Até quando esperar para começar as mudanças? por João Pedro Stédile

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Só a agricultura familiar pode esfriar o planeta, protegendo a biodiversidade e combatendo a fome

João Pedro Stédile, Economista, é integrante da Direção Nacional do MST

Folha de São Paulo, 01/07/2024

Os crimes e as tragédias ambientais se repetem no Brasil com frequência cada vez maior. Secas na Amazônia, enchentes no Maranhão e em Recife, queimadas no pantanal, desmatamento e rebaixamento do lençol freático no cerrado, a reserva hídrica das três maiores bacias hidrográficas do país…

A tragédia no Rio Grande do Sul é apenas a ponta do iceberg de tantas agressões que atingem milhões de pessoas e obriga a sociedade, e, sobretudo, os governos, nos três níveis, a refletir
sobre a necessidade de mudanças urgentes.

Foi uma tragédia anunciada. Há muito tempo a comunidade científica vinha alertando que o monocultivo de grãos e as pastagens levam a um desequilíbrio na distribuição das chuvas.

As mudanças no Código Florestal, defendidas e aprovadas pela bancada ruralista na década de 2000, diminuíram o tamanho das áreas de cobertura vegetal nas margens dos córregos e rios e desobrigaram a reposição de áreas de desmate. Sem qualquer fiscalização, foi uma festa.

O governo gaúcho ainda mudou centenas de artigos da lei estadual ambiental. Tudo para ajudar o agronegócio, que nem sequer deixa riquezas no estado, porque exporta commodities agrícolas sem pagar um centavo de ICMS, graças à Lei Kandir, do governo FHC.

Somam-se a esse desplante as ações predadoras da mineração, em todos os cantos, desde a retirada de areia até as grandes mineradores de ferro, além dos crimes dos garimpeiros.

Por fim, o uso de agrotóxicos talvez seja a maior agressão à natureza. O Brasil é o país que mais usa agrotóxicos, inclusive produtos proibidos na Europa, que eliminam a biodiversidade, alteram o equilíbrio da natureza e contaminam o lençol freático. Mas quem se importa se isso é controlado por meia dúzia de empresas transnacionais, que não pagam impostos, mas financiam políticos?

Os crimes estão aí, escancarados. E os mais afetados são sempre os pobres, que pagam com suas vidas. São os moradores de locais não adequados, empurrados pela especulação imobiliária das cidades para encostas; são os ribeirinhos; são os agricultores familiares.

O que fazer? Não precisamos mais derrubar nenhuma árvore para plantar ou criar gado. O desmatamento zero precisa ser estendido da amazônia aos demais biomas, como o cerrado, a mata atlântica e o pantanal. Essa política deve ser combinada com um grande plano nacional de reflorestamento nesses biomas, nas cidades, na beira das estradas e nas margens de córregos e rios. Empresas estatais deveriam criar viveiros e distribuir mudas de árvores nativas e frutíferas.

Precisamos colocar limites ao avanço do agronegócio, ao modelo predador que enriquece apenas as empresas transnacionais exportadoras e meia dúzia de fazendeiros.

Somente a agricultura familiar pode “esfriar” o planeta, protegendo a biodiversidade e combatendo a fome.

Para isso, devemos estimular a policultura de alimentos saudáveis, com um grande programa de agroecologia, que distribua insumos necessários aos agricultores familiares, com uma política de reindustrialização que forneça máquinas agrícolas adequadas e fertilizantes orgânicos.

A reforma agrária é uma política fundamental para garantir acesso à terra aos agricultores que não as têm —muitos expulsos pelo avanço do agronegócio— e para realocar os atingidos climáticos.

Nas cidades, é primordial garantir moradia digna em locais com segurança e futuro.

Tudo isso custa muito dinheiro, mas é melhor prevenir e salvar as vidas e a natureza do que chorar depois. O Rio Grande do Sul vai precisar agora de R$ 60 bilhões apenas para repor perdas.

Vamos continuar correndo atrás da reparação ou vamos nos preparar para uma vida melhor para todos?

Plano Real: Trinta anos

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No começo de julho comemoramos trinta anos do nascimento do Plano Real, o plano econômico responsável por debelar a inflação galopante que dominava a economia nacional, gerando grandes avanços econômicos para a sociedade brasileira, controlando os preços relativos, criando novos desafios e abrindo horizontes para a economia brasileira.

A inflação deve ser vista como o aumento generalizado de preços na economia, seus impactos são generalizados no sistema econômico e produtivo, garantindo ganhadores e perdedores, como tudo na sociedade. Os grandes ganhadores da inflação são, inicialmente o governo federal, responsável pelos ganhos de senhoriagem, ou seja, a capacidade dada ao Estado Nacional na emissão de moedas no sistema econômico. Outro grande ganhador do processo inflacionário são os bancos e o sistema financeiro, que ganham com recursos monetários parados em contas correntes, garantindo ganhos reais, grandes recursos monetários para seus acionistas, além de grandes somas de recursos para investimentos em novas tecnologias bancárias, levando nosso setor bancário a se destacar na sociedade mundial.

De outro lado, destacamos os perdedores do processo inflacionário, que eram os setores mais fragilizados na sociedade, indivíduos que não conseguiam compreender as dinâmicas dos preços e não tinham acesso a contas indexadas, instrumentos utilizados para reduzir as perdas inflacionárias. Desta forma, a inflação sempre foi um instrumento de concentração de renda da economia nacional, contribuindo negativamente para os incrementos das desigualdades que perpassam a sociedade nacional.

O Plano Real foi construído para estabilizar a economia nacional e garantir condições para um salto de crescimento nas décadas posteriores, um plano pensado, planejado, estruturado e muito ambicioso, que garantiram aos seus proponentes a condição de ganhar a próxima eleição presidencial e angariar votos significativos para assumir estados importantes da federação.

