O problema é o câmbio, por Luís Nassif

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Fazenda e BC andam em cima de uma corda bamba. As pressões contra Fernando Haddad e Gabriel Galípolo podem ter um custo muito alto.

Luís Nassif – GGN – 27/02/2025

A bala de prata para derrubar o governo é a volatilidade do câmbio. Antecipo a conclusão, antes de expor o problema, para que sirva de alerta especialmente para os que trabalham, nesse momento, para enfraquecer o Ministro Fernando Haddad e flexibilizar a política monetária.

Está havendo uma enorme confusão nessa insistência para o Banco Central utilizar instrumentos macroprudenciais para controlar a inflação. Esses instrumentos são, por exemplo, requisitos de capital adicionais dos bancos, limites de exposição ao crédito, políticas de provisões dinâmicas etc.

Todas essas propostas partem do pressuposto que a inflação se deve ao aquecimento da demanda, o chamado hiato do produto.

Estima-se um PIB potencial – o nível máximo de produção que uma economia pode sustentar ao longo do tempo, utilizando plenamente seus recursos (como mão de obra, capital e tecnologia) sem gerar pressões inflacionárias. Depois, compara-se com o Produto Real. Se o Hiato do Produto (a diferença) é positiva, julga-se que a economia está aquecida e, portanto, tem que ser contida. E o caminho é o aumento da taxa Selic.

Parte superior do formulário

Modelo similar é o Hiato do Crédito – uma medida para saber se a expansão do crédito, não só bancário, mas também via mercado de capitais, está desviando do que seria a tendência. 

Monta-se uma equação como se a inflação pudesse ter uma calibragem fina: se aumentar a Selic em xis, haverá uma queda de y na atividade, trazendo a inflação de volta aos limites fixados pelas metas inflacionárias.

Menciona-se o Adicional Contracíclico de Capital Principal (ACCP), um instrumento que permite conter o crédito dos bancos em período de expansão e liberar em período de escassez.

É o câmbio, estúpido!

Só há um engano central: o aumento da Selic não tem nada a ver com o nível de atividade, assim como o aumento da inflação. Na verdade, nem arranha.

Vamos a dois exemplos simples. Primeiro, o custo do financiamento para pessoa física.

  1. A taxa de juros média, nos financiamentos pessoais, está em 150% ao ano, ou 7,93% ao mês.
  2. Se eu adquirir um eletrodoméstico de R$1 mil, em 12 prestações, cada prestação sairá por R$132,19.
  3. Suponha que, com as medidas macroprudenciais, consiga o mesmo efeito de uma alta de 2 pontos percentuais da Selic – ao ano. A taxa anual do financiamento saltará para 152%, ou 8,01% ao mês.
  4. O valor da prestação sairá de R$ 132,19 para R$132,69 – 50 centavos. Alguém vai deixar de comprar?

Agora, o custo do financiamento de capital de giro para uma média empresa.

  1. A taxa de juros média está em 29%, ou 2,14% ao mês
  2. Um financiamento de R$ 100 mil, ao final de 6 meses sairá por R$113.578,00.
  3. Se aumentar em 2 pontos a taxa média, o empresário terá que pagar R$114.255,00, ou 0,77% a mais.
  4. Supondo que o custo financeiro corresponda a 10% do preço final do produto, haverá um aumento de 0,07% no custo de produção.

Basta um pouco de bom senso. É evidente que uma Selic de 2 dígitos desestimula investimento. Mas um aumento adicional de 50 centavos no valor de uma prestação vai desestimular o consumo? Um aumento adicional de menos de 1% no custo de fabricação de um produto vai desestimular a produção? Os consumidores vão deixar de comer mais alface ou mais feijão.

É evidente que não.

Quando fixa a Selic, o Banco Central mira um único alvo: a taxa de câmbio. A inflação brasileira tem uma causa central, além dos problemas ambientais: a volatilidade do câmbio. Aumentando os juros, entram mais dólares, há uma apreciação do real reduzindo os preços dos produtos comercializáveis – importados ou exportáveis.

O câmbio é essencial para o investimento produtivo externo, para as decisões de produção interna ou substituição por importados. Um câmbio estável é ponto central para qualquer tentativa de crescimento.

Há décadas venho apontando essa loucura de uma política monetária cuja variável de ajuste é o câmbio. Mas não dá para escapar da armadilha com voluntarismo.

Ocorre que o sistema de metas inflacionárias tornou-se dominante nas maiores economias. E todas elas se tornaram alvos dos grandes movimentos especulativos do capital.

Tudo é regido pelo chamado “carry trade” – uma estratégia pela qual o investidor toma emprestado em uma moeda, com uma taxa de juros mais baixa, e investe em outra moeda. Quando o investidor considera que o carry de uma moeda é baixo – isto é, está rendendo pouco -, ele tende a sair do ativo. E aí o câmbio explode.

Na grande corrida de dezembro passado, o carry brasileiro estava abaixo do carry do México e da África do Sul. Montou-se uma operação para trocar moedas, tirando investimentos do real e levando para os demais países. E aí o cartel do câmbio deitou e rolou.

O que esse fato ensina? Não adianta um país tomar uma medida de redução do carry, porque o dinheiro irá para outro país. 

A situação brasileira só se acalmou quando a Selic subiu, o carry ultrapassou o do México e África do Sul, e o BC desmontou posições de derivativos com atuações de mercado. Depois, conseguiu gradativamente normalizar o câmbio.

As saídas estruturais

Nenhum país conseguirá sair sozinho dessa armadilha. As reclamações sobre o custo de carregamento do dólar são unânimes, vão do Brasil à África do Sul. Só uma ação articulada das principais economias conseguirá conter o ímpeto do dólar, ainda mais agora, sob a gestão errática de Donald Trump.

É por isso que conversas, com BCs da África do Sul, Índia e outros países, é o primeiro passo para controlar a hidra de Lerna do livre fluxo de capitais.

É importante entender que Fazenda e BC andam em cima de uma corda bamba. As pressões contra Fernando Haddad e Gabriel Galípolo podem ter um custo muito alto.

Se o BC apertar as medidas macroprudenciais, e não cuidar do carry, não segura o câmbio. E se não segurar o câmbio, a inflação vai para o espaço e acabará com qualquer possibilidade eleitoral em 2026.

Além disso, pelas regras do ACCP, a contração de crédito ocorreria só em 12 meses. Ou seja, com a economia sofrendo com a Selic em dois dígitos, viria a trombada do trancamento do crédito. E a inflação continuaria sendo sacudida pelo câmbio.

 

Produto Interno Bruto (PIB) – 2024

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O ano de 2024 foi marcado por grandes alterações no ânimo da economia brasileira, percebemos grandes pressões para fragilizar a política econômica, com setores fortes e influentes se alterando para que a economia entrasse em crise, com recessão e o incremento da fragilização política, que poderiam inviabilizar a reeleição do Presidente da República. Nestes escaninhos ouvimos todas as críticas, xingamentos, notícias falsas e até o ressurgimento do impedimento do presidente Lula, que na opinião, se acontecesse, jogaria a sociedade brasileira em graves desajustes institucionais.

Ao analisar a sociedade brasileira, percebemos uma fragilização institucional preocupante, de um lado vislumbramos uma justiça lenta e onerosa, onde os bagrinhos estão encarcerados e os poderosos continuam se safando de suas responsabilidades, gerando uma sensação de impunidade crescente e uma perda de credibilidade do sistema judiciário. De outro, percebemos um sistema que apresenta grande partidarização, muitos buscando uma candidatura para uma futura carreira política, comprometendo toda uma institucionalidade.

Hoje, o assunto do momento foi a divulgação, feita pelo IBGE, do Produto Interno Bruto (PIB) referente ao ano de 2024, com um crescimento de 3,4%, um dos melhores resultados da última década e, no cenário global, nos colocando na colocação de 16◦, uma notícia alvissareira para a sociedade e, principalmente para o governo federal, num momento em que a popularidade do presidente não é das melhores.

Embora percebamos um dado positivo para a economia nacional, observamos uma desaceleração no último trimestre do ano anterior, com uma quase estagnação econômico, fazendo com que o novo ano nos traga informações de um possível baixo crescimento econômico, gerando redução dos investimentos produtivos e reduzida criação de emprego.

indústria da transformação foi um dos destaques positivos, com crescimento de 3,8% no acumulado de quatro trimestres, a melhor taxa em uma década. O setor de serviços também teve forte expansão, impulsionado por TI, comunicação e comércio. A agropecuária trouxe dados preocupantes, recuou 3,2% no ano, mas seu impacto sobre o PIB foi limitado, dado que o setor representa 7,8% da economia.

Outro dado interessante foi o consumo das famílias, que subiu 4,8% no ano, sustentado pelo mercado de trabalho aquecido e pelo crédito ainda disponível, apesar dos juros elevados. Já os investimentos (Formação Bruta de Capital Fixo) avançaram 7,3%, representando um dos pontos mais positivos da economia no período.

O setor externo da economia brasileira apresentou dados que nos geram preocupações, ainda num momento de instabilidades do comércio global em decorrência das decisões do governo norte-americano, as exportações desaceleraram no quarto trimestre, enquanto as importações cresceram quase 15% no ano, resultando em um déficit em conta corrente de aproximadamente 2,5% do PIB.

