prateada, nome para o mercado voltado ao grupo com mais de 60 anos, é uma balela. O retrato atual da velhice, para o médico, é moldado pela desigualdade e exibe grandes parcelas de idosos endividados, responsáveis pelo sustento da família e com problemas crônicos de saúde.

O enfrentamento desse quadro deve começar agora, não apenas com quem já atingiu a maioridade, mas ainda na escola, para que adultos e idosos do futuro ao menos retardem o acúmulo de problemas. Mas ele vê uma prioridade quase nula de governantes e candidatos com a questão.

Médico gerontólogo, Kalache se diz um observador do envelhecimento. Essa foi a chave para um projeto que ele considera um legado dos anos como diretor de envelhecimento e saúde na OMS (Organização Mundial da Saúde).

Ele mapeou, a partir da visão dos porteiros de Copacabana, na zona sul do Rio de Janeiro, ações para tornar as cidades mais amigas dos idosos —e de habitantes de todas as idades, ele faz questão de destacar à Folha.

Qual a sua primeira impressão sobre a projeção do IBGE para 2070?

Quase um terço da população terá 60 anos ou mais já em 2050, são dados do próprio IBGE. Estranhei quando vi o barulho feito em relação a 2070, quando na verdade é logo ali. Vi com estranheza isso, descobriram a pólvora. Já digo há muitos anos: o grupo que mais cresce no Brasil é o de quem tem 60 anos ou mais, porque as taxas de fecundidade caíram abaixo do nível de reposição há 25 anos.

Como avalia a qualidade de vida rotineira de um idoso hoje no Brasil?

Os países hoje envelhecidos são os desenvolvidos, enriqueceram antes de envelhecer. Já o Brasil vai envelhecer muito antes de uma parcela substantiva da população ter recursos razoáveis. Pobreza e desigualdade são nossos principais problemas.

Temos uma ilusão de que o envelhecimento é cor-de-rosa, de que existe essa economia prateada.

Sim, o grupo “60+” consome, mas falamos de salário mínimo. Conseguem comer e até colocar comida na mesa para os netos. A pandemia mostrou isso: a cada vez que morria um velhinho, sua família ficava na miséria.

E como o senhor avalia isso daqui a 46 anos?

Só se pode examinar o envelhecimento sob a perspectiva do curso de vida. Os idosos de 2050 hoje são adultos com vidas pesadas, trabalho insatisfatório, serviço de transporte público massacrante e que não têm acesso a opções saudáveis de alimento, que não são baratas, nem acessíveis.

Precisamos investir primeiro em saúde e, em segundo, em conhecimento. Se este é o único grupo da população que cresce, precisamos fazer o possível e o impossível por ele. É disso que vão depender a produtividade e a competitividade do país.

Como está a qualidade de vida dos nonagenários, que serão 3% da população em 2070?

É difícil encontrar, a partir dos 80 anos, quem não tenha ao menos duas ou três condições de saúde que não matam, mas dificultam [a vida]. A pessoa chega aos 90 com nove décadas de má alimentação, sedentarismo e consumo de álcool. Estamos com uma massa de adultos que vai chegar à velhice de forma precária.

É difícil reverter algo aos 70 ou 80 anos, mas eu sempre digo “comece já”. Quanto mais cedo, melhor, mas nunca é tarde demais, sempre vai ter algum lucro. Quem vai ter 90 anos em 2070 tem 25 hoje e precisa caprichar para acumular um capital de saúde, de conhecimentos e financeiro, para chegar bem aos tais cem anos.

Os problemas nas cidades vão de gargalos no transporte ao padrão de calçadas. Como atendemos hoje os idosos, que são 10% da população?

Nossas zonas urbanas são hostis às pessoas idosas. Os ônibus, construídos em chassis de caminhão, são muito altos. Na maioria dos casos, a não ser que você esteja no Jardim Paulista [em São Paulo] ou no Alto Leblon [no Rio], eles não são adaptados, são difíceis de entrar, porque o degrau é muito alto e você já não tem mais aquela força que te empurra para a frente para subir.

Como enfrentar isso?

