Conjuração internacional bolsonarista, por Oscar Vilhena Vieira

0

O objetivo do presidente americano é constranger o governo e intimidar o STF, que apenas cumpriu sua obrigação

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023)

Folha de São Paulo, 12/07/2025

Aplicar o direito não é uma tarefa fácil, especialmente quando o peso da lei recai sobre pessoas poderosas ou que têm amigos poderosos. Juízes já foram mortos por condenar mafiosos, em países como a Itália ou a Colômbia; colocados na prisão por não atenderem as determinações de ditadores, como na Turquia ou no Irã; ou apenas afastados de seus tribunais por simplesmente não se curvarem aos poderosos de plantão, em diversas partes do mundo.

O presidente americano vem promovendo há muitos anos um processo de intimidação e subordinação do Judiciário de seu país. A cada decisão contrária aos seus interesses, achincalha magistrados, acusando-os de “lunáticos esquerdistas”. Seus apoiadores os ameaçam de impeachment. A juíza Ketanji Brown Jackson, da Suprema Corte, “teme pela democracia dos Estados Unidos”.

O ataque ao Poder Judiciário brasileiro, no entanto, consiste num novo capítulo na relação de populistas iliberais contra o Estado de Direito. Trata-se de uma inusitada tentativa de interferência na Justiça de um outro país.

Na presente escaramuça, o presidente americano acusa o Supremo Tribunal Federal de perseguir Bolsonaro, ameaçando retaliar o Brasil com sua artilharia tarifária. O objetivo é constranger o governo e intimidar o Supremo, que apenas cumpriu sua obrigação de julgar Bolsonaro e golpistas, com base em uma lei aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo próprio Bolsonaro.

Outros motivos, como a reunião do Brics, no Rio, ou a decisão do Supremo de aperfeiçoar o regime de responsabilidade das plataformas, também podem ter pesado na decisão americana. Tudo, porém, pode ser apenas uma bravata, para legitimar uma eventual fuga de Bolsonaro, ou mesmo a suspensão das taxas a seu pedido.

A relação de populistas com o Estado de Direito e as instituições responsáveis pela aplicação da lei são sempre conflitivas. Populistas acusam a Justiça de impedi-los de realizarem a vontade do povo, do qual reivindicam ser os únicos e autênticos representantes. Sob o pretexto de defenderem a democracia, atacam o Estado de Direito.

Conceitualmente, democracia e direito são coisas distintas. À democracia importa, sobretudo, a realização da vontade dos cidadãos. Ao direito, por sua vez, importa a criação de um sistema de regras, que contribua para estabilizar expectativas e conter o arbítrio.

A convergência entre democracia e direito, que resulta na ideia de Estado democrático de Direito, foi originalmente concebida por Rousseau, ao reivindicar que um governo somente seria legítimo se resultasse da vontade dos cidadãos, expressa por meio de leis. Nesse sentido, os cidadãos apenas seriam autônomos quando fossem capazes de se autogovernar, por meio das leis.

Não é assim que pensam populistas. Para eles, somente a vontade da maioria, expressa pela palavra do líder, importa. Valorizam seus comandos. São avessos à ideia de uma ordem baseada na lei. Difícil entender como pessoas que dizem prezar a liberdade caem na esparrela de populistas.

As ameaças do presidente americano ao Brasil, em defesa daqueles que atentaram contra nosso Estado democrático de Direito, obrigará nacionalistas, conservadores, além da direita liberal brasileira, a tomar posição: ficarão a favor dos interesses nacionais, das nossas instituições, da agricultura e da indústria brasileira, ou ao lado daqueles que conjuraram contra o Brasil?

 

Kardec e uma espiritualidade livre, por Dora Incontri.

0

A espiritualidade livre pode ser solitária, até individualista; mas é aberta ao diálogo e à busca das verdades espirituais

Dora Incontri – GGN – 13/03/2024

O último censo revelou algo muito significativo sobre as tendências religiosas dos brasileiros. O tema de hoje parte da seguinte informação: enquanto 8% da população brasileira não tem religião (em 1960 era apenas 0,5%); entre jovens de 16 a 24 anos, essa porcentagem chega a 25%. E essa não é apenas uma tendência nossa, mas mundial. Se por um lado, cresce o fundamentalismo religioso de todos os matizes, a negação da religião institucionalizada também avança, sobretudo entre os jovens. Mas tanto no Brasil, como em outros países, a declaração de não ter uma religião não significa necessariamente ateísmo. A maioria mantém ou busca alguma forma de fé ou prática espiritual.

Há possíveis interpretações para esse fato, mas parece que os jovens procuram uma espiritualidade mais livre, não direcionada por sacerdócios, não sujeita a regras rígidas e, sobretudo, mais aberta à fusão de diferentes modos de crer. Querem abertura, diálogo e leveza.

É verdade que essa busca não garante que a pessoa se livre das explorações e dos abusos parecidos com os que são cometidos por alguns setores ou por certas lideranças do campo tradicional. Há uma espiritualidade livre que é cooptada por gurus improvisados, sem nenhuma consistência, que oferecem autoajuda, cursos sincréticos, livros de coach espiritual – tudo muito bem embalado numa comercialização própria do mercado da fé. Em alguns casos, incluindo abusos sexuais e formação de seitas.

Por outro lado, a libertação de uma religião específica pode impedir a possibilidade de um aspecto, que estudiosos consideram um elemento importante para a saúde mental do indivíduo: a sensação de pertencimento a um grupo, a presença de uma rede de apoio nas adversidades da vida. O grupo pode por um lado se tornar opressor em certas circunstâncias, mas se não for fanático e estruturado com excessiva rigidez, pode também salvar alguém da solidão, do adoecimento psíquico e do suicídio.

A espiritualidade livre pode ser, portanto, solitária, até individualista; mas é aberta ao diálogo e à busca das verdades espirituais que estão em toda parte.

Essas reflexões levam a evocar a figura de Allan Kardec, fundador do espiritismo na França do século 19, sobre quem estou lançando nesse mês o livro Kardec para o século 21.

Durante todo o processo de escrita de suas obras, Kardec se debateu com o conceito de religião. Não queria de jeito nenhum atribuí-lo ao espiritismo. E de fato, na filosofia por ele fundada, não há igreja, sacerdócio organizado, rituais e nem dogmas de fé. Por outro lado, ele escreveu O Evangelho segundo o espiritismo (que sintetiza a proposta de Jesus no seu aspecto ético apenas) e preconizou a oração como algo necessário e positivo. Ora, a oração é um ato religioso, embora ele racionalize e explique os benefícios dessa prática. Num de seus últimos discursos, admite que o espiritismo tem alguns aspectos que possam ser considerados religiosos.

No Brasil, entretanto, como inúmeros sociólogos e antropólogos e muitos espíritas críticos analisam, o espiritismo se tornou sim uma religião, no sentido tradicional do termo. Isso é interpretado por muitos como um afastamento da proposta de Kardec.

O fato é que o fundador do espiritismo dessacralizou a religião, democratizou o acesso ao mundo espiritual – já que qualquer pessoa pode ser médium e ter contato com esse mundo – racionalizou esse contato e aboliu o conceito de sobrenatural. Ao mesmo tempo, criticou os abusos das religiões, as intolerâncias, as opressões e as violências por elas praticadas nos séculos afora. E admitiu que a verdade está em toda parte e não é exclusividade de uma tradição espiritual específica, nem mesmo a que ele próprio fundou.