O aumento das taxas de juros no Brasil e a tendência de desaceleração global devem afetar o crescimento, com projeção abaixo de 2% para este ano. Além disso, o impacto da política fiscal mais contracionista e a alta nos preços dos alimentos no final de 2024 podem afetar o consumo, além de perder apoio político de setores importantes para a eleição de 2022.

Ao olhar para o cenário mundial, percebemos que os EUA criaram 150.000 vagas, dados que estavam dentro das expectativas. Esse movimento pode impactar a política do Federal Reserve, aumentando a expectativa de cortes na taxa de juros ao longo de 2025.

O governo zerou tarifas de importação de diversos alimentos, como café, açúcar e biscoitos, para aliviar a inflação, que gerou graves constrangimentos e preocupações referente a popularidade do governo federal, perdendo apoio de setores significativos para a eleição de 2026, todas essas medidas visam a redução dos preços do consumidor final, mas levanta debates sobre sua eficácia e o impacto na indústria local.

O cenário agora é de apreensão, com a observação sobre como a economia reagirá à combinação de desaceleração global, política monetária mais restritiva, mudanças no comércio exterior e ajustes fiscais. Apesar dos indicadores trazidos pelo IBGE, o crescimento do PIB foi positivo e, ao mesmo tempo, precisamos refletir sobre o comportamento econômico em 2025.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre e Doutor em Sociologia.

 

 

 

Trumpismos – radiografia da extrema direita, por Michael Lowy

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Michael Lowy –  A Terra é Redonda – 18/02/2025

Prólogo do livro de Miguel Urbán Crespo

A espetacular ascensão da extrema direita se tornou, nas últimas décadas, um fenômeno global, que se reforça e se espalha cada vez mais diante da crise das democracias liberais. De fato, o que poderia ser definido como “trumpismo” sofreu sérias derrotas eleitorais recentes, como exemplificado pelo caso do Brasil e dos Estados Unidos, mas ainda mantém uma influência considerável e continua trabalhando ativamente para retomar o poder.

Além disso, na Europa, governa, de formas diversas, na Hungria, Polônia e Itália, e representa uma séria ameaça eleitoral e política na França, Espanha ou Alemanha. Se olharmos para o Chile, observamos que os partidários do pinochetista José Antonio Kast ganharam as eleições para o Conselho Constituinte. Os exemplos são numerosos em muitas partes do mundo: Índia (Narendra Modi), Turquia (Recep Tayyip Erdoğan), Israel (Benjamin Netanyahu) etc.

Até agora, a maioria dos trabalhos sobre esse tema tem se limitado a realizar estudos de caso em apenas um país. Existem poucas pesquisas sérias que tentam abordar o fenômeno em escala global. O brilhante ensaio de Miguel Urbán Crespo é, sem dúvida, um dos mais amplos, profundos e atualizados trabalhos até agora publicados, pelo menos aqueles que surgem de uma leitura política e ativista. Seu ponto de vista radical, antifascista e anticapitalista não é uma limitação, e sim uma condição fundamental para entender a lógica do autoritarismo reacionário, bem como para pensar as formas de combatê-lo.

Como Miguel Urbán destaca, não se trata apenas de uma ressurreição do antigo fascismo dos anos 1930, mas de algo novo, mesmo que encontremos nele alguns traços do fascismo clássico. O termo “trumpismo” tenta destacar esse componente inovador, embora compreendendo que a onda reacionária pode assumir formas muito diferentes do modelo americano.

Suas características comuns seriam, na opinião do autor: nacionalismo autoritário, xenófobo, demagógico, machista, islamofóbico (menos em suas manifestações fundamentalistas islâmicas), antissemita (exceto nos casos de neofascismo sionista) e negacionista climático. Poderíamos adicionar alguns outros adjetivos: homofóbico, racista, conspiracionista, anticomunista (ou antiesquerda em todas as suas acepções) etc.

Além das múltiplas formas que podem assumir de acordo com os países e culturas: neoimperialismo, iliberalismo, populismo punitivista ou excludente, fundamentalismo religioso… No entanto, para ser sincero, não gosto do termo “populismo”, que gera mais confusão do que clareza; prefiro o outro conceito que Miguel Urban usa para se referir às políticas punitivistas e excludentes (o muro na fronteira): a necropolítica.

Para definir essa extrema direita, pessoalmente uso o termo “neofascismo”, que enfatiza ao mesmo tempo a diferença e a semelhança com o fascismo histórico. O conceito proposto por Miguel Urbán, “autoritarismo reacionário”, parece-me perfeitamente adequado. Ele reúne duas das características principais do fenômeno, comuns a suas várias manifestações, apesar de suas evidentes diferenças, o que permite explicar o surgimento recente do “Frankenstein” da extrema direita.

A principal hipótese do autor é de que a crise do sistema capitalista, assim como o surgimento de políticas neoliberais cada vez mais autoritárias e afastadas das democracias liberais estabelecidas após a Segunda Guerra Mundial, criou as condições para o surgimento do iliberalismo antidemocrático e do autoritarismo reacionário, que de forma alguma questionam o paradigma econômico neoliberal.

Considero a análise muito acertada, desde que não confundamos os dois fenômenos: Emmanuel Macron e Donald Trump representam duas formas políticas radicalmente distintas, por mais que apresentem traços comuns, começando pelo fato de ambos compartilharem uma fé cega no neoliberalismo. Outra hipótese que me parece interessante é a proposta por Daniel Bensaïd há alguns anos: a globalização capitalista neoliberal, ao enfraquecer os Estados nacionais, provoca “pânicos identitários” que são instrumentalizados pela extrema direita.

Ambas as ideias se baseiam em outra das contribuições mais interessantes do livro que você tem em mãos, ou seja, a análise dos mecanismos utilizados pelo “trumpismo”: as fake news, as guerras culturais (“morte ao woke!”), o conspiracionismo, bem como o terrorismo. Alguns desses métodos já eram usados pelo fascismo clássico, mas agora assumem novas formas, sem precedentes, como o uso massivo das redes sociais – outrora o rádio, no caso do nazismo ou do fascismo italiano – para implementar o quadro autoritário.

Como resistir a essa onda reacionária global? Miguel Urbán reconhece que não há uma receita mágica para enfrentar esse combate indispensável, mas se refere a algumas vitórias importantes – mesmo que às vezes efêmeras – contra o neofascismo e a extrema-direita: a dissolução do Aurora Dourada na Grécia, os avanços dos grandes movimentos feministas no Chile e na Polônia, o surgimento do Black Lives Matter nos Estados Unidos etc.

Este livro é, em última análise, uma ferramenta valiosa para entender e combater – a partir da filosofia da práxis marxista, ambos são inseparáveis – o surgimento da internacional reacionária.

Michae Löwy é diretor de pesquisa em sociologia no Centre nationale de la recherche scientifique (CNRS). Autor, entre outros livros, de Franz Kafka sonhador insubmisso (Editora Cem Cabeças)

Referência

Miguel Urbán Crespo. Trumpismos: neoliberais e autoritários – radiografia da direita radical. Usina Editorial, 2025, 312 págs. Tradução de Valerio Arcary.

A questão da desigualdade americana, por Wagner Sousa

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Wagner Sousa – OUTRAS PALAVRAS – 28/02/2025

O “sonho americano” desmoronou com a economia financeirizada e fuga de indústrias para o exterior. A renda estagnou e a precarização aumentou. E o medo de outras crises assola a população. Isto alimentou o ressentimento social, capitalizado por Trump

Uma das características das mudanças engendradas na economia política dos países ricos, desde o início da década de 1980, tem sido a concentração de renda. Do “consenso keynesiano”, que vigorou do pós-guerra ao fim dos anos 1970, (o republicano Richard Nixon disse, certo momento, “somos todos keynesianos”), que tinha no investimento público e adição dos ganhos de produtividade aos salários duas de suas principais “âncoras”, a economia passou a ser gerida tendo como premissas de sua eficiência a redução do papel do Estado, e portanto do investimento público, e a “financeirização” da gestão da riqueza, na qual os lucros de curto prazo passaram a ditar a estratégia empresarial. Assim, a contenção de gastos das empresas, com demissões e redução de custos salariais, está, desde então, no cerne destes planos.

Na virada dos anos 1970 para a década de 1980, viu-se o aumento brutal da taxa de juros pelo Federal Reserve, então dirigido por Paul Volcker, no intuito de domar a inflação e reafirmar o papel do dólar como moeda reserva mundial e do lugar central do sistema financeiro dos EUA no mundo. A “revolução conservadora” de Ronald Reagan, no entanto, tirou a economia norte-americana da recessão com um “keynesianismo militar”, resultado de forte expansão dos gastos de defesa. Este investimento na capacidade bélica cumpriu a função de dar sustentação necessária para a recuperação da economia e debilitar a economia da URSS, provocando o colapso de seu regime político, um objetivo geopolítico, portanto. Reafirmação da supremacia da moeda e das armas dos EUA em nível global compunham o processo muito bem descrito no artigo “A retomada da hegemonia norte-americana”, obra da saudosa professora Maria da Conceição Tavares.