Desenvolvendo uma sociedade que seja —embora eu hesite em usar o termo— amiga do idoso, porque precisa ser amiga de todo mundo. Meu legado como diretor de envelhecimento e saúde na OMS foi exatamente esse. Comecei o projeto em Copacabana, bairro onde nasci e cresci, que tem a maior porcentagem de idosos da América Latina.

Em 2005, lancei um estudo improvisado, ouvindo as pessoas idosas. A resposta para “quem é seu melhor amigo” era o porteiro, que atende, monitora a região do prédio, avisa familiares da rotina. Treinamos 6.000 porteiros e disso saiu um livro com soluções criadas por eles. Além dos riscos com ônibus, vivemos numa sociedade violenta na qual o idoso é alvo fácil.
E tem a violência doméstica…

Só sabemos da pontinha do iceberg, porque a maioria dos casos sequer é relatada pelo medo de denunciar o próprio filho ou neto. Além disso, violência gera ansiedade, um mal para todo mundo, mesmo para o rico dentro do carro blindado, trancado em casa com medo de milícia e traficante.

Há muito mais ansiedade nos Estados Unidos do que em países mais pobres, mas menos desiguais, como Portugal, Grécia e Costa Rica, e isso é o segredo para envelhecer mal.

Algum exemplo nacional ou internacional que poderia ser replicado?

Lembra daquele estudo de Copacabana? Com apoio do governo do Canadá, reunimos pesquisadores, gerontólogos e planejadores urbanos e concebemos o protocolo de Vancouver para cidades amigas dos idosos, com dimensões como cidadania, transporte, moradia, participação na sociedade, acesso a serviços.

Oficialmente, segundo a OMS, 32 cidades brasileiras se arvoram como cidades amigas, mas a organização não tem meios de monitorar isso. Em Porto Alegre, por exemplo, nós vimos a tragédia de maio. O que havia de preparado para políticas municipais para idosos? Praticamente zero.

Se falarmos de bairro legal com bom transporte público, em São Paulo houve um avanço muito grande na mobilidade urbana. A rede de metrô é eficiente e é uma malha. Já a do Rio, depois que se entra, ok, mas é uma linha só. Mesmo assim não somos democráticos, privilegiamos a classe que tem mais influência no poder público.

Quanto à moradia, você tem exemplo ilhados de cohousing, que ajudam uma população envelhecida e muitas vezes isolada, sem família, que gostaria de viver junto a outras pessoas idosas. Mas há quem diga que não quer viver em um gueto, mas com todos os grupos etários. Tudo isso depende de de esforços públicos.

Estamos em ano de eleições municipais. Como vê o tema dos idosos entre candidatos de grandes cidades como São Paulo?

Políticos sofrem de idadismo internalizado. A maioria é do sexo masculino, e homem tem horror a envelhecimento. Acham que são para sempre ex-atletas. Não é, não, você é o velho de hoje. Fizemos no coletivo Velhices Cidadãs um levantamento com os partidos e, de cerca de 30, só 2 mencionam envelhecimento. Não querem saber, e isso pode vir a custar votos daqui a dois e quatro anos. Dos idosos e dos familiares deles.

Qual é a prioridade imediata?

Sou velho o suficiente para lembrar do final desastroso da guerra da Coreia. Na época, o Brasil tinha uma renda que era dez vezes a da Coreia do Sul. O que fizeram que nós não fizemos? Educação, educação e educação. É a chave, sobretudo no ensino público.

Entre os jovens que ainda temos estão os nem-nem, que não estudam nem trabalham. Nossa sociedade desigual deixa ao deus-dará este jovem, material humano que vai envelhecer. Mas também não há políticas adequadas para quem está mais perto da velhice, volto, a dizer, por causa do idadismo.

Essa ideologia perversa de não gostar do velho porque ele só dá trabalho

O idoso brasileiro em 2070 será parecido com os da geração atual?

Ele está sendo delineado hoje. Como eu disse, você envelhece de acordo com as oportunidades que está ou não tendo nas fases anteriores à velhice. Se não preveniu hipertensão, se não tem acesso a exames, a remédios, se mora mal, se tem um transporte inadequado, estamos perdendo tempo. O velho de 2070 já é adulto hoje. É um desafio global, e o século 21 será caracterizado pela revolução da longevidade.

Algo que não perguntamos?