Esses ganhos reais estavam relacionados com a queda da inflação e com a elevação da renda dos trabalhadores, que garantiram grandes somas de recursos monetários para consumo e melhoras substanciais imediatas. Para absorver as demandas crescentes dos governos o governo estimulou a entrada de produtos importados e novas empresas estrangeiras chegaram nos mais variados setores da economia, gerando novos movimentos na estrutura produtiva, evidenciando uma desnacionalização, com empresas nacionais sendo adquiridas por grupos internacionais, além de uma tendência de desindustrialização, com perdas de competitividade da indústria nacional, com incremento dos empregos industriais e uma avalanche de empregos de baixa qualificação e salários degradantes.

O Plano Real, que ora comemoramos trinta anos, foi fundamental para a estabilização da moeda nacional, aumentando a autoestima da nação, trazendo grandes ganhos para a população, mas nos trouxe novos desafios numa economia globalizada e marcada pela forte competição. Ao negligenciarmos com o câmbio valorizado e as taxas de juros elevadas e se acostumando com as euforias iniciais e ilusórias do plano, a sociedade se “esqueceu” de aprofundar as discussões estruturais que aumentam o nosso subdesenvolvimento, postergando medidas imediatas para melhorarmos os indicadores sociais. Depois de trinta anos de Plano Real, precisamos fazer uma autocrítica séria, madura e inadiável, sem isso, nosso subdesenvolvimento tende a se aprofundar rapidamente.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Ultradireita: perigosa, inútil e deselegante, por Ricardo Viveiros

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Guerra não é avanço, falta de humanidade é atraso civilizatório

Ricardo Viveiros, Jornalista, professor e escritor, é doutor em educação, arte e história da cultura; autor, entre outros, de “A Vila que Descobriu o Brasil” (Geração), “Justiça Seja Feita” (Sesi-SP) e “Memórias de um Tempo Obscuro” (Contexto).

Folha de São Paulo, 27/06/2024

A história é útil à evolução da sociedade. Assimilar técnicas atende ao capitalismo, por isso é valorizada.

Entretanto, a emancipação humana requer mais do que acúmulo de riqueza. Boa saúde, educação, cultura, ética, respeito são bens que superam muitas coisas. Qualquer pensamento político que não privilegie as pessoas e a vida delas está no caminho errado. Tem sido assim com regimes autoritários, como nazismo, fascismo, franquismo (nazi-fascista), salazarismo e outros.

Comum aos governos opressores está a sustentação política de partidos da direita. Observa-se, além das ditaduras do Oriente Médio —de fundamentação religiosa—, na Europa, na África, nos Estados Unidos e, também, na América do Sul que a direita tem cooptado a população.

A desigualdade crescente impulsiona uma revolta que aproxima o povo, com ênfase nos menos politizados, de promessas populistas. Persiste um vácuo deixado pela esquerda mundial, que não consegue se comunicar como a direita, que se vale de fake news.

No Brasil, em 2018 e nos quatro anos seguintes, assim como na Ópera dos Três Vinténs, de Bertolt Brecht e Kurt Weill, a democracia esteve fragilizada pela miséria e pela corrupção. Desalentados agarraram-se a bizarros discursos eivados de ódio e mentiras e elegeram um radical prepotente que (des)governou o país.

A triste receita da aceitação tem sido próspera aos políticos de direita. Um exemplo é Donald Trump, que aumenta sua popularidade na mesma proporção de seu ódio aos estrangeiros e de suas condenações nos tribunais. Se as eleições fossem hoje, seria eleito e aumentaria a cultura etnocentrista.

A invasão ao Capitólio, em 6/1/2021, foi a mais esdrúxula manifestação de tentativa de golpe na denominada maior democracia do planeta. Um incentivo para que, no Brasil, em 8/1/2023, houvesse a reedição tropical de tentativa de golpe de Estado. As duas ações marcadas pela dissonância cognitiva dos envolvidos e pela força das instituições que contiveram, investigaram e puniram os vândalos. E hoje combatem injustificadas tentativas de anistia.

Depois da desonra mundial que o nazismo trouxe à Alemanha, a Europa transitou entre a hegemonia dos grupos de centro e flertes com a esquerda. A atual aproximação da ultradireita é fato.

Os resultados nas eleições europeias consolidam a liderança do centro. Mas a ultradireita terá destaque em países que, historicamente, ditam a política do continente, como França e Alemanha.

Brasileiros que moram no exterior, atenção: a xenofobia é ameaça crescente aos imigrantes, sobretudo a pretos, pardos e indígenas. Até no berço do Iluminismo o respeito se tornou artigo de luxo.

Como disse o filósofo Norberto Bobbio, o domínio da violência é a principal característica da existência dos Estados e, por consequência, o mais efetivo poder. A direita utiliza esse poder sem limite. Perigoso.

Intolerantes que administram as nações têm uma fórmula de governo que sempre deixa a fúria como opção viável. A guerra não é avanço, falta de humanidade é atraso civilizatório. A ignorância e a má-fé da ultradireita no trato com pautas sociais são apenas uma das faces da política reacionária. A preservação do planeta, a tolerância com as pessoas, o combate aos preconceitos e a visão emancipatória do humano inexistem.

A ultradireita, além de perigosa e inútil, é deselegante.

Vícios coletivos exigem ações coletivas, por Vera Iaconelli

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Falar sobre o vício dos pequenos esbarra no fato de que, ainda que consigamos limitar o acesso às telas, estamos longe de limitar nosso uso

Vera Iaconelli, Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “Criar Filhos no Século XXI” e “Manifesto antimaternalista”. É doutora em psicologia pela USP

Folha de São Paulo, 25/06/2024

Redes sociais são a forma perfeita de exploração do trabalhador. Estamos à sua disposição nas 24 horas dos 7 dias da semana, e com prazer.

O prazer decorre de sua estrutura viciante que vem sendo comparada por pesquisadores como Marc Potenza da Universidade de Yale à dependência em substâncias químicas. Os vícios comportamentais, como têm sido chamadas as adições à internet, passam batido pelo radar dos pais, costumeiramente tão zelosos com o uso de drogas em geral.