A vitória norte-americana na Guerra Fria, com o fim da URSS e do bloco socialista e a reunificação da Alemanha, fez com que a “hegemonia unipolar” dos EUA se estabelecesse a partir dos anos 1990 e com esta a consolidação do chamado “neoliberalismo” tendo como seus principais objetivos as liberalizaçôes comercial e financeira, as privatizações e desregulamentações das normas vistas como “empecilhos” ao investimento privado. A economia das “bolhas de ativos” com inflação dos valores de ações (a “bolhapontocom” dos anos 1990) e imóveis (“bolha imobiliária” dos anos 2000) substituiu a dinâmica anterior da economia com crescimento contínuo dos salários reais e “aburguesamento” da classe trabalhadora e sua integração à classe média. O proletariado norte-americano viu seus empregos industriais escassearem ao se deslocarem para o exterior, pela busca da indústria por mão de obra mais barata. Novos empregos surgiram na “economia de serviços”, porém, na maioria das vezes, com remuneração pior, condições de trabalho precarizadas, em situações que variam das jornadas extenuantes aos part time jobs, que fazem com que muitos trabalhadores trabalhem menos horas do que gostariam e ganhem, em consequência, salários menores. O trabalho nos Estados Unidos se tornou, em grande medida, mais precário, instável e com remuneração menor.

O filósofo britânico John Gray em Falso Amanhecer – os equívocos do capitalismo global descreveu a realidade do capitalismo norte-americano de fins dos anos 1990:

“É interessante notar que essas ansiedades não são um efeito colateral da estagnação econômica. Ao contrário. Durante os últimos quinze anos, a economia norte-americana manteve-se em uma expansão quase contínua. A produtividade e a riqueza nacional cresceram firmemente. A reestruturação da indústria americana deu-lhe condições de recuperar mercados que se pensava estarem definitivamente perdidos para o Japão. Como na Inglaterra de meados da era vitoriana, a liberalização dos mercados na América do final do século 20 construiu um espetacular – e não reproduzível – boom econômico. Ao mesmo tempo, a renda da maioria dos americanos estagnou. Mesmo para aqueles cujas rendas aumentaram, o risco econômico pessoal cresceu visivelmente. A maioria dos americanos tem pavor de um distúrbio econômico do qual – suspeitam – nunca mais se recuperarão. Poucos pensam agora em termos de uma ocupação vitalícia. Muitos preveem, não sem razão, que suas rendas cairão no futuro. Estas, evidentemente, não são circunstâncias que alimentam uma cultura de satisfação (GRAY, 1998, p. 146)”.

Também analisando esta problemática, o economista francês Thomas Piketty, em O Capital no século XXI, obra de 2013 que teve grande impacto no debate global sobre a crescente desigualdade, menciona, sobre a concentração de riqueza no extrato do 1% mais rico da população:

“Nos anos 1970, a parcela do centésimo superior na renda nacional era muito próxima nos vários países. Ela estava entre 6 e 8% nos quatro países anglo-saxões estudados, e com os Estados Unidos não era diferente, os americanos eram até ligeiramente ultrapassados pelo Canadá, que atingia 9% (…) Trinta anos depois, no começo dos anos 2010 a situação é totalmente diferente. A parcela do centésimo superior atingiu quase 20% da renda nacional nos Estados Unidos (…).” (PIKETTY, 2013, p. 307).

Piketty explica que nos países anglo-saxões a concentração de renda foi mais pronunciada do que na Europa continental e no Japão, onde também ocorreu. No Reino Unido e no Canadá o centésimo superior passou a ter entre 14-15% da renda nacional e na Austrália entre 9-10%. Japão e França passaram de 7% para 9%, Suécia, de 4% para 7% e Alemanha de 9% para 11%. (PIKETTY, 2013, p. 308). Em todo o mundo rico houve concentração de renda no topo da pirâmide social, mas foi nos EUA onde aconteceu com mais intensidade.

Todo esse processo de polarização de renda e, como consequência, polarização social, visível na paisagem de muitas partes do interior dos EUA, com suas fábricas abandonadas e cidades outrora pujantes, decadentes, alimentou forte ressentimento social daqueles que “ficaram para trás”. A candidatura de Donald Trump, desde quando despontou nas primárias republicanas para a eleição de 2016 e o seu mote de “fazer a América grande novamente” tem relação com esta frustração das massas, especialmente nos eleitores brancos pobres, de que as oportunidades econômicas e o caminho para a ascensão social estavam disponíveis e não mais estão.

A crescente polarização social, portanto, vem alimentando a extrema direita e enfraquecendo consensos existentes na sociedade e na esfera política a respeito de políticas públicas internas e da política externa. John Gray trata, no livro aqui mencionado, do apelo nacionalista da pré-candidatura de Patrick Buchnann pelo Partido Republicano ou da candidatura independente de Ross Perot, que apareceram nos anos 1990 como sintomas desta insatisfação, mas então avaliava como inviáveis candidaturas tão críticas ao status quo bipartidário. Como sabemos, era questão de tempo.

Wagner Sousa, Mestre em Sociologia pela UFPR. Doutor em Economia Política Internacional pela UFRJ. Pós-Doutoramento em Economia Política Internacional pela UFRJ. Idealizador e Editor do site América Latina Colaborador do Boletim Observatório do Século XXI.

 

O enigma do Centrão na política brasileira, por Francisco Pereira de Farias

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Francisco Pereira de Farias – A Terra é Redonda – 28/02/2025

Os mandatários do capital financeiro-bancário buscaram deslocar o centro da hegemonia no aparelho de Estado, transferindo-o do Executivo para o Legislativo

O clientelismo político advém uma forma de se reforçar as solidariedades políticas no interior da classe dominante, já que os benefícios distribuídos (cargos, verbas, equipamentos) são signos de compensações econômicas, feitas pela fração hegemônica, aos interesses das frações subordinados, em troca da estabilidade política. Em outras palavras, a barganha de vantagens materiais imediatas por apoios políticos é o aspecto manifesto das relações intergovernamentais, partidárias e eleitorais; porém, mais profundamente, são os interesses da fração hegemônica que, em boa medida, constituem o conteúdo latente da relação dos aparelhos de Estado, da competição dos partidos e das disputas eleitorais.

O capital financeiro internacional e o capital bancário nacional conquistaram o executivo federal nas eleições presidenciais de 2018. A expressão dessa aliança hegemônica foi a política econômica liderada pelo ministro da fazenda Paulo Guedes, cujos eixos representavam uma radicalização do programa neoliberal: desregulação da economia, privatizações, monetarismo. A adoção de uma composição parlamentar e ministerial por meio dos partidos de clientela era uma maneira coerente com essa política hegemônica, centrada na estratégia de redução de custos, pois contornava os acordos mais amplos com as forças sociais subordinadas que significassem sacrifícios econômicos do anel de interesses hegemônicos, como eram os casos da política ambiental restritiva ou da política salarial expansiva.

A tendência dessas forças alinhadas ao neoliberalismo extremado foi de minimizar o papel dos partidos políticos e dos grupos sociais na canalização de demandas gerais junto ao aparelho de Estado, opondo-se a uma política de pacto social ou aliança de classes. Os mandatários do capital financeiro-bancário buscaram deslocar o centro da hegemonia no aparelho de Estado, transferindo-o do Executivo para o Legislativo.

Como o líder do executivo, no Brasil, é eleito pelo voto majoritário, ele tem o incentivo para a discussão dos temas estratégicos ou nacionais da política governamental; diferentemente, a eleição proporcional dos parlamentares os induz a uma perspectiva imediatista ou fragmentária das questões da política nacional, em vista do retorno eleitoral. O deslocamento para a dominância do Legislativo se traduzia na tática de controlar o processo orçamentário do governo, por meio principalmente das mudanças nos dispositivos de emendas parlamentares.

Em 2016, em um contexto de crise da hegemonia neodesenvolvimentista (Boito Jr, 2018), a oposição parlamentar conseguiu aprovar a mudança constitucional que tornava impositiva a emenda orçamentaria individual. Este foi o primeiro passo num percurso que visava retirar do Executivo o controle político do processo orçamentário.

Vale observar que desde o ano de 2000 havia o projeto do Senador Antônio Carlos Magalhães de tornar obrigatória a emenda parlamentar individual. No entanto, tal proposta não entrara em pauta, porque a coalizão neodesenvolvimentista, fiadora de uma política de acordos mais amplos, estava comprometida com os dispositivos das emendas coletivas (bancada, comissões). Durante o Governo Lula II (2007-2010) o peso das emendas coletivas nas despesas discricionárias foi em média de 60,3%; já no Governo Bolsonaro (2019-2022), a média dessas emendas ficou em 28, 4% (Faria, 2023).