O recado é: pare de reclamar que você e o país estão envelhecendo. Envelhecer é um marco civilizatório, é bom. Morrer cedo é que não presta.

Raio-X
Alexandre Kalache, 78
É médico gerontólogo, especializado em envelhecimento e políticas multissetoriais, pesquisador e professor universitário. Foi diretor do Departamento de Envelhecimento e Saúde da OMS entre 1994 e 2008, e é presidente do Centro Internacional de Longevidade Brasil. Vive entre o Rio de Janeiro, Londres, no Reino Unido, e Granada, na Espanha, onde leciona na Escola Nacional de Saúde Pública.

Declínio da democracia e avanço do neofascismo, por Liszt Vieira

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As análises de crises políticas de um país que focalizam apenas os aspectos internos ou externos, por mais brilhantes que sejam, serão sempre parciais

“Um espectro ronda o mundo, e desta vez não é o comunismo, mas uma nova direita que avança na Europa, nos EUA e América Latina”
(Enzo Traverso).

Liszt Vieira – A Terra é Redonda – 19/08/2024

Para analisar algum conflito político em qualquer país – como é o caso agora na Venezuela – não basta uma análise endógena, da situação eleitoral e da correlação de forças internas do país. É necessário levar em conta o fator exógeno, a pressão internacional que, hoje, é ainda mais forte do que outrora.

Analisar a crise política de um país ignorando os fatores externos que influenciam a situação política interna é um equívoco que vem sendo cometido por muitos que denunciam a fraude na eleição da Venezuela, considerada por eles como ditadura.

Os estudiosos da democracia e seu declínio sempre enfatizam que os governos autoritários, sejam ou não ditadura, acabam com os freios e contrapesos essenciais a uma democracia. E alertam: a democracia atualmente não termina com uma ruptura violenta de um golpe militar, ou de uma revolução. O autoritarismo se implanta com o enfraquecimento lento e constante das instituições, como o judiciário e a imprensa, e a destruição gradual das normas políticas tradicionais.

Mas essa visão tradicional de declínio da democracia também está em declínio. Muitas vezes, as instituições tradicionais, como o judiciário e a imprensa, apoiam o enfraquecimento da democracia e a implantação da ditadura. Essas instituições não estão suspensas no ar, fora e acima da luta de classes. No Brasil, por exemplo, o Judiciário condenou Lula sem provas, com o apoio da imprensa, para impedir sua candidatura a presidente em 2018. E parte do Judiciário e da imprensa demonstrava simpatia pelo golpe militar que Jair Bolsonaro tentou organizar e acabou não conseguindo.

Os diversos escritores e cientistas políticos que discutem o declínio da democracia no mundo nem sempre questionam os supostos básicos da democracia: a busca do bem comum, da justiça social, da igualdade, o voto livre e consciente do cidadão, sujeito de direitos, que escolhe – livre de pressões – quem representa seus interesses.

Numa sociedade de massas, tem peso enorme a manipulação do voto pela mídia, redes sociais, internet, e pelo uso e abuso de fake news que disputam e muitas vezes prevalecem sobre a realidade na conquista do voto. Isso leva grande número de eleitores a votarem contra seus próprios interesses. Pior ainda nos lugares, como o Rio de Janeiro e Baixada Fluminense, onde metade das cidades está controlada pelas milícias que impõem seus candidatos sob a ameaça de morte.

Na realidade, os regimes democráticos, dominados por uma elite política e econômica, foram em geral incapazes de atender às necessidades da maioria da população que se tornou presa fácil de fake news e do discurso religioso, principalmente evangélico. Nossa civilização, tributária do Iluminismo, está em crise. Muita gente não quer mais saber dos fatos da realidade. Quer ouvir o discurso que coincide com suas crenças. Hoje, os dogmas doutrinários rivalizam e às vezes superam os princípios científicos.