Como se vê, podemos definir essa forma de fé como Kardec fez, sendo uma fé raciocinada, como uma espiritualidade livre, crítica e universalista. E isso dialoga de maneira muito instigante com essa tendência atual de busca dos jovens de se desligarem das amarras de uma religiosidade rígida.

O problema que se apresenta para que essa mensagem libertadora de Kardec chegue às novas gerações, é que o espiritismo no Brasil (o país mais espírita do mundo), foi modelado por um religiosismo conservador, sob a liderança da Federação Espírita Brasileira. Mais recentemente, como ocorreu em outros campos, o bolsonarismo tomou conta de lideranças e de centros espíritas e expulsou muitos adeptos progressistas.

Por isso, a necessidade de se recolocar a proposta de Kardec numa reflexão mais profunda e adequada para nossos tempos. E é a isso, que o livro que está sendo lançado, se propõe. Porém, como adverte Alysson Mascaro no prefácio que escreveu, trata-se “de uma obra de forja intelectual, não moral, nem pastoral”. Ou seja, nada de proselitismo e catequese, mas de análise e reflexão para espíritas e não espíritas, para melhor entendimento da contribuição de Kardec, com seus limites históricos e sua atualização possível.

Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pampédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.

 

PSDB perdeu a direita e cavou a própria cova com rachas e traições, pot Marcio Aith

0

Como os tucanos, depois de voo alto nos anos 90, sofreram queda brusca e hoje lutam contra extinção

Marcio Aith, Advogado e jornalista, foi secretário de comunicação do Supremo Tribunal Federal e do Estado de São Paulo (governo Alckmin). Foi também correspondente da Folha em Tóquio e Washington

Folha de São Paulo, 06/07/2025

[RESUMO] Partido do Real e da modernização do Estado brasileiro, o PSDB por duas décadas protagonizou com o PT os rumos da política nacional, vangloriando-se de possuir os mais bem preparados quadros políticos e técnicos do país. Com o mesmo esmero, suas lideranças dedicavam-se nos bastidores a sucessivas traições e sabotagens. Denúncias de corrupção e o surgimento de Bolsonaro acentuaram a crise e rasgaram a superfície de polida competência do partido, que hoje depende de fusão ou federação com outras siglas para sobreviver.

Era uma manhã de março de 2016 quando o destino tocou a campainha do Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista. Aécio Neves, então senador, recém-desembarcado em Congonhas, atravessava a cidade com uma comitiva de repórteres. Não vinha para conversar. Queria arrastar o governador Geraldo Alckmin até a avenida Paulista, onde fervilhava a maior manifestação pró-impeachment de Dilma Rousseff.

“Isso é uma armadilha”, murmurou o governador, seco, a dois assessores. Sabia que, se não fosse, os jornais do dia seguinte o carimbariam como o responsável pelo racha tucano. Suspirou, entrou na van e partiu. No trajeto, os dois homens, que um dia representaram o futuro do país, viajaram lado a lado, calados, como estranhos no mesmo velório.

Na Paulista, antes do cheiro de fritura dos ambulantes, vieram as vaias. Cartazes pediam cadeia. Um manifestante gritou “corrupto” diretamente a Aécio. Para quem conhecia o ninho tucano por dentro, era o início do fim de um projeto que prometera civilizar a política nacional —e acabava linchado no meio da rua.

Alckmin via nas pedaladas fiscais atribuídas ao governo Dilma não um crime mas uma farsa.  Dizia aos próximos que, sob aquele microscópio ideológico, nenhum prefeito passaria sem arranhões. Para ele, o impeachment era juridicamente frágil e politicamente perigoso, um precedente que poderia ser usado contra qualquer governante.

A irritação do governador não era só jurídica. O PSDB começava a flertar com um terreno que jamais fora o seu: polarização sem freios, rua ensandecida, populismo do ódio. “Já não era um movimento que nos cabia bem”, admite hoje Aécio Neves, em entrevista à Folha. “Era uma coisa esquisita, radicalizada.”

Quem também enxergou o erro, tarde demais, foi Aloysio Nunes Ferreira, vice na chapa de Aécio em 2014. “Naquele processo de impeachment, estávamos misturados com gente da extrema direita. Quando surgiu um líder de extrema direita, o eleitorado foi embora.”

Da queda de Fernando Collor (1992) à chegada de Jair Bolsonaro ao Planalto (2019), o Brasil deslizou para a direita nos costumes, mas não gerou um líder conservador à altura do palco nacional. O PSDB ocupou esse vácuo como figurante de luxo. Colheu votos, mas perdeu a alma. Quando Bolsonaro enfim surgiu, o público voltou ao seu “galinheiro ideológico”.

A travessia do impeachment à pandemia foi uma sangria lenta. O partido definhou em discurso, quadros e votos. Alckmin filiou-se ao PSB e virou vice de Lula. Fernando Henrique Cardoso e José Serra recolheram-se. Aloysio saltou do barco, assim como os governadores Eduardo Leite e Raquel Lyra. Sobrou Aécio, condômino solitário de uma legenda vazia.

O desastre estourou nas urnas: 59 deputados federais eleitos em 2002; 43 em 2006; 53 em 2010; 54 em 2014; 29 em 2018; míseros 13 em 2022. Testemunhei essa derrocada de perto, mais especificamente de 2010 a 2018, nas campanhas presidenciais de Serra em 2010 e de Alckmin em 2018. Entre essas duas datas, fui secretário de comunicação de Alckmin no governo do Estado de São Paulo.

Hoje o PSDB vaga como um zumbi institucional, respira por aparelhos fornecidos pela cláusula de barreira e só se mantém de pé graças à esperança de uma fusão ou federação que lhe garanta tempo de TV e verba do fundo partidário.

A contradição de origem

O PSDB já foi o partido do Plano Real e dos quadros mais bem preparados da política brasileira. Durante duas décadas, encarnou o espírito do diálogo e do consenso. Entre 1994 e 2014, o Brasil viveu sob um duopólio imperfeito. Os tucanos sustentaram seu lado da equação com técnica, compostura institucional e ambição modernizante.

Esse foi o retrato traçado, com certa nostalgia contida, pelo vice-presidente da República. Fundador do PSDB, Alckmin disse à Folha que o partido foi “promotor de grandes avanços sociais e econômicos”, defensor intransigente da democracia. Falava como quem olha para trás com gratidão. Sem ressentimento, sem deslealdade. Talvez apenas com uma ponta de melancolia.

Atrás da superfície polida da competência, o PSDB carregava, desde a origem, uma contradição estrutural. Nunca foi exatamente um partido. Era mais uma federação de caciques, amarrados por conveniências eleitorais e antipetismo comum. Uma social-democracia sem sindicatos. Um clube de notáveis que confundia excelência técnica com legitimidade popular. Seu maior trunfo, o rigor gerencial, foi também seu limite. Sobraram planilhas, mas faltou povo.

Em 2015, FHC parecia ter compreendido o impasse com a clareza dos que já não disputam o poder. Essa lucidez se manifestava nas sessões de pôquer que promovia em seu apartamento, ou no de João Rodarte, jornalista e parceiro de cartas, das quais eu participava.

As apostas eram modestas: quem vencia saía, no máximo, com R$ 200. FHC não blefava. Seu hobby era desmascarar os blefadores —como se aquele jogo lhe oferecesse um simulacro controlado da política real, onde tudo era engano, mas ao menos havia regras.