Faz mais de uma década que esse assunto vem sendo levantado e que os estudos se acumulam, provando que a forma como usamos a internet é nociva e, no caso das crianças, temerária. Não sabemos que tipo de subjetividade advirá desse uso, mas já temos a comprovação da primeira perda de quociente de inteligência (QI) dessa geração em relação à anterior.

Se hoje o livro de Jonathan Haidt, “A Geração Ansiosa”, se tornou a coqueluche da estação, isso se dá menos pela originalidade do autor do que pelo fato de que talvez já não possamos deixar de encarar o estrago anunciado.

Falar sobre o vício dos pequenos esbarra no delicado fato de que, ainda que consigamos limitar o acesso às telas, estamos longe de limitar nosso próprio uso. Assim, tiramos o cigarro da boca delas, mas as mantemos como fumantes passivas dentro de casa, onde adultos continuam a trabalhar para as big techs em turnos infindáveis.

A desculpa dos pais e responsáveis é que eles estão fazendo algo necessário ao trabalho deles ou que, tendo trabalhado o dia todo, agora sim merecem se divertir com os entretenimentos das redes. Sem a mudança de comportamento dos pais, existe pouca esperança na limitação do uso das crianças. A máxima “faça o que eu digo não faça o que faço” nunca funcionou na educação.

Um amigo me alerta que os filmes já estão sendo produzidos levando-se em conta que olhamos para a televisão e para o celular alternadamente e que, portanto, as explicações sobre o que está se passando na trama precisam ser retomadas de tempos em tempos.

O fenômeno conhecido como “segunda tela” faz uso de vários truques, entre eles uma espécie de “resumo dos capítulos anteriores” dentro do próprio episódio. Não é difícil imaginar como essa tática pode afetar a experiência do cinema, lugar onde ainda se supõe que os celulares devam estar desligados.

O vício nas redes costuma estar associado à perda de qualidade na vida social, desenvolvimento de sintomas psicossomáticos, distorções de autoimagem, automutilações, ansiedade, depressões, enfim, uma gama de sintomas que exige intervenção profissional.

Se só usarmos os casos graves como paradigma de danos, corremos o risco de nos eximir da conta dos “viciados”. Dessa forma ignoramos, convenientemente, que todos nós sofremos a perda de qualidade de vida decorrente da interação abusiva com as redes.

Estive de férias nas últimas duas semanas e aproveitei para me desligar. Fiquei surpresa com a quantidade de livros que li neste período. Isso não se deve só ao óbvio ganho de tempo, foram duas semanas agitadíssimas, mas também ao considerável aumento de concentração. Tomei algumas providências aqui para lidar com a volta, entre elas limitar o “horário do expediente”.

No entanto, para lidarmos com um vício coletivo, de proporções mundiais e com efeitos já conhecidos sobre as novas gerações, não podemos nos apoiar em soluções individuais. Embora elas possam servir de inspiração, estado, empresas e sociedade civil precisam desenterrar a cabeça da areia, ops, das telas, se quiserem evitar mais essa catástrofe geracional.

Homem branco privilegiado (não) é o centro do universo? por Michael França

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Sistema educacional difunde um ideal que perpetua desigualdades

Michael França, Ciclista, doutor em teoria econômica pela Universidade de São Paulo; foi pesquisador visitante na Universidade Columbia e é pesquisador do Insper.

Folha de São Paulo, 25/06/2024

Nosso sistema educacional foi estruturado de maneira a favorecer as contribuições dos europeus e seus descendentes.

A influência dos colonizadores é evidente nos currículos escolares, onde suas narrativas e conquistas são supervalorizadas em detrimento das histórias e realizações de outros grupos. Ao apagar ou minimizar as contribuições de mulheres, negros e indígenas na formação do Brasil, perpetua-se um ideal de superioridade dos homens brancos privilegiados.

A hegemonia cultural deles resultou em uma valorização desproporcional dessa parcela da população.

Eles estão sobrerepresentados em todas as fases da formação escolar e fora dela. São as figuras históricas, os cientistas, os escritores e os líderes políticos. No mundo das artes e da literatura, essa predominância também é evidente.

No cinema e na televisão, eles geralmente são os protagonistas e heróis, enquanto os papéis de destaque para mulheres, negros e outras minorias são limitados ou estereotipados. Na indústria da moda, os padrões de beleza frequentemente promovidos são baseados em características eurocêntricas, marginalizando outras formas de beleza.

Nas ruas das cidades, estátuas de homens brancos estão por toda parte. Seus nomes também adornam ruas, praças e até salas de aula em instituições como o Insper, onde trabalho. No mundo corporativo, a liderança executiva é majoritariamente composta por homens brancos, o que perpetua a desigualdade de oportunidades e a falta de diversidade nas decisões empresariais.

Na esfera acadêmica, os pensadores e filósofos que moldam os currículos das universidades são predominantemente homens brancos, o que limita a amplitude de perspectivas e conhecimentos.

Mesmo nas ciências sociais e humanas, onde a diversidade de experiências talvez seja ainda mais relevante para uma compreensão mais profunda das sociedades, as teorias e abordagens de estudiosos que não são homens brancos muitas vezes são subvalorizadas ou ignoradas.

Esse contexto perpetua a ideia de que apenas eles têm valor histórico e cultural, ignorando as significativas realizações de mulheres, negros, indígenas e outras minorias. Esse desequilíbrio simbólico não apenas reforça a dominância de homens brancos privilegiados, mas também afeta a autoimagem e as aspirações das pessoas pertencentes a grupos subrepresentados.

Com esse grande favorecimento, especialmente quando consideramos os homens brancos mais ricos, torna-se difícil distinguir entre aqueles que alcançaram suas posições por mérito próprio e aqueles que, apesar de incompetentes, se beneficiaram das vantagens historicamente acumuladas.

Essa desigualdade sistêmica ofusca a verdadeira medida do mérito, perpetuando um ciclo de privilégios na roda da história que favorece continuamente o mesmo grupo.