Neste segundo semestre de 2024, há quem preconize o fim da democracia no Brasil – e não só – com a vitória de Donald Trump na eleição presidencial de novembro próximo nos EUA. Em seu artigo no jornal GGN, Luis Nassif lembrou o jornalista Pedro Costa Júnior, segundo o qual “o Brasil passa a depender diretamente do resultado das eleições dos Estados Unidos. Uma vitória de Donald Trump selará o destino da democracia brasileira. Por isso mesmo, o movimento contra Alexandre de Moraes é apenas o primeiro lance dessa conspirata. E os mesmos grupos de mídia, que atuaram decisivamente para a ascensão de Jair Bolsonaro, repetem o mesmo movimento”.

O fascismo clássico destruiu a democracia de fora pra dentro. O neofascismo usa a democracia, faz o jogo da democracia para ganhar a eleição e destruir a democracia a partir de dentro. É exatamente o que Jair Bolsonaro tentou no Brasil. Só não conseguiu porque o governo de Joe Biden pressionou contra, enviou diversas vezes altos diplomatas ao Brasil para dizer que confiava no sistema eleitoral e dar recado aos militares: Nada de golpe! Não interessava a Joe Biden um ditador aliado de Donald Trump. Não fora isso, talvez o golpe militar houvesse prosperado. Tinha o apoio de diversos generais – Villas Boas, Braga Netto, Pazuello etc. – e muitos coronéis e outros oficiais, principalmente da Marinha.

Mesmo com a derrota de Donald Trump, a política externa beligerante dos EUA não deve mudar muito. É verdade que um governo Kamala Harris não vai fortalecer o movimento mundial de extrema direita, e terá importantes diferenças na política interna. Mas, quando se trata de ir ou não à guerra, o presidente dos EUA, seja quem for, não apita muito. Isso é decisão do complexo industrial-militar.

Há um elemento importante a ser considerado quando falamos de regimes autoritários neofascistas.

Não se trata apenas de restrições à liberdade individual e política, de censura à imprensa e à cultura, de repressão aos partidos, às organizações populares e aos movimentos sociais. O neofascismo é negativista no que se refere às mudanças climáticas e suas desastrosas consequências.

Em todo o mundo, os princípios do desenvolvimento sustentável, para usar um eufemismo, nem sempre são observados – desenvolvimento econômico com proteção ambiental, diversidade cultural e redução drástica da desigualdade social. A crise climática ameaça a possibilidade de sobrevivência da humanidade no planeta. Mas os grandes interesses econômicos ligados ao combustível fóssil – petróleo, gás, carvão – continuam predominando sobre a transição energética, que acabará sendo adotada depois de grandes desastres e catástrofes climáticas levando à morte e ao empobrecimento de grande parte da população mundial.

Outro ponto importante a ser considerado é o fato de o neofascismo se alimentar da crise do neoliberalismo e seus dogmas de Estado mínimo, privatização de serviços públicos, transformação de direitos em mercadoria. O neoliberalismo entrou em crise em todo o mundo capitalista. A crise é menor nos países que não abriram mão do investimento público do Estado, como ocorre nos próprios EUA, onde o governo investe principalmente em infraestrutura e tecnologia.

Mas já se tornou evidente que o neoliberalismo começa a se despedir da democracia liberal em favor de governos autoritários de índole neofascista, levando consigo as instituições liberais que, como sói acontecer, apoiam ditaduras quando seus interesses econômicos estão ameaçados.

Estamos no alvorecer de um novo período histórico em que a hegemonia unilateral dos EUA perde força em favor de um multilateralismo, principalmente com a ascensão econômica da China. Como ocorreu no passado, essa passagem não se dá sem guerras. Já há quem fale em nova guerra mundial que estaria sendo estimulada por alguns governos, como os EUA provocando a Rússia com o cerco da OTAN – que levou Moscou a invadir a Ucrânia alegando defesa própria – e Israel, provocando guerra no Oriente Médio.

Esse pano de fundo internacional não pode ser ignorado quando analisamos a crise política de um país, por mais complexa que seja a situação. No caso da Venezuela, o petróleo tem sido negligenciado na discussão sobre a crise de legitimidade e a fraude eleitoral. Afinal, os EUA vão tão longe buscar petróleo, na Arábia Saudita, considerada a ditadura mais sangrenta do mundo, mas ignorada ou até mesmo tratada muitas vezes pela imprensa como democracia. Se os militares venezuelanos, vizinhos dos EUA, resolvessem deixar todo o petróleo nas mãos de empresas americanas, na mesma hora a mídia diria que a Venezuela é um exemplo de democracia.