À volta da mesa, copos d’água e silêncios longos acompanhavam alguns dos cérebros mais afiados da vida intelectual brasileira —o sociólogo Leôncio Martins Rodrigues, o historiador Boris Fausto.

Em meio às rodadas, FHC deixava escapar, entre ironias e desabafos, seus diagnósticos sobre o partido que fundara. “A maternidade do PSDB encerrou suas atividades”, dizia, meio rindo, meio resignado. “Não nasce mais ninguém. São os mesmos desde 1994. Vão todos ficando velhos. O único que não envelhece aqui sou eu.”

Em outra conversa, o ex-presidente confessaria: “Se voltasse no tempo, teria me dedicado muito mais ao PSDB”. Soava como um pecado venial, mas ecoava como um epitáfio precoce de um projeto que envelheceu antes de aprender a se renovar.

A ironia era afiada: o sucesso do Plano Real destruiu qualquer senso de urgência pela construção partidária. Com FHC no Planalto e os tucanos distribuídos por governos estaduais e prefeituras, quem precisava de diretórios fortes, convenções vibrantes ou quadros novos? O poder embriagava. A gestão deslumbrava. Mas não deixava descendência.

2004 e 2008: A traição paulistana

A sequência de autossabotagens selou o destino tucano. Das punhaladas internas aos predadores externos, o PSDB construiu sua própria erosão com esmero.

Uma das primeiras emboscadas ocorreu em 2004, com a traição paulistana. Houve um telefonema que poderia ter mudado o rumo da política brasileira.

No apartamento do velejador Lars Grael, filiado ao então PFL, o aparelho tocou. Do outro lado, José Serra fazia um convite improvável: queria o medalhista olímpico como seu vice na disputa pela Prefeitura de São Paulo. Gestor competente, com passagem pelo Ministério do Esporte no governo FHC, Lars era, para Serra, o tipo ideal de político: alguém que ainda não era político.

A base reagiu com instinto feroz. Tucanos e pefelistas, unificados como raramente se viu, lançaram o ultimato: “Se o vice não for Kassab, a candidatura não vai pra rua”. Serra, pragmático como sempre, cedeu. E Gilberto Kassab, então deputado federal pelo PFL, virou o vice e um dos mais fiéis parceiros do tucano.

Serra foi eleito prefeito naquela eleição de 2004. Quinze meses depois, em março de 2006, quebrou a promessa de cumprir o mandato e renunciou ao cargo para disputar o governo do Estado. Deixou a prefeitura nas mãos de Kassab, que mais tarde construiria o PSD.

Em 2008, o PSDB expôs à luz do dia sua primeira grande fissura. Serra, governador de São Paulo, jogou todas as fichas na reeleição de Kassab na prefeitura da capital, ignorando sem cerimônia a candidatura de seu correligionário Geraldo Alckmin. Kassab venceu. Alckimin nem chegou ao segundo turno. Mais que uma derrota eleitoral, foi uma humilhação moral para o PSDB.

A ironia histórica foi dessas que a política arquiva com gosto. Se Lars Grael tivesse sido vice de Serra em 2004, Kassab jamais teria herdado a Prefeitura de São Paulo. Sem essa vitrine, talvez não tivesse construído o partido que hoje comanda como uma orquestra regida por pragmatismo implacável: o PSD.

2010: O teatro de Belo Horizonte

A partir de São Paulo, o PSDB se especializou em fazer oposição a si mesmo. Em 2010, foi a vez de Minas Gerais entrar no palco. O teatro da harmonia entre Aécio e Serra encenado em Belo Horizonte escondia, nos bastidores, a disputa mais silenciosa —e mais venenosa— do partido.

Era 4 de março. A insegurança da Cidade Administrativa parecia o que de fato era: o lançamento não declarado de uma candidatura presidencial, Serra, convidado de honra, sorria para as câmeras em sincronia com Aécio, então governador de Minas, como quem sabe que está num jogo, mas finge que não decidiu se quer jogá-lo.

Ambos conheciam o roteiro: 2010 parecia um beco sem saída. Lula, no final de seu segundo mandato, batia recordes de aprovação; Dilma Rousseff carregava o carisma transferido pelo padrinho.

Aécio, favorito natural das prévias tucanas, já havia deixado, discretamente, a disputa. Queria que o provável sacrifício ficasse com Serra, a quem tratava com juras de lealdade, incentivando-o a embarcar na disputa e prometendo o apoio de Minas. O mineiro sabia que a provável derrota do paulista deixaria o campo livre em 2014, quando, calculava, o ciclo do PT no Planalto chegaria ao fim.

O golpe colou, mas Serra e Aécio jamais confiaram um no outro. Viviam mergulhados em clima de paranoia mútua. Aécio suspeitava que Serra espalhava rumores sobre seu suposto uso de drogas. Serra, por sua vez, culpava Aécio por matérias publicadas na imprensa sobre supostos esquemas de corrupção do PSDB paulista.

Na campanha de 2010, levantamentos encomendados sob sigilo por Serra ao cientista político Antônio Lavareda davam sinais dúbios. Apontavam o governador de São Paulo na frente, mas também indicavam que Dilma teria grandes chances de vitória em um eventual segundo turno. Não era o que Serra queria ouvir. O diagnóstico o incomodou tanto que Lavareda foi temporariamente posto na geladeira, sem novas pesquisas encomendadas a ele por um tempo.

Meses depois, Serra voava de Belo Horizonte para São Paulo quando ouviu de um assessor irreverente a pergunta dissonante: “Você já assistiu a ‘O Show de Truman?” Fazia uma comparação entre o filme de 1998, no qual o ator Jim Carrey é um homem que desconhece que sua vida é uma realidade simulada por um programa de TV, e a campanha presidencial tucana.

Nas imagens, viam-se quarteirões tomados por militantes, bandeiras tremulando, aplausos esfuziantes. Tudo parecia apontar para a vitória. Bastava, contudo, andar dois quarteirões além do palanque para ver o que as lentes não mostravam: ruas desertas, ônibus fretados discretamente estacionados, motoristas confessando que os passageiros haviam vindo em troca de um lanche e algum trocado. Era uma encenação meticulosa. Um “Show de Truman” tucano.

As urnas confirmaram a profecia de Lavareda. Dilma venceu Serra no segundo turno. E pior: mesmo com Aécio oficialmente “ao seu lado”, o tucano foi atropelado pela petista em Minas Gerais: 58,45% contra 41,55%. O estado em que o PSDB dominava o governo tornava-se, ironicamente, seu território mais ingrato.

2014: A última chance

Quatro anos depois, seria a vez de Aécio testar o próprio nome nas urnas. Na noite de 26 de outubro, no início da apuração dos votos, o mineiro estava na frente. O ciclo tucano, adormecido desde FHC, parecia prestes a ser religado.

A reviravolta começou pelo Nordeste. Urna após urna, Dilma virou o jogo e consolidou a vitória apertada, 51,64% contra 48,36%, à menor margem já registrada em uma eleição presidencial brasileira até então. O fantasma de Minas assombrou os tucanos de forma ainda mais intensa: Aécio perdeu em sua própria base eleitoral. Para o PSDB, foi ao mesmo tempo a maior chance de voltar ao Planalto em 12 anos e o último suspiro de relevância nacional.