A hegemonia masculina branca não apenas distorce a realidade e perpetua estereótipos, mas também priva a sociedade de uma compreensão mais profunda da humanidade. Subverter esse processo requererá muito trabalho para desmantelar todas as fontes de vantagens do grupo dominante.

Nesse contexto, não se pode esperar grandes mudanças sociais enquanto o sistema educacional continuar complacente com uma representação incompleta da realidade, contribuindo para perpetuar um imaginário silencioso que coloca mulheres, negros e indígenas em posições de inferioridade na sociedade brasileira.

Jovens bem formados e sem emprego fortalecem a direita radical? por Hélio Schwartsman

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Hipótese é levantada por Peter Turchin no livro ‘End Times’

Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”.

Folha de São Paulo, 25/06/2024

Mesmo que o presidente Emmanuel Macron consiga evitar que o Rassemblement National (RN) saia com um primeiro-ministro das eleições legislativas que começam no próximo domingo (30), é líquido e certo que o grupo da ultradireita avançará várias casas. E, a crer nas pesquisas, os jovens são em grande medida responsáveis pelo crescimento do partido comandado por Marine Le Pen.

Boa parte da imprensa se pergunta como jovens, cujos avós deflagraram a revolução sexual e cujos pais asseguravam boas votações a partidos de esquerda, puderam ir tão para a direita. Sabe-se que a orientação política tem forte componente hereditário.

Para tornar o quebra-cabeças ainda mais intrigante, um elemento recorrente nos fenômenos de radicalização política, a deterioração das condições econômicas, não está no momento muito presente. Ao contrário, os ventos são favoráveis: a pandemia passou, a inflação vai sendo controlada e o desemprego, problema crônico na França, anda bem-comportado.

Uma hipótese que merece consideração é a levantada por Peter Turchin no livro “End Times”, que já comentei aqui. Para Turchin, um dos fatores que explicam períodos de turbulência é a superprodução de elites. Quando tudo vai bem, as pessoas se preparam para um futuro melhor.

Estudam mais na esperança de encontrar empregos que paguem bem e tragam satisfação pessoal. Só que, quando tudo vai realmente bem, temos a superprodução de elites: muito mais gente se preparando para assumir bons postos do que vagas disponíveis. Em algum momento, esses jovens percebem que o futuro pode não ser tão bom, o que se traduz em votos radicais, às vezes até antissistema. Para Turchin, a superprodução de elites é um fenômeno cíclico que se repete a cada 100 ou 200 anos.

Se é mesmo isso que está por trás da ascensão da ultradireita nos países ricos, então lidamos com um problema muito mais estrutural e difícil de resolver do que se imaginava.

Juros altos são herança maldita do Plano Real, diz ex-ministro Bresser-Pereira

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Economista que comandou a Fazenda comemora sucesso da moeda, mas critica mercado pela captura do patrimônio público

Douglas Gravas – Folha de São Paulo – 23/06/2024

SÃO PAULO

Na visão de Luiz Carlos Bresser Pereira, 89, ter domado a inflação descontrolada que castigava o Brasil antes do lançamento do real é, sem dúvida, o grande mérito do plano econômico que em 2024 chega aos 30 anos.

Mas é preciso também fazer críticas a ele. “As pessoas esquecem, porque ficam só no oba-oba: Sim, o Plano Real foi uma maravilha, mas junto com ele foi feita uma elevação de juros absolutamente alta”, diz o economista, que avalia que o país caiu em uma armadilha de juros e câmbio.

Ainda que considere o saldo das últimas três décadas positivo, o professor emérito da FGV (Fundação Getulio Vargas), que também foi ministro da Fazenda no governo de José Sarney, aponta que a equipe que fez o plano e depois ajudou a compor o governo Fernando Henrique Cardoso adotou completamente a ortodoxia liberal.

Quais são as primeiras lembranças que o sr. tem do Plano Real?

Em 1993, fui visitar [o então ministro da Fazenda] Fernando Henrique Cardoso e disse a ele: se você levar adiante esse plano de estabilização, no ano que vem vai ser eleito presidente da República.

Nem se falava nisso naquela época, mas eu sabia que nós estávamos com uma alta inflação inercial, autônoma da demanda, que aumentava automaticamente porque os agentes econômicos, as empresas, os consumidores, os trabalhadores, todos, indexavam os seus preços formal e informalmente.

Tinha desenvolvido o modelo básico dessa teoria com o economista Yoshiaki Nakano, antes do pessoal da PUC-Rio, com quem sempre me associei nos esforços para combater a inflação. Quando eles fizeram o Plano Cruzado [em 1986], ajudei no que pude. Quando eu fiz o meu Plano Bresser [em 1987], eles também me ajudaram de várias maneiras.

O que ele tinha de diferente dos planos anteriores?

A diferença do Plano Real para o Cruzado e o Bresser é a forma de neutralizar a inflação inercial, era preciso estabilizar os preços sem que ninguém saísse perdendo. Na linguagem dos economistas, que os preços relativos continuassem constantes.

É fácil entender o problema quando você faz um plano de estabilização baseado no congelamento de preços, como foram o Cruzado e o Bresser: se você congela em um determinado dia, quem aumentou os preços no dia anterior fica ótimo e quem ia aumentar no dia seguinte está ferrado.

Por isso, havia uma tabela de conversão que nós fazíamos, a tablita, e isso não existiu no plano Collor, e por isso ele não deu certo. No Plano Real, em vez de usar esse sistema de congelamento, optou-se pela URV [Unidade Real de Valor], um sistema de moeda indexada bolado pelo André Lara Rezende.

Ele escreveu um belo artigo a respeito, uma coisa muito sofisticada, em que se neutralizava, então, a inflação, criando-se uma segunda moeda. E depois, dava-se um prazo para que todas as empresas e as pessoas acertassem os seus preços. Os preços continuavam na moeda em circulação, em cruzeiros reais, mas todo mundo tinha que pôr também o preço em URV. Então, depois que todo mundo teve tempo para fazer esse ajuste, a URV virou real. E com isso neutralizou-se a inércia inflacionária perfeitamente, brilhantemente.