Assim, as análises de crises políticas de um país que focalizam apenas os aspectos internos ou externos, por mais brilhantes que sejam, serão sempre parciais. Afinal, como reconhecia Marx, leitor de Hegel, a verdade está na totalidade.

*Liszt Vieira é professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond).

Crises políticas prenunciam mutações constitucionais, por Oscar Vilhena Vieira

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O resultado das batalhas entre Poderes é que alguns ampliam suas prerrogativas e outros perdem

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023)

Folha de São Paulo – 24/08/2024

O acordo apalavrado entre as cúpulas do Judiciário, do Legislativo e do Executivo em torno das emendas parlamentares foi saudado pelo presidente Lula como um sinal de que e “Brasil voltou a normalidade”. Difícil prever se a conciliação irá interromper a batalha entre Poderes em que ingressamos na última década. Se alguma normalidade advier dessa conciliação, será muita distinta daquela em que vivíamos até 2013.

O arranjo constitucional brasileiro era marcado por uma relação de dominância do Executivo sobre o Legislativo, que ficou conhecido como “presidencialismo de coalizão”. O presidente eleito, dotado de uma série de prerrogativas legislativas e orçamentárias, montava uma coalizão partidária para governar, que competia na próxima eleição.

Os sucessivos escândalos de corrupção política, associados a uma perda de capacidade de construir consensos sobre questões relevantes, sobrecarregaram o sistema de Justiça e levaram o Supremo assumir um papel de dominância em muitas circunstâncias.

A reação à “supremocracia” veio primeiro dos partidos políticos depois do bolsonarismo. O alinhamento da Lava Jato com Bolsonaro e a capitulação da Procuradoria-Geral da República levaram o Supremo a recuar no combate a corrupção e a reestabelecer o diálogo com a classe política.

Paralelamente, o Congresso se beneficiou da fragilidade dos governos Dilma, Temer e Bolsonaro, para extrair prerrogativas do Executivo. Foi se assenhorando de parcelas cada vez maiores do orçamento. Também aproveitou para ampliar o financiamento público dos partidos. Com emendas vinculantes e dinheiro no bolso, os parlamentares assumiram a posição de dominância, ao menos em relação ao Executivo.

O fato de a democracia constitucional brasileira ter sobrevivido às diversas crises que se sucederam a partir de 2013, e, sobretudo, aos ataques da extrema direita, não significa, entretanto, que o sistema constitucional tenha saído ileso da refrega.

Crises políticas prenunciam transformações no arranjo constitucional. O resultado das batalhas institucionais é que alguns ampliam suas prerrogativas e outros perdem. Algumas dessas transformações vêm acompanhadas de alterações formais da letra da Constituição, entrincheirando vitórias, como a transferência para o Legislativo do controle sobre parcelas do Orçamento.

Outras decorrem de mudanças na postura de cortes constitucionais, como as que vêm fragilizando os direitos dos trabalhadores e dos povos indígenas, sem qualquer alteração do texto constitucional.

A nova normalidade chancelada pela reunião entre os Poderes aponta para preocupantes mudanças no arranjo constitucional. O Legislativo consolida avanços sobre funções de governo, sem assumir as responsabilidades decorrentes dessas funções. Surge, assim, uma espécie de regime de coabitação no poder, sem que o Parlamento esteja submetido a um sistema de responsabilização política, como nos regimes parlamentaristas.

O espaço do Executivo ainda não está claro. Mas num país carente de políticas públicas estruturadas e consistentes, em campos fundamentais como educação, saúde, infraestrutura ou segurança, é muito preocupante vislumbrar a subordinação do governo à fragmentada alocação de recursos determinadas pelos parlamentares.

O Supremo, por sua vez, vem dando sinais de que pretende assumir uma função mais mediadora e conciliadora, em detrimento de sua custosa, mas indispensável, tarefa de guarda da Constituição. Como justificar democraticamente essa função que o Supremo vem se autoatribuindo?

Reencontrar a normalidade parece ser uma boa coisa. O risco, porém, é normalizarmos mais os vícios do que as virtudes de nosso arranjo constitucional, que já apresentava problemas.