Em 2019, as Emendas Constitucionais 100 e 102 aprovaram, respectivamente, as impositividade das emendas orçamentárias das bancadas estaduais e a obrigatoriedade de execução das despesas primárias discricionárias, que são principalmente os investimentos. Além disso, o Congresso Nacional tornou impositivas as emendas das comissões permanentes do Senado e da Câmara e estendeu o papel do relator-geral no processo orçamentário. Por fim, ainda em 2019, foi aprovada a EC 105 instituindo as transferências especiais ou transferências com finalidade definida, que independiam de convênio ou contrato com o ente beneficiado, permitindo ao parlamentar doar ao município que desejasse, sem destinação específica e sem fiscalização do Tribunal de Contas da União, até a metade do valor de suas emendas orçamentárias. Isso explica que as despesas de emendas individuais no orçamento federal tenham ultrapassado as emendas coletivas ao longo do Governo Bolsonaro, invertendo a tendência do ciclo de governos Lula e Dilma.

Porém, o dispositivo por meio do qual o poder legislativo mais avançou no controle político do processo orçamentário foram as atribuições do relator-geral à peça orçamentária de governo. Em 2020, foi estabelecido o identificador de Resultado Primário para discriminar as emendas do relator-geral (RP-9). Feita a triangulação deste dispositivo com as normas constitucionais e as regras regimentais, na prática a emenda de relator-geral se torna quase impositiva, com a regulação da possibilidade de indicação dos beneficiários e da ordem de prioridades de tais emendas. Disso resulta o crescimento exponencial do montante de recursos das emendas do relator-geral: se durante os Governos Lula I e II foram aplicados, respectivamente, um total de R$ 25 bilhões e R$ 30 bilhões; no Governo Bolsonaro, esse total chegou a R$ 93,2 bilhões.

Compreende-se que, num contexto de limitação democrática, no qual as forças hegemônicas tendem a ressaltar os partidos clientelísticos e os interesses locais ou paroquiais, tenha-se o aumento do montante orçamentário para as emendas individuais, em detrimento das emendas coletivas. E mais importante nesta tática individualista é a concentração dos recursos nas emendas do relator-geral, o qual normalmente está subordinado à presidência da Câmara Federal.

Porém, não estava excluído o conflito no interior da coalizão governante, que no Governo Bolsonaro controlava tanto o Executivo e quanto o Legislativo, promovendo os interesses do grande capital financeiro-bancário com relativo equilíbrio dos poderes ou baixo nível de conflitos, embora a tendência fosse de dominância do Legislativo. Diante do avanço do Congresso Nacional, ou seja, os representantes diretos (financiados pelas campanhas eleitorais) da aliança hegemônica no processo orçamentário, era previsível que houvesse a reação do Executivo, os seus representantes indiretos (relacionados ao funcionário de carreira). Uma manifestação disso foi o julgamento pelo STF de inconstitucionalidade da emenda de relator-geral em dezembro de 2022. Mas não houve um retorno ao status quo anterior em termos de prerrogativas orçamentárias do Executivo, permanecendo o cenário de limitação de suas atribuições orçamentárias; o que se fez foi impedir a continuidade da nova “ferramenta de composição” da coalizão governativa (RP-9), desenvolvida e instrumentalizada a partir do Legislativo (Faria, 2023).

Em contexto de relativa consolidação da democracia, na década de 1990, em que as forças hegemônicas, defensoras de um neoliberalismo moderado, não se mostravam opostas ao regime democrático, dando importância aos partidos políticos e os grupos sociais, tinha-se o baixo índice de emendas individualizadas e uma baixa correlação entre a execução das emendas individuais e os votos dos parlamentares aos projetos de governo (Figueiredo; Limongi, 2005). O desenvolvimento de um sistema partidário forte pode atenuar os ciclos eleitorais orçamentais, particularmente num sistema eleitoral majoritário, ao reorientar a competição legislativa para os temas mais estratégicos de desenvolvimento do país.

Pode-se, porém, levantar a hipótese de que, neste contexto de política neoliberal e estabilidade democrática, a força da barganha clientelista tenha se deslocado das emendas individuais para as emendas coletivas, expressando uma sofisticação das práticas clientelistas. Como observa um analista, a grande vantagem das emendas coletivas, que foram concebidas para atender os interesses maiores de Estados, regiões ou comissões setoriais, seria supostamente estarem livres de motivações escusas [sic.!], já que teriam que ser objeto de negociação formal entre grupos de parlamentares (com exigências de quórum mínimo). Infelizmente, com o passar do tempo, as emendas coletivas passaram a ser acometidas dos mesmos males das emendas individuais (Tollini, 2008, p. 218).

Torna-se previsível que a coalizão governante se utilizasse do avanço das emendas parlamentares no orçamento federal como um meio de fortalecer sua coesão política, a despeito de uma retórica oposta a isso. O Presidente Jair Bolsonaro negava que o aumento de liberação de emendas parlamentares fosse uma prática da “velha política”: “tudo o que é liberado está no orçamento. (…) Nada foi inventado, não tem mala, não tem conversa escondidinha em lugar nenhum, é tudo à luz da legislação” (Valor econômico,12\07\2019).

Tem-se ainda um discurso de criminalização do clientelismo político, tentando se afastar de uma prática que é inerente às democracias capitalistas. Mas efetivamente o que se está tentando ocultar é a conduta de regressão às formas individualistas dessa barganha política, expressas nas emendas parlamentares individuais e as transferências especiais que independem de destinação específica e nas emendas da relatoria-geral. Um efeito disso é uma mudança no papel do legislativo na definição de políticas públicas, voltando-se para as prioridades e as metas de curto prazo e medidas fragmentárias, cujos rendimentos eleitorais podem ser maiores.

Uma manifestação concreta dessa tendência política foi alardeada em reportagem do Jornal O Estado de S. Paulo, em maio de 2021, referindo ao caso das emendas de relator-geral, apelidadas de “orçamento secreto”:

Secretamente, esses recursos extras foram concentrados num grupo de parlamentares. É um dinheiro paralelo ao previsto nas tradicionais emendas individuais a que todos os congressistas têm direito, aliados ou oposicionistas. […] Na Região Norte, a cidade de Santana foi a mais beneficiada por recursos do orçamento secreto. Por indicação do senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), o município firmou contrato de repasse de R$ 95,7 milhões para a pavimentação de ruas, que teriam como destino Macapá se o irmão dele, Josiel Alcolumbre (DEM), tivesse vencido a eleição para prefeito da capital amapaense. Segundo fontes, para não turbinar o mandato do adversário da família, Alcolumbre redirecionou o investimento.

A despeito de seu discurso sobre a “nova política”, o que na prática poderia significar uma oposição à política clientelista, o Governo Bolsonaro respondeu de modo específico o traço marcante da governabilidade, que são as coalizões parlamentares e ministeriais. Tendo feito a presidência da Câmara dos Deputados, a bancada governista recebeu dez vice-lideranças na Casa, contemplando dez Partidos diferentes e concedeu a um partido de clientela, o Partido Progressista, a liderança do governo na Câmara e, em seguida, a este mesmo partido, o Ministério da Casa Civil, principal ministério de articulação e negociação do Executivo com os outros ramos do aparelho de Estado. Por outro lado, foi reinstituído o Ministério das Comunicações a ser entregue a outro partido de clientela, o Partido Social Democrático; e vários outros pequenos partidos que compõem o chamado Centrão, agregando bancadas partidárias tidas por pragmáticas, ganharam cargos no segundo e terceiro escalões dos Ministérios ou das Autarquias do Executivo Federal (Amaral, 2021).

A coalizão bolsonarista praticava um clientelismo como tentativa de voltar ao sistema das “lealdades pessoais”, típico das antigas oligarquias agrárias (Leal, 1975). Só que em lugar dessas oligarquias tradicionais, desaparecidas com a penetração do capitalismo no campo, ascendem os quadros políticos de origem numa espécie de lumpen burguesia (comerciantes de terras, milícias, empresas religiosas etc.), que se multiplicaram nas legendas partidárias clientelistas.

*Francisco Pereira de Farias é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí. Autor, entre outros livros, de Reflexões sobre a teoria política do jovem Poulantzas (1968-1974) (Lutas anticapital).

Referências

AMARAL, O. E. Partidos políticos e o Governo Bolsonaro. In: AVRITZER, L.; KERCHE, F.; MARONA, M. (orgs.).  Governo Bolsonaro: retrocesso democrático e degradação política. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.

BOITO JR, A. Reforma e crise política no Brasil: os conflitos de classe nos governos do PT. Campinas: Unicamp; São Paulo: Unesp, 2018.

FARIA, R. O. Emendas parlamentares e processo orçamentário no presidencialismo de coalizão. 2023. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito Econômico, Financeiro e Tributário da Universidade de São Paulo.

TOLLINI, H. M. Aprimorando as relações do Poder Executivo com o Congresso Nacional nos processos de elaboração e execução orçamentária. Cadernos ASLEGIS, n. 34, 2008, p. 213-236.

 

Retaliações

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Vivemos momentos de apreensões constantes, todos os dias somos bombardeados por informações preocupantes, desastres naturais motivados pelo descaso dos protocolos ambientais, violências crescentes, confrontos verbais e desrespeitos generalizados que crescem de forma acelerada, criando discórdias, medos e ressentimentos em todas as regiões.