Quatro dias depois do segundo turno, o partido protocolou no TSE um pedido de auditoria especial nos resultados da votação. Era o início de um novo paradigma: difundiu-se a ideia de que eleições poderiam ser colocadas sob suspeita quando o resultado desagradasse.

Aécio, até hoje, rejeita essa leitura com veemência. “Essa versão foi espalhada pelo PT, e muita gente comprou”, afirma. “Nunca contestamos o resultado. Às 20h30 do domingo da eleição, liguei para a presidente Dilma e a cumprimentei pela vitória.”

Segundo ele, o pedido de auditoria nasceu de pressões externas. Inundado por mensagens relatando falhas em urnas, o partido se sentiu compelido a dar uma resposta institucional. “Eu, pessoalmente, não duvido do resultado da eleição. Mas acho que uma parcela razoável da população tem dúvidas. E defendo, muito antes de o Bolsonaro existir, um sistema que possa eliminá-las.”

Para Aécio, o problema não está nas urnas eletrônicas, mas na falta de transparência percebida pelo eleitorado. “Isso alimenta o processo contínuo de contestação, principalmente por parte da direita mais radical.”

2016: O usurpador do tucanato

A entrada de João Doria no PSDB foi o atestado de óbito da última tentativa orgânica de reconstrução tucana. Nos bastidores das prévias para a Prefeitura de São Paulo, o governador Alckmin oscilava entre a indecisão e o controle. Andrea Matarazzo era o nome natural do partido, respaldado por FHC, Serra e outras lideranças históricas.

Uma reunião pró-Matarazzo aconteceu na casa de José Gregori, ministro da Justiça no governo tucano. A alta cúpula do partido estava presente, incluindo Serra e FHC.

Alckmin foi convidado por e-mail. Na verdade, ninguém o queria lá, o que o deixou extremamente irritado. Leu a articulação como um ato de traição. O fato é que chamou Doria no dia seguinte e disse: “Agora vá lá e ganhe essa convenção”, contou uma testemunha do episódio.

Uma das leituras é que o apoio de Alckmin a Doria foi também um acerto de contas. Afinal, a lembrança de 2008, quando foi derrotado por um Kassab apoiado por Serra, ainda doía.

Eleito nas prévias tucanas com gastos próprios até então nunca vistos pelo partido, Dória demoliu nas urnas o petista Fernando Haddad, que buscava a reeleição.

A boa relação de criador e criatura, contudo, durou pouco. Pouco após assumir a Prefeitura de São Paulo, Doria embarcou com Alckmin rumo a Nova York para participar de um roadshow com investidores.

No palco, vendiam o mesmo Estado. O governador fez a defesa burocrática do modelo paulista. O prefeito veio em seguida e apresentou-se como o gestor de que o Brasil precisava. Não fez nenhuma menção a seu padrinho político. Nenhum gesto de deferência.

Na mesa ao lado, o secretário estadual Saulo de Castro cochichou no ouvido do governador: “Viu, Geraldo? Ele acabou de se lançar candidato à Presidência”. No íntimo, Alckmin esperava que Doria o consagrasse como o próximo presidente do Brasil. Começou ali um processo rápido e irreversível de arrependimento e ódio.

Em 2018, Doria repetiu a tática de Serra. Rompeu a promessa feita ao eleitor e candidatou-se ao governo estadual, vencendo no segundo turno. Em 2022, venceu as prévias para concorrer ao Planalto, mas depois desistiu da corrida, alegando sabotagem do partido. Pela primeira vez desde sua fundação, o PSDB ficou sem candidato à Presidência do Brasil.

O ex-deputado tucano José Aníbal assim classifica a introdução de Doria no partido: “Eu disse desde o início. Ele seria o cupim do PSDB”. Aécio Neves concorda: “A entrada do Doria foi o episódio mais trágico da história recente do partido.”

A reportagem procurou João Doria. O ex-governador preferiu não conceder entrevista. Enviou, por escrito, uma mensagem com pedido explícito de publicação na íntegra.

“Venci as três prévias do PSDB que disputei com bons candidatos do partido. Na sequência, venci as eleições para prefeito de São Paulo no primeiro turno, em 2016 —fato único na história política da cidade até hoje. Depois, venci as eleições para governador do Estado, com mais de 11 milhões de votos, em 2018. Já em 2022, venci novamente as prévias do PSDB para presidente da República, disputando com expressivos candidatos do partido. Embora tenha sido vitorioso, o PSDB não honrou o resultado das prévias nem a vontade dos seus filiados. Tomei, então, a decisão de desligar-me do partido. Não tenho mágoas nem ressentimentos de ninguém. E desejo boa sorte ao PSDB.”

2017: A fuga pela garagem

Quando viram que havia imprensa do lado de fora, as pessoas fugiram pela garagem. Era maio de 2017, e a cena, na residência de Aécio Neves em Brasília, tinha todos os elementos de uma tragédia política.

Dias antes, gravações da JBS encaminhadas à Procuradoria-Geral da República, como tentativa de um acordo de delação premiada, mostravam Aécio pedindo R$ 2 milhões ao empresário Joesley Batista. O diálogo rapidamente se tornou símbolo da degradação política nacional.

Aécio convocou uma reunião de emergência com a cúpula partidária para explicar-se e pedir respaldo. A cena beirava o surreal. Ele disse que pediu o dinheiro como um empréstimo pessoal, e não em um ato de corrupção, para pagar honorários advocatícios decorrentes da eleição de 2014.

Contou que tentou vender seu apartamento no Rio, mas ninguém quis. Estava desesperado. Teria acertado com Joesley Batista a entrega do imóvel como forma de pagamento.

Aécio convocou a imprensa acreditando que, ao fim da reunião, os colegas sairiam em sua defesa. Não saíram. Ou melhor, saíram pela garagem, uma fuga em massa, ao verem jornalistas na porta. Nenhuma palavra foi dada em favor do companheiro em apuros.

“A solidariedade nunca foi mesmo matéria-prima do PSDB”, reconhece Aécio em tom amargo. Acusado de corrupção passiva, ele foi depois absolvido pela Justiça.

2018: o partido nu

O PSDB chegou a 2018 fragilizado, sem o voto antipetista que antes o cobria e com a imagem de lisura arranhada pela Lava Jato. Em acordos de delação premiada firmados com a Procuradoria-Geral da República, executivos da Odebrecht disseram ter repassado milhões de reais em caixa dois para as campanhas eleitorais de Serra, Alckmin e Aécio, entre outros figurões do partido.

Ao longo dos anos também acumularam-se denúncias sobre supostos pagamentos de propina e formação de conluios para a elaboração de projetos e construção das linhas do Metrô e da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) nas gestões tucanas de São Paulo.

Em 2018 Alckmin partiu para sua segunda candidatura presidencial. A despeito de tudo, havia algum motivo para confiança, pois sua gestão como governador seguia bem avaliada.

A realidade, contudo, impôs outro roteiro. Em São Paulo, reduto histórico do tucanato, estado no qual foi o político que por mais tempo ocupou o cargo de governador após a ditadura, Alckmin ficou em quarto lugar, atrás de Bolsonaro, Haddad e Ciro Gomes.

Mais que um tropeço, foi uma humilhação histórica. Alckmin, apoiado por oito partidos e dono de 44% do tempo total de TV, terminou o primeiro turno também em quarto lugar no país. Obteve apenas 4,76% dos votos válidos, o pior desempenho presidencial do PSDB desde sua fundação.