Esse mecanismo foi uma das chaves para o sucesso do plano?

Esse era um sistema que Nakano e eu havíamos pensado em fazer quando eu fiz o meu plano —não o Plano Bresser, que sabia que ia ser difícil e era uma coisa de urgência, feita no meio de uma crise imensa. Mas, quando planejei fazer o segundo, depois que o outro não deu certo, ia fazer uma otimização. O Plano Real foi uma coisa brilhante, uma grande vitória do Brasil, afinal, depois de 14 anos de alta inflação.

O saldo após três décadas, portanto, é positivo?

É preciso dizer uma coisa, que as pessoas esquecem, porque ficam só no oba-oba: Sim, o Plano Real foi uma maravilha, mas junto com ele foi feita uma elevação de juros absolutamente alta, chegando a 45%. Você pode dizer: bom, mas era preciso fazer isso, para desestimular quem quer que fosse e, com isso, também se fez uma espécie de âncora cambial. Então, o câmbio ficou fixado, não é? Graças a esses juros tão altos.

Os juros não precisavam ter sido tão altos?

É difícil saber se precisavam. Agora, o que eu tenho absoluta certeza é que deviam ter sido reduzidos muito mais depressa do que foram. FHC saiu [para disputar a eleição], a equipe que ficou era a mesma. Quando chegou o governo do próprio FHC, toda a equipe que tinha feito o real foi para o governo dele, viraram donos da casa, da área econômica. E mantiveram os juros de maneira escandalosa durante muito tempo.

O plano foi em 1994 e me lembro que em 2010 o Pérsio Arida argumentava que 10% [em termos reais] era a taxa natural de juros, ou seja, com estabilidade de preços.

A partir do Plano Real, o mercado financeiro e os rentistas (e os economistas que trabalham para os rentistas e os financistas) passaram a capturar o patrimônio público. Eles estão, no ano da graça de 2024, portanto 30 anos depois do real, capturando 7% do PIB [Produto Interno Bruto].

Essa é uma herança do Plano Real?

Isso é uma herança do Plano Real ou é uma herança da ortodoxia liberal.
Uma coisa que é importante entender também é que nós éramos economistas heterodoxos —André, Pérsio, Chico Lopes, [Edmar] Bacha e eu. Agora, quando assumiram o Ministério da Fazenda e o Banco Central, eles ficaram completamente ortodoxos, adotaram a ortodoxia liberal completamente.

A única diferença é que André, mais recentemente, a partir de 2015, voltou à heterodoxia. É um homem muito inteligente.

Tenho falado que nesses últimos 40 anos o Brasil é um país semiestagnado. Não posso atribuir isso ao plano. Ou, se quiser, posso atribuir ao plano o fato de que os juros ficaram altos demais, mas o resto, não.

Parte dos economistas que criticaram o plano também tinha uma preocupação com a desindustrialização do país. Esse foi um efeito que se confirmou?

Não pelo plano em si, a não ser pela questão dos juros. Digo há muitos e muitos anos que entramos em uma armadilha da taxa de juros e da taxa de câmbio, algo que eu também chamo de “armadilha da liberalização”. Essa foi uma armadilha que o Brasil caiu e não com o Plano Real.

Caiu antes, em 1990, quando o [ex-presidente Fernando] Collor fez a abertura comercial e financeira.

Outra das críticas na época era que o plano não resolveria os problemas estruturais da economia.
Bom, isso nunca resolveu mesmo, mas não era para resolver também. O Plano Real é bem-sucedido por ter sido feito para acabar com a inflação e ter terminado com ela. Não se pode querer que ele resolvesse o problema fiscal brasileiro, que exige um programa recorrente. Não era para resolver o problema cambial brasileiro, que estava absolutamente mal parado.

O que se pode cobrar dele, e essa é a única coisa que eu cobrei, foi a questão dos juros.

Tem gente que entende o Plano Real como sendo tudo o que aconteceu depois dele. Não é. O Plano Real acabou ali no fim daquele ano de 1994. Ou, se quisermos, ele estava terminado um ano depois da implementação. E tinha acabado com sucesso, ponto.

Luiz Carlos Bresser Pereira, 89
Nasceu em São Paulo. Economista, foi ministro da Fazenda e da Administração Federal e da Reforma do Estado. É diretor do Centro de Estudos do Novo Desenvolvimentismo da FGV (Fundação Getulio Vargas). É autor e coautor de diversos livros, como “Construindo o Estado Republicano” (1994) e “Macroeconomia Desenvolvimentista” (com José Luis Oreiro e Nelson Marconi, 2016)

Só redes sociais explicam a crise de saúde mental dos jovens, diz Jonathan Haidt

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Autor do best-seller ‘A Geração Ansiosa’ compara o uso das mídias por adolescentes ao vício em heroína

BÁRBARA BKUM

FOLHA DE SÃO PAULO – 24/06/2024

De acordo com Jonathan Haidt, as crianças não estão bem.
Segundo dados da pesquisa mais ampla dos Estados Unidos sobre saúde e uso de drogas, o percentual de adolescentes que relataram ao menos um episódio depressivo grave saltou de menos de 15% em 2005 para quase 30% em 2020. No Brasil, os registros de ansiedade entre adolescentes superaram os de adultos pela primeira vez na história em 2023.

Para Haidt, que é psicólogo e professor da Universidade de Nova York, só há uma narrativa capaz de oferecer a explicação completa do problema, diante de hipóteses como as crises climáticas e econômicas a nível global: o livre acesso a redes sociais e smartphones.