Neste cenário, percebemos o crescimento de propostas equivocadas e simplistas que pululam nos parlamentos globais, governos incapazes de compreender as raízes estruturais dos graves constrangimentos que pairam na sociedade global, tais medidas aumentam os confrontos entre nações e dentro dos países, espalhando  medidas que aumentam a repressão e a violência urbana, deixando de lado os investimentos na formação educacional para a cidadania, desta forma, percebemos o incremento dos ressentimentos arraigados que culminam em graves desequilíbrios sociais, políticos e culturais, levando os indivíduos a buscarem um salvador da pátria que consiga melhorar as condições de vida da população e evitem as humilhações cotidianas.

Neste momento, percebemos o crescimento de políticas protecionistas, que crescem de forma acelerada, gerando graves instabilidades nos acordos comerciais, nas trocas econômicas e produtivas e estimulando o incremento de ressentimentos entre nações, num momento fundamental para que as nações e seus líderes se aproximem para evitar os graves constrangimentos gerados pelo aumento da temperatura global, que estão motivando variadas alterações no meio ambiente, modificações climáticas e possíveis transformações em setores econômicos e produtivos, redesenhando a geopolítica mundial.

O crescimento do protecionismo estimulado pela “nova” administração norte-americana tende a gerar graves retaliações em todas as regiões do mundo, nações ameaçadas devem se proteger para reduzir suas perdas econômicas e financeiras, nações sobretaxadas tendem a adotar políticas de retaliação, evitando graves constrangimentos para seus produtores locais e, no final das contas, os preços devem aumentar de forma acelerada, prejudicando seus cidadãos que tendem a perceber sua perda de poder de compra.

Vivemos numa sociedade altamente integrada e interdependente, alterações bruscas em qualquer lugar no cenário global tendem a impactar fortemente todos os atores econômicos e produtivos, ainda mais, quando percebemos que as incertezas e as instabilidades são geradas pela maior economia do mundo, catalisadora de políticas protecionistas motivadas pela proteção de seu setor produtivo e, desta forma, as outras nações tendem a adotar as mesmas políticas, aumentando os constrangimentos na economia internacional e incrementando as incertezas políticas.

As políticas protecionistas adotadas pelos Estados Unidos da América objetivam a reestruturação industrial, o aumento da produtividade da economia e o fortalecimento de toda a sua estrutura produtiva, fortalecendo a economia do país, gerando empregos melhores e salários maiores, fortalecendo o mercado interno, garantindo um setor produtivo mais sólido e consistente para angariar forças na concorrência com o mercado global e condições efetivas para superar seu maior competidor.

Neste momento de grandes incertezas e instabilidades, percebemos que as políticas protecionistas tendem a gerar graves constrangimentos para as nações e o incremento das retaliações comerciais, que devem levar governos a estimularem um processo de industrialização e uma reestruturação dos seus setores econômicos e produtivos.

A literatura econômica nos mostra que todas as nações que se desenvolveram, antes conseguiram seu processo de industrialização, quem sabe, neste momento de protecionismos crescentes, os ventos da industrialização contagiem nossa elite e nos tragam novos horizontes de desenvolvimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicos e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Assim nasceu o neoliberalismo, por Antonio Martins

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Em dois livros essenciais, Melinda Cooper reconstitui os anos que mudaram a face do Ocidente. 1968 abriu crítica radical ao capitalismo. Para freá-la, sistema apelou à moral conservadora. Há saídas: mas é preciso fazer do dinheiro um Comum

Antonio Martins, editor de OUTRAS PALAVRAS – 28/02/2025

O esforço para mostrar que há vida além do capitalismo é árduo, mas reconforta. Há anos, Outras Palavras tem identificado e difundido o esforço de um grupo de pensadores que desafia as certezas do neoliberalismo. Num artigo recente, Ladislau Dowbor destacou a obra de alguns deles: economistas como Mariana Mazzucato, Thomas Piketty do Michael Hudson, Michael Roberts, Jayath Ghoshi.

A este elenco, é preciso somar Melinda Cooper. Esta socióloga australiana de 52 anos, professora na Universidade de Canberra (na Austrália) tem publicado obras que desafiam antigos paradigmas. Seu foco concentra-se na transição do Estado keynesiano para a hegemonia neoliberal – e especialmente no papel que desempenhou, neste processo, uma aliança entre os neoliberais e os conservadores morais. Seu interesse parece ser provocar velhos consensos e, ao fazê-lo, abrir caminho para alternativas.

Ela sustenta que o Estado de bem-estar social não se esgotou por motivos econômicos. Foi jogado ao mar e corroído, quando as elites ocidentais julgaram que conquistas como Educação e Saúde igualitárias haviam tornado os trabalhadores indisciplináveis. Os capitalistas temiam, em especial, a semente revolucionária lançada por movimentos como o de maio de 1968. Para neutralizá-la, estabeleceram aliança com os ultraconservadores e retomaram ideias como a centralidade da família. Estabeleceu-se um consenso reacionário. Para rompê-lo, argumenta Melinda, será preciso desmistificar o dinheiro; vê-lo como um Comum; e apostar na multiplicação do gasto público que desmercantiliza a vida e redistribui a riqueza.

Seu pensamento está especialmente expresso em dois livros, ainda não disponíveis em português (há edições em inglês e castelhano). Contrarrevolução: extravagância e austeridade nas finanças públicas e Valores de Família: entre o neoliberalismo e o novo conservadorismo. A primeira obra foi lançada no final de 2024 e examina a transição do keynesianismo para o neoliberalismo, iniciada no final dos anos 1970.

Melinda lança mão de um vasto estudo factual para mostrar como se construíram, quase a partir do nada, consensos baseados nas ideias de economistas austríacos dos anos 1920 – não apenas Hayek e von Mises, mas também Joseph Schumpeter. Emergiu, então, a noção de que as políticas macroeconômicas precisavam obrigatoriamente visar objetivos até então pouco relevantes, como “equilíbrio orçamentário”, “ajuste fiscal”, “redução de tributos”, “encolhimento do Estado”, “autonomia dos bancos centrais”, “metas de inflação” (desde que desconsiderem a valorização imobiliária…).

Melinda aponta também como esse consenso é importante para esconder que por trás dessa “austeridade”, há uma extravagância – uma transferência brutal de recursos do Estado para os mais ricos. É algo evidente no Brasil (embora oculto para a maioria), onde o Tesouro transfere a cada doze meses, para um grupo reduzido de credores da dívida pública, R$ 1 trilhão, o mesmo que três orçamentos do SUS.

A partir daí, a autora lança suas provocações. Ao contrário do que sustenta o consenso econômico, partilhado inclusive pela maioria dos keynesianos, ela sustenta que a crise do Estado de bem-estar social não se deveu, essencialmente, a razões econômicas objetivas – ao suposto esgotamento daquele processo. Foi produzido, ao contrário, por uma opção política das elites capitalistas. Elas temeram que o Estado de bem-estar social gerasse, em determinado momento, uma contestação muito forte ao próprio sistema.

A essência do argumento de Melinda é: tanto a construção do Estado de bem-estar social quanto a sua destruição resultam de opções políticas. O surgimento se dá – e esta parte da história é mais conhecida – no pós-II Guerra, quando a ameaça da União Soviética fez com que as elites capitalistas aceitassem entregar os anéis para conservar os dedos.

Em todo esse período – marcado por greves em cujas imagens é possível identificar a presença masculina marcante – as lutas sociais e o fantasma da União Soviética são tão marcantes que as elites aceitam, por exemplo, o gasto público e os déficits fiscais que permitem a educação e saúde gratuitas os sistemas previdenciários por repartição, totalmente estranhos ao capitalismo do início do século.

Mas Melinda vai mais adiante e mostra a destruição desse processo. Argumenta que aquele movimento tinha ido longe demais – pois continha em seu interior ideias não capitalistas. As ideias de saúde e educação gratuitas e igualitárias, por exemplo, ou de que ninguém é obrigado a trabalhar até o final da sua vida e de que não é preciso haver insegurança econômica, foram vistas como subversivas. Passaram a assustar as elites, em especial pelo fato de elas terem criado um cenário em que já não era possível disciplinar os trabalhadores por meio de políticas macroeconômicas.

Estas políticas, conta a socióloga, provocavam às vezes redução dos salários, mas os trabalhadores estavam garantidos por um sistema de bem-estar social que os protegia. E foi esta segurança, segundo a autora, que tornou possíveis movimentos como o Maio de 68, cujas imagens são muito diferentes. Incluem mulheres, desafiam não apenas os patrões mas a ordem econômica – além da hegemonia cultural e moral. É preciso lembrar que maio de 68 não se esgotou na França, muito menos em Paris. Foi seguido, em todo o mundo, por greves de forte sentido anticapitalista. Elas avançaram fundo na década de 1970, a ponto de o comunista e sociólogo italiano Toni Negri afirmar: “em certo momento, dominávamos as técnicas sociais que permitiam vencer os patrões”.

Isso foi, é evidente, demais para os capitalistas. A partir de determinado momento, eles foram capazes de inverter o jogo. Apoiaram-se num vasto movimento de fragmentação de trabalho e no argumento de que, do ponto de vista econômico, o projeto keynesiano tornara-se insustentável.