A tragédia tucana foi intensificada pelo abandono. Ao perceber o fracasso iminente, João Dória incentivou nos bastidores o voto BolsoDoria, aprofundando a cisão interna.

Naquela eleição as pessoas viraram as costas para a televisão e passaram a ser bombardeadas por WhatsApp e redes sociais. Bolsonaro, com apenas 8 segundos de tempo de TV, soube explorar esse novo ambiente. O PSDB não percebeu que o jogo havia mudado.

Pela primeira vez em quase três décadas, disputou sem contar com o voto antipetista de direita, que passou a ter dono. Ao contrário, fez uma campanha de centro-esquerda, poupando o PT e criticando duramente Bolsonaro. Revelou-se o que era: um partido dúbio, esvaziado, órfão de base social, de narrativa e ambição.

O diagnóstico e o plot twist

O PSDB contratou recentemente o instituto Quaest para avaliar a opinião da população sobre o partido. O diagnóstico foi brutal. O principal problema constatado tem nome e sobrenome: Aécio Neves. A rejeição do mineiro, segundo a pesquisa, contamina toda a legenda.

Numa reviravolta digna da política brasileira, o PSDB negocia hoje a volta de Ciro Gomes depois de 28 anos. Nesse período, Ciro transformou em esporte ataques cruéis a FHC. Desde as eleições de 2018, porém, tem caminhado para a direita, enquanto seu atual partido, o PDT, insiste em participar do governo Lula. Estariam ambos, Ciro e o PSDB, na centro-direita do espectro político.

Desde que deixou os tucanos, Ciro peregrinou por vários partidos: PPS (hoje Cidadania), PSB, PROS e, desde 2015, PDT. Hoje vê na legenda tucana o espaço para reafirmar seu projeto de oposição ao PT.

O movimento ganhou força após revelações de fraudes no INSS, descobertas na gestão petista. Apesar de atuar para o desembarque dos pedetistas da base aliada de Lula, Ciro foi voto vencido, e o PDT optou por seguir no governo.

Epitáfio de uma era

Na década de 1990, o PSDB foi o partido da modernização. Nos anos 2000, representou a imagem anti-PT. Em 2010, ainda parecia competitivo. Em 2014, chegou perto com Aécio. Em 2018, tornou-se irrelevante. Em 2022, saiu de cena. Passou da glória do Plano Real ao próprio funeral.

Em São Paulo, berço tucano, está fora do governo estadual, posto que ocupou de 1995 a 2022, e da prefeitura da capital.

Aécio, que restou como guardião das ruínas, ainda cultiva ambições mais nobres. “Nosso objetivo não pode ser só superar a cláusula de desempenho. Queremos dar musculatura a um projeto de centro, mesmo que não seja para vencer as próximas eleições.”

É o que resta: um projeto de centro. Depois do fracasso nas negociações com o Podemos, o partido agora aposta numa federação com MDB e Republicanos. “Há um interesse grande. A questão é que o MDB está muito no governo”, diz Aécio.

Aloysio Nunes observa o esforço de longe, com a lucidez dos que assistem ao próprio epitáfio ainda sendo rabiscado. “Acho que o PSDB está fazendo um movimento correto na luta pela sobrevivência. Só espero que consigam se livrar da hipoteca do bolsonarismo e caminhem para um centro democrático.” E arremata: “Aliás, é onde o Kassab soube perfeitamente posicionar o PSD”.

Com a morte do PSDB, não morre só um partido —morre uma forma de fazer política. A política da expertise, do debate racional, da moderação como princípio. A política que acreditava que bastava estar certo para convencer, ser competente para vencer, ter boas intenções para ser perdoado.

Morre também uma geração. A geração que fez a transição democrática, criou o Plano Real, inseriu o Brasil na modernidade. Homens que, com todos os defeitos, praticavam uma política mais civilizada, mais institucional, mais respeitosa.

Serra, afastado da vida pública devido à doença de Parkinson recebeu a Folha em sua casa. Disse uma frase que resume mais do que a situação de seu partido. “Tínhamos os melhores administradores e líderes do país. Obviamente, cometemos equívocos, mas isso talvez não tenha mais importância. A política vive hoje tempos de terra arrasada.”

A democracia brasileira ficou mais pobre. Não porque o PSDB seja insubstituível, mas porque a diversidade partidária é um valor democrático. Um país com dois polos —esquerda e direita populista— é um país com menos possibilidades, menos nuances, mais riscos.

 

Ladainha da responsabilidade fiscal, por Fernando Nogueira da Costa

0

Fernando Nogueira da Costa – A Terra é Redonda – 24/06/2025

Austeridade fiscal é a liturgia neoliberal que sacrifica vidas no altar da dívida. Enquanto os mercados rezam por juros altos, o povo paga a conta com saúde e educação. A justiça tributária? Uma heresia no catecismo do capital

O discurso da austeridade fiscal é um dos mais saturados por eufemismos tecnocráticos e “palavrinhas mágicas”. Elas naturalizam o sacrifício das maiorias em nome de uma suposta responsabilidade.

Abaixo, apresento um texto padrão, com linguagem típica da imprensa ou de Inteligências Artificiais. Depois, contraponho uma versão crítica, taxativa e politicamente situada.

Texto padrão (estilo imprensa/ inteligência artificial) neoliberal

“Ajuste fiscal e sustentabilidade das contas públicas”

“Diante do cenário de crescimento da dívida e limitações orçamentárias, muitos países — incluindo o Brasil — enfrentam o desafio de equilibrar suas contas públicas. Nesse contexto, políticas de austeridade, como a contenção de gastos, são frequentemente adotadas para garantir a sustentabilidade fiscal e preservar a confiança dos investidores.

Especialistas defendem o controle de despesas ser fundamental para evitar desequilíbrios; Eles comprometem o crescimento econômico de longo prazo. Embora haja debate sobre os efeitos sociais dessas medidas, elas são vistas por muitos analistas como necessárias para manter a credibilidade e atrair investimentos.

Ainda assim, é importante buscar formas de preservar os programas sociais essenciais, enquanto se promove uma gestão responsável dos recursos públicos.”

Versão crítica, taxativa e sistêmica (e vista como esquerdista)

“Austeridade fiscal é um projeto de classe”

“O discurso da austeridade — baseado no corte de gastos sociais em vez da taxação dos mais ricos — não é uma necessidade econômica, mas uma escolha política orientada por interesses de classe.

A ideia de o “controle de gastos” ser condição para a “confiança dos investidores” serve como chantagem permanente contra qualquer política de redistribuição. O chamado de “sustentabilidade fiscal” é, na prática, a priorização sistemática do pagamento de juros da dívida pública em detrimento da saúde, educação, moradia e infraestrutura.

Enquanto isso, a tributação sobre lucros, dividendos e grandes fortunas continua simbólica ou inexistente. A carga tributária brasileira segue fortemente regressiva: penaliza o consumo e a renda do trabalho, enquanto preserva os privilégios do capital.

O ajuste fiscal não é neutro: impõe o custo da “responsabilidade” aos de baixo para proteger a rentabilidade dos de cima. Cortar despesas sociais, enquanto se recusa a mexer nas receitas, é uma forma disfarçada de manutenção da desigualdade estrutural.

A saída não passa por mais cortes, mas por uma reforma tributária verdadeiramente progressiva. Ela enfrentará os interesses do topo e reoriente o orçamento para a reprodução da vida — não da dívida.”