Na última semana, a tese de Haidt ganhou tração quando a maior autoridade de saúde dos Estados Unidos, Vivek Murthy, pediu que plataformas de mídias sociais, como Instagram, TikTok e YouTube, incluíssem um aviso de que o uso pode ser prejudicial à saúde.
A posição de Murthy foi contestada, tanto por lobistas da big tech, quanto por cientistas que apontaram outras hipóteses para a derrocada na saúde mental infantil, e diziam que elas deveriam ser consideradas.

Uma delas é o aumento da consciência sobre saúde mental entre os jovens, que poderia ter aumentado os números de deprimidos e ansiosos. Haidt responde a isso com dados alarmantes de hospitais psiquiátricos, que mostraram aumento em casos de automutilação e tentativa de suicídio. Mas mesmo esses dados são contestados. O jornalista David Wallace-Wells escreveu, no The New York Times, que os índices de suicídio aumentaram em todas as faixas etárias.

Desde 2010, a taxa de meninas de 10 a 14 anos atendidas por casos como esses cresceu 188%, segundo o CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA). Wallace-Wells sinaliza que, em 2011, por causa de uma mudança com a implementação do Obamacare (a expansão da saúde pública nos EUA), indagações sobre saúde mental passaram a fazer parte do pacote de cuidado.

Haidt reúne essas informações e rebate algumas críticas no best-seller “A Geração Ansiosa”, que sai em julho no Brasil pela Companhia das Letras, sob o mote de que houve uma derrocada na saúde mental a partir do momento em que celulares com acesso a mídias sociais se tornaram parte integrante da infância e da adolescência.

Foi por volta de 2010 que a câmera frontal se disseminou nos smartphones, com a chegada do iPhone 4. Dois anos depois, o Instagram passou para as mãos do Facebook, hoje Meta, de Mark Zuckerberg. De 2011 a 2013, a rede foi de 10 milhões de usuários para 90 milhões. Hoje, estimativas do Statista apontam para 2 bilhões de pessoas com contas no aplicativo.

“Quando o smartphone com mídias sociais entra na sua vida, ele vai ficar no centro dela para sempre”, diz Haidt em entrevista à Folha. Com isso em mente, ele sugere que essa entrada demore um pouco mais –um limite de 13 anos de idade para o primeiro celular e 16 para redes sociais.

Assim, segundo ele propõe na obra, seus cérebros passariam pelos períodos mais críticos da puberdade protegidos dos mecanismos viciantes que fragmentam a atenção em troca de pequenas doses de dopamina.

A humanidade viu o surgimento da TV e da internet e seu efeito nas crianças. O que mudou com a chegada do smartphone a ponto de o sr. nomear esse período como ‘a grande reconfiguração’? Pessoas mais velhas sempre temem as tecnologias usadas pelos mais jovens. É razoável se perguntar se tudo isso é um pânico moral. Mas há diferenças.

Observamos que no mesmo ano em que a maioria das crianças passou a usar smartphones, houve o maior aumento já registrado em distúrbios psíquicos.

Em 2012, as estatísticas de saúde mental nos Estados Unidos mudaram drasticamente. Não havia sinal de problema até 2011. Depois, meninas nos EUA e em outros países começaram a dar entrada nos prontos-socorros psiquiátricos.

Não víamos organizações de jovens baby boomers pedindo que programas de TV viciantes não fossem feitos, mas vemos isso na geração Z. É uma emergência de saúde mental.

Então, basicamente, ficamos sem alternativas além dos celulares para explicar a crise. Nos EUA, poderiam haver outras explicações. Mas a tendência se repete no Reino Unido, Canadá, Austrália, Nova Zelândia. Há evidências em estudos correlacionais, longitudinais, experimentais e empíricos.

O sr. menciona no livro que a crise é com os jovens, mas parece que essa mudança social da tecnologia afetou a sociedade como um todo, mudou a relação que temos uns com os outros. Com certeza. No século 20, a pesquisa feita em torno da TV não estabeleceu se ela era uma causa clara para distúrbios psíquicos. Mas as mudanças sociais foram gigantes. As pessoas deixaram de estar com seus vizinhos para ficar em casa vendo TV.

Mídias sociais, por outro lado, não nos tornam consumidores passivos, mas pessoas cheias de opiniões, prontas para reclamar de tudo.

“A Geração Ansiosa” se preocupa em distinguir as mídias sociais da internet como um todo. Por que fazer essa distinção hoje? Um mistério enorme é: por que os millennials estão bem e a geração Z está tão mal se eles também cresceram na internet, com celulares?

Até 2010, quase ninguém tinha smartphone. Eram celulares flip ou tijolões. Não havia Instagram nem câmera frontal e pouca gente tinha internet banda larga. Não se passava o dia no celular em 2010.

Mas, em 2015, ao menos nos países ricos, todo mundo já tinha um celular com câmera frontal. As meninas estavam no Instagram e a internet rápida estava amplamente disponível.

Quando o smartphone com mídias sociais entra na sua vida, ele vai ficar no centro dela para sempre. Mas, para os millennials, isso não aconteceu até o fim da puberdade. Quando você se tornou usuária assídua de Instagram?

Provavelmente lá pelos meus 19 anos. É esse meu argumento. É por isso que você está bem. Bem, eu não sei se você está bem, mas sua geração, os nascidos até 1995, de modo geral, estão bem.

Porque aos 19 anos o seu cérebro já tinha praticamente passado pela puberdade. Mas se você tiver uma irmã alguns anos mais jovem… Ela tem celular?

Tem, mas sem Instagram. O negócio dela é o YouTube. O pior é o Instagram. Mas os shorts [vídeos curtos] do YouTube são horríveis. São terrivelmente viciantes. Não têm benefícios. Esses vídeos de 10 a 15 segundos são pequenas doses de dopamina fácil e barata. Ninguém abaixo dos 18 anos deveria ver isso.

Hoje de manhã [17 de junho], a principal autoridade de saúde dos Estados Unidos [Vivek Murthy] pediu ao Congresso que colocasse avisos em mídias sociais, de que elas podem ser um risco à saúde mental.