E nesse momento que os capitalistas – já rompidos com o keynesianismo e abraçados ao projeto neoliberal – vão se associar com os conservadores morais. Melinda cita, a respeito, uma frase emblemática da primeira-ministra britânica Margaret Thatcher. “Não existe isso que chamam de sociedade”, diz ela: “há apenas homens, mulheres e famílias”. Aqui entra uma segunda contribuição de Melinda Cooper. Num outro livro de enorme importância, Os Valores de Família, ela faz uma reconstituição histórica impressionante sobre como, em cinco séculos de modernidade, capital, Estado e a família estiveram sempre associados na dominação política e construção de consensos.

Melinda descreve como os neoliberais uniram-se aos conservadores para estabelecer uma espécie de anti-Maio de 68 para fazer a recuperação da família e dos valores burgueses. Ela mostra inclusive (e é bastante curioso) como, de certa maneira, algumas bandeiras de maio de 68 – a diversidade sexual, por exemplo – foram recuperadas de forma conservadora, na forma, por exemplo, do casamento homossexual.

Em seus livros fundamentais – mas especialmente em Contrarrevolução – Melinda vai atrás das alternativas. Ao fazê-lo, recupera um teórico do Partido Comunista Grego, dos anos 1960 e 70, Nikolas Poulantzas, que cometeu suicídio em 1979. Foi quem teorizou, já àquela época, a respeito de um possível giro inesperado da teoria revolucionária. Ele vislumbrava a hipótese de capturar, para um pós-capitalismo, o Estado de bem-estar social. Queria agir por dentro dele e, ao mesmo tempo, estourar seus limites para detonar a ordem burguesa.

Poulantzas argumentava que alguns dos valores centrais das lutas operárias dos séculos XIX e XX haviam sido valorizados e ao mesmo tempo capturados pelo Estado de bem-estar social. Por isso, já não adiantava simplesmente defender as noções anteriores de revolução: a classe trabalhadora prezava o fato dos seus direitos estarem sendo assegurados pelo Estado capitalista.

Ele pensa que a estratégia deveria ser recuperar estes valores; atuar por dentro e para explodir os limites desse estado. Lutar, por exemplo, pelo direito ao trabalho para as mulheres – porque o keynesianismo baseava-se na ideia do marido sustentador do lar. Expandi-lo para as maiorias globais: os não-brancos, os imigrantes, os fora-da-ordem.

Melinda Cooper sugere, sempre de forma provocadora, que é preciso recuperar e ir além do próprio Poulantzas. Para ela – num pensamento que pode ser estendido ao futuro do governo Lula – a esquerda precisa questionar todo o processo de criação do dinheiro. É transformar o dinheiro num Comum e, ao fazê-lo, promover um grande choque de serviços públicos, de garantia de pleno emprego, de transformação da infraestrutura e de desmercantilização da vida. Sua obra, instigante e inspiradora, é um alento bem-vindo, em tempos de marasmo intelectual.

 

Para entender o patriotismo de vassalagem, por Moyses Pinto Neto.

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As contradições dos verde-amarelos que se ajoelham ao império americano. Conceito psicanalítico de identificação ajuda a entender melhor: mesmo como vassalos, eles cultivam o sonho de integrar o império americano – um “clube” do qual gostariam de pertencer

Moyses Pinto Neto – Piaui/ OUTRAS MÍDIAS – 26/02/2025.

Em geral, atos como o bater continência de Jair Bolsonaro diante da bandeira americana ou parlamentares de extrema direita vestirem o boné Make America Great Again têm provocado um juízo de perplexidade da esfera pública tradicional brasileira. Embora reivindiquem para si o status de patriotas, os militantes da extrema direita submetem-se a uma improvável condição absolutamente idólatra de um país estrangeiro, os Estados Unidos, e não raro sacrificam a ideia de soberania nacional – estandarte máximo do patriotismo clássico – em prol da submissão ao movimento internacional coordenado por Steve Bannon e afins. O juízo de perplexidade deriva da contradição escancarada, seguindo-se, portanto, a ironia e o deboche sobre as ações dos nossos amantes do Tio Sam expatriados em Miami e nos protestantes de Copacabana, da Avenida Paulista ou do Parcão. Meu ponto aqui será provar que esse diagnóstico é superficial e pode ser melhor explicado em outros termos; mas, antes, exploremos um pouco as contradições do movimento.

Primeiro, vimos durante 2023 e 2024 uma concentração de ataques da extrema direita à política econômica do governo Lula a partir da taxação de bens importados por Haddad, em uma manobra mais ou menos desastrada – sobretudo em termos de comunicação – na qual as “blusinhas” acabaram sofrendo tarifas e encarecendo ao consumidor popular o acesso a importações em geral chinesas. Haddad, por isso, é ironizado em memes como “Taxad”, e parte do episódio do Pix se deve, fundamentalmente, ao lastro anterior produzido ao seu redor pela propaganda da extrema direita. Se Haddad foi capaz de taxar mercadorias importadas de baixo valor, contra a própria promessa do governo, então por que isso não ocorreria com o Pix, promovendo a partir da sua vistoria a cobrança de impostos sobre atividades na zona cinzenta da legalidade que servem de base da renda dos trabalhadores precarizados? O raciocínio popular, que levou à queda da aprovação do governo e do próprio mandatário, tem lá sua lógica, mais uma vez fazendo perder os defensores da “verdade”, promovida pelos esclarecidos do jornalismo e da “técnica”, contra os promotores de notícias falsas.

Mas e quanto a Trump, então? O presidente americano promove agora a taxa como sua principal política. Ele chegou a dizer que tariff é a quarta palavra mais bonita do dicionário, depois de Godlove e religion. Como funcionam as tarifas de Trump? Para promover uma reindustrialização e reaquecimento do mercado americano, ele deseja “trazer de volta” os negócios que migraram para o Leste Asiático, barateando os custos de produção no famoso processo que nos últimos quarenta anos vem sendo chamado de “globalização”. As tarifas, portanto, são proteções do mercado interno. Exatamente como no caso de Haddad, que, entre outras razões, induziu, com apoio implícito da própria extrema direita, a taxação com o intuito de respeitar a competitividade do varejo interno. Alguém viu Luciano Hang criticando Haddad por tarifar blusinhas? O mesmo se passa com Trump: o valor adicionado, que ameaça chegar a 25%, é arcado pelo consumidor final, por isso mesmo se fala, inclusive, dos potenciais efeitos inflacionários. Onde estão os memes e as críticas dos economistas defensores do mercado aberto aqui no Brasil?

A segunda contradição ainda se conecta com a primeira. Sabe-se que a esquerda dita “desenvolvimentista” – o governo Dilma, sobretudo, é tido como seu representante  – aposta que somente promovendo uma reindustrialização o Brasil poderia sair da cilada exportadora e extrativista baseada em matérias-primas, hoje dominadas pelo agronegócio e pela mineração, em que se meteu. A reindustrialização resultaria em melhores empregos, organização da classe trabalhadora e valorização dos bens produzidos no Brasil, com mais “complexidade econômica”. Em compensação, a direita – embora apoiada, em massa, pelos próprios industriais, como vimos com a Fiesp durante o período do impeachment – considera a pauta econômica da esquerda ultrapassada, reduzindo a competitividade da indústria nacional e baseando-se em pressupostos da superioridade de um tipo de produção que dizem não se confirmar nos dados. Portanto, tanto faz a matriz produtiva do país, desde que alicerçada em instituições firmes capazes de garantir a estabilidade dos negócios e, com isso, fortalecer a confiança do setor privado para investimento.

Mas… e Trump? Toda lógica do protecionismo “desglobalizador” dele se baseia na renovação industrial dos Estados Unidos, colocando sua aliança com as big techs como ponto primordial, com a possibilidade do desenvolvimento de produtos de tecnologia de ponta. Além disso, Trump – com seu “drill, baby, drill” – pretende explorar ao extremo a matriz energética “suja” que nos conduziu à crise climática, aguçando seus efeitos (que são negados, também com muitas contradições, mas isso é tema para outro texto). Onde estão os adeptos do liberalismo econômico hard, por exemplo, o próprio ex-ministro Paulo Guedes, para criticar o neonacionalismo desenvolvimentista de Trump? Trump, inclusive, faz exatamente a mesma coisa pela qual Lula apanhou inclementemente da imprensa e do mercado financeiro ao longo dos últimos dois anos: ataca e constrange, constantemente, o Banco Central, a fim de promover a baixa dos juros. A diferença é que Lula via no dirigente do Bacen um inimigo na trincheira, promotor de crises artificiais com o fito de minar as políticas governamentais, forçando a desconfiança econômica e a subida dos juros, enquanto com Trump ocorre o inverso: ele vê o Banco Central americano como muito técnico, por isso mesmo impedimento à realização das suas metas políticas que envolvem uma forte intervenção na institucionalidade econômica. O que é mais grave? Se observarmos nossos liberais “convictos”, como os representantes do Partido Novo, aparentemente não estão achando nada de errado com as medidas de Trump.