Seja à direita, seja à esquerda, os lugares-comuns são contumazes e cansativos. Tampouco são operantes. Afinal, os leitores saltam o já sabido… e não se surpreendem com “mais do mesmo” como a eterna “denúncia do capitalismo”.

A sátira é uma irônica ferramenta pedagógica para desnaturalizar esses discursos hegemônicos. É engraçada uma narrativa satírica em forma de ladainha neoliberal, inspirada no estilo jornalístico econômico em Terrae Brasilis — repleta de “palavrinhas mágicas”, jargões corporativos e abstrações vazias. Eles se repetem como um mantra tecnocrático.

Ladainha da responsabilidade fiscal: um rosário neoliberal em sete pontos

Em nome do tripé, da âncora e da confiança, amém.

Irmãos e irmãs, é chegada a hora de fazer o dever de casa.

Pois o cenário desafiador exige ajustes estruturais — em nome do ambiente de negócios e da previsibilidade macroeconômica.

O Estado inchado deve ser contido com firmeza e responsabilidade.

Cortar é preciso, sangrar é necessário, pois gastar mais não é solução sustentável.

Afinal, não há almoço grátis — salvo para quem lucra com os juros.

Louvados sejam o teto de gastos e o arcabouço fiscal, instrumentos sagrados capazes de nos livrarem da tentação de investir em gente.

Porque o foco deve estar na eficiência, e a eficiência, como sabemos, mora onde o Estado não chega.

Tributação sobre grandes fortunas?!

Tema complexo, pouco viável, difícil de implementar.

Melhor ampliar a base, modernizar os cadastros… e, acima de tudo, estimular o empreendedorismo.

O rico, afinal, é um herói da meritocracia, não um contribuinte.

O Mercado reagiu bem.

O relatório foi bem recebido.

A agência de avaliação de risco elevou a perspectiva.

E a confiança do investidor, essa entidade mística e exigente, sorriu discretamente diante do novo contingenciamento na saúde.

Persistem, é claro, os desafios sociais.

Mas é importante preservar o compromisso com as reformas.

Avançar na consolidação fiscal, reduzir ineficiências, ajustar o mix de políticas públicas ao novo normal do capital globalizado.

Em nome do primário positivo, do spread controlado e da governança intertemporal da dívida, seguimos na fé da sustentabilidade fiscal de longo prazo.

E oremos para nunca nos faltar a confiança dos mercados, mesmo caso nos falte pão.

Amém.

Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP)

 

Bagunça generalizada

0

Vivemos numa sociedade internacional marcada por uma verdadeira bagunça generalizada, marcada por interesses mesquinhos, políticas protecionistas em excesso, intervenções em outras nações, incremento dos subsídios nacionais, crescimento de um falso nacionalismo, aumento de mentiras e muitas bravatas que espalham volatilidades, incertezas e instabilidades em todos os cantos da economia mundial.

Este cenário leva as nações a buscarem novos espaços de comércio exterior e integração econômica, buscando fortalecer seus sistemas econômico e produtivo, diversificando seus parceiros comerciais, investindo fortemente em novos modelos de negócios para diversificar sua pauta de comércio internacional, reduzindo a dependência externa, num mundo, cada vez mais integrado e interdependente, onde as instabilidades se espalham para toda a cadeia produtiva, impactando sobre todas as nações e gerando riscos crescentes, tudo isso afugenta os investimentos produtivos e alimenta uma financeirização da economia mundial, aumentando os ganhos dos mais ricos e degradando, os mais pobres, culminando na piora da distribuição de renda das nações.

Neste momento, destacamos uma grande bagunça internacional, países atacam outras nações e iniciam guerras fratricidas com milhares de mortes, meio ambiente degradado e florestas sendo devastadas para expandir seus setores agrícolas, regras internacionais construídas no pós segunda guerra estão sendo deixadas de lado, instituições multilaterais perderam espaço e relevância, onde podemos destacar a Organização das Nações Unidas (ONU), instituição criada para estimular ambiente de solidariedade entre países, cujo poder está cada vez mais reduzido, sem voz e sem relevância global.

Na contemporaneidade, percebemos movimentos globais para fragilizar as moedas nacionais e fortalecer as criptomoedas, reduzindo o poder das Autoridades Monetárias, limitando a capacidade de intervenção dos governos nacionais, desta forma, percebemos o crescimento do poder dos atores privados e dos grandes grupos financeiros internacionais, que garantem o incremento de recursos dos grandes fundos de investimentos e seus congêneres, os grandes conglomerados de informação e de tecnologias, as chamadas Big Techs.

Nesta bagunça generalizada, percebemos ataques crescentes a democracia liberal, onde grandes grupos econômicos e financeiros, dotados de poderes monetários inimagináveis, dispendem grandes recursos para eleger seus políticos de estimação, que servem para colocar em pauta seus interesses mesquinhos e imediatos, seus ganhos estratosféricos e servem ainda, para garantir e perpetuar os seus privilégios e suas isenções fiscais e tributárias, se afastando das necessidades básicas da população e contribuindo para criminalizar a política, o Estado e a Democracia, além de perpetuar as iniquidades.

Neste momento, marcado por uma bagunça generalizada, percebemos que a maior economia do mundo vem aplicando tarifas escorchantes para todos os seus parceiros comerciais, elevando tarifas comerciais e gerando impactos para todos os setores produtivos, aumentando os preços internos e a inflação, elevando as incertezas, espalhando rastros de instabilidades, além de desemprego, informalidade e desesperança.

A elevação das tarifas comerciais dos EUA vislumbrava a atração de novos investimentos internacionais, o incremento do emprego interno e a melhora na renda agregada dos trabalhadores norte-americanos, mas essas políticas unilaterais tendem a criar novos constrangimentos, aumento dos preços e instabilidades crescentes da economia. Num mundo de incertezas, como o atual, medidas unilaterais contribuem para o crescimento da bagunça generalizada e nos mostra que, num mundo integrado, interdependente e multilateral, precisamos construir consensos e não destruir seus semelhantes.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

 

Taxar grandes fortunas é agenda global, não tem nada de eles contra nós, por Bianca Santana.

0

Bilionários como Abigail Disney defendem pagar mais imposto para reduzir desigualdades e proteger democracias

Bianca Santana, Doutora em ciência da informação, mestra em educação e jornalista. Autora de “Quando me Descobri Negra”.

Folha de São Paulo, 07/07/2025

Crescem a extrema direita e as ameaças à democracia. Mas cresce também, internacionalmente, a proposta de enfrentar desigualdades tributárias, taxando os super-ricos.

Além dos sindicatos, dos partidos e de governos de esquerda, há super-ricos —pasmem— que também defendem a taxação de grandes fortunas. Eu já havia lido sobre alguns deles que, nos Estados Unidos, reuniram-se em um coletivo chamado “Patriotic Millionaires”, inicialmente “Patriotic Millionaires for Fiscal Strength” (milionários patrióticos pela força fiscal).

Em maio deste ano tive a oportunidade de conhecer uma das mais atuantes vozes do grupo: Abigail Disney, neta de Roy Disney, cofundador da Walt Disney Company. Abigail esteve em Fortaleza, ao lado de Cássio França e Inês Mindlin Lafer, para a abertura do Congresso Gife: Desconcentrar Poder, Conhecimento e Riquezas, que reuniu 1.200 pessoas interessadas em debater o investimento social privado e filantropia.