Como se fosse um alimento com alto teor de açúcar. Sim, mas se pais decidissem criar seus filhos numa dieta de baixo açúcar, eles poderiam. Se pais quiserem seus filhos fora das mídias sociais, a única forma é vetar a internet como um todo e trancafiá-los. A vida em família, em todo o mundo, é uma briga em torno do tempo de tela.

O sr. diz no livro que há uma dicotomia entre uma parentalidade superprotetora com os filhos no mundo físico, mas permissiva no mundo digital. Qual a relação dessa infância orientada ao smartphone com essa superproteção? Nos EUA e no Reino Unido, nós perdemos a confiança uns nos outros nos anos 1990. Havia histórias de abuso sexual, algumas reais, outras não, e paramos de deixar que nossos filhos saíssem de casa.

Naquele momento, já existiam computadores pessoais. As crianças os adoravam, especialmente os meninos. Todos estavam felizes. Mas esses predadores sexuais não estão nos parquinhos. Eles estão no Instagram.

A internet era segura no começo. Claro que havia conteúdo inapropriado, mas não era opressivo. Até as redes sociais não eram tão ruins. Mas quando surge o feed, o botão de curtida, por volta de 2009 a 2011, ela não é mais uma rede consistente, é uma plataforma.

Cada criança está numa plataforma, fazendo uma performance para o mundo, torcendo para ter o holofote sobre ela.

Vi um artigo no [jornal americano] The Wall Street Journal em que mães de meninas influenciadoras admitiam saber que os seguidores de suas filhas eram homens adultos que se masturbavam para as fotos delas, mas diziam que as meninas precisavam daqueles seguidores. O Instagram está transformando famílias em cafetinas.

Por que a crise de saúde mental da geração Z afeta meninas de forma tão desproporcional? Se você olhar só para os índices de ansiedade, depressão e automutilação, as meninas estavam na frente em 2010. Existe evidência clara que isso está relacionado às mídias sociais.

No caso dos meninos, a conexão com a mídia social é menos clara. Mas depois de publicar o livro, pensei que deveríamos procurar esses meninos e meninas depois de já adultos.

As mulheres continuam deprimidas e ansiosas. Mas os homens estão desempregados e solteiros, porque a puberdade era só videogame e pornografia. Eles não fazem ideia de como flertar e tem problemas para olhar as pessoas nos olhos. Seus cérebros foram moldados por dopamina rápida, então eles são incapazes de trabalhar por uma recompensa a longo prazo.

Pais também são usuários assíduos de mídias sociais e celulares. Será que eles não deveriam se preocupar em ser exemplos melhores, além de regular os comportamentos? Sim, mas não acho que tenha grande impacto. Adolescentes estão 99% focados no que seus colegas estão fazendo e pensando. Eles não se importam com a opinião dos pais. Se eu começar a ler a revista The Economist em casa, minha filha de 14 anos vai começar a ler? Claro que não.

Devemos ser modelos melhores e devemos ter regras claras para uso de celular em família, como durante as refeições. Não leve o celular para a cozinha ou sala de jantar. Nada de celulares pouco antes de dormir.

Mas as crianças não estão nos copiando. Elas estão respondendo à maior força social que uma criança pode encontrar, que é ser incluída.

O sr. propõe marcos de idade para se ter um smartphone [13 anos] e para uso de mídias sociais [16 anos]. Como equilibrar isso com essa pressão social? Há dez anos, a idade média em que se adquiria um smartphone era 13 anos, por aí. No Reino Unido, um quarto das crianças de 5 a 7 anos têm seu próprio celular. Logo nós vamos implantar telefones no útero.

Eu acredito que seja um problema de ação coletiva. Damos celulares às crianças porque todo mundo dá. Os pais estão encurralados, exaustos e desmoralizados. Isso explica o sucesso do meu livro.

Ele está dizendo, “ei, você não está maluco, isso faz mal aos seus filhos”. E podemos sair dessa juntos a um custo de zero dólares.

Por isso a posição da autoridade máxima da Saúde nos EUA é importante. Isso dá suporte aos pais que querem negar acesso ao Instagram aos seus filhos de 10 anos. Ele está sugerindo normas.

Podemos fazer essa reforma com normas e não leis, mas algumas são necessárias.

Como o sr. sugere que essas leis e normas funcionem? Podemos expressar nossa raiva e pedir ação aos políticos. Podemos processar as empresas. E podemos nos organizar coletivamente nas escolas, proibindo os celulares.

Não permitir o uso na aula e pedir que os alunos deixem o aparelho no bolso é como permitir que um viciado em heroína leve a droga para uma clínica de reabilitação, desde que a mantenha no bolso. O vício é tão grave que é necessário trancar os celulares e só devolver na saída.

Apesar de sua restrição a mídias sociais e smartphones, o sr. não parece restritivo com relação ao uso de outros tipos de tela. Existe tempo de tela de qualidade? Com certeza. Ver filmes é ótimo. Se seu filho de 6 ou 7 anos vê uma ou duas horas de TV por dia, sem problemas.

Mas a geração Z nunca tem oportunidade de prestar meia hora de atenção. São sempre interrompidos. A tela em si não é o problema. O problema é a fragmentação da atenção.

JONATHAN HAIDT, 60
Professor da Stern Business School da Universidade de Nova York, é doutor em psicologia social pela Universidade da Pensilvânia e pesquisa os fundamentos da moral em diferentes culturas. Antes de “A Geração Ansiosa”, publicou “A Mente Moralista” (Alta Cult), “A Mente Justa” (Edições 70) e “A Hipótese da Felicidade” (LVM Editora).

Negacionistas veem colapso climático como oportunidade de negócios, por Ailton Krenak

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‘A Terra Inabitável’, de David Wallace-Wells, mostra dezenas de fins de mundo possíveis sob Capitaloceno do presente

Ailton Krenak, Escritor e líder indígena. Autor de ‘Ideias para Adiar o Fim do Mundo’ e ‘Futuro Ancestral’

Folha de São Paulo, 23/06/2024

Eu falei para vocês no mês passado que iria sempre trazer aqui algum personagem para vocalizar a mensagem da vez. Convoco hoje David Wallace Wells, um jornalista que nasceu em Nova York e que não se considera um ambientalista, mas mesmo assim é o autor de “A Terra Inabitável: uma História do Futuro” (Companhia das Letras), que reúne alguns dos mais impactantes ensaios sobre o colapso climático que estamos vivendo.