Terceira e última contradição, para efeitos deste texto, pois não se esgotam nisso: a posição em relação à Ucrânia. Sabemos que o Brasil, logo que estourou a guerra da Ucrânia, viveu uma polarização surreal entre a direita – que passou a idolatrar Zelensky – e parte da esquerda, que via em Putin uma continuidade do projeto soviético. Enfim, mais fogo foi acrescentado quando Lula assumiu e resolveu ocupar o lugar de pacificador, tentando travar algum diálogo com Putin. Rapidamente, a parcela mais liberal – tanto da esquerda como da direita – passou ao ataque, considerando uma capitulação desumana, e nossa mídia ecoou os “desencontros” entre Zelensky e Lula que ocorriam nos foros internacionais. Mas e agora? Trump ligou para Putin e Zelensky para dizer que quer dar fim à guerra, e a chancelaria americana reconhece que é impossível à Ucrânia voltar ao status quo anterior. Uma posição não tão diferente daquela sustentada por Lula, tão repudiada. E, no entanto, quem está protestando contra a entrega de parte do território da Ucrânia à Rússia, sem falar da possibilidade de cobrança – com pagamento de anexação territorial – do custeio da ajuda militar dos Estados Unidos durante a guerra, levantado pelo próprio Trump?

As contradições parecem muitas, mas esse diagnóstico é apenas superficial. Na realidade, não há contradição alguma. Essa ideia pressupõe que o processo de constituição de uma identidade – no caso, o “patriota” – se dá a partir de uma correspondência entre uma condição “real” e uma identidade objetivamente dada. Por exemplo, como se discute frequentemente na esquerda, um trabalhador – que, mesmo sem carteira assinada, tem relação de subordinação e dependência – deveria se ver como trabalhador; afinal, é o que ele é. Se não se vê dessa forma, é porque está enfeitiçado (os conceitos de ideologia e alienação estão aí para tapar esses buracos). Mas não é assim que acontece. Primeiro, porque esse é está longe da objetividade total que um marxismo dogmático gostaria de sustentar. E isso por uma segunda razão: a identidade, constituída a partir da identificação, é resultado de processos imaginários. O que é um brasileiro é algo que está, constantemente, sendo disputado no imaginário, não basta apenas o passaporte ou o CPF para resolver o problema. Na identificação, como explorou Freud no seu texto sobre a psicologia das massas, é comum que haja uma identificação virtual, isto é, que ela ocorra pelo desejo, sem que haja uma correspondência com a minha condição atual. Assim, nem sempre me identifico com o que sou, mas muitas vezes com o que quero ser.

A força do pertencimento aos movimentos de extrema direita, que reúne pessoas para cantar o Hino Nacional para um pneu, não é apenas um pertencimento como qualquer outro. Às vezes, a crença na fungibilidade do pertencimento – do tipo, se é assim, vamos trocar por outro (por exemplo, ao Estado, à sociedade, à comunidade local, ao partido) – por vezes não vai suficientemente longe na análise das características singulares daquela identificação. E o que faz o pertencimento dos patriotas? Ele consegue preencher um vazio que antes existia para dizer: sim, você é mesmo um patriota, mesmo idolatrando a América mais que o Brasil. A identidade é constituída no processo de identificação por uma imagem idealizada do que quero ser, mas isso não ocorre apenas no plano individual: um Napoleão de hospício não se torna Napoleão apenas porque quer. É porque os outros confirmam que uma identificação pode colar. E essa é, efetivamente, a dimensão coletiva do movimento de extrema direita.

Assim, por que a análise da contradição é apenas superficial? Porque não há contradição. Os “patriotas” efetivamente se veem como patriotas, mas para eles ser patriota é outra coisa. E é essa “outra coisa” que eles miram quando se reúnem para vangloriar Trump diante dos seus “acertos” que beneficiam apenas os Estados Unidos, e ninguém mais, além de por vezes prejudicar até mesmo o Brasil. Mas o que é essa “outra coisa”?

Aqui temos uma questão interessante: tanto a extrema direita quanto a esquerda radical veem os Estados Unidos de forma semelhante, ou seja, como um império. A imagem dos EUA como uma democracia aberta, tolerante, com instituições sólidas e de uma ordem internacional fundada no direito é própria  do centrismo. Apenas os liberais enxergam os EUA como esse país específico, com uma sociedade tocquevilliana, separando fortemente o externo (a política internacional) do interno (a democracia constitucional). Esquerda radical e extrema direita, ao contrário, veem como as duas camadas estão diretamente entrelaçadas. O que os EUA fazem para o mundo, da Guerra da Coreia ao apoio a Israel em Gaza, é assunto que define os EUA. Não há diferença entre a sociedade interna e o império. Claro, a coincidência acaba por aí: para a esquerda radical, trata-se de se opor; para a extrema direita, de se integrar o império. O sonho dos Bolsonaro seria receber aquele convite dirigido ao Canadá para que o Brasil se tornasse um Estado da federação americana. Então, o “patriotismo” estaria consumado na maior de todas as conquistas: a integração completa, como parte dos dominadores, na condição imperial. Naturalmente, sabemos que a crise política atual é, mais que tudo, uma crise do centro político: este foi hegemônico nos últimos quarenta anos, do pretenso “fim da história”, até que tudo se mostrasse uma farsa desde a crise de 2008.

Mas, ainda dentro da “outra coisa”, alguém poderia perguntar: e não é uma contradição alguém se ver como parte de um império não o integrando de fato? Aqui, mais uma vez, surge a identificação: quando o patriota olha para os Estados Unidos como sua pátria, ele efetivamente projeta sua identidade como parte desse coletivo imperial. É claro que o Brasil não integra os Estados Unidos, mas, como país vassalo, ele pode sim integrar o império americano. E, portanto, o que esses patriotas veem sobre si mesmos é a condição de “cidadãos do Império americano”. Por isso, Make America Great Again os contempla.

Permitam-me mais uma última comparação para explicar. Um dos elementos cruciais do trumpismo é o supremacismo branco. Mas sabemos, por estudos brasileiros e internacionais, que a branquitude é uma condição relativa. Um branco no Brasil torna-se “latino” nos Estados Unidos. Um branco nascido na Bahia torna-se “nordestino” em São Paulo. O mesmo pode ocorrer com a identidade negra em alguns casos. Em geral, basta a autodeclaração, mas, por exemplo, quando se trata da disputa de cotas, é possível haver comissões de “heteroidentificação” em que a identificação é avalizada pelo feedback do outro. Em outros termos, a identidade não é uma relação de eu com o meu eu-factual, mas do meu eu produzido por meio de uma série de relações imaginárias com o meio e os outros, finalmente resultando em uma posição. Não existe identidade absoluta. Isso significa que o brasileiro patriota pode, sim, ver-se como branco americano, mesmo que, de um ponto de vista de muitos outros, ele possa ser caracterizado como “pardo” ou “latino”. Não importa.

O viés de confirmação é obtido por meio da chancela grupal: sim, se você é bolsonarista, você faz parte do clube dos brancos que compõem uma região vassala do Império. A vassalagem é uma relação bilateral, não apenas a submissão unilateral. É dessa troca assimétrica que os patriotas se vangloriam. Portanto, se o significante patriota pode comportar muitos sentidos, um deles passou a ser esse: ser patriota, amar a sua pátria, é se submeter aos Estados Unidos, ou seja, ao império do qual sua pátria é vassala.

 

Nova dependência 

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Vivemos momentos de grandes transformações na sociedade global, estas grandes alterações estão redefinindo as estruturas de poder e de riqueza, criando uma nova economia, com novos desafios para o desenvolvimento das nações e, ao mesmo tempo trazendo grandes desafios, lembrando que, para colher frutos positivos para a sociedade, fazem-se necessárias uma ampla preparação interna, com maciços investimentos em capital humano e a consolidação de instituições políticas e econômicas.

Historicamente o Brasil sempre se caracterizou por ser uma economia exportadora de produtos primários de baixo valor agregado, estruturada em um modelo econômico que se pautou por grandes propriedades, monocultura exportadora e trabalho escravo, características que ainda existem fortemente na atualidade. Somos uma grande nação exportadora de produtos primários com baixo valor agregado, desta forma, somos dependentes do mercado externo, os preços dos nossos produtos são definidos pelo mercado internacional e, somos historicamente importadores de produtos industrializados, compramos máquinas e tecnologias dos países mais avançados, estes sim definem os preços dos seus produtos vendidos no mercado externo.

As riquezas naturais extraídas de países mais atrasados economicamente eram utilizadas para alavancar o crescimento econômico das nações desenvolvidas, um modelo produtivo bastante agressivo economicamente e uma estrutura de comércio desleal que sempre gerou grandes privilégios para os países do norte global em detrimento das nações do sul, garantindo uma exploração institucionalizada pelas regras internacionais  criadas pelas nações desenvolvidas, e aceitas passivamente pelas elites locais, que enriqueciam garantindo migalhas e que se satisfaziam com a pobreza e a miséria de sua população.

No século XX, o Brasil ensaiou um processo de industrialização tardia, com fortes investimentos estatais para transformar a estrutura produtiva, criando variadas empresas públicas para alavancar o crescimento econômico, com isso, demos um salto gigantesco e passamos ao rol das dez maiores economias do mundo, preocupando nações industrializadas e gerando calafrios pelo forte potencial de crescimento econômico e produtivo, se sabidamente somos dotados de grandes riquezas naturais e minerais e se, conseguíssemos, construir um forte setor industrial, moderno, inovador e dinâmico?