Ela defende uma reestruturação do sistema tributário para corrigir privilégios. Mesmo que reconheça a importância da filantropia e da caridade, Abigail mesma já doou cerca de US$ 70 milhões de sua fortuna de cerca de US$ 120 milhões. Ela afirma que a caridade não garante serviços públicos, não reduz desigualdades estruturais, não democratiza o poder. Se o sistema tributário privilegia os ultrarricos para que sejam cada vez mais ricos, ele precisa ser alterado para corrigir desigualdades.

É sabido que investidores pagam menos impostos que professores, enfermeiros, policiais; que grandes heranças podem ser transmitidas sem que se pague muitos impostos. Os “Patriotic Millionaires” reconhecem isso e alertam que, além de injusta, a desigualdade é perigosa. Na avaliação deles, fragiliza democracias diante da concentração de poder em quem tem muito dinheiro, vide a importância de Elon Musk para a eleição de Donald Trump, mesmo que agora não sejam mais amigos.

Bilionários podem comprar plataformas digitais, veículos de mídia, influenciar eleições e definir a agenda pública. A concentração de riqueza significa concentração de poder político e, como temos visto em todo o mundo, crescimento do populismo autoritário. Segundo o grupo, tributar mais os super-ricos é a forma mais eficiente de reduzir desigualdades extremas.

Não se trata de punir o sucesso ou sufocar a iniciativa privada, mas de garantir que quem mais se beneficiou do sistema tributário contribua, proporcionalmente, para que ele retorne ao conjunto da população. Em vez de multiplicar aplicações e contas bancárias, pequenas partes das grandes fortunas revertidas em impostos podem financiar saúde, educação, segurança, infraestrutura e políticas climáticas.

Em entrevista a esta Folha, Abigail contou que nos inúmeros artigos que já escreveu sobre o tema, as mensagens mais raivosas que recebe não são de super-ricos. “Acho incrível isso, mas é que existe essa ideia de que, ‘se eu algum dia tiver esse dinheiro, não pagarei essa taxa’.”

Taxar grandes fortunas não tem nada de eles contra nós. É sobre justiça fiscal e econômica. Sobre sociedades mais equilibradas e o futuro das democracias.

 

Há uma luta de classes, e os ricos estão ganhando, por Camila Rocha.

0

Os tais 10% da faixa proposta aos super-ricos brasileiros corresponde à faixa mais baixa dos contribuintes norte-americanos

Camila Rocha, Doutora em ciência política pela USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.

Folha de São Paulo, 07/07/2025

Warren Buffett é o quinto homem mais rico do mundo. Sua fortuna é estimada em US$ 166 bilhões, quase R$ 1 trilhão. No dia 26 de novembro de 2006, o escritor e comentarista político Ben Stein escreveu uma coluna para o The New York Times sobre uma conversa que teve com Buffett sobre algo que preocupava o bilionário: o sistema tributado.

Nos Estados Unidos, há um sistema progressivo de taxação. As faixas variam de 10% a 37%. Em 2025, por exemplo, quem ganhar até pouco menos de US$ 12 mil anuais irá pagar 10%. Quem ganhar mais de US$ 626 mil anuais está na faixa mais alta de contribuição, 37%.

A despeito do sistema progressivo de taxação, naquele ano, Buffet, com uma renda gigantesca proveniente de dividendos e ganhos de capital, pagou muito menos imposto do que qualquer outra pessoa em seu escritório. Buffett não fazia nenhum tipo de planejamento tributário, simplesmente pagava o que o Código da Receita Federal exigia. “Como isso pode ser justo?”, perguntou Buffett.

Stein concordou, mas disse que sempre que alguém tentava levantar a questão era acusado de fomentar uma luta de classes. Buffett então respondeu: “Há uma luta de classes, sim. Mas é a minha classe, a classe rica, que está fazendo a guerra, e estamos ganhando”.

Há um mês, em uma entrevista ao jornalista Reinaldo Azevedo, a deputada federal Tabata Amaral (PSB), afirmou que, a despeito da coragem do governo em propor a taxação dos mais ricos, a proposta ainda é injusta. Em sua visão, “o governo não foi tão ousado como deveria”.

E se perguntou: “Quem recebe R$ 1 milhão por mês vai pagar 10% de imposto e quem recebe R$ 10 mil, R$ 20 mil, vai pagar 27,5% de imposto? O país mais capitalista do mundo cobra mais impostos dos super-ricos do que a gente, Estados Unidos da América”.

Curiosamente, os tais 10% da faixa proposta aos super-ricos brasileiros corresponde justamente à faixa mais baixa dos contribuintes norte-americanos. Ou seja, se nos Estados Unidos os ricos estão ganhando a luta de classes, no Brasil há um verdadeiro massacre.

Em uma das melhores passagens do livro “A Boba da Corte” (2025), Tati Bernardi revela a primeira vez que se deu conta de quem são e como vivem os super-ricos brasileiros. Quando era estagiária de uma das principais agências de propaganda do país, ela foi “desconvidada” para o aniversário de um dos redatores, em um restaurante caro.

Porém, quando perguntou porque todos os estagiários, menos ela, foram convidados, o redator sorriu e disse: “Os estagiários dessa agência são mais ricos que o presidente. Todos são filhos de clientes. Nunca reparou naqueles carros pretos parados na garagem? São os seguranças dos estagiários”.

No fim do mês passado, o Cannes Lions, festival de criatividade mais importante do mundo, cassou o grande prêmio conquistado pela agência DM9 neste ano. O motivo da “despremiação” foi o uso de inteligência artificial para apresentar informações imprecisas ao júri.

Alguém poderia dar o tal prêmio para a campanha “Hugo nem se importa”. Pelo menos, ao contrário da DM9, a inteligência artificial foi usada para apresentar informações precisas à população brasileira.

 

O Nordeste subsidiou o Sudeste, por Rodrigo Zeidan

0

Não faz sentido reclamar que nossas regiões mais ricas subsidiam as mais pobres

Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Folha de São Paulo, 05/07/2025

O que a Dinamarca, China, as duas Coreias e o Brasil têm em comum? Seus governos em algum momento geraram fome em nome de rápida industrialização. Em alguns países, isso ainda explica parte da diferença de renda entre regiões.

No Brasil, já ouvi de gente do Sul e Sudeste que nosso atraso está ligado à necessidade de regiões ricas subsidiarem as mais pobres. Mas é aí que está a questão: nunca foi requerimento empobrecer o Norte e Nordeste para o Brasil crescer, mas foi esse o caminho escolhido pelos governos militares, responsáveis pela aceleração da industrialização brasileira.

Os militares usaram tática comum em muitos países: transferir recursos da agricultura para áreas industriais. Com aumento do empobrecimento e criação de oportunidades em outras regiões, o que seria migração natural se transforma em êxodo rural. As regiões mais ricas começam a sugar pessoas fugindo das condições funestas das áreas agrícolas, em um círculo vicioso que pode durar décadas.

A Coréia do Sul fez algo similar nos anos 1960 e 70, suprimindo preços agrícolas para aumentar a renda dos trabalhadores urbanos, mas abandonou isso por uma industrialização mais inclusiva. A Coréia de Norte faz isso até hoje. Tem tecnologia de ponta em várias áreas, à custa de uma população rural mal nutrida.

Na China, a industrialização forçada causou milhões de mortes como consequência do Grande Salto para a Frente, fartamente estudado pelo mundo afora. Brasil, Dinamarca e outros países viveram algo parecido, mas em muito menor escala (mais de 10% da população dinamarquesa fugiu para os EUA de 1868 a 1908).

Não é coincidência que a família do nosso presidente tenha chegado em São Paulo nos anos 1950, fugindo da fome e da seca, quando se iniciava esse processo.

Migração rural é natural em qualquer processo de industrialização, mas êxodo rural, no qual as pessoas fogem do pior, é escolha política. O erro da China nos anos 1950 não foi repetido no período de 1980 a 2010, quando o país cresceu mais de 10% ao ano e a população urbana saiu de 15% para quase 50%.

O processo foi feito sem suprimir o setor agrícola e por isso ainda está longe de acabar, com 40% da população chinesa ainda em áreas rurais. O que motiva o migrante interno chinês é renda extra e não fome e seca, como no Brasil dos anos 1950 a 1980. Se o Nordeste é mais pobre hoje, é porque sua população foi usada, contra sua vontade, para acelerar a industrialização brasileira.

Não precisava ter sido assim. Talvez não tivéssemos tido o “milagre econômico” (um mito de qualquer forma, pois causou diretamente a hiperinflação). Contudo, um desenvolvimento industrial mais lento seria mais que compensado pela possibilidade de menores disparidades regionais. Talvez o Nordeste fosse mais próspero. Mas nunca vamos saber.

Os militares escolheram empobrecer o sertão para acelerar a migração. Entregaram favelas e desigualdade nos centros urbanos e fome e seca nas áreas rurais. Ainda estamos nos recuperando disso. Serão décadas antes que as regiões brasileiras venham a convergir. Enquanto isso, não faz sentido alguém do Sul reclamar de subsidiar alguém do Norte. Afinal, foram subsidiados pelo Nordeste. Só que não com dinheiro e sim com vidas. Milhões delas.

 

Sem mágicas no Brasil real, por Maria HermíniaTavares.

0

O conservadorismo do Congresso não é o efeito espúrio do sistema eleitoral

Maria Hermínia Tavares, Professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, é pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Folha de São Paulo, 03/07/2025

O conflito entre o Executivo e o Congresso sobre o aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) põe a nu tensões de várias origens.

De um lado, trata-se de um capítulo do rearranjo das relações entre os dois Poderes, requerido pelas mudanças nas respectivas forças relativas.

Como se sabe, a Presidência perdeu em parte sua capacidade de controlar a agenda legislativa e o Parlamento ganhou mais protagonismo, por força de mudanças institucionais que se sucederam ao longo dos anos. Entre elas, a regulamentação das medidas provisórias; o crescimento, em tipo e valor, das emendas impositivas; e o aumento do fundo partidário, que fortaleceu as lideranças das legendas representadas na Câmara e no Senado.

A principal consequência disso tudo foi a diminuição do controle que o governo exercia sobre a parte do Orçamento da União não destinada a despesas obrigatórias —aquela que permitia ao governo de turno fazer suas políticas e dar marca própria à sua gestão. Os efeitos dessa mudança estão detalhados no artigo da cientista política Lara Mesquita, também colunista desta Folha.

A outra fonte de tensão é propriamente política e vem do fato de o presidente Lula, de centro-esquerda, ser minoritário do Congresso e, em consequência, depender de uma coalizão de governo com grande participação de partidos da direita mais pragmática. Esse descompasso não é incomum no país. O grande economista Celso Furtado já apontara o conflito entre presidente progressista e Congresso conservador no artigo “Os obstáculos políticos ao desenvolvimento econômico”, de 1965, que se tornou um clássico. E perdurará enquanto as escolhas do eleitorado continuarem produzindo esse desacerto.

Coalizões congressuais heterogêneas são mais difíceis de disciplinar. Especialmente quando o governo deixa de contar com alguns dos instrumentos para ganhar o apoio de parlamentares dispostos a deixar de lado convicções conservadoras em troca de seja lá o que lhes aumente o cacife para a reeleição.

De toda forma, apesar das importantes derrotas sofridas pelo governo no Congresso, produzidas por sua base indisciplinada, levantamento publicado por O Estado de S. Paulo, no domingo (29), mostra que os partidos na Câmara merecedores de ministérios apoiaram o governo em 72% das votações por ele orientadas. Um percentual e tanto, mesmo ao se levar em conta que o índice ficou 18 pontos aquém dos 90% das gestões anteriores do presidente Lula.

Além disso, é inegável que uma base congressual que inclua a direita pragmática limita o alcance de políticas de mudança ao gosto da esquerda. A discussão sobre o ajuste fiscal e uma reforma progressiva do Imposto de Renda bem o demonstram.

De toda forma, convém ter em mente duas realidades: uma é que o conservadorismo do Congresso não é o efeito espúrio de um sistema eleitoral que perverta a representação —mas das inclinações do eleitorado. A outra é que o presidencialismo de coalizão, a forma possível de governar por aqui, passa por mudanças sem volta no seu modus operandi, requerendo ainda mais negociação entre os jogadores.

No Brasil real, não há soluções mágicas nem instituições ótimas.

 

Lula vs. Congresso ou justiça tributária? por Thiago Amparo

0

A imprensa está perdendo a oportunidade de debater seriamente a justiça tributária

Thiago Amparo, Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

Folha de São Paulo, 03/07/2025

A cobertura da imprensa nacional, inclusive da Folha, sobre o decreto do IOF superdimensiona a linha editorial Lula vs. Congresso e, assim, perde a oportunidade de debater seriamente a justiça tributária.

Ao leitor vende-se a ideia de que a notícia do dia é, para usar a famosa metáfora jornalística, que o cachorro mordeu seu dono, quando na verdade estamos diante da rara situação em que desta vez foi o dono que mordeu seu cão: no debate sobre IOF, estamos diante não de mais um episódio corriqueiro de picuinhas políticas, mas sim de um momento atípico, em que se discutem, finalmente, projetos distintos de país.

No vale-tudo dos jornais —no qual o debate sobre taxação de super-ricos é traduzido como pauta antiCongresso e de polarização social—, sabe-se mais sobre quem almoçou com quem e quem ignorou a ligação de quem e menos sobre os interesses privados que sustentam a pouca ou nula taxação de super-ricos no país e como esses interesses interseccionam com os de parlamentares dispostos a sacrificar a estabilidade fiscal.

Até como picuinha o roteiro jornalístico fica ruim: se é para sabermos fofocas, ao menos deveríamos saber quais empresários pressionaram Hugo Motta e colegas e deveríamos ser lembrados de que minorias parlamentares (caso do atual governo) procurarem o STF não é afronta, mas o arroz e feijão do controle constitucional desde 1803.

Carecem de ser feitas perguntas vitais.

Qual é o tamanho dos benefícios dos setores que apoiam o centrão e a direita no Congresso? Em comparação a outras economias capitalistas, qual a dimensão da lambança tributária do andar de cima? Por que o dito mercado não se escandaliza com a gastança pouco transparente de emendas parlamentares mas se delicia com medidas antiestabilidade fiscal como a derrubada do decreto do IOF? Qual é a opinião da população sobre a taxação de super-ricos e a redução de impostos para pobres e classe média? Sem essas respostas (ou sequer perguntas), falta cobertura jornalística.