Quando recebi meu exemplar do livro de David, em 2019, mesmo ano em que publiquei “Ideias para adiar o Fim do Mundo”, fiquei com uma dezena de trailers para possíveis “fins de mundo” passando na cabeça. Compreendi, então, que cada artigo de “A Terra Inabitável” nos apresenta um cenário possível —e mesmo provável— de fim de mundo.

As tantas hipóteses do livro são todas advindas de pesquisas feitas pelo autor e também resultado de suas conversas com cientistas do clima —essa novíssima casta de cientistas que ocupou nos anos 1980 e 1990 o debate “mais quente” sobre o estado de destruição dos diversos ecossistemas terrestres— buscando saídas para o pior cenário, visto que já havíamos cruzado a linha que divide a restauração de diversos ecossistemas para o estágio da mitigação de danos.

“A Terra Inabitável” nos mostra dezenas de cenários, todos apresentando riscos de desaparecimento de milhares de espécies não humanas, desordem social e crescente risco de conflitos de alcance global, com perdas irreparáveis para povos e nações.

Os cientistas que informam a pesquisa de David Wallace-Wells apontam várias tentativas de “mitigar a situação de caos ecológico previsto para a primeira metade do século 21”, todas de elevado custo material e humano pela exigência de investimentos em tecnologias inacessível aos pobres países periféricos.

Um dos ensaios mais distópicos é aquele em que cientistas desenvolvem um aparato bélico, capaz de bombardear a atmosfera do planeta para provocar a transformação do carbono que satura nosso clima terrestre, visando encerrar os eventos cíclicos e extremos de calor intenso e tempestades de água e gelo —catástrofes capazes de afundar sob as águas cidades inteiras, como Porto Alegre mostrou recentemente ao mundo.

Mesmo assim, alguns negacionistas, também no campo das ciências do clima, ainda são capazes de tomar essa tragédia planetária como oportunidade para grandes negócios. Eliminar o efeito estufa com bombardeios na atmosfera, por exemplo, se insere na lista de negócios do futuro, enquanto anúncios de viagens espaciais se confundem com filmes da década de 1960 em que os Jetsons rodopiam pelo espaço aéreo terrestre enquanto não colonizam outros planetas.

Queridas leitoras e leitores, trata-se de um vale tudo entre especulação científico-tecnológica e guerra nas estrelas nesta única economia que parece validada no planeta, o manjado e velho capitalismo sob nova direção: o Capitaloceno.

A mente adolescente e as redes sociais, por Priscilla Bacalhau

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Número de pacientes com ansiedade já é maior em crianças e adolescentes que em adultos

Priscilla Bacalhau, Doutora em economia, consultora de impacto social e pesquisadora do FGV EESP CLEAR, que auxilia os governos do Brasil e da África lusófona na agenda de monitoramento e avaliação de políticas.

Folha de São Paulo, 21/06/2024

Quando a puberdade chega, parece que acende um alerta vermelho na mente adolescente. O corpo muda, os sentimentos ficam mais complexos, a interação com a família diminui enquanto a com amigos aumenta. A ansiedade toma conta e pode levar a caminhos tortuosos.

É isso o que acontece com Riley, personagem da animação “Divertida Mente 2”, que estreia nesta quinta (20) nos cinemas. Jovens (e adultos) vão se reconhecer nas cenas em que a ansiedade controla a torre de comando mental.

Na vida real, de onde vem tanta ansiedade? Obviamente, a explosão de hormônios tem papel relevante. Mas o mundo do século 21 traz mais complicadores para o ambiente. A digitalização das relações, o aparelho celular como extensão do braço e a proliferação de redes sociais chegaram para revolucionar a revolução da puberdade adolescente.

Apesar de essa realidade ser relativamente recente, já existem diversas evidências sobre os efeitos negativos do uso excessivo da tecnologia no desenvolvimento e na saúde mental de crianças e jovens. As redes sociais, desenhadas para serem viciantes, têm potencial avassalador nos jovens, cujos cérebros e sistemas de autocontrole ainda estão em formação.

O livro “A geração Ansiosa”, do psicólogo americano Jonathan Haidt, mostra o aumento de doenças mentais em adolescentes de países desenvolvidos: há mais depressão, ansiedade e até tentativa de suicídio, especialmente de meninas.

No Brasil, os números não são melhores, e os registros de pacientes com ansiedade já é maior entre crianças e adolescentes em comparação com adultos, como mostra levantamento da Folha.

Como qualquer problema complexo, as soluções não são simples para essa epidemia de ansiedade jovem exacerbada pelas redes sociais. Banir completamente o uso do celular é uma proposta. Celulares não smart, como nossos velhos Nokia, são outro caminho que vem sendo adotado.

Mas quaisquer dessas medidas serão ineficazes, e potencialmente prejudiciais, se não forem coletivas.

Ser o único da turma sem acesso ao celular compromete, inevitavelmente, sua sociabilização. Ninguém quer se sentir de fora, principalmente nessa fase. Além disso, para boa parte dos brasileiros, o celular é o único meio de acesso ao mundo digital. Letramento digital é crucial e jovens pobres não podem ser excluídos.

Pelo menos em um ponto parece que já temos consenso: não dá mais para permitir o uso indiscriminado de celular nas escolas. Tampouco podemos fugir de aumentar a regulação das redes, que estão se provando tão (ou mais) viciantes e prejudiciais quanto álcool e cigarro.

Para efeitos de entretenimento, a experiência da personagem Riley pode parecer individual. Mas, fora do cinema, o problema é coletivo e precisa ser tratado como tal.