Com os fortes movimentos econômicos e produtivos gerados pela globalização e pela abertura econômica, perdemos espaço no comércio internacional e passamos a vivenciar um processo de desindustrialização precoce e o setor primário exportador voltou a dominar as exportações brasileiras, exportando minério de ferro e importando produtos industrializados, exportando produtos in natura e importando produtos sofisticados, máquinas e tecnologias avançadas, retomando uma dependência que sempre caracterizou a sociedade brasileira.

Hoje percebemos uma nova dependência em curso na sociedade global, estamos, novamente, acreditando no canto da sereia das nações desenvolvidas, estamos aceitando a venda de produtos primários estratégicos, as mercadorias mais demandadas são as chamadas terras raras, minérios utilizados nas grandes big techs para garantir sua hegemonia no mercado global e, continuamos a ser importadores de tecnologias avançadas, nos tornando dependentes do mercado externo e deixando de lado nosso gigantesco potencial científico e tecnológico, entregando os investimentos estratégicos para empresas estrangeiras que pouco conhecem nossa trajetória, deixando de lado a ciência nacional, os pesquisadores e todos aqueles que acreditam verdadeiramente no enorme potencial deste país.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

 

 

Quanto mais estuda, mais o brasileiro é desaproveitado? por Erik Chiconelli Gomes

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Embora seja baixa, renda dos trabalhadores sem instrução formal cresceu 42% em doze anos e informalidade caiu. O inverso ocorreu com quem tem ensino superior. Fenômeno expõe como a regressão produtiva afeta os salários de trabalhadores mais qualificados

Erik Chiconelli Gomes – OUTRAS PALAVRAS – 18/02/2025

O mercado de trabalho brasileiro tem apresentado uma tendência contraditória nos últimos anos, desafiando pressupostos tradicionais sobre a relação entre educação e renda. Dados recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua revelam um fenômeno intrigante: trabalhadores sem instrução formal experimentaram um aumento real de 41% em seus rendimentos entre 2012 e 2024, enquanto profissionais com ensino superior registraram uma queda de 12,3% no mesmo período (IBGE 2024).

Este cenário paradoxal reflete transformações estruturais no mercado de trabalho nacional. De acordo com a Fundação Getulio Vargas (FGV), a pandemia de covid-19 atuou como um catalisador dessas mudanças, preservando inicialmente os trabalhos mais qualificados que podiam ser realizados remotamente, mas posteriormente impulsionando uma recuperação expressiva dos setores que tradicionalmente empregam trabalhadores com menor escolaridade (Feijó 2024).

A análise dos dados do IBGE demonstra que o setor de serviços tem sido fundamental nessa reconfiguração. A coordenadora de Pesquisas por Amostra de Domicílios do IBGE, Adriana Beringuy, destaca que atividades como construção civil, agricultura, transporte e logística têm apresentado forte aquecimento, gerando uma demanda crescente por profissionais com menor qualificação formal (IBGE 2024).

Um aspecto significativo dessa transformação é a redução da informalidade entre os trabalhadores menos escolarizados. Pesquisas da FGV indicam que a taxa de informalidade nesse grupo caiu de 75,2% em 2012 para 71,1% em 2024. Em contrapartida, entre os profissionais com ensino superior, a informalidade aumentou de 27% para 33,2% no mesmo período (Feijó 2024).

O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) aponta que a política de valorização do salário-mínimo tem sido um fator determinante nesse processo. Segundo Pelatieri (2024), nos últimos três anos, a renda dos trabalhadores com baixa qualificação cresceu aproximadamente 20%, acompanhando os reajustes do piso nacional.

A expansão do ensino superior no Brasil também contribuiu para esse cenário. O número de matrículas saltou de 2,7 milhões em 2000 para 9,4 milhões em 2022, representando um aumento significativo na oferta de profissionais qualificados no mercado. Atualmente, 23% dos ocupados possuem ensino superior, contra 13,7% em 2012 (IBGE 2024).

O setor de comércio eletrônico tem sido um exemplo emblemático dessa transformação. A digitalização acelerada durante a pandemia gerou uma demanda inicial por profissionais especializados em tecnologia, mas posteriormente criou oportunidades significativas em áreas operacionais, como logística e distribuição, que não exigem alta escolaridade.

A recuperação do setor de serviços pessoais após a pandemia também tem favorecido trabalhadores com menor escolaridade. Atividades como serviços de beleza, alimentação e pequeno comércio têm apresentado crescimento consistente, beneficiando principalmente profissionais autônomos. O fenômeno da uberização do trabalho, amplamente discutido por Antunes (2020), contribui para compreender essa nova dinâmica. A proliferação de plataformas digitais tem criado oportunidades de geração de renda para trabalhadores com diferentes níveis de escolaridade, embora frequentemente em condições precárias.

Pochmann (2021) argumenta que essas transformações refletem uma reestruturação produtiva mais ampla, onde a flexibilização das relações de trabalho tem impactado diferentes segmentos da força de trabalho, independentemente do nível de escolaridade. A questão da qualificação profissional ganha novos contornos nesse contexto. Standing (2021) sugere que o conceito tradicional de educação formal pode estar perdendo relevância em um mercado de trabalho cada vez mais volátil e fragmentado.

O caso dos trabalhadores do setor de construção civil é particularmente ilustrativo. Beringuy (2024) destaca que, mesmo na era da inteligência artificial, há maior dificuldade em encontrar profissionais como pedreiros e eletricistas do que programadores web. As mudanças no perfil das vagas operacionais também são significativas. Dados da organização social Gerando Vidas indicam que as ofertas de emprego para posições que exigem baixa escolaridade praticamente dobraram entre o início de 2024 e 2025, com salários médios passando de R$ 1.400 para R$ 1.700.

O impacto da tecnologia nesse processo é ambíguo. Se por um lado a automação ameaça certos postos de trabalho, por outro tem criado novas oportunidades em setores como logística e distribuição, que não necessariamente demandam alta escolaridade. A questão da mobilidade social também merece atenção. Embora a renda dos trabalhadores menos escolarizados tenha aumentado, a diferença salarial entre quem tem ensino superior e ensino médio ainda é expressiva, cerca de 126% segundo dados da FGV.

O papel das políticas públicas nesse cenário é fundamental. A retomada da política de valorização do salário-mínimo, com aumentos reais vinculados ao crescimento do PIB, tem impactado positivamente a renda dos trabalhadores na base da pirâmide. A dinâmica do mercado de trabalho brasileiro reflete também tendências globais. As transformações tecnológicas e organizacionais têm alterado profundamente a natureza do trabalho e as competências valorizadas pelos empregadores.

A questão da desigualdade de renda no Brasil revela uma complexidade sem precedentes neste novo cenário. Embora os dados apontem para uma aparente redução da disparidade salarial, com o aumento da renda dos trabalhadores menos qualificados, é fundamental examinar criticamente este fenômeno. O nivelamento por baixo da renda do trabalho pode mascarar um processo de precarização generalizada das condições laborais, onde a aproximação entre os rendimentos ocorre não pela elevação sustentável dos salários mais baixos, mas pela deterioração dos rendimentos dos trabalhadores mais qualificados.

A tendência de desvalorização da educação formal representa um risco significativo para o desenvolvimento socioeconômico do país. O desencorajamento ao investimento em formação superior, provocado pela queda na rentabilidade deste nível de ensino, pode gerar um ciclo vicioso de desinvestimento em capital humano. Quando as novas gerações observam a redução do retorno financeiro da educação superior, podem optar por trajetórias profissionais que priorizam ganhos imediatos em detrimento da qualificação de longo prazo, comprometendo a capacidade inovativa e produtiva do país.

O futuro do trabalho no Brasil exige uma abordagem que transcenda a dicotomia entre conhecimento formal e prático. A valorização equilibrada entre as diferentes formas de saber e competências profissionais precisa estar ancorada em uma política educacional e de desenvolvimento que reconheça tanto a importância da formação acadêmica quanto das habilidades técnicas e experienciais. Esta integração deve ocorrer de forma a potencializar ambas as dimensões, criando sinergias que elevem a qualidade geral do trabalho e da produção nacional.

O horizonte que se desenha para o mercado de trabalho brasileiro demanda uma profunda reestruturação dos sistemas educacionais e de formação profissional. As transformações tecnológicas e organizacionais em curso exigem um novo paradigma que combine flexibilidade adaptativa com solidez formativa. Este modelo deve ser capaz de responder às demandas imediatas do mercado sem sacrificar a capacidade de geração e absorção de conhecimento avançado, essencial para o desenvolvimento sustentável do país em um contexto de competição global cada vez mais intenso.

Referências:

ALMEIDA, Cássia. Escolaridade desvalorizada? Renda no país cresceu mais para trabalhador sem qualificaçãoO Globo, Rio de Janeiro, 9 fev. 2025.

ANTUNES, Ricardo. Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020.

FEIJÓ, Janaína. Relatório sobre escolaridade, emprego e renda no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2024.

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Rio de Janeiro: IBGE, 2024.

PELATIERI, Patrícia. Análise da política de valorização do salário mínimo. São Paulo: DIEESE, 2024.

POCHMANN, Marcio. Trabalho sob fogo cruzado. São Paulo: Contexto, 2021.

STANDING, Guy. O precariado: a nova classe perigosa